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Denise Mota Para Borges, “dos diversos ins- trumentos do homem, o mais as- sombroso é, sem dúvida, o livro”. O argentino comparava a leitura ao uso do telescópio, do telefone, do microscópio, até mesmo do arado. Aqui, a literatura mostra mais um fator de espanto: a capacidade de se debruçar sobre o real e transmitir o impalpável. De ser o espelho de um lugar e momento determinados, de sua geografia físi- ca, humana e emo- cional. O condutor dessa experiência pode ser um cario- ca perdido, um se- dutor incorrigível ou um ghost-wri- ter em viagem, to- dos eles o mesmo protagonista da Budapeste de Chi- co Buarque, per- sonagem que se apaixona enquanto tenta entender os rudimentos lingü- ísticos do país que se tornará um mar- co em sua vida. Entre luzes feéricas e recônditos de uma casa geminada no número 17 da rua Tóth, o autor nos leva a uma Hungria que, longe do cinza, é “amarela, os telhados, o asfalto, os parques”. Desmistificada também é a Istam- bul do Nobel do ano passado, Orhan Pamuk. Berço da história autobio- gráfica de um jovem escritor em for- mação, a capital está muito distante do clichê que a define como um en- crave europeu no Oriente. “Por bai- xo de sua história grandiosa, (...) os seus pobres ocultam a alma da cida- de dentro de uma teia frágil”, anota o autor. Menos surpreendente, mas ainda inesperada é a Cuba que emerge das mãos de Pedro Juan Gutiérrez em Trilogia suja de Havana. Nessa co- letânea de contos, o escritor descre- ve o Malecón, as altas temperaturas e a sensualidade caribenha de car- tão-postal a partir de outro prisma: o da nada turística miséria que asso- la desempregados embebidos em rum, sexo e dro- gas. Isolar-se foi o que buscou o pro- fessor universitário David Lurie, após ter no sexo um problema, e não uma solução. Em Desonra, o Nobel de 2003 J. M. Co- etzee traslada esse metódico intelec- tual da agitação da Cidade do Cabo para a aparente paz do interior sul-africano, onde a pacata criação de ovelhas e vegetais não impede que o pós-apartheid se mostre em todas as suas cores. Cho- cado com a brutalidade entronizada no dia-a-dia de seus compatriotas, Lurie é advertido: “Acorde. Esta é a África”. Ainda no continente negro, outro despertar ganhou registro literário: depois de participar do processo de independência de Angola, Pepe- tela detalha a nova sociedade que se conformou. Em Predadores, um empresário ascende através de tram- biques políticos, enquanto Luanda reproduz a riqueza e a pobreza ex- tremas, simbolizadas pelo elegante bairro do Alvalade e pelas ruínas do Catambor. Mais além, no Japão, um amor que é puro sacrifício e desinteresse floresce em O país das neves, clás- sico de Yasunari Kawabata. Em con- traste com a gélida paisagem que o escritor tomou emprestada da esta- ção termal de Yusawa, se entrecruza o ardor de sentimentos de um endinheirado es- critor, uma gueixa e uma jovem provinciana. Também no Oriente, outro tipo de amor – tão pleno de satisfação sexu- al quanto desprovido de humanidade – tem lugar na então Indochina, ma- terializado nos braços d’O amante de Margue- rite Duras. No relato, os bondes de Saigon, o rio Mekong, o calor mo- nótono de uma região onde “não há primavera” acompanham a transfor- mação da jovem de 15 anos que se envolve com um rico chinês. Ainda próximo ao mar, mas em outras la- titudes e sob um céu “violeta sempre mutan- te”, na costa da Irlanda “homens bêbados, mu- lheres que barganham”, operários boca-suja, religiosos, estudantes em busca de emoções povoam Dublinenses, em que James Joyce enfeixa um conjun- to de crônicas do cotidiano de seus conterrâneos. Ainda navegamos e, em conti- nente americano, o caudaloso Mis- sissippi embala As aventuras de Tom Sawyer, herói juvenil criado por Mark Twain. O escritor se ins- pirou na pequena Hannibal, cidade de seu Missouri natal, para erguer a St. Petersburg onde o esperto garoto órfão vivencia um sem-fim de peri- pécias. Enfim em solo pátrio, a Amazô- nia emoldura o terceiro. Os Dez Livros •Budapeste, de Chico Buarque; •Istambul – Memória e cidade, de Orhan Pamuk; •Trilogia suja de Havana, de Pedro Juan Gutiérrez; •Desonra, de J. M. Coetzee; •Predadores, de Pepetela, Dom Quixote; •O país das neves, de Yasunari Kawabata; •O amante, de Marguerite Duras; •Dublinenses, de James Joyce; •As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain; •Cinzas do Norte, de Milton Hatoum. Telescópios para o real N a E stante Na Estante 16 SETEMBRO - 2007 Dez livros de ficção para transportar o leitor a lugares que de fato existem Vista de Dublin, na Irlanda, cenário das crônicas de Joyce da Guerra Memória Uma seleção de livros sobre dor, esperança, angústia e solidaridade escritos por quem viveu o período nazista e as Guerras Mundais

Jornal Na Estante

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Jornal fictício realizado para a disciplina de Planejamento Visual e Gráfico - Universidade Estadual de Londrina.

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Page 1: Jornal Na Estante

Denise Mota

Para Borges, “dos diversos ins-trumentos do homem, o mais as-sombroso é, sem dúvida, o livro”. O argentino comparava a leitura ao uso do telescópio, do telefone, do microscópio, até mesmo do arado. Aqui, a literatura mostra mais um fator de espanto: a capacidade de se debruçar sobre o real e transmitir o impalpável. De ser o espelho de um lugar e momento determinados, de sua geografia físi-ca, humana e emo-cional.

O condutor dessa experiência pode ser um cario-ca perdido, um se-dutor incorrigível ou um ghost-wri-ter em viagem, to-dos eles o mesmo protagonista da Budapeste de Chi-co Buarque, per-sonagem que se apaixona enquanto tenta entender os rudimentos lingü-ísticos do país que se tornará um mar-co em sua vida. Entre luzes feéricas e recônditos de uma casa geminada no número 17 da rua Tóth, o autor nos leva a uma Hungria que, longe do cinza, é “amarela, os telhados, o asfalto, os parques”.

Desmistificada também é a Istam-bul do Nobel do ano passado, Orhan Pamuk. Berço da história autobio-gráfica de um jovem escritor em for-mação, a capital está muito distante

do clichê que a define como um en-crave europeu no Oriente. “Por bai-xo de sua história grandiosa, (...) os seus pobres ocultam a alma da cida-de dentro de uma teia frágil”, anota o autor.

Menos surpreendente, mas ainda inesperada é a Cuba que emerge das mãos de Pedro Juan Gutiérrez em Trilogia suja de Havana. Nessa co-letânea de contos, o escritor descre-

ve o Malecón, as altas temperaturas e a sensualidade caribenha de car-tão-postal a partir de outro prisma: o da nada turística miséria que asso-la desempregados embebidos em rum, sexo e dro-gas.

Isolar-se foi o que buscou o pro-fessor universitário David Lurie, após ter no sexo um problema, e não uma solução. Em Desonra, o Nobel de 2003 J. M. Co-etzee traslada esse metódico intelec-tual da agitação

da Cidade do Cabo para a aparente paz do interior sul-africano, onde a pacata criação de ovelhas e vegetais não impede que o pós-apartheid se mostre em todas as suas cores. Cho-cado com a brutalidade entronizada no dia-a-dia de seus compatriotas, Lurie é advertido: “Acorde. Esta é a África”.

Ainda no continente negro, outro despertar ganhou registro literário:

depois de participar do processo de independência de Angola, Pepe-tela detalha a nova sociedade que se conformou. Em Predadores, um empresário ascende através de tram-biques políticos, enquanto Luanda reproduz a riqueza e a pobreza ex-tremas, simbolizadas pelo elegante bairro do Alvalade e pelas ruínas do Catambor.

Mais além, no Japão, um amor que é puro sacrifício e desinteresse floresce em O país das neves, clás-sico de Yasunari Kawabata. Em con-traste com a gélida paisagem que o escritor tomou emprestada da esta-ção termal de Yusawa, se entrecruza o ardor de sentimentos de um endinheirado es-critor, uma gueixa e uma jovem provinciana.

Também no Oriente, outro tipo de amor – tão pleno de satisfação sexu-al quanto desprovido de humanidade – tem lugar na então Indochina, ma-terializado nos braços d’O amante de Margue-rite Duras. No relato, os bondes de Saigon, o rio Mekong, o calor mo-nótono de uma região onde “não há primavera” acompanham a transfor-mação da jovem de 15 anos que se envolve com um rico chinês.

Ainda próximo ao mar, mas em outras la-titudes e sob um céu “violeta sempre mutan-te”, na costa da Irlanda “homens bêbados, mu-lheres que barganham”, operários boca-suja,

religiosos, estudantes em busca de emoções povoam Dublinenses, em que James Joyce enfeixa um conjun-to de crônicas do cotidiano de seus conterrâneos.

Ainda navegamos e, em conti-nente americano, o caudaloso Mis-sissippi embala As aventuras de Tom Sawyer, herói juvenil criado por Mark Twain. O escritor se ins-pirou na pequena Hannibal, cidade de seu Missouri natal, para erguer a St. Petersburg onde o esperto garoto órfão vivencia um sem-fim de peri-pécias.

Enfim em solo pátrio, a Amazô-nia emoldura o terceiro.

Os Dez Livros•Budapeste, de Chico Buarque;•Istambul – Memória e cidade, de Orhan Pamuk;•Trilogia suja de Havana, de Pedro Juan Gutiérrez;•Desonra, de J. M. Coetzee;•Predadores, de Pepetela, Dom Quixote;•O país das neves, de Yasunari Kawabata;•O amante, de Marguerite Duras;•Dublinenses, de James Joyce;•As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain;•Cinzas do Norte, de Milton Hatoum.

Telescópios para o real NaEstante

NaEstante 16

SETEMBRO - 2007

Dez livros de ficção para transportar o leitor a lugares que de fato existem

Vista de Dublin, na Irlanda, cenário das crônicas de Joyce

da Guerra Memória

Uma seleção de livros sobre dor, esperança, angústia e solidaridade escritos por quem viveu o período nazista e as Guerras Mundais

Page 2: Jornal Na Estante

Mariana Andrade

Amyr Klink diz que Parati o inspirou a viajar pelo mundo. Só não supunha que um encontro em seu barco traria o mundo a Parati, por meio da literatura. Mauro Munhoz, diretor presidente da Associação Casa Azul, conta que ao aceitar o convite do amigo navegador para passar um final de semana em seu barco acabou conhecendo uma outra hóspede, Liz Calder, editora da inglesa Bloomsbury. Encantada com o lugar, ela vendeu uma casa na França para cons-truir uma ali e convidou Munhoz para ser o arquiteto da obra. Munhoz, engaja-do em um projeto urbanístico destinado a revitalizar a cidade histórica do Rio de Janeiro, conversou com a inglesa sobre o desejo de realizar ali uma atividade no plano cultural. Ela propôs: “Por que não com literatura?”.

E assim nasceu a idéia que, apenas dez anos depois, se concretizaria na primeira edição da Festa Literária In-ternacional de Parati, que agora chega a sua quinta edição. Munhoz conta que, na época, houve quem os advertisse que evento literário no Brasil não daria cer-to, ainda mais fora de um grande centro. O fato é que, hoje, além da Flip, há tam-bém o Fórum das Letras de Ouro Preto, em Minas Gerais, realizado desde 2005, e a precursora Jornada Nacional de Lite-ratura, que desde 1981 ocorre na cidade de Passo Fundo, no norte do Rio Grande do Sul, e este ano chega a sua 12ª edição. Os três são sediados em cidades peque-nas que têm conseguido voltar para elas o interesse de um público variado que, ao que tudo indica ou ao menos acredi-tam os envolvidos nos eventos, sai des-ses encontros mais motivados a ler.

Essa motivação não recai somente sobre potenciais leitores. “Para os pró-prios escritores representam um estímu-lo”, diz o escritor Moacyr Scliar, que

participou da Jornada de Passo Fundo e Flip. “Alguns escritores dizem: ‘Quem quer saber de minha literatura leia meus livros’, o que, teoricamente, faz senti-do: o escritor se expressa através de sua obra, ou não se expressa. Mas, e sobre-tudo em países como o Brasil, o escri-tor tem também o papel de motivador e eventos como esses são uma grande oportunidade para isso”, avalia Scliar.

Tânia Rösing, coordenadora da Jornada Nacional de Literatura, acom-panha de perto o efeito multiplicador desses eventos. Passo Fundo é hoje a ci-dade com maior número de livrarias por habitante, recebeu o título de Capital Nacional da Literatura por meio de uma Lei Federal em 2006, quando também foi apontada por uma pesquisa realiza-da pelo Ibope como a região onde mais se lê no país. “O número de seminários de leitura ampliou-se por aqui e somos sempre procurados para viabilizar con-tato com autores”, destaca.

O escritor Marcelino Freire, que par-

ticipou como convidado dos três even-tos, e também é dado à agitação cultu-ral, revela que todos lhes serviram de inspiração. “Os três se complementam. A Jornada é mais ‘didática’. Envolve alunos e professores e educadores em geral. O Fórum das Letras gera debates entre editores, livreiros, todos que estão na cadeia do livro. Das três, a Flip é a que é mais festa, uma celebração dioní-siaca da literatura. A Flip é um evento mais pop, digamos. O que não tira o seu mérito. Depois da Flip, muitas festas e modelos assim surgiram. E a Jorna-da é inspiradora.” Freire idealizou, por exemplo, a Balada Literária, que este ano terá como homenageado Roberto Piva. “Esse evento veio para assumir o lado baladeiro. Os debates-papos sem-pre acabam em festa, show, dança. E nas mesas redondas eu procuro misturar as tribos. Outra: as mesas não têm temas. É a conversa que rolar (feito em mesa de bar) a partir da reunião daquelas pes-soas.”

Embora tenham semelhanças, há também muita diferença entre esses eventos. “A Jornada de Passo Fundo é mais dirigida para professores; o ensino de literatura, por exemplo, ali tem um papel importante. O número de partici-pantes é bem maior. Já a Flip representa uma interface entre a literatura brasilei-ra e a literatura mundial (autores estran-geiros, a propósito, também vem a Pas-so Fundo)”, diz. Essa percepção reflete os objetivos dos idealizadores, ainda que nem tudo salte aos olhos de quem acompanha de fora. A Flip, por exem-plo, chama a atenção pela quantidade de autores estrangeiros que traz, porém, se-gundo Munhoz, aposta no turismo cultu-ral, capaz de viabilizar recursos e meios para a auto-sustentação e preservação de Parati. Ele destaca ainda a realização contínua de um programa educativo de valorização do patrimônio cultural da cidade e de capacitação de professores da região. A Flipinha, este ano, contará com uma participação 30% maior das escolas locais, embora autores de lite-ratura infantil não tenham obtido ainda espaço apropriado.

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Estante 15SETEMBRO - 2007SETEMBRO - 2007

O escritor não é um ser de exce-ção, fora de série. Não representa um semideus. Empurra o carrinho de supermercado como qualquer um. Por ser tão prosaico é capaz de observar a normalidade de um jeito especial, de se importar com a ba-nalidade e se identificar com o que é descartado.

Escrever é um trabalho solitário, mas a solidão não pode ser blinda-da pela arrogância. Deve ser uma solidão generosa, que abre sua varanda para as dúvidas, inquieta-ções, diferenças e perplexidades de seus contemporâneos.

Infelizmente a mistificação e a autosuficiência consolidaram o

equívoco de que o escritor não de-pende de mais ninguém, a não ser do talento e da inspiração. E não bastam as críticas para avisar de caminhos possíveis. As resenhas desfavoráveis são classificadas de mal-intencionadas. As positivas re-forçam o narcisismo. A impressão é que o escritor nasce pronto e fe-chado. Na verdade, não ambiciona nem o elogio, e sim a bajulação.

Percebo uma passionalidade no meio autoral. Ou estão comigo ou contra mim. Não se encontra rua intermediária entre adesão e aver-são. Faltam equilíbrio, humor e au-tocrítica, sobram pose e sectarismo. O escritor não consegue imaginar

o leitor refugando seu livro. Até imagina, mas não suporta a idéia de não ser um futuro clássico. Não agüenta a hipótese de não ser lido simplesmente por não dar prazer, o que é uma justificava e tanto. Bo-tou na cabeça que a unanimidade o espera. Adota uma postura extre-mista e autoritária. Confunde leitu-ra obrigatória com leitura obrigada. Quem não gosta do que ele escreve é naturalmente um inimigo. Quem gosta é um aliado.

Ao constatar resistência ao seu nome, o escritor insinua boicote e perseguição. Culpa a distribuição e a editora, não se envergonha de remanejar seu livro para a gôndola

mais visível. Quando não recebe um prêmio, logo pensa que é um injustiçado, que o júri foi com-prado, que é um jogo de cartas marcadas, que só funciona o lo-bby.

Uma tática para se proteger do confronto e do julgamento é avisar que somente o tempo definirá o valor do que se es-creve. Ora, não dá para ficar calado até lá, durante no mí-nimo meio século.

Se o escritor entra na lista dos mais vendidos, é acu-sado pelos seus colegas de facilitar o trabalho, de pio-rar seu conteúdo.

Ofício de escritor

3 Franz Kafka

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Literatura na arenaDa tradicional Jornada de Passo Fundo à pop Flip, eventos literários que aproximam

leitores e escritores se consolidam no calendário do segundo semestre

Vista da tenda dos autores, onde ocorrem as mesas da Flip, que chega este ano à sua quinta edição

Antonio Saggese

Bonecos desfilam durante a 11ª Jornada Nacional de Literatura, em Passo Fundo

Divulgação

Page 3: Jornal Na Estante

NaEstante 14 Na

Estante 3SETEMBRO - 2007 SETEMBRO - 2007

Renato Roschel

Franz Kafka nasceu em Praga a 3 de julho de 1883, cidade que durante todos os 40 anos da vida do escritor pertenceu à monarquia austro-hún-gara.

Filho de um abastado comerciante judeu, Kafka cresceu sob as influên-cias de três culturas: a judia, a tcheca e a alemã.

Formado em direito, ele fez par-te, junto com outros escritores da época, da chamada Escola de Praga. Esse movimento era basicamente uma maneira de criação artística ali-cerçada em uma grande atração pelo realismo, uma inclinação à metafísi-ca e uma síntese entre uma racional lucidez e um forte traço irônico.

Esse híbrido de ironia e lucidez aparece na maioria dos textos de Ka-fka.

Suas obras também con-seguem for-malizar e abrigar leitu-ras totalmente relacionadas com a con-dição do ser humano mo-derno.O olhar kafkiano é di-recionado para coisas como a opressão bu-rocrática das instituições, a

“justiça” e a fragilidade do homem comum frente a problemas cotidia-nos.

O primeiro livro de Kafka foi “Consideração”, publicado em 1913.

No ano seguinte à publicação da sua primeira obra, Kafka sofreu uma grande crise emocional.

Alguns estudiosos afirmam que esta crise foi causada por motivo de seu noivado, outros defendem que o au-tor tcheco teria ficado emocionalmente aba-lado com início da 1ª Guerra Mundial ocor-rido no mesmo ano.

As obras mais fa-mosas de Kafka fo-ram escritas entre 1913 e 1921, são elas: “A Metamorfose”, “O Processo”, “O Cas-telo”, “O Foguista” (que é na verdade o primeiro capítu-lo de “América”), “A Sentença” e “O Artista da Fome”.

Em 1920, Kafka abandonou seu emprego em uma companhia de se-guros por razões de saúde. Havia contraído tuberculose. Nos anos 1920 e 1921, Kafka relacionou-se com a escritora tcheca Milena Je-senká-Pollak, mas seu grande amor foi por uma mulher que conheceria apenas no final de sua vida, Dora Dyamant.

As histórias criadas por esse ju-deu tcheco que escrevia em alemão deram voz ao indivíduo que caminha nas ruas das grandes cidades con-temporâneas. O personagem Gregor Samsa, de Metamorfose, é o homem tornado inseto frente à realidade ur-bana avassaladora, burocrática e tão cheia de gigantismos. Samsa repro-duz a sensação do homem que virou o inseto insignificante das cidades

modernas e que, quando em vez, morre aos milhões nos campos de guerra. Nenhum autor representou de forma tão con-tundente a moder-nidade. Segundo o crítico literário George Steiner, “o extremismo da po-sição literária de Kafka (...) torna a estrutura repre-sentativa e a cen-tralidade de sua façanha mais no-

táveis. Nenhuma outra voz foi teste-munha mais verdadeira da natureza de nossos tempos.”

Para ler Kafka são necessários al-guns cuidados especiais, entre eles, contar com uma certa atenção à ma-neira com que toda obra se constrói, principalmente seus períodos; estar sempre consciente de que toda a criação literária de Kafka foi dolori-da, feita com o intuito de não parecer

bonita, de ser, principalmente, uma obra baseada na dor; ficar atento a todos os detalhes do texto, pois em Kafka, até as imperfeições são pro-positais, ou seja, segundo Theodor Adorno, até “as deformações em Ka-fka são precisas”.

Durante sua vida, Kafka nunca conseguiu atingir grande fama com seus livros, porém, algum tempo de-pois de sua morte, no dia 3 de junho de 1924, em um sanatório perto de Viena, onde internara-se por causa de sua tuberculose, sua obra literária atingiria enorme influência sobre as pessoas, passando a ser cultuada por leitores de quase todo o planeta.

FranzPer f il

“Há esperanças, só não para nós.”

Principais Obras:

Reprodução

Reprodução

Gabriela Romeu

O saci completa agora 90 anos de nascimento literário pela pena do escritor paulista Monteiro Lobato (1882-1948), principal responsável por propagar essa figura do imaginá-rio popular nacional. O personagem, cujo nome é uma corruptela de Çaa cy perereg, do tupi-guarani, saltou do universo oral para o mundo das letras após pesquisa realizada por Lobato no começo do século XX.

O livro O sacy-perere – resultado de um inquérito (1918) foi publica-do pouco depois de o escritor pau-lista reunir, para o Estadinho, edição vespertina do jornal O Estado de S. Paulo, muitos dos “causos” sobre o duende relatados por leitores de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e, principalmente, do interior paulista. O futuro criador do Sítio do Picapau Amarelo convocara leitores a com-partilhar informações sobre a criatu-ra “genuinamente nacional”.

A obra, que antecedeu até mes-mo Urupês, trazia o inquérito sobre o moleque: havia relatos de cons-tantes aparições nas zonas rurais, a informação de que adorava praticar diabruras, como azedar o leite, em-baraçar a crina dos cavalos e escon-der objetos da casa. Um dos leito-res garantiu: “(...) era um negrinho muito magro, muito esperto, de cima de uma perna só, do tamanho de um menino de doze anos, muito feio, banguela, olhos vivos, rindo sempre um riso velhaco de corretor de pra-ça”.

O saci surgiu nas fronteiras do Pa-raguai, entre os índios guaranis. Mas foram os negros escravizados no país que se apropriaram da figura. E foi então que ganhou feições africa-nas, gorro vermelho e pito de barro,

segundo Mario Cândido, presidente da Sosaci (Sociedade dos Observa-dores de Saci), associação engajada na missão de não deixar bruxas de Halloween apagarem a imagem do homenzinho perneta no imaginário das crianças brasileiras – hoje, no país, 31 de outubro é dia do saci.

E o duen-de perneta no univer-so lobatia-no ressurge com desta-que no livro O saci, de 1921. E ali é Pedrinho, mais uma vez de fé-rias na casa da avó, que “ a n d a v a com a ca-beça cheia de sacis”. Com tanta c u r i o s i d a -de quanto medo, o me-nino vai per-guntar sobre a criaturinha para tio Bar-nabé, aquwrwhrele que “entende de todççças as feitiçarias, e de saci, de mjhkjula-sem-cabeça, de lobisomem – de tudo”.

Até que um dia Pedrinho con-segue capturar um saci num roda-moinho que chega ao sítio com uma peneira de cruzeta. E, no meio da mata, perto de taquaruçus, espécie de bambu onde os sacis nascem, os dois travam diálogos filosóficos so-

bre a lei da floresta, a vida na cidade, a sabedoria dos homens, a importân-cia da erudição – questionamentos lobatianos.

Só é lamentável que o livro (edi-tora Brasiliense) seja pouco atraente para meninas e meninos de hoje, já

acostumados com edições cada vez mais sof i s t i cadas nas capas, no projeto gráfico e nas ilustra-ções. Mas em 2007, ano em que o escritor de Taubaté comple ta r i a 125 anos de nascimento, a disputa judi-cial pela obra do autor está na reta final – e tudo indi-ca que novas edições das aventuras do Sítio do Pica-pau Amarelo estejam bem próximas.

Os sacis, no entanto, c o n t i n u a m

aprontando poucas e boas na lite-ratura infantil. A veterana Tatiana Belinky foi premiada pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) por Dez sacizinhos (Pauli-nas), com as ilustrações de Roberto Weigand. Belinky faz versos sobre o desaparecimento de sacis, que, um a um, vão sendo subtraídos da his-tória: “Eram dez os sacizinhos; um ficou imóvel e nunca mais se moveu,

e sobraram nove”.Em Nas pegadas do Saci (Conex),

Marcia Camargos, co-autora do pre-miado Monteiro Lobato – furacão na Botocúndia (Senac), coloca um grupo de amigos no rastro biográfi-co do moleque de uma perna só. Os diálogos entre adultos e crianças, recheados de informações históricas e mensagens ecológicas, soam, às vezes, um pouco artificiais. Mas, se a obra carece de recursos literários, o livro com ilustrações de Marcos Cartum destaca-se justamente por oferecer informação de qualidade sobre a criatura folclórica – é boa fonte de pesquisa para crianças em idade escolar.

Já Pererêêê Pororóóó (DCL), de Lenice Gomes, escritora de livros que resgatam o aspecto folclórico com roupagem contemporânea, é uma prosa poética cheia de adivinhas – “Pererêêê / Pororóóó / Saci-Pere-rê! / Adivinha o quê?”. Em versos livres, é contada a história do encon-tro de Raul e Diva, duas crianças, e três sacis que rodopiam feito “pi-ões enlouquecidos” em um casarão abandonado na cidade. As colagens de André Neves dão um adequado toque folclórico aos personagens.

É também na cidade, em sua pe-riferia, que o enredo de O caso do saci (Cosac Naify), do ilustrador e escritor Nelson Cruz, se desenrola. Os irmãos Manfredinho e Andréa desconfiam que é o duende que anda escondendo o dinheiro do pai, víti-ma de malandros do bairro. Depois de roubar o gorro vermelho do Saci, o que deixa o duende sem força, os dois acompanham o negrinho até o vale onde estão os objetos escondi-dos pelo moleque que migrou das zonas rurais para os centros urbanos – pelo menos na literatura .

Lá vem o SaciHá 90 anos, após inquérito de Monteiro Lobato, o personagem estreou na literatura

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Márcio Vassallo - Um pensamento seu: “A ati-

vidade de cronista me realiza comple-tamente e acredito que é perfeitamente possível atingir a profundidade fican-do na superfície.” O que há de mais profundo nas superfícies?

Luis Fernando Verissimo – A gente pode escrever sobre todo tipo de coisa, de uma maneira leve. Para escrever sobre um assunto sério, ou pretensa-mente sério, o autor não precisa es-crever de forma empolada, formal.

Vassallo - Seu próximo roman-ce vai fazer parte da coleção Cinco dedos de prosa, da editora Objeti-va. Nessa coleção, cinco autores convidados escrevem uma história inspirada em cada um dos dedos da nossa mão. E você ficou com o polegar. Afinal, o que o polegar tem de mais atraente?

Verissimo – O livro vai se cha-mar O Opositor. Mas até agora só tenho o título. Acho que o movi-mento de juntar o dedão com o dedo indicador foi o grande pas-so na evolução da humanidade. Afinal, foi a partir desse movi-mento que o homem conseguiu pegar a larva, para comer com mais precisão, e também es-trangular o próximo.

Vassallo - Você já escre-veu uma vez: “Examine suas mãos. Coisas estranhas, não são? Nos pertencem e ao mesmo tempo não nos per-tencem. Parecem ter vida e opiniões próprias.” Em que momentos você mais dis-corda das suas mãos?

Verissimo – Tem gestos que agem por conta pró-pria, mesmo que você não concorde com eles e que não tenha a intenção de fazê-los. E como eu sou

uma pessoa que tem certa dificuldade de expressão verbal, que tem uma certa timi-dez, muitas vezes acho que consigo falar melhor com as mãos, com os gestos. Só que nunca sabemos ao certo que gestos vamos fazer. O gesto é uma coisa que a gente não controla muito.

Vassallo - O Opositor é um livro de en-comenda, feito O Clube dos Anjos (Objeti-va), da coleção Plenos Pecados, e Borges e os Orangotangos Eternos (Companhia das Letras), da série Literatura ou Mor-te. Você costuma dizer que quando o tra-balho é encomendado, meio caminho já está andado, e que a musa inspiradora do cronista é o prazo de entrega. A urgência de voar faz você andar?

Verissimo – O prazo é um desafio. Mas, na realidade, o que provoca a criação do li-vro não tem tanta importância assim. Isso não é o mais importante. O fundamental é que o livro saia bom. E acho que o li-vro encomendado é uma forma de desafio. A pessoa inventa o tema e você topa esse desafio de criar, para chegar a um ponto pré-estabelecido. E uma encomenda não significa que o livro tenha que ser a favor ou contra alguma coisa. É só uma provo-cação para o autor.

Vassallo - Outro pensamento seu: “Só começo a escrever quando estou na fren-te do computador. Já tentei andar com um caderninho para anotar as idéias, mas acabava esquecendo o caderninho e as idéias.” As idéias é que não se esque-cem de você?

Verissimo – Olha, acho que estou sem-pre com idéias na cabeça, estou sempre pensando em coisas para escrever, mas na maioria das vezes de forma inconsciente. Então, é quando sento em frente ao com-putador que organizo melhor o meu pen-samento.

Vassallo - Em uma entrevista, na TVE, o jornalista Roberto D`Ávilla lhe perguntou com que frase você conquis-tou a Lúcia, sua mulher. E você respon-deu: “Acho que foi com um silêncio elo-qüente.” Qual a poesia do silêncio?

Verissimo – Quando não dizemos nada, ampliamos no outro as possibilidades de

interpretação. O silêncio permite mais in-terpretações que a palavra. Acho que o si-lêncio é bem mais amplo, é bem mais rico que a palavra. Na realidade, a palavra tem mais limites do que o silêncio.

Vassallo - Numa entrevista à Clarice Lispector, o poeta Pablo Neruda disse que uma mulher realmente bela é feita de muitas mulheres. Você concorda?

Verissimo – Essa é uma frase de efeito, é um pensamento poético boni-to, mas acho que não reflete a realidade. O que chama a atenção numa mulher, o que faz um homem amar uma mulher, é o que ela mais tem de diferente, mais pessoal, mais singular.

Vassallo - Quando meninos, ado-ramos determinados pratos e acha-mos outros esquisitos. Depois, com o tempo, muitas vezes o que a gen-te achava esquisito passa a ser bem atraente. Da mesma forma, será que a maturidade aprimora nos homens o gosto pelas mulheres?

Verissimo – É um bom paralelo, é um bom paralelo... Só que tem o outro lado dessa história. Também tem coisas que nunca deixamos de gostar. E com o tempo, quando fi-camos mais velhos, não podemos comer mais.

Vassallo - Aliás, no livro O Clube dos Anjos, você fala sobre o que o tempo faz conosco, com o nosso corpo, com as nossas in-tenções. E o que a gente faz com o tempo?

Verissimo – O tempo é o nosso inimigo mais terrível. Não temos nenhum re-curso para c o m b a t ê -lo. Ningkl-j w e h m n b -c u é m enxerga o tempo. Ele age de uma m a n e i r a subversiva.

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Estante 13 SETEMBRO - 2007 SETEMBRO - 2007

A

RT

IGO

Há tanta diferença entre a “atitude” de quem lê e a de quem escreve? Um dos problemas cru-ciais do leitor e do escritor é a falta de tempo, decorrente da pressão do dia-a-dia.

Os escritores que vivem de sua pena não podem escolher uma hora do dia ou da noi-te para trabalhar. Mesmo os que tiveram ou têm a sorte de não depender do trabalho da escrita, revelam-se compulsivos, ávidos para narrar. O que deve ser escrito é inadiável. Deixar para escrever mais tarde, amanhã ou outro dia qualquer só atrapalha o andamento da narrativa. Adiar um trabalho pode ser um alívio para um burocrata, não para um escri-tor. Ainda assim, há momentos de pausa e reflexão, de pesquisa e anotações, e, às ve-zes, de interrupções forçadas, um verdadei-ro castigo para quem escreve. E há também pausas para leitura: a urgência de escrever não é menor nem menos intensa do que a urgência de ler.

“Escrevo porque leio”, afirmam alguns escritores. Mas um leitor poderia dizer: não escrevo nada, mas é como se a lei-tura fosse um modo de escrever, de ima-ginar situações, diálogos e cenas que a memória registra no ato da leitura.

O pior leitor é o passivo, resigna-do, que aceita tudo e lê o livro como uma receita ou bula para o bem viver. Este é o não-leitor. Porque o texto de auto-ajuda é um compêndio de trivia-lidades, palavras que não questionam, não intrigam nem fazem refletir sobre o mundo e sobre nós mesmos.

Um bom leitor reescreve o livro com a imaginação de um escritor. Al-guns vão mais longe. Com os olhos no texto e um lápis na mão, eles fazem anotações nas margens das páginas, sublinham frases, cravam aqui e ali pontos de interrogação. Há os que elaboram fichas com resumos ou esquemas do enredo, árvores genealógicas, comentários

sobre o tempo da narrativa, posição do narrador, personagens, idéias, metáforas, ambiente políti-co, social etc. Esse leitor incansável seria o leitor ideal, mencionado por Umberto Eco no ensaio Seis passeios pelo bosque da ficção.

No Tempo redescoberto – último volume do Em busca do tempo perdido –, o narrador de Proust faz uma reflexão sobre esse tema. Um livro, diz o narrador proustiano, pode ser sábio demais, obscuro demais para um leitor ingênuo. A imagem que Proust evoca é a de uma lente embaçada entre o olhar e as palavras: um ante-paro à leitura. Mas o inverso também acontece quando o leitor astucioso revela capacidade e ta-lento para ler bem. De acordo com o autor fran-cês, “cada leitor é, quando está lendo, o leitor de si próprio”. Ou seja, uma obra literária permite ao leitor discernir tudo aquilo que, sem a leitura dessa obra, ele não teria visto ou percebido em sua própria vida.

No quarto capítulo de seu belo ensaio O úl-timo leitor, o argentino Ricardo Piglia lembra a figura de um leitor incomum: o revolucionário e guerrilheiro Ernesto Guevara. O comandante Che sonhava ser escritor, mas o compromisso político-social o conduziu a outras veredas. No entanto, ele escreveu diários de viagem, textos sobre técnicas e estratégias de guerrilha, relatos inspirados diretamente em sua experiência revo-lucionária em Cuba, na África e na América do Sul. O que não falta em suas incansáveis viagens – inclusive a última, pouco antes de morrer – é o livro, a leitura.

“A marcha, escreve Piglia, supõe leveza, agilidade, rapidez. É preciso desprender-se por completo, estar leve e andar. Mas Guevara man-tém um certo peso. Na Bolívia, já sem forças, carregava livros. Ao ser detido em Ñancahuazu, quando é capturado depois da odisséia que co-nhecemos, uma odisséia que supõe a necessida-de de movimento incessante e de fuga ao cerco, a única coisa que ele conserva (porque perdeu tudo, não tem nem sapatos) é uma pasta de cou-ro, que leva amarrada ao cinturão, sobre a ilhar-ga direita, onde guarda seu diário de campanha

e seus livros. Todos se desfazem daquilo que di-ficulta a marcha e a fuga, mas Guevara continua mantendo seus livros, que pesam e são o oposto da leveza exigida pela marcha.” (pág. 103)

A capa do livro (da autoria de Angelo Ve-nosa) foi inspirada numa fotografia de Ernesto Guevara lendo no alto de uma árvore. É uma imagem notável do guerrilheiro – homem de ação – que faz uma pausa para ler. Armas e le-tras, dois temas medievais explorados no Dom Quixote, parecem reviver nessa imagem em que o leitor, significativa e simbolicamente, situa-se no alto. Longe de ser uma posição de quem se sente elevado, a altura, aqui, é uma posição pre-cária, que denota perigo e instabilidade. O inimi-go pode estar por perto, pode surgir a qualquer hora e matar o guerrilheiro-leitor. Na fotografia é impossível reconhecer com nitidez a figura de Guevara, mas o observador sabe que lá no alto, sentado num galho, alguém olha para um livro. O fundo da fotografia é alaranjado, de uma to-nalidade que evoca o fogo crepuscular: começo ou fim do dia. Ou luz que se esvai, anunciando a noite, o enigma do que vem por aí. Não sabemos se este livro é o último que Guevara leu. O últi-mo leitor é a metáfora de uma atitude diante da leitura: alguém que não pode viver sem livros.

Narrar para não morrer é a mensagem de Sherazade ao rei Shariar (e ao leitor) em cada conto do Livro das mil e uma noites. Ernesto Guevara lê para viver. Ou suportar a vida: fado de um homem que vivia perigosamente à beira da morte. Mas ler é também o destino de tantos outros seres que não se lançam à aventura utó-pica de transformar o mundo por meio da ação revolucionária. Esse leitor apaixonado forma o duplo do escritor. E ambos justificam a litera-tura.

Leitores IncomunsO observador sabe que lá no alto, sentado num galho, alguém olha para um livro

Milton Hatoum

Reprodução

Não Pode FALTAR

NaSUA

Estante

Entrevista com Luis Fernando Verissimo:

Page 5: Jornal Na Estante

Amanda Cardoso

Como estudar uma obra literária para o vestibular? Em que prestar mais atenção? Que tipo de relação fazer? Estas são algumas das dúvi-das mais comuns dos candidatos que julgam que, para se preparar, basta se concentrar no enredo da história ou nos detalhes dos personagens. Entretanto, as universidades pedem algo além desta análise superficial e solicitam dos estudantes compara-ções com outras disciplinas.

“Conhecer alguma coisa do autor e do movimento em que está inse-rido é bom, mas não é tão impor-tante quanto conhecer a construção e a linguagem da obra para saber fazer analogias”, afirma a chefe do departamento de semiótica e teoria da literatura da Faculdade de Le-tras da UFMG (Universidade Fede-ral de Minas Gerais), Marli Fantini Scarpelli. “Para compreender a obra em si, como os vestibulares pedem, é preciso entender a perspectiva a partir da qual o mundo é observado e analisado por narrador e persona-gem.”

Em “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, por exemplo, Mar-li afirma que o personagem principal relata a experiência de quem vive em um campo de batalha permanen-te de jagunços, comparável à atual luta dos sem-terra. “A imagem que se capta é a de um Brasil arcaico e truculento, de um local de constante luta pela oligarquia de terras”, expli-ca.

Outro exemplo dado pela profes-sora é o livro “Memórias Póstumas

de Brás Cubas”, do escritor Macha-do de Assis. “Neste caso, a História do Brasil é retratada por metonímia. O morrer e o reviver do narrador são a imagem da repetição de uma políti-ca brasileira marcada por corrupção, nepotismo e estagnação. Relacionar a obra a disciplinas como História, Psicologia e Geografia é uma ten-dência das instituições, já que por meio da interdisciplinaridade é pos-sível analisar a fundo o conhecimen-to do aluno”.

Além da comparação com situa-ções atuais, é fundamental que o ves-tibulando saiba sobre a época em que o livro foi escrito. Como na maioria dos vestibulares muitas das obras cobradas são de antes da segunda metade do século XX, os estudantes entram em contato com um olhar de mundo diferente daquele com que estão acostuma-dos. A professora titular de litera-tura brasileira da UFBA (Universi-dade Federal da Bahia), Eneida Leal Cunha, afir-ma que captar a visão do autor é ex-temamente importante. “Com ela, os vestibulandos ampliam a experiên-cia de mundo que possuem. Por isso, a literatura é importante para todos os candidatos, sejam eles de Medici-na, Letras ou Matemática. O que se espera é que eles sejam capazes de perceber aquilo como uma experiên-cia diferente da sua e característica de uma época”.

Segundo Eneida, apesar das pro-vas de vestibular não cobrarem da-

dos dos escritores, é bom conhecer o movimento li-terário em que se encaixam para conseguir fazer associações entre obras do período. “Mas não signifi-ca memorizar as características do estilo. Os vestibu-lares não pergun-tam este tipo de coisa. É neces-sário ir mais a fundo, compreender a obra e enten-der seu tempo”, afirma a professora do curso de Jornalismo da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Regina Carvalho. Para compreender a sociedade retratada,

a professora diz que os candidatos devem estar atentos aos cos-tumes e à psicologia das personagens. “É extremamente im-portante prestar aten-ção na linguagem do

livro. As obras antigas têm uma for-ma de tratar a língua muito diferen-te da atual”, diz. Regina alerta que se o candidato interpretar a história e os diálogos literalmente corre o risco de não entender grande parte do enredo. “Antigamente, a língua se escondia atrás de muitas coisas como, por exemplo, a ironia - que, em alguns momentos, era muito ca-muflada”.

Na opinião de Marli, é preciso ainda compreender a construção do

livro. Ou seja, deve-se prestar aten-ção no foco e na estrutura narrativa e não se ater ao nome das persona-gens e ao enredo da obra. “Só assim é possível captar o lugar a partir do qual narrador e personagem lançam o olhar sobre o mundo. Prestando atenção à linguagem e às imagens, ou seja, à descrição do espaço, dos objetos e das atitudes das persona-gens, é possível perceber se o lugar retratado é ideológico, revolucioná-rio, preconceituoso ou retrógrado”. Segundo a professora mineira, toda obra literária contém uma imagem do mundo e é importante verificar a forma como o autor constrói a sua no livro estudado. Por este motivo, as três especialistas defendem que não é suficiente ler apenas os resumos fornecidos pelos cursos pré-vestibu-lar. “Não dá para analisar a lingua-gem e captar a mensagem do livro em um resumo”, sentencia Eneida. Já para Regina, eles podem servir como uma “primeira leitura de con-tato”. Mas, em seguida, o estudante deve ler a obra toda.

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Estante 5SETEMBRO - 2007 SETEMBRO - 2007

Como estudar uma obra literária para o vestibular? Em que

prestar mais atenção?

A literatura do vestibularEspecialistas dão as dicas de como ler corretamente as

obras literárias pedidas nos vestibulares

É necessário ir mais a fundo, compreender a obra e entender seu tempo

Reprodução

Com 3 milhões de livros vendidos em 3 anos, Verissimo é o escritor

mais lido do país

Rodrigo Miranda

Luis Fernando Verissimo nasceu em 26 de setembro 1936, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Filho do grande escritor Érico Veríssimo, iniciou seus estudos no Instituto Porto Alegre, tendo passado por es-colas nos Estados Unidos quando morou lá, em virtude de seu pai ter ido lecionar em uma universidade da Califórnia, por dois anos. Vol-tou a morar nos EUA quando tinha 16 anos, tendo cursado a Roosevelt High School de Washington, onde também estudou música, sendo até hoje inseparável de seu saxofone.

É casado com Lúcia e tem três filhos.

Jornalista, iniciou sua carreira no jornal Zero Hora, em Porto Ale-gre, em fins de 1966, onde começou como copydesk mas trabalhou em diversas seções (“editor de frescu-ras”, redator, editor nacional e inter-nacional). Além disso, sobreviveu um tempo como tradutor, no Rio de Janeiro. A partir de 1969, passou a escrever matéria assinada, quando substituiu a coluna do Jockyman, na Zero Hora. Em 1970 mudou-se para o jornal Folha da Manhã, mas

voltou ao antigo emprego em 1975, e passou a ser publicado no Rio de Janeiro também. O sucesso de sua coluna garantiu o lançamento, na-quele ano, do livro “A Grande Mu-lher Nua”, uma coletânea de seus textos.

Participou também da televisão, criando quadros para o programa “Planeta dos Homens”, na Rede Globo e, mais recentemente, forne-cendo material para a série “Comédias da Vida Privada”, baseada em livro homônimo.

Escritor prolífe-ro, são de sua au-toria, dentre outros, O Popular, A Grande Mulher Nua, Amor Brasileiro, publicados pela José Olympio Editora; As Cobras e Outros Bichos, Pega pra Kapput!, Ed Mort em “Procurando o Silva”, Ed Mort em “Disneyworld Blues”, Ed Mort em “Com a Mão no Mi-lhão”, Ed Mort em “A Conexão Nazista”, Ed Mort em “O Seqües-tro do Zagueiro Central”, Ed Mort e Outras Histórias, O Jardim do Dia-bo, Pai não Entende Nada, Peças Íntimas, O Santinho, Zoeira , Sexo

na Cabeça, O Gigolô das Palavras, O Analista de Bagé, A Mão Do Freud, Orgias, As Aventuras da Fa-mília Brasil, O Analista de Bagé,O Analista de Bagé em Quadrinhos, Outras do Analista de Bagé, A Ve-lhinha de Taubaté, A Mulher do Sil-va, O Marido do Doutor Pompeu, publicados pela L&PM Editores, e A Mesa Voadora, pela Editora Glo-bo e Traçando Paris, pela Artes e

Ofícios.Além disso, tem

textos de ficção e crônicas publicadas nas revistas Playboy, Cláudia, Domingo (do Jornal do Bra-sil), Veja, e nos jor-

nais Zero Hora, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e, a partir de junho de 2.000, no jornal O Globo.

Na opinião de Jaguar “Verissimo é uma fábrica de fazer humor. Mui-to e bom. Meu consolo — compa-rando meu artesanato de chistes e cartuns com sua fábrica — era que, enquanto eu rodo pelaí com minha grande capacidade ociosa pelos ba-res da vida, na busca insaciável do prazer (B.I.P.), o campeão do humor trabalha como um mouro (se é que

os mouros trabalham). Pensava que, com aquela vasta produção, ele só podia levantar os olhos da máqui-na de escrever para pingar colírio, como dizia o Stanislaw Ponte Preta. Boemia, papos furados pela noite a dentro, curtir restaurantes maloca-dos, lazer em suma, nem pensar. De manhã à noite, sempre com a placa “Homens Trabalhando” pendurada no pescoço.”

Extremamente tímido, foi home-nageado por uma escola de samba de sua terra natal no carnaval de 2.000.

Verissimo!

Verissimo!A arte de fazer uma radiografia bem-humorada da alma do brasileiro transformou Luis Fernando

Verissimo num campeão da literatura

Entrevis ta

Quer ver?

Page 6: Jornal Na Estante

kProsa

Verso

COLÔNIA DE FÉRIAS

PAULO SILVEIRA

- Estou além dos meus dias. Todos já morreram. Até meu irmão caçula, muito louro, muito bonito. Foi um sofrimento ver seu

corpo esticado no caixão. Morreu sem ficar doente com oitenta três anos. Três menos do que eu. Depois

da morte do meu marido, a perda do meu irmão foi uma dor muito grande. Uma dor profunda. Uma dor muito pro-

funda, meu Deus. - Toma um remedinho, toma um remedi-nho. Não há dor sem remédio. Eu mesmo re-solvi minha artrose com um remedinho que fez

mal pro fígado mas curou a artrose. - José, cala a boca, José. A dona Arminda está falando da dor da morte, José. Não está falando da artrose. José, você já não escuta mais, José.

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Estante 11SETEMBRO - 2007SETEMBRO - 2007

Já ouvi por aí: pobre quando rouba é ladrão; rico quando rouba é cleptomaníaco. Este último termo, que poucos integrantes das castas inferio-res sabem o que é, ganha no Aurélio a definição: pessoas com impulsos mór-bidos para o furto.

Pobres e ricos, cleptomaníacos e não-cleptomaníacos, se unem num ponto: todos parecem gostam de le-var para casa cinzeirinhos de hotel e talheres de avião. Funcionam como suvenires daquela-viagem-inesque-cível-do-verão-passado.

Atire a primeira pedra quem não tentou surrupiar cinzeirinhos de ho-téis de Miami. Ou de Caldas Novas. Ou aquele cobertorzinho do avião que o trouxe daquele tour por sete-cidades-européias-em-cinco-dias.

Ainda infante, involuntariamen-te, quase mergulhei nesse mundo dos pequenos delitos. Fato ocorrido em Feira de Santana, Bahia, no entanto, me arrancou da trilha do crime. Fasci-nado com aquelas minigarrafinhas de bebidas que enfeitam frigobares de hotéis, enfiei uma no bolso. Na hora de pagar a conta, primo-mais-ve-lho-com-quem-viajava não aceitou pagar dose de uísque que, achava com razão, não havia sido consumida.

Tremia cheio de culpa. Incapaz de me assumir como o autor do furto in-voluntário (afinal pensara que as garra-finhas estavam ali para serem levadas

gratuitamente pelos hóspedes), corri para a rua e atirei o objeto cobiçado a metros de distância.

Voltei a tempo de impedir que pri-mo-mais-velho e recepcionista do ho-tel se engalfinhassem. Carregaria para

sempre, no entanto, esse trauma. Não levo nada de lugar nenhum antes de perguntar se posso.

A maioria dos mortais, parece, não carregou experiência tão traumática assim

para o resto da vida. Efeito paralelo das rigorosas revistas de bagagens nos ae-roportos nacionais, muitos brasileiros que fazem conexões para outros vôos no Aeroporto Internacional de Brasília

estão sendo pegos com a boca na botija.

Vetustas senhoras e vetustos se-nhores vêm sendo flagrados com co-leções de talheres de bordo escondidas entre peças íntimas.

Vexame maior viveu senhora que havia surrupiado baixela quase comple-ta em vôo Teresina-São Paulo, conexão em Brasília.

Utilizando aqueles aparelhos que permitem visão total do conteúdo de bagagens, funcionários do aeroporto flagraram garfos, facas e colheres na sacola de mão da tal passageira. Ques-tionada sobre a origem daquelas, nes-ses tempos de guerra, poderosas armas, a passageira cacarejou: — Devem ter caído dentro da sacola na hora da tur-bulência.

Pobre quando rouba é ladrão; rico

quando rouba é cleptomaníaco

CR

ÔN

ICa

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...A moça está tão interessada no papo de sua colega de mesa que simplesmente não olha para outro lugar. Talvez tenham 17 ou 18 anos, não mais. O que devem estar con-versando? Simplesmente vidrei na garota. Que lindos olhos negros. Esqueci de tomar meu chope. O cigarro é uma centopéia de cinzas delicadamente debruçada ao fundo do cinzeiro. Esqueci que sentara ali apenas para ler o jornal do dia, emprestado pelo Café Express, fazer um tempo... Tento ler os lábios dela mas não consigo. O que es-tariam falando? Qual o motivo de tamanho interesse? Será que estou apaixonado? Não pode ser, conheci a moça faz poucos mi-nutos.

...Terça-feira, 3 da tarde. O Shopping é um lugar grande, crivado de pessoas va-zias. Talvez a menina de olhos e cabelos negros tenha algo a me acrescentar, talvez nem ela, mas vou investir. Consigo final-mente ler seus lábios, ela diz: “Juuura? E daí?”. Acho que ouvi mesmo foi pela sua exaltação. O que a deixaria com tamanha excitação? Passados mais de quarenta minutos, percebo que já não há o mesmo interesse dela pelo papo da colega, como antes. Por vezes já desvia o olhar quando passa alguém interes-sante. Quem lhe chama a atenção? Um moreno alto, tipo Gianechini. Ora, este chamaria a atenção de qualquer uma. Continuo no páreo. Gosto tanto dela

que cuido de quem ela cuida. Quem sabe se eu me posicionar melhor ela também me no-tará? Pago o chope, entrego o jornal e saio.

...Caminho até a banca de revistas no primeiro piso, desviando das pessoas, todas sem rosto: “... poderia me passar a Geográfica deste mês?”. O que ela vai pensar dis-to? Pode encarar de duas maneiras, uma: que eu sou uma pessoa que gosta de viajar. Bom, muito bom. A segunda, e pior: viajar é coisa de velho. Ainda mais com a revista Ge-ográfica, que coisa mais antiga, conhe-cer o Velho Mun-do, não tem coisa mais velha... “Me dá também uma Bizz e uma Trip...”, acho que agora ela vai gostar, se não quiser conhecer o Coliseu, talvez se interesse pelo Zooropa do U2, estampado na capa.

...Subo mais do que depressa peço mais um chope, e vou procurar uma mesa a mais próxima possível. Consigo uma excelente

bem do lado da delas, nas costas de sua cole-ga, de frente pra ela. Se for pra acontecer vai ser agora. Nada mais está conspirando con-tra. Disponho as revistas em cima da mesa de granito, a Geográfica embaixo da Trip, pego a Bizz, semi-aberta na altura do meu peito, de

modo que de vez em quando possa dar uma espiada por cima. Ela per-cebeu pois me deu uma leve olhada, acho que tudo está indo bem, acho que ela gosta do U2, e de mim.

...Vou pedir mais um chope, enganarei minha timidez, quando ela perceber já es-tarei dando garga-lhadas junto com as garotas, a amiga dela vai sentir o clima e nos dei-xará sozinhos e aí não existirão mais

barreiras para nosso infinito amor. Acho que exagerei... não existirão mais barreiras para que a gente possa ficar juntos. Só ficar, como é normal na idade dela.

...Ela levanta e vai até a sorveteria e eu a

acompanho com os olhos. Uva, ao longe me parece que ela gosta de sorvete de uva, temos muito em comum mesmo. Como ela come bonito.

...Agora o meu olhar já causa um certo mal estar nela, a meu juízo talvez até um fris-son. Desvia rapidamente sem fixar nada, só para desviar mesmo.

...Será que eu deveria comer um sorvete de uva para provar o nosso amor?

...Já me sinto mais alegre, motivado. Poderia pedir fogo para elas. Será que elas fumam? Até agora não fumaram. Talvez es-tejam sem cigarros, eu poderia oferecer. Não, acho que elas odeiam fumantes. Pena não estarem tomando chope, eu poderia oferecer-lhes o quarto que ganhei do Café na promo-ção. Daria a desculpa de que não agüento 4 chopes.

...Meu celular toca: “Sim amor... claro...onde ela está? Eu passo lá sim, às 5 e meia, na Angélica né? Ok... ok... certo... beeeijo”. Per-di preciosos 50 segundos que me separaram dela. Talvez para sempre, pois elas se levan-taram da mesa e desceram a escada rolante. Não era para ser mesmo. Talvez tenha se es-pantado com meus fartos cabelos grisalhos.

...Tomo uma água mineral com Halls para tirar um pouco do cheiro da cerveja e saio, vou buscar minha filha que está fazendo um trabalho para a faculdade na casa de uma amiga. O Shopping continua grande e criva-do de pessoas, vazias...

O amor sentado ao ladoCléo de Oliveira

Pequenos delitos e grandes aviõesRogério Menezes

Reprodução

AgendaS etembro

Conferência “Os mundos do Popol Vuh,

cosmogonia maia-quiché”

20.09.2007 - 19h30

A conferência sobre Popol Vuh - longo poema maia que sobreviveu à invasão espanhola - será proferida

por Sergio Medeiros - tradutor da íntegra do

poema. Popol Vuh traz uma versão inusitada da criação

do mundo e serviu como fonte de inspiração para muitos escritores latino-

americanos, de Borges a García Márquez.

Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas - Fliporto 2007

De 27.09.2007 a 30.09.2007

O evento este ano irá explorar o paradoxo existente entre as

dificuldades de ordem econômica e a extrema riqueza das produções

culturais latino-americanas através de palestras,

painéis, mesas-redondas, oficinas, lançamentos de livros, recitais poéticos e apresentações teatrais e musicais. O objetivo dos

organizadores é ultrapassar as barreiras nacionais e seguir em direção dos

países latino-americanos.

ALÇA DO CAIXÃO

JOSÉ NOGUEIRA

Era uma noite de lua cheia. Quando me veio aquela notícia. Daquele que ia partir. Segui rumo ao seu sepulcro. E lá estava como imaginava. Mas antes de fecharem a tampa de seu caixão. Uma mosca veio e repousou sobre sua face. Sugando todos os seus sentimentos. Aquela mosca se transformou num enorme ser. Guardiã de seu corpo. Não deixando que ninguém se aproximasse. E a cada tentativa mostrava-se agitada. Então o único jeito era pegar a alça. E levá-lo mesmo assim. E foi sepultado sem a tampa. Essa mesma mosca me perseguiu por todo o cemitério. E hoje ela representa um grande mistério. Será que o mesmo

estava lá ?

LIVRE

ALEXANDRE SIMAS

Hoje, acordei e percebi qual era o meu problema!

Levantei-me, fui até à cozinha, mas não tinha nenhuma faca de jeito. Saí porta fora, desci as es-cadas e fui até à loja em frente. Comprei detergente da roupa com um brinde de uma faca.

Uma boa faca, que um qualquer inteligente marketista se lembrou

para promover o pó branco.

Voltei para casa. Entrei e fui até à casa de banho. Lavei os den-tes e, não antes de recitar uma oração budista para estancar o

sangue, peguei na faca nova aca-bada de trazer da loja (estava um bocado gordurosa, com sarro) e com a ponta arranquei os olhos.

De facto, nenhum sangue jorrou. Mesmo assim, puxei de quatro pensos rápidos e tapei os bura-cos inaugurados com dois pen-

sos em cada um, assim em forma de xis.

Resolvi o meu problema. Deixei de ter olhos para ver o mundo.

Sou livre!

Agora só falo, digo, penso e vejo aquilo que os outros me disserem

para falar, dizer, pensar e ver.

Page 7: Jornal Na Estante

Uma busca impossível... Um herói... A jornada épica de um menino e

um lobo

Cadorno Teles

Imaginem um livro que, mesmo antes de ser publicado, já ren-deu ao autor um adian-tamento milionário, e olha que era a sua estréia na Literatura. Um livro que o consagrado ator Ian McKellen (o mago Gandalf de O Senhor dos Anéis e o Magneto da tri-logia X-Men, entre outros memoráveis personagens), ao emprestar sua voz para o áudio-livro do best-sel-ler, considerou uma das obras mais cativantes que recentemente já leu. Um li-vro com um êxito tamanho em vendas que o conhecido diretor Ridley Scott (Alien – O Oitavo Passageiro; Bla-de Runner; Gladiador; Han-nibal) comprou seus direitos para levá-lo ao Cinema.

O autor, ou melhor, a au-tora em questão, é a inglesa Michelle Paver, que recebeu um adiantamento de cinco milhões para escrever Irmão Lobo (Rocco, tradução de Do-mingos Demasi, 248 págs.) o primeiro livro da saga Crôni-cas das Trevas Antigas, forma-da por cinco volumes. É sua primeira incursão à literatu-ra fantástica, conseguindo ser aclamada tanto pelo público como pela crítica especializada. O livro já vendeu mais de um milhão de exemplares em todo o mundo, um título de aventu-ra que atrai jovens e adultos em mais de 35 idiomas. Michelle Paver já está sendo considerada a nova JK Rowling.

O seu Irmão Lobo transporta o leitor à Idade da Pedra, há uns 6.000 anos, em uma Europa an-tiga, paleolítica. Uma época que o homem ainda era nômade e vivia em clãs, retirando da natu-reza somente o necessário. Onde a identidade tribal era superior e a magia estava atrelada às forças da criação. Uma história consi-derada fantástica, que a autora ressalta que não é mágica, e sim real, pois poderia ter ocorrido. Paver construiu sua história com sua experiência, vivida em uma floresta para dar autenticidade aos seus personagens, e pesquisa: “viajei para a Lapônia, Noruega, onde dormi sobre pele de rena, provei bagas cavadas debaixo da terra e aprendi como carregar fogo no rolo de casca de bétu-la”.

A históriaTorak é um

jovem de 12 anos, órfão, que vive em uma flo-resta. Seu pai acabou de deixá-lo, assassinado por um estranho urso gigante e maléfico, possuído por um demônio. Antes de morrer, seu pai o faz jurar que encontra-ria A Montanha do Espírito do Mundo, para destruir o Urso que ameaçava destruir todos os clãs das florestas como também todos os animais e poderia se tornar in-vencível até certa data, que seria no aparecimento da Lua de San-gue Vermelho no céu. Sozinho e longe de seu clã, Torak encontra

o seu animal guia, porém nem imaginaria que seria um lobo fi-lhote, órfão como ele. Começa assim a missão desesperada do

garoto, uma aventura que provará o seu valor, inteligência e a capa-cidade de caçador em uma região cheia de adversidades.

Com uma narrativa precisa, Michelle Paver consegue desper-tar a curiosidade de uma época distante, logo após a idade do Gelo, mas bem antes do apare-cimento da agricultura. Em capí-tulos curtos, rápidas descrições, belos diálogos, dando até voz ao Lobo, que ao seu modo, narra tre-chos da aventura, Paver faz desta história um épico com desafios ancestrais e grandes perigos, uma história sobre honra e respeito, que diverte, ensina e delicia.

Curiosidades Recentemente o diretor Rid-

ley Scoot com-prou os direitos de filmagem da autora por quatro milhões de dóla-res. Segundo ele, “Irmão Lobo é um livro encan-

tador. Michele criou um mundo que não vimos em nenhum filme. Estamos encantados ao trabalhar com ela neste projeto”. A produ-ção está nas mãos de Erin Upson e provavelmente as primeiras ce-nas serão gravadas no próximo ano.

Paver construiu sua história com sua experiência, vivida em uma floresta para dar autenti-cidade aos seus personagens, e pesquisa: “viajei para a Lapônia, Noruega, onde dormi sobre pele de rena, provei bagas cavadas debaixo da terra e aprendi como carregar fogo no rolo de casca de bétula”.

Michelle Paver nasceu no Ma-lawi, onde seu pai, sul-africano,

dirigia um pequeno jornal e sua mãe, belga, escrevia uma coluna de fofocas semônias, estabe-lecendo-se em

Wimbledon. Michelle sempre gostou e quis es-crever, mas como acre-ditava que esta profissão não poderia sustentá-la, escolheu o Direito como carreira oficial. Em 1996, a morte de seu pai e a insatisfa-ção profissional fize-ram Michell

e buscar algo que a fizesse mais feliz. Ela negociou um ano de licença no traba-lho e partiu para uma longa viagem de pesquisa pelas Américas, África do Sul e Europa, que resultou no rascunho de seu primeiro livro.

IRMÃO LOBO: IRMÃO LOBO: A jornada de um menino e um lobo

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O livro que já é sucesso de vendas

Divulgação

SETEMBRO - 2007 SETEMBRO - 2007

Serviço

Entre Duas Mortes - instantâneos literáriosAlberti, Frederico (org). Belo Horizonte: independente, 2006

Publicado em dezembro de 2006, a obra tem edição bilíngue português/espanhol. São 8 autores, em sua maioria jornalistas e acadêmicos. Os textos - narrativas de até 150 palavras - giram em torno do tema Morte

Lançamentos do mês

Mínimos, múltiplos, comunsJoão Gilberto Noll. São Paulo: Francis, 2003

338 romances de até 130 palavras divididos em “cinco grandes conjuntos que pressupõem uma cronologia da criação: gênese, os elementos, as

criaturas, o mundo, o retorno”. Prêmio ABL de ficção - 2004.

Os cem menores contos brasileiros do séculoMarcelino Freire (org). São Paulo: eraOdito, 2004

Fazendo uma paródia com o título do livro Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século, organizado por Ítalo Moriconi, Marcelino

Freire, que vem ganhando presença no cenário da literatura nacional e contemporânea, nos traz uma novidade. Neste livro Marcelino convidou cem

autores brasileiros contemporâneos, novos e consagrados, para escreverem uma história inédita de até 50 letras (sem contar o título e a pontuação). O

trabalho foi árduo, mas o resultado surpreendeu. No século XXI, das mensagens abreviadas da Internet, das senhas e dos códigos, a literatura nos mostra que pode

se renovar e, acompanhando a velocidade dos tempos, em poucas letras nos revelar uma história

Page 8: Jornal Na Estante

Anita C. De Mello

Uma lista que reúna os livros mais emocionantes escritos por aqueles que viveram o horror da Segunda Guerra Mundial e depois o relataram começa, obrigatoriamente, com a obra de uma ga-rota judia que não sobreviveu nem sequer pensou que um dia suas anotações seriam publicadas. O diário de Anne Frank (Re-cord) – durante muito tempo editado por aqui com o título O diário de uma jovem – é, talvez, o mais conhecido dos testemu-nhos da barbárie nazista.

Anne Frank (1929-1945), seus pais e a irmã, Margot, e mais quatro amigos da família, num total de oito pessoas, per-maneceram quase dois anos escondidos no anexo secreto de um edifício comer-cial em Amsterdã. A família Frank, de origem alemã, deixara o país natal logo depois que Hitler assumiu o poder e a perseguição aos judeus se intensificou, no final da década de 30. Na Holanda, os Frank encontraram tranqüilidade, mas só por algum tempo. Na tentativa de evitar a deportação iminente, optaram pelo escon-derijo, e não pela fuga. Após uma denún-cia anônima, em agosto de 1944, foram presos e levados para Auschwitz. Anne e Margot tiveram de seguir pouco depois para Bergen-Belsen, onde morreriam de tifo duas semanas antes de o campo ser libertado por soldados britânicos.

Seu diário foi encontrado pelo pai, Otto Frank, único sobrevivente dos oito habitantes do anexo secreto, assim que retornou de Auschwitz, em 1945. Em di-

versos depoimentos, o pai contou do seu espanto ao descobrir a face da filha que desconhecia: nas páginas manuscritas, havia observações sensíveis sobre o dia-a-dia marcado por angústia e também por esperança. O diário, um presente de aniversário de 13 anos, pouco antes de se mudarem para o esconderijo, havia se transformado em amigo e confidente da garota, que o chamava de “Kitty”. Por ini-ciativa de Otto Frank, os papéis da filha chegaram pouco depois às mãos dos his-toriadores holandeses Jan Romein e Anie Romein-Verschoor. Logo o diário seria publicado, em 1947, e mereceria edições na Alemanha, na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Tornou-se ainda mais popular quando, nos anos 50, foi levado aos palcos e depois às telas do cinema em uma produção americana.

Anne Frank é a vítima mais conhecida do nazismo: seu diário está traduzido hoje em mais de 70 idiomas. O anexo secreto é hoje a sede de um museu permanente dedicado a diversas atividades. Obras que se inspiraram em sua história ou que, de algum modo, a tangenciam, continuam a ser publicadas: recentemente, saíram edi-ções brasileiras de O menino que amava Anne Frank, de Ellen Feldman (Record), romance que tem como personagem Pe-ter van Pels, garoto que esteve no mesmo cativeiro; e de A família Frank que sobre-viveu, de Gordon F. Sander (Jorge Zahar), jornalista que reconstitui a trajetória de outra parte da família.

Se Anne Frank é a autora do relato mais conhecido, o judeu italiano Primo

Levi (1919-1987) é talvez o que alcançou maior reconhecimento por parte da crítica devido à qualidade de sua obra, princi-palmente de dois livros que se tornaram clássicos: É isto um homem? (Rocco) e A trégua (esgotado), ambos baseados na ex-periência como prisioneiro em Auschwitz, para onde ele, então um jovem químico, havia sido levado em 1944 após partici-par de um grupo de resistência ao fascis-mo na Itália de Mussolini. Levi esteve no chamado campo da morte por 11 meses e sobreviveu por alguns fatores, entre os quais o fato de compreender um pouco do idioma alemão e por ter sido considerado útil trabalhando no laboratório. É isto um homem? foi publica-do logo após a guerra, mas Levi se tornaria conhecido somente na década de 60.

As circunstâncias de sua morte, após cair da escada de sua casa, fazem alguns biógrafos acreditarem na hipótese de sui-cídio. “Primo Levi morreu em Auschwitz 40 anos depois”, disse Elie Wiesel (1928-), judeu romeno naturalizado americano, também sobrevivente dos campos de con-centração, vencedor do Nobel da Paz em 1986 pelo conjunto de sua obra, que in-clui outro clássico da chamada literatura de testemunho, A noite (Ediouro). A pri-meira versão continha 900 páginas; a que prevaleceu tem pouco mais de 100, e em seu trecho mais dramático Wiesel relata a morte do pai, também prisioneiro.

Como Levi e Wiesel, outros sobrevi-ventes se dedicaram ao ofício de escrever e, invariavelmente, registraram suas me-mórias da guerra, algumas mais integrais, outras recriadas por meio da ficção. Jorge Semprun (1923-), autor espanhol, mem-bro da Resistência francesa, foi deporta-do de Paris em 1943 para Buchenwald, campo nazista na Alemanha, e sobre esse período escreveu diversos livros, como a ficção A longa viagem (esgotado) e as memórias A escrita ou a vida (Companhia das Letras), apenas para citar dois livros de uma obra vasta atravessada pelo tema

do Holocausto. Relatos de dor, an-

gústia, esperança e solidariedade durante a Segunda Guerra po-dem ser encontrados em obras de diversos autores, em sua maioria de origem judaica, que

descrevem não somente a sobrevivência nos campos de concentração e de exter-mínio, como também a perseguição que enfrentaram e a dificuldade da vida nos guetos de cidades dominadas pelo nazis-mo em toda a Europa. Para citar algumas obras, de ficção e de memórias, que me-recem destaque e tiveram tradução no Brasil: A viagem (Imago), romance da polonesa Ida Fink; Os diários de Victor Klemperer: testemunho clandestino de um judeu na Alemanha nazista (Compa-nhia das Letras), do alemão Victor Klem-perer; Uma vida interrompida: os diários de Etty Hillesum – 1941 a 1943 (Record),

da holandesa Etty Hillesum; Inverno na manhã – Uma jovem no gueto de Varsó-via (Zahar), da polonesa Janina Bauman; Paisagens da memória: autobiografia de uma sobrevivente do Holocausto (Edito-ra 34), da austríaca Ruth Klüger; Diário do gueto (Perspectiva), do polonês Janusz Korczak.

Como classificar, entre tantos testemu-nhos, obras de ficção como a do húngaro Imre Kertész (1929-), Nobel de Literatura de 2002? Judeu que também esteve em Auschwitz, Kertész publicou livros como Sem destino (Planeta), cuja história de um rapaz de 15 anos que passa por Auschwitz, Buchenwald e Zeitz lembra bastante a sua, mas ele costuma desvincular ficção e biografia. Na ponta oposta, há casos como o da ucraniana Irene Nemirovsky (1903-1942), que já era escritora quando foi capturada num vilarejo francês e levada para Auschwitz. Seis décadas depois de sua morte, a família descobriu que o peque-no caderno escrito com letras miúdas por ela abandonado era Suíte francesa (Companhia das Letras), romance que se tornou sucesso editorial na Europa nos últimos anos. Trata-se de uma escritora cuja obra sobressai pe-las circunstâncias em que escre-veu a história, a França recém-ocupada.

Algumas histórias de sobre-viventes se tornaram especial-mente conhecidas depois que

seus livros foram adaptados para o cine-ma. Como a do judeu polonês Wladyslaw Szpilman (1911-2000), pianista clássi-co de uma rádio de Varsóvia quando seu país é invadido pelas tropas nazistas, em 1939. Quando sua família é deportada, ele consegue escapar por acaso. Esconde-se no gueto de Varsóvia e, quando este é desocupado, transforma em esconderijo edifícios abandonados da cidade duran-te mais de dois anos. É salvo, ao final de uma combinação de sorte e astúcia, por um oficial nazista que também gostava de música clássica.

Spzilman escreveu suas memórias pouco depois do fim da guerra. O livro foi publicado em 1946 com o título.

8 NaEstante 9SETEMBRO - 2007

Sobreviver à GuerraUma seleção de livros sobre dor, esperança, angústia e solidariedade escritos por quem viveu o conflito nas cidades bombardeadas ou nos

campos de concentração e de extermínio nazistas

Anne Frank Founds

Semprun, escritor espanhol que escreveu sobre sua experiência

em campo de concentração.

Ida Fink, polonesa que revive a guerra no romance A viagem

JOSEP MARIA RUÉ/

JOSEP MARIA RUÉ/

Anne Frank, em foto célebre de 1942

Os livros mais emocionantes escritos

por aqueles que viveram o horror da

Segunda Guerra