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VERBO jurídico ® IVO MIGUEL BARROSO Republicações de leis e de Códigos com as grafias do “Acordo Ortográficode 1990, sem procedimento legislativo: inconstitucionalidades desta prática

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VERBO jurídico ®

IVO MIGUEL BARROSO

Republicações de leis e de Códigos com as grafias do “Acordo Ortográfico” de 1990, sem procedimento legislativo: inconstitucionalidades desta prática

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VERBO jurídico Republicações de leis e de Códigos com as grafias do “Acordo Ortográfico” de 1990 : 2

Republicações de leis e de Códigos com as grafias do “Acordo Ortográfico” de 1990, sem procedimento legislativo: inconstitucionalidades desta prática

IVO MIGUEL BARROSO

Mestre em Direito Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Ao Dr. Miguel Galvão Teles,

In Memoriam SUMÁRIO:

Introdução 1. Decretos para valer como leis da Assembleia da República 2. Decretos legislativos regionais 3. Decretos para valer como decretos-leis, aprovados pelo Governo 3.1. A revogação parcial das normas dos números 2 e 1 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 por parte do Anexo II da Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011 4. As inconstitucionalidades formais e o desvalor jurídico da inexistência, a elas associado 4.1. O regime da inexistência jurídica 5. Sobre a susceptibilidade de a republicação sanar as inconstitucionalidades formais perpetradas 6. Outras hipotéticas vias de sanação das inconstitucionalidades formais 7. A fase da promulgação 7.1. O Presidente da República não deve promulgar actos legislativos feridos de inexistência jurídica (ainda que parcial) 7.2. A não sanação da inconstitucionalidade através da promulgação 8. A fase da referenda ministerial 9. A fase da publicação 10. A solução 10.1. A inaplicabilidade directa do instituto da rectificação 10.2. A solução preferível: a republicação, por parte da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, a título de “rectificação” 11. A fiscalização por parte da “sociedade de intérpretes da Constituição”, até ser emitida uma eventual republicação conforme com a Constituição 11.1. Fiscalização jurisdicional da constitucionalidade de leis parcialmente inexistentes 11.2. Administração Pública 11.3. Os particulares Em conclusão Nota final: a “Legislação consolidada” da Imprensa Nacional – Casa da Moeda

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Republicações de leis e de Códigos com as grafias do “Acordo

Ortográfico” de 1990, sem procedimento legislativo: inconstitucionalidades desta prática

Ivo Miguel Barroso *

INTRODUÇÃO

Neste artigo, analisaremos a conformidade constitucional de republicações de Códigos ou de leis relevantes com as grafias resultantes da “aplicação” do “Acordo Ortográfico” de 1990.

Têm sido vários os Códigos ou leis relevantes que têm sido republicadas desse modo, utilizando um conversor ortográfico ou um corrector, na sequência de uma alteração – ainda que mínima – ao articulado. Veja-se, por exemplo, por ordem temporal:

a) O “Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social” (aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro; com alterações posteriores, designadamente pelas Leis números 20/2012, de 14 de maio, e 66-B/2012, de 31 de dezembro)1;

b) O “Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade” (aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro; tendo sido alterado por lei parlamentar em 2010 e pela Lei n.º 21/2013, de 21 de fevereiro2. Note-se que até a grafia do artigo 1.º da Lei n.º 115/2009, que procedeu à aprovação deste Código, foi objecto de “acordização”3.

c) O capítulo IV do título II do livro II do Código Civil, em virtude da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto segunda alteração ao “Novo Regime do Arrendamento Urbano”4.

Tais preceitos são uma fraude à ortografia originária das disposições do Código Civil de 1966;

d) A segunda e terceira alterações ao “Novo Regime do Arrendamento Urbano” (Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro), por parte da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, e, posteriormente,

* Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. ABREVIATURAS: AO90 = “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”, assinado em 1990, ratificado pelo Estado

Português e publicado em 1991; AR = Assembleia da República; CRP = Constituição da República Portuguesa de 1976, com incorporação das alterações das sete leis de revisão constitucional; cap. = capítulo; diss. = dissertação; ed. = edição; FDUL = Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; n.º = número; ns. = números; org. = organização; par. = parágrafo; PR = Presidente da República; RCM = Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25 de Janeiro; s.d. = sem data; s.l. = sem local; STA = Supremo Tribunal Administrativo; trad. = tradução; TC = Tribunal Constitucional.

Nota sobre a ortografia grafada neste artigo: A ortografia dos meses e de outras palavras é mantida tal como está em “Diário da República”, portanto, com minúsculas (em aplicação da Base XIX, n.º 1, al. b), do Anexo I do AO90; até para que seja mais fácil verificar o que está “acordizado”. O método de citação das obras é geralmente abreviado.

1 Cfr. Legislação Segurança Social, NUNO MARQUES AGOSTINHO / MARIA BARBOSA, 1.ª ed., Coimbra Editora, 2013.

2 Cfr. Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade. Código Anotado. Regulamento Geral e Legislação Complementar, MARIA JOÃO ANTUNES / INÊS HORTA PINTO, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2013.

3 Cfr. Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade. Código Anotado. Regulamento Geral e Legislação Complementar, MARIA JOÃO ANTUNES / INÊS HORTA PINTO, 2.ª ed., pg. 127.

4 In Diário da República, 1.ª série — N.º 157 — 14 de agosto de 2012, pgs. 4427-4438 (artigos 1022.º–1113.º do Código Civil).

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por parte da Lei n.º 79/2014, de 19 de dezembro; que abriram caminho a duas republicações parciais do diploma de 2006, totalmente “acordizada5;

Foi aditado um artigo à Lei n.º 74/98 (“Lei-formulário”) — o artigo 11.º-A (sobre “Leis consolidantes”) —, através da Lei n.º 43/2014, de 11 de julho. A republicação foi feita com o conversor Lince, alterando a ortografia das demais disposições, sem qualquer aprovação por parte da Assembleia da República6;

d) A “Lei Tutelar Educativa”, cuja versão originária fora aprovada em anexo à Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro, foi revista e aprovada pela Lei n.º 4/2015, de 15 de janeiro, que procedeu à sua republicação com a “aplicação” do AO907.

Muitos outros exemplos poderiam ser dados.

Poucos têm sido os casos de alterações de Códigos, sem que tenha havido republicação (o Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, tendo já sofrido 7 alterações, a última das quais através da Lei n.º 27/2014, de 8 de maio, é um deles)

Do presente estudo, são excluídos os casos de aprovação de actos legislativos de raiz, após 1 de Janeiro de 20128, data em que ocorreu a imposição do AO90 no “Diário da República”9.

5 Em 2012, foram republicados os capítulo II do título I e os títulos II e III (alterações de vulto; a par de uma

ressistematização da Lei. Em 2014, foram republicados o capítulo II do título I e os títulos II e III do capítulo II do título I e os títulos II e III da

Lei n.º 6/2006, por parte da Lei n.º 79/2014, de 19 de dezembro (in Diário da República, 1.ª série — N.º 245 — 19 de dezembro de 2014, pgs. 6152-6166, https://dre.pt/application/file/65920535).

6 In Diário da República, 1.ª série — N.º 132 — 11 de julho de 2014, pgs. 3805-3810. O artigo 2.º da Lei n.º 43/2014, tal como todas as restantes leis, não faz qualquer referência à republicação dever ser feita

com o AO90: “É republicada em anexo, que faz parte integrante da presente lei, a Lei n.º 74/98, de 11 de novembro, com as alterações

introduzidas pelas Leis n.os 2/2005, de 24 de janeiro, 26/2006, de 30 de junho, 42/2007, de 24 de agosto, e pela presente lei.” 7 Cfr. Diário da República, 1.ª série — N.º 10 — 15 de janeiro de 2015, pgs. 396-404. A republicação, determinada pelo

artigo 5.º da Lei n.º 4/2015, consta das pgs. 404-436 (cfr. https://dre.pt/application/conteudo/66195397). 8 Isto, pelo menos, teoricamente. Há alguns casos em que tal não sucedeu nos primeiros meses, designadamente com duas

alterações ao Código do Trabalho 9 Por exemplo: i) O Novo “Código de Processo Civil”, aprovado, de raiz, pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho (cfr. o artigo 1.º, que procedeu

à aprovação da Lei, e o 4.º, alínea a), da Lei n.º 41/2013, que procedeu à revogação global do Decreto-Lei n.º 44.129, de 28 de Dezembro de 1961, que procedeu à aprovação do Código de Processo Civil que vigorou até 2013, embora com várias alterações); (v. http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1959&tabela=leis).

Trata-se do primeiro grande Código publicado integralmente desde o surgimento da novi-língua “acordista”; ii) A “Lei-Quadro das Entidades Reguladoras das entidades administrativas independentes com funções de regulação com

funções de regulação da atividade económica dos setores privado, público e cooperativo” (aprovada pela Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto) (reproduzida em http://www.legislacao.org/primeira-serie/lei-n-o-67-2013-entidades-entidade-reguladoras-reguladora-304501);

iii) A “Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas” (Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho); iv) O “Regime do Segredo de Estado”, aprovado pela Lei Orgânica n.º 2/2014, de 6 de agosto (entretanto alterado pela Lei

Orgânica n.º 1/2015, de 08 de janeiro), que revogou a Lei n.º 6/94, de 7 de Abril; entre muitos outros; v) O novo “Código do Procedimento Administrativo” (CPA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro (v.

artigos 1.º, 2.º, e 7.º; e o Preâmbulo, n.º 2, 2.º e 3.º parágrafos: “o projeto final revelou uma profunda transformação do Código do Procedimento Administrativo em vigor.

«Assim, o Governo, constatando tal transformação, e apesar de reconhecer que o projeto não efetuou um corte radical com o Código do Procedimento Administrativo aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de novembro, entendeu que as soluções propostas para institutos tão importantes no direito administrativo, como sejam o regulamento e o ato administrativo, eram de tal forma inovatórias que se estava perante um novo Código.”).

Porém, o novo CPA de 2015 não deixa de estar ferido de inconstitucionalidade orgânica, por incompetência, devido a falta de norma habilitadora para que o Governo publique ou republique os decretos-leis (incluindo os decretos-leis autorizados) com as grafias do AO90 (adiante, voltaremos a este ponto).

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Por vezes, o diploma de aprovação do Código sofre, no todo ou em parte, alterações de ortografia10.

Certas Colectâneas de legislação têm mesmo procedido à revisão da ortografia de actos legislativos ou regulamentares, sem que respeitem o “Diário da República”11 — ao arrepio da “voluntas” do próprio Legislador…

A desconformidade dos textos publicados com a sua aprovação não é um problema novo.

Com efeito, por razões de instabilidade política, tal sucedeu amiúde durante a I República12.

As considerações expendidas de seguida valem, para as leis da Assembleia da República e, em particular, para os decretos-leis do Governo. As considerações são também aplicáveis aos decretos legislativos regionais, aprovados pelas Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas.

Adoptaremos neste escrito uma posição moderada, tanto quanto possível, emitindo juízos técnicos consensualizados, e não mais discutíveis ou opinativos.

Assim, abstrairemos, na maior parte deste artigo, da nossa opinião sobre as inconstitucionalidades materiais do Tratado do “Acordo Ortográfico” de 1990 e de várias das suas normas13; e das ilegalidades “sui generis”, por violação das próprias Bases do AO90 (alterações estas que conduziriam à inconstitucionalidade material das alterações introduzidas), por parte do conversor Lince e do “Vocabulário Ortográfico do Português”, adoptados pelo n.º 6 da RCM n.º 8/201114.

Na base elementar de um Estado de Direito, está o “Estado de legalidade”: os órgãos de soberania têm de cumprir as próprias leis a que se vincularam.

Este é o conteúdo mínimo do Estado de Direito, que será analisado no presente artigo; em particular, com base na Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011.

10 Por exemplo, os artigos 5.º e 6.º da pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro, que aprovou o “Código dos Regimes

Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social”, foram objecto de alteração de ortografia. Nalguns casos, a alteração resulta de uma alteração do preceito; altura em que todo o preceito é “acordizado” (caso do

artigo 5.º referido). Noutros casos, o preceito é simplesmente “acordizado”, sem que haja aprovação pelo órgão parlamentar ou governamental

(é o caso do artigo 6.º, n.º 1, do Código referido). 11 Por exemplo, o “Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais”, aprovado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º

51/2011, de 11 de Abril, com a ortografia tradicional, sem alterações posteriores; mas, ainda assim, “acordizado” (cfr. Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade. Código Anotado. Regulamento Geral e Legislação Complementar, MARIA JOÃO ANTUNES / INÊS HORTA PINTO, 2.ª ed., pgs. 133 ss.

12 No final da I República, FÉZÁS VITAL confirma-o plenamente, ao mencionar: “É mais vulgar do que se poderia imaginar-se a publicação no ‘Diário do Govêrno’ de textos legislativos que não foram votados pelo Congresso ou o foram com diversa redacção.” (FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 113).

13 V. IVO MIGUEL BARROSO / FRANCISCO RODRIGUES ROCHA, Guia jurídico contra o “Acordo Ortográfico” de 1990. Fundamentação jurídica relativa às inconstitucionalidades do “Acordo Ortográfico” de 1990; da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25 de Janeiro; do conversor “Lince” e do “Vocabulário Ortográfico do Português”; e diplomas neles baseados, 19 de Novembro de 2014, disponível para descarga a partir de http://www.publico.pt/ficheiros/detalhe/requerimento-ao-ministerio-publico-contra-o-acordo-ortografico-20141120-233159, Cap. XII, pgs. 99-106.

14 Para mais desenvolvimentos, v. IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades orgânica e formal da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, que mandou aplicar o ‘Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa’ à Administração Pública e a todas as publicações no “Diário da República”, a partir de 1 de Janeiro de 2012, bem como ao sistema educativo (público, particular e cooperativo), a partir de Setembro de 2011. Inconstitucionalidades e ilegalidades ‘sui generis’ do conversor ‘Lince’ e do ‘Vocabulário Ortográfico do Português’, in O Direito, 2013, III, II Parte, pgs. 477-497.

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1. Decretos para valer como leis da Assembleia da República

Quanto à Assembleia da República, apresenta-se uma “differentia specifica”, uma vez que existe uma auto-vinculação interna para “aplicar” o AO90: o artigo 1.º Deliberação parlamentar n.º 3-PL/2010, de 15 de Dezembro (“Implementação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa na Assembleia da República”), impõe, como regra, a “aplicação” do AO90 a todos os actos emitidos pela AR desde o início do ano de 2012.

Poderá discutir-se se não deveria ter havido uma lei em sentido formal a determinar isso.

Em todo o caso, pelo menos “de facto”, a Deliberação n.º 3-PL/2010 apresenta força afim da força de lei.

Não obstante esta auto-habilitação para “aplicar” o AO90 no processo legislativo parlamentar15, a nosso ver, há inconstitucionalidade do decreto que contenha a republicação com o AO90:

a) Por o diploma “não indicar, taxativa e expressamente, as alterações a introduzir16. A nosso ver, o desvalor associado é o da inexistência da própria lei17.

b) Por não ter respeitado o processo legislativo parlamentar, constitucionalmente previsto, na sua formação, no que incorre em inconstitucionalidade formal, por ausência total de procedimento;

Abstraindo das inconstitucionalidades materiais do AO90, não houve aprovação, por parte de nenhum dos órgãos legiferantes, de alterações aos preceitos, à respectiva ortografia.

1.1. Resta saber se o texto do decreto poderá ser alterado após a votação final global, por parte da comissão parlamentar competente em razão da matéria (ou aquela que o Presidente da República indicar, havendo mais do que uma comissão) procede à redacção final dos actos aprovados.

“A comissão parlamentar não pode alterar o pensamento legislativo” (artigo 156.º, n.º 2, do Regimento da AR de 2007), devendo apenas aperfeiçoar o estilo e a sistematização do texto18.

Admitindo – não concedendo - que a alteração da ortografia se trataria do “estilo (…) do texto”, em todo o caso, teria de haver uma deliberação expressa por parte da comissão parlamentar19, o que não tem sucedido, ao que se sabe.

15 Sobre o processo legislativo parlamentar, entre tantos, cfr. JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., ns. 69 ss., pgs. 258

ss.; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra Editora, 2003, pgs. 869-882; CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional, Tomo I, As Funções do Estado e o Poder Legislativo no Ordenamento Português, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2012, Parte III, 4, ns. 534 ss., pgs. 438-471.

16 Cfr., “mutatis mutandis”, em relação aos decretos de revisão constitucional, GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição..., 4.ª ed., II, anot. ao artigo 286.º, VI, pg. 1004.

As boas práticas da AR indicam que, “Para obviar a republicações incorrectas, entendemos que é no momento da discussão na especialidade das iniciativas que se deve fazer um levantamento exaustivo da situação jurídica efectiva e actual dos diplomas que se visam alterar.” (“Guia prático de regras a observar na redacção de actos normativos da Assembleia da República”, http://www.parlamento.pt/DossiersTematicos/Documents/Reforma_Parlamento/guialegisticaformal.pdf, consultado em 26 de Janeiro de 2015, 1.5, Republicações, 3.º parágrafo, pg. 16).

17 Cfr., “mutatis mutandis”, GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição..., 4.ª ed., II, anot. ao artigo 286.º, VI, pg. 1004.

18 Cfr. artigo 156.º, n.º 2, do Regimento da AR de 2007; CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 565, pg. 458.

19 A redacção final tem lugar no prazo que a Assembleia ou o seu Presidente estabeleçam ou, na sua falta, no prazo de 5 dias (artigo 156.º, n.º 3, do Regimento da AR de 2007).

Tal deliberação tem de ser aprovada sem possa haver registar votos contra, embora pareça que podem existir abstenções (Cfr. artigo 156.º, n.º 2, “in fine”, do Regimento da AR de 2007). Ou seja, não é necessária a unanimidade, mas a ausência de votos contra.

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1.2. Ao exposto poderia objectar-se que o significado se manteria incólume; apenas o significante seria alterado. O que vincularia seriam as normas, o conteúdo; mas não a ortografia, pois esta seria neutra em relação ao conteúdo extraído das disposições do texto. As alterações de redacção não se afigurariam relevantes, resultando de uma mera alteração de estilo, sem aptidão para consubstanciar uma modificação do conteúdo das normas que seriam contidas nos preceitos20.

Por exemplo, seria indiferente grafar, numa disposição não alterada, “coação”, em vez de “coacção” (o que, aliás, origina uma tripla homografia: “coacção”, “co-acção” e, relacionada com o verbo “coar”, “coação”).

Assim, a alteração da ortografia seria lícita.

Com o devido respeito, discordamos frontalmente.

Tal como sucede em relação à revisão da Constituição-enunciado21, as “alterações” (artigo do Regimento da AR) abrangem quaisquer espécies de modificações: substituições, aditamentos, eliminações, quer abrangendo vários números, um número ou apenas um fragmento, ou apenas uma correcção ortográfica (eliminação ou substituição de uma letra, de um sinal de pontuação, etc.).

Não interessa, pois, averiguar se as alterações são de muita ou pouca monta, se abrangem muitos ou poucos vocábulos, muitas ou poucas disposições.

Conforme escrevemos22, não é só o significado que vincula – também o significante vincula.

Com efeito, “[e]ntre o significante e o significado e, portanto, também entre o significante e a realidade, - porque a relação entre os dois primeiros e os dois segundos termos (…) -, a relação significativa é (….) uma relação que tem como fundamento uma imposição deliberada e finalística, uma convenção”23.

Na linguagem, representamos e projectamos a “realidade”.

“a língua não são apenas os sons, são também as letras que os representam. Dizendo de outro modo: as palavras têm um rosto. Suprimir-lhes uma letra, como impõe o novo acordo, é desfigurar-lhes a fisionomia, alterar-lhes a sua estética” (ALBANO MARTINS)24.

A pré-compreensão errada, segundo a qual a ortografia seria “artificial”25 (tal como ‘a maquilhagem para as mulheres’26), um “apêndice” da língua, que pudesse ser alterado pelo Estado, a seu bel-prazer, é errada:

20 Cfr. IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades…, in O Direito, 2013, I/II, 4.1.2, pg. 148. 21 IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades…, in O Direito, 2013, I/II, 4.1.2, pgs. 148 ss. 22 IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades…, in O Direito, 2013, I/II, 4.1.2, III, pg. 152. 23 JOSÉ G. HERCULANO DE CARVALHO, Teoria da linguagem, Tomo I, Atlântica, Coimbra, 1967, p. 72, apud

FRANCISCO MIGUEL VALADA, Demanda, deriva, desastre: os três dês do Acordo Ortográfico, Textiverso, Alcochete, 2009, pg. 15 (nota 4).

24 Poeta ALBANO MARTINS, Resposta ao inquérito promovido pelo PEN Clube Português sobre o Acordo Ortográfico, Maio de 2012, inédito (sublinhado nosso).

25 Cfr. ANTÓNIO EMILIANO, Da presuntiva artificialidade da ortografia, 2 de Março de 2012, http://www.facebook.com/notes/ant%C3%B3nio-emiliano/nota-xliii-da-presuntiva-artificialidade-da-ortografia/10150845540983378.

26 Cfr. ANTÓNIO EMILIANO, Sobre o primado da escrita, in IDEM, Apologia do Desacordo Ortográfico, Babel, Lisboa, 2010, pg. 101.

Mais adequada seria a metáfora, segundo a qual a ortografia seria como a pele do corpo humano (a metáfora é de MARIA ALZIRA SEIXO, no debate sobre o Acordo Ortográfico, organizado pelo PEN Clube Português, no Goethe-Institut, em 9 de Janeiro de 2012 (disponível em

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“falar de uma mudança ortográfica qualquer como uma simples alteração cosmética numa roupagem superficial de um sistema linguístico padronizado (a norma culta) de uma nação multissecular dotada de um património literário e textual imenso é simplesmente não se saber do que se está a falar”27.

Pensar numa reforma ortográfica como uma coisa de somenos importância, que afectaria ao de leve as pessoas, ou à qual as pessoas se adaptariam facilmente, é ignorar o estado da ciência28.

Tal como as representações linguísticas, as representações grafémicas (ortográficas) estão gravadas a “ferro e fogo” na mente dos” escreventes. “Mudá-las não acarreta simples mudança de hábitos ou de rotinas superficiais. Significa desaprender o que foi penosamente apreendido, assimilado e interiorizado com anos de esforço; significa introduzir numa comunidade densamente alfabetizada e textualizada uma interrupção cultural”29.

“[A] língua escrita não é, de facto, apenas um sistema simbólico de 2.ª ordem (…)”30.

Por outro lado, não é em absoluto verdadeiro que uma forma ortográfica seja indiferente para a revelação do respectivo conteúdo de uma palavra. Sempre haverá casos, embora eventualmente marginais, em que a mudança de ortografia faria com que a palavra ou mesmo toda a frase se torne diversa ou, em alternativa, ininteligível ou obscura.

Por exemplo, tirar o “p” a “óptico” (relativo ao olho) (ou “óptica”) faz confundir com “ótico” (que é relativo ao ouvido).

Portanto, fica demonstrado que nem sempre a mudança de ortografia é indiferente para a revelação do conteúdo, a partir de uma disposição ou formulação. A alteração do significante pode afectar a revelação do significado de uma palavra ou o sentido de uma oração.

Em nosso entender, pois, não são apenas as “normas” que vinculam – também os preceitos constitucionais devem ser tidos como intangíveis.

Se apenas as “normas”, no sentido tradicionalmente entendido, que vinculassem, então nada obstaria a que houvesse correcções ortográficas, autênticas revisões tácitas das leis ordinárias, no tocante à ortografia e não só.

A tese aludida não distingue entre disposição e norma.

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&list=PL8480D45B46B32529&v=5sQzlqWWsNQ): ela faz parte do “corpus” da língua (e da Constituição).

A pele não é o mais importante do corpo. Mas ela está lá. 27 ANTÓNIO EMILIANO, Sobre o primado da escrita, in IDEM, Apologia do Desacordo Ortográfico, pg. 105. As ortografias são “construções do intelecto, do espírito e do engenho colectivos; como as línguas, as ideias, os conceitos, as

percepções, as categorias. « não (…) podemos modificar [as línguas e as ideias] a nosso bel-prazer sob pena de prejudicarmos a nossa interacção com o

mundo e com os outros membros da nossa comunidade.” (ANTÓNIO EMILIANO, Da presuntiva artificialidade da ortografia, II, 2 de Março de 2012, http://www.facebook.com/notes/ant%C3%B3nio-emiliano/nota-xliii-da-presuntiva-artificialidade-da-ortografia/10150845540983378).

“A ortografia é artificial como é artificial a percepção que temos do mundo, das coisas, da vida e das pessoas” (IDEM, ibidem, V).

28 ANTÓNIO EMILIANO, Foi você que pediu um Acordo Ortográfico?, pg. 10. 29 ANTÓNIO EMILIANO, Da presuntiva artificialidade da ortografia, 2 de Março de 2012, V,

http://www.facebook.com/notes/ant%C3%B3nio-emiliano/nota-xliii-da-presuntiva-artificialidade-da-ortografia/10150845540983378.

30 ANTÓNIO EMILIANO, Sobre o primado da escrita, in IDEM, Apologia do Desacordo Ortográfico, pg. 104.

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IVO MIGUEL BARROSO Republicações de leis e de Códigos com as grafias do “Acordo Ortográfico” de 1990 : 9

Sendo pretensamente conteudística, esta teoria é susceptível de conduzir a resultados verdadeiramente surpreendentes: no limite, extravasando o âmbito da ortografia, entrando na lexicografia, a tese “conteudística” aludida levaria à conclusão de que nada impediria que as designações fossem alteradas. Uma lei parlamentar poderia redigida em Português do Brasil, alterando o léxico utilizado por sinónimos brasileiros; ou mesmo numa outra língua, sendo o texto originário substituído por uma tradução31 que os intérpretes da Constituição entendessem (por exemplo, em Inglês).

Pelas razões aludidas, existe dogmaticamente a necessidade de, a par da Constituição-enunciado, dar corpo a uma nova figura jurídica: a lei-enunciado, enquanto documento legal no qual as disposições se encontram depositadas.

Sem prejuízo de a lei-enunciado não ter ínsita a rigidez da Constituição-enunciado e de poder ser alterada, mediante decisão expressa do Legislador democrático, trata-se de uma figura com inequívoca valia científica.

2. Decretos legislativos regionais

Em relação à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, existe uma autovinculação em relação à “aplicação” do AO90 aos decretos legislativos regionais, consubstanciada pelo artigo 2.º da Resolução do Conselho do Governo Regional n.º 83/2011, de 6 de Junho, que ordena a publicação de actos do “Jornal Oficial” da Região Autónoma dos Açores32 “acordizados”33; norma essa que é organicamente inconstitucional inconstitucional34).

Há também o n.º 1 da Resolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores n.º 7/2012/A, de 24 de Janeiro, que padece de inconstitucionalidade orgânica

2.1. Já quanto à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, não há qualquer norma habilitante para aprovar actos legislativos com o “Acordo Ortográfico” de 1990; pelo existe uma carência total de lei habilitante, que gera uma inconstitucionalidade orgânica, por falta de competência.

31 Um livro X (signo) é a combinação de um conceito Y e de uma imagem acústica Z (FRANCISCO MIGUEL VALADA,

Demanda, deriva, desastre: os três dês do Acordo Ortográfico, pg. 41). No campo do significante, tomando o exemplo da tradução, um texto X de uma língua Y, traduzido para uma língua Z,

resulta também na substituição de Y por Z, sendo ambos X (FRANCISCO MIGUEL VALADA, Demanda, deriva, desastre: os três dês do Acordo Ortográfico, pg. 41).

A tradução (Z) ocupa o lugar de significado nesta perspectiva significante. Essa tradução (Z) pode ser a única forma de alguém chegar a X, apesar de o original (Y) ser essencial para a existência da própria tradução.

“No entanto, para um utilizador individual que não perceba o original, isto nada significará em termos práticos – o que conta é o significado, a tradução, a fotografia do rosto, a escrita da língua, o espaço do tempo, enfim, o grafema do fonema” FRANCISCO MIGUEL VALADA, Demanda, deriva, desastre: os três dês do Acordo Ortográfico, pg. 43).

32 Como é sabido, os decretos legislativos regionais não são publicados no “Diário da República”, mas no Jornal Oficial da respectiva Região Autónoma.

33 Quanto à Administração regional açoriana, há uma norma auto-habilitadora para “aplicação” do AO90 consubstanciada pelo artigo 1.º da Resolução do Conselho do Governo Regional n.º 83/2011, de 6 de Junho.

34 V. IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades…, in O Direito, 2013, III, n.º 8, pg. 468.

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VERBO jurídico Republicações de leis e de Códigos com as grafias do “Acordo Ortográfico” de 1990 : 10

3. Decretos para valer como decretos-leis, aprovados pelo Governo

3.1. A revogação parcial das normas dos números 2 e 1 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 por parte do Anexo II da Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011

O n.º 2 da RCM n.º 8/2011, de 25 de Janeiro, preceitua:

“Nos termos da alínea g) do artigo 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve:

(…)

2 - Determinar que, a partir de 1 de Janeiro de 2012, a publicação do Diário da República se realiza conforme o Acordo Ortográfico.”

Ora, o Governo seguinte emitiu uma outra Resolução do Conselho de Ministros, (a n.º 29/2011, de 11 de Julho), que foi aprovada, na qual “o Conselho de Ministros resolve”:

“2 — Determinar que as regras de legística aprovadas pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 77/2010, de 11 de Outubro, mantêm -se em vigor e são republicadas no anexo II à presente resolução, dela fazendo parte integrante.”

Destas regras, da qual consta uma disposição, que preceitua, em relação às “Regras de legística na elaboração de actos normativos”, o seguinte:

“O nível de língua a utilizar deve corresponder ao português não marcado produzido pelos falantes escolarizados, designado português padrão.”35.

O que se entende por “português padrão”?

A nosso ver, a única interpretação possível é a de que corresponde ao Português costumeiro ou tradicional, resultante dos costumes consolidados do Português anterior à Reforma de 1911, com as alterações de 1911, do Decreto n.º 35.228, de 8 de Dezembro de 1945, que transpôs para ordem jurídica portuguesa a Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945 (no âmbito de um sistema dualista), e do Decreto-Lei n.º 32/73, de 6 de Fevereiro.

Poder-se-ia argumentar em contrário com a definição da AR:

“O nível de língua a utilizar deve corresponder ao designado português produzido pelos falantes escolarizados. Não devemos, no entanto, esquecer que o padrão, pela sua natureza, é mutável, uma vez que a língua está em permanente evolução.”36..

Em todo o caso, a “permanente evolução” da língua não permite afirmar, até ao momento, que o Português costumeiro, pré-AO90, tenha deixado de existir.

Deste modo, a objecção, segundo a qual o Português padrão seria o Português escrito pelas pessoas alfabetizadas, não colhe; dado que a maioria destas utiliza ainda o Português tradicional, que continua a ser o “Português padrão”.

Se dúvidas remanescessem, elas são dissipadas, uma vez que toda a Resolução do Conselho de Ministros de Julho de 2011 (incluindo os dois Anexos) se encontra redigida em Português tradicional.

35 Artigo 14.º, n.º 2, das “Regras de legística na elaboração de actos normativos”, aprovadas pela Resolução do Conselho de

Ministros n.º 29/2011, de 11 de Julho, Anexo II (http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jmm_MA_13687.pdf). 36 “Guia prático de regras a observar na redacção de actos normativos da Assembleia da República”,

http://www.parlamento.pt/DossiersTematicos/Documents/Reforma_Parlamento/guialegisticaformal.pdf, consultado em 25 de Janeiro de 2015. Este excerto utiliza a expressão “falantes”, quando o que releva para a ortografia são os escreventes.

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Pergunta-se: haverá revogação parcial dos números 1 e 2 da RCM n.º 8/2011, no que tange aos “actos normativos emitidos pelo Governo” (decretos-leis e todos os regulamentos administrativos governamentais)?

A figura da Resolução do Conselho de Ministros não é totalmente decisiva para determinar a revogação, uma vez que se trata de um acto espongiforme37, com natureza nem sempre administrativa (como é a da RCM n.º 8/2011), e, em virtude do princípio da incomunicabilidade entre actos de diferente natureza, poderia entender-se que a RCM n.º 29/2011 não teria natureza administrativa.

Do exposto, decorre que a Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011 se dirigia ao Governo-legislador (embora com algumas dúvidas de constitucionalidade, uma vez que se poderia argumentar que uma Resolução do Conselho de Ministros não pode ter um acto legislativo (questão que analisaremos infra, a propósito da RCM n.º 8/2011, embora esta tenha um enquadramento diverso).

Em todo o caso, note-se que a Resolução do Conselho de Ministros, que aprova o Regimento do Conselho de Ministros do XIX Governo Constitucional e republica as “Regras de legística (…)”, invoca como base habilitante o artigo 200.º, n.º 1, alínea g), e não o artigo 199.º, alínea g), da CRP, como foi o caso da RCM n.º 8/2011.

Assim, tanto podem estar em causa matérias constantes dos artigos 197.º (competência política), 198.º (competência legislativa)38 como 199.º (competência administrativa; embora aqui com muita reserva, uma vez que, tratando-se de um regulamento administrativo independente, deveria assumir a forma de decreto regulamentar, atento o artigo 112.º, n.º 6, da CRP).

Em virtude da competência “política”, pode admitir tratar-se de um acto com força afim de lei39.

3.1.1. A norma constante do artigo 14.º, n.º 1, das “Regras de legística na elaboração de actos normativos”, não foi revogada posteriormente por nenhum regulamento posterior.

Assim, o resultado desta sucessão de Resoluções no tempo é o de que o artigo 14.º, n.º 2, das “Regras de legística na elaboração de actos normativos”, aprovadas pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011, de 11 de Julho, Anexo II, revogou parcialmente, as normas dos número 2 e 1 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, uma vez que é posterior (“Lex posterior derogat legi priori”), quanto ao Governo (quanto ao Governo-administrador e, também, quanto ao Governo-legislador).

3.2. A conclusão a que chegamos, até ao momento, é a de que os números 2 e 1 da RCM n.º 8/2011, de 25 de Janeiro, foram parcialmente revogados pela RCM n.º 29/2011, de 11 de Julho. Não restam quaisquer dúvidas de que houve uma revogação tácita parcial dos números 2 e 1 da anterior RCM n.º 8/2011.

37 Aludindo à Resolução do Conselho de Ministros como “figura anfíbia, de difícil caracterização e pouco trabalhada

doutrinariamente”, cfr. ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, O Governo: organização e funcionamento, reserva legislativa e procedimento legislativo, in Revista Jurídica, AAFDL, n.º 23, 1999, p. 209 (nota 59).

38 Em sentido contrário, considerando que uma Resolução não pode ter carácter legislativo, cfr. JORGE MIRANDA, Resolução, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, VII, Lisboa, 1991, p. 260.

39 CARLOS BLANCO DE MORAIS admite a existência de normas atípicas segregadas pela função política “stricto sensu” (in Justiça Constitucional, I, 1.ª ed., Coimbra Editora, 2002, p. 150).

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VERBO jurídico Republicações de leis e de Códigos com as grafias do “Acordo Ortográfico” de 1990 : 12

Deste modo, o Governo carece de qualquer base habilitante e, portanto, de qualquer competência – tão pouco competência legal - para aplicar o “Acordo Ortográfico” de 1990 aos actos normativos que aprove — quer sejam decretos-leis, quer sejam actos regulamentares.

Portanto, todos os diplomas “acordizados”, todos os actos legislativos (incluindo as republicações, mesmo tivessem havido uma norma a aprovar a republicação em conformidade com o AO90) e regulamentares do Governo, em relação aos quais o AO90 tem sido aplicado desde 2012, padecem de inconstitucionalidade orgânica, por falta de competência, e de ilegalidade, por vício de incompetência absoluta.

Se o Governo não base legal ou outra, de carácter competencial, para emitir diplomas “acordizados”, também carece de qualquer base normativa para proceder a republicações com o AO90.

3.3. Não obstante o exposto, “de facto” nenhum órgão ou agente do Governo viria a dar-se conta da revogação – objectivamente inequívoca -, uma vez que se retomou, meses mais tarde, a partir de Janeiro de 2012, a “aplicação” do AO90 aos actos publicados em “Diário da República” e nos restantes actos normativos. Aparentemente, sem prejuízo da força revogatória que tem, o aludido artigo 14.º, n.º 2, foi emitido, como se de um “descuido” se tratasse”…

Destarte, para efeitos meramente argumentativos, abstrairemos das considerações enunciadas previamente, para poder continuar a analisar outras questões, também juridicamente relevantes, caso se entendesse que não teria havido revogação parcial da RCM.

3.4. Ainda que não se considerasse da revogação tácita em relação aos actos normativos do Governo, cumpre averiguar se o escopo dos números 2 e 1 da RCM n.º 8/2011 valem, em teoria, para o Governo-legislador (abstraindo, por um momento, das inconstitucionalidades manifestas da RCM n.º 8/2011 no seu todo e das normas resultantes dos números 2 e 1). Cabe, pois, inquirir, a título de questão prévia, se tais normas são aplicáveis ao Governo-legislador.

O n.º 1 da RCM n.º 8/2011 estabelece:

“o Conselho de Ministros resolve:

1 — Determinar que, a partir de 1 de Janeiro de 2012, o Governo (…) aplicam a grafia do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/91, ambos de 23 de Agosto, em todos os actos, decisões, normas, orientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e comunicações, sejam internos ou externos, independentemente do suporte, bem como a todos aqueles que venham a ser objecto de revisão reedição, reimpressão ou qualquer outra forma de modificação.”

Portanto, numa “interpretação inferente” (isto é, aquela que é feita, “‘quando a norma resulta espontaneamente de um processo simples e empírico de apreensão do sentido de uma disposição’”40), também os actos legislativos do Governo estariam abrangidos.

40 Cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional, Tomo I, Volume 2, Teoria da Constituição

em tempo de crise do Estado Social, 1.ª ed., Coimbra Editora, 2014, n.º 635, pg. 611.

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Só que este primeiro sentido é muitas vezes enganador. Há que verificar, face à Constituição, se a norma resultante de um enunciado constante num regulamento administrativo, como é o caso da RCM n.º 8/201141.

Ora, o n.º 1 da RCM n.º 8/2011, numa interpretação conforme à Constituição, não se pode referir aos decretos-leis aprovados pelo Governo-legislador (cfr. artigos 198.º, n.º 1, alíneas a), b) e c); 112.º, n.º 1, da CRP), mas sim aos actos emitidos pelo Governo-administrador.

É verdade que, em bom rigor, a “dupla face” do Governo42 consubstancia, no mínimo, uma meia-antítese de uma das ideias essenciais de Autores iluministas como LOCKE43, MONTESQUIEU44, KANT45 (e até mesmo de ROUSSEAU); sendo, pois, à luz do sistema jurídico-constitucional português, duramente criticada pelo Professor PAULO OTERO46.

41 Para mais desenvolvimentos sobre a qualificação da RCM n.º 8/2011 como regulamento administrativo, v. IVO MIGUEL

BARROSO, Inconstitucionalidades…, in O Direito, 2013, I/II, pgs. 98-103; IVO MIGUEL BARROSO / FRANCISCO RODRIGUES ROCHA, Guia jurídico contra o “Acordo Ortográfico” de 1990, III, pgs. 20-22.

De resto, o artigo 135.º do CPA, revisto em 2015, corrobora plenamente este entendimento, ao estabelecer uma definição legal de regulamento próxima do entendimento do Supremo Tribunal Administrativo: “consideram-se regulamentos administrativos as normas jurídicas gerais e abstra[c]tas que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos.”.

Com o devido respeito, esta definição, embora bastante em voga na Doutrina (v. g., DIOGO FREITAS DO AMARAL; GOMES CANOTILHO) não é correcta e rigorosa – uma vez que confunde o acto jurídico-público que é o regulamento, os enunciados constantes do regulamento e as normas jurídicas que se extraem das disposições do regulamento (no sentido defendido, PEDRO MONIZ LOPES, in e.publica).

Para a qualificação da RCM n.º 8/2011 como regulamento administrativo independente, v. IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades…, in O Direito, 2013, I/II, pgs. 103-127; IVO MIGUEL BARROSO / FRANCISCO RODRIGUES ROCHA, Guia jurídico contra o “Acordo Ortográfico” de 1990, III, pgs. 28-32.

42 PAULO OTERO, O poder de substituição em Direito Administrativo: Enquadramento dogmático-constitucional, diss., volume II, Lex, Lisboa, 1995, pgs. 802, 774; IDEM, Direito Administrativo - Relatório de uma disciplina apresentado no concurso para professor associado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2.ª ed., suplemento da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2001, pg. 237.

43 “pode constituir uma tentação demasiado grande para a fragilidade humana, capaz de assenhorear-se do poder, que as mesmas pessoas que têm o poder de elaborar leis tenham também em mãos o de executá-las, com o que podem isentar-se da obediência às leis que fazem, e adequar a lei, tanto no elaborá-la como no executá-la, á sua própria vantagem particular, passando com isso a ter um interesse distinto daquele do resto da sociedade política (...)” (LOCKE, O Segundo Tratado sobre o Governo. Um Ensaio referente à verdadeira Origem, Extensão e Objectivo do Governo Civil, in IDEM, Dois Tratados Sobre o Governo, trad. de JÚLIO FISCHER, Mem Martins, São Paulo, 1998, Livro II, Cap. XII, n.º 143, pgs. 514-515).

44 “Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.”; de tal modo que um cidadão possa temer outro cidadão (cfr. MONTESQUIEU, O Espírito das Leis (original: L’Esprit des Lois, 1748), apresentação de RENATO JANINE RIBEIRO, trad. de CRISTINA MURACHO, Martins Fontes, São Paulo, 2000, Livro XI, Cap. VI, pg. 168).

Sintetizando esta ideia de MONTESQUIEU, “A razão pretende que o poder legislativo e o poder executivo se não confundam; é esta separação que faz o princípio da liberdade; e, daí, esses obstáculos contínuos que é necessário colocar entre os dois agentes da vida política, com vista a impedir que se reúnam num centro comum” (LANJUINAS, discurso de 7 de Setembro de 1789, nos trabalhos preparatórios desta Constituição, apud BRUNO NICOLLE, Lanjuinas et la constitution de l’an III, in 1795. Pour une République sans Révolution. Colloque International 29 juin – 1.er juillet 1995, organisé à l’Institut d’Études Politiques de Rennes avec le concours de l’Université Rennes 2 (URACNRS 1022), dir. de ROGER DUPUY / MARCEL MORABITO, Presses Universitaires de Rennes, 1996, pg. 97 (nota 5)).

45 “O poder legislativo só pode caber à vontade conjunta do povo. (…) visto que dele deve dimanar todo o Direito, não poderá, mediante a sua lei, actuar injustamente com ninguém.” (IMMANUEL KANT, Metafísica dos costumes. Parte I. Princípios metafísicos da Doutrina do Direito (original: Die Metaphysik der Sitten. Erster Teil: Metaphysische Anfangsgründe der Rechtlehre, 1797, 1798), trad. de ARTUR MORÃO, Edições 70, Lisboa, 2004, Segunda Parte da Doutrina do Direito, Secção primeira. o Direito Político, § 46, pg. 128); pelo que definia a “liberdade legal” como a faculdade de “não obedecer a nenhuma outra lei, excepto àquela a que se deu o seu consentimento” (ibidem).

“O soberano do povo (o legislador) não pode (…) ser ao mesmo tempo o “governante”, pois este está sob a lei e obrigado por ela, logo, por outro, a sujeitar-se ao soberano.” (IMMANUEL KANT, Metafísica dos Costumes. Parte I..., Segunda Parte da Doutrina do Direito, Secção primeira. o Direito Político, § 49, pg. 131).

46 V. PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, Almedina, Coimbra, 2003, pg. 129; PAULO OTERO, O poder de substituição..., II, pg. 802.

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VERBO jurídico Republicações de leis e de Códigos com as grafias do “Acordo Ortográfico” de 1990 : 14

No entanto, há que fazer a separação, embora no seio do mesmo órgão, entre o que cabe ao Governo em termos de exercício da função legislativa e, por outra banda, da função administrativa.

Para o caso vertente, a RCM n.º 8/2011, enquanto regulamento administrativo (e mesmo abstraindo das inconstitucionalidades totais da RCM e da norma do n.º 1 do mesmo diploma), não se dirige ao Governo-legislador, sob pena de inconstitucionalidade orgânica, devido a usurpação de poderes, e do correspondente desvalor jurídico associado da inexistência jurídica; bem como de inconstitucionalidade formal (devido à forma do acto regulamentar não ser idónea a vincular o Governo-legislador) e de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da separação de poderes.

Desta forma, o Governo nunca poderia aprovar decretos-leis autorizados (ou também da área concorrencial) com o AO90, uma vez que, embora, até 22 de Setembro de 2016, o ordenamento jurídico português interno se encontre no chamado “prazo de transição”47.

Inexiste qualquer base legal ou convencional habilitante para que o Governo aprove decretos para valer como decretos-leis com a grafia do AO90:

“Colocando o dedo na ferida”, assinalando a dualidade potencialmente perversa entre Governo-legislador e Governo-

administrador, a “promiscuidade” que permite ao Governo poder munir-se de uma prévia lei habilitadora, subjacente a futuros actos administrativos a praticar, na área concorrencial, PAULO OTERO, O poder de substituição..., II, pgs. 599, 624, 627, 628-629, 632, 665, 802, 854, 863, 880; IDEM, A «desconstrução» da democracia constitucional, in Perspectivas Constitucionais. Nos 20 anos da Constituição de 1976, vol. II, org. de JORGE MIRANDA, Coimbra Editora, 1997, pgs. 616, 622-623; IDEM, O desenvolvimento de leis de bases pelo Governo (O sentido do artigo 201.º, n.º 1, alínea c), da Constituição), Lex, Lisboa, 1997, pg. 13; IDEM, Legalidade e Administração Pública, pg. 129; cfr. IDEM, Direito Administrativo – Relatório..., 2.ª ed., pg. 237.

No mesmo sentido, MARCELO REBELO DE SOUSA, A decisão de legislar, in A feitura das leis, II, Comunicações apresentadas no Curso organizado pelo Instituto Nacional de Administração, Oeiras 1986, pg. 26: o Governo tem “a tentação é a de legislar rapidamente e, para tal, fazê-lo através de leis-medida. / No entanto, muitas vezes, é possível passar da lei-medida para a lei material. Demora mais tempo e exige maior rigor jurídico.” (cfr. pgs. 22-23).

PAULO OTERO considera mesmo que a Constituição de 1976 adopta um modelo que antes se alicerça numa postura pré-liberal, totalmente oposta aos postulados liberais; considerando a competência concorrencial “sem paralelo em qualquer outra experiência constitucional europeia de matriz democrática, fundada na tradição herdada do Estado Novo” (PAULO OTERO, volume II, Organização do Poder Político, 1.ª ed., Almedina, Coimbra, 2010, 19.4.b).IX.b), pg. 396); em idêntico sentido, considerando tratar-se de uma via perversa para obviar a sobrecarga do Parlamento, ANTONI ROIG, La deslegalización. Orígenes y limites constitucionales en Francia, Itália y España, Dykinson, Madrid, 2003, pg. 113). Deve, porém, ressalvar-se a existência do Executivo dualista não estava nas conjecturas dos Autores iluministas).

Em sentido diverso, outros Autores, como JORGE MIRANDA (Manual..., V, 3.ª ed., pg. 160; Artigo 161.º, IV, in Constituição Portuguesa Anotada, tomo II, 1.ª ed., JORGE MIRANDA / RUI MEDEIROS, Coimbra Editora, 2007, pg. 496) e GOMES CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria..., 7.ª ed., pg. 795) justificam a solução constitucional, embora criticando a pouca transparência de muitos dos processos legislativos governamentais (JORGE MIRANDA, Crise da lei ou crise do Estado?, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XLV, n. 1 e 2, 2004, pg. 519).

Outros sectores chegam mesmo a louvar a solução constitucional, referindo que constituiu uma mais-valia, e nunca um defeito - CARLOS BLANCO DE MORAIS, Manual de Legística, 1.ª ed., Verbo, s.l., 2007, pg. 133.

Considerando que a atribuição ao Governo de poderes legislativos normais se mostra anómala em relação à clássica regra democrática-representativa de atribuição ao Parlamento do exclusivo da função legislativa, PAULO OTERO, A «desconstrução» da democracia constitucional, pg. 616.

47 O prazo de transição de 6 anos foi instituído pela reserva contida no artigo 2.º, n.º 2, do Decreto do Presidente da República n.º 52/2008, de 29 de Julho, que procedeu à ratificação do 2.º Protocolo Modificativo ao AO90. A nosso ver, o prazo de transição termina em 22 de Setembro de 2016 (para mais desenvolvimentos, v. IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades…, in O Direito, I/II, pgs. III, pg. 515; Súmula sobre as inconstitucionalidades orgânicas, materiais e formais da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, que mandou aplicar o “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” à Administração Pública e a todas as publicações no “Diário da República”, a partir de 1 de Janeiro de 2012, bem como ao sistema educativo (público, particular e cooperativo), a partir de Setembro de 2011. Inconstitucionalidades e ilegalidades “sui generis” do conversor “Lince” e do “Vocabulário Ortográfico do Português”, Janeiro de 2014, versão “on line”, in Portal Verbo Jurídico, reproduzida em http://www.verbojuridico.com/ficheiros/doutrina/constitucional/ivobarroso_acordoortografico.pdf; para maiores desenvolvimentos argumentativos, v. IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades…, in O Direito, I/II, pgs. 94-97.

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IVO MIGUEL BARROSO Republicações de leis e de Códigos com as grafias do “Acordo Ortográfico” de 1990 : 15

Nem o n.º 1 da RCM n.º 8/2011, nem o aludido artigo 2.º, n.º 2, do Decreto Presidencial n.º 52/2008 (que procedeu à ratificação do 2.º Protocolo Modificativo ao AO90), constituem bases habilitantes competenciais para que o Governo-legislador “aplique” o “Acordo Ortográfico” de 1990 aos actos legislativos por si aprovados48.

4. As inconstitucionalidades formais e o desvalor jurídico da inexistência, a elas associado

I. O confronto entre o texto republicado e os artigos objecto de alteração (votação) demonstra que naquele se incluíram palavras que não se encontravam no texto votado49. Há, assim, no texto publicado, palavras ou letras que não se encontram no texto votado50.

II. “In casu”, para além da preterição das fases de iniciativa e de consulta, no intuito de se iniciar o procedimento de inserção de alterações, verifica-se a preterição grave de elementos da fase constitutiva de produção do acto, que implicam uma ausência objectiva de vontade aprovatória pelos titulares do órgão competente51. Destarte, a inconstitucionalidade formal, que acarreta o desvalor da inexistência jurídica, pode resultar:

a) De um acto legislativo aprovado sem “quorum” de deliberação (cfr. artigo 116.º, n.º 2) (como é pacífico na Doutrina52);

b) De um acto legislativo parlamentar não aprovado de acordo com a regra geral da maioria relativa do artigo 116.º, n.º 3, da CRP53;

c) Da preterição de votação na generalidade da lei54;

d) Por maioria de razão, não há votação “sem a votação na especialidade de qualquer artigo, número ou alínea do projecto ou da proposta de lei em causa, tal artigo, número ou alínea

48 Equacionem-se outros meios: se o Governo pretendesse “aplicar” as grafias do AO90, teria de aprovar alterações a todas

as disposições; ou, em alternativa, incluir, nas disposições transitórias, uma norma receptora do AO90. Em nosso entender, mesmo estas possibilidades não poderiam suceder, dada a mencionada falta de base legal ou

convencional habilitante. Porém, ainda que assim não se entendesse, o certo é que não houve aprovação de alterações às disposições: estas não

sofreram quaisquer modificações, nos casos elencados. 49 Cfr. FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º,

Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 114. 50 Cfr. FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º,

Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 115. 51 CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 146, pg. 202. 52 Cfr. JORGE MIRANDA, Manual..., VI, 4.ª ed., n.º 25.I, pg. 108. 53 Neste sentido, cfr. JORGE MIRANDA, Manual..., VI, 4.ª ed., n.º 25.I, pg. 108, n.º 80.V, pg. 311. 54 Em sentido contrário, cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., pgs. 259-260. Neste caso, segundo o Professor BLANCO, excepto o caso das leis que careçam de ser votadas, nessa fase, por maioria

qualificada, o desvalor jurídico associado seria o da mera irregularidade, não o da nulidade ou o da inexistência (CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., pg. 259). Isto porque se trata “de uma votação vestibular e preparatória das deliberações constitutivas do acto (votação final global) e daquelas que são seu pressuposto (votação na especialidade)” (CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., pg. 259-260).

Com o devido respeito, temos dúvidas de que o desvalor seja o da mera irregularidade. A inconstitucionalidade formal aludida parece ter associado o desvalor da nulidade.

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é inexistente por natureza”55. Contendo passagens ou palavras não votadas pelo Parlamento ou pelo Governo56-57, essas parcelas textuais são inexistentes.

e) Por ausência de votação final global das alterações, contidas na republicação, no decreto da Assembleia da República ou do Governo58.

Nenhuma destas situações hipotéticas se subsume por completo ao caso da republicação em análise. A hipótese de o decreto não ter sido aprovado59 é a que mais se aproxima, mas não coincide totalmente, uma vez que está em causa é uma não aprovação parcial, no que tange às disposições da Republicação.

Com efeito, o caso é o de existir uma quase total ausência de procedimento legislativo parlamentar:

Há uma preterição de todas as formalidades essenciais, inerentes às três fases do processo legislativo parlamentar: i) iniciativa60; ii) apreciação/consulta ou fase instrutória; iii) deliberação (discussão e votação na generalidade; discussão e votação na especialidade; votação final global).

O mesmo se aplica relativamente ao processo legislativo governamental61, designadamente no que tange às fases de iniciativa e aprovação. Veja-se, a este respeito, o artigo 10.º, números 1 e 3, das Regras de legística do Governo, sob epígrafe “Alterações, revogações, aditamentos e suspensões”:

55 JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., n.º 85.II, pg. 308. 56 Cfr. FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º,

Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 114. 57 Em relação ao Governo – rectius, ao Conselho de Ministros -, o caso é diferente, uma vez que, sem prejuízo de ser um

órgão colegial (tal como a AR), “uma vez que obedece ao princípio da solidariedade governamental (artigo 189.º), conferindo-lhe unidade de acção e decisão, não tem o seu procedimento deliberativo normalmente sujeito ao princípio maioritário: o consenso é, ao invés da maioria, o critério normal de decisão do Conselho de Ministros” (PAULO OTERO, Direito Constitucional Português, II, 1.ª ed., 12.7.c).VII, pg. 48).

O normal é que o Conselho de Ministros funcione sem ser com base no princípio maioritário, sob pena de levar “rapidamente a deterioração do relacionamento intragovernamental” conduzir “à demissão do Governo, por iniciativa do Primeiro-Ministro, ou, em alternativa, à demissão dos ministros não sintonizados com a linha política definida pelo Primeiro-Ministro.” (PAULO OTERO, Direito Constitucional Português, II, 1.ª ed., 12.7.c).VII, pgs. 48-49).

Cfr. o n.º 6.2 do Regimento do XIX Governo Constitucional, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011, de 11 de Julho (http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jmm_MA_13687.pdf), que abre o leque ao consenso ou à votação: “6.2 — As deliberações do Conselho são tomadas por consenso ou votação.”

O n.º 6.3 do Regimento do XIX Governo Constitucional, aprovado pela mesma Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011, de 11 de Julho, depois renumerado como 6.4 e alterando a grafia, preceitua:

“6.3 — Os projectos submetidos a Conselho são objecto de deliberação que os aprove (…)” (n.º 6.3 do Regimento do XIX Governo Constitucional, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011, de 11 de Julho, in );

“6.4 — Os projetos submetidos a Conselho são objeto de deliberação que os aprove (…)” (Regimento do XIX Governo Constitucional, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011, de 11 de Julho, com as alterações derivadas da Resolução do Conselho de Ministros n.º 51/2013, de 8 de agosto, in Diário da República, 1.ª série — N.º 152 — 8 de agosto de 2013, pg. 4779).

58 Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, Inexistência jurídica, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. V, Lisboa, 1993, pg. 237.

59 Cfr. JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 80.V, pg. 311. 60 Mesmo a fase de iniciativa originária, no caso de esta provir do Governo ou das Assembleias Legislativas, a proposta de

lei tem de ser admitida pela Mesa da Assembleia da República (cfr. artigos 125.º e 126.º do Regimento da AR de 2007). 61 Sobre o processo legislativo governamental, cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional,

Tomo I, As Funções do Estado e o Poder Legislativo no Ordenamento Português, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2012, ns. 596 ss., pgs. 475 ss.; CARLOS BLANCO DE MORAIS, Manual de Legística, 1.ª ed., Verbo, 2007, pgs. 129 ss., e 289 ss.; JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, A preponderância do Governo no exercício da função legislativa, in IDEM, Elementos de Direito Público lusófono, 1.ª ed., Coimbra Editora, 2011, § 4.º, pgs. 95-106; ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, O Governo: organização e funcionamento, reserva legislativa e procedimento legislativo, in Revista Jurídica, AAFDL, n.º 23, 1999, pgs. 191-224; MARCELO REBELO DE SOUSA, A elaboração dos decretos-leis avulsos, in A feitura das leis, volume II,

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“1. As alterações, revogações, aditamentos (…) devem ser expressos, discriminando as disposições alteradas, revogadas, aditadas ou suspensas e respeitando a hierarquia das normas.”62;

“4. Deve ser prevista a introdução das alterações no local próprio do diploma que se pretende alterar ou aditar, transcrevendo a sistematização de todo o artigo e assinalando as partes não modificadas, incluindo epígrafes, quando existam.”63.

Estas regras transcritas são aplicáveis também aos anexos que procedem à republicação, nos termos do artigo 12.º, n.º 6, das Regras de legística do Governo64.

Assim, por maioria de razão, a carência de todas as fases do procedimento legislativo anteriores à fase da promulgação acarreta uma inconstitucionalidade formal gravíssima, cujo desvalor não pode deixar de ser o da inexistência jurídica.

Trata-se deformidades graves que afectam, de um modo irremediável, a formação da vontade inerente à génese do acto, a sua forma e o núcleo institucional da separação de poderes, de tal modo que o nexo de imputação65 do referido acto a um órgão competente é eliminado66-67.

Comunicações apresentadas no Curso organizado pelo Instituto Nacional de Administração, no âmbito do Departamento de Administração Pública, coord. de JORGE MIRANDA / MARCELO REBELO DE SOUSA, com colaboração de MARTA TAVARES DE ALMEIDA, Instituto Nacional de Administração, Oeiras 1986, pgs. 157-185.

Para uma apresentação sobre o processo legislativo governamental, no XIX Governo Constitucional, v. JOÃO TIAGO SILVEIRA, O procedimento legislativo governamental. (…), 8-4-2012, reproduzido em http://www.joaotiagosilveira.org/mediaRep/jts/files/DGPJ_-_Procedimento_Legislativo_Governamental_07112012.pdf.

62 Artigo 10.º, n.º 1, das “Regras de legística na elaboração de actos normativos”, aprovadas pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011, de 11 de Julho, aplicável “ex vi” artigo 12.º, n.º 6, das “Regras de legística na elaboração de actos normativos”, aprovadas pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011, de 11 de Julho, Anexo II (http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jmm_MA_13687.pdf).

63 Artigo 10.º, n.º 4, das “Regras de legística na elaboração de actos normativos”, aprovadas pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011, de 11 de Julho, Anexo II, aplicável “ex vi” artigo 12.º, n.º 6, das mesmas “Regras de legística (…)”.

64 O artigo 12.º, n.º 6, das Regras de legística do Governo preceitua: “As regras relativas a alterações, revogações e aditamentos aplicam-se, com as necessárias adaptações, aos anexos.”.

65 O fenómeno da imputação em Direito Público significa que a vontade psicológica dos indivíduos, que são titulares dos órgãos de uma pessoa colectiva, é imputada ou reconduzida à vontade colectiva dessa mesma pessoa colectiva (o Estado-administração ou outra qualquer outra pessoa colectiva pública). As pessoas colectivas, incluindo o Estado-administração, consistem numa construção técnico-jurídica que permite atribuir direitos e deveres a uma comunidade.

Sobre a imputação, v. HANS KELSEN, Teoria pura do Direito (original: Reine Rechtslehre, Franz Deuticke, Viena, 1.ª ed., de 1925; 1960), 6.ª ed., trad. de JOÃO BAPTISTA MACHADO, Arsénio Amado, Coimbra, 1984, pp. 334 ss.; HANS KELSEN, Teoria Geral do Direito e do Estado (original: General Theory of Law and State), trad. de LUÍS CARLOS BORGES, Martins Fortes, São Paulo, 1998, Parte I, VII, pg. 131; MARCELLO CAETANO, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, I, 6.ª ed., revista e ampliada por MIGUEL GALVÃO TELLES, tomo I, reimpressão, Almedina, Coimbra, 1991, pgs. 182-183; MARCELO CAETANO, Direito Constitucional, Volume I, Direito Comparado. Teoria Geral do Estado e da Constituição. As Constituições do Brasil, Forense, Rio de Janeiro, 1977, pgs. 223-224; MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, Lições de Introdução à Teoria da Constituição, 1.ª ed., Lisboa, 2013, n.º 13.e), pgs. 79-80; JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., n.º 12.I, pg. 49-51; CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 58, pg. 128.

66 Cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., pg. 201. 67 Quanto à inexistência, certos Autores consideram que se trata de uma ausência de acto, uma vez que faltam os dados

mínimos de identificação orgânica e formal mínima de um acto do poder político do Estado (com esta opinião, cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, Inexistência jurídica, pg. 236; IDEM, O valor jurídico do acto inconstitucional, p. 155).

Diversamente, outros sectores doutrinários consideram que o acto inexistente, sem prejuízo de ser uma decisão jurídico-pública deformada, à qual faltem os seus requisitos elementares ou mínimos de identificação (CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 137, pg. 189), é ainda um acto e não um “não-acto”, embora aparente (com esta opinião, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria…, 7.ª ed., pg. 954; CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 137, pg. 189).

Acompanhamos esta segunda opinião. Assim, uma republicação no Diário da República parcialmente inexistente é susceptível de ter a aparência de lei.

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III. A imaginação “criativa” da vida demonstra-nos mais um caso de uma “inexistência jurídica por natureza”68, casos que são muito limitados 69, havendo uma “total impossibilidade, pela natureza das coisas, de [tais comportamentos] surtirem quaisquer efeitos ou de os produzirem no escopo aparentemente pretendido por quem aparece como seu autor.”70-71.

IV. A inexistência jurídica é parcial, uma vez que, da lei que vem a ser promulgada, consta um preceito (e não uma “norma”), que não chegou a ser aprovada pelo órgão competente72.

Um ‘acto jurídico inexistente’73, porque aparente, não produz qualquer consequência jurídica, fora de cenários de putatividade74.

Independentemente de construções que, em certos casos, procuram aproximar os regimes da inexistência e da nulidade75, neste caso, os regimes jurídicos entre a inexistência” e a invalidade da lei divergem, como é sabido. No caso da inexistência, não há produção de efeitos; ao passo que “o chamado acto nulo produz efeitos até à declaração de inconstitucionalidade ou decisão de não aplicação”76.

68 Cfr. JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., n.º 85.II, pg. 308; JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 25.I,

pg. 106 (nota 1), com referências bibliográficas concordantes, na vigência das três Constituições republicanas portuguesas; MARCELO REBELO DE SOUSA, O valor jurídico do acto inconstitucional, pp. 155 ss.. 163. 313; IDEM, Inexistência, pp. 231 ss.; CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., pg. 217 ss.; MIGUEL GALVÃO TELES, Parecer, in O Presidente da República e o Parlamento, pg. 192.

Cfr., porém, as reservas de RUI MEDEIROS, in A decisão de inconstitucionalidade, maxime pp. 874-876. 69 MIGUEL GALVÃO TELES, Parecer, in O Presidente da República e o Parlamento, pg. 195. 70 Cfr. JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 25.I, pg. 105. V. ainda, embora sem se referir às nulidades por natureza, mas assinalando que “a figura da inexistência tem possibilidades

expansivas não reconhecidas à figura da nulidade, que deve ser fixada por lei” (“pas de nullité sans texte”), GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria…, 7.ª ed., pgs. 955, 952, 954-956, que assinala a força expansiva da inexistência.

71 Assim, havendo diferenciação entre os regimes da nulidade e da inexistência, o “teste” da inexistência jurídica por natureza projecta-se na impossibilidade de utilização, pelo TC, da faculdade de limitar no tempo dos efeitos da inconstitucionalidade prevista no n.º 4 do art. 282.º da CRP (neste preciso sentido, MIGUEL GALVÃO TELES, Parecer, in O Presidente da República e o Parlamento, pg. 195; cfr. JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 91.VII, pg. 359, cfr. n.º 25.V, pg. 113; MARCELO REBELO DE SOUSA, O valor jurídico do acto inconstitucional, p. 179).

Considerando, mais genericamente, que os actos inexistentes constituem um dos “limites implícitos” à possibilidade de salvaguarda de efeitos, cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, Tomo II, O Direito do contencioso constitucional, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2011, n.º 753, pgs. 373-374. Com efeito, “Não faria (…) sentido, restringir os efeitos repressivos inerentes a uma declaração de inexistência, já que essa restrição, a ocorrer, implicaria uma preservação dos efeitos do acto inexistente, realidade intrinsecamente incompatível com o regime de improdutividade total desse valor negativo.” (CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, Tomo II, O Direito do contencioso constitucional, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2011, n.º 753, pg. 374).

72 Cfr. JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 25.I, pg. 106 (nota 3). 73 Pode aqui discutir-se se é um “não acto” ou um “acto aparente”: a inexistência “implica dogmaticamente a eliminação de

todos os efeitos do acto” (cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 150, pg. 207). 74 CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, Tomo II, O Direito do contencioso constitucional, 2.ª ed.,

Coimbra Editora, 2011, n.º 753, pg. 374. 75 GOMES CANOTILHO admite considerar a inexistência como consequência jurídica da nulidade, nos casos de a CRP

fulminar com a inexistência certos actos (como a falta de promulgação, nos termos do artigo 137.º, ou a falta de referenda ministerial, segundo o artigo 140.º, n.º 2). O ilustre Autor defende que “as consequências jurídicas ligadas a tal vício não se diferenciam sensivelmente das consequências que a doutrina associa ao regime das nulidades absolutas (ex.: para efeito de fiscalização concentrada da inconstitucionalidade). E daí a proclamação de tais actos como ‘nulos-inexistentes’” (GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria…, 7.ª ed., pg. 954; cfr., em sentido idêntico, MIGUEL GALVÃO TELES, Eficácia dos tratados.., pp. 124-125; de algum modo, RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pg. 278).

Em sentido contrário, diferenciando claramente entre os regimes de nulidade e de inexistência, por exemplo RUI MEDEIROS, Os valores negativos…, p. 527; JORGE MIRANDA, Manual…, V, 4.ª ed.; MARCELO REBELO DE SOUSA, O valor jurídico do acto inconstitucional, p. 179; IDEM, Inexistência, p. 239.

Em sentido mais mitigado, cfr. RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pg. 278. 76 RUI MEDEIROS, Os valores negativos…, p. 527; RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pg. 278.

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V. Em matéria de Direito Penal, a omissão de todo o processo de falta de aprovação não configura, porém, um tipo-de-ilícito, uma vez que não se encontra tipificada na Lei n.º 34/87, de responsabilidade dos titulares dos cargos políticos77 (Lei esta deveras permissiva e desactualizada).

VI. Há também uma ilegalidade, por violação do artigo 5.º, n.º 1, 1.ª parte, da Lei-formulário (lei de valor reforçado atípica), que preceitua, a respeito das “alterações”:

“Os diplomas que alterem outros devem indicar o número de ordem da alteração introduzida e, caso tenha havido alterações anteriores, identificar aqueles diplomas que procederam a essas alterações, ainda que incidam sobre outras normas.”

VII. Para além de juridicamente inexistente, a parte do texto republicado, não conforme com as alterações não efectuadas, deve considerar-se que é ineficaz (cfr. artigo 119.º, n.º 2, da CRP), pois falta a publicação e, por conseguinte, a publicidade do acto realmente aprovado”78.

4.1. O regime da inexistência jurídica

Destarte, é aplicável o regime jurídico da inexistência (neste caso, inexistência parcial):

a) Não produção de efeito jurídico algum desde a origem79; trata-se de um acto totalmente improdutivo80;

b) Desnecessidade de declaração por parte de qualquer órgão com competência específica para tal, designadamente por parte de um órgão jurisdicional81;

c) Não vinculação de quaisquer entidades públicas ou privadas (cidadãos); ou, se se preferir uma terminologia mais arcaica, “inexecutoriedade”82 por parte do poder político do Estado.

77 Neste sentido, afirmando que “a Lei n.º 34/98 não tipifica como crime nenhuma aprovação de lei que envolva crime de

responsabilidade”, cfr. JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., n.º 85.VI, pg. 312. 78 Neste sentido, cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria..., 7.ª ed., pg. 879. 79 JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 24.V, pg. 103; MARCELO REBELO DE SOUSA, Inexistência jurídica,

in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. V, Lisboa, 1993, pg. 234; cfr., em sentido mais matizado, CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, Tomo I, Garantia da Constituição e controlo da constitucionalidade, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2006, n.º 150, pg. 207: “uma aparência de acto, dentro da reserva do possível, não deve produzir qualquer efeito jurídico, seja a título principal, seja a título reflexo ou indirecto”; cfr. IDEM, ibidem, n.º 151, pg. 208, e n.º 137, pg. 190: dentro da ‘reserva do possível’, deve proceder-se a “uma reconstituição completa da situação existente ao momento anterior à prática do mesmo” (pg. 190).

80 A admitir-se uma “presunção de constitucionalidade” dos actos legislativos, ela, porém, nunca poderia valer para os actos inexistentes (neste sentido, cfr., por exemplo, MIGUEL GALVÃO TELES, Parecer, in O Presidente da República e o Parlamento, Assembleia da República, Lisboa, 2004, pg. 194).

81 Neste sentido, JORGE MIRANDA, Referenda, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, volume VII, Lisboa, 1996, pg. 72; JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 24.V, pg. 103; CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., pg. 238.

82 Utilizando ainda esta terminologia, cfr., por último, CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 151, pg. 208.

Considerando, porém, que a expressão “inexecutoriedade” pode não ser a mais adequada, uma vez que a executoriedade é característica dos actos administrativos e não propriamente dos actos normativos, cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, Parecer, in O Presidente da República e o Parlamento, pg. 194 (mudando de posição, uma vez que, na vigência da Constituição de 1933, baseou o alcance próprio da inexistência jurídica na “falta de executoriedade” dos actos normativos juridicamente inexistentes – MIGUEL GALVÃO TELLES, Eficácia dos tratados…, pp. 135-137; Sumários desenvolvidos relativos ao Título II da Parte III do Curso (Direito Constitucional Português Vigente), AAFDL, Lisboa, 1970-71, pp. 101-102).).

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VERBO jurídico Republicações de leis e de Códigos com as grafias do “Acordo Ortográfico” de 1990 : 20

Tal envolve a não aplicação e a cessação do dever de obediência dos funcionários e agentes da Administração Pública, se respeitar ao domínio da actuação do poder político estadual83, quer relativamente a normas imediatamente operativas inexistentes (por exemplo, o n.º 2 da RCM n.º 8/2011), quer contra qualquer ordem ou “instrução” de aplicação dada pelo superior hierárquico; a não aplicabilidade do o n.º 4 do artigo 282.º da CRP, que habilita o Tribunal Constitucional a restringir efeitos da declaração de inconstitucionalidade84;

d) Quanto aos particulares, reconhecimento do direito de resistência por parte dos cidadãos (artigo 21.º da Constituição)85;

e) O vício do “acto aparente” é insanável através da prática de qualquer outro acto (v. g., revisão constitucional)86) ou pelo decurso de um prazo87; deste modo, a inexistência pode ser declarada a todo o tempo88 (porém, para melhor argumentação, voltaremos adiante a este ponto);

f) As decisões jurisdicionais que apliquem o texto republicado não votado, e mesmo que formem caso julgado, e que, ademais, apliquem o n.º 2 da RCM, que padece de inexistência jurídica89, em rigor, para alguns sectores doutrinários, deveriam ser consideradas como não fazendo caso julgado90.

A nosso ver, sem prejuízo de a redução não ser aplicável aos casos de inexistência jurídica, existe uma lacuna, que deverá ser preenchida com arrimo à norma que o intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema91: essas sentenças “acordizadas” deverão ser reescritas e reformadas; ou, pelo menos, os intérpretes e aplicadores do Direito devem ser habilitados a escrevê-los sem a grafia “acordizada”92. Deste modo, afastamo-nos da opinião mais extrema, segundo a qual a inexistência jurídica nunca poderá produzir efeito jurídico algum93.

83 MARCELO REBELO DE SOUSA, Inexistência jurídica, pg. 235; em sentido idêntico, cfr. JORGE MIRANDA,

Referenda, pg. 72; JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 24.V, pg. 104; CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 150, pg. 207.

84 CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 150, pg. 207. 85 MARCELO REBELO DE SOUSA, Inexistência jurídica, pg. 235. Em sentido diverso, considerando que “o ‘direito de resistência’ contra actos inexistentes não é configurado com um alcance

autónomo em relação aos pressupostos deste direito de necessidade, tal como os mesmos se encontram definidos no art. 21.º da CRP”, cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 151, pg. 208.

86 Neste sentido, JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 25.V, pg. 110 (embora referindo-se à nulidade, aplica-se naturalmente à inexistência jurídica; CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 150, pg. 207.

Para mais desenvolvimentos sobre o problema da inconstitucionalidade pretérita post-constitucional, v. IVO MIGUEL BARROSO, Sobre o problema da inconstitucionalidade pretérita post-constitucional, in Política & Direito, n.º 4, Julho-Setembro de 2013, Diário de Bordo, pgs. 8-27, e Bibliografia aí citada.

87 Cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 150, pg. 207. 88 CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 150, pg. 207. 89 V. IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades orgânica e formal da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011,

que mandou aplicar o ‘Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa’ à Administração Pública e a todas as publicações no “Diário da República”, a partir de 1 de Janeiro de 2012, bem como ao sistema educativo (público, particular e cooperativo), a partir de Setembro de 2011. Inconstitucionalidades e ilegalidades ‘sui generis’ do conversor ‘Lince’ e do ‘Vocabulário Ortográfico do Português’, in O Direito, 2013, I/II, I, n.º 3, pgs. 127-139.

90 Cfr. JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 24.V, pg. 104. 91 Cfr. artigo 10.º, n.º 3, do Código Civil. 92 Cfr. a passagem da obra de CARLOS BLANCO DE MORAIS em relação à inexistência jurídica, em que refere: “não

procede a imposição do n.º 3 do artigo 282.º relativa à necessidade de a decisão de inconstitucionalidade respeitar casos julgados que apliquem normas inexistentes (o que implicará a reabertura de processos e a reforma de decisões judiciais)” (CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 150, pg. 207);

93 Em sentido contrário, cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, Inexistência jurídica, pg. 234.

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IVO MIGUEL BARROSO Republicações de leis e de Códigos com as grafias do “Acordo Ortográfico” de 1990 : 21

7.1. Um outro problema concerne ao uso do conversor Lince ou do “Vocabulário Ortográfico do Português”.

Estes instrumentos devem ser considerado como um regulamento administrativo94, viciado de inconstitucionalidades várias95 e de violações do próprio AO90.

Mesmo outros Dicionários privados, embora não possam ser considerados como regulamentos administrativos, violam o próprio AO90, não devendo ser utilizados para “aplicar” o AO90.

8. Sobre a susceptibilidade de a republicação sanar as inconstitucionalidades formais perpetradas

Mesmo que se abstraísse das inconstitucionalidades do AO90, poder-se-ia indagar: poderá a republicação96 prevalecer sobre as alterações efectivamente feitas, mas não aprovadas e sem procedimento?

Na Doutrina, a maioria da Doutrina considera que a resposta é liminarmente negativa: “Apesar de o anexo onde consta a republicação fazer parte integrante do acto normativo que procede às alterações, o texto republicado não pode em caso algum inovar”97.

Assim, se porventura houver discrepância entre as alterações aprovadas (a versão que procede às alterações) e o texto republicado, prevalecem as primeiras98.

94 V. IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades…, in O Direito, 2013, I/II, II Parte, n.º 1, pgs. 477-478; IVO

MIGUEL BARROSO / FRANCISCO RODRIGUES ROCHA, Guia jurídico contra o “Acordo Ortográfico” de 1990, pgs. 86-87.

95 V. IVO MIGUEL BARROSO / FRANCISCO RODRIGUES ROCHA, Guia jurídico contra o “Acordo Ortográfico” de 1990, pgs. 87-92, 85.

96 Veja-se, em geral, o artigo 6.º, números 2, 3 e 4 da Lei-formulário (Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, com alterações posteriores).

No caso do XIX Governo, as republicações sucedem nos casos previstos pelo artigo 11.º (sob epígrafe “Republicação”) das “Regras de legística na elaboração de actos normativos”:

“Deve proceder -se à republicação integral dos diplomas objecto de alteração sempre que: a) Sejam introduzidas alterações, independentemente da sua natureza ou extensão, a leis orgânicas, leis de bases, leis quadro e à

lei relativa à publicação, identificação e formulário de diplomas; b) Existam mais de três alterações ao acto legislativo em vigor, salvo se se tratar de alterações a códigos; c) Se somem alterações que abranjam mais de 20 % do articulado do acto legislativo em vigor, atenta a sua versão originária ou

a última versão republicada; d) Se registem alterações que modifiquem substancialmente o pensamento legislativo das leis em vigor; e) O legislador assim o determinar, atendendo à natureza do acto.” (artigo 11.º das “Regras de legística na elaboração de actos

normativos”, aprovadas pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011, de 11 de Julho (http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jmm_MA_13687.pdf)).

97 Neste sentido, referindo-se a quaisquer republicações em geral, MARIA CRISTINA COELHO, Regras e boas práticas em matéria de republicação, in Legislação. Cadernos de Ciência da Legislação, n.º 53, Instituto Nacional de Administração, Outubro-Dezembro, 2010, pg. 17.

98 No caso de diferença, de uma disfunção entre o texto da lei de revisão e o conteúdo da republicação, o primeiro deve prevalecer, pois é ele que exprime as alterações efectivamente aprovadas (parcialmente neste sentido, embora referindo-se apenas a “alterações substanciais”, cfr. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição..., 4.ª ed., anot. ao art.º 287.º, III, pg. 1007).

No mesmo sentido, em geral, sobre a republicação, MARIA CRISTINA COELHO, Regras e boas práticas em matéria de republicação, in Legislação. Cadernos de Ciência da Legislação, n.º 53, Instituto Nacional de Administração, Outubro-Dezembro, 2010, pg. 17.

Um aresto jurisprudencial refere: “Uma coisa, é o diploma legal em si mesmo (DL 315/98), no qual expressamente se revogou essa norma do art. 26º do CPEREF aprovado pelo DL 132/93, de 23 de Abril; outra, a republicação (aliás dispensável) do texto integral do novo CPEREF revisto por aquele DL 315/98.

«O facto de constar na republicação o teor integral do revogado art. 26º, não implica que este se mantenha em vigor.” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14 de Janeiro de 2003, II, disponível em

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I. Em sentido contrário se pronunciou ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, expressando uma posição minoritária.

O Autor invoca os seguintes argumentos:

a) “as republicações existem para desonerar a comunidade (não os juristas) de examinar leis e alterações, reduzindo a esse conjunto quando se pretenda conhecer o Direito vigente”99;

b) A republicação no “Diário da República” não é uma edição privada, mas seria um “texto certificativo”100, constante de um “jornal que garante de que o que é lido é lei”101.

Assim, “o grau de exigência exigido aos cidadãos, no caso de existir texto de republicação”, consistiria “em conhecer este último”102;

c) O Autor dá como exemplo (extremo, diga-se) uma divergência entre o Código Penal republicado e o texto inicial com as alterações introduzidas, de tal sorte que, do texto republicado, resultasse a incriminação de um comportamento ou um agravamento da moldura penal103;

d) O Autor conclui que “A desconformidade entre um texto original com alterações e o texto republicado deve em princípio – tendencialmente – ser resolvida em favor da versão republicada, por ser a solução mais enraizada no princípio do Estado de Direito, na sua vertente de segurança jurídica e de respeito pelas expectativas dos cidadãos”104.

II. Com o devido respeito, discordamos.

Entendemos que a resposta é negativa, uma vez que o órgão autor da norma não aprovou quaisquer alterações. http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/3deda9f1fca31a5980256ce70057a02e?OpenDocument&Highlight=0,republica%C3%A7%C3%A3o).

99 ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Leis da Justiça – Recolha e tratamento de legislação vigente na área da Justiça. Relatório, in Scientia Iuridica, Janeiro-Março, 2007, p. 136; IDEM, Artigo 119.º, in Comentário à Constituição Portuguesa, III Volume, 1.º Tomo, Princípios gerais da Organização do Poder Político (artigos 108.º a 119.º), coordenação de PAULO OTERO, Almedina, Coimbra, 2008, pg. 535.

100 Também nesse sentido, considerando, em geral, que “A publicação do texto normativo tem um ‘efeito certificatório: o texto publicado no ‘Diário da República’ é o texto legal”, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria..., 7.ª ed., pg. 879. Discordamos da expressão “texto normativo”, uma vez que confunde o enunciado com a norma ou normas dele decorrentes.

ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Artigo 119.º, in Comentário à Constituição Portuguesa, III Volume, 1.º Tomo, Princípios gerais da Organização do Poder Político (artigos 108.º a 119.º), coordenação de PAULO OTERO, Almedina, Coimbra, 2008, pg. 535.

101 ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Artigo 119.º, in Comentário à Constituição Portuguesa, III Volume, 1.º Tomo, Princípios gerais da Organização do Poder Político (artigos 108.º a 119.º), coordenação de PAULO OTERO, Almedina, Coimbra, 2008, pg. 535.

102 ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Algumas notas sobre temas de Legística formal, in Legislação. Cadernos de Ciência da Legislação, n.º 41, Instituto Nacional de Administração, Outubro-Dezembro, 2005, pg. 24; IDEM, Artigo 119.º, in Comentário à Constituição Portuguesa, III Volume, 1.º Tomo, pg. 535.

Todavia, com o devido respeito, este parágrafo da argumentação é contraditório. O Autor afirma textualmente: “Os actos de publicação devem corresponder exactamente ao texto originário com as alterações introduzidas”; afirmando,

contraditoriamente, logo de seguida: “No caso de não existir tal correspondência, entende-se que deve prevalecer o conteúdo do texto republicado. O grau de diligência (…)” (frase citada no texto principal) (ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Algumas notas sobre temas de Legística formal, pg. 24).

103 Cfr. ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Algumas notas sobre temas de Legística formal, pg. 24. 104 ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Artigo 119.º, in Comentário à Constituição Portuguesa, III Volume, 1.º Tomo, pg.

535, ênfases originais; IDEM, Leis da Justiça – Recolha e tratamento de legislação vigente na área da Justiça: Relatório, in Scientia Iuridica, Janeiro-Março, 2007, p. 136.

Aparentemente aderindo a esta posição, JOSÉ MANUEL MEIRIM, O Estado de direito democrático (rectificado republicado e, de novo, rectificado), in Legislação. Cadernos de Ciência da Legislação, n.º 51, Instituto Nacional de Administração, Janeiro-Março de 2009, pg. 75.

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III. A republicação, em geral, tem como objectivos ou “rationes legis”:

i) Dar a conhecer aos cidadãos a versão actualizada e completa de um determinado diploma105; conferir simplicidade para o utilizador, que lida (em geral) com um anexo do acto normativo; no que toca à Constituição, permitir um acesso mais adequado à versão da lei fundamental em vigor106;

ii) Com isso, facilitar a pesquisa do Direito em vigor, sobretudo em diplomas extensos (v. g., Códigos), à comunidade jurídica107;

iii) Fornecer uma compreensão mais efectiva dos normativos essenciais que norteiam o ordenamento jurídico108.

A republicação tem uma “natureza instrumental e não inovadora”109 quanto ao elemento literal das disposições.

105 MARIA CRISTINA COELHO, Regras e boas práticas em matéria de republicação, in Legislação. Cadernos de Ciência

da Legislação, n.º 53, Instituto Nacional de Administração, Outubro-Dezembro, 2010, pgs. 6, 12. 106 ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Artigo 119.º, in Comentário à Constituição Portuguesa, III Volume, 1.º Tomo, pg.

520. 107 Cfr. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA, Publicação, identificação e formulário dos diplomas: Breve

comentário à Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, in Legislação. Cadernos de Ciência da Legislação, n.º 41, Instituto Nacional de Administração, n.º 22, Abril-Junho, 1998, pg. 60; Acórdão do TC n.º 145/2009, de 24 de Março (disponível em http://www.tribunal-constitucional.pt/tc/acordaos/20090145.html).

108 ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Artigo 119.º, in Comentário à Constituição Portuguesa, III Volume, 1.º Tomo, pg. 520.

Considerando que a republicação “constitui um mero expediente de técnica legística, que visa facilitar a apreensão do conteúdo normativo dos a[c]tos legislativos”, Acórdão do TC n.º 160/2012, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120160.html, II, 4).

Veja-se, porém, as críticas que DAVID DUARTE dirige ao mecanismo da republicação: i) Ele é “um instrumento legitimador” ou “de legitimação” das alterações, “por ser com elas cúmplice” (DAVID DUARTE,

Repensar a organização e a qualidade do ordenamento jurídico: das normas secundárias à intervenção normativa estrutural, in Legislação. Cadernos de Ciência da Legislação, n.º 53, Instituto Nacional de Administração, Outubro-Dezembro, 2010, pg. 41 e nota 11); afirmando que “a republicação é, em rigor, um anexo, e constitui assim um exemplo juridicamente legitimado (…) de uma tradição crescente bastante censurável: a de legislar por anexo ou de nele constarem textos articulados de normas” (DAVID DUARTE, Repensar a organização e a qualidade do ordenamento jurídico: das normas secundárias à intervenção normativa estrutural, pg. 41 (nota 11));

ii) “é fonte de duplicação de enunciados normativos (com custos)” (DAVID DUARTE, Repensar a organização e a qualidade do ordenamento jurídico: das normas secundárias à intervenção normativa estrutural, pg. 41);

iii) “gera textos sistematicamente desarrumados, com os cortes e os aditamentos resultantes das alterações que a republicação tenta organizar” (DAVID DUARTE, Repensar a organização e a qualidade do ordenamento jurídico: das normas secundárias à intervenção normativa estrutural, in Legislação. Cadernos de Ciência da Legislação, n.º 53, Instituto Nacional de Administração, Outubro-Dezembro, 2010, pg. 41);

Em alternativa, correspondendo a uma alegada “necessidade extrema de limitar as alterações sucessivas ao mesmo acto”, o Autor propõe “a adopção de uma metodologia de intervenção normativa estadual (radical), vocacionada para as combater e, simultaneamente, afastar a pertinência da republicação: a imposição de um acto normativo apenas poder ser alterado por outro integralmente novo, vedando as revogações parciais e os aditamentos não sistematicamente organizados. O efeito primário associado, em razão do aumento do nível de exigência e da imposição de revogação global, seria o de constituir um travão à precipitação legislativa, quer na promoção de alterações, desde logo, quer, por via da limitação destas, na própria construção do regime originário, necessariamente mais consistente” (DAVID DUARTE, Repensar a organização e a qualidade do ordenamento jurídico: das normas secundárias à intervenção normativa estrutural, pg. 41).

Haveria outros efeitos, como o da cessação da vigência de actos normativos sistematicamente desorganizados (designadamente por via da exclusão das normas entretanto declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral; expulsão essa do instrumento normativo que poderia ser pensada pelo Legislador, designadamente prevendo normas novas) (cfr. DAVID DUARTE, Repensar a organização e a qualidade do ordenamento jurídico: das normas secundárias à intervenção normativa estrutural, pg. 41 e nota 12).

Haveria também uma maior simplicidade para o utilizador, que lidaria apenas com um acto normativo inalterado (DAVID DUARTE, Repensar a organização e a qualidade do ordenamento jurídico: das normas secundárias à intervenção normativa estrutural, pg. 41).

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Como é Jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional, “A alteração de um acto legislativo por um acto que não assume também a natureza de ‘acto legislativo’ é proibida constitucionalmente”110:

Assim, em dois Acórdãos, o TC fundamentou a sua opinião do seguinte modo:

a) «a Constituição assume o papel de “norma primária sobre a produção jurídica”, o que implica três importantes funções: a identificação das fontes de direito do ordenamento jurídico português, o estabelecimento de critérios de validade e eficácia de cada uma das fontes, e a determinação de competência das entidades que revelam normas de direito positivo (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, p. 605). Jorge Miranda fala, neste contexto, de uma autêntica “reserva de Constituição no domínio das competências legislativas, das formas e da força de lei” (Manual de Direito Constitucional, Tomo V, 3ª Edição, Coimbra Editora, 2004, p. 197). Como refere este último autor, se é certo que “a Constituição permite ao legislador escolher o tempo e as circunstâncias da sua intervenção e determinar ou densificar o seu conteúdo, desde que respeitados os fins, os valores e os critérios constitucionais (…) já no plano orgânico-formal é completa a vinculação, sob um tríplice aspecto: o dos órgãos, o das formas, e o da força jurídica.

«O artigo 112.º concretiza alguns dos princípios que enformam essa “reserva de Constituição”, alguns deles verdadeiros princípios inerentes ao Estado de Direito democrático: o princípio da hierarquia das fontes, o princípio da competência e o princípio da tipicidade das leis. Trata-se, nas palavras de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, de uma “norma concretizadora de vinculação constitucional do legislador quanto à produção normativa»” (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4ª Edição, 2010, p. 52).” (Acórdão do TC n.º 220/2011, II, n.º 8, Acórdão do TC n.º 222/2011, II, n.º 7.2).

b) «Relevo especial assume o princípio da tipicidade das formas de lei, ou, na terminologia de Jorge Miranda, um “princípio da fixação constitucional de competências legislativas” [Manual…, V, 3.ª ed.], p. 206). Desse princípio decorre desde logo que apenas são actos legislativos os definidos pela Constituição nas formas por elas prescritas – e que

Em nossa opinião, é verdade que há muitas vezes, nas alterações a Códigos, como o Código Penal, o Código de Processo

Penal ou o Código do Trabalho, precipitação legislativa e alterações inseridas conjunturalmente. Todavia, com o devido respeito, a tese da revogação global é desnecessária, em geral. E, no caso da Constituição

instrumental, a teoria aludida é tecnicamente inviável, uma vez que as alterações são apenas na especialidade. A republicação é o sistema mais apto que é conhecido, para alcançar os fins de conhecimento e de divulgação do Direito

positivo vigente. 109 Neste sentido, Acórdão do TC n.º 145/2009, de 24 de Março (disponível em http://www.tribunal-

constitucional.pt/tc/acordaos/20090145.html); DAVID DUARTE / ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO / MIGUEL LOPES ROMÃO / TIAGO DUARTE, Legística. Perspectivas sobre a concepção e redacção de actos normativos, Almedina, Coimbra, 2002, pgs. 196-199, em especial, pg. 197: “devem ser inseridas na republicação todas as alterações a que um determinado acto normativo esteve sujeito”; mas não mais do que essas; JOSÉ MANUEL MEIRIM, O Estado de direito democrático (rectificado republicado e, de novo, rectificado), in Legislação. Cadernos de Ciência da Legislação, n.º 51, Instituto Nacional de Administração, Janeiro-Março de 2009, pg. 74.

Considerando a republicação um mero acto organizativo, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Junho de 2009 (processo n.º 21/08.5GAGDL.S1, da 5.ª secção cujo relator foi o Conselheiro SOUTO MOURA (apud JOSÉ MANUEL MEIRIM, O Estado de direito democrático (rectificado, republicado e, de novo, rectificado), in Legislação. Cadernos de Ciência da Legislação, n.º 51, Instituto Nacional de Administração, Janeiro-Março de 2009, pg. 46).

Todavia, afigura-se excessivo considerar que a republicação não tem qualquer valor normativo (diversamente, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Junho de 2009 (processo n.º 21/08.5GAGDL.S1, da 5.ª secção cujo relator foi o Conselheiro SOUTO MOURA). A republicação tem um valor normativo imperfeito ou aproximativo, pois, por um lado, nela está contida uma ordem ressistematizada das matérias; por outro lado, existe a presunção ilidível de que o que nela está exarado faz fé; salvo se se demonstrar que a disposição não se encontra em conformidade com a lei de alteração.

110 Acórdão do TC n.º 220/2011, II, n.º 8, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110220.html; Acórdão do TC n.º 222/2011, II, n.º 7.2, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110222.html.

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são taxativamente identificados no artigo 112.º, n.º 1: as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais. Também o n.º 5 do artigo 112.º reforça o princípio da tipicidade dos actos legislativos e consequente proibição de actos legislativos apócrifos ou concorrenciais, com a mesma força e valor de lei, ao estipular: “Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”.

«A declaração de rectificação não reveste a natureza de acto legislativo, mas a de simples acto de correcção de um erro na execução material da publicação de uma norma, cujo procedimento se não aproxima, sequer, do relativo à produção legislativa.» (Acórdão do TC n.º 220/2011, II, n.º 9, Acórdão do TC n.º 222/2011, II, n.º 7.3, sublinhados nossos);

c) «Cabe, ainda, sublinhar que os actos legislativos possuem, como atributo, a característica da “força de lei”, categoria que faz apelo à ideia de resistência à revogação ou derrogação por outras normas hierarquicamente inferiores ou que não possuam força de lei (J.J. Gomes Canotilho, [Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ] (…), p. 609). De facto, salvo os casos expressamente previstos na Constituição, uma lei só pode ser afectada na sua existência ou alcance por efeito de uma outra lei. Os actos legislativos só podem ser afectados por lei subsequente ou por decisão do Tribunal Constitucional; trata-se da realidade que Jorge Miranda designa por “força de lei formal negativa”, que consiste “na capacidade de resistir ou reagir a actos doutra natureza (…) ou, em certos casos, a outras leis, não se deixando modificar, suspender, revogar ou destruir por eles”.

«Ao ter-se modificado ou realizado aditamentos à Lei n.º 7/2009 sem ter sido através de um novo acto legislativo, concedeu-se a esse acto não legislativo o atributo de “força de lei”, violando-se o princípio da tipicidade dos actos legislativos.

«Também nesse sentido se tem desenvolvido a jurisprudência constitucional, desde a Comissão Constitucional, que referiu, no Parecer n.º 39/79, de 13 de Dezembro (in Pareceres da Comissão Constitucional,vol. XI, p. 8): “actos legislativos apenas podem ser os definidos como tais pela Constituição. (…)”(Acórdão do TC n.º 222/2011, II, n.º 7.4; Acórdão do TC n.º 220/2011, II, n.º 10)111.

Assim, o exposto que obriga a que não só os normativos precedentes sejam respeitados112, mas também que a republicação não extravase as alterações introduzidas na especialidade.

A republicação não tem, nem pode ter, como objectivo convalidar ou sanar as inconstitucionalidades (ou ilegalidades) cometidas na republicação, fazendo com que esta prevaleça sobre as alterações efectivamente introduzidas. A republicação é inidónea para constituir a manifestação de uma intenção legislativa concreta, expressa e inequívoca113.

111 “Nem poderia deixar de ser de outro modo, sob pena de se frustrar a interdependência dos órgãos de soberania e evitar a

sujeição das leis ao processo legislativo e fiscalização preventiva da constitucionalidade (…) é, pois, um princípio geral de Direito Constitucional que está em causa: o princípio da tipicidade dos actos legislativos” (Parecer da Comissão Constitucional n.º 39/79, de 13 de Dezembro, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. XI, p. 8; posição esta reiterada pelos Acórdãos do TC números 222/2011, II, n.º 7.4; e n.º 220/2011, II, n.º 10.

112 Cfr. DAVID DUARTE / ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO / MIGUEL LOPES ROMÃO / TIAGO DUARTE, Legística. Perspectivas sobre a concepção e redacção de actos normativos, Almedina, Coimbra, 2002, pgs. 196-199; JOSÉ MANUEL MEIRIM, O Estado de direito democrático (rectificado, republicado e, de novo, rectificado), pg. 74.

113 Neste sentido, num aresto (o Acórdão n.º 672/2006, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060672.html), o TC acolheu a argumentação da recorrente, segundo a qual “a simples republicação da Lei Geral Tributária, operada pela Lei n.º 151/2001, de 5 de Junho, sem manifestação pela

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Ao contrário do que ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO afirma, existe uma “diferença de raiz” entre as disposições de republicação e as restantes disposições (inovatórias) de um acto legislativo, pois as segundas foram emitidas em momento posterior às primeiras114.

Julga-se que o argumento “laxista”, de não ser possível “exigir que, estando republicado um texto legal, se compare número a número, doze, treze, catorze, quinze alterações”, não colhe115.

É certo que o princípio da boa fé, na vertente da materialidade subjacente, tutela as expectativas dos cidadãos, o que pode conduzir ao preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado da existência de um facto (ou, se for o caso, de uma omissão indevida) e da ilicitude, nos termos gerais (cfr. artigo 22.º da CRP)116.

É verdade que a republicação é “parte integrante dos diplomas”, não um “apêndice escusado”117.

Assembleia da República de vontade política ou intenção legislativa de novação de todo aquele diploma nunca determinaria a ratificação implícita ou sanação da inconstitucionalidade orgânica de que enferma o art.º 63.º, n.º 5, da LGT, unicamente aprovado pelo Governo, através do DL n.º 398/98 (cfr. art.º 169.º da CRP)”.

O TC refere: “Não existindo qualquer referência, alteração ou ratificação ao art.º 63.°/5 da LGT, objecto do presente recurso, tendo este

sido simplesmente republicado, inexiste qualquer manifestação de vontade política da Assembleia da República ou novação do diploma, subsistindo a inconstitucionalidade originária, que não fica sanada pela sua mera republicação.

A mera republicação de cento e cinco normativos, entre os quais se encontra o normativo objecto do presente recurso e, em relação ao qual, não existe qualquer referência, alteração ou emenda, não constitui nem poderia constituir a manifestação de uma intenção legislativa expressa e inequívoca por parte da Assembleia da Republica.

Nestes termos, teremos que concluir que, ‘in casu’ inexistiu qualquer declaração concreta, expressa e inequívoca de tal intenção.” (Acórdão do TC n.º 672/2006, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060672.html, ponto 3, sublinhados nossos).

Nesse sentido, também, o Acórdão do TC n.º 160/2012: O TC apreciou a “lei parlamentar que [ao abrigo do artigo 169.º, n.º 1, da CRP] se limitou a introduzir várias alterações a

decreto-lei, sem que tivesse expressamente alterado a norma ora sob análise, ou seja, o artigo 95º, n.º 3, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação. Além disso, a mera republicação do Decreto-Lei n.º 555/99, determinada pelo artigo 4.º da Lei n.º 60/2007, não pode ser interpretada como a expressão livre do legislador parlamentar em fazer sua a norma constante daquele preceito legal. Aliás, a própria letra do preceito que determina a republicação é esclarecedora, ao determinar que o anexo republicado faz parte do Decreto-Lei n.º 555/99, com a reda[c]ção introduzida por aquela lei parlamentar.

Na verdade, a mera republicação de decreto-lei governamental, sem que seja acompanhada de alteração do(s) preceito(s) anteriormente ferido(s) de inconstitucionalidade orgânica”, não significa “uma integral novação de toda e cada uma das normas constantes do diploma republicado. Diferente seria, caso a Lei n.º 60/2007 tivesse procedido a uma revogação global do decreto-lei em causa, mediante aprovação de um novo texto normativo, ainda que este recuperasse uma parcela significativa das normas anteriormente vigentes. Não foi isso, porém, o que sucedeu.” (Acórdão do TC n.º 160/2012, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120160.html, II, 4).

Considerando também que a mera republicação é inidónea para efectuar uma novação, Acórdão do TC n.º 602/2005, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050602.html, 3.2.1.

114 Contra, cfr. ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Artigo 119.º, in Comentário à Constituição Portuguesa, III Volume, 1.º Tomo, pg. 535.

115 Em sentido contrário, ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Algumas notas sobre temas de Legística formal, in Legislação. Cadernos de Ciência da Legislação, n.º 41, Instituto Nacional de Administração, Outubro-Dezembro, 2005, pg. 24.

116 Para haver lugar a responsabilidade, terá ainda de haver um dano e o estabelecimento do nexo de causalidade entre o facto produzido e o dano.

117 Cfr. ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Artigo 119.º, in Comentário à Constituição Portuguesa, III Volume, 1.º Tomo, pg. 535.

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Todavia, a republicação não é um “texto certificativo”118, mas sim consubstancia uma técnica que, em geral, assegura o melhor conhecimento global do diploma emitido pelo órgão119.

Diversamente do que ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO afirma, pelo menos no que concerne à Constituição, o grau de diligência exigível - pelo menos, aos juristas - abrange também o cotejo com a lei de alteração.

A posição contrária permitiria a existência de alterações não devidamente emitidas pelo órgão competente a um texto de Direito positivo.

Isso não é tolerável, em face do princípio da legalidade “lato sensu”.

O exemplo dado, de haver uma divergência no Código Penal republicado, não o mais feliz, pois trata-se de uma matéria muito sensível, em que os princípios da segurança jurídica, da legalidade e da tipicidade prevalecem; bem como, em geral, na sucessão de leis no tempo, a regra da aplicação da lei mais favorável. Admite-se, pois, neste caso extremo, que o texto republicado possa prevalecer; ou, pelo menos, possa permitir aos destinatários invocar erro, por defeito, sobre elementos de Direito (artigo 16.º, n.º 1, 2.ª proposição, do Código Penal), ou erro sobre proibições (artigo 16.º, n.º 1, 3.ª proposição, do mesmo Código) (este, no caso dos crimes artificiais), no segundo passo da Teoria Geral da infracção; ou, eventualmente, erro sobre a ilicitude (artigo 17.º do Código Penal). Mas trata-se de uma excepção à regra.

De resto, o Autor afirma a sua ideia “tendencialmente” (pois ressalva a lei de alteração, quando a versão publicada tenha como consequência restringir direitos, liberdades e garantias, ou quando imponha novos deveres120).

Logo, não tendo havido sequer aprovação, nos termos gerais, pacíficos na Doutrina, uma disposição não alterada, se republicada com uma grafia diferente, é inexistente121, uma vez que não houve qualquer processo aprovatório (e, por maioria de razão, nem sequer houve maioria de aprovação)122. Logo, tal alteração é juridicamente inexistente.

118 Em sentido contrário, considerando, em geral, que “A publicação do texto normativo tem um ‘efeito certificatório’: o texto

publicado no ‘Diário da República’ é o texto legal”, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria..., 7.ª ed., pg. 879.

Ainda que se considerasse que a republicação se trataria de um texto “certificatório”, a presunção de conformidade com o original é “iuris tantum”, ressalvando-se, porém, a possibilidade de provar o contrário (neste sentido, cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria..., 7.ª ed., pg. 879).

119 Alguma Doutrina considera a republicação como uma modalidade ou técnica de consolidação legislativa (com essa opinião, CARLOS BLANCO DE MORAIS, Manual de Legística. Critérios científicos e técnicos para legislar melhor, Verbo, s.l., 2007, pg. 618; também DAVID DUARTE, Repensar a organização e a qualidade do ordenamento jurídico: das normas secundárias à intervenção normativa estrutural, pg. 41; e JOSÉ MANUEL MEIRIM, O Estado de direito democrático (rectificado, republicado e, de novo, rectificado), pg. 74).

Temos dúvidas quanto a esta opinião. Com efeito, a republicação não comporta nenhuma inovação, ainda que mínima, do teor literal das disposições aprovadas. A nosso ver, esse escolho, de não poder comportar qualquer inovação da letra das disposições, preclude a inserção no

quadro classificatório no âmbito da consolidação. 120 ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Leis da Justiça – Recolha e tratamento de legislação vigente na área da Justiça:

Relatório, in Scientia Iuridica, Janeiro-Março, 2007, p. 137; IDEM, Artigo 119.º, in Comentário à Constituição Portuguesa, III Volume, 1.º Tomo, pg. 536.

121 Há preterição dos requisitos de qualificação. Se uma lei aprovada sem quórum ou não aprovada com a maioria relativa padece de inexistência jurídica (neste sentido,

JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo VI, Inconstitucionalidade e Garantia da Constituição, 4.ª ed., revista e a[c]tualizada, Coimbra Editora, 2013, n.º 24.V, pg. 106), então uma lei de todo não aprovada também será inexistente, por argumento de maioria de razão.

122 Cfr. artigo 116.º, n.º 3, da CRP, como regra geral supletiva para a maioria exigida na AR (há casos em que a Constituição estabelece maiorias qualificadas: em relação às leis orgânicas (maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, na

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IV. Nestes casos, em que o desvalor associado à inconstitucionalidade formal, é o da inexistência, por via de regra, em nossa opinião, não poderá haver sanação por lei; muito menos, sanação retroactiva123.

Mesmo para quem admita a possibilidade de sanação de leis inexistentes, relativamente a matérias de facto (como MIGUEL GALVÃO TELES admite124) sempre considera que nunca pode haver não há “consolidação” (por falta de oposição), se faltar parte da votação na especialidade, porque aí não existiu qualquer acto de aprovação125.

A aprovação não fica adquirida126.

6. Outras hipotéticas vias de sanação das inconstitucionalidades formais

6.1. Imagine-se que a é emitida uma lei de revisão constitucional, alterando todas as disposições segundo a grafia estilizada do AO90 ou incorporando um preceito, do qual deriva a norma de o AO90 passar a pertencer à Constituição formal, através de um reenvio receptício.

Haverá sanação por superveniência de lei de revisão constitucional, constitucionalizando o AO90 expressamente?

Abstraindo da violação de limites materiais de revisão constitucional127, consideramos que, tratando-se de inconstitucionalidade formal que gera inexistência jurídica, o parâmetro temporal superior, a aferir em termos de juízo de constitucionalidade, é averiguado no momento da publicação da lei, contendo a republicação parcialmente viciada de inconstitucionalidade e de inexistência.

votação final global, nos termos do artigo 168.º, n.º 5; os casos de maioria de dois terços, mencionados no artigo 168.º, n.º 6:

As leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções são as referentes às matérias constantes das alíneas do artigo 168.º, n.º 6, als. a) e c), da CRP.

Afigura-se discutível se as alíneas b), d), e) e f) carecem também dessa maioria, ou se ela apenas vale na votação na especialidade (matéria que não abordaremos na economia do presente escrito)

123 Também com esta opinião, diversamente, considerando existir impossibilidade de sanação retroactiva de leis inexistentes, JORGE MIRANDA, Referenda, p. 72; DIOGO FREITAS DO AMARAL / PAULO OTERO, O valor jurídico-político da referenda ministerial, pg. 81.

124 Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, Parecer, in O Presidente da República e o Parlamento, pg. 151: “vale, ente nós, uma preclusão relativamente a factos que, no processo parlamentar, não hajam sido oportunamente contestados” (MIGUEL GALVÃO TELES, Parecer, in O Presidente da República e o Parlamento, pg. 151).

Assim, até três dias úteis após a publicação no Diário da Assembleia da República, os deputados podem reclamar das inexactidões, tendo o Presidente de decidir em vinte e quatro horas, existindo ainda a possibilidade de recurso para o Plenário ou para a Comissão Permanente (artigo 157º do Regimento).

O artigo 158º do Regimento determina: “considera-se definitivo o texto sobre o qual tenham recaído reclamações ou aquele a que se chegou depois de decididas as reclamações apresentadas”.

MIGUEL GALVÃO TELES que propende a considerar aqui um costume parlamentar como um costume “praeter costitutionem”.

125 Acórdão. do TC n.º 868/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34.º volume, p. 115; MIGUEL GALVÃO TELES, Parecer, in O Presidente da República e o Parlamento, pg. 151 (nota 50).

126 Cfr. MIGUEL GALVÃO TELES, Parecer, in O Presidente da República e o Parlamento, pg. 151. Apenas o Professor HEINRICH EWALD HÖRSTER levanta a possibilidade de sanação através da Lei do Orçamento

Geral do Estado (in O imposto complementar e o Estado de Direito, in Revista de Direito e Economia, ano III, n.º 1, 1977). 127 V. IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades…, in O Direito, I/II, 4.1.1, pgs. 141-145.

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Assim, não poderá haver uma sanação retroactiva, com eficácia “ex tunc”, por via de revisão constitucional, da inconstitucionalidade formal perpetrada128.

6.2. É certo que, nos casos de nulidade, a AR ou o Governo poderão reproduzir o conteúdo, desta feita com as formalidades necessárias, e determinar a retroactividade.

Porém, formalmente, trata-se de uma lei da AR, que não sana os actos consequentes praticados ao abrigo das normas republicadas e, por conseguinte, não aprovadas, feridas de inexistência jurídica.

6.3. Também propendemos a rejeitar a sanação da lei, por mero decurso do tempo129.

7. A fase da promulgação

7.1. O Presidente da República não deve promulgar actos legislativos feridos de inexistência jurídica (ainda que parcial)

É relativamente pacífico que a promulgação não implica concordância com o diploma130.

Independentemente de o actual titular do cargo de Presidente da República, reeleito em 2011, ter ratificado o 2.º Protocolo Modificativo ao AO90, em 29 de Julho de 2008, e de publicamente ter assumido estar de acordo com a “aplicação” interna do AO90131, o Presidente da República nunca se

128 V. IVO MIGUEL BARROSO, Sobre o problema da inconstitucionalidade pretérita post-constitucional, in Política &

Direito, n.º 4, Julho-Setembro de 2013, Diário de Bordo, pgs. 8-27. A nossa apreciação das várias testes sobre a matéria encontra-se no n.º 2, pgs. 18-23. A nossa posição, expressa neste estudo, encontra-se no n.º 3, nas pgs. 23-26, e 3.2, pg. 27.

129 Também com esta opinião, cfr. RUI MEDEIROS, Valores jurídicos negativos da lei inconstitucional, in O Direito, ano 121.º, Julho-Dezembro de 1989, pg. 526.

Em sentido contrário, PAULO OTERO considera que o decurso do tempo permite a consolidação jurídica de situações de facto criadas à margem do Direito e cuja duração se arrasta no tempo (PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, pg. 1069). “a ordem jurídica como que “esquece”, (…) a invalidade subjacente à situação de facto, (…) passando a reconhecer efeitos válidos” (PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, pg. 1069).

Porém, este raciocínio de PAULO OTERO seria aplicável apenas relativamente à invalidade (ainda que nulidade radical), não à inexistência (sem prejuízo de o Autor, adiante, também defender o reconhecimento da atribuição de efeitos jurídicos a situações factuais de ilegalidade administrativa (actuação administrativa inválida), segundo uma imposição dos princípios da igualdade e da justiça, a efeitos emergentes de certas hipóteses de inexistência jurídica – cfr. PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, pg. 1071).

130 Neste sentido, JORGE MIRANDA: “Promulgando, o Presidente da República não está necessariamente a concordar com os diplomas. Se assim tivesse de ser, no caso de contrastes significativos entre as orientações políticas de base do Presidente em concreto e a maioria parlamentar de momento, correr-se-ia o risco de permanentes ou sucessivas crises institucionais.” (JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., n.º 85.V, pg. 311; no mesmo sentido, RUI GUERRA DA FONSECA, A suspensão de actos administrativos no Projecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, in e.publica, Revista Eletrónica de Direito Público, n.º 2, Junho de 2014, http://e-publica.pt/asuspensaodeeficacia.html, nota 69).

Segundo a opinião de CARLOS BLANCO DE MORAIS, “O ato de promulgação não significa uma codecisão ou co[r]responsabilização [co-responsabilização] do Presidente com o ato legislativo do Parlamento. Significa, essencialmente, que, na contabilidade entre as hipotéticas valorações positivas e negativas do ato feitas pelo Chefe de Estado, as primeiras superaram as segundas no juízo do mesmo titular.” (CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 570, pg. 461).

131 O Presidente da República declarou, em 2012:“Todos os meus discursos saem com o acordo ortográfico mas eu, quando estou a escrever em casa, tenho alguma dificuldade e mantenho aquilo que aprendi na escola. Mas isso é algo privado em casa, coisa diferente é a divulgação oficial de todos os documentos da Presidência” (notícia “Cavaco elogia Acordo Ortográfico mas confessa que em casa ainda escreve à moda antiga”, declarações à Agência Lusa, in Público, 22 de Maio de 2012).

Daqui se depreende com verosimilhança, como se disse, que o Senhor Presidente da República utiliza o conversor “Lince” (ou, em alternativa, outro conversor, como o da Porto Editora), para “converter” os seus discursos em “acordês”; ou outros correctores ortográficos.

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pode eximir à sua incumbência de não promulgar diplomas que, parcialmente – no que diz respeito à republicação -, não tenham sido votados ou sequer sujeitos às anteriores fases regulares do processo legislativo. O PR deve sempre averiguar se os processos legislativos, parlamentar e governamental, foram respeitados.

Assim, quando tenha dúvidas sobre a regularidade do processo legislativo, o PR deve pedir informações ao órgão emissor (AR ou Governo)132.

Ora, como foi dito, houve carência absoluta de processo legislativo, relativamente à alteração dos enunciados linguísticos constantes dos textos republicados.

Mesmo se se tratasse de um caso de nulidade – e não de inexistência jurídica, como é o caso -, seria imperioso reconhecer ao PR o poder de recusar a aplicação de uma lei com fundamento na sua inconstitucionalidade133.

Este raciocínio é tanto mais persuasivo “in casu”, se se pensar que o acto, enviado para promulgação, é parcialmente inexistente.

Ora, nestas situações, JORGE MIRANDA entende que o PR “tem o poder e o dever de não promulgar diplomas juridicamente inexistentes.”134, designadamente por falta de votação na especialidade135, e, em nossa opinião, por maioria de razão, quando houve carência total das fases anteriores do procedimento legislativo. Assim, entendemos que a promulgação é vedada136. Como

132 Actualmente, não se afigura tão necessário quanto anteriormente, no que diz respeito à AR, que o PR peça elementos

ao Presidente da AR, tendo em conta que estão disponibilizados na Internet, atentos os artigos 112.º, n.º 3 (que determina a publicação integral das série dos Diário da Assembleia da República no portal da Assembleia da República na Internet) e o artigo 113.º do Regimento da AR de 2007: “Todos os actos e documentos de publicação obrigatória em Diário, bem como todos os documentos cuja produção e tramitação seja imposta pelo Regimento, devem ser disponibilizados, em tempo real, no portal da Assembleia da Internet e na intranet.”

Quanto aos diplomas legislativos do Governo (bem como quanto a decretos regulamentares, igualmente sujeitos a promulgação – cfr. artigo 134.º, alínea b), da CRP), o PR pode pedir esclarecimentos suplementares.

Veja-se, a este respeito, o n.º 9.3. do Regimento do XIX Governo Constitucional: “Em sede de promulgação (…) pelo Presidente da República, caso seja necessária a recolha de informações complementares, elas são prestadas à Presidência da República pelo Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros.” (n.º 9.3. do Regimento do XIX Governo Constitucional, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011, de 11 de Julho (http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jmm_MA_13687.pdf; esta disposição não sofreu alteração posterior, por parte da Resolução do Conselho de Ministros n.º 51/2013, de 8 de agosto de 2013).

133 Neste preciso sentido, cfr. RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, diss., Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, pg. 285.

Ao exposto não obsta o n.º 2 da RCM n.º 8/2011 (que determinou a publicação dos actos no “Diário da República” com o AO90). Mesmo os actos do PR susceptíveis de publicação no “Diário da República” não devem estar sujeitos à aplicação do “acordês”, devido à norma do n.º 2 da RCM estar ferida de inconstitucionalidades orgânica, formal e material.

134 (JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., n.º 85.II, pg. 308. 135 Neste sentido, cfr. JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., n.º 85.II, pg. 308. 136 Abstraímos, também aqui, de considerar que o AO90 viola limites materiais de revisão constitucional; pelo que, na

opinião de MARCELO REBELO DE SOUSA, haveria uma situação de “inidentificabilidade material” (cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, O valor jurídico do acto inconstitucional, I, Lisboa, 1988, pgs. 176-178; IDEM, Inexistência jurídica, pg. 237-238; IDEM,), conducentes à inexistência jurídica.

Para uma Doutrina minoritária, a violação do conteúdo essencial de direitos, liberdades e garantias conduz à inexistência jurídica (MARCELO REBELO DE SOUSA, O valor jurídico do acto inconstitucional, I, Lisboa, 1988, p. 271; IDEM, Inexistência jurídica, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. V, Lisboa, 1993, pgs. 231-244; FAUSTO DE QUADROS, Expropriação por utilidade pública in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. IV, Lisboa, 1991, pg. 311; A protecção da propriedade privada pelo Direito Internacional Público, Almedina, Coimbra, 1998, pg. 565 (e no ensino oral de Direito Administrativo, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa); ISALTINO MORAIS / JOSÉ MÁRIO F. DE ALMEIDA / RICARDO L. LEITE PINTO, Constituição da República Portuguesa. Anotada e Comentada, Rei dos Livros, Lisboa, 1983, pgs. 23, 46).

Porém, esta posição está longe de ser consensual na Doutrina (cfr., em sentido contrário, em termos genéricos, as concepções restritivas, segundo as quais apenas os casos de inidentificabilidade orgânica e inidentificabilidade formal poderão predicar o desvalor da inexistência jurídica (JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 25.III, pgs. 108-109; CARLOS

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bem refere JORGE MIRANDA, “o Presidente da República não pode promulgar o diploma, ainda que o queira fazer”137.

Também a promulgação com alteração do diploma está absolutamente vedada. Embora não pelas razões temporais, usualmente invocadas pela Doutrina, com base no artigo 278.º, n.º 7, 2.ª parte, da CRP, e no seu desenvolvimento dogmático138. O PR nunca poderia alterar, “sponte sua”, que a republicação do acto promulgando, fazendo com que aquela fosse feita com o AO90139.

Caso o PR viole a violação da regra da promulgação vedada, tal acarreta a inconstitucionalidade formal do acto140, gerando nulidade, e não anulabilidade141, uma vez que esse vício orgânico e formal fere pressupostos ou elementos essenciais do acto142.

Concordamos também com JORGE MIRANDA, no que toca à impossibilidade de o PR não pode exercer o veto imediato143, previsto nos artigos 136.º, números 1 e 4, da CRP144.

A dúvida consiste em saber se o PR tem a possibilidade de requerer a fiscalização preventiva da constitucionalidade e, em caso de pronúncia do TC pelo TC, o veto translativo por inconstitucionalidade, nos termos do artigo 279.º, n.º 1, da CRP.

BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., pgs. 193 ss.; PAULO OTERO, Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional, Lex, Lisboa, 1993, pgs. 127-128.

137 JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 80.V, pg. 311. 138 Cfr. JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., n.º 85.I, pgs. 307-308; cfr. n.º 87.VI, pg. 317. 139 O Presidente da República não tem , têm poderes para alterar o texto enviado para promulgação; ou seja, não pode

interferir no conteúdo do acto (v. IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades…, I, 5.1.1, in O Direito, 2013, III, pg.. 450 (nota 17)).

140 Cfr., embora sem se referir a estes casos de inexistência jurídica parcial do decreto, CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, Tomo II, O Direito do contencioso constitucional, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2011, n.º 468, pg. 41.

141 CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, Tomo II, O Direito do contencioso constitucional, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2011, n.º 468, pg. 41.

142 Cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 185, pg. 254. Não está preenchido o primeiro pressuposto da mera irregularidade, que CARLOS BLANCO DE MORAIS extrai do

artigo 277.º, n.º 2, da CRP (cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 185, pg. 254). 143 Por razões que não cabem na economia deste estudo, entendemos que este “veto” pode ser mais do que “político”,

invocando razões jurídicas de ilegalidade qualificada (por violação de lei de valor reforçado), de ilegalidade simples e de “mau Direito” (admitindo esta última hipótese, v. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 581, pg. 469), embora não razões de inconstitucionalidade, uma vez que, para tal, existe ao dispor do PR a possibilidade de accionar um processo específico de aferição da constitucionalidade – a fiscalização preventiva da constitucionalidade (artigo 278.º, números 1 e 3).

Por estas razões, a expressão e a construção jurídica do Professor JORGE MIRANDA em relação ao “veto político”, na ausência de qualquer base na letra dos artigos 136.º, números 1 e 4, da CRP, e sequer do Regimento da AR (como o próprio Autor reconhece - JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., n.º 87.I, pg. 314) , não só não é a mais adequada, mas também se afigura algo redutora (diferentemente, utilizando as expressões como sinónimos, cfr. JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., n.º 84.III, b), pg. 305).

Também por isso, preferimos designar o veto previsto no artigo 279.º, n.º 1, como “veto por inconstitucionalidade”, e não “veto jurídico” (em sentido diverso, JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., n.º 87, pgs. 313-317; PAULO OTERO, Direito Constitucional Português, II, 1.ª ed., 17.4., a).III, pg. 249, e c).VII, pg. 251).

144 Também neste sentido, cf. JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 80.V, pg. 311. Aliás, a existir a possibilidade de veto imediato – que, a nosso ver não há -, o PR teria de fazê-lo “in totum”, relativamente

a todo o diploma, e não apenas relativamente a parte dele (JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., n.º 85.IV, pg. 311; “O Presidente não pode destacar estes ou aqueles preceitos do decreto de Assembleia (e o mesmo vale quando recebe um decreto do Governo) para o efeito de promulgação ou de veto” (JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., n.º 85.IV, pg. 311; AFONSO D’OLIVEIRA MARTINS, Promulgação, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. VI, Lisboa, 1994).

Em sentido algo diverso quanto à promulgação, cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 571, pg. 461 (na 1.ª ed., pgs. 416-417), uma vez que defende a “promulgação com reservas”. Em todo o caso, o Mestre da Escola de Lisboa defende que “o veto não assume carácter parcial” (CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, Tomo II, O Direito do contencioso constitucional, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2011, n.º 507, pg. 75), sem prejuízo de admitir o “veto-construtivo”, a par daquele que chama “veto-sanção” (v. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 579, pg. 467; opinião esta que não acompanhamos)

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7.1.1. Aqui, existe um dissenso na Doutrina:

a) JORGE MIRANDA entende que “O Presidente da República não veta, nem deixa de vetar. Realiza, sim, uma tarefa prévia, inerente à sua competência promulgativa: a de verificar se estão presentes ou não os requisitos para o acto vir a ser subsumido no tipo constitucional de lei”145.

O PR, “verificando que tais requisitos (de qualificação) não procedem, não promulga e devolve o texto” à AR ou ao Governo, para que estes, se assim o entenderem, retomem o procedimento146.

Nesta devolução do diploma à AR, sem que isso signifique veto, não se verifica “Nenhum conflito entre órgãos de soberania”147.

b) Em sentido contrário, RUI MEDEIROS148 aparentemente entende que o PR deverá requerer a fiscalização preventiva149-150.

Em todo o caso, as posições referidas não são extremadas, uma vez que JORGE MIRANDA admite a possibilidade de fiscalização preventiva, caso tenha dúvidas, não podendo o TC recusar-se a conhecer desse pedido151.

145 JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 80.V, pg. 311; JORGE MIRANDA, Artigo 278º, VIII, in Constituição

Portuguesa Anotada, tomo III, pg. 724. 146 Cfr. JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 80.V, pg. 311. 147 JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 80.V, pg. 311; JORGE MIRANDA, Artigo 278º, VIII, in Constituição

Portuguesa Anotada, tomo III, pg. 724. 148 RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pg. 144. Aparentemente no mesmo sentido, MARCELO REBELO DE SOUSA, O valor jurídico do acto inconstitucional, p. 183 e

nota. 149 Os argumentos aduzidos por RUI MEDEIROS são os seguintes: a) “a inexistência por falta dos requisitos constitucionais na formação das normas também se reconduz à categoria genérica da

inconstitucionalidade, para efeitos da respectiva fiscalização” (Acórdão do TC n.º 320/89, citando GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição…, Volume II, Coimbra Editora, 1984, 2.ª ed., p. 475; RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pg. 144);

b) Pelo menos nos casos em que se esteja perante um decreto da AR enviado ao PR para ser promulgado, “não pode (…) reconhecer-se” ao PR “o poder de, invocando «inexistência», se recusar a promulgar um diploma que lhe tenha sido sujeito para promulgação, sem ter de recorrer ao veto, pois fora um caso em que a doutrina prevalecente admite tal hipótese - casos de confirmação parlamentar de um decreto vetado por inconstitucionalidade, nos termos do artigo 279.º, n.º 2, da Constituição -, a Constituição seguramente que quis excluir a possibilidade de o PR deixar de promulgar um diploma, sem ter de o vetar.” (Acórdão do TC n.º 320/89, 2.1; cfr. (RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pg. 144).

“Efectivamente, não existindo entre nós um poder de apelação” para o Tribunal Constitucional em caso de conflito entre órgãos de soberania, não se pode aceitar que o juízo de inconstitucionalidade do Presidente da República, proferido sem intervenção do órgão com competência específica para administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional, possa prevalecer em termos absolutos sobre a posição contrária assumida pela Assembleia da República” (RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pg. 144).

c) Por último, a fiscalização preventiva constitui “um instrumento de garantia da Constituição contra violações grosseiras e inequívocas vindas dos actos normativos mais importantes” (JORGE MIRANDA, Manual…, VI), e, por isso, deve também abranger o controlo dos vícios de que padecem as pseudo-leis (RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pg. 144).

Considerando que o facto de certos actos normativos se considerarem inexistentes “não exclui a possibilidade de controlo nem tão-pouco torna tal controlo despiciendo. Por razões de certeza e segurança jurídica, afigura-se aconselhável uma declaração de inexistência”, cfr. CARLOS PROENÇA, Inexistência, in Enciclopédia da Constituição Portuguesa, coordenação de JORGE BACELAR GOUVEIA / FRANCISCO PEREIRA COUTINHO, Quid Juris, Lisboa, 2013, pg. 208.

150 Sobre o problema da fiscalização da constitucionalidade das leis inexistentes, no qual se colocam outras questões, como a da articulação entre o TC e os demais tribunais, v. RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pgs. 138-143; PAULO OTERO, Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional, Lex, Lisboa, 1993, pp. 113-115.

151 Cfr. JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 4.ª ed., n.º 80.V, pg. 311. Um dos casos em que sucedeu fiscalização preventiva de actos inexistentes foi a analisada pelo Acórdão do TC n.º 320/89

(relatado por VITAL MOREIRA).

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Em nosso entender, propendemos a acompanhar a posição de JORGE MIRANDA. Trata-se, em rigor, de uma lacuna da Constituição, que, exauridas que estejam as possibilidades da extensão analógica, deve ser preenchida segundo o artigo 10.º, n.º 3, do Código Civil (“a norma que o intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema”, oriunda do pensamento de ARISTÓTELES, na Ética a Nicómaco, V, 14152, como um substituto do legislador” (“Ersatzgesetzgeber”)153.

Apenas discordamos de JORGE MIRANDA, quando escreve que não poderia ser desenhado um conflito entre AR ou Governo, por um lado, e PR, por outra banda. Tal conflito é perfeitamente possível de suceder, “de facto”; embora prevaleça o juízo presidencial neste potencial conflito institucional.

Não obstante concordarmos com o essencial da teoria de JORGE MIRANDA, tal como o próprio Autor admite, o PR não está inibido de requerer a fiscalização preventiva, sobretudo para dissipar dúvidas, embora tal fiscalização não se afigure necessária e condição “sine qua non” para a resolução do caso.

Aqui, há duas hipóteses.

i) Caso o TC se pronuncie pela inconstitucionalidade, o PR é obrigado a vetar (artigo 279.º, n.º 1, da CRP).

O veto é, também, aqui, “in totum” (diferentemente do caso francês - v. artigo 62.º da Constituição francesa de 1958, que prevê a separabilidade, em que há um “controlo-promulgação “ex abrupto” de leis mutiladas pelo binómio Tribunal Constitucional-Presidente da República”154.

Competirá ao autor da norma, e só a ele, o juízo de considerar se o preceito constitucional será “também politicamente separável do resto do diploma”155;

ii) No caso de o TC não se pronunciar pela inconstitucionalidade, poder-se-á colocar o problema de os juízos do TC e do PR conflituarem.

Neste caso, tendo o PR requerido a fiscalização preventiva, não tendo o TC pronunciado pela inconstitucionalidade, no todo ou em parte, em correspondência com o pedido do PR, evidentemente o PR não pode exercer o veto por inconstitucionalidade ou veto translativo, por falta do pressuposto decisional, consubstanciado num Acórdão do TC.

Porém, propendemos a considerar que o seu poder de devolução, sem que signifique veto, se mantém incólume, devendo ser seguida a teoria de JORGE MIRANDA, exposta supra.

152 Cfr., por exemplo, MANUEL DOMINGUES DE ANDRADE, Ensaio..., pg. 85. 153 Cfr. A. CASTANHEIRA NEVES, A redução política do pensamento metodológico-político, in IDEM, Digesta, 2.º vol.,

Coimbra Editora, 1995, pg. 399. 154 Cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, Tomo II, O Direito do contencioso constitucional, 2.ª

ed., Coimbra Editora, 2011, n.º 577, pg. 77. 155 Cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, Tomo II, O Direito do contencioso constitucional, 2.ª

ed., Coimbra Editora, 2011, n.º 507, pg. 77.

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7.1.2. O mesmo raciocínio exposto se aplica, “mutatis mutandis”, aos dois Representantes da República, de ambas as Regiões Autónomas: estes órgãos não devem assinar decretos aprovados pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma, que republiquem diplomas com o AO90.

Também aqui existe o dissenso doutrinário sobre o que o Representante da República poderá fazer: devolver, sem que signifique veto, ou requerer a fiscalização preventiva156.

Tal como em relação ao PR, entendemos que o Representante da República deverá devolver o diploma à Assembleia Legislativa da Região Autónoma.

7.2. A não sanação da inconstitucionalidade através da promulgação

Pergunta-se: poderá a promulgação, por parte do Presidente da República, ou a assinatura, por parte do Representante da República, sanar os vícios de inconstitucionalidade aludidos?

Uma primeira teoria consideraria que a resposta seria afirmativa.

A promulgação pelo Chefe de Estado constituiria uma prova “absoluta” da existência da lei, e que por isso os tribunais não poderiam investigar se o texto é ou não conforme ao texto votado pelo Parlamento157.

A promulgação conteria um comando de aplicação dirigido à Administração, gerador do dever de obediência por parte desta, devido a fundar-se na “executoriedade” da lei inconstitucional (ZANOBINI)158.

156 Com esta última opinião, RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pg. 144 (nota 509). 157 Em sentido favorável a essa opinião, BONNET, De la promulgation, thèse, p. 122 (apud, argumentativamente, FÉZÁS

VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 113).

Na fórmula da promulgação da Constituição de 1911, o Chefe do Estado declara que o texto por ele promulgado é o votado, e esta declaração impor-se-ia aos tribunais.

158 Este argumento foi desenvolvido por vários Autores alemães, durante a Monarquia Constitucional do II Reich; durante a Monarquia Constitucional italiana e portuguesa.

A fórmula da “sanção” (enquanto “faculdade de estatuir”) estabelecida no artigo 133.º da Carta Constitucional de 1826 continha uma ordem de execução: “Mandamos portanto a todas as auctoridades, a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente, como n’ella se contém” (curiosamente, o trecho é oriundo do artigo 113.º da Constituição de 1822; ele seria também consagrado no artigo 70.º da Constituição de 1838).

Cfr. ANDRÉ SALGADO DE MATOS, A fiscalização administrativa da constitucionalidade. Contributo para o estudo das relações entre Constituição, Lei e Administração Pública no Estado Social de Direito, diss., Almedina, Coimbra, 2004, pg. 227 e nota 809, 228 e 229, com referências bibliográficas.

Dado que, no processo legislativo parlamentar, a lei era fruto da co-autoria das Cortes e do Rei, poder-se-ia entender que a sanção real, sendo um autocontrolo legislativo da constitucionalidade, bastaria, uma vez que essa sanção poderia ser denegada por razões de constitucionalidade (cfr. ANDRÉ SALGADO DE MATOS, A fiscalização administrativa da constitucionalidade, pg. 136) (porém, a verdade é que tal sucedeu apenas uma vez, no reinado de D. MARIA II).

Não obstante a mudança da forma institucional, de monárquica para republicana, a concepção aludida sobreviveu; tendo estado patente durante a Constituição de Weimar na Alemanha, e em Portugal. Com base nos artigos 3.º, n.º 2 (a lei obriga, se for “promulgada nos termos desta Constituição”), 30.º (com a fórmula sacramental do acto da promulgação), 31.º e 36.º da Constituição de 1911, sob clara influência italiana, MARNOCO E SOUZA passou a referir-se à “executoriedade” da lei (JOSÉ FERREIRA MARNOCO E SOUSA, “Constituição Politica da República Portuguêsa. Commentario”, F. França Amado, Coimbra, 1913 (= obra republicada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2011, com o título “Constituição Politica da República Portuguesa. Comentário”), pp. 53; 457), escamoteando a ausência explícita à “ordem de execução” (que, segundo o Autor, decorreria de “a força executória” ser considerada “ínsita à própria lei” (JOSÉ FERREIRA MARNOCO E SOUSA, Constituição Politica…, p. 458).

A mesma teoria da promulgação como ordem de execução, com referência expressa ao conceito de executoriedade da lei, por MARCELLO CAETANO, na vigência da Constituição de 1933 (in A Constituição de 1933. Estudo de Direito Político, 2.ª ed., Coimbra, 1957, p. ).

Cfr. ANDRÉ SALGADO DE MATOS, A fiscalização administrativa da constitucionalidade. Contributo para o estudo das relações entre Constituição, Lei e Administração Pública no Estado Social de Direito, diss., Almedina, Coimbra, 2004, pgs. 227 e nota 809, 228 e 229, com referências bibliográficas; 143.

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Esta tese viria a ser criticada por MIGUEL GALVÃO TELES159 e JORGE MIRANDA160, na vigência da Constituição de 1933, pelo que foi ultrapassada: a promulgação não tem a natureza de “cláusula executiva”.

A teoria, ligada às Monarquias constitucionais, tem, pois, hoje, um carácter “anacrónico”161.

Entendemos que a resposta à pergunta formulada é negativa.

A promulgação “não significa a declaração autêntica da constitucionalidade dos actos a que respeita”162.

Com efeito, uma republicação, com parcelas do acto jurídico-público contendo disposições não aprovadas, não votadas, nem sequer tendo sido sujeitas às fases sequenciais do processo legislativo (parlamentar ou governamental), encontra-se ferida de inexistência jurídica (supra).

8. A fase da referenda ministerial

8.1. Também a referenda ministerial (artigos 140.º, n.º 1, e 134.º, alínea b), da CRP) do Primeiro-Ministro é relativa ao acto da promulgação presidencial; não tendo, pois, autonomia ou independência para poder aspirar a sanar um acto inexistente de raiz.

Na prática institucional da referenda, na vigência da Constituição de 1976, o instituto constitui um acto “notarial” ou “certificatório”163, “fundamentalmente ritual”164. Não há história da recusa da referenda ministerial por parte do Governo165.

8.2. Porém, em nosso entender, em rigor, o Governo deveria recusar o acto de referenda em relação à promulgação presidencial, uma vez que o acto que é seu pressuposto da promulgação é juridicamente inexistente (opinião que é consensual na Doutrina)166.

Porém, como bem referem GASTON JÈZE e FÉZÁS VITAL, a teoria do papel do Chefe de Estado, se é admissível em

Monarquias, “é inaceitável nos países de instituições democráticas, em que o Presidente da República mais não é do que um cidadão investido duma ‘competência objectiva’ especial, criada e limitada pela Constituição” (GASTON JÈZE, La promulgation des lois, in Revue du Droit Public et de la Science Politique, 1918, pp. 378 ss.; FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 113).

Tal teoria muito menos é de aceitar ainda nos países em que há fiscalização jurisdicional da constitucionalidade e em que os tribunais são elevados a órgãos de soberania, independentes, que podem exercer “faculdades de impedir” sobre os poderes legislativo e executivo (cfr. FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 114)

159 MIGUEL GALVÃO TELES, Eficácia dos tratados, pp. 77-80, 155-185; IDEM, Direito Constitucional, pp. 22-24. 160 JORGE MIRANDA, Contributo para uma Teoria da Inconstitucionalidade, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1996, pp. 130-132. 161 Cfr. SALGADO DE MATOS, A fiscalização administrativa da constitucionalidade, pg. 230, com referências nas notas

827 a 829. 162 Já assim, na vigência da Constituição de 1933, cfr. MIGUEL GALVÃO TELLES, Sumários desenvolvidos relativos ao

Título II da Parte III do Curso (Direito Constitucional Português Vigente), AAFDL, Lisboa, 1970-71, 1970-71, pg. 23. 163 GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, p. 877. 164 Cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional, Tomo I, As Funções do Estado e o Poder

Legislativo no Ordenamento Português, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2012, n.º 582, pg. 470. 165 CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional, Tomo I, 2.ª ed., n.º 582, pg. 470. 166 Neste sentido, JORGE MIRANDA, Manual..., V, 4.ª ed., n.º 92.V, pgs. 331-332: “Referenda não só não obrigatória como

também vedada apenas se concebe quando o decreto da Assembleia não tenha atingido a maioria necessária, originariamente”; AFONSO D’OLIVEIRA MARTINS, La revisión…, p. 589.

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DIOGO FREITAS DO AMARAL / PAULO OTERO entendem que, em todos os actos, deve o Governo averiguar se os actos incidem sobre actos provenientes do órgão competente e se foram respeitadas as formalidades constitucionalmente previstas para a sua feitura167-168.

167 DIOGO FREITAS DO AMARAL / PAULO OTERO, O valor jurídico-político da referenda ministerial. Estudo de Direito Constitucional e Ciência Política, Lex, Lisboa, 1997, pg. 53.

168 a) Em relação aos decretos para valer como decretos-leis, a Comissão Constitucional, no Parecer n.º 5/80 (in Pareceres da Comissão Constitucional, vol 11, págs. 129-160), relatado por LUÍS NUNES DE ALMEIDA, chamou aí a atenção para o facto de “uma parte da doutrina entender que, embora a assinatura ministerial se não confunda com a referenda - devendo o diploma, em rigor, voltar ao Governo depois da promulgação a fim de ser referendado - , no entanto «como a vontade positiva deste quanto ao resultado final já se manifestou com a assinatura, torna-se simples e económico aproveitá-la, convolando-a em referenda», como dizia Jorge Miranda, (Decreto, pág. 37)”.

Haveria uma “praxe constitucional reiterada” nesse sentido. b) A questão voltou a ser colocada no Acórdão do TC n.º 309/94, em que a constitucionalidade do Decreto-Lei n.º 433/82

era discutida. Desta feita, a diferença ao caso anterior era a de que se tratava do mesmo Governo, e não de dois Governos sucessivos. O Ministério Público considerou que, embora à assinatura do Presidente da República, se não tenha seguido a do Primeiro-

Ministro, “o diploma foi assinado, aquando da sua aprovação em Conselho de Ministros, pelo Vice-Primeiro-Ministro (actuando em substituição do Primeiro-Ministro) e pelo Ministro da Justiça”. Mais referiu que, “na época, era prática habitual de o Governo não referendar expressamente os diplomas que este havia aprovado e remetido ao Presidente da República. Finalmente, atendendo a esta prática, ao facto de entre a aprovação do diploma e a sua promulgação terem decorrido menos de dois meses, e de ter sido o mesmo Governo a estar em funções à data da aprovação e da promulgação do diploma, deverá considerar-se valer aqui como referenda a mencionada assinatura do Primeiro-Ministro em exercício – embora não tivesse cumprido o formalismo imposto pelo artigo 8.º, n.º 7, da Lei n.º 3/76, de 10 de Setembro, vigente nessa altura”, preceito que estabelecia que, à assinatura do Presidente da República, se deveria seguir a do Primeiro-Ministro (II, n.º 2).

O Acórdão do TC, relatado por LUÍS NUNES DE ALMEIDA, refere que a referenda não tem como “função (…) certificar ou autenticar a assinatura do Presidente da República” (II, n.º 11).

Porém, começou por distinguir os casos: aqueles em que os “actos (…) dependeriam de apenas de livre decisão do Presidente ou em que este age de forma vinculada - caso frequente no que se refere à promulgação de leis emanadas do Parlamento”; ii) dos casos que “pertencem à iniciativa política” do Governo (II, n.º 11); ou seja, estão dependentes de proposta do Governo (há ainda um terceiro grupo de casos: aqueles dependentes de consulta do Governo, como bem referem DIOGO FREITAS DO AMARAL / PAULO OTERO).

O TC considerou que, ao arrepio do actual artigo 140.º da CRP, “não se pode ignorar que, com a cobertura de uma parte substancial da doutrina (…), a prática constitucional reiterada até à entrada em vigor da Lei nº 6/83, de 29 de Julho, (…) era a de considerar que, não tendo havido substituição do Governo que aprovou um determinado diploma, a assinatura do Primeiro-Ministro e ministros competentes (quando constitucionalmente exigida) se podia convolar em referenda. E esse entendimento não foi infirmado pelo citado Parecer nº 5/80, da Comissão Constitucional (…)” (II, n.º 11).

O TC, em sede de fiscalização concreta, aceitou esta tese, embora reportada à data do decreto para valer como decreto-lei (1982), considerando que, tendo sido assinado, na fase aprovatória, “o Decreto-Lei nº 433/82 deve ter-se por referendado deve ter-se por referendado, considerando o específico circunstancialismo (…) referido, que permitia entrever, à época, a existência de um costume constitucional no sentido de a assinatura dos diplomas esse poder convolar em referenda” (II, n.º 11).

Assim, o TC admitiu a convolação das assinaturas (acto formal de imputação do diploma ao órgão) em referenda ministerial (controlo governamental “ex post” sobre a promulgação de um acto legislativo.

Portanto, mesmo não havendo referenda ministerial, a Jurisprudência citada do TC desvalorizou-a completamente, ao arrepio do artigo 140.º, números 1 e 2, da Constituição; no que pode ser considerado uma tentativa de mutação constitucional jurisprudencial “contra constitutionem” (neste sentido, muito crítico em relação a esta sentença, cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito Constitucional, Tomo I, 2.ª ed., n.º 582, pg. 470, cujo raciocínio acompanhamos (também cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria..., 7.ª ed., pg. 647; em sentido contrário, considerando que o TC “se mostrou complacente com um costume constitucional contrário à Constituição”, cfr. MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, Lições de Introdução à Teoria da Constituição, 1.ª ed., Lisboa, 2013, n.º 3, pg. 19)).

c) O raciocínio exposto pela Jurisprudência constitucional não é novo. Trata-se da recuperação de uma prática institucional na vigência da Constituição de 1933, em que se dispensava o acto autónomo de referenda sobre a promulgação de decretos-leis e decretos regulamentares entendendo-se que a vontade política do Governo já se havia manifestado com a sua assinatura”, convolando-se a assinatura em referenda (cfr. JORGE MIRANDA, Decreto, pg. 37; DIOGO FREITAS DO AMARAL / PAULO OTERO, O valor jurídico-político da referenda ministerial, pgs. 30, 82, 89).

d) Entendemos que a referenda, embora seja uma assinatura, não deve confundir-se com a assinatura ministerial como “referenda” do acto de promulgação do Presidente da República (neste sentido, cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria..., 7.ª ed., pg. 647). Assim, após a promulgação do PR, o acto normativo, ainda que seja um decreto-lei, deve voltar ao Governo, para que o Primeiro-Ministro assine.

A posição da Jurisprudência constitucional, ainda que circunscrita ao período inicial de vigência da CRP, constituiu uma mutação tácita jurisprudencial, ablativa do sentido decorrente do actual artigo 140.º da CRP.

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IVO MIGUEL BARROSO Republicações de leis e de Códigos com as grafias do “Acordo Ortográfico” de 1990 : 37

8.2.1. A propósito do Estatuto da Carreira Docente Universitária de 1980, PAULO OTERO levanta o problema da falta de referenda do PR169.

O Autor considera que, estimando-se que a Lei n.º 19/80, (inserida num processo de ratificação parlamentar, introduziu alterações) e, nos termos do art. 7.º, que determinou a republicação do Estatuto da Carreira Docente Universitária), não procedeu a uma sanação da inexistência170.

Porém, o ilustre Autor considera que importa extrair um sentido útil da nova publicação, segundo uma regra de aproveitamento dos actos jurídicos, que é preferível a uma interpretação conducente ao vazio legislativo171

Destarte, “a nova publicação operou uma recepção material do conteúdo normativo do primeiro diploma, e simultaneamente produzido uma novação do seu fundamento de validade”172, acompanhada de prática reiterada de aplicação dessas normas.

“A Lei de 1980, efectuando a mencionada recepção do conteúdo do Estatuto da Carreira Docente Universitária, veio conferir às suas normas um novo título de fundamentação e uma força jurídica que anteriormente não possuíam, podendo dizer-se que elas deixaram de ser as mesmas: as normas do Decreto-Lei de 1979 padeciam de inexistência jurídica, enquanto as normas recebidas pela Lei n.º 19/80 teriam ganho um novo fundamento jurídico de validade, gozam de existência jurídica”173 (PAULO OTERO).

9. A fase da publicação

I. Analise-se, por fim, o papel da fase de publicação174, no processo legislativo parlamentar ou governamental.

A Imprensa Nacional – Casa da Moeda encontra-se vinculada (embora inconstitucionalmente) a “aplicar” o AO90, devido a ser uma empresa pública, abrangida pelo n.º 1 da RCM n.º 8/2011, que determinou a “aplicação” obrigatória do AO90 à Administração indirecta do Estado.

Mais: o n.º 2 da RCM n.º 8/2011 veio “Determinar que, a partir de 1 de Janeiro de 2012, a publicação do ‘Diário da República’ se realiza conforme o Acordo Ortográfico”175.

169 Cfr. PAULO OTERO, Direito Administrativo - Relatório de uma disciplina apresentado no concurso para professor

associado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2.ª ed., suplemento da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2001, 2.ª ed., pg. 14.

170 PAULO OTERO, Direito Administrativo – Relatório..., 2.ª ed., pg. 16. 171 Cfr. PAULO OTERO, Direito Administrativo – Relatório..., 2.ª ed., pg. 16. 172 PAULO OTERO, Direito Administrativo – Relatório..., 2.ª ed., pg. 16. 173 PAULO OTERO, Direito Administrativo – Relatório..., 2.ª ed., pg. 16. Cfr. JORGE MIRANDA, Parecer sobre o Relatório com o Programa, os conteúdos e os métodos do ensino teórico e prático da

cadeira de Direito Administrativo – I apresentado pelo Doutor Paulo Otero, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, volume XL, ns. 1 e 2, Lisboa, 1999, pgs. 717-718.

174 Consideramos a fase da publicação como uma fase autónoma do processo legislativo, como GOMES CANOTILHO propõe, designando-a como “fase de integração da eficácia” (em sentido contrário, JORGE MIRANDA, Manual…, V, 4.ª ed.).

175 A Editora Almedina tem referido, como colocado, como nota prévia, aos Códigos recentemente alterados: “Toda a legislação contida na presente obra encontra-se actualizada de acordo com os diplomas publicados em Diário da

República, independentemente de terem já iniciado ou não a sua vigência ou não. Os textos legislativos apresentam a grafia com que foram publicados em Diário da República. Por determinação da RCM

8/2011, de 1 25-01, a partir de 1 de Janeiro de 2012 tornou-se obrigatória a aplicação do Acordo Ortográfico à publicação do Diário da República, razão pela qual coexistem ambas as grafias.” (assim, por exemplo, Código de Processo Civil, MIGUEL MESQUITA, 2015, 34.ª edição, Almedina, Coimbra, Novembro de 2014, pg. anterior à pg. 1).

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Portanto, pergunta-se: poderá a Imprensa Nacional – Casa da Moeda (não o Governo ou a AR directamente), “motu proprio”, proceder a alterações ortográficas conforme as grafias do AO90, maxime utilizando o conversor Lince?

Uma primeira opinião consideraria que a resposta seria afirmativa. Poder-se-ia argumentar que a Imprensa Nacional – Casa da Moeda poderia suprir “lapsos ortográficos” (artigo 5.º, n.º 1, da Lei-formulário176.

Só que, desde logo, essas rectificações devem revestir forma expressa - “e são feitas mediante declaração do órgão que aprovou o texto original, publicada na mesma série” do Diário da República.”.

Como se aludiu, “A alteração de um acto legislativo por um acto que não assume também a natureza de ‘acto legislativo’ é proibida constitucionalmente”177

Ainda que assim não se entendesse, essa fundamentação, que vale em geral, nunca pode valer neste caso, por várias razões.

II. O n.º 2 da RCM n.º 8/2011 é a norma desse regulamento que padece de flagrantes e crassas inconstitucionalidades orgânica, formal e materiais178. A própria RCM n.º 8/2011 padece de várias inconstitucionalidades totais que a inquinam inelutavelmente179 e que ditam a inconstitucionalidade consequente dos actos praticados à sua sombra, em particular a utilização do conversor Lince na “acordização” dos textos enviados para publicação.

III. Deste modo, entendemos que a Imprensa Nacional – Casa da Moeda, mediante as parcelas de textos legislativos manifestamente inconstitucionais e inexistentes, se encontra habilitada, senão mesmo constitucionalmente obrigada, a corrigir, nas republicações, preceitos que não tenham sido aprovados.

Se a competência de desaplicação administrativa de leis inconstitucionais nulas tem mesmo carácter vinculado para parte da Doutrina180, assumindo o carácter de um dever dos órgãos e agentes

176 Para as leis ordinárias (artigo 3.º, alínea c), da Lei n.º 74/98), existe um regime especial para as rectificações, segundo o

qual estas são admissíveis, desde que “exclusivamente para correcção de lapsos gramaticais, ortográficos (…)” (artigo 5.º, n.º 1, da Lei n.º 74/98, na redacção actual, após a Lei n.º 26/2006)176, não para a eliminação ou alteração mais profunda das disposições.

177 Acórdão do TC n.º 220/2011, II, n.º 8, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110220.html; Acórdão do TC n.º 222/2011, II, n.º 7.2, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110222.html.

178 V. IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades…, in O Direito, 2013, I/II, pgs. 127-139, 107-115, 118-127; IVO MIGUEL BARROSO / FRANCISCO RODRIGUES ROCHA, Guia jurídico contra o “Acordo Ortográfico” de 1990, pgs. 43-45.

Quanto à imposição do AO90 à Imprensa Nacional – Casa da Moeda, como empresa pública pertencente à Administração indirecta do Estado, devido às normas constantes do n.º 1 (“aplicação” do AO90 à Administração indirecta do Estado) e 2 da RCM n.º 8/2011, designadamente por violação do artigo 199.º, al. d), da Constituição (devido ao exercício de poderes de direcção em relação à Administração indirecta), v. IVO MIGUEL BARROSO / FRANCISCO RODRIGUES ROCHA, Guia jurídico contra o “Acordo Ortográfico” de 1990, pgs. 59-60, 62, 63-66, 67-69.

179 V. IVO MIGUEL BARROSO / FRANCISCO RODRIGUES ROCHA, Guia jurídico contra o “Acordo Ortográfico” de 1990, pgs. 45-59.

180 Com essa opinião, ANDRÉ SALGADO DE MATOS, A fiscalização administrativa da constitucionalidade. Contributo para o estudo das relações entre Constituição, Lei e Administração Pública no Estado Social de Direito, diss., Almedina, Coimbra, 2004, pgs. 400, 411; RUI MEDEIROS, Valores jurídicos negativos da lei inconstitucional, in O Direito, ano 121.º, Julho-Dezembro de 1989, p. 532; IDEM, A decisão de inconstitucionalidade, pp. 204-205;PAULO OTERO, O poder de substituição…, II, p. 536; MARCELO REBELO DE SOUSA, O valor jurídico do acto inconstitucional, I, p. 181.

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da Administração, então, por maioria de razão, nos casos de inexistência jurídica, tal é pacífico na Doutrina.

III. Já as modificações, feitas pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, “sponte sua”, poderão ser apenas de lapsos, de gralhas (conforme se defenderá); nunca da ortografia do Português europeu, plenamente em vigor por via costumeira, pelo menos até 2011.

IV. Poder-se-á objectar a esta proposta metódica o seguinte argumento: Um texto legislativo ficaria com ortografias díspares, ou seja, com antinomias ortográficas (por exemplo, grafar “colectiva” e “coletiva”). A questão a saber é que grafia deveria ser alterada: se a ortografia tradicional, em princípio mais abundante nos Códigos; ou se a grafia do AO90, do conversor Lince e do “Vocabulário Ortográfico do Português” ou outro Dicionário, sendo de registar que todos eles são díspares.

a) A inconstitucionalidade é manifesta ou evidente, ostensiva e grave, requisito que alguma Doutrina aduz - com esta

opinião, ANA FERNANDA NEVES, O Direito disciplinar da função pública, vol. II, FDUL, Lisboa, 2007, Cap. II, Secção I, 3.3.3.1.3, a), (6).1, pg. 231.

Também VIERA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais…, pp. 216 ss.; JORGE MIRANDA / JORGE PEREIRA DA SILVA, Artigo 18.º, XV, in Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., JORGE MIRANDA / RUI MEDEIROS, Coimbra Editora, 2010, pg. 330; MARIA DA GLÓRIA GARCIA / ANTÓNIO CORTÊS, Artigo 266.º, IV, in Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, 1.ª ed., JORGE MIRANDA / RUI MEDEIROS, p. 565; ANA RAQUEL GONÇALVES MONIZ, A recusa de aplicação de regulamentos pela Administração com fundamento em invalidade. Contributo para a Teoria dos regulamentos, diss., Almedina, Coimbra, 2012, pg. 381-383 (apesar de não considerar a teoria da evidência um critério decisivo); MARIANA MELO EGÍDIO, Responsabilidade civil extracontratual do Estado por (des)aplicação de leis inconstitucionais, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Jorge Miranda, volume II, Direito Constitucional e Justiça Constitucional, coordenação de MARCELO REBELO DE SOUSA / FAUSTO DE QUADROS / PAULO OTERO / EDUARDO VERA-CRUZ PINTO, FDUL, Coimbra Editora, 2012, pg. 743.

b) Em sentido contrário, RUI MEDEIROS considera que a linha de fronteira entre inconstitucionalidades manifestas e não manifestas é difícil de traçar. “[F]alta fundamento para justificar uma tão grave limitação ao poder administrativo de fiscalização da constitucionalidade das leis” (in A decisão de inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, diss., Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, pg. 229, pgs. 228-232, 239, 252):

a) Desde logo, as leis manifestamente inconstitucionais, na acepção restrita, são “extremamente raras. A excepção constituída

pelas hipóteses de inconstitucionalidade manifesta tem, assim, um alcance muitíssimo limitado” (RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pgs. 228-229);

b) Tal seria uma grave debilitação do princípio da constitucionalidade (RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pg. 229);

c) “não basta (…) lançar mão da teoria da evidência em matéria de invalidade, ligando a um vício (de inconstitucionalidade (desse tipo, associado à ideia de gravidade, a consequência da nulidade-inexistência (…)” (RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pg. 229);

d) Essa teoria não se harmoniza com o regime disciplinar dos funcionários e agentes do Estado (artigo 271.º da Constituição) (RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pgs. 229-230, 238), nem com o regime da responsabilidade civil solidária da Administração e dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, pelos danos resultantes da aplicação de uma lei inconstitucional (RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pgs. 231, 272).

e) O carácter manifesto da inconstitucionalidade apenas releva para a formulação de um juízo de reprovabilidade (RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pg. 231, 252; v. 232); ao passo que uma inconstitucionalidade não evidente releva na determinação da baixa culpabilidade da conduta ilícita (RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pg. 252);

f) “a ausência de uma ilegalidade manifesta, no sentido restrito (…), não legitima a cega obediência aos comandos hierárquicos ilegais (ao menos nos casos em que a ilegalidade seja “objectivamente averiguável pelo inferior)” (RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, pgs. 229, 238; em igual sentido, RUI MEDEIROS / TIAGO MACIEIRINHA, Artigo 271.º, in Constituição da República Portuguesa. Anotada, vol. III, 1.ª ed., JORGE MIRANDA / RUI MEDEIROS, Coimbra Editora, 2007, VI, pg. 643);

Não impondo também a exigência de a “ilegalidade” ser manifesta, DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito

Administrativo, vol. I, 3.ª ed. (reimpressão da ed. de Nov. de 2006), com a colaboração de LUÍS FÁBRICA, CARLA AMADO GOMES e JORGE PEREIRA DA SILVA, Almedina, Coimbra, 2007, n.º 179-E (da responsabilidade de JORGE PEREIRA DA SILVA), n.º 214, pgs. 824, 827-829.

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Porém, no estado caótico em que vivemos, a disparidade ortográfica não, de todo, um caso isolado, sucedendo amiúde, devido à falta de “assimilação” das regras do AO90 por parte do escrevente (devido a não fixar regras ilógicas e não poder memorizar palavra por palavra); estado de coisas esse que é directamente imputável ao Estado, por ter ratificado o 2.º Protocolo Modificativo ao AO90 e, sobretudo, por ter antecipado o final do “prazo de transição” em 5 anos para todo o sistema de ensino (n.º 3 da RCM n.º 8/2011); e em 4 anos e 9 meses para a Administração Pública (directa, indirecta e autónoma) (n.º 1 da RCM) e para as publicações no “Diário da República” (n.º 2 da RCM).

10. A solução por parte dos órgãos legiferantes

I. Uma primeira alternativa conjecturável, do ponto de vista do Direito positivo, para corrigir a situação “de facto” criada, seria aplicar as regras aplicáveis à rectificação, constantes do artigo 5.º da Lei-formulário – Lei n.º 74/98, com alterações posteriores.

II. À face da Constituição de 1911, FÉZÀS VITAL defendia genericamente que, “Verificando-se o texto publicado não corresponde ao texto votado, deve o Poder Executivo ordenar a publicação do verdadeiro texto legal no ‘Diário do Govêrno’”181.

“[A] rectificação deve constar dum diploma de fôrça igual à do diploma rectificado, isto é, deve ser promulgada pelo Presidente da República [182] e referendada” pelo Primeiro-Ministro183.

Porém, “Esta publicação não retroage porém os seus efeitos à data da entrada em vigor da ‘lei rectificada’”184, já que já estará, em princípio, fora do período de “vacatio legis”185 (excepto se este for muito alargado).

“As rectificações feitas por qualquer outro meio nenhum valor jurídico têm.”186.

10.1. A inaplicabilidade directa do instituto da rectificação

O instituto da rectificação tem sido feito com o AO90, também incorrectamente.

Será que deveria o instituto da rectificação ser utilizado para corrigir a situação de inexistência parcial do texto republicado, fazendo a devida a reposição dos preceitos da lei alterados inconstitucionalmente?

181 FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra,

15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 115. 182 Considerando, à luz da Constituição de 1911, que a promulgação ou assinatura por parte do Presidente da República

não poderia ser substituída pela assinatura dum Ministro, cfr. FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 115.

183 Neste sentido, no essencial, cfr. FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 115.

184 FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 115.

185 Neste sentido, cfr. FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 115.

186 FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 115.

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À luz do ordenamento vigente, deparamo-nos aqui, desde logo, com a não subsunção na previsão da norma, que fixa o âmbito das rectificações admissíveis: não se trata da “correcção de lapsos (…) ortográficos” (cfr. artigo 5.º, n.º 1, da Lei-formulário). “Incluem-se nos erros carecidos de posterior rectificação as faltas ou de lapsos (…) do diploma legislativo (erros materiais)”187.

Ora, tal não é o caso: trata-se de erros atinentes ao procedimento – rectius, à falta de procedimento - de formação do próprio acto188 normativo, “aplicando” uma grafia de forma consciente, deliberada e intencional; pelo que a aplicação da Lei-formulário é duvidosa nos casos de falta de aprovação; sendo apenas conjecturável nos casos de o texto da republicação ter sido feito apenas na fase da publicação, por parte da Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

Por outro lado, ainda que assim não se entendesse, não seria curial aplicar o prazo curto dos números 2 e 3 do artigo 5.º da Lei-formulário, que referem que “As declarações de rectificação devem ser publicadas até 60 dias após a publicação do texto rectificando.” (artigo 5.º, n.º 2, da Lei-formulário), sob pena de nulidade do acto de rectificação (artigo 5.º, n.º 3); pois tal precludiria as rectificações, que seriam necessárias, de muitos outros actos.

Por estas razões, o instituto da rectificação não é aplicável em geral.

10.2. A solução preferível: a republicação por parte da Imprensa Nacional – Casa da Moeda

I. Independentemente de a alteração ter sido feita exclusivamente por parte da Imprensa Nacional – Casa da Moeda ou pelos órgãos legiferantes, julga-se que, não se aplicando o regime legal das rectificações, se trata de uma rectificação atípica, não regulada pela previsão do artigo 5.º, n.º 1, da Lei-formulário; e que (salvo se se considerar que pudesse haver sanação por decurso do tempo), pode ser feita a todo o tempo, sem o prazo do n.º 2 do artigo 5.º da Lei mencionada.

Poder-se-á levantar o problema de esta solução fazer perigar o princípio da segurança jurídica, sobretudo se a rectificação for feita tardiamente.

No entanto, não vemos outra alternativa senão a proposta.

II. Vamos um pouco mais longe: estando a Imprensa Nacional – Casa da Moeda obrigada pelo princípio da constitucionalidade (artigo 3.º, n.º 3, da CRP), existe um poder-dever de fiscalização administrativa da constitucionalidade, devendo rejeitar, “ab initio”, a aplicação do n.º 2 da RCM n.º 8/2011.

Em relação aos diplomas enviados para republicação com as grafias estilizadas do AO90, a Imprensa Nacional – Casa da Moeda deverá promover a sua “desacordização”, seguindo o Português padrão costumeiro:

Uma republicação sem alteração das disposições, que se mantêm, assim, intocadas, deve ser emitida por parte da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, desta feita com a republicação correcta; ou seja, com as partes alteradas com o AO90 ficando com este; e as partes inalteradas ficando grafadas com a ortografia tradicional costumeira portuguesa.

187 Cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria..., 7.ª ed., pg. 880. 188 Cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria..., 7.ª ed., pg. 881.

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Deverá, pois, haver a reposição em vigor dos preceitos legais ilegitimamente alterados, como se não tivessem sido alterados.

10.3. Há ainda outra solução, mas, desta feita, exige uma decisão político-legislativa por parte da Assembleia da República ou por parte do Governo: uniformizar a grafia: a ortografia normal ou, com maior segurança e, a nosso ver, inconstitucionalmente, as grafias decorrentes da “aplicação” do AO90189.

Não sendo o texto republicado correspondente ao texto alterado, e na impossibilidade de ser feita uma rectificação “tout court”, a solução alternativa a ser seguida por parte dos órgãos legiferantes, no intuito de resolver o problema, a contento das formalidade constitucionais, passa pela aprovação de um acto com idêntica dignidade normativa190, e seguindo o “iter” procedimental prescrito pela

189 A grafia que tem sido oficializada em Portugal por parte do AO90 levanta o sério risco de estar a adoptar uma grafia

materialmente inconstitucional e ilegal “sui generis”, por violação do próprio AO90. Inconstitucionalidade total, dada a violação do artigo 43.º, n.º 2, da CRP; do valor da estabilidade ortográfica, gerando o

actual caos linguístico (v. IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades…, in O Direito, III, II Parte, 8.2.4, pgs. 505-507 (notas 152, 153 e 154)); da incompetência de o Estado impor uma Reforma ortográfica, à luz da concepção personalista que enforma a Constituição-norma de 1976 (v. artigo 1.º); do princípio da proporcionalidade, uma vez que o AO90 não se afigura minimamente necessário para rigorosamente nenhum interesse público; do artigo 48.º, n.º 2, da CRP, uma vez que não houve qualquer debate público.

Por outra banda, temos as inconstitucionalidades parciais: diversas normas do AO90 violam o Património cultural de Língua portuguesa, no seu todo e da variante europeia, protegido constitucionalmente (artigos 78.º, n.º 1, e n.º 2, al. c), 9.º, alíneas e) e f), da CRP); as normas que consagram “as pronúncias cultas da língua” (conceito desactualizado, mas que remete para a pronúncia entre o Rio Mondego e Lisboa)) violam o princípio da igualdade, ao nível do território, instrução, ascendência e, porventura, a “raça” (cfr. artigo 13.º, n.º 2, da CRP).

A “aplicação” selectiva do Tratado do AO90, fazendo tábua-rasa das facultatividades, viola o próprio Tratado, na medida em que, tal interpretação que não tem apoio na letra e no espírito do AO90, que concede facultatividades irrestritas, e não circunscritas, aos níveis designadamente das Bases IV (consoantes “c” e “p”), IX (acentuação) e XIX (maiúsculas e minúsculas).

Por outro lado, as diversas “aplicações” do AO90, em muitos lemas (entradas de Dicionário), viola o elemento teleológico da unificação possível face ao Português do Brasil (v. Preâmbulo do AO90); não se devendo utilizar palavras menos usadas no Brasil (exemplos de palavras usadas minoritariamente no Brasil são: “aspeto”, em lugar de “aspecto”; “respetivo”, em lugar de “respectivo”).

Evidentemente, palavras inventadas pela alegada “aplicação” do AO90, inexistentes tanto no Português do Brasil como no Português de Portugal pré-AO90, devem ser consideradas como espúria: por exemplo, “aceção” (por “acepção”), “conceção” (por “concepção”), “contraceção” (por “contracepção”), “concetual” (por “conceptual”), “anticoncetivo” (por “anticonceptivo”, “deteção” (por “detecção”), “impercetível” (por “imperceptível”), “receção” (por “recepção”), “perceção” (por “percepção”; “otimismo” (por “optimismo”), “otimista (por “optimista”) (o Português do Brasil só grafa “ótimo” sem “p” neste lema; as restantes palavras da mesma família mantêm o “p” etimológico e pronunciado).

O “Vocabulário Ortográfico do Português” tem uma série de erros de facto. Na verdade, trata-se de uma autêntica tentativa de importação de culturas (a brasileira), só que com um grave problema:

não se teve o mínimo cuidado de consultar um Dicionário brasileiro, para saber como as palavras são grafadas… (cfr. IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades…, in O Direito, III, II Parte, n.º 5, pgs. 493 ss.; quanto ao conversor Lince, v. ibidem, números 4 a 4.2, pgs. 483-488).

O exposto – a desunificação de lemas entre as ortografias do Brasil e a ortografia que foi imposta em Portugal - configura uma violação do artigo 78.º, n.º 2, alínea d), da CRP.

A supressão arbitrária das consoantes “mudas” “c” e “p” viola também o princípio da identidade europeia (artigo 7.º, n.º 5, 1.ª parte, da CRP: “Portugal empenha-se no reforço da identidade europeia (…)”), na medida em que estão consagradas noutras euro-línguas, tanto Românicas (Castelhano, Francês, Italiano e Romeno) quanto Germânicas (o Inglês, a língua franca da ciência e da comunicação global, que teve um período de influência tardia do Latim, devido à ocupação por parte dos Normandos; e o Alemão) (v., por todos, FERNANDO PAULO BAPTISTA, «Por amor à Língua Portuguesa». Ensaio genealógico-filológico, científico-linguístico e pedagógico-didáctico, visando a superação crítica do actual ‘Acordo Ortográfico / 1990’, Edições Piaget, Lisboa, 2014).

A RCM n.º 8/2011, ao tornar o AO90 obrigatório – embora, curiosamente, grafando na variante do Português europeu, implica várias restrições a direitos, liberdades e garantias, tais como a liberdade de expressão escrita, a liberdade de criação artística, a liberdade de aprender e de ensinar, o direito ao desenvolvimento da personalidade.

190 GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria..., 7.ª ed., pg. 881.

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Constituição e pelas normas infraconstitucionais relativas aos processos legislativos governamentais191. Ou seja, deverá ser fazer uma nova lei e uma “nova publicação”192.

Ou seja, a situação volta ao início, devendo, no final, ser colocada em anexo ao diploma a republicação por acto legislativo da mesma natureza do acto anterior aprovatório.

11. A fiscalização por parte da “sociedade de intérpretes da Constituição”, até ser emitida uma eventual republicação conforme com a Constituição

Enquanto não for emitida a republicação correcta, a inexistência não pode prevalecer.

As passagens, não votadas e nem sequer tendo sido objecto das fases anteriores do processo legislativo, “devem considera-se não escritas e, conseqùentemente tudo deverá passar-se como se não tivessem sido publicadas.”193.

Abstraindo das inconstitucionalidades do AO90194, considera-se que os aditamentos totalmente novos, tal como os aditamentos parciais, e as substituições195 devem ser considerados com as grafias do AO90, intocados, portanto196.

Já as emendas amplificativas e, sobretudo, os preceitos que não sofreram qualquer alteração na especialidade por parte da AR ou do Governo, no diploma legislativo respectivo (ou seja, que não foram discutidas nem votadas), mas que aparecem “convertidos” com as grafias do AO90 na republicação, devem ser desconsiderados pelos intérpretes.

O poder judicial e os restantes intérpretes da Constituição não deverão “aplicar” as partes textuais incorrectamente publicadas, com o AO90.

A não ser assim, a lei ou decreto-lei, apesar de parcialmente inexistente, produziriam na prática os efeitos pretendidos: os preceitos legais alterados não seriam recuperados.

É sobre este assunto que nos debruçaremos de seguida.

11.1. Fiscalização jurisdicional da constitucionalidade de leis parcialmente inexistentes

Como já FÉZÀS VITAL defendia em 1925, “Aos abusos (…) cometidos nesta matéria devem os tribunais opor, em nome dos bons princípios, a mais decidida e enérgica resistência. Só assim se tornarão dignos da confiança que a Constituição neles depositou, ao confiar-lhes o encargo de fiscalizarem a legitimidade constitucional dos diplomas que são chamados a aplicar.”197

Não obstante, caso os textos legislativos venham a ser republicados, “de facto”, com o AO90, os tribunais encontram-se compelidos a desaplicar a grafia das disposições que não foram objecto de

191 Cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria..., 7.ª ed., pg. 881. 192 Cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria..., 7.ª ed., pg. 879. 193 FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra,

15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 114; DUGUIT, Traité de Droit Constitutionnel, 2.ª ed., vol. 4.º, p. 635. 194 Caso as inconstitucionalidades totais e materiais parciais do Tratado do AO90 sejam, tal implica a inconstitucionalidade

consequente da RCM n.º 8/2011 e de todos os actos de “aplicação” do AO90. 195 Cfr. artigo 127.º, n.º 3, do Regimento da Assembleia da República n.º 1/2007. 196 As eliminações de preceitos ou as ou supressões de fragmentos de preceitos, as emendas retirando texto (cfr. artigo

127.º, n.º 2, do Regimento da AR), não entram nestas “contas”. 197 FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra,

15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 115.

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alteração, nem de qualquer processo legislativo, ao abrigo do poder genérico de desaplicação de normas inconstitucionais (artigo 204.º da CRP)198.

Assim, devem os tribunais aplicar o texto efectivamente aprovado, “abstraindo da passagem não contidas no texto votado”199.

Parafraseando FÉZÀS VITAL, “Os tribunais devem (…) aplicar o artigo tal como foi votado, já que as palavras incluídas no texto publicado devem considerar-se não escritas.”200. A inexistência jurídica destas não implica a inexistência jurídica do artigo com redacção aditada, “na parte em que coincide com o texto votado” pelo Parlamento ou pelo Governo”201.

11.1.1. Quanto ao Tribunal Constitucional (TC), aplica-se exactamente o mesmo poder-dever de desaplicação202 de enunciados legais, não objecto de qualquer processo legislativo e, por conseguinte, inconstitucionais e juridicamente inexistentes203.

Quanto à grafia das sentenças do TC, não há qualquer habilitação válida para que o AO90 (rectius, na maioria das vezes, o conversor Lince) seja “aplicado”:

O n.º 2 da RCM n.º 8/2011 padece de inconstitucionalidade orgânica por usurpação de poderes, que acarreta inexistência jurídica parcial, pois um regulamento, emitido ao abrigo da função administrativa, não pode pretender regular a função jurisdicional, ou seja, a grafia dos Acórdãos do TC objecto de publicação no “Diário da República”204.

Destarte, não existe qualquer norma legal habilitadora para que os tribunais utilizem o AO90.

No caso das sentenças publicadas em “Diário da República”, existe uma base habilitadora, só que não tem força de lei e padece de inexistência jurídica.

198 Já neste sentido, à luz do artigo 63.º da Constituição de 1911, cfr. FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos

legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 114: os tribunais devem negar-se a aplicar um texto que, promulgado pelo Presidente da República, não foi votado pelo Congresso.

199 Cfr. FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 114.

200 Cfr. FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 115.

201 Cfr. FÉZÁS VITAL, Votação e publicação de textos legislativos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 55.º, Coimbra, 15 de agosto de 1925, n.º 2281, pg. 115.

202 Neste sentido, considerando que “enquanto verdadeiro tribunal, o Tribunal Constitucional também não pode, nos feitos submetidos a julgamento, aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados. Por isso, (…) o fiscal da constitucionalidade é competente para recusar incidentalmente a sua aplicação.” RUI MEDEIROS, Artigo 204.º, in Constituição da República Portuguesa. Anotada, vol. III, 1.ª ed., JORGE MIRANDA / RUI MEDEIROS, Coimbra Editora, 2007, III, b), pg. 55; também neste sentido, considerando que “[a] obrigação de não aplicar normas inconstitucionais vale para ‘todos os tribunais’, (…), sem excluir naturalmente o próprio Tribunal Constitucional” GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição..., II, 4.ª ed., anot. ao art.º 204.º, VII, pg. 521).

O Tribunal Constitucional “é também destinatário do artigo 204.º, podendo designadamente conhecer a título incidental da inconstitucionalidade quando tiver de exercer qualquer das suas competências previstas na Constituição ou na lei”, RUI MEDEIROS, Artigo 204.º, in Constituição da República Portuguesa. Anotada, vol. III, 1.ª ed., JORGE MIRANDA / RUI MEDEIROS, Coimbra Editora, 2007, III.b), pg. 55.

203 Este “dever judicial de não aplicar normas inconstitucionais estende-se a ‘todos os casos’ em que os tribunais são chamados a aplicar normas infraconstitucionais, mesmo quando desempenham funções não jurisdicionais, como consequência directa do princípio da subordinação à lei, o que começa por ser submissão à lei fundamental” GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição..., II, 4.ª ed., anot. ao art.º 204.º, VIII, pg. 521.

204 V. IVO MIGUEL BARROSO, Inconstitucionalidades…, in O Direito, I/II, 3.1, pgs. 130-132.

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11.1.2. No caso de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral por parte do TC, ocorrerá a destruição de todos os efeitos das normas em causa, desde a sua entrada em vigor (artigo 282.º, n.º 1, 1.ª parte, da Constituição), bem como a repristinação das normas ortográficas legiferadas, constantes da Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945 (que, aliás, têm carácter costumeiro).

11.2. Toda a Administração Pública, aos seus órgãos e agentes., mesmo que a Administração pretenda executar a RCM n.º 8/2011, encontra-se obrigada a desaplicá-lo205, ao abrigo da fiscalização administrativa da constitucionalidade.

Já nos referimos supra ao que a Imprensa Nacional – Casa da Moeda, como empresa pública, deveria fazer em relação às republicações efectuadas: emitir uma nova republicação.

11.3. Os particulares

É discutível a extensão da categoria do vício de “inconstitucionalidade” a actos que não sejam jurídico-públicos.

Cabe, pois, perguntar: estarão os actos privados (normativos ou não normativos) subordinados ao princípio da constitucionalidade (artigo 3.º, n.º 3, da CRP)?

Não existe consenso na Doutrina sobre o assunto206.

205 Cfr. JORGE MIRANDA, Referenda, , in Dicionário Jurídico da Administração Pública, volume VII, Lisboa, 1996, pg.

72; MARCELO REBELO DE SOUSA, Inexistência jurídica, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. V, Lisboa, 1993, pg. 235.

206 a) Desde logo, existem posições restritivas. Segundo JORGE MIRANDA, o segundo termo do fenómeno da inconstitucionalidade (um comportamento do poder

público) refere-se a entidades públicas (Cfr. JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 3.ª ed., n.º 2.II, pg. 12; IDEM, Inconstitucionalidade, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. V, Lisboa, 1993, pg. 179 (embora admita, “no limite, [inconstitucionalidade] de entidades privadas”)., rejeitando liminarmente, por via de regra, a extensão a entidades privadas, com esta fundamentação:

“[A] função da Constituição perante o poder político e perante os particulares” é diferente (JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 3.ª ed., n.º 2.II, pg. 12; IDEM, Inconstitucionalidade, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. V, Lisboa, 1993, pg. 179).

Com efeito, a esfera privada, em que o princípio da liberdade pontifica, constitui um domínio próprio dos cidadãos cujas “relações inter-subjectivas” se caracterizam por parâmetros de liberdade e igualdade, “e não por eixos de subordinação como os que respeitam ao universo público” (CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 365, pg. 422).

Assim, “os actos jurídicos de Direito privado praticados por pessoas privadas não têm a sua validade dependente de uma relação directa de conformidade com a Constituição” (PAULO OTERO, O acordo de revisão constitucional: significado político e jurídico, AAFDL, Lisboa, 1997, pgs. 39-40).

“A relevância constitucional de muitos comportamentos dos particulares, enquanto tais ou enquanto cidadãos, não permite assimilar – sob pena de imediata necessidade de distinções e subdistinções – a sua eventual desconformidade com normas constitucionais à desconformidade por parte de órgãos do poder.” (JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 3.ª ed., n.º 2.II, pg. 12; IDEM, Inconstitucionalidade, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. V, Lisboa, 1993, pg. 179).

a’) Em relação à qualificação do vício como inconstitucionalidade e consequente regime de sujeição à jurisdição constitucional, a Doutrina clássica considera que o acto não deve ser um comportamento de entidades privadas (JORGE MIRANDA, Manual…, VI, 3.ª ed., n.º 2.I, pg. 12; IDEM, Inconstitucionalidade, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. V, Lisboa, 1993, pg. 179).

O TC tem entendido que as normas provenientes de autonomia privada não preenchem os requisitos de norma funcionalmente adequada.

b) Em sentido ampliativo, porém, poder-se-ia entender o princípio da constitucionalidade em sentido amplo, tendo como destinatários, não só os poderes públicos, mas também os particulares (cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, I, 2.ª ed., n.º 55, pg. 124).

Esta Doutrina minoritária tem sido defendida por VIEIRA DE ANDRADE, bem como por PEDRO GONÇALVES (PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, pgs. 719-720).

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Em nossa opinião, esses actos privados não poderão ser considerados “inconstitucionais” em sentido técnico, uma vez que o escopo do enunciado que consagra o princípio da constitucionalidade abrange literalmente apenas “a validade” de actos de entidades públicas (cfr. artigo 3.º, n.º 3, da CRP).

Não obstante, entendemos que tais actos jurídico-privados padecerão de invalidade, por motivo de violação da Constituição207.

Segundo PAULO OTERO, deve também considerar-se que a desconformidade de qualquer acto jurídico-privado com uma norma ou princípio constitucional reconduzir-se-ia sempre à figura do negócio jurídico proibido por lei ou contrário à lei, sendo juridicamente nulo208.

Em todo o caso, o Estado-poder deve “dar o exemplo” e ter uma palavra, no sentido de evitar inconstitucionalidades de actos privados, tenham ou não tenham carácter normativo. No cumprimento do dever estadual de protecção dos direitos fundamentais, cabe ao Estado garantir que o conteúdo das normas de origem privada não é ilegal nem viola as normas que consagram direitos209.

11.3.1. As entidades privadas gozam do direito fundamental genérico de desobediência às normas inconstitucionais.

É duvidoso que este caso se subsuma no artigo 21.º da CRP, uma vez que pode não estar necessariamente em causa a violação de “direitos, liberdades e garantias”.

Em todo o caso, entende-se que é aplicável o regime do direito de resistência por analogia.

Os particulares podem, através de um acto de inobservância ou de desobediência, contestar a constitucionalidade210, apelando ao valor e à força da “lex superior” que é a Constituição211, ou seja, à hierarquia de normas (ou, noutros termos, hierarquia de fontes).

A desobediência constitui a via mais eficaz de que os particulares dispõem para contestar a constitucionalidade de um acto normativo212. É abrangida a desobediência a actos, não só praticados

O Professor VIEIRA DE ANDRADE defende que devem ser tidos como normas, para fins de fiscalização da

constitucionalidade”, “aqueles actos normativos que, embora não sejam praticados ao abrigo de uma delegação ou de uma concessão formal de poderes públicos, visam a satisfação de interesses públicos e obtêm do ordenamento jurídico estadual, a diversos títulos e com diferentes intensidades, um reconhecimento que lhes confere um carácter (…) “quase público” ou “semipúblico” (VIEIRA DE ANDRADE, A fiscalização da constitucionalidade das «normas privadas» pelo Tribunal Constitucional, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 133.º, 2001, n.º 3921, p. 363).

207 GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição..., II, 4.ª ed., anot. ao art.º 277.º, VIII, pg. 907; PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, pg. 717 (nota 914) (mas contraditoriamente, uma vez que admite a sujeição de algumas normas ao controlo de constitucionalidade).

Considerando que “[A] validade de todos os actos jurídicos depende da sua conformidade com a Constituição”, Projecto de revisão constitucional de PAULO OTERO, Uma nova Constituição para uma Nova Democracia, 20 de Fev. de 2010 (http://www.demoliberal.com.pt/noticias.php?noticia=639) (art.º 3.º, n.º 3).

208 Aludindo a ilicitude por violação da lei, GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição..., II, 4.ª ed., anot. ao art.º 277.º, VIII, pg. 907.

209 PEDRO GONÇALVES, Entidades privadas com poderes públicos, pg. 717. 210 Cfr., embora referindo-se ao direito de resistência, RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade. Os autores, o

conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, diss., Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, pg. 269. 211 RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de

inconstitucionalidade da lei, diss., Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, pg. 269. 212 Cfr. RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de

inconstitucionalidade da lei, diss., Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, pg. 269. Como salienta RUI MEDEIROS, a Constituição, ao admitir a desobediência dos particulares às leis inconstitucionais (cfr.

artigo 21.º), aceitou correr o risco da anarquia, porque “prefere um cidadão responsável a um cidadão submisso” (RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade. Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, diss., Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, pg. 269).

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pelos poderes públicos, mas também a actos praticados por particulares, que republiquem textos legislativos com o AO90.

11.3.2. A solução é que os organizadores de colectâneas e que as Editoras privadas façam uma republicação cuidada das edições dos Códigos alterados (v. g., do Código do Procedimento Administrativo, da Lei-Formulário, “et caetera”).

12. Assim, a versão da republicação no “Diário da República”, supostamente oficial, ainda que aprovada pelo órgão ou, em alternativa, alterada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, não faz fé — pelo contrário, não vincula os intérpretes e aplicadores, devendo ser corrigida por estes. A “sociedade aberta de intérpretes” das leis eleva-se aqui até a limites nunca imaginados pelos casos práticos leccionados nas Faculdades de Direito…

Em conclusão

Em suma, as grafias do AO90 não podem ser introduzidas “à socapa” (digamos assim), por via da republicação, sem que os preceitos concretos da lei-enunciado sejam alterados213.

A republicação deve ser desconsiderada.

O risco aludido não se tem provado que seja mais grave do que a competência de as autoridades administrativas rejeitarem

a aplicação de actos inconstitucionais. 213 Muito menos podem entidades públicas proceder à publicação de textos legais, originariamente grafados com a ortografia

tradicional, “acordizados” com o AO90; nem seguir a republicação oficial do “Diário da República”, quando esta não seja fidedigna.

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Nota final: a “Legislação consolidada” da Imprensa Nacional – Casa da Moeda

Pelas razões expostas, a chamada “Legislação Consolidada”, com publicações de leis e Códigos inteiros com a grafia do AO90214 (bem como, futuramente, ainda no ano de 2015, no “Diário da República Eletrónico”, merecem vivo repúdio, por não respeitarem sequer básico e essencial “Estado de legalidade”; ou seja, as autovinculações do próprio Estado que aprovou as leis ordinárias e cuja ortografia o Legislador não alterou.

Com que autoridade ou base habilitante competencial uma entidade pública, a Imprensa Nacional – Casa da Moeda, que publicara as versões autênticas dessa Legislação, altera arbitrariamente textos legislativos inteiros, anteriores a 2012, convertendo-os para as grafias do AO90?

Todos os actos consolidados pelos Parlamentos revestem forma legislativa215.

Será que o artigo 11.º-A da Lei-formulário (aditado pela Lei n.º 43/2014) constituiu base habilitante para tal?

Este artigo preceitua:

“1 — As leis consolidantes reúnem num único ato legislativo normas relativas a determinada área do ordenamento jurídico regulada por legislação diversa.

2 — As leis consolidantes não afetam o conteúdo material da legislação consolidada, salvo quando, nomeadamente, haja necessidade de:

a) Atualizar e uniformizar linguagem normativa e conceitos legais;

b) Uniformizar realidade fática idêntica.

3 — As leis consolidantes:

a) Podem conter organização sistemática e numeração distintas da legislação consolidada;

b) Mantêm as normas revogatórias constantes das leis consolidadas e indicam ainda as normas revogadas por efeito da lei consolidante;

c) Salvaguardam a regulamentação aprovada ao abrigo da legislação consolidada revogada, salvo disposição expressa em contrário.”.

214 Por exemplo, os seguintes livros de uma colecção com lombada vermelha: a) o Código dos Contratos Públicos. Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro. Legislação consolidada. Legislação

complementar. Jurisprudência. Pareceres, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2013, que teve 6 alterações; sendo uma delas, e única até ao momento, de 2012, mas sem ter havido republicação com o AO90;

b) Legislação laboral. Legislação consolidada. Código do Trabalho. Código de Processo do Trabalho. Legislação complementar. Jurisprudência. Pareceres, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2013;

c) O Código de Processo Penal. Atualizado com a Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro. Legislação consolidada. Legislação complementar. Jurisprudência. Pareceres, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2013;

d) A Legislação do Condomínio. Direitos e deveres. Legislação complementar atualizada. Regime jurídico da propriedade horizontal. Julgados de paz — organização, competência e funcionamento, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2013. Trata-se, na sua maioria, de legislação aprovada antes de 2011, e que não sofreu alterações;

e) Direito da Medicina. Legislação consolidada. Jurisprudência. Pareceres, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2014;

Cumpre ainda mencionar a “publicação” de diplomas (Lei n.º 54/2010, de 24 de “dezembro”; Lei n.º 27/2007, de 30 de “julho”; Decreto-Lei n.º 7/2004 de 7 de “janeiro”, que aprova o “Regime jurídico do comércio eletrónico” (sic); Lei n.º 2/99 de 13 de “janeiro”), todos muito anteriores a 2011, sem terem sofrido quaisquer alterações, com grafia “acordizada”, a título de “Legislação consolidada”, no livro Informação e liberdade de expressão na Internet e a violação de direitos fundamentais. Comentários em meios de comunicação online. Textos do Colóquio na Procuradoria-Geral da República, Procuradoria-Geral da República, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2014 – cfr. pgs. 105-231

215 Neste sentido, CARLOS BLANCO DE MORAIS Manual de Legística. Critérios científicos e técnicos para legislar melhor, 1.ª ed., Verbo, s.l., 2007, pg. 617.

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IVO MIGUEL BARROSO Republicações de leis e de Códigos com as grafias do “Acordo Ortográfico” de 1990 : 49

Em primeiro lugar, não resulta claro que haja habilitação legal para que seja a Imprensa Nacional – Casa da Moeda a fazer essa “Lei consolidante”, dado que o artigo 11.º se refere às leis da Assembleia da República; nem sequer aos decretos-leis do Governo, regulados no artigo 12.º da Lei-formulário.

Em segundo lugar, e independentemente de elucubrações teóricas sobre a natureza das “consolidações legislativas” em abstracto216, ainda que a interpretação seja a de ser a Imprensa Nacional – Casa da Moeda a emitir tal “lei consolidante”, o fragmento “Atualizar e uniformizar linguagem normativa” (artigo 11.º-A, n.º 2, alínea a), da Lei-formulário), por parte de um órgão que não aprovou a lei parlamentar, afigura-se inconstitucional, por violação manifesta da regra resultante do artigo 112.º, n.º 5, 2.ª parte da Constituição:

“Nenhuma lei pode (…) conferir a actos” de natureza administrativa “o poder de, com eficácia externa, (…) modificar (…) qualquer dos seus preceitos”.

Para além disso, há inconstitucionalidade material, por carência total da terceira fase (discussão e votação), bem como, de resto, das fases de iniciativa originária e instrutória; bem como das fases subsequentes da promulgação presidencial, da referenda ministerial e da publicação em “Diário da República”.

Ora, assim sendo, a interpretação, segundo a qual a Imprensa Nacional – Casa da Moeda estaria habilitada por lei a modificar a grafia dos diplomas, “uniformizando-os” (utilizando aqui a palavra com muitas reservas) com as grafias do AO90, seria orgânica e materialmente inconstitucional.

Destarte, deve haver uma interpretação conforme à Constituição: a “lei consolidante” não pode alterar a grafia dos actos legislativos aprovados pela AR. Só o Parlamento o poderá fazer, mediante o cumprimento das etapas do processo legislativo parlamentar, sob pena de fazer perigar a força normativa da Constituição-enunciado.

IVO MIGUEL BARROSO Portal Verbo Jurídico | 03-2015

216 a) Tradicionalmente, a Doutrina tradicional admite nas consolidações legislativas alterações, mas sem carácter inovatório

(neste sentido, por exemplo, OLIVEIRA ASCENSÃO considera que a consolidação, diferentemente da codificação, “não representa inovação” - JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 13.ª ed. refundida, 4.ª reimpressão da edição de Março 2005, Almedina, Coimbra, 2010, n.º 204.III, pg. 366).

b) Diferentemente, no entender de CARLOS BLANCO DE MORAIS, a consolidação legislativa consiste numa “tarefa permanente e avulsa de ordenação, depuração e incorporação, num acto legislativo unitário, das normas oriundas de diplomas legais pré-existentes que tenham sido emitidos sobre uma dada matéria em épocas diversas, sem que nesse acto se introduzam alterações que importem inovações fundamentais em relação às linhas reitoras do pensamento legislativo contido nesses diplomas” (CARLOS BLANCO DE MORAIS, Manual de Legística. Critérios científicos e técnicos para legislar melhor, Verbo, s.l., 2007, pg. 612 (o sublinhado é nosso); ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Artigo 119.º, in Comentário à Constituição Portuguesa, III Volume, 1.º Tomo, Princípios gerais da Organização do Poder Político (artigos 108.º a 119.º), coordenação de PAULO OTERO, Almedina, Coimbra, 2008, pg. 540).

A “‘inovação’ (operada por via de supressões, modificações e aditamentos) ‘é possível na medida em que não altere as linhas mestras do pensamento legislativo inerente aos diplomas consolidados’” (CARLOS BLANCO DE MORAIS, Manual de Legística, 1.ª ed., pg. 614); afirmando que a consolidação implica apenas “uma continuidade’ com as linhas mestras do espírito das normas aglutinadas no diploma consolidado” (CARLOS BLANCO DE MORAIS, Manual de Legística, 1.ª ed., pg. 613).

Assim, o Autor admite as operações de consolidação “inovadoras e não inovadoras, passíveis de serem desenvolvidas, quer no domínio de programas de simplificação quer fora destes” (CARLOS BLANCO DE MORAIS, Manual de Legística, 1.ª ed., pg. 617).

c) Em nosso entender, conforme exposto, à luz do artigo 168.º, números 1, 2 e 3, da CRP, cada preceito de uma lei parlamentar tem de ser discutido e votado no Parlamento; e não fora dele.

Muito menos poderia ser afectado todo o diploma. Não está aqui em causa nenhum lapso ortográfico, pelo que o instituto da rectificação nunca poderia ser aplicável.