24
IX ENCONTRO DA ABCP Pensamento Político Brasileiro Encontros com a democracia: intelectuais e a transição no período 1978- 1982 Pedro Benetti - IESP-UERJ Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

IX ENCONTRO DA ABCP Pensamento Político Brasileiro · Ao defender uma história conceitual do político, Pierre Rosanvallon (1995) reconstrói brevemente o processo de retomada,

Embed Size (px)

Citation preview

IX ENCONTRO DA ABCP

Pensamento Político Brasileiro

Encontros com a democracia: intelectuais e a transição no período 1978-

1982

Pedro Benetti - IESP-UERJ

Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

Encontros com a democracia: intelectuais e a transição no período 1978-

1982

Pedro Benetti – IESP-UERJ Resumo do trabalho: O presente artigo se dedica à análise de como a democracia foi conceituada por intelectuais brasileiros durante o processo de transição iniciado em 1974. Para tanto, concentra-se nas contribuições de diversos pensadores à Revista Encontros com a Civilização Brasileira, editada por Ênio da Silveira entre 1978 e 1982. O projeto editorial, que buscava retomar a Revista Civilização Brasileira, fechada pelo regime em 1968, se pretendia ecumênico na composição de seus autores. Dessa forma, a revista se pensava como ator importante na formação de uma frente anti-autoritária, capaz de pensar a democracia - sob perspectivas variadas - como alternativa ao regime vigente. Palavras-chave: Democracia; Autoritarismo; Transição; Encontros com a Civilização Brasileira; Anistia; Intelectuais

Introdução

“Vamos fundar uma revista!”

Estas palavras, segundo Beatriz Sarlo, foram ditas por um grande número de

intelectuais ao longo da história do século XX. Os periódicos culturais e políticos são,

hoje, reconhecidos como fontes importantes para estudos desenvolvidos nos campos

da História e da Literatura. Ainda assim, no que tange à disciplina da Ciência Política,

poucas são as pesquisas que se estruturam em torno da investigação de material

desta natureza. Por mais que as fronteiras disciplinares na grande área das

humanidades sejam bastante flexíveis (e, de certa forma, artificiais), cabe indagar se o

estudo das revistas culturais e políticas nada tem a oferecer aos praticantes da

Ciência Política.

O trabalho que segue parte deste questionamento para apresentar os primeiros

apontamentos relativos à pesquisa da revista Encontros com a Civilização Brasileira

(doravante ECB). O periódico, que circulou entre os anos de 1978 e 1982, se dedicou

a um esforço de compreensão da realidade brasileira, em sentido amplo, bem como à

construção de um espaço de sociabilidade para os intelectuais que se identificassem

como parte do campo democrático ou progressista. Para cumprir o objetivo proposto, o

artigo se divide em três seções, sendo a primeira responsável por uma rápida

discussão acerca do lugar que pode ser ocupado pelos periódicos na disciplina da

Ciência Política; a segunda por uma apresentação geral da revista ECB e de seu

idealizador, o editor Ênio Silveira e; a terceira pela análise de uma seleção de artigos

que discute o tema da democracia nas páginas da revista.

1. Revistas em revista – os periódicos e a Ciência Política

Ao defender uma história conceitual do político, Pierre Rosanvallon (1995)

reconstrói brevemente o processo de retomada, na França, da História Política, em

convergência com a Filosofia Política e com a Ciência Política. Este processo, que se

intensificou na década de 1980, teve como uma de suas consequências a recuperação

de um estatuto particular ao fenômeno político, que na tradição historiográfica dos

Annales não ocupava lugar de destaque.

“O objeto da história conceitual do político é a compreensão da formação e evolução das racionalidades políticas, ou seja, dos sistemas de representações que comandam a maneira pela qual uma época, um país ou grupos sociais conduzem sua ação encaram seu futuro. Partindo da ideia de

que estas representações não são uma globalização exterior à consciência dos atores – como o são por exemplo as mentalidades – mas que elas resultam, ao contrário, do trabalho permanente de reflexão da sociedade sobre ela mesma, tem por objetivo: 1) fazer a história da maneira pela qual uma época, um país ou grupos sociais procuram construir as respostas àquilo que percebem mais ou menos confusamente comoum problema e, 2) fazer a história do trabalho realizado pela interação permanente entre a realidade e sua representação definindo os campos histórico-problemáticos. Seu objeto é assim a identificação do “nós históricos” em volta dos quais as novas racionalidades políticas e sociais se organizam; as representações do político se modificam em relação às transformações nas instituições; às técnicas de gestão e às formas de relação social. Ela é história política na medida em que a esfera do político é o lugar da articulação do social e de sua representação. Ela é história conceitual porque é ao redor de conceitos – a igualdade, a soberania, a democracia, etc. – que se amarram e se comprovam a inteligibilidade das situações e o princípio de suas ativações.” (Rosanvallon, 1995, p. 16)

O projeto teórico de uma história conceitual do político é, portanto,

interdisciplinar em sua natureza. Ele pressupõe a integração entre diferentes áreas do

conhecimento que se debrucem sobre o fenômeno do político. Embora esteja

referenciado nos debates da academia francesa, o projeto de Rosanvallon pode ser

apropriado em outras partes do mundo, como uma ferramenta útil para a compreensão

dos processos de formação do espaço onde a política é operada. Nesse sentido, a

história conceitual do político recorre aos estudos sobre as gerações intelectuais,

sobre a cultura política, sobre os partidos como elementos de um quadro mais amplo

que apresenta o político como representação do social.

O estudo dos periódicos culturais e políticos se encaixa nessa perspectiva por

diversos motivos, dado que trata-se de uma fonte privilegiada para a pesquisa sobre a

circulação de ideias e, principalmente, as redes de sociabilidade entre intelectuais (e

também políticos) num certo tempo histórico. As revistas têm relação direta com o

fenômeno das gerações intelectuais e da formação das culturas políticas de cada

momento. Em seguida, serão discutidas estas relações bem como as características

básicas que costumam atravessar os periódicos.

1.1 Características dos periódicos e de seus estudos

O primeiro aspecto a ser observado no estudo das revistas culturais e políticas

diz respeito à sua temporalidade. Diferentemente do livro, que carrega certa pretensão

à perenidade, os periódicos tem uma relação incontornável com o tempo presente.

Segundo Sarlo (1992), “nada é mais velho do que uma revista velha: ela perdeu a aura

que emerge de sua capacidade, ou melhor, de sua aspiração de ser uma presença

imediata na atualidade.”.

Entretanto, as revistas são, também, diferentes dos jornais. Enquanto estes

costumam ter poderosas redes de financiamento e distribuição por trás de suas

operações, garantido amplo alcance em camadas diversas da população, os

periódicos organizam-se, quase sempre, de maneira precária. Geralmente, são

iniciativas de pequenos grupos intelectuais, que contam com poucos recursos para a

viabilização da empreitada. Frequentemente são deficitários e, não raro, consomem as

economias pessoais dos próprios protagonistas do projeto. Em outras palavras, as

revistas culturais e políticas não são empreendimentos comerciais. Além disso, elas

interferem no debate público de maneira indireta, dado que não atingem um público

vasto. Suas tiragens são bastante menores do que a dos grandes diários e seu público

leitor costuma estar concentrado nos estratos com mais acesso à educação formal.

Retomando a discussão sobre a temporalidade das revistas, nota-se outra diferença

em relação aos jornais: ao passo que estes trabalham no tempo da urgência, do

cotidiano, os periódicos têm uma temporalidade bastante mais flexível. Isso permite

que o autor tenha maior protagonismo nas revistas (na comparação com os

jornalistas) e que o espaço para textos reflexivos seja maior. De acordo com Crespo

(2011, p. 99), “as revistas ocupam um lugar entre a transcendência dos livros e a

transitoriedade dos jornais”.

As revistas não guardam relação íntima apenas com o tempo presente do qual

fazem parte, elas também se relacionam de maneira direta com o espaço no qual

estão inseridas. Isso porque as revistas partem da noção de intervenção num debate

político, ideológico, ou mesmo estético (no caso das revistas mais focadas no campo

cultural) para se estruturarem. Nesse sentido, a relação dos periódicos com a

conjuntura se constrói nos dois eixos – o temporal e o geográfico.

A ideia de que é necessária uma intervenção no debate público parte, via de

regra, das discussões de algum grupo de intelectuais. Esta é outra característica

fundamental das revistas, o caráter coletivo de sua produção. Na perspectiva de Sarlo

(1992, p. 10) “a sintaxe de uma revista informa, de um modo que jamais os seus textos

considerados individualmente poderiam fazer, da problemática que definiu aquele

tempo presente”. Assim sendo, é possível afirmar que as revistas têm características

que são intrínsecas à própria forma da publicação e que sua totalidade é formada, de

certa maneira, por algo mais que o conjunto de seus textos tomados isoladamente. As

contribuições publicadas por um periódico podem, inclusive, ultrapassar o caráter

conjuntural que marca essa forma de publicação. O ensaio “Democracia como Valor

Universal”, publicado por Carlos Nelson Coutinho na revista ECB, tornou-se um texto

clássico nas ciências sociais brasileiras. Não obstante, naquele momento ele fez parte

de uma teia de textos e conceitos responsáveis pela elaboração de uma narrativa

sobre a transição democrática brasileira, objeto preferencial do periódico no qual foi

publicado.

Em resumo, é possível citar quatro características básicas que atravessam a

maior parte dos periódicos culturais e políticos: (1) inscrição na temporalidade

presente; (2) periodicidade intermediária em relação ao livro e aos jornais, o que

garante certa flexibilidade na comparação com estes dois outros formatos de

publicação; (3) a noção de intervenção no debate público, frequentemente

preenchendo um espaço considerado vazio, o que aponta para a construção de uma

relação direta com o espaço onde são editadas as revistas e; (4) o caráter coletivo da

obra, que a transforma num retrato importante de quais são as questões centrais num

determinado espaço e tempo históricos.

1.2 Métodos para o estudo das revistas: gerações e cultura política

A investigação dos periódicos culturais e políticos costuma ser feita por

praticantes de disciplinas diversas, segundo objetivos diferentes. Ainda assim, apesar

dos enfoques variados, muito se ganha com a integração de métodos e discussões

teóricas elaborados em áreas das humanidades que têm profundo diálogo a ser

explorado – como a Sociologia, a História e a Literatura. Da primeira, podem ser

aproveitados os extensos debates sobre a sociologia dos intelectuais, que oferecem

noções como a de redes, campo cultural, campo intelectual e outras. Da Literatura, o

pesquisador de revistas pode extrair reflexões sobre a forma, o texto, a recepção e os

debates estéticos que permeiam objetos desta natureza. Já a História pode oferecer

ferramentas teóricas preciosas, como as metodologias elaboradas em torno da

História dos Conceitos, a discussão sobre linguagens políticas ou sobre culturas

políticas. Na interseção entre a História e a Sociologia se localiza o debate sobre

gerações intelectuais, que pode ser fundamental para a compreensão do lugar de um

periódico cultural e político no mundo. Justamente por se tratar de um fenômeno que

tende a ser efêmero e que guarda profunda relação com a sua conjuntura imediata, o

periodismo cultural e político frequentemente está ligado à uma geração intelectual em

particular.

O debate sociológico sobre as gerações remonta à primeira metade do século

XX, quando Karl Mannheim se dedicou ao tema. De acordo com o autor, as gerações

são vivenciadas por cada indivíduo como uma “situação” e não como um grupo

concreto do qual escolhem participar. Nesse sentido, a experiência geracional se

assemelha com a experiência de classe, uma vez que representa uma posição

ocupada na sociedade e não um engajamento consciente de cada um. Dado que a

experiência humana no mundo é marcada por um ritmo biológico – nascimento,

crescimento, envelhecimento etc. -, a situação de geração se originaria numa inscrição

comum de um conjunto de indivíduos na dimensão histórica do processo social

(Mannheim, 1986). Diante desse diagnóstico, Mannheim classifica como “unidades de

geração” os grupos concretos que se formam dentro de uma mesma geração.

“Enquanto a mera “situação” comum em uma geração é de significação apenas potencial, uma geração enquanto uma realidade é apenas constituída quando contemporâneos similarmente “situados” participam de um destino comum e das ideias e conceitos de algum modo vinculados ao seu desdobramento. Dentro dessa comunidade de pessoas com um destino comum podem então surgir unidades de geração particulares. Elas se caracterizam pelo fato de que não envolvem apenas a livre participação de vários indivíduos em um padrão de acontecimentos partilhado igualmente por todos (embora interpretado diferentemente por indivíduos diferentes), mas também uma identidade de reações, uma certa afinidade no modo pelo qual todos se relacionam com suas experiências comuns e são formados por elas. Assim, dentro de qualquer geração podem existir várias unidades de geração diferenciadas e antagônicas. Juntas, elas constituem uma geração “real” precisamente por estarem orientadas umas em relação às outras, mesmo se apenas no sentido de se combaterem entre elas.” (Mannheim, 1986, p. 89)

Os debates sobre gerações também constituem parte importante da retomada

da história política francesa, na segunda metade do século XX. Nesse caso, os

estudos sobre geração se aproximam das investigações sobre o lugar dos intelectuais

na política. Historiadores como Jean-François Sirinelli, Marc Devriese, Jean-Pierre

Azema e Michel Winock são alguns dos que participam de uma edição especial da

Revue Vingtieme Siecle (número 22, 1989) inteiramente dedicada ao tema. Os

Cahiers de l’IHTP’ (número 6, 1987) também dedicam uma edição inteira ao fenômeno

das gerações intelectuais. Nestas duas edições, os autores concordam em torno da

importância de grandes eventos constituintes da identidade comum de uma geração.

Sua preocupação é concentrada em torno dos intelectuais, num foco menos

abrangente do que o de Mannheim. Nesse sentido, é comum a distinção entre

“classes de idade” e “gerações intelectuais”. Enquanto as primeiras corresponderiam

ao ritmo biológico que Mannheim classifica como geração, as últimas dizem respeito a

fenômenos que têm marcadores exclusivamente sociais.

“Nous dirons que chaque generation se definit par une problematique majeure (la guerre, la crise, le communisme, la decolonisation, etc.) qui suscite un ensemble de reponses contradictoires formant un systime ideologique. Une generation intellectuelle a d'autres attributs qui la distinguent des autres. Elle est tributaire d'un certain type de formation pedagogique (programmes scolaires, re-formes du baccalaureat, attention aux langues anciennes ou aux langues modernes, elitisme ou democratisme de l'enseignement...); tributaire, d'une maniere generale, de l'environnement

economique, demographique, social, politique, qui favorise des sentiments collectifs d'optimisme ou de pessimisme, ce qu'on appelle un < esprit du temps >.” (Winock, 1989, p. 19)

Sirinelli, por sua vez, ressalta que a noção de geração aparece ligada à

recuperação de dois elementos que foram abandonados com o relativo ostracismo da

história política, quais sejam, o “evento” e o “tempo curto”. Embora as gerações

intelectuais tenham uma temporalidade elástica, que difere da simples sucessão de

gerações biológicas, seu registro se dá no tempo curto e sua intervenção no mundo é

mais facilmente perceptível no plano da conjuntura do que das grandes

transformações estruturais. A partir de então, a relação com o estudo dos periódicos

culturais e políticos se torna evidente. Se, para Sirinelli (1989), as gerações têm

significativo impacto na produção de ideologias, culturas políticas e representações do

social – frequentemente a partir de “eventos fundadores” ou experiências

compartilhadas -, as revistas tornam-se um espaço privilegiado para a apreensão

deste fenômeno. A temporalidade das revistas acompanha a temporalidade das

gerações intelectuais. Na maior parte dos casos, a vida de um periódico tem a mesma

duração de uma geração intelectual correspondente. Como um empreendimento

coletivo, que tem uma linguagem própria e questões particulares, as revistas tendem a

se comunicar com um público que partilhe um “espaço de experiência” (Koselleck,

2006) ou uma “estrutura de sentimento” (Williams apud Ridenti, 2005). Estas duas

categorias, empregadas aqui de maneira bastante livre, dizem respeito à vivência

comum de um passado, não somente do ponto de vista dos eventos, mas também das

formas de pensar e projetar um presente e um futuro.

De acordo com Sirinelli (1987), a geração pode ser entendida como uma

“chave” para os estudos sobre a história intelectual. Da mesma maneira, como uma

chave explicativa, Serge Berstein (1992) considera os estudos sobre a cultura política.

Assim como os estudos sobre geração, as pesquisas sobre a cultura política se

desenvolvem no contexto da retomada da história política, protagonizada por Rene

Remond, na França. Suas investigações se centram sobre as representações do

social no plano político, o que as aproxima da ideia de uma história conceitual do

político, defendida por Rosanvallon.

“...a cultura política ocupa pois um lugar particular.Ela é apenas um dos elementos da cultura de uma dada sociedade, oque diz respeito aos fenómenos políticos. Mas, ao mesmo tempo,revela um dos interesses mais importantes da história cultural, o decompreender as motivações dos actos dos homens num momento dasua história, por referência ao sistema de valores, de normas, decrenças que partilham, em função da sua leitura do passado, das suasaspirações para o futuro, das suas representações da

sociedade, do lugar que nele têm e da imagem que têm da felicidade.” (Berstein, 1998, p. 362-3)

O que a passagem destacada acima denota é que a noção de cultura política,

como as outras discutidas anteriormente neste texto, se constrói a partir da

investigação sobre formas de conectar a experiência e a expectativa, compreendendo

a ação política numa dada conjuntura a partir destes elementos. A cultura política,

como a geração, não trata diretamente de uma ideologia política ou de um sistema de

pensamento, mas sim de um fenômeno mais difuso socialmente, que organiza de

maneira mais flexível a relação que os homens têm com o que é da ordem do político.

Na formação de uma cultura política,

“entram em simbiose uma base filosófica ou doutrinal, a maior parte das vezes expressa sob a forma de uma vulgata acessívelao maior número, uma leitura comum e normativa do passado históricocom conotação positiva ou negativa com os grandes períodos dopassado, uma visão institucional que traduz no plano da organizaçãopolítica do Estado os dados filosóficos ou históricos precedentes, umaconcepção da sociedade ideal tal como a veem os detentores dessa cultura e, para exprimir o todo, um discurso codificado em que ovocabulário utilizado, as palavras-chave, as fórmulas repetitivas sãoportadoras de significação, enquanto ritos e símbolos desempenham, ao nível do gesto e da representação visual, o mesmo papel significante.” (Berstein, 1998, p. 350)

Nesse caso, a relação entre o estudo das revistas e das culturas políticas se

torna evidente, na medida em que aquelas permitem apreender os conceitos,

ideologias, discursos e problemáticas que estruturam estas. Os periódicos constituem

uma fonte privilegiada para a compreensão da problemática que estrutura um dado

tempo presente. Seu caráter coletivo e conjuntural aponta para uma relação frutífera

com as noções de geração e cultura política, que são mais difíceis de pesquisar a

partir de livros.

Os exemplos citados acima constituem apenas apontamentos iniciais sobre as

relações entre o estudo das revistas culturais e políticas e os desenvolvimentos

teóricos que podem se servir destas como fontes, bem como podem auxiliar os

pesquisadores que as têm como seu próprio objeto. Certamente há outros métodos e

reflexões teóricas que podem se apropriar das e serem apropriados pelas

investigações com os periódicos.

1.3 O estudo dos periódicos no Brasil

Apesar de uma vasta tradição na publicação de revistas culturais e políticas, os

estudos sobre periódicos no Brasil são embrionários. Na Universidade Federal de

Santa Catarina, a professora Maria Lucia de Barros Camargo coordena um grupo que,

no departamento de Letras, se dedica ao levantamento e estudo da história dos

periódicos culturais e políticos no Brasil. O projeto “Poéticas contemporâneas”, em sua

quinta edição, se dedica ao mapeamento das revistas literárias brasileiras. Nesse

caso, o foco reside no debate propriamente literário. Camargo (2003) divide as

publicações literárias brasileiras em seis categorias: (a) “magazines” literárias e

culturais frutos de empreendimentos comerciais; (b) revistas literárias e culturais

independentes; (c) revistas literárias institucionais; (d) revistas culturais “acadêmicas”;

(e) suplementos culturais da grande imprensa e; (f) revistas universitárias

(“científicas”). Embora a classificação funcione melhor nos termos do debate literário,

ela contribui para o estudo das publicações em geral. Nesse quadro, as revistas que

despertam interesse para este estudo seriam, principalmente, as “culturais

‘acadêmicas’”, que tem como perfil um movimento de consolidar um conhecimento da

realidade nacional para intervir nos destinos políticos e sociais do país.

Além desta iniciativa catarinense, de caráter sistemático, outros pesquisadores

por todo o país vêm se apropriando das revistas como fontes de seus estudos, sem

que isso tenha resultado numa reflexão organizada sobre o lugar que pode ser

ocupado por este material na pesquisa acadêmica.

Raul Antelo lembra que as primeiras revistas brasileiras foram lançadas ainda

no começo do século XIX, em capitais europeias. As revistas Brasiliense (1808-1822)

e Niterói (1836) foram editadas em Londres e Paris, respectivamente. Posteriormente,

muitas outras revistas foram fundadas na capital do País, como Minerva Brasiliense

(1843-1845), oOstensor Brasileiro (1845-1846), O Americano (18471851), A Marmota

(1849-1861), a Guanabara (1849-1856)e o Jornal das Senhoras (1852-1855). No

curso do século XIX, os periódicos brasileiros estiveram, em sua maioria, ligados à

academia, particularmente aos cursos de direito (Antelo, 1997). A partir do século XX,

muitos começam a ser editados por instituições (como a revista Americana, ligada ao

Itamaraty) ou de maneira independente, por grupos de intelectuais. A revista Klaxon

(1922-1923) é um bom exemplo nessa direção. A redução dos custos de produção e o

aumento do público leitor ampliaram o espaço para a circulação de revistas culturais e

políticas na segunda metade do século XX. As revistas Brasiliense (1955-1964) e

Tempo Brasileiro (1962) são características de um momento no qual a noção de

intervenção no debate público se fortalece bastante entre os intelectuais brasileiros.

Mais adiante, no período do regime autoritário (1964-1985), organiza-se uma vasta

gama de revistas que, em sua maioria, se articulam como oposicionistas – dentre as

quais vale destacar a primeira fase da Revista Civilização Brasileira (1965-1968).

A longa tradição de envolvimento dos intelectuais brasileiros com a edição de

periódicos culturais e políticos justifica, por si só, um esforço concentrado na

investigação deste universo. Muito se ganhará com a integração de esforços entre

diferentes disciplinas que podem se beneficiar da pesquisa sistemática nestas fontes.

Para a Ciência Política, os periódicos têm muito a contribuir na elucidação dos

caminhos pelos quais passou o pensamento político brasileiro nos últimos dois

séculos, abrindo espaço para a compreensão da relação entre representações sociais

e motivações para a ação política, como na sugestão de Rosanvallon.

2. A editora Civilização Brasileira e seu “arquiteto de liberdades”

A editora Civilização Brasileira nasceu no momento de florescimento do

mercado editorial nacional, no ano de 1929. Fundada no Rio de Janeiro por Ribeiro

Couto, Gustavo Barroso e Getúlio Costa, foi vendida três anos depois para Octalles

Marcondes Ferreira, proprietário da Companhia Editora Nacional, em São Paulo (Mariz

& Lima, 2009). Durante as décadas de 1930 e 1940, a editora carioca oscilou bastante

na quantidade de livros publicado – 77 em 1934, 17 em 1939, 21 em 1940 e depois

uma média de 5 até 1950 (Mariz & Lima, 2009, p. 2).

É somente a partir de 1952, quando Ênio Silveira, genro de Octalles, se muda

para o Rio de Janeiro e assume o controle executivo da editora que a tendência

decadente do empreendimento é revertida.Silveira nascera em São Paulo, no ano de

1925, e antes de ser editor, cursara Ciências Sociais na Escola Livre de Sociologia e

Política (curso que não concluiu). Em 1946 se mudou para Nova Iorque,

acompanhando a mulher, onde fez cursos de editoração em Columbia e trabalhou na

editora Alfred Knopf (Vieira, 1998, p. 76). Ao longo da década de 1950, período em

que Ênio se aproximou do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a Civilização Brasileira

foi conquistando prestigio e uma situação economicamente confortável. Num primeiro

momento, o editor contou com a rede de apoio financeiro e logístico da empresa de

seu sogro, Octalles. Entretanto, no curso de sua primeira década como editor da

Civilização Brasileira, foi tomando controle dos processos administrativos e, após

comprar a empresa de Octalles, em 1963, passou a promover profundas alterações

nos projetos gráficos das publicações. Paralelamente, Ênio se engajou na organização

dos livreiros no Brasil, tornando-se o presidente do Sindicato Nacional dos Editores de

Livros entre 1952 e 1958.

Apesar de seu engajamento político e militância no PCB, Silveira construiu um

projeto editorial que tinha o ecumenismo como valor fundamental. Esta postura se

reflete também na editoração das revistas Civilização Brasileira (1965-1968) e ECB

(1978-1982). O editor rejeitava a possibilidade de tornar um órgão acessório do

partido, voltado apenas para a divulgação dogmática de uma doutrina. Em sua

perspectiva, a função da editora residia no estabelecimento de um conhecimento

consolidado sobre a realidade brasileira, a partir do qual se pudesse promover uma

transformação radical das condições sociais e econômicas da maior parte da

população. Essa linha de atuação se aproxima bastante, na sua forma (mas não no

conteúdo ou nos seus fundamentos filosóficos) ao realismo político que orientara

grande parte dos intelectuais próximos à Vargas ao longo dos anos 1930 e 1940 –

Almir de Andrade, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral poderiam ser citados como

exemplos. Nesse esforço de mapeamento da realidade brasileira, Silveira considerava

importante congregar as diferentes correntes do humanismo, entendendo que um

projeto transformador não comportava espaço para sectarismos. Esse espírito

permeou suas publicações ao longo de todo o período em que foi editor. Embora

fugisse do dogmatismo, o editor não deixava de conferir um perfil engajado à sua linha

de publicações, o que conferia uma identidade clara ao seu empreendimento.

“A análise da trajetória de Ênio Silveira e da história da Editora Civilização Brasileira evidencia uma clara continuidade entre a mobilização pela causa nacionalista ao longo dos anos 50 e o desenvolvimento de uma cultura revolucionária que floresce nos anos 60 e se intensifica com a instalação do governo militar.” (Vieira, 1998, p. 73)

É possível afirmar que a editora Civilização Brasileira estivesse em perfeita

sintonia com o que Marcelo Ridenti (2005, p. 83) classifica como “estrutura de

sentimento da brasilidade (romântico-)revolucionária”. De acordo com o autor,

“Valorizava-se acima de tudo a vontade de transformação, a ação para mudar a História e para construir o homem novo, como propunha Che Guevara, recuperando o jovem Marx. Mas o modelo para esse homem novo estava, paradoxalmente, no passado, na idealização de um autêntico homem do povo, com raízes rurais, do interior, do “coração do Brasil”, supostamente não contaminado pela modernidade urbana-capitalista.Vislumbrava-se uma alternativa de modernização que não implicasse asubmissão ao fetichismo da mercadoria e do dinheiro, gerador da desumanização.A questão da identidade nacional e política do povo brasileiroestava recolocada, buscava-se ao mesmo tempo recuperar suas raízes e romper com o subdesenvolvimento, o que não deixa de ser um desdobramento à esquerda da chamada era Vargas, propositora do desenvolvimentonacional com base na intervenção do Estado.” (Ridenti, 2005, p. 84)

Essa estrutura de sentimento articula conceitos como o nacionalismo e o

desenvolvimentismo em torno de um projeto transformador. Ela teria sido o elemento

central da efervescência cultural que marca o Brasil dos anos 50 e 60, antes do golpe

militar. Com a instalação do regime autoritário, os setores da sociedade que se

percebiam como progressistas se deparam com um profundo sentimento de derrota.

Isso produz uma série de críticas e autocríticas relativas ao comportamento das

esquerdas no período 1945-1964. Não obstante, a articulação de uma resistência

intelectual no interior da editora Civilização Brasileira não passa necessariamente pelo

abandono (talvez por uma reformulação) dos conceitos e atitudes que marcavam sua

atuação no período anterior. Logo em 1965, Ênio Silveira publica o primeiro número da

Revista Civilização Brasileira (RCB).

Este veículo circulou até 1968, quando, após a edição do AI-5, foi fechado.

Apesar das dificuldades impostas pelos agentes do regime, RCB foi um grande

sucesso editorial, alcançando mais de 10.000 exemplares vendidos já em sua primeira

edição, que esgotou rapidamente. No número seguinte, a tiragem foi dobrada e o

sucesso comercial mantido (Camargo, 2004, p. 892). A retórica de luta nacionalista,

presente na linha editorial da Civilização Brasileira no decorrer dos anos 50, aparece

na RCB de maneira ampliada, apresentada como uma forma necessária de resistência

num campo de combate adverso, em que os interesses estrangeiros se associam às

frações mais reacionárias das classes dominantes brasileiras.

“A Revista assume, desse modo, uma função pedagógica e esclarecedora em defesa dademocracia, do socialismo, do desenvolvimento independente do país, da liberdade decriação artística e de imprensa; nela, ensinar e denunciar são funções mutuamentecomplementares. A Revista Civilização Brasileira propõe-se, portanto, como veículo dointelectual engajado, que ensina e denuncia, que assume o j’accuse!, que pratica o “delitode opinião” e vê no “golpe” a emulação necessária.” (Camargo, 2004, p. 893)

A RCB contou com contribuições dos intelectuais mais prestigiados da

esquerda brasileira de então, reunindo, entre outros, Caio Prado Junior, Fernando

Henrique Cardoso e José Arthur Gianotti. Um dos pontos altos da revista foram as

“Epístolas ao marechal”, escritas pelo próprio Ênio Silveira como denúncias das

restrições às liberdades impostas pelo governo que resultou do golpe. (Czajka, 2013).

As revistas eram editadas mensalmente e constituíam-se de textos densos e extensos,

que costumavam somar em torno de 300 páginas por número. Apesar de suas

características próximas às de um livro, a revista alcançou enorme público e tornou-se

uma referência das lutas não-armadas contra o regime militar. Justamente por sua

importância, foi fechada em 1968, no ápice do autoritarismo. Ao seu fechamento,

sucederam inúmeros ataques e ameaças à editora Civilização Brasileira e ao próprio

Ênio Silveira que, no entanto, manteve-se ativo nas condições possíveis. Assim que a

conjuntura interna permitiu, Silveira retomou o projeto interrompido em 1968, lançando

a revista Encontros com a Civilização Brasileira.

3. Encontros com a democracia

A revista Encontros com a Civilização Brasileira apareceu na esteira do

processo de abertura política anunciada pelos generais que comandavam o país. Seu

primeiro número, lançado em julho de 1978, poucos meses antes da revogação do AI-

5. A nova iniciativa nasce após uma tentativa fracassada, do ponto de vista militar, de

resistência armada ao regime autoritário, que atraiu boa parte dos militantes que se

consideravam como parte da esquerda no país. A nova publicação precisa, portanto,

lidar não apenas com uma autocrítica das esquerdas em relação à sua atuação na

primeira metade da década de 1960, como também com uma revisão relativa à opção

pela luta armada.

A revista Encontros com a Civilização Brasileira (ECB) circulou entre 1978 e

1982, tendo 29 números publicados nesse período. Os responsáveis pelo periódico

foram Moacyr Félix, editor-chefe, e Ênio Silveira, diretor-chefe e responsável pela

editora Civilização Brasileira. Este projeto editorial buscava retomar uma iniciativa

suprimida nos anos mais duros da repressão, a Revista Civilização Brasileira, que teve

22 volumes entre os anos de 1965 e 1968. Neste primeiro periódico, circularam

intelectuais ligados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e à Comissão

Econômica para a América Latina (Cepal). Com o progressivo fechamento do regime,

o espaço para publicações como a Revista Civilização Brasileira – fortemente marcada

pela tradição das esquerdas pré-1964 -, foi reduzido. Em 1968, a editora foi duramente

perseguida, chegando a encerrar suas atividades.

A retomada do projeto editorial de 1965 se deu em outro contexto, com o

processo de abertura política já em marcha. Nessa ocasião, a ideia de uma frente de

setores oposicionistas já tinha ganhado força e a articulação de entidades da

sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação

Brasileira de Imprensa (ABI), ocupava papel central na crítica ao autoritarismo. Do

ponto de vista sociológico, o periódico reaparece após intenso processo de

urbanização e industrialização, marcas do país nos anos 70. No campo econômico, o

chamado “milagre” dava sinais de esgotamento, com a escalada da inflação, a

diminuição do crescimento e a manutenção do arrocho salarial. Nesse contexto, de

uma sociedade absolutamente diferente da de dez anos antes, um fator político

ocupava o centro das atenções no debate público: a abertura “lenta, gradual e segura”

do regime. Os resultados positivos obtidos pelo partido da oposição consentida ao

regime, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), abriram a perspectiva de derrota

do autoritarismo por dentro de suas instituições. A esse resultado eleitoral, somou-se o

retorno do grupo militar considerado moderado ao controle do executivo. A posse do

General Geisel, quando se anunciou o começo de um processo de distensão do

regime, representou uma ruptura – ainda que sútil – em relação aos dois governos

anteriores, provenientes da chamada linha dura das Forças Armadas. A ideia de que

havia um processo de transição institucional em curso dividiu os críticos do regime,

tanto esquerdistas quanto alguns liberais. Este é um dos temas dominantes de ECB

que, através de seus editoriais, defende a linha de uma frente única oposicionista,

organizada pelo MDB, que visasse conquistar espaços institucionais e remover

progressivamente às restrições autoritárias, através de uma Assembleia Constituinte.

Uma rápida passagem pela lista de autores que contribuíram para ECB permite a

constatação do caráter frentista assumido pelo periódico. Intelectuais próximos de

diversos grupos políticos, e não apenas ao PCB, estiveram nas páginas do periódico.

Frei Betto, José Arthur Gianotti, Fernando Henrique Cardoso, Darcy Ribeiro, José

Guilherme Merquior e muitos outros são exemplos da diversidade teórico-política

encontrada na revista. Em comum, a oposição ao regime militar e o compromisso com

alguma proposta de democracia. Apesar da diversidade, havia uma posição assumida

pelo corpo editorial em favor do processo de transição gradual para uma democracia

política, via reativação das instâncias representativas, tal como defendia o MDB.

Assim como outras publicações do período, a revista ECB não era uma

iniciativa exclusivamente política. Havia também um conjunto de textos dedicados à

área cultural. As contribuições se aproximavam de um perfil mais acadêmico, embora

se relacionassem sempre com a conjuntura política e com temas contemporâneos. Em

geral, eram mais extensas – giravam em torno de 10 a 25 páginas - do que as

analisadas em outros periódicos da época, como Novos Estudos Cebrap ou Lua Nova.

Ao observar os sumários de cada volume, percebe-se três conjuntos de contribuições,

não separados em seções específicas: artigos culturais, artigos políticos nacionais e

textos internacionais traduzidos pela revista. A ECB trazia ainda uma seção somente

para resenhas de livros recém-publicados, geralmente pela própria editora Civilização

Brasileira.

Os artigos escritos por intelectuais brasileiros quase sempre abordavam algum

aspecto do processo de democratização em curso. Um espaço significativo também

era concedido à reflexão acerca do papel do intelectual na sociedade de então.

Frequentemente, a revista organizava dossiês ou publicava a íntegra de seminários e

encontros político-acadêmicos. Temas clássicos das esquerdas, como o movimento

operário e a estrutura econômica, também apareciam com destaque na publicação. No

que se refere aos textos traduzidos, fica evidente um esforço de renovação teórica em

relação ao marxismo-leninismo. O socialismo passa a ser pensado a partir da ótica do

eurocomunismo e do chamado marxismo ocidental. Os marxistas italianos são os mais

discutidos, mas pensadores como Jurgen Habermas e Eric Hobsbawm também estão

presentes nas páginas de Encontros. A influência de Antonio Gramsci – inclusive

através de autores nacionais, como Carlos Nelson Coutinho e Luiz Werneck Vianna –

é parte importante da incorporação de novas referências no campo das esquerdas

brasileiras.

Diferentemente dos Novos Estudos Cebrap e da Lua Nova, ECB não

correspondia à produção de um centro de pesquisa, onde houvesse um ambiente

profissionalizado de produção do conhecimento. Por isso mesmo, era uma iniciativa

extremamente dependente da figura de Ênio Silveira, que a viabilizava tanto

financeiramente, por meio da editora, quanto em termos editoriais, através de seus

contatos pessoais com intelectuais de prestígio da oposição ao regime. Por mais que a

censura não tenha atingido a revista, ECB foi alvo dos atentados orquestrados por

grupos paramilitares contra bancas de jornal que vendessem veículos da imprensa

alternativa. As dificuldades de distribuição daí decorrentes estão entre os fatores que

contribuíram para o fim deste projeto editorial, em 1982. A ausência de fontes externas

de financiamento, como as agências nacionais de fomento à pesquisa ou fundações

internacionais – como a Ford -, deixou a publicação numa posição de maior

vulnerabilidade, dependendo das vendas nas bancas.

O projeto gráfico de ECB era mais arrojado do que o apresentado por sua

antecessora.

“Encontros teve um tratamento gráfico esmerado. Com periodicidade mensal, publicada em formato de livro em brochura, medindo 14 x 21 cm, diagramação de Léa Caulliraux (até aonúmero 22) e, posteriormente, de Ana Maria Araújo e C. A. T. Torres, a revista estampou, em suas capas, além das ousadas produções gráficas de Eugênio Hirsch, o símbolo da Editora Civilização Brasileira, em alto contraste, desenhado por Marius Lauritzen Bern, concebido pela conjugação da “forma das letras C e B com a ideia de um livro com as páginas abertas. Houve dois padrões de capa. O vigésimo segundo número foi o divisor de águas. A mudança, porém, foi apenas parcial. A porção de cima manteve-se inalterada, com o símboloda Editora no canto superior esquerdo, ladeado pelo nome da revista, entre duas colunas comtrês e quatro quadrados, respectivamente, que apareceu sempre com a expressão “encontroscom a” em caixa baixa, no topo, e com a expressão “civilização brasileira” em caixa alta,abaixo. O preço apareceu em todos os números, exceto no último, invariavelmente no canto superior direito.” (Couto, 2013, p.76)

Apesar das inovações no tratamento gráfico e editorial, o conteúdo da revista

se mantém muito próximo de temáticas centrais das esquerdas no período pré-1964.

Nesse sentido, a questão democrática – que nesse momento começa a se tornar uma

linguagem dominante em quase todas as variantes das esquerdas brasileiras – divide

espaço com a retomada da reflexão sobre a questão nacional. A “democracia” aparece

no título de 18 artigos publicados em ECB, 12 dos quais escritos por brasileiros, além

de ser o tema principal de alguns outros. Na maioria deles, é da democracia política e

representativa de que se está falando, embora a maior parte dos autores sustente a

necessidade de se conjugá-la com formas diretas de representação das classes

trabalhadoras. Para um estudo aprofundado do tema, é preciso ir além destes artigos,

relacionando-os com os demais conteúdos apresentados na revista. Contudo, numa

primeira aproximação deste objeto é possível trabalhar apenas com este número

reduzido de contribuições.

De partida, pode-se dividir os artigos que têm “democracia” no título em dois

tipos, os nacionais e os internacionais. Enquanto os primeiros são mais heterogêneos,

variando bastante no seu foco e abordagem, os últimos têm uma linha clara que os

unifica – a preocupação com o lugar que a democracia ocupa na teoria marxista.

Crise de democracia Jurgen Habermas Volume 8

Socialismo e democracia: três

artigos sobre a

Tchecoslovaquia

Luigi Longo, Galvano dela

Volpe e Robert Havermann

Volume 15

Base social e papel

revolucionário de uma

democracia de massa

Jean-Louis Moynot Volume 22

Dominação burguesa versus

democracia burguesa (sobre

o caso argentino)

Carlos M. Villas Volume 23

Dossiê três enfoques sobre

socialismo, liberdade e

democracia

Lelio Basso, Elias Chaves Neto

e Manuel Perez Ledesma

Volume 24

Democracia formal e

democracia socialista

Agnes Heller Volume 27

Nos dois casos em que os artigos abordam temáticas relacionadas à

conjuntura política de algum país – no dossiê sobre a Tchecoslováquia e no texto

sobre a Argentina – não se abandona a preocupação entre o casamento de

democracia e marxismo. Nos demais textos, o foco nessa temática é explícito. Trata-

se de saber quais mecanismos e instituições da democracia burguesa podem e devem

ser apropriados pelos socialistas na construção de uma teoria política. Essa

preocupação se origina na crítica dos rumos assumidos pelas experiências socialistas

no leste europeu. A rejeição ao modelo soviético de organização da sociedade

perpassa a reflexão de todos os autores que aparecem na revista, embora nem todos

o critiquem abertamente.

Já os artigos nacionais podem ser subdivididos em três tipos: os que tratam de

aspectos teóricos da democracia, o que abordam itens específicos – como a situação

da mulher ou da saúde – e os que abordam experiências passadas ou de outros

países para falar sobre democracia.

Saúde e democracia Wilson Fadul Volume 3

A democracia como valor

universal

Carlos Nelson Coutinho Volume 9

Estados unidos: sistema

democrático e relações com

o terceiro mundo

Hélio Jaguaribe Volume 10

Tarefa dos intelectuais na

revolução democrática

Florestan Fernandes Volume 14

Cultura e democracia no

Brasil

Carlos Nelson Coutinho Volume 17

A democracia como valor

operário e popular

Adelmo Genro Filho Volume 17

A ideologia autoritária no

discurso democrático: o

direito de greve, a autonomia

sindical e a liberdade de

organização partidária na

constituinte de 1946

João Almino Volume 19

Mulher-Direitos-Democracia ZuleikaAlambert Volume 21

A atualidade da questão

nacional no debate pela

redemocratização do país

Adilson de Oliveira e Luiz

Pinguelli Rosa

Volume 24

Crise da democracia e

abertura no Brasil

Miguel Arraes Volume 29

Populismo, autoritarismo e

democracia, nas presentes

condições brasileiras

Hélio Jaguaribe Volume 29

Semântica e democracia Zulmira Ribeiro Tavares Volume 29

Dentre estes textos, destaca-se a polêmica entre Carlos Nelson Coutinho e

Adelmo Genro Filho, sobre a incorporação da democracia representativa como um

valor no campo da esquerda revolucionária. Enquanto Coutinho concilia teoricamente

o modelo de sociedade socialista com a democracia política, Genro Filho considera

que os verdadeiros avanços democráticos só são possíveis no contexto de mudanças

na estrutura da produção. Nesse sentido, somente a criação de conselhos de fábrica e

de formas diretas de democracia seriam caminhos possíveis para uma mudança

efetiva na vida da classe trabalhadora, sendo a democracia burguesa uma forma de

mais elaborada de legitimação da dominação das elites sobre o povo. De certa

maneira, é possível afirmar que a polêmica retrata as tensões entre uma variante da

esquerda mais radicalizada, oriunda dos enfrentamentos diretos e clandestinos ao

regime autoritário, e outra mais moderada, que aposta na aliança com setores liberais

para superar o autoritarismo encontrando pontos de consenso numa frente ampla.

Cabe, em outra oportunidade, investigar as relações entre esta postura frentista e a

tradição da esquerda pecebista no período democrático 46-64, quando o partido

apostou numa aliança com frações da burguesia nacional como caminho para derrotar

o latifúndio e o imperialismo, identificados como inimigos prioritários.

Ainda no campo das aproximações entre os debates da esquerda pré-64 e as

discussões presentes em ECB, é preciso atentar para o espaço ocupado pela questão

nacional. A articulação desta questão com a defesa da democracia nas páginas da

revista representou a renovação de uma tendência dos anos 50 e 60, qual seja, a

compreensão de que a construção da democracia em uma sociedade periférica exige

a reafirmação da soberania nacional contra os interesses imperialistas. Nesta leitura,

os entraves à democracia num país como o Brasil residiriam justamente na aliança

entre setores da burguesia nacional e o grande capital estrangeiro, cujos interesses

estariam melhor contemplados num regime autoritário, capaz de submeter os

trabalhadores e aumentar as margens de exploração.

Conclusão

Este levantamento inicial com os artigos sobre o tema da democracia na revista

Encontros com a Civilização Brasileira serviu como indicativo da permanência de

certas questões no campo da esquerda. A análise da variedade de narrativas

presentes na publicação aponta para uma significativa heterogeneidade no debate

intelectual que cercou os opositores do regime autoritário. Não obstante, é possível

perceber no periódico uma linha de continuidade com as grandes interpretações do

Brasil que orientaram as formulações políticas do PCB no período 46-64. Nesse

quesito, destacam-se a articulação entre questão nacional e questão democrática e a

defesa do caráter frentista das lutas pela democracia no país. Este primeiro artigo,

ainda um tanto especulativo, busca apontar as linhas para uma agenda de pesquisa

que permita compreender as movimentações das diversas variantes da esquerda

brasileira no processo de incorporação da democracia como uma temática prioritária.

Os estudos no escopo da revista ECB podem contribuir para a rejeição do argumento

comum de que a trajetória das esquerdas brasileiras esteve, pelo menos até a década

de 1970, marcada pelo desprezo à democracia como um valor. Ao buscar suas

referências nos debates anteriores ao autoritarismo, os articulistas de ECB

apresentam a bandeira democrática muito mais como a continuidade de uma tradição

constituída do que uma ruptura completa com os cânones da esquerda pecebista e

petebista dos anos 50. Entretanto, é evidente o diagnóstico acerca da necessidade de

atualização das leituras de então. Aprofundar as análises desta fonte permitirá

identificar com maior precisão quais são os pontos de continuidade e quais aqueles

em que há ruptura em relação ao passado reivindicado na construção de um conceito

próprio de democracia. Em seguida, cabe comparar estas elaborações com outras

narrativas formuladas durante o processo de transição institucional sobre como as

esquerdas devem conceber e defender uma nova institucionalidade democrática. Isso

pode ser feito através do estudo de outros periódicos, como Lua Nova e Novos

Estudos Cebrap, cada um com uma apropriação particular do passado e uma projeção

específica do futuro.

Bibliografia:

ANTELO, Raul. As revistas literárias. Boletim de Pesquisa NELIC, Florianópolis, v. 1,

nº. 2, 1997.

BEIGEL, Fernanda. Las revistas culturales como documentos de la historia

latinoamericana.

Utopía y Praxis Latinoamericana. Universidad del Zulia, Venezuela, año VIII, nº 20, pp.

105-

115, marzo de 2003.

BERSTEIN, Serge. L'historien et la culture politique. Vingtieme siecle: Revue d'histoire,

Paris, nº 35, pp. 67-77, Jui.-Set. 1992.

________________. A cultura política. In: RIOUX, Jean Pierre, SIRINELLI, Jean-

François (orgs.). Para uma história cultural. Lisboa: Estampa, 1998, p. 349-363.

CAMARGO, M. L. B. . Sobre revistas, periódicos e qualis tais. Outra Travessia, nº

40/1, Ilha

de Santa Catarina, pp. 21-36, 2º semestre de 2003.

__________ Não há sol que sempre dure. Boletim de Pesquisa NELIC, Ilha de Santa

Catarina,

v. 2, nº 3, pp. 2-8, 1998.

__________ Novos lugares: à guisa de introdução. Boletim de Pesquisa NELIC, Ilha

de Santa

Catarina, nº 5, pp. 1-5, 1997.

__________ Resistência e crítica. Revistas culturais brasileiras nos tempos da

ditadura.

Revista Iberoamericana, Pittsburgh, v. LXX, nº 208-209, pp. 891-913, 2004.

COUTO, Cristiano Pinheiro de Paula. Intelectuais e exílios : confronto de resistências

em revistas culturais Encontros com a Civilização Brasileira, Cuadernos de Marcha e

Controversia (1978-1984). Porto Alegre, 2013, 235p. Tese (doutorado em História) –

Departamento de História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

CRESPO, Regina Aída. Revistas Culturais e literárias latino-americanas: objetos de

pesquisa, fontes de conhecimento histórico e cultural. IN: Cadernos de Seminários de

Pesquisa / orgs. Mary Anne Junqueira, Stella Maris Scatena Franco. – São Paulo:

Departamento de História da Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas.

Universidade de São Paulo / Humanitas, v. 2, 2011.

CZAJKA, Rodrigo. Páginas de resistência: intelectuais e cultura na Revista Civilização

Brasileira. Campinas, 2005, 126p. Dissertação (Mestrado em Sociologia da Cultura) –

Departamento de Sociologia, Universidade Estadual de Campinas.

________________. Ênio Silveira, o epistolário a Castelo Branco e o delito de opinião.

Anais do V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina “Revoluções nas

Américas: passado, presente e futuro” ISSN 2177-9503 10 a 13/09/2013.

KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência e horizonte de expectativa” In:

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos

históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-RJ, pp. 305-327, 2006.

LAHUERTA, Milton. Intelectuais e resistência democrática: vida acadêmica, marxismo

e

política no Brasil. Cadernos AEL, v. 8, nº 14-15, pp. 57-92, 2001.

LIMA, Guilherme & MARIZ, Ana Sofia. Editora Civilização Brasileira: novos parâmetros

na produção editorial brasileira. Seminário Brasileiro do Livro. Rio de Janeiro, 2009.

MANNHEIM, Karl. O problema das gerações. In: Sociologia do conhecimento. v. 2,

Porto: Rés, p.114-175, 1986.

MARIZ, A. S. Editora Civilização Brasileira: o design gráfico de um projeto editorial

(1959-

1970). Rio de Janeiro, 2005, 180p. Dissertação (Mestrado em Design) – Programa de

Pós-

Graduação em Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

MORAÑA, Mabel. Revistas culturales y mediación letrada en América Latina. Outra

Travessia, nº 40/1, Ilha de Santa Catarina, pp. 67-74, 2° semestre de 2003.

OLMOS, A. C. A. . Práctica intelectual y discurso crítico en la transición. Punto de Vista

y

Novos Estudos del CEBRAP. Revista Iberoamericana, Pittsburgh, v. LXX, nº 208-209,

pp.

939-955, julio/diciembre de 2004.

PLUET-DESPATIN, Jacqueline. Une contribution à l’histoire des intellectuels: les

revues. In:

RACINE, Nicole; TREBITSCH, Michel (orgs.). Sociabilités intellectuelles: lieux, milieux,

réseaux. Le Cahier de l’IHTP, Paris, IHTP/CNRS, n° 20, pp. 125-136, 1992.

RÉMOND, René (org.). Por uma história política. 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora FGV,

2003.

RIDENTI, Marcelo. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960. Tempo Social, revista de

sociologia da USP, v. 17, nº 1, pp. 81-110, 2005.

ROCCA, Pablo. Por qué, para qué una revista (Sobre su naturaleza y su función en el

campo cultural latinoamericano). Hispamerica, año XXXIII, nº 99, pp. 3-20, diciembre

de 2004.

ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político. Revista Brasileira de História, v.

15, nº30, pp. 9-22, 1995.

SARLO, Beatriz. Intelectuales y revistas: razones de una práctica. Le discours culturel

dans les revues latino-américaines de 1940 à 1970. América, cahiers du CRICCAL

(Centre de Recherches Interuniversitaire sur les Champs Culturels en Amérique

Latine), nº 9-10, Presses de la Sorbonne Nouvelle, Université de la Sorbonne Nouvelle

– Paris III, pp. 9-16, mars 1992.

SILVEIRA, M. R. J. A Revista Civilização Brasileira: um veículo de resistência

intelectual.

Rio de Janeiro, 2007, 134p. Dissertação (Mestrado em Letras). Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro.

SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.). Por uma história

política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, pp. 231-270.

__________ Le hasard ou la nécessité? Une histoire en chantier: l’histoire des

intellectuels. Vingtième Siècle. Revue d’histoire, nº 9, pp. 97-108, janvier/mars 1986.

____________. Génération et histoire politique. Vingtième Siécle, Revue d’Histoire, v.

22, n. 22, p. 67-80, 1989.

____________. Effets d’age et phenomenes de generation dans le milieu intellectuel

français. Cahiers de l’IHTP, nº 6, pp. 5-19, nov. 1987.

TOLEDO, Caio Navarro de. A modernidade democrática da esquerda: adeus à

revolução?

Crítica Marxista, São Paulo: Ed. Brasiliense, nº 1, pp. 27-38, 1994.

VIEIRA, Luiz Renato. Consagrados e malditos: os intelectuais e a Editora Civilização

Brasileira. Brasília: Thesaurus, 1998.

WILLIAMS, Raymond. A fração Bloomsbury. Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, nº 6,

pp. 139-168, 1º semestre de 1999.

__________ Marxismo e literatura. (Trad. Waltensir Dutra). Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 1979.

WINOCK, Michel. Les generations intellectuelles. Revue Vingtieme Siecle, Paris, n°

22, pp. 17-38, 1989.