Jacques Rittaud-Hutinet - Os irmãos Lumiere

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  • 8/3/2019 Jacques Rittaud-Hutinet - Os irmos Lumiere

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    \

    Dados de Catalogao na Publicao(CIP)Internacional(Cmara Brasileira do Livro,SP, Brasil)

    OS IRMOS LUMIERE

    95-4606 CDD-79L4309

    Y ARA LARANJEIRA

    L UCIA NO L OP RE TO

    R it taud -H ri ne t, [ acqu esOs irmos Lurniere /[acques Rittaud-Hutiner; Tra-

    duo VaraLaranjeira e Luciano Lopreto. - So Paulo:Scritta, 1 99 5. - (Persona)

    JACQUES RITTAUD-HuTINET

    Tulo original: Les frres Lumire: l'invention ducinma

    ISBN 85-7320-027-8 TRADUO:

    1.Cinema - Histria. 2.Lurnire, Auguste,1862-1954.3.Lurnire, Louis,1864-1948.I. Trulo. 11.Srie.

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Cinema: Histria 791.4309

    1995Flammarion.

    l" edio brasileira: dezembro de1995 EDITORA PGINA ABERTA LTDA.

    P u bl ic ad o m e di an te c on tr at o c omditiollsFlammarion

    TIS C R I T T A

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    X I V

    DIVERSAS "SADAS" FORAM, ASSIM, FILMADAS.Depois de 13 de feverei-ro de 1895,o aparelho foi objeto de um pedido de "patente dein -veno". Promio manifestou rapidamente um apaixonado interessepela mquina que Charles Moisson havia acabado de constru ir. Sobas ordens de AntoineLurnire,explicou-lhe o funcionamento. Comuma pacincia muito irnica:

    Est vendo, meu caro, muito simples; at mesmo voc vai enrcn-

    der. Tem sua frente uma grande lanterna e uma pequenacmera,Para projetar o filme, voc coloca a grandeatrs da pequena. A lan-terna emite a luz e a crnera desfila os filmes e amplia a imagem.

    Promio acariciava o aparelho tinindo de novo:- Ento, este aparelho pode fazer tudo?- Pode. E quando quiser filmar, voc pega a caixa pequena,

    leva para onde quiser, e filma o qu '1'.Uma vantagem enorme: a crnera pesava apenas cinco quilos,

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    donde a grande malcabilidade para utilizao em relao aos futurosaparelhos concorrentes.

    "Ento, pode-se ao mesmo tempo projetar e filmar?"A bonomia de Charles Moisson suportava mal, muito mal at, o

    maneirismo um tanto altivo daquele jovem. Este, soba aparncia depoeta arrivista, possua uma viva inteligncia. Infantiliz-lo era, en-to, o mesmo que tortur-Ia.

    - Minha criana, voc pega com a sua bela mozinha esta lindamanivela, e voc a gira na velocidade de quinze imagens por segundo.Isso correspondc exatamente a duas voltas. Voc pode at pegar a mani-vela com o polegar e o indicador e levantar o dedo mnimo, se quiserparecer distinto ... As mocinhas vo certamente apreciar muitssimo!

    E Charles Moisson lhe explicou pormenorizadamente que essacadncia reduzia a cintilao, evitando que a imagem trepidasse, oque acontecia inevitavelmente quando a velocidade era mais lenta.

    Premio, fascinado, ouvia, visivelmente dominado por uma extraordi-nria emoo, uma paixo sbita pela pequena mquina. Promio quisentender tudo. Procurou imediatamente desmontar a mecnica, de-pois remont-Ia, e at engrax-Ia.. . Uma vocao cujo proselit ismoCharles Moisson tentava com dificuldade represar. Explicou-lhe,enfim, que se no ultrapassasse a velocidade de dezesseis imagenspor segundo, poderia fazer economias substanciais: "Quer saber porqu, no? bem verdade que o problema no to simples!"

    Promio armou, ento, uma pequena desforra. Declarou com arde desprezo: "Se girarmos mais rpido, o filme dura menos tempo, e

    como j dura s um minuto ... mal teramos tempo de dar umapiscadinha vizinha e j estaria terminado."

    L Ima das Sadastia fbricaLumirefoi apresentada ao pessoal da f-brica. Haviam preparado uma mesa camponesa, com po, lingias, pre-sunto. Mas sem vinho. Uma cerveja leve, cidra mais que doce, e sucos.

    "Nossos primeiros espectadores . .. ", observou Antoine com a idiapreconcebida de avaliarri impacto, como diramos hoje, dessas ima-gens sobre um pblico heterogneo.

    Os IRMOSL UM ERE 185

    Ligou o aparelho. Alguns gr itos na sala. Reconhecer-se? Reco-nhecer o vizinho? Uma histria conhecida: a maioria das pessoas quesaa da fbrica estava alegre. Pareciam, ento, perceber isso. Comose v-Ios sobre o lenol branco pendurado na parede permitisse olhar,pela primeira vez, aquilo que se via todos os dias.

    - Eu ando assim, ?- E eu sou assim?Depois, de repente, um silncio na sala. Timidez ou medo?"So bruxos, os patres!", exclamou um operrio, com a voz trmula.Anne-Louise, arrepiada, t inha-se encolhido um pouco na cadei-

    ra, no tendo mais coragem de se mexer. O filme foi bisado. Repas-saram. Diversas vezes. Algum murmurou algumas palavras ao ouvidode Anne-Louise,Era seu vizinho, Promio, cuja mo havia deslizadosobre seu ombro e que ela retirou com um gritinho, bastante forre,entretanto, para que Promio pudesse recear olhares indignados ou

    zombeteiros ao seu redor."Pegaram a alma deles!", sussur rou no pescoo da moa.A idia a terrificou. Encolheu-se ainda mais na cadeira, com os

    joelhos grudados no peito. Em torno dela, r isos nervosos, no propria-mente libertadores.

    "Mas voc, meu anjo, novo roubar sua alma ...", prosseguiuPremio com ar tentador, mefistoflico. .,

    Agora, um pouco mais tranqila, f ingiu ter medo. Promio.quis apro-veitar: uma mo no joelho, subindo rapidamenteat acoxa. Um barulhoterrivelmente seco estourou em sua cabea. A primeira bofetada da his-

    tria das salas escuras, a primeira da histria do cinema, sem dvida. Deuma fora espantosa."Ela me ama", disse ele imediatamente, "destavez, tenho certeza, ela me ama!" E esta pergunta que traduzia sua per-plexidade: "Como um ser to pequeno pode ter tanta fora?" O pblicohavia recomeado a aplaudir; um minuto era bem pouco.

    A multido saiu para o jardim, lentamente, em direo mesa.Promio e Anne-Louise saram por ltimo. Uma operria de aventalno tinha coragem de fazer perguntas a Augusre.Ernbaraada por es-tar jun to com aquela multido que comia e discutia. Como de costu-

    II

    i III

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    1 86 ~ J AC QUE S R1 TTAUO -Hu T1 NE T

    m e. C om o s e a e stra nha im ag em s e xis tisse c om a ng stia , C hr is tin eacab ava de co mpreen der qu e ela existiria ali, d entro d o film e, paras em pr e. N o e nta nt o, C hr is tin e C ha mp ie r e ra d e h b it o e xtr em am en tefalante. A nn e-L ouise, de b ra os cruz ado s, estava em p a seu lado ,co m vo ntade de lhe flar so bre oboniro,m as a b on do sa presen a do sp at r es , a f ve is e d is ti nt os , d e u ma d is ti n o im pr es sio n an te , m ai s g la -cial do que todas asvocifcraes d a c on tr am e str e, s f az ia a um en ta r.s ua ti mi de z. S ua p ergu nt a a ss ed ia va C hr is tin e, a rr as ta va -a c om o a u m aso mb ra , c om o a qu ele c orp o gr an de e d ese ng on a do cu jo f ard o a rra sta -va a tr s d e si, d o tra ba lh o d a c asa a o tr ab alho d a f b ric a. N em f eliz n emin fe li z; u m p ou co e nt ed ia da , p elo r eto rn o i nc an s ve l d os d ia s. Tris te zan o , a us n cia d e a le gr ia . N ad a m ais. E nfim , pe rg un to u b ru sc am en te:"E en to , senho r L um ire, vo u m e ver sair d e sua fb rica d urante to daa vida? C om a m esm a charrete e o s d ois cavalos, um preto e um b ran-co ? E st b em cerco de que serei eu, que serei sem pre eu?"

    A ugu ste so rriu e a tra nq iliz ou . A p od ero sa A lb er tin e R in gu et s ehavia apro xim ad o. C on tram estre d o d epartam en to d e chapas fo to -.grficas. M ulher d e carter. O bedien te co m seus m estres m as vigi-lante co m su as o perrias. A lb ertin e tinha u m pesco o largo e leve-m en te salpicad o d e espin has. Fran ziu as so brancelhas. T ud o aq ui aperturbava, a fa sc in av a: a e xc es siv a b on da de d os p atr e s, su as in tri-gantes invenes. P ara as pessoas da o ficina, um a m e severa m asa nsio sa. S aiu d o gr up o. U ma c are ta d olo ro sa a tr ave sso u-lhe o r osto :

    "No tem m edo de tudo isto, senhorLumire?"

    "

    II

    A nto in e h avia o bse rv ad o a s r ese rv as d aq ue le p blic o im pro visa -do. Falou a respeito co m os filho s, que o tranqilizaram apenas emparte. D e acorelo co m Lo uis, o dia ele trabalho, a lem brana ele umcan sa o q ue traz ia co m ele a lim ita o d as ho ras, o cheiro do s revela-d ores, deernulsesva po ro sas , tu elo iss o "n o Ih es tr az n ec essa ria -m en te a fe licid ad e e o o tim ism o".

    " Se ria p re cis o te nta r c om o ut ra s p es so as !"- C erto , m as prudncia! N o se deve cham ar m uito a ateno ...

    M os tr e o f ilm e, e d eix e a co nte ce r.

    Os IRMOS LUMERE (> 187

    U ma tim idez in slita, n a b oca d e A nto in e.Lo uis Lurnicre deveria fazer, no dia 22 de m aro de 1895, um a

    c on fe r nc ia so br e a pr od u o d as ch apas sen s ve is e , p ri nc ip al men -te , s ob re f oto gr afia s e m c ore s. A a ssist nc ia a nu nc iad a Sociedadede Incen tivo Indstria N acio nal, na rua de R ennes, em P aris, erabrilhante. D everia co ntar eo m L o n G au rn ont, d ireto r d o C orn pto irde Ia pho tographie, Geo rges D em eny, que, depois do fracasso dapro posta de venda, havia cessado de se corresponder co m Lo uis, e,enfim,jules C arpcntier, q ue d esem penharia um papcl essencial no sd estin os d o a par elh o. U m p b lic o m uito ilu str ad o, d c c on he ce do re s,eleexpertse ele e specialistas. U ma pro va aind a m ais d elicada po r n oco nta rem a pe na s c om a mig os . A nto in e, e ntre ta nto , m ostro u- se se guro : " O seu cro no fo tgrafo no passa de u ma curio sidad e d e salo . P oqu e n os pro vo cariam ? P or qu e fun cio na m elho r do qu e o s o utro s?"

    N o esprito ' de Lo uis, a dem onstrao que se dispunha a fazer

    tin ha apen as d ois o bjetivo s. Im po rtantes, m as n ada sen sacio nais.Acrescentar fo to grafia d uas no vas q ualidad es: a co r, da qu al era u ma paix on ad o, e o m ov im en to . S im ple s c urio sid ad e d e c ie ntis ta o fe rec id a a o u tro s c ien ti st as.

    E m p eq ue no s g ru po s co mp assa do s e fa la nte s, se nh ore s, v elh os cm o os transpu nham o gran de po rtal d a S ociedad e. D e fraq ue e carto-la, g ord os o u m agro s, usan do b arb a lo nga o u b arb icha, su biam a escad ar ia m o nu m en ta l a t a s ala d e c on fe r nc ia s. L , reinava u m cheiro dem ad eir a e nc er ad a. N as p ar ed es , g ra nd es q ua dr os. R et ra to s q ue p ar ec i-

    am tanto co m o s r ecm -chegado s pela severid ad e e pela po stu ra, q uem al s e f az ia a d if er en a , p en so u A ug uste, en tre o s vivo s e o s retrata-d os. A lg um as b elas fo to s ta mb m , q ue a brira m c am in ho e ntre a s te la sp ais ag en s, s or ri so s d e m u lh er es , r ua s c ra va da s n a i mo b il id ad e. E a in dm ai s a lg un s r et ra to s d e o lh ar f ix o. S em pr e f ala nd o, s v ez es e nc er ra n-d o o discu rso , u ns se sen tavam , en qu anto eu rro s, em p, esperavam ,p ara se sen ta rem, qu e u m am igoOll c ol eg a v ie ss e a o s eu e nc on tr o.

    A ugu ste preparava aten tam en te o m aterial d e pro je o . L ouisd ev ia f ala r, A u gu st e a ss is ti -I a, e A m ain e L um ie re d ar -l he s a po io m u ra

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    Haviam sentado na primeira fila, fuz ilan do o s retard atrio s co m o solho s. Tiro u do casaco um eno rm e charuto para m ostrar aos o utro s aco nfian a inab alvel em seu s filho s. U m so rrisomaroton os l b io s,po is os trabalhos de Auguste e Louis j tinham feito com que sefalasse m uito d eles, e a qu ela s es so d eve ria a tes ta r pr og re sso s d ec i-sivos d a co r, o u s eu f ra ca ss o.

    O burburinho dos ouvintes e a fumaa dos cachimbos e do s cha-rutos invadiram rapidam en te o lo cal, asso cian do cheiro s e barulhos auma mesmaefervescncia. As vo zes eram altas ou b aixas, conformese falasse de fo to grafia em geral, o u d e u m fo tgrafo em particular.Um ho mem go rdo, de uns sessenta anos, em co mpanhia de um com -parsa m agro com o um a vara seca, de terno preto e co lete de seda,ex pr es sa va s ua i nc er te za :

    - O senho r acha isso possvel?- E n qu an to e st ud io so, duvido - rangeu o vizinho com voz de

    falsete -, mas enquanto ho mem , espero que sim !O be sid ad e e im po rt nc ia, m agreza e azedume, do is pares que

    pa rec ia m e star e nc arnados naqu el es d ois s er es c uja s o pin ies se anun-ciavam ferozm en te racio nalistas, cientficas e lgicas para um a reli-gio do pro gresso que tinhase us rito s e su as pr io rid ad es.

    - Foto grafia v iva ? G osta ria d e v er . ..- Deixe-me rir!- truque!- Hverd ad es qu e prec is o s ab er o cu lta r!"Risada do hom em m agro a q uem as r ugas d av am u ma se cu ra q uas e

    totmica."Preparei-lhes p ergu nt as c omcido!"A po io u o queixo na bengala com em punhadura de m arfim . Seu

    max ila r d ava u m re le vo e sq ue l tic o b oc a, c uja s p ala vr as se d eb u-lhavam , em peq uen os trances: "Uma fo to mecnica capaz de dar

    f No original "[I y a des lumires qu'il faut savoir mettre sous leboisseau!". O jogo de palavras com o nome Lurnire perde-se na traduo.

    Os IRMOS LUM tRE 189

    movimento a uma mo ou umbrao?M ais u m d aq ue les golpes demgica d a m od a!"

    A nto in e b atia os ps de im pacincia. A acolhid a crtica e u m tan -to assustada do s o perrio s da fb rica lhe havia deixad o u ma im pres-so de incerteza basta nte p en osa. A qui, em P aris, a aco lhida seriamel ho r. Repe tia a si mesmo, persuadia-se, deixava-se acred itar. Comote ria go sta do de estar no lugar d os filhos: n o esp erar, impotente, nof un do d a p olt ro na; agir, manipular os objetos, lutar ...

    Terminados o s p reparativos, Louis falo u por um a longa hora sobreas fo tograf ias co lor idas. P o r f im, A ug us te pr oje to u v rias d elas sobre ate la. O s b uq u s e ra m e sp l nd idos. R eno ir os teria assinado. Florest ornad as chamas o fe rt ad as a dm ir a o , e mo o, e xplo so d e u maluz qu e satu rava as fo rm as, q ue as i rr ad iava do mago at a exalaoquase branca de sua bele za . D epois vier am a s pa isagen s ad ormecidase a qued a d e um so l po ente cu jas ru bo riz aes davam noite ares de

    cate dra l e ng olid a n um a im en sid o d e n uvens cravejad as de o uro c vi-trais. E nfim , o silncio dos odores. Overo era eivado de verdes eamarelos, q ue pe nsvam os ter surpreendido, so b a lgu ma s pe dras ro -d as d e m usgo, o s r p id os m u rm r ios de uma fom e, as gu as claras efr ias. T ud o p alp ita va . U ma es pe ra q ua se im v el d em ais p araser verda-de. A dm ira ra m. A t m es mo o s in im ig os a dm ira ram.

    " melhor do que um quadro!", afirmou o homem magro dei~xan do cair d esajeitad am ente a bengala que ovizi nh o g o rd o ernp ur-rou com o p.

    O co de marfim esculpido que s er vi a d e c rn pu nh ad ura tinha

    acabado de perder um pedao da cara. C onsternado, o p ro pr ietrioaca ri ci ou a fer id a: "Um presente de m ame! "m u ito t ri ste!"- Agora - disse algumapontando oaparelho que acabav a de

    ser desligado - po derem os fazer m elho r do que os pinto res. E semas afetaes!

    Lo uis fico u to maravilhado co m aqu elas fo to grafias coloridas,que se to rn ariam m ais tard e os famosos autocro mos, a ponto de es-quecer as"fotos animadas" que havia a ca ba do de anunciar.Augusteinter rompeu: "Esperem, no s isso..."

    e ,;:.,

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    Na tela, as operrias s ar am d a f b rica, depois o s do is cavalos, umpreto e outro branco, co m a cab e a o scilando so b o esforo. E stavampuxan do a eno rme carroa.Uma ovao levan to u o pb lico .

    "O que' deu neles?", r esfo le gou Auguste._ E u tinha certeza - gritou o homem gordo q ue d es ab o toou o

    colete e enxugou a fronte -, eu sentia que estav a vin do , acabaramd e cap tu rar vida!

    Com lgrimas nos o lhos, deu uma cotovclada entusiasta nas cos-:telas do vizinho:

    _ As p esso as q ue a cab ou d e ve r e sca pa ra m m o rte .. . A r eligioacab a de so frer u m du ro go lpe!

    _ A m enos que os padres tomem a inveno - disse acidam enteo vizinho . - Tudo o que no podem queimar, tomam!

    U m a tosse ro uc a e g ro ssa o su fo co u:"Asm a, m eu caro , asm a, toda vez que m e emo ciono ..."

    S em p iedade, o ho mem gordo lhe desferiu umvio lento tapa nascostas e sugeriu, c om vo z m align a, q ue f osse film ad o ra pid am en te ,.ha ja v is ta s eu e st ad o.

    F estejad os, ad ulad os, b eijad os, o s d ois irm o s a co lh era m a quelesucesso im previsto com um misto de alegria e incornpreenso.

    "E u disse para vo c trazer outro s film es", disse Auguste ao ir-mo."E st vendo, a s pesso as q uere m m ais!"

    Derneny se aproxim ou d eles e aperto uas m os d e L ou is:_ inacrcditv el, em to po uco tem po !- O senhor gostou?

    _ Quanto pe rfu ra o d as p elcu la s, v oc tin ha ra zo._ Temos ain da algum as dificuldades em estab iliz ar o s azuis -continuou Louis sem ouvi-Ia. - Nossas foto s co lo rid as ser o a in damelhoradas. H muito a fazer. O que acha dos meus cus?

    Lon G au mo nt se a pro xim ou . T im idez o u p ru dnc ia d ip lo mt i-ca, disse quase friam en te: "E sto u ten tand o en tend er. .. "

    E m duas palavras, Auguste expl icouo q ue G au rn on t f in gia a pr en -"d er : a p cr sis tn cin re tin iana das imagens, criando a iluso d a co nti-nuidade do movimento, a partir de um desfile emal ta velocidade.

    t~!iII

    OS IRMOS LU~lIERE

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    do mais engraado do que os outros, mas o pblico popular, o verda-deiro pblico, vai ser maisdifcil."

    At mesmo as reticncias de Auguste no puderam conter o j-bilo de Antoine, que soltou uma risada de arrebentar pedras. Mistode nervosismo, contentamento e de exultao gloriosa:

    - Vamos dar-Ihes tempo para que sejam surpreendidos. Bemdepressa, estaro como eu, loucos de alegria! Estou to seguro deque faremos uma encomenda ainda mais importante a Carpentier:no vinte e cinco, mas duzentos aparelhos!

    - Vamos esperar um pouco! - disse Louis com irritao.- Ser preciso que voc acompanhe o negcio, Louis ...- Como de costume, papai! - respondeu prostrado.- Vejo um cartaz magnfico, pessoas elegantes passando sob globos

    cintilantes . .. Ns nos contentaremos, primeiro, com um pequeno ann-cio a mostrar um burgus gesticulando e um militar que r ibatendo nas

    coxas ...Vejo a multido entrando numa imensa sala, encontraremos umacave um tanto incomum e, espero, no muito mida. Na porta de entra-da, com letras de fogo, o cartaz que levar o nome da nossa lanterna!

    - Pois ; a propsito, que nome?

    Procuraram o dito nome em Paris e o encontraram em Lyon, doisdias mais tarde, depois de uma luta oratria que durou vrias horas.A discusso teve lugar nacasa gmea.Era, naturalmente, a casa dosdois irmos. Gmea porque as duas metades que acompunham eramexatamente simtricas,cada cmodo, cada corredor, cada porta deum dos apartamentos tendo sua exata rplica na outra.

    Um jardim de inverno com cadeiras de vime acolheu o pai e osdois filhos, em momentos qualificados de graves por Antoine, quepediu s esposas dos filhos que deixassem a porta fechada, que noabrissem a ningum, nem a elas mesmas, antes que fosse tomadauma deciso quanto ao nome que se daria "nova maravilha".

    A maravilha estava l, postada no centro, sobre o chassi de mog-no, exposta admirao de todos como um trofu trazido de Parisaps o legt imo triunfo.

    Os IRMOS lUMIERE. 193

    "Kingrafo?", props Louis.Auguste, que pressentia que o tdio ameaava uma tarde que

    ele teria desejado mais agradvel e divertida, soltou com sobriedadesarcstica: "Horrvel!"

    Antoine, para desviar o golpe, ou amortec-Io, sussurrou: "Helio-grafo; mais suave!"

    Sua poltrona estalou de prazer, quando ele se espreguiou dandoum bocejo satisfeito.

    Louis continuou sem ouvi-Io:- Seria preciso que o nome do aparelho desse a idia do movimento.- Em outras palavras - declarou Antoine um pouco aborrecido

    -, algo cien tfico, sem ser pedante!Louis ergueu os olhos para ele:- No me parece to bvio assim!- O que voc quer dizer com isso? - bramiu Antoine, descon-

    fiado, infligindo poltrona um movimento de quadris to violentoque o vime emitiu um gemido de protesto.

    - E Fotobioscpio? -lanou Auguste- Ainda mais horrvel! - disse raivosamente Antoine.Louis encarou sucessivamente os dois homens. O silncio, tenso

    como um arco, esticou-se, pronto a se romper. Augustc deu de om~\ros.--- H de existir uma soluo - disse Antoine, subitamente mis-

    terioso.- Vamos, diga!Antoine aproveitou a pergunta para se fazer de rogado, virar as

    costas e olhar a neve caindo, o cinza do cu, a morosidade do dia:Lyon sob a neve v depressa a brancura trnsformar-se em lama es-corregadia e cinza. Antoine parecia estar falando consigo mesmo:"Magnfico! Encontrei!" .

    Louis lanou-lhe um olhar oblquo: "Pode-se saber?"Antoine Lurnire estalou os dedos e, extasiado, esboou um pas-

    so de valsa um tanto pesado levando-se em conta os seus noventa ecinco quilos: "Enganei-me de civilizao. Heligrafo vem do grego. preciso pensar no oeste: Roma antiga est com a resposta!"

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    Para deter a ateno, Antoinc jogava com o paradoxo e, involun.tariarnenre, sern dvida, com os nervos dos ouvintes, certo deumachado que todos admirariam. Louis temia o pior: decepcionar o paidesaprovando sua escolha. Ainda mais porque Anroine, por anteci-

    pao, j fazia poses de gnio incomprecndido. "Adivinhem: a nossapequena mquina domina as pessoas que a vem ... "

    Suspiro extenuado de Louis.- Csar? Por que no Csar?! - bradou Auguste com um risinho

    seco -,\. - Absurdo! - indignou-se Antoine.

    - Vamos ter de suplicar, papai?Ento Antoine, rubro de emoo, com um orgulho meio herico,

    props, ou melhor, revelou sua idia: "Domitor!. . .Esplndido, no?"Expresso marmrea dos dois filhos. Apenas uma ligeira crispa-

    o dos maxilares traasentimentos que logo seriam declarados.Antoine pensou que deveria insist ir e, principalmente, explicar:- Dornitor, o dominador, ora essa!- Jamais! - cortou Louis, muito calmo.- E por que jamais, por gentileza?- Um nome de escravocratalSublime mas fulminado, Antoine se levantou:"Por quem voc me toma?"Dessa vez, Louis protestou. "Diga, vamos, diga!", disse Antoine.

    "Seu pai insuportvel!"- o nome que insuportvel, no voc!Auguste tentou acalmar o irmo, quecomeavaa perder a pacin-

    cia: "Afinal, papai tem o direito de ter idias, e at diz-Ias, por pio-res que sejam!"

    Antoine Lurniere, que se tinha levantado, deu alguns passos efoi se jogar numa inocente cadeira que urrou de dor: "Encontremcoisa melhor do que Domitor, vamos, encontrem coisa melhor!"

    Auguste atirou a primeira salva: "Movingrafa!"- No exatamente o mximo! - murmurou Louis, De repen-

    te, sonhador, disse em voz baixa: "E Cinematgrafo?"

    Os IRM OS LUM ERE o - 19':.

    Antoine obstinou-se: "Domitor! grande, simples, bonito!"- Nunca - gritou Louis. - Quando pronuncio essa coisa, te-

    nho a impresso de ver um sujeito feroz me ameaando com limaenorme clava!

    - Dornitorl todo o poder de LIma indstria que est progre-dindo!Auguste Lurnire revirava em todos os sentidos o nome propos-

    to pelo irmo: "Ci-ne-rna-t-gra-fo ... Vai fazer rir, no comeo, masnos acostumaremos, com certeza!"

    Antoine se descontrolou, com um enorme despeito no corao:" impronuncivel."Friamente, Auguste perguntou quem era o inventor do apare-

    lho. Ento, Antoine se inclinou: "Eu me calo. Os filhos se uniramcontra o pai!"

    Meio estouvadamente, Rose entrou no lugar: "Vejo, por seus ros-tos aliviados", ironizou, "que encontraram a soluo para todos osproblemas ..."

    Ela puxou o marido: "Tem um jardineiro l fora queest espe-rando porvoc ..."

    Molharam o filho do zelador. Com vontade. .Ele gritou, gesticu-lou, fugiu. Bem que mereceu: tinha acabado de pisar numa man-gueira que ojardineiro estava usando com todo cuidado. lima inven-o que poderia ajudar muito e cujos benefcios podia-se constatarno gramado e nas flores. O jardineiro praguejava: a mangueira ficou, lgico, entupida. Olhou pelo buraco, o moleque tirou o p. Asper-

    so em pleno rosto do jardineiro. Corrida. Pontaps no traseiro, pu-xes de orelha e, por fim, molharam o farsante. Pediram aojardineiroque surrasse o menino com mais convico, portanto, com mais for-a, o que fez com entusiasmo. Mas se molharam tanto que tiveramde tirar a roupa e se enrolar em toalhas quentes.

    Riram muito , por trs da crnera. Buscaram imediatamente ou-tros temas para filmes. Para um minuto, as escolhas eram simples.Um pouco de vida, alguns gestos bastavam. Bem depressa, muitascoisas pareciam entrar naquele minuto: tanto coisas como palavras, o

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    xando deserto o espao do final, breve abismo que j atraa a noite,aps o filme. Um lugar abandonado pelo movimento e ameaadopela ausncia.

    Os filmes seguintes mostra ram o presidente. do.congresso, o as-trnomo [ules [anssen, homem ilustre e respeitado, falando a.Lagrangc, conselheiro geral doRhne. Auguste Lumiere estreme-ceu: janssern, cheio de vida e de humor, parecia cercado pela admi-rao que lhe dirigiam, prisione iro de uma espcie de isolamento,.em meio a saudaes reverentes, chapus baixos que guardam umac'erta distncia intransponvel. O pensamento de Auguste no se des-pregava mais, naquela noite, dessa outra imagem, a que as pessoasimpem e que no arrancamos jamais, a que constri o olhar dos ou-tros e da qual sofremos involuntariamente a coao, a opacidade, odistanciamemo ...

    Cada espectador viu passar na tela diversas personalidades cient-

    f icas e pol t icas . Tinha-se a impresso de ouvi-Ias falar. Entre tanto,nada diz iam. Tinha-se a impresso de v-Ias em tamanho natural .To-davia, na imagem, eram muito pequenas. Seus olhos e bocas se movi-am; andavam; por fim, tiravam o chapu para saudar o espectador quese sentia honrado, e at mesmo l isonjeado, por estar em companhia degrandes personagens que pareciam, afinal, se interessar por ele .

    Antoine Lurnire, maravilhado com o entusiasmo dos fotgra-fos, que falavam de desempenho tcnico, dec idiu organiza r uma fes-ta "digna de Aladin", na Ciotat, em seu "castelo", como dizia : trintacmodos, trs atel is de pintura consrrudos em 181)1,oitenta hecta-res de terras para uma intimidade sem falhas"indo da costa at oPeymian'' . O conjunto havia sidoinauguradoem 4 de abril, como sefosse um monumento, com msica, coral das Crianas de Apoio e,noi te, fogos de artif cio seguidos de um concerto. Aprove itando to-das as oportunidades para reunir os amigos, dever ia fes te jar, no dia 2de dezembro, a aquisi o de seu porto pa rt icular.

    Antoine Lumire havia conhec ido La Ciotat em ci rcunstnc iasque muito haviam intrigado Auguste. Um certo Lazare Sell ier, me-cnico-chefe, havia l iteralmente assaltado Anroine eom arnabil ida-

    Os IRMO S LU IERE 199

    des, por ocasio de uma ida a Paris, a pomo de lhe dar um abrao empleno meio-dia, na avenida Champs Elyses, acompanhando o gestocom um relincho de alegria to potente, que diversos passantes seagruparam, meio preocupados, meio entreridos, Em seguida, Sell ierenal receu La Ciotat , lugar incomparvel, dotado de luz quase sobre-natural - "parecia os olhos da Vi rgem Maria, eler o pura que era".Antoine Lurnire, com ares de mistrio e circunspeco, havia dei-xado o filho Auguste ali plantado, "para se dirigir a lugares secretosque absolutamente no dizem respeito a profanos ..."

    No dia seguinte, Auguste havia pedido a Antoine algumas explica-es sobre uma condura que ele est imava estar no l imite da incorreo.Sbrio, um pouco cido, Anroine fez ao filho uma revelao que o dei-

    "Eou sem voz: srava ontem na reunio manica. Sellier um irmo.Voc no pode compreender..."Antoine se senti a t o prximo da franco-maonaria que uma loja do Grande OrienteelaFrana deveria, alguns

    anos mais tarde , ser chamada em sua homenagem Lumiere du Sud!Antoine havia entrado num daquele s de lrios, fe lizmente muito

    raros, que dizia serem santos, apesar de ser ateu alm de qualquermedida. Antoine acalmou o filho da melhor maneira que pde:

    - Vou lhe apresentar pessoas mui to interessames. .- E voc acredita em todas essas macaquicej, dos franco-ma-

    ons, acredita?- Fique tranqilo, no nada religioso!- mesmo? E os rituais? Se no forem superstio, o que so?- Declaramos nossa liberdade de pensamento desde 1877! Al-

    guns, bem verdade, continuam rel ig iosos. A tolerncia nossa pri-meira regra de ao.Terrvel i ronia de Auguste:

    - Se estou entendendo,vocsapagam Deus c ficam com areligio!'Seguiu-se uma desavena que durou algumas semanas."O que ser que ele ainda va i nos aprontar?", pergu nrou Augusre

    a Louis .As poucas pa lavras indulgentes de Louis aca lmaram-no apenas

    em parte: "Sem ele, o mundo seria mortalmente tedioso!f~o nico

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    de novembro, em Paris, para a solcnssima abertura das aulas naSorbonne. Sesses realizadas graas a um nico prottipo fabricadopor Charles Moisson: o primeiro exemplar de uma srie de duzentoscncomendados a[ules Carpentier ser entregue de fato somente em15 de dezembro, e u"'tilizado no dia 28, para a primeira projeo p-blica no salo indiano do Grand Caf, no nmero 14 do bulevar desCapucines.rern Paris.

    Eram soldados de infantaria, eram jovens, mas no muito boni-'tos. Com as mos nos bolsos, pavoneavam pelas ruas de Paris, doslados da Opra, no exatamente orgulhosos das calas vermelhasbufantes e daquele turbante escarlate cujo pornporn evocava umacrista de galo meio murcha. Outros, em seu lugar, estariam orgulho-sos, at mesmo arrogantes. Ao contrrio, os dois rapazes arrastavamsuas polainas com uma espcie de vergonha. A multido annima de

    desocupados os atropelava um pouco. Naquela vspera de Ano-Novo,o frio e as ltimas compras de presentes levavam alguns passantes acorrer, enquanto outros olhavam.

    _ O salo o qu? - perguntouAndrCarr, soldado de segun-

    da classe._ Indiano, o salo indiano! - respondeu, quase impertinente, o

    cabo de infantaria Paul Decorps. - Voc sabe muito bem, embaixodo Grand Caf, tem o salo indiano!

    _ O que ? um caf de m reputao? Vocj foi l?Andr era desembaraado, mas pouco experiente. Recompunha-

    se, portanto, quase sempre, servindo-se, com muita habilidade, dasimpatia que inspirava e da experincia dos outros; o quefazia, esti-mava com certo bom senso, com que ganhasse muito tempo.

    "Podemos ir sem correr nenhum risco de contrair uma doena! FoiMesguish, um amigo de confiana que me falou dessa coisa fantstica."

    Neves baixas c leves puseram-se a cair. Suavidade glacial._ No gosto do Ano-Novo ... Quanto a entrada?- Um franco!- Caro demais!

    OS IRMOS LUM ER E" 203

    Paul Decorps tirou a carteira e confidenciou:- Eles mostram fotografias mgicas!- NogOStOde magia! - grunhiu Andr Carr.- Do que que voc gos[a, ora essa? Voc no g O S (J de nada!

    Est sempre reclamando!

    Entre duas tempestades de neve, a calada luzia sob o brilho tr-mulo das lmpadas da rua. Uma infinidade de manchas pontilhandode branco a vacuidade da noite, maciez indecisa que vinha acariciar asformas do mundo antes ele nele derreter como uma ganga molhada.

    - Veja, aqui! - disse Paul, mostrando com o queixo o GranelCaf deslumbrantemente iluminado.

    Uma porra escondida, aberta, deixava entrever uma escada emcaraco!. Um homem de cartola, segurando uma bengala de empunha-dura prateada, sumiu porali. Um OUtro atravessou a porta saltitando,depois de ter-se virado para a rua. Medo de ser surpreendido.

    "Voc viu quem est entrando?" - disse Andr Carr.Paul Oecorps puxou o amigo at a entrada. Um garoto saiu, viu-

    os e interpelou-os. Lopold Maurice, cujo pai preparava a sesso,saudou ruidosamente o reencontro: os dois eram antigos alunos docolgio Chapral. Andr tirou o dinheiro. Lopoldrecusou com umagrandeza juvenil, ao mesmo tempo orgulhoso por sergeneroso e pre-ocupado por no cumprir com seus deveres de bilheteiro.

    - gratuito? - resfolegou A nd r C arr .- Sim e no! - disse Leopoldo, fazendo-lhe sinal para que guar-

    dassem segredo.-- Como assim, sim e no?- Depende das pessoas: as pessoas importantes no pagam, as

    outras sim. Ainda no estamos fazendo negcio aqui.Anc!r Carr ficou impressionado: a sala lhe parecia imensa, im-

    pressionante, at. Estava parcialmente iluminada. Nas parceles,rcvestidas de bambu, sorriam grandes fotografias de paisagens alpi-nas, de rios e de mares, enquanto, aqui eali, p resas de elefantes eri-giarn um exotisrno ameaador. Rudos de cadeiras, vozes grossas cgordas agrediram-no.

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    Um "ensaio geral" no exatamente glorioso, em todo caso bemdistante das pompas e das liturgias com que o futuro sculo tentariaenr iquec-Ia: uns temiam se aborrecer, outros receavam, sem diz-Ia ,um incndio. O gerente do caf estava com medo de perder dinhei ro;Mlis,com a barbicha desgrenhada, de ver o velho amigo se afundar.Antes de t-Ias vis to ,Mlis duvidava veementemente da eficcia es-petacular dessas tais "fotos que remexem". Conhecia muito bem oentusia smo excessivo de Amaine , do qual j havia zombado um pou-co, quando soube que ele havia arrendado de Borgo, gerente do GrandCaf, aquele horrvel salozinho a t rinta francos por dia, e por um ano.

    "Audacioso esuicida, meu velho Antoine!", ironizou Melis lus-trando o bigode. "Enfim, na falta de espectadores, o seu salo pode-r servir de apartamento para os amigos ou como um canto para vocfica r quando vier a Pa ri s!"

    Certamente, a reputao do cinematgrafo era mais do que boa.

    Os da Sorbonnc haviam gostado e os fotgrafos, dissipada a primeirasurpresa, dele falavam favoravelmente. Mas da a fazer com que aspessoas pagassem, da a assumi r o ri sco de alugar uma sa la! AntoineLurnire, e sua vaidade mundana, s6 pensava em seduzir, em fazeresquecer a presena dos inventores, Auguste e Louis, de quem al-guns comeavam a murmurar que tinham certa razo em tomar algu-ma distncia.

    Os olhos de AndrCarr se fixaram sobre o pano estendido nomeio do salo, cujo branco brilhante fazia oscila r os amarelos desbo-t ados com que haviam sido pintados os bambus.

    "V em frente! Seremos notados!", murmurou Paul Decorps.Sentaram-se no fundo da sala . Desconhec idos peroravam diante

    deles, parecendo no notar sua presena. Uma espcie de lanterna,instalada no longe deles, merecia todos os cuidados dos dois rapa-zes de gestos precisos e tcnicos. Andr Carr, apesar do escuro dofundo da sala, senti a-se bem pouco vontade. Paul Decorps tentout ra nqi li z -l o: " L opo ldme jurou que era supimpa!"

    - Vamos ver ...O operador Charles Moisson fez um primeiro teste, sem o fi lme,

    os IRMOS LUMIERE. 20S

    lanando a lmpada de arco. Um raio deslumbrante jorrou entre os

    dois carves da lanterna."E se queimasse?"Paul Decorps teve a maior difi culdade em conter o amigo: "No se

    preocupe, voc est aolado da porta, em trs segundos estaramos fora..."Antoine Lumiere postou-se , ento, diante da tela, espectral, gran-

    dioso: "Senhores", disse com voz trmula, "somos trinta e trs ..."Mostrou com a mo, num gesto largo, os doi s garotos: "Graas a essesdois jovens recrutas que vieram juntar-se a ns c landestinamente,t rinta e trs testemunhas deste novo milagre cient f ico!"

    Falava bem Antoine Lurnirc. Com emoo teatralmente per-feita. To perfeita que at dava vontade de rir. Era perfeito nessejogo, como que inflado por palavras maiores do que ele: "Pela pri-mei ra vez no mundo, a fotografia viva , a vida apanhada, capturada,f ixada em sua transparente fugacidade! Vencida a morte , enf im. Sim,

    a morte vencida pela c incia ! A eternidade nos pert ence, senhores!Sim, a eternidade!"

    Ergueu a mo com um gesto de maestro, fechando os olhos parasaborear o primeiro acorde de alguma magist ral sinfonia . Os opera-dores estavam imohilizados, prontos a atacar. Baixou o brao brusca-

    mente: "Vamos, senhores!", bradou.A te la se i luminou. A imagem estava fixa. Uma ri sadinha seca'de

    Mlis: "J vimos isso antes! J conhecemos!" .. Rumores na sala. Marulho ainda dis tante, j macaru, ,anunciandoo desastre, a derrota, o ridculo ... Antoine se levantou e, apontando oamigo Mlies, gritou: "Ele conhece,Mlis conhece!"

    Mlis balanou' a cabea com araflito-Pensava, sem coragempara diz-Ia, que o confrade e amigo estava certamente pa'ssan~o poruma crise de senilidade, o que explicaria sem dvida a ausncia dosfilhos, sua recusa em parti cipar do naufrgio. Os olhos de Antoine derepente se arregalaram: "E isto,Mlies,voc conhecc?", gri tou, en-quanto os operadores lanavam o filme.

    _ O que isto? - bramiuMlis, agarrando-se ao brao da pol-

    trona.

    ,"

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    206 J.CQUES RITTAUD HUTNET

    , r

    Os filmes se sucederam. Auguste Lurnire estava alimentando afilha Andre com uma colherinha e, depois, um bonde passava den-tro dos olhos, da alma.

    " como se algllm olhasse em meu lugar", murmurou PaulDecorps. "Como se escolhesse o que devo olhar. Apenas um pedaci-nho, que tivesse recortado num quadrado; to estranho, noite, queme deixo enganar, acreditando que fui eu, que fui eu mesmo que es-.colhi ver as coisas assim . .."

    _ Eu gosto, e, simplesmente, tenho vontade que recomece.O jardineiro molhado fez a platia urrar de tanto rir, mas com

    nervosismo muitssimo evidente. Quase forado. Um riso que noaliviava mas, em vez disso, propagava a tenso que o havia gerado.Um riso que jorrava, s vezes, como uma onda sobre os conrrafortesde um recife. No longe de Andr Carr, um homem enxugava aslgrimas cadas na barba, arrebatado por uma incmoda hilaridade da

    qual, por sua gesticulao, parecia querer se livrar.A sala se iluminou. Todos se olhavam embasbacados, deslum-

    brados, constrangidos. Depois, um grito no centro: "Eu compro!"gritou Mlis, precipitando-se na direo de Antoine. "Seus filhosso deuses, voc um deus! O que vi aqui", disse levantando a tela,"dilacera-me aqui!", exclamou batendo no peito.

    Mlis tirou, ento, a carteira rechonchuda e de onde vrias no-tas emergiam, prontas a se entregar em troca da preciosa mquina:

    _ Quanto? - disse com voz rouca.---, No vendo! - declarou Amaine, triunfante e mordaz!

    - Mil francos em dinheiro!-No!_ Voc est brincando? Vamos, quanto? Diga uma cifra, Lumiere!_ Voc no rico o bastante, meu caro!_ Mantenha os bons modos, AntoinelMarchand, o to dinmico diretor do Folies-Bergre. havia-se

    juntado aos dois homens. AfastouMlies com a mo, desprezando-o: "Dez mil francos! O Folies, que o senhor conhece bem, senhorLumiere", lanou com uma piscada equvoca, "o chamaro de

    \ .

    os IRMOS LUM ERE () 2 07

    Entreato Lurnire, logo aps a dana dos Sete Vus e antesdofr Cllrhcancan".

    M l i s props trinta mil francos, Marchand cinqenta mil. "Sabeque voc est sendo para mim uma enorme decepo, Antoine? Pen-sava que voc era inteligente. Duro nos negcios, mas inteligente.Hoje o encontro to cego a ponto de negligenciar .seus interessescomerciais mais imediatos!"

    Antoine Lurnire se havia refeito. Como bom prncipe, deixoupassar a enxurrada, um jeito levemente jocoso nos lbios:

    - Entenda-me bem: estou vendendo um espetculo, no umamquina. como se, no seu caso, quisessem comprar apenas o cen-rio do seu teatro. O que voc diria,M l i s ?

    - Eu diria, eu diria ... - Mlies estava sufocando de raiva. -De fato, Lurnire, o que voc vai colocar sobre o pano? Muito bom:bebs comendo, bondes tremelicando, bombeiros bombeando gua,

    mas voc ver, logo precisar de outra coisa! E quem que nesse diaprecisar das idias deMlis? Quem que hoje est bancando oesperto e que, amanh, vir de joelhos me pedir ajuda? Sabe o quevou dizer ao amigo Antoine nesse dia? Vai ser no, no e no! Eutambm serei impiedoso! E voc pode considerar, desde j, que mi-nha recusa irrevogvel!

    Marchand props, ento, cem mil francos.Mlis o afastou: "Vistoque ele recusou , no insista, meu velho..."

    - Em lugar daRe f ei o d obeb, continuou Marchand sem se pre-ocupar comMlis, voc poderia, por exemplo, mostrar a alegria pa-risiense ou, sei l, uma noiva se despindo ... Afinal, o senhor o artis-ta, senhor Lumiere!

    Antoine deu de ombros sem responder. A sala estava vazia. Su-biu para a bulevar. M l i s o seguia, com os olhos baixos, os ombrosarqueados. Fora, um pequeno grupo de clientes se havia formado,lendo o cartaz, procurando decifrar o que,1 palavra "cincmatgrafo"poderia significar.

    - Ento definitivo: voc no vende?- No se vende a galinha dos ovos de ouro, Mlies.

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    Mlis olhou atentamente o rosto das pessoas na calada: "Tem,razo, Antoine. Os seus ovos de ouro j esto aqui, jesto todos aqui!"

    Daquele dia, e por muito tempo, uma verdadeira multido seinstalou na entrada do salo indiano. A fila de espera se estendia pormais de quinhentos metros ao longo do bulevar, e os cento e vintelugares da sala no bastavam para conter o entusiasmo dos especta-dores que, todos os dias, desmaiavam, brigavam, se debatiam ...

    O jovem auxil iar de operador, Francis Doublier, guardava cuida-dosamente as bobinas e o aparelho. Sub-repticiamente, os dois jo-vens soldados haviam retomado. Paul Deeorps ousou tocar com odedo o cinernargrafo. Doublier o afastou furiosamente.

    - difcil manejar? - perguntou Paul.- No, mas segredo!- Quantas lanternas tem o seu patro?- O que voc tem com isso? - respondeu Doublier. Depois,

    aps um silncio: - Logo haver centenas. Por que est me pergun-tando isso?

    - Seus patres vo contratar mais gente?- Tente a sorte, nunca se sabe - declarouLopoldMaurice,

    que tinha se aproximado silenciosamente.

    X V I

    CHALON-SUR-SANE.O QUARTEL.CHEIROS,clamores, pacotes apres-sadamente amarrados e jogados perto de um escritrio onde estpostado sobre pilhas de folbas um sargento-ajudante, num ltimomomento de autoridade aeerba, batendo quase com raiva sobre osregistros militares. Imediatamente depois, cada soldado eradevolvi-do vida civil. A batida seca do carimbo era acompanhada de umlatido: "Erasrne Dupont, dispensado; 1imolon Boyer, dispensado ..."Mas a fila era longa.

    Paul Dccorps interrogou avidamente o amigo Mesguish: "Voc vai?"

    - E como! Voc vai ver!Flix Mesguish mal continha sua felicidade. L fora, uma aven-

    tura o esperava. Uma aventura da qual nada sabia. Exceto que talvezo conduzisse ao outro lado do mundo. Jlio Verne estava em todaparte naquele sonho: de balo, de barco, nos subterrneos dos caste-los e nos abismos da terra. Para Flix Mesguish, os livros eram comoUma espcie de droga, capaz de traduzir qualquer forma de realida-de, qualquer histria ou acontecimento de acordo com o cdigo en-

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    2 14. J AC QU ES R IT TA UD -H UT IN ET

    _ Ele s pensa nisso! - respondeu Flix Mesguish, interpondo-se._ J conheo todas as grandes cidades: Mcon, Chalon-sur-Sane

    e, bem ao norte, Vesoul.Louis Lumiere fingiu estar surpreso: "Efetiyamente, vocs via-

    jaram muito. Mas iroainda muito mais longe: Alemanha, Rssia, Amrica, talvez!"

    Marius Chapuis levou a mo boca, que abriu, enorme, num.grito rouco: "Ento ... estou contratado?"

    _ Se tudo correr bem,vocspartiro dentro de trs semanas.\, Marius bateu palmas. Louis olhou para ele sorrindo prazerosa-mente. O garoto fez um gesto de devoo, o sinal da cruz e depoisergueu os olhos: "Obrigado, Virgem Santssima!"

    F lixMesguish, embaraado, fazia-lhe pequenos sinais, cada vezmais insistentes. Murmurou, enfim: "Agradea, antes, ao patro!"

    Louis Lumire os conduziu novamente porta de seu escritrio.

    _ Lucie que vai ficar contente! - exclamou Marius.- Noivo? J? - espantou-se Louis Lurniere._ No, no! Lucie a irm dele! - declarouFlix, ruborizan-

    do-se at as orelhas.Louis Lumire se divertiu com seu acanhamento: "Ah, sim! A

    irm do seu amigo. Entendo, entendo." E depois, subitamente s-rio: "Sero convocados dentro de alguns dias. Pediro para ver o se-nhor Promio, nas oficinas. Ele Ihes ensinar o trabalho!"

    Os rostos dos dois rapazes se entristeceram. Louis Lumire ostranqilizou: "Os aparelhos que encomendamos esto sendo fabri-

    cados. Por enquanto , temos apenas uns dez. Como vocs, ns deve-mos esperar."

    f,

    ~r . :: II,

    Uma espera mais longa do que supunham, certamente: as cartasque trocaram entre 1895 e 1896 o industrial [ules Carpentier, encar-regado da fabricao em srie, e Louis Lurnire, podem testemu-nhar. Uma sociedade de aptides que ser de grande valia para aqualidade final do cinematgrafo, acrescida, naturalmente, de me-xericos e agulhadas que, sem ser um estimulante, poderiam repre-

    OS IRMOS lUM ERE ~ 215

    sentar uma espcie de passagem obrigatria, de trajeto inicit ico peloqual todo pesquisador ou inventor deve obrigatoriamente passar,como para demonstrar que a resistncia de seu carter est alturade suas ambies e de suas idias.

    Primeiro, os dois homens tiveram de aprender ase conhecer. Para

    explicar um atraso, Carpentier declara, no dia 9 de novembro terIfeito com que retomassem, a partir do pedido de Louis, a fabricaode uma mquina de perfurao, tendo "parado" a fabricao ele seuprprio "cinemargrafo". A isso se acrescenta um boato, divulgadopor Victor Planchon, fabricante de pelculas: segundo ele, amaisouLumire estaria cuidando apenas aparentemente da aplicao dasemulses autotensionadas - ou seja, das pelculas -, as quais esta-ria enviando diretamente a Bolonha, onde Planchon, com aparelhosde sua prpria inveno, estaria fazendo o trabalho. Definit ivamen-te, "a maisouLurnire detm apenas um papel de patrocnio, pura-

    mente comercia!", declara Planchon a quem queira ouvir - e estesformam uma legio.Fria de Louis, naturalmente, que contra-ataca: "Planchon bem

    atrevido: nada fez de aproveitvel at aqui. . ." E at as emulscs envia-das a Planchon para a aplicao das pelculas retomaram a Lyon sobrechapas de vidro com enormes perdas por quebra . .. Incapacidade ou des-leixo, Planchon no parece estar altura, nem mesmo de fazer pacotes.

    Louis, ento, interpela diretamente Planchon numa carta em que,com a costumeira cortesia, pede a seu contratado "que observe, nofuturo, uma certa reserva", ou seja, que segure a lngua, pois as pes-soas "no precisam ser informadas sobre a maneira como trabalha-mos juntos". Depois, comeam as verdadeiras preocupaes. Tcni-cas' portanto. A pelcula autotensionada mole demais, o suportecoloidal, fino demais. DemasiadoOL l insuficiente, nunca o necess-rio, quase sempre absolutamente nada.

    Com Carpentier aparecem as modificaes: "No esquecer duasriras de pano coladas sobre a prancheta interior, a fim de garantir maiorestabilidade e evitar as oscilaes provenientes elossolavancos da ma-nivela." Um amortecedor, portanto. Louis prev tudo, at o veludo a

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    Z 1 6 J AC OU ES R IT TA UD -H uT lN ET

    ser disposto como estofo no encaixe feito nessa mesma prancheta paradar pass3gem ao negativo quando da impresso dos filmes posit ivos.

    Segue-se uma troca de amabilidades, sem dvida destinada aacalmar impacincias nascentes: "O senhor d ir, talvez, que estouprocurando plo em ovo ... ", escreve Louis Lumire, O engenheiro

    Carpentier pensou, provavelmente, que o tal "plo" se multiplicavacom uma rapidez fantstica, mas o homem do mundo tomou amavel-mente a pena para dizer a Louis, com virtuosa indignao, que eleno era, de maneira alguma, "enfadonho, desagradvel ou caadorde plos", enquanto assinalava legitimamente "os defeitos a seremcorrigidos e as melhorias a fazer".

    Soberbo lance de vaidade eqitat ivamente partilhado: "Seus apa-relhos no precisam passar por mos excepcionais para seremirrepreensfveis. . .", corrigido por esta observao de serena imodstia:"Todas as nossas mos (inclusive as suas) so excepcionais nesse pontode vista."

    Entrementes, resposta um tanto ameaadora de Louis a VictorPlanchon: "Fabrique as pelculas com quinze metros de comprimentoe isto nos prazos mais reduzidos, pois, caso contrrio, iremos buscarnoutro lugar; as encomendas relativas ao einematgrafo sobem verti-ginosamcnte, to rnando necessria a utilizao de uma quantidadede cem fitas por dia" - cifra que ser rapidamente superada.

    Ligeira crise de cansao de Carpcntier, numa resposta igualmen-te irritada: "A benevolncia com que acolheu minhas observaesleva-me a comunicar outras mais." Ou seja, "obrigado pelo envio;sua vez de receber". Julgamos sempre que "est pronto", e a u tiliza-o demonstra que h ainda alguma coisa ... " O tal "plo", sempreele. Com a certeza, assim mesmo, para no desanimar, de que "seest chegando ao porto!"

    Uma certeza que Antoine pretende verificar em pessoa, anun-ciando no dia 11 de dezembro uma prxima visita a Carpentier.

    Primeiro cumprimento de Louis a Carpentier, no dia 15 de de-zembro: "O desgaste menor no primeiro aparelho recebido do queno pro ttipo." Esse primeiro aparelho "ser chamado aparelho n-

    OS IRMAOS LUM ERE 217

    mero zero, visto que inicia toda uma srie que est por vir e queainda no est numerada".

    Aquele momento de euforia, infelizmente, alterado pela visitaa Louis c Auguste Lumirc de um certo Terme, funcionrio da Re-ceita municipal de Lyon que, sem o menor pudor, lhes pede uma

    pelcula de filme informando-lhes que ele prprio concebeu umcinematgrafo cuja fabricao confiou . .. ao seu amigo Carpentier. Ofato, mesmo para filantropos, d ifcil de engolir. Louis e Augusterecusam, logicamente, "pois seria, parece-nos, uma grande ingenui-dade facilitar os estudos de um aparelho concorrente com o resulta-do de nossos trabalhos . .." Carpentier, em Paris, teria compreendidoo sentido (discreto) da aluso? "Certamente", continua Louis emsua carta, "no temos a pretenso de impedir o surgimento de outrasidias, o que seria absurdo", e provavelmente ineficaz, "mas julga-mos lgico no trabalhar para o rei da Prssia. No lhe parece justo?"

    Protesto, denegao de Carpentier a Louis, no dia 22de dezembro:

    Nunca ouvifalar de nenhum senhor Termc, e ele no pretendeu ahonra de minha colaborao. Saiba alis, e digo issode uma vez portodas, que nunca empreenderei com ningum a construo de umcinemat6grafo sem que previamente tenha lhe falado a respeito.Eu os acolhi, e at mesmo atra, porque me agradava essa ligaocom osLumire.

    .\

    A seqncia do relato testemunha a lealdade do homem que, adiandoseu prprio projeto, cujo princpio teve a honestidade de comunicar aos

    Lurniere, dedicou-se primeiramente" execuo e ao aperfeioamen-to" do aparelho dos irmos Lurniere: "Quis Ihes mostrar com isso", con-tinua, "o modo como entendo a amizade e a hospitalidade. Conquistei atal preo, creio eu, sua afeio, e estou satisfeito." LouisLumire,tran-qilizando-se, parece afastar o incidente com um piparote: "Nada en-contramos de extraordinrio na assero dotrapaceiroTerme."

    Um caso que anunciava muitos outros, pois o cinematgrafo in-teressava muitssimo no somente aostrapaceirosmas tambm aos

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    aficionados por novos espetculos. Como o caso de um anncio feitoem Paris um pouco antesdapremieredo cinematgrafo Lurnire, em28 de dezembro de 1895:

    "Soube h pouco"! escreve Carpentier,"que 9 senhor Marchand,diretor do Folies-Bergre, preparava-se para mostrar um cinema-tgrafo no palco". Tendo este lt imo manifestado seu interesse peloaparelho Lumiere, Carpcnticr corre sua casa, "como para evitar umincmodo intil, mas sobretudo para saber das novidades". Carpentier.viveu, seguramente, um momento difcil: "Nada lhes digo sobre amaneira comose recebido naquele mundo: elegncia e educaoso totalmente desconhecidas."

    O nmero, ou seja, a projeo, estava anunciado para o incio doms de janeiro, proveniente de Colnia:

    1:

    \\i

    ~

    II

    o artista que os exibe pela Europa [poderia tratar-se de Skladanowski]

    pretende representar em movimento personagens em tamanho na-tural. O senhor Marchand gostaria de ter visco nosso nmero, parajulgar se mais surpr eendente do que o que est esperando.

    E Louis Lurnire, lgico, consola seu engenheiro agradecendo pelaconversa com o diretor do Folies-Bergre: "Mandamos dizer ao ca-valheiro que poderia apreciar os resultados no bulevar Capucines . .."

    Infelizmente, esquecem de convidar Carpentier para apremire, eele se aborrece. Os dois irmos se desculpam: "Creia, de fato, no nossa culpa!" Os responsveis so Antoine Lumiere e Ducorn, um dosoperadores: "Meu pai nos atormentou para que deixssemos que or-ganizasse aquelas exibies em Paris e fizemos questo de no partici-par de absolutamente nada . .." Antoine onipresente, mas no o bastan-te para respeitar todas as exigncias sociais . Para salvar a honra, enviaum convite no prprio dia da sesso, obviamente tarde demais

    Um dissabor logo esquecido, visto que Carpentier envia a Louisum "foto-binculo" (aparelho fotogrfico com duplo visor) , que en-tusiasma o inventor.

    Enfim, a visita de Carpentier a Lyon, onde assiste a uma proje-

    os IRMOS LUM1ERE ~ 21 9

    o pblica, com seu estimado aparelho; sesso que obtm um es-trondoso sucesso.

    Acontece, por vezes, com a continuidade histrica, o mesmo quecom as placas tectnicas: uma acelerao se abre subitamente na evo-luo das rupturas anunciadoras de grandes mudanas. O verdadeiromomento em que um sculo comea enquanto o outro termina. LImpomo em que se quebra o antigo, uma falha de onde parece jorrar ofuturo, incompreensvel ainda, seno pelos gritos, pelos rudos, pelasesperanas e combates que ele suscita.

    O ano de 1896 o d a g rande aventura, centro de"invenes extre-mas", dizia Alphonse Seyewetz. Em alguns meses sobrevm imensasnovidades. O cinemargrafo oferece ao mundo a iluso mxima decapturar o tempo, de trancar "no espao de um minuto" rodos os mo-vimentos, todas as duraes possveis e concebveis de uma ao: ne-

    nhum mgico, cinqenta anos antes, teria podido sequer imaginar talfato. Roentgen, quase aomesmo tempo, inventa o raiox, a fotografia doinvisvel, como se dizia ento, que permite ver o interior de corpos opa-cos,vivos ou no. Um srio concorrente do cinematgrafo, nascido tam-bm do recente desenvolvimento da rede eltrica nas cidades, energianova que determina as inmeras invenes de um novo sculo.

    Duas barreiras, o tempo e o espao, acabavam de recuar c dcentregar um pouco de seus segredos, donde um crescente jbilo eespeculaes delirantes: os maridos sonham em surpreender as mu-lheres infiis olhandoatravs das paredes graas ao raiox; os mdi-cosesperam ardentemente desencorajar osbeberresmostrando-lhesradiograficarnente o estado lamentvel de seu fgado; considera-seat colocar uma folha de chumbo dentro das cartas, para evitar asindiscries do correio... Um sculo que se tornou louco. Louco porum progresso conquistador, por uma esperana inaudita. Gorki, al-guns meses mais tarde, e outros depois dele, acreditou que umdia ocinematgrafo explicaria o mistrio da vida. So instalados,aqui eali, "Rocntgcn cabincts", onde, por um franco, pode-se obter umafotografia dos ossos da prpria mo. A fotografia conquistadora cio

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    espao, da cor, do tempo. Acredita-se at que o raio x permitir quese veja materialmente, no interior do crebro, os gnios pensando.

    Um desejo ao qual Freud responde a seu modo, descobrindonesse mesmo ano de 1896 a psicologia profunda, o espao interior, assombras ancestrais do inconsciente. Choques do esprito a cujo ecorespondem choques sociais tambm violentos. Aps cinco meses deuma greve terrvel , quatro vidreiros, ao voltarem fbrica Carmauxpor ocasio da retomada do trabalho, so despedidos. Indignao deFlix Mesguish, que explicou o caso a Marius Chapuis: em reao aessa deciso injusta, quarenta operrios formam um sindicato e in-formam a [ean [aurcs, seu deputado. O senhor Ressguier, diretorda fbrica dc Carmaux, dispensa a todos. O governo interpelado"para o perigo ao exerccio da lei sobre os sindicatos". Processo deRessguier contra jaurs, Condenaes e recursos se sucedem. Porfim, um julgamento d razo a Ressguier:

    Atravs das manobras empregadas, os senhores[aurs c consortesprocuraram fraudulentamente confundir a conscincia de oper-rios que a eles obedeciam cegamente. Isso farcom que, daqui emdiante, os deputados socialistas reflitam que inauguram uma pro-paganda nociva, da qual usufruem, com a incitao desordem depobres operrios, os quais pecam por sua exagerada ingenuidade.

    Flix Mesguish seguia atentamente a histria daqueles homens, dosquais j se tornava distante pela juventude e pela esperana das grandes

    viagens, mas cujos conflitos violentos, quase sempre cruis, faziam comque se perguntasse se tais pessoas no estariam vivendo, a contragosto,uma aventura muito mais perigosa do que aquelas histrias de piratas e denaus perdidas. Mas Marius Chapuis, que o acompanhava fbricaLumire,respondeu-lhe com melanclica incompreenso: "Por ora, vamos apren-der uma profisso. Depois, veremos. Tudo isso so coisas de homens."Uma condio que, por enquanto, Marius se recusava a aceitar.

    Os IRMOS LU M ERE 221

    Flix Mesguish eMarius Chapuis entraram pelo grande portalda fbrica. Uma operria de avental branco estava passando, com umapequena caixa nos braos. Flix Mesguish se aproximou dela, me-xendo um tanto ostensivamente os seus frgeis ombros:

    - Estamos procurando o senhor Premio! - disse Flix.- o nico que conhecemos! Depois do terceiro galpo direi-

    ta, voc sobe a escada ...A iluminao verde-escuro e o calor mido evocavam uma flo-

    resta tropical. Mquinas na penumbra. Uma sucesso de oficinas decheiros cidos. Os barulhos se reduziam aos choques de tachos decobre, aos passos duros e apressados sobre as lajotas cinzas. A organi-zao reinava, l isa c perfeita. Marius estremeceu. Diversas operriasque trabalhavam nas mesas compridas cobertas de faiana erguerama cabea quando eles passaram. Uma mulher alta e forte se aproxi-mou deles, com as mos na cintura: "Digam, garotos!"

    Flix tinha perdido a segurana. Desempenhou o papel de crianabem-comportada. Sem perceber, alis, e muito mal. Sua voz se tor-nou delicada, um nadinha rouca. O lugar era estranho, e o pnico queMarius sentia comeava a tomar conta dele." mal-iluminado aqui ...",disse, com uma voz falsamente atraente. "O que que voc temcom isso?", lanou-lhe a matrona plantada sua frente. Desconfiada,examinou-o da cabea aos ps antes de acrescentar: "Nada de ficardesse jeito, meninos! Vistam-se adequadamente! Precisam de umacala especial, de uma touca e de um avental."

    Flix recuou: "Para qu?"

    - o regulamento! H riscos aqui!Uma segunda operria se aproximou e;depois, uma terceira. Um pe-queno grupo se formou aoredor deles. Marius, que pensava ser de estatu-ra mediana, percebeu que era baixinho perto daquelas moas altas queolhavam para ele, quase de cima.Flix levantou os'olhos para o teto, cujassombras brincavam com a luminosidade esbranquiacla das lmpadas. Amatrona entregou as roupas e lhes mostrou um cubculo onde se trocaram.

    "No gosto disso, no gosto nada disso!", bramiuFlix, ao sair,puxando desajeitadamente a cala grande demais para ele.

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    Instalou o aparelho, mostrou o mecanismo, acendeu a lmpadade arco e projetou, sem uma palavra de explicao, estimando quecom gente simples a imitao gestual bastava.

    "Rode", disse depois sobriamente a Marius que, um tanto desa-jeitado, acionou a manivela. "Mais depressa ... mais regular, acompa-

    nhe a imagem. Quando comear acorrer muito depressa na tela, vocdiminui a velocidade . .."

    O trem, como de costume, entrou na estao de La Ciotat e, emseguida, parou.

    "Agora, enquanto o seu colega carrega o filme seguinte, vocrcbobina antes de guardar o trem na caixa que est aqui. Vamos!"

    Marius, num estado de intensa excitao, havia tirado a bobinado projetor c mostrou-a a Flix. Faceiro, ele a segurava em equilbriosobre trs dedos:

    - redonda como a terra, veja, Flix, veja!- Ponha isso a! - gritou este ltimo.A bobina escorregou. Tentou, desastradamente, agarr-Ia. Em vo.

    Ela se desenrolou rap idamente, esvaziou-se em enormes arcos pelasala. A bobina corria, pulava, saltava, deixando para trs sua estrei tatira negra em que mirades de reflexos, como uma sementeira deestrelas, pareciam partir para a conquista de um espao que Flix,Marius e Promio tentavam inutilmente deter, controlar. Foram ne-cessrios uns bons quinze minutos para reparar o incidente e recolo-ear cuidadosamente na lata de ferro branco o espantoso gnio de umaimagem que aspirava to-somente, ao que tudo indica, escapar ...