JAGUARIBE, Hélio. Urgências e Perspectivas Do Brasil

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    A Fundao Alexandre de Gusmo (Funag), instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministriodas Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade

    internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao daopinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

    Ministrio das Relaes Exteriores

    Esplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Tr reo, Sala 170170-900 Braslia, DF

    Telefones: (61) 3411 6033/6034/6847Fax: (61) 3322 2931, 3322 2188

    Site: www.funag.gov.br

    O Instituto Rio Branco (IRBr), criado em abril de 1945, o rgo do Ministrio das Relaes Exteriores(MRE) e tem como finalidade o recrutamento, a formao e o aperfeioamento dos diplomatas brasileiros.O IRBr organiza, regularmente, o Concurso de Admisso Carreira de Diplomata, e mantm o Curso de

    Formao, o Curso de Aperfeioamento de Diplomatas (CAD) e o Curso de Altos Estudos (CAE).

    Setor de Administrao Federal Sul

    Quadra 5, Lote 2/370170-900 Braslia, DF

    Telefones: (61) 3325 7000 /5/6Site: www.mre.gov.br/irbr

    MINISTRIODASRELAESEXTERIORES

    Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim

    Secretrio-Geral Embaixador Samuel Pinheiro Guimares

    FUNDAOALEXANDREDEGUSMO

    Presidente Embaixadora Maria Stela Pompeu Brasil Frota

    INSTITUTORIOBRANCO(IRBr)

    Diretor Embaixador Fernando Guimares Reis

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    HELIOJAGUARIBE

    BRASLIA2005

    INSTITUTORIOBRANCO

    FUNDAOALEXANDREDEGUSMO

    COLEORIOBRANCO

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    Copyright Helio Jaguaribe

    Projeto de foto da capa: Joo Batista Cruz

    Direitos de publicao reservados

    Fundao Alexandre de Gusmo (Funag)Ministrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo70170-900 Braslia DFTelefones: (61) 3411 6033/6034/6847/6028Fax: (61) 3322 2931, 3322 2188Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

    Impresso no Brasil 2005

    Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacionalconforme Decreto n 1.825 de 20.12.1907

    Jaguaribe, Helio.

    Urgncias e perspectivas do Brasil / Helio Jaguaribe. Braslia : Instituto Rio

    Branco : Fundao Alexandre de Gusmo, 2005.

    109 p. ; 23 cm (Coleo Rio Branco).

    ISBN: 85-7631-045-7

    1. Brasil Poltica econmica. 2. Brasil Condies econmicas.

    3. Brasil Condies sociais. 4. Brasil Defesa. I. Instituto Rio Branco. II.Fundao Alexandre de Gusmo. III Ttulo. IV. Srie.

    CDU: 338.2(81)

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    S U M R I O

    APRESENTAO ........................................................................................................ 7

    I. BRASIL E MUNDO ANTE O SCULO XXI ................................................... 9

    1. Perspectivas do mundo ............................................................................................ 11

    2. Questes culturais ..................................................................................................... 17

    3. Brasil ............................................................................................................................. 26

    4. A tarefa do Brasil ...................................................................................................... 39

    II. PARA UM NOVO MODELO DE DESENVOLVIMENTO ...................... 47

    - Uma aproximao histrico-sociolgica ................................................................. 49

    1. Equilbrio esttico ..................................................................................................... 49

    2. Equilbrio dinmico .................................................................................................. 55

    3. Presentes condies .................................................................................................. 60

    III. DEFESA NACIONAL ......................................................................................... 67

    - Desafios e possveis respostas do Brasil ................................................................ 69

    1. Introduo ................................................................................................................... 69

    2. Aspecto militar ........................................................................................................... 73

    3. Aspecto econmico-tecnolgico ............................................................................ 79

    4. Perigosas interferncias externas ............................................................................ 82

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    IV. O PROBLEMA DA MARGINALIDADE METROPOLITANA .............. 87

    - Uma breve apresentao preliminar ....................................................................... 89

    1. O problema ................................................................................................................ 89

    2. Possveis solues ...................................................................................................... 94

    ANEXO ........................................................................................................................... 101

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    HELIOJAGUARIBE

    Os quatro captulos que integram este pequeno livro foraminicialmente redigidos como estudos separados, embora orientados pelo

    mesmo propsito de identificar e analisar alguns dos mais relevantesproblemas brasileiros e os situar no mbito geral do mundo e na perspectivadeste emergente sculo XXI. Tal circunstncia levou o ministro CarlosHenrique Cardim, do Instituto Rio Branco, a propor-me que os integrassenum mesmo volume e confiasse a publicao do livro coleo Rio Branco.

    Um primeiro captulo, Brasil Ante o Mundo e o Sculo XXI,intenta, precisamente, analisar, correlacionadamente, os grandes problemascom que j se defrontam o mundo e o Brasil e a provvel evoluo dessesproblemas, no curso do sculo XXI.

    O segundo captulo, Para um Novo Modelo de Desenvolvimento,consiste numa sucinta abordagem histrico-sociolgica desse gravssimoproblema brasileiro que a longa estagnao do pas, desde a dcada de1980. O pensamento neoliberal, implcita ou explicitamente, de certa formanorteou nossa poltica macroeconmica no curso dos ltimos vinte anos, ede forma deliberada embora retoricamente contestada desde os oitoanos do governo Cardoso at os do governo Lula. Buscou-se um equilbrioesttico em matria fiscal, monetria e cambial, a se realizar em cada exerccioanual, pagando-se, para isso, com a exceo de 2004, o preo de continuada

    estagnao e empobrecimento social e somente se logrando um aparenteequilbrio, no apenas s custas da estagnao, como tambm de crescentesendividamentos externo e interno. Essa mesma exceo de 2004 (5% decrescimento anual), apresentada como o incio de um ciclo positivo, insuficiente para a grande arrancada do Brasil. Ser possvel, nas presentescondies do mundo e do Brasil, um modelo econmico alternativo, tecnicamente

    APRESENTAO

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    correto e scio-politicamente vivel? Nesse segundo captulo se busca mostrar, apartir de uma perspectiva histrico-sociolgica, a possibilidade desse modelo,

    com base nos exemplos do governo Kubitschek.

    O terceiro captulo deste opsculo discute, sucintamente, essacomplexa questo que a de como considerar a questo da defesa nacionalpara uma potncia mdia como o Brasil, cercada pelos mais diversos desafiosexternos, que vo da superpotncia e das grandes potncias ao sistemafinanceiro internacional.

    O quarto e ltimo captulo deste volume aborda a questo damarginalidade metropolitana e desse gravssimo fato que a insero do

    narcotrfico no mbito dessa marginalidade, que cerca as grandes cidadesbrasileiras de um cinturo de misria situao, como tal, social e eticamenteinaceitvel mas que atinge propores calamitosas como conseqnciado crime organizado.

    O estudo sobre defesa nacional foi redigido em 2003, em ateno auma solicitao do embaixador Viegas, ento ministro da Defesa1. Os outrostrs estudos, revistos em meiados de 2005, foram elaborados em 2004, sob apresso da profunda angstia que me estava suscitando a perspectiva de queo governo Lula, a despeito das grandes qualidades do presidente, conduzisse

    o Brasil perda de mais quatro anos, depois dos oito anos no curso dos quaisFernando Henrique Cardoso, no obstante ter sido o mais qualificadopresidente de nossa histria, no conseguiu superar a estagnao em queestamos mergulhados desde os anos 80.

    Os acontecimentos posteriores, lamentavelmente confirmaram oreceio de que o quadrinio Lula fosse mais um periodo de tempohistoricamente perdido.

    1Esse estudo veio a ser publicado de pgs. 61 a 83 no livro Reflexes sobre Defesa e Segurana: umaEstratgia para o Brasil, vol. 1, Braslia, Ministrio da Defesa, 2004.

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    I. BRASILEMUNDOANTEOSCULOXXI

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    I. BRASILEMUNDOANTEOSCULOXXI

    1. PERSPECTIVASDOMUNDO

    Ao se iniciar o sculo XXI o mundo, recm sado da guerra fria etendo empreendido, no curso do sculo XX, a maior revoluo cientfica etecnolgica da histria, se defronta com trs principais ordens de problemas:(1) o da formao de uma nova ordem mundial, substitutiva da antigapolaridade americano-sovitica, (2) o de resolver o crucial problema dacultura contempornea, relativo ao relacionamento da perspectivatecnolgica com a humanista e, conjuntamente com essa problemtica, o

    do relacionamento entre os grandes sistemas culturais remanescentes e asgrandes subdivises neles ocorrentes e (3) o de encontrar uma soluosatisfatria para o problema das crescentes e abissais diferenas que separamas sociedades afluentes das marginais e, em ambas, seus setoresextremamente ricos dos extremamente pobres.

    NOVAORDEMMUNDIAL

    Emergindo, depois da imploso da Unio Sovitica em 1991, comonica superpotncia, os EUA intentaram, sob as presidncias do primeiro

    Bush e de Clinton, compatibilizar sua incontrastvel supremacia com umsatisfatrio ajustamento multilateralista com o restante do mundo,notadamente no que diz respeito, por um lado, s grandes potncias e, poroutro, s Naes Unidas e seu Conselho de Segurana. O segundo Bush,emergindo, por ato da Suprema Corte, de uma eleio extremamentecontestvel, surpreendeu o mundo, que dele esperava a formao de umgoverno moderado, que intentasse restaurar a dividida unidade americana,com a constituio de um gabinete majoritariamente composto porpersonalidades marcadas por uma ideologia de extrema direita. Os atentadosterroristas de 11 de setembro de 2001 deram ao governo Bush o pretexto,em nome do princpio de legtima defesa, de ingressar num unilateralismoimperial, ignorando as Naes Unidas, as normas do Direito Internacionale a opinio de antigos aliados e da grande maioria dos pases e dos povosdo mundo. Os EUA se autodefiniram como em estado de guerra contra oterrorismo internacional e pases por eles classificados como velhacos, quedo, real ou supostamente, apoio a esse terrorismo. Para esse efeito, adotou-se

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    uma nova doutrina de defesa nacional, caracterizada, por um lado, por umaostensiva posio unilateralista, que afirma a supremacia internacional, erga

    omnes, das deliberaes e dos interesses americanos. Por outro lado, edecorrentemente, sustenta o princpio da guerra preventiva contra tudo econtra todos considerados perigosos para os EUA, guerra cuja legitimidadedepende, exclusivamente, de decises do prprio governo americano. Essasposies foram enfaticamente reiteradas por Bush, no discurso de posse de seusegundo mandato.

    Essa nova postura americana levou o pas, violando a Carta das NaesUnidas e as determinaes do Conselho de Segurana, a invadir unilateralmenteo Iraque, sob a alegao de que Saddam Hussein possua armas de destruio

    macia, que representavam um risco imediato para os EUA e para o mundo e,depois de insignificante resistncia, a ocupar militarmente aquele pas. Reiteradasinspees pelas Naes Unidas e pelos prprios EUA revelaram que tais armasno existiam. O presidente Bush, no obstante, reafirmou a legitimidade de suainterveno e da ocupao militar do Iraque, j agora sob a predominante alegaode que essa iniciativa havia livrado o Iraque e o mundo de um ditador extremamenteperigoso e abria o caminho para a democratizao daquele pas.

    Essa posio do governo Bush criou uma situao insustentvel: ado conflito internacional entre poder e legitimidade. O centro de poder,

    a nica superpotncia, cuja supremacia militar e econmico-tecnolgica praticamente incontrastvel, se tornou um poder ilegtimo. O centrode legitimidade, as Naes Unidas, se tornou impotente. O conflitoentre legitimidade e poder no pode ser de longa durao, tanto a nvelnacional como internacional. Conduz, a no longo prazo, ou aoreenquadramento do poder nas normas da legitimidade, ou perda de

    vigncia do precedente regime de legitimidade. Ante essa questo, abrem-se para o mundo diversas alternativas, que se desenvolvero no cursode distintos prazos.

    Caberia, inicialmente, se considerar o relativamente curto prazo, quecorresponde ao segundo mandato do presidente Bush. O discurso inauguralde Bush, em 20 de janeiro de 2005, constituiu um enftico compromisso dedefesa internacional da liberdade, inclusive, se necessrio, por unilateraisintervenes militares. Por outro lado, moderou esse unilateralismo declarandosua disposio a consultas e ao dilogo.

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    Independentemente da reeleio de Bush abre-se para o mundo umprazo mais longo, que corresponde ao primeiro tero deste sculo. Nesse

    perodo, pode-se consolidar e universalizar a supremacia americana,assumindo as caractersticas de um imprio mundial, embora ostentandoaspectos muito diferentes dos imprios clssicos, do Romano ao Britnico.Pode tambm ocorrer uma variante do modelo imperial, consistente naformao de um sistema de supremacia americana amenizada pela cooptaodas demais potncias. Algo de equivalente, nas condies contemporneas,ao que Felipe da Macednia logrou com o Congresso de Corinto, de 338aC, formando com os demais Estados gregos uma Liga Helnica, comrepresentao proporcional em sua Assemblia, embora o comando militardo sistema ficasse detido pela Macednia.

    Nesse mesmo perodo tendero a se formar condies queinfluenciaro profundamente a subsequente evoluo do mundo. Essascondies se referem medida em que determinados pases, ou grupos depases, logrem ou no manter um consistente desenvolvimento, que osconduza a patamares superiores de autonomia internacional. Trata-se,sobretudo, dos casos da China e da Rssia, da possvel formao, no mbitoda Unio Europia, de um eventual subsistema poltico europeista e, ainda,da evoluo de pases como ndia e Brasil, por um lado, e por outro, domundo islmico.

    Se um pas como a China lograr manter, por outro largo perodo, aextraordinria taxa de desenvolvimento de 7% a 8% ao ano que vemsustentando, desde Deng Xiaoping (vide a respeito, dados no Anexo) e,concomitantemente, encontrar um apropriado encaminhamento institucional,esse pas adquirir condies de equipolncia com os EUA em meados dosculo. Algo de semelhante se pode dizer da Rssia, na medida em que areorganizao que lhe imprimiu Vladimir Putin, reeleito em maro de 2004,encaminhe aquele pas numa rota de desenvolvimento auto-sustentvel, quepoder conduzi-lo, de seu lado, a recuperar a condio de superpotncia quedeteve no perodo sovitico.

    Pases como ndia e Brasil dispem, embora em condies diferentes,da possibilidade de realizar um importante desenvolvimento nacional nocurso do primeiro tero deste sculo, atingindo um elevado patamar deautonomia internacional. No de se prever que esses dois pases se

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    convertam, como pode ocorrer com China e Rssia, em novassuperpotncias, em meados do sculo. As caractersticas culturais da ndia,

    no obstante seu domnio da produo de armas nucleares, no tendem aconduzi-la a se converter em superpotncia, mas seu exitosodesenvolvimento lhe conferir um elevado patamar de autonomiainternacional e dela far um dos grandes interlocutores mundiais, em meadosdo sculo. Da mesma forma, um exitoso desenvolvimento do Brasil notender a converter esse pas em superpotncia, tanto por razes decorrentesde suas caractersticas socioculturais como, tambm, pelo fato de que suaemergncia como importante interlocutor internacional depender,basicamente, da medida em que consolide suas alianas nos mbitos doMercosul e da Amrica do Sul, o que lhe conferir uma liderana

    estruturalmente dependente do consenso dos aliados.

    A Unio Europia, depois da absoro de seus dez novos membros,e eventualmente da Turquia e de ainda mais alguns, perder, definitivamente,por sua heterogeneidade poltica, a possibilidade de ser um importanteprotagonista poltico no cenrio internacional. Ser um grande sistemaeconmico e continuar, embora menos criativamente que no passado, a serum grande centro de cultura. Tal situao, todavia, tender a estimular aformao, dentro da U.E., de dois ou mais subsistemas polticos. Apresenta-se, atualmente, como bastante previsvel, a formao de um subsistema

    poltico ativamente europeista, tendo Frana e Alemanha como ncleo, aserem possivelmente acompanhadas pelos pases latinos e um outrosubsistema, anglo-nrdico, atlanticista, firmemente comprometido com aaliana como os EUA. Ainda no se dispe de condies para prever comoos novos membros, predominantemente eslavos e, futuramente a Turquia

    vo se comportar, a prazo mais longo. A curto prazo j demonstraram suaidentificao com a posio atlanticista. Mas esta poder no persistir a maislongo prazo, sobretudo para todos os membros desse grupo. Da apossibilidade de uma subdiviso dos novos membros entre as duas posiesprecedentemente mencionadas, ou a eventual formao de uma terceiraposio, ora insusceptvel de ser prevista.

    A hiptese de formao de um importante subsistema europeistatender a constituir um srio obstculo consolidao de um impriomundial americano. Se vier a se formar, como parece provvel, umconsistente e durvel subsistema europeista, as alternativas mundiais

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    tendero a se restringir s duas ltimas hipteses adiante formuladas: a deuma nova Liga Helnica, com importante descentralizao do poder,

    ainda que os EUA preservem a supremacia militar e a hiptese de um novoregime multipolar.

    O mundo muulmano, fragmentado entre um grande nmero depases e de regies geogrficas, e contendo um inescapvel dualismo entreseus setores xiitas e sunitas, tampouco pode se converter num sistemaunitrio, suscetvel de exercer um poder mundial, mas poder se tornar umgrande interlocutor internacional, se lograr satisfatrio nvel dedesenvolvimento e de articulao entre seus membros.

    As possibilidades de esse quadro vir a se realizar so muito significativas,mas no inevitveis. Dependendo tanto do rumo que venham a tomar essespases como de desenvolvimentos internos dentro dos EUA, as condies, noincio do segundo tero deste sculo, tanto podero corresponder emergnciadesses novos interlocutores como, diversamente, acomodao dos mesmos aum sistema hegemnico americano, e isto tanto mais possivelmente quanto venhaa predominar, nos EUA, uma postura cooptadora do mundo, em vez deunilateralmente dominante.

    TRSCENRIOS

    As alternativas precedentemente aventadas conduzem o mundo, no ltimotero deste sculo, a trs possveis cenrios: (1) o da absoluta supremacia americana,ainda que exercida sob a forma de um imprio benigno; (2) o de uma hegemoniaamericana baseada na cooptao das grandes potncias, com significativadescentralizao do poder, segundo o antigo modelo da Liga Helnica, ou (3)o de um restabelecimento, no mundo, de um regime multipolar, com os decorrentesriscos de que venha a eclodir, ainda que de forma no deliberada, uma suicidaconfrontao nuclear.

    Importaria assinalar, com relao hiptese de um imprio mundialamericano, a medida em que esse imprio seria muito diferente de seuspredecessores. Um possvel imprio americano no consistiria, como osimprios histricos, num sistema formalizado de poder, em querepresentantes do centro imperial, como procnsules ou vice-reis, controlemsuas provncias ou colnias, com apropriado apoio de uma burocracia

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    e de foras militares imperiais. certo que o posicionamento de importantescontingentes militares americanos em pontos estratgicos do mundo se

    assemelha ao antigo posicionamento das legies romanas no ecmeno. Istono obstante, esse imprio tenderia a ostentar caractersticas de um campo,como falamos de campo magntico ou campo gravitacional. No mbito geraldo processo de globalizao, que igualmente afeta os EUA, esse pas foi levadoa dispor de condies que lhe permitem otimizar em seu proveito os efeitosda globalizao. Tudo se passa, por isso, no sentido de a globalizao operarcomo uma americanizao das reas e setores submetidos a esse processo. Oimprio americano resulta, assim, no mbito da globalizao, de um conjuntode constrangimentos econmico-financeiros, tecnolgicos, culturais e polticos,bem como militares, quando convenha, que compelem as reas submetidas a

    sua influncia a atuar de conformidade com os interesses americanos,independentemente da vontade de seus respectivos dirigentes.

    provvel que esse sistema imperial, na medida em que se consolide euniversalize, assuma caractersticas cooptacionais semelhantes s que Filipe daMacednia logrou impor Liga Helnica. Uma Liga Helnica americanaconsistiria, assim, num sistema de hegemonia mundial regulado por princpioscooptativos, em que as grandes potncias e pases de maior peso internacionalparticipariam da direo do sistema, com uma ponderao basicamentecorrespondente a sua respectiva margem de poder, os EUA nele preservando

    sua liderana e sua supremacia militar.

    Diversamente, a hiptese de que venha a se formar um novo regimemultipolar conduziria a uma nova ordem mundial compreendendo grandessistemas autnomos de poder, com pases como os EUA, uma Chinasuperdesenvolvida e uma Rssia que tenha recuperado a condio desuperpotncia, cercados, em mais baixo nvel de influncia, por um grupode superinterlocutores internacionais, eventualmente compreendendo ossubsistemas polticos europeus, ndia, Brasil, Japo e um menos bemintegrado sistema islmico, mantendo-se, na cpula do sistema, uma

    vigilncia armada, conducente a um frgil equilbrio de poder, baseado naprtica inviabilidade de um grande conflito nuclear. Essa ordem mundial,que poderia se prolongar por muito tempo, tenderia, se no sobrevier, aindaque indeliberadamente, uma suicida confrontao nuclear, a assumir,gradualmente, crescente institucionalizao conducente, a longo termo, auma Pax Universalise a uma satisfatoriamente unitria ordenao do mundo.

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    2.Questes Culturais

    NVEISDOPROBLEMA

    As questes culturais tendem a tornar tanto mais relevantes quantomais desenvolvidas as sociedades. Nas condies atuais, em que conflitosmilitares deixaram de ser viveis, salvo em regies perifricas do mundo, asquestes culturais assumem crescente importncia. Reduzidas ao essencial,essas questes so de duas ordens: (1) no mbito de cada um dos grandessistemas culturais existentes, o que est em jogo o relacionamento entretekhn e telos, entre as perspectivas tecnolgica e a humanista, entre aeficcia e a qualidade de vida; (2) no inter-relacionamento entre os grandes

    sistemas culturais que sobreviveram at o sculo XXI os mundosOcidental, Islmico, Chins, Japons, Indiano e Africano o que est emjogo a margem de influncia que cada qual exera sobre os demais.Importantes subdivises, por outro lado, marcam cada um desses mundos.

    Assim, no Ocidente, suas vertentes germnica, latina, anglosaxnica e eslava.No mundo Islmico, as vertentes Sunita e Xiita. No Indiano, a Bramnico-induista e a Budista.

    Vista esta ltima questo em perspectiva histrica observa-se, comonota predominante, a medida em que a cultura Ocidental, a partir de finsdo sculo XVII, foi exercendo crescente influncia sobre as demais. Odesenvolvimento cientfico do Ocidente, desde Galileu e Newton, geroucondies para a utilizao tcnica desse saber. O desenvolvimentotecnolgico do Ocidente, notadamente em suas manifestaes militaresacumulou, a favor dos pases europeus, uma crescente e irresistvelsuperioridade sobre os povos de cultura no-ocidental. No curso do perodoque vai da segunda metade do sculo XVII a princpios do sculo XX omundo europeu, mais tarde seguido pelos Estados Unidos, empreende umacrescente expanso, s custas dos mundos Islmico, Chins, Japons e

    Africano.

    Haveria que assinalar, nesse processo, duas importantes ocorrncias.A primeira, que se faz sentir em todos os grandes sistemas culturais mas,particularmente, no Ocidental, a medida em que o conhecimento cientficoe o progresso tecnolgico se convertem, de um elemento assessrio, comoinicialmente eram, em elemento fundamental. Esse processo atinge tal

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    grau, no Ocidente, que no se pode mais falar, atualmente, de CivilizaoOcidental, como se o podia fazer at meados do sculo XIX. Esta, de suas

    origens, a partir da dissoluo do imprio carolngio, at meados do sculoXIX ou mesmo, at a Primeira Guerra Mundial, era uma cultura teocntrica,que encontrava seu ncleo referencial no Cristianismo. A partir de perodosmais recentes, o ncleo central da cultural Ocidental passou a ser suasconcepes cientfico-tecnolgicas. As crenas religiosas sobrevivem, emmaior ou menor grau, conforme os pases ocidentais que sejam considerados.Mas, em todos eles, deixaram de constituir o ncleo central de sua viso domundo, Cabe, assim, considerar a atual Civilizao Ocidental como umOcidente Tardio, da mesma forma em que falamos de Antigidade Tardia,quando nos referimos ao trnsito da Civilizao Clssica para o Cristianismo,

    a partir de Constantino.

    A outra significativa ocorrncia, que importa levar em conta, amedida em que a ocidentalizao unilateral do mundo, que se iniciadesde fins do sculo XVII, passou, a partir do sculo XVIII mas, deforma mais acentuada, a partir de meados do sculo XX, a encontrarreciprocidade na crescente influncia de elementos no ocidentais noOcidente. Assim, entre tantos outros aspectos, a decisiva importnciade elementos africanos na msica popular e na arte ocidentais, deelementos bdicos nas prticas de auto-ajuda, de elementos japoneses

    nas tcnicas de luta ou na culinria, de elementos islmicos e chinesesna ornamentao.

    Diferentemente do que sups Samuel Huntington2o mundo nocaminha para uma guerra entre as civilizaes. Os conflitos com gruposou sociedades islmicos e a possibilidade de um antagonismo sino-americanoso, atual ou potencialmente, conflitos de poder, no conflitos civilizatrios.No largo prazo, tudo indica que o mundo se encaminha para a formaode uma abrangente Civilizao Planetria, incorporadora de todas ascivilizaes, tendo como eixo organizatrio a Civilizao Ocidental Tardia,mas apresentando caractersticas e subdivises internas vertentes islmica,bdica, etc. equivalentes s que, na Civilizao Ocidental, diferenciaramsuas vertentes latina, germnica, anglosaxnica e eslava.

    2Cf. Samuel P. Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, London,Simon & Schuster (1997), 1998.

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    TECNOLOGIAEHUMANISMO

    Como precedentemente se indicou, a segunda ordem de grandesquestes culturais com que se defronta o homem contemporneo dizrespeito, no mbito de cada sistema cultural, ao relacionamento entre asperspectivas tecnolgica e humanista. Trata-se, como j mencionado, dorelacionamento entre o mundo dos meios, o da tekhn e o mundo dosfins, o do telos.

    As pocas bem sucedidas da histria foram marcadas por umsatisfatrio equacionamento entre esses dois tipos de valores, sob apredominncia dos valores finalsticos, relativamente aos instrumentais.

    Assim, a cultura helnica, na longa fase que vai do perodo pr-urbano(sculo VIII aC) ao imprio de Alexandre (sculo IV aC), desenvolveu umabase tecnolgica que se revelaria, no fundamental, satisfatria para asnecessidades do mundo antigo, enriquecida por futuras importantescontribuies helensticas e romanas3. de notar-se o fato de que o institutoda escravido, que permeia todo o mundo antigo mas se tornou socialmentemais relevante nos perodos helenstico e romano, inibiu a utilizao prticadas notveis inovaes tecnolgicas do perodo helenstico, restringindo-as, sobretudo, ao uso militar. O escravo, mquina humana, dispensava amecnica. Ademais do uso militar, as inovaes helensticas foram

    incorporadas medicina e serviram para produzir prodgios nos templos.

    Com base nessa tecnologia, o mundo grego desenvolveu umaextraordinria pauta de valores que disciplinou a vida helnica, desde aherica aret homrica harmoniosa kalogatia urbana dos eupatridai, quecombinava as virtudes viris com um aristocrtico sentido do dever cvico eque, com a democracia, se estendeu ao homem comum.

    Desaparecida a polis, com o imprio de Alexandre e a formao dosreinos helensticos, o compromisso paroquial com a cidade foi substitudopela tica cosmopolita do epicurismo (que no tinha o sentido sibarticoque o vocbulo adquiriu modernamente) e do estoicismo. Ambas essas

    3Sobre tecnologia antiga vide R. J. Forbes e E. de Dijksterhuis, A History of Science and Technology,1oVol. Baltimore, Penguin Books, 1963, sobre tecnologia helenstica vide M. Rostovzeff, The Socialand Economic History of the Hellenistic World, parte pg. 1180 e Sts., Oxford, Clarendon Press (1941),1959 e 1964.

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    filosofias igualmente preconizavam, sem embargo de suas importantesdiferenas, a combinao da serenidade pessoal com o compromisso de

    servio para com a sociedade e um sentido de rigor, quanto a si mesmo ede tolerncia, quanto aos demais.

    O cristianismo introduziu, com o ideal da salvao, as pautas deconduta do bom cristo, que comandaram o comportamento tico doOcidente at o sculo XVIII. O perodo moderno, iniciado com a Ilustrao,introduziu uma diferenciao entre a religio e a tica naturais, ditadas pelocorao humano, louvadas pelos filsofos destas, de suas formulaesdogmticas, por aqueles criticadas e criou o ideal do honnte homme.

    A crise das religies reveladas e dos valores tradicionais, que se aceleraa partir da Primeira Guerra Mundial e se expande exponencialmente no cursoda segunda metade do sculo XX, gerou no mundo contemporneo, masparticularmente no Ocidental4uma profunda crise de valores. Que sentidotem a vida quando esta se esgota neste mundo? Que sentido tem o mundo,dominado pelos ricos e poderosos?

    Nesse contexto, trava-se o conflito entre a perspectiva tecnolgica ea perspectiva humanista. Se a vida se esgota neste mundo e este mundo dominado por fatores de riqueza e de poder, o que importa a acumulao

    da capacidade de adquiri-los. O importante o know how e suamanifestao operacional, que a tecnologia. Essa perspectiva se tornaparticularmente dominante no mundo anglo-saxo e, notadamente, nosEstados Unidos.

    Contrastando com essa perspectiva, subsiste no mundocontemporneo uma importante dose de humanismo, que em contrastecom o know how constitui um know for. Um humanismo que se revela,de um modo geral, na cultura das sociedades latinas, particularmente numpas como a Itlia, onde o humanismo est difundido pela massa do povoe, como a prosa de M. Jourdain, prtica quotidiana, sem que as pessoasdisso se dem conta. O humanismo, por outro lado, impregna a viso domundo dos grandes filsofos continentais, de Jaspers a Scheler, de

    4 de notar-se, a esse respeito, a medida em que a preservao dos valores religiosos em certas culturasno ocidentais, como notadamente no caso de Isl, corresponde ampla sobrevivncia de mentalidadee usos medievais.

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    Horckheimer a Habermas, de Sartre a Merleau Ponty, de Croce a Bobbio, deUnamuno a Ortega. Mesmo na filosofia anglosaxnica apesar de seu quase

    completo domnio pelo positivismo lgico, o humanismo se faz sentir, entreoutros, em Whitehead e Bertrand Russel. Na Argentina, a filosofiahumanista encontra alta expresso em Francisco Romero, Rizieri Frondizzie Carlos Astrada. No Mxico, em Octavio Paz e Carlos Fuentes. No Brasil,em Vicente Ferreira da Silva, Mario Vieira de Melo e Miguel Reale.

    O humanismo contemporneo, implcita ou explicitamente agnstico,em suas manifestaes filosficas (se excetuarmos figuras notveis como

    Teilhard de Chardin ou, no Brasil, os padres Fernando Bastos de vila eHenrique de Lima Vaz), aceita as limitaes da natureza e da condio

    humana mas enfatiza o fato de que, num cosmos privado de sentido, nummundo injusto e numa vida humana efmera, o sentido da vida dado pelohomem, que dela pode e deve fazer, individual e coletivamente, algo deexcelente e magnfico. O humanismo filosfico contemporneo, dentro desuas mltiplas e distintas formulaes, retoma, no fundamental, os preceitosdo humanismo helenstico, aos quais agrega um profundo sentido social eecolgico. O humanismo popular, por outro lado, inconscientementeimpregnado por esses valores, consiste, sobre tudo, numa arte de saberbem viver. extraordinrio se constatar a medida em que, graas a essehumanismo difuso mas efetivo na conduta das pessoas, as sociedades latinas,

    de um modo geral, de forma particularmente acentuada na Itlia, ou emcomunidades pobres da Amrica Latina, onde se gera o samba carioca e otango portenho, logram uma qualidade de vida incomparavelmente superiorao nvel de seus rendimentos. As favelas de Salvador e do Recife comoeram as do Rio de Janeiro antes de controladas pelo narcotrfico apresentam um extraordinrio contraste com as zonas pobres do Harlem.Naquelas, reina uma alegria que se sobrepe misria, enquanto neste ltimo,apesar de um rendimento mdio per capita incomparavelmente superior,predomina o ressentimento e a mais profunda frustrao.

    Como ocorreu nas boas pocas da histria, o solucionamento doproblema dos valores, em nossos dias, consiste em dar satisfatriacombinao entre os valores-meio e os valores-fim, entre tecnologia ehumanismo. O mundo contemporneo depende da manuteno e, em largamedida, do desenvolvimento e da expanso, da tecnologia. Sem esserequisito, as sociedades contemporneas seriam, muito rapidamente,

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    conduzidas a sua extino. Por outro lado, sem o desenvolvimento e aexpanso do humanismo, concebido na sua reformulao social e ecolgica,

    a vida, individual e coletiva, fica privada de qualquer sentido, reduzindo-seaos extremos da busca do poder e do consumismo intransitivo, gerandoessa terrvel ocorrncia do nosso tempo, o homem descartvel.

    Vistas as coisas, na cultura ocidental, a partir das diferenciaessocioculturais do mundo anglo-saxnico e do latino, a este devendo seagregar os mundos germnico e eslavo, o problema consiste, por um lado,em incrementar o domnio da tecnologia, nas sociedades latino-germnicase eslavas, e uma forte presena do humanismo, por outro lado, nas sociedadesanglosaxnicas. Papel relevante, a esse respeito, cabe Amrica Latina, que

    revela extraordinria aptitude para sua acelerada modernizao tecnolgicamas dispe, ademais, tanto a nvel popular como a nvel erudito, deimportante dose de humanismo.

    AFLUNCIAEMARGINALIDADE

    A terceira ordem de grandes problemas com que se defronta o mundocontemporneo se refere abissal e crescente brecha que separa associedades afluentes das marginais e, de um modo geral, que se observa nombito de muitas sociedades entre setores muito ricos e muito pobres.

    Enquanto nas sociedades mais ricas do mundo a renda per capita de maisde US$30.000,00, esta da ordem de US$300,00 nas sociedades mais pobres,ou seja, cem vezes menor. Essa imensa desigualdade, como o revelou oRelatrio da OIT de 2004, tende a se agravar.

    Haveria que se distinguir, na anlise da questo da pobreza e, de ummodo geral, do subdesenvolvimento, o caso das sociedades que foramconduzidas a tal condio por circunstncias histricas que se configurarama partir da expanso do Ocidente, dos mbitos de pobreza e marginalidadeocorrentes, notadamente, na Amrica Latina e, bem assim, nos setoresmarginalizados observveis em pases ricos, como na Europa e nos EstadosUnidos.

    A grande massa da pobreza no mundo foi provocada pelos efeitoscrescentemente inequalitrios das trs ondas do processo de globalizao.Pases como China e ndia ostentavam, no sculo XVI, um nvel de

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    desenvolvimento semelhante, seno sob alguns aspectos superior, ao dospases europeus. Com os descobrimentos martimos e a revoluo mercantil

    a relao de renda per capita, originariamente da ordem de 1 para 1, setornou de 1 para 2, em favor do Ocidente. A revoluo industrial elevouessa diferena de 1 para 10. A revoluo tecnolgica de nossos dias conduziu,nos extremos dos pases mais ricos e mais pobres, a uma relao de 1 para100. As trs ondas do processo de globalizao elevaram, exponencialmente,a capacidade produtiva e a riqueza econmica dos pases de vanguarda econtriburam, atravs de termos de intercmbio fortemente desfavorveis,para empobrecer os pases subdesenvolvidos. Nestes, finalmente, oinsuficiente crescimento do excedente social, relativamente ao crescimentodemogrfico, perpetuou e agravou a pobreza.

    O caso dos pases africanos constitui algo de distinto do caso dosasiticos. Nestes, grandes civilizaes que no tiverem tempestivo acesso revoluo cientfica e tecnolgica do Ocidente pagaram o alto preo histricoprecedentemente mencionado. Pases como China e ndia, entretanto,empreenderam, no curso da segunda metade do sculo XX, umextraordinrio e bem sucedido esforo de modernizao e desenvolvimentoe esto se encaminhando para serem grandes interlocutores internacionais,no incio do segundo tero deste sculo. No caso de pases da frica, todavia5

    o colonialismo europeu interveio quando ainda se encontravam em fase

    tribal e neles recortou, arbitrariamente, em funo das ocupaes coloniais,fronteiras no relacionadas com suas respectivas sociedades, criando Estadosque, ao se tornarem independentes, no dispunham de satisfatria integraonacional. Acrescente-se que os pases africanos esto submetidos a condiesextremamente adversas, no que se refere formao e conduta de suasrespectivas elites. Como tive a oportunidade de salientar, em outros escritos,as elites, tanto histrica como correntemente, tm um custo relativamentefixo de sustentao. Quando o excedente social muito pequeno, comoocorre presentemente na frica e como ocorreu na Europa at o sculoXVIII ou mesmo primeira metade do XIX, o custo de sustentao daselites absorve a quase totalidade do excedente social, condenando as massas pobreza e perpetuando esta. Esse impasse sociolgico tende a ser resolvidosomente quanto se apresente uma de duas alternativas. Na maior parte dos

    5Cf. Joseph Ki-Zerbo, frica, Histria Crtica da frica no Sul do Saara, cap. 13 do Vol. II de HelioJaguaribe, Um Estudo Crtico da Histria, So Paulo, Paz e Terra, 2001.

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    casos, quando a elevao da produtividade decorrente de melhores mtodose meios de produo (Europa) aumentem significativamente o excedente

    social, de tal sorte que o custo de sustentao da elite se tornepercentualmente cada vez menor. Em casos excepcionais (restaurao Meiji,no Japo) quando uma nova elite restringe seus gastos e investe crescentepercentual do excedente social em bons projetos de desenvolvimento.

    No caso da Amrica Latina, onde extremamente elevada apercentagem de pobres e de miserveis, essa situao tem por causa imediataa completa deseducao desses setores, agravada, de um modo geral, porrelativamente alta taxa de desemprego e, em particular, pelo contnuo declnioda demanda de trabalho braal, decorrente do progresso tecnolgico. A

    causa profunda dessa situao, entretanto, a extrema desigualdade quetem caracterizado, desde a poca colonial, as sociedades latino-americanas,que funcionaram, at meados do sculo XX e, em muitos pases, aindacontinuem funcionando, como economias produtoras de matrias primase bens de baixo valor agregado. Esse sistema tem sido controlado por umapequena elite, servida por uma vasta mo-de-obra de muito baixo salrio.Esse quadro se caracteriza, ademais, pela insuficiente incorporao socialdas antigas populaes indgenas ou dos descendentes de antigos escravos,freqentemente majoritrios (pases andinos) ou extremamente numerosos(Brasil).

    No caso, finalmente, dos setores marginais, na Europa e nos EstadosUnidos, estes so integrados por imigrantes de muito baixo nvel educacionale muito insuficiente incorporao sociedade a que se transladaram, porserem vtimas de discriminao racial ou cultural.

    O quadro geral resultante das situaes precedentementemencionadas se caracteriza pela existncia de mais de um bilho demiserveis no mundo e de um nmero muito maior de pessoas em estadode grande pobreza. Essa situao no apenas eticamente inaceitvel. Ela socialmente insustentvel. O mundo no pode continuar, no curso docorrente sculo, consistindo em algumas ilhas de afluncia cercadas porum oceano de misria. As crescentes presses migratrias que se exercerosobre as sociedades afluentes no podero ser contidas dentro de condiescompatveis com seus valores e seus padres de civilizao, ademais demanifestaes tambm crescentes de terrorismo. Tais sociedades se

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    defrontam e se defrontaro, cada vez mais, com a alternativa de exercer,para conter esse influxo migratrio e o terrorismo, uma preveno e uma

    represso de tipo fascista, que importar na fascistizao dessas prpriassociedades como est tendendo a acontecer nos EUA de Bush ou, paramanter seus valores e padres democrticos, sero levadas a experimentaravassaladora invaso de indesejados imigrantes e compelidas a um importanteesforo de ajuda internacional. Situao equivalente ocorre na maioria depases da Amrica Latina, onde as grandes metrpoles esto cercadas porimensos anis de marginalidade, nelas tornando invivel a preservao desatisfatrias condies de segurana e de padres civilizados de vida.

    O mundo civilizado tem de acabar com a marginalidade social, ou esta

    acabar com o mundo civilizado. Acabar com a marginalidade social algoque no comporta uma receita nica, cabendo diferenciar os casos asitico eafricano dos casos latino-americano e euro-norte-americano, ademais desituaes supercrticas como na Palestina. No caso asitico a soluo j estsendo exitosamente adotada e consiste em manter as elevadas taxas dedesenvolvimento que esto sendo obtidas por China e ndia. No caso dospases latino-americanos o que est em jogo so duas questes fundamentais:(1) efetiva e consistente vontade poltica de erradicar a marginalidade e (2)adoo, no menos efetiva e consistentemente, de um novo modeloeconmico, que lhes permita superar a estagnao que os vem paralisando

    no curso dos ltimos vinte anos e lhes proporcione taxas de crescimentoanual semelhantes s dos pases asiticos. No caso da Palestina d-se o urgenteimperativo de uma soluo eqitativa para o povo palestino.

    O problema dos mbitos de marginalidade em pases europeus estvinculado ao problema do subdesenvolvimento da frica do norte e dafrica tropical. Escaparia s dimenses deste breve estudo qualquer intentode propor polticas e medidas para o desenvolvimento da frica. Basteassinalar que a promoo desse desenvolvimento ultrapassa, de muito, ombito regional e constitui um problema crucial para a prpria Europa epara o mundo. Importa ainda assinalar que qualquer poltica dedesenvolvimento da frica s ser eficaz e consistente se for empreendidapelos prprios africanos, ainda que com macia ajuda internacional.

    O caso dos setores marginalizados dos Estados Unidos ostenta umadupla face, interna e externa. Internamente, ele apresenta, em condies

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    muito mais favorveis, semelhana com o problema social na Amrica Latina.Trata-se de um problema de educao e de emprego, combinadamente

    com a efetiva incorporao sociedade americana dos egressos de setoresmarginais.

    Assinale-se, a esse respeito, o extraordinrio progresso que se verifica,naquele pas, na incorporao de afro-americanos aos padres mdiosdaquela sociedade. Algo que constitui um exemplo para um pas como oBrasil, onde a inexistncia (desde a abolio da escravatura) de prviasbarreiras explcitas de discriminao racial favorece a persistncia de barreirasimplcitas. Externamente, essa questo est vinculada ao desenvolvimentoda Amrica Central, notadamente do Mxico. semelhana do que ocorre

    na relao frica-Europa, embora em escala menos grave, a pobreza centro-americana alimenta macias migraes para os EUA, que s cessaro como desenvolvimento da Amrica Central.

    3. BRASIL

    TAREFA INACABADA

    Por diversos momentos, no curso do sculo XX, o Brasil deuimportante passo no sentido de alcanar, autonomamente, um satisfatrio

    e sustentvel nvel de desenvolvimento. Mencionem-se, particularmente, seisdesses momentos. O primeiro se refere Revoluo de 1930, que mobilizoua classe mdia brasileira contra a orientao conservadora da Repblica

    Velha e o esquema poltico que a perpetuava, mediante o qual o presidenteda Repblica e os governadores estaduais, apoiados pela fraude eleitoral,asseguravam a continuidade no poder de uma oligarquia poltico-latinfundiria. Esse esquema auto-sustentvel s podia ser superado, comoocorreu em 1930, por uma vitoriosa revoluo. Segundo importanteprogresso, este de carter administrativo, foi realizado por Getlio Vargas,no curso do Estado Novo (1937-1945) o qual, embora sendo um regimeilegtimo, institudo por um golpe, teve, a despeito de suas caractersticasditatoriais e inmeros aspectos negativos, o mrito de constituir, com oDASP, um Estado funcional moderno, em que todos os servidores pblicoseram selecionados por concurso. Novo momento relevante ocorre com arestaurao da democracia, em 1945 e sua institucionalizao com aConstituio de 1946. O segundo governo Vargas, de 1951 a 1954, desta vez

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    democraticamente eleito e exercido, representou um srio intento para apromoo do desenvolvimento brasileiro. Os grandes projetos da Comisso

    Mista Brasil-Estados Unidos e o ento criado Banco Nacional deDesenvolvimento Econmico formularam projetos infra-estruturais eindustriais de decisiva relevncia, dando-lhes significativo incio deimplementao. As coisas pareciam se encaminhar, acelerada e exitosamente,para que o Brasil lograsse, at o fim do sculo, superar seu renitentesubdesenvolvimento. O lamentvel golpe udeno-lacerdista de 1954,mobilizado pelas foras mais reacionrias do pas, ps um termo a essaexitosa experincia e levou Vargas a preferir o suicdio a sua deposio. Asexpectativas ento criadas, entretanto, a que o suicdio de Vargas deudramtico impulso, conduziram eleio de Juscelino Kubitschek,

    restaurando no poder as foras progressistas do pas. Com Kubitschek seabre uma era de extraordinrio desenvolvimento. Com seu Programa deMetas Kubitschek d uma exitosa execuo ao projeto nacional-desenvolvimentista proposto pelo ISEB. Como mais tarde diria Kubitschek,com justificado orgulho, ele foi capaz de realizar, em cinco anos, a tarefa decinqenta. Tendo recebido, ao assumir o poder, uma sociedade agrria,entregou aos sucessores uma sociedade industrial, constituindo o maisimportante parque industrial do Terceiro Mundo. Mais uma vez e, dessa

    vez, em condies extremamente convincentes, parecia que o Brasil iriadefinitivamente deslanchar. E mais uma vez, como o revelaria a subsequente

    histria do pas, o mpeto desenvolvimentista de Kubitschek no teve satisfatriacontinuidade.

    Uma anlise, ainda que perfunctria, das condies e dos fatoresque no permitiram satisfatria continuidade ao extraordinrio arranquede Juscelino Kubitschek ultrapassaria as dimenses deste breve estudo. Seisdos mais relevantes aspectos dessa questo requerem, no obstante, sucintameno. Podem ser assim enumerados: (1) taxa extremamente elevada decrescimento demogrfico, superior no perodo a 3% ao ano, sobrecarregandoa demanda domstica; (2) extrema deseducao e pobreza da populaorural, ento majoritria; (3) falta de oportuna reforma agrria que permitissea educao rural e satisfatria fixao do homem ao solo, assim evitando asmassivas migraes rurais que inundaram as cidades brasileiras; (4)esgotamento da capacidade financeira do setor pblico; (5) insuficientecapacidade empregadora do sistema industrial contribuindo, indiretamente,para a marginalizao dos migrantes rurais que se acumularam na periferia

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    das metrpoles e (6) submisso do dirigentes do pas a uma viso neoliberal,perseguindo um equilbrio macroeconmico que no lograram atingir, pagando,

    nesse esforo, o preo da estagnao do Brasil no curso dos ltimos vinte anos.

    PROBLEMASEPRAZOSHISTRICOS

    Frustrando as expectativas da gerao desenvolvimentista dos anos50 o Brasil ingressou no sculo XXI sem ter logrado atingir, como seesperava, um satisfatrio patamar de desenvolvimento autnomo e auto-sustentvel. No era mais a sociedade agrria e dependente da primeirametade do sculo XX. Mas, como precedentemente se mencionou, oimportante surto industrial, espontaneamente iniciado a partir dos anos 30

    e deliberada e fortemente acelerado no segundo governo Vargas e nogoverno Kubitschek, com alguns novos impulsos trazidos, de Castelo aGeisel, pelo regime militar, no foi suficiente para absorver o forte crescimentodemogrfico desse perodo, notadamente no que se refere imensa massade migrantes rurais que no lograram satisfatria insero no sistema urbanoe formaram os gigantescos anis de marginalidade que cercam ecrescentemente estrangulam todas as grandes cidades brasileiras. Ainacabada tarefa do sculo XX legou ao sculo que ora se inicia a partir,sem dvida da nova importante base industrial e tecnolgica construda nasegunda metade daquele sculo uma pesadssima herana.

    Defronta-se o Brasil, em ltima anlise, com trs grandes problemas:(1) complementar os esforos econmico-tecnolgicos necessrios parasituar-se, autnoma, estvel e sustentavelmente, num satisfatrio patamarde desenvolvimento nacional; (2) levar a cabo a gigantesca tarefa de erradicara misria e reduzir a pobreza, eliminando os imensos anis da marginalidademetropolitana e (3) ajustar os acordos internacionais necessrios para assegurarcondies externas que permitam e, desejavelmente, facilitem, a soluo deambos esses problemas.

    Esses trs grandes objetivos nacionais se deparam com imensasdificuldades. Estas, ademais das inerentes s tarefas a serem executadas,resultam de duas condies particularmente adversas: (1) prazosextremamente curtos para que sejam tempestivamente atingidos os desejadosresultados e (2) inadequao do Estado e do modelo econmico brasileirospara uma satisfatria execuo dessas tarefas.

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    A determinao de prazos histricos, para que certos eventos possamter lugar, relativamente simples quando se refere ao passado mas,

    obviamente, difcil e imprecisa, quando se refere a eventos futuros.Lanando um olhar retrospectivo para a histria, pode-se estimarrazoavelmente quando e porque a Espanha perdeu a hegemonia que detinhado sculo XVI primeira metade do XVII. Quando e porque a Franaperdeu para o Reino Unido a hegemonia que havia obtido na sucesso daEspanha. O mesmo ocorre com muitos outros eventos histricos, comoos que se referem incorporao de determinadas inovaes tcnicas, comoo uso militar da plvora, a imprensa, a revoluo industrial, etc.Diversamente, a estimativa do prazo de que um pas como o Brasil disponhapara levar exitosamente a cabo tarefas como as precedentemente enunciadas

    necessariamente imprecisa.

    O que importa, a esse respeito, desde logo, tomar conscincia dofato de que as tarefas em referncia no se quedaro, por prazo ilimitado,susceptveis de serem exitosamente realizadas pelo Brasil. Se o Brasil nolograr, a partir de agora e dentro de certo prazo, atingir, autonomamente,um satisfatrio patamar de desenvolvimento econmico-tecnolgico, nopoder mais faz-lo. Com efeito, o processo de globalizao, agravado pelosefeitos do unilateralismo americano, est reduzindo, acelerada edrasticamente, o espao de permissibilidade internacional de que um pas

    como Brasil ainda dispe para atingir a meta em referncia. O crescentecontrole da economia brasileira por grandes multinacionais, que j detm47% das 500 maiores empresas brasileiras, eliminar o controle privadobrasileiro de sua prpria economia, que se tornar dependente das matrizesestrangeiras dessas empresas e, publicamente, de Washington. Desta forma,como est ocorrendo com a maioria dos pases do mundo, o Brasil seconverter num mero segmento do mercado internacional, com umasoberania puramente de fachada, submetida a irresistveis constrangimentoseconmico-tecnolgicos do mercado internacional e polticos de

    Washington. De quanto tempo dispomos para evitar essa dependncia ealcanar esse desejado patamar de satisfatrio e autnomo desenvolvimento?

    A estimativa desse prazo no possvel a partir das circunstnciasexternas. No que dependesse apenas destas, o prazo seria curtssimo, dealguns poucos anos. O que determinar esse prazo algo que diz respeitoao relacionamento dos fatores internos com as circunstncias externas. Algo

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    que diz respeito complementao do processo do desenvolvimentobrasileiro, concebida da forma mais acelerada possvel. Na medida em que

    o Brasil se aproxime, com a mxima celeridade possvel, do desejado patamarde desenvolvimento, nessa mesma medida ir alargando seu espao depermissibilidade internacional. Assim concebido, esse prazo pode serestimado como da ordem de vinte anos.

    Uma estimativa extremamente bem concebida, tanto em termostcnicos como de viabilidade scio-poltica, foi elaborada por GoldmanSachs em seu paper 99, a cargo de Dominic Wilson, de 1ode outubro de2003. Nesse paper de que se apresentam trechos relevantes no Anexodeste estudo se estuda, comparativamente, a provvel evoluo econmica

    dos quatro grandes pases emergentes China, ndia, Brasil e Rssia,comparativamente provvel evoluo econmica dos pases do G6 (EUA,

    Japo, Alemanha, Inglaterra, Frana e Itlia). O estudo compreende operodo que vai de 2000 a 2050 e apresenta resultados surpreendentes. Istoporque, se os emergentes mantiverem taxas de crescimento que esto, emmdia, perfeitamente a seu alcance, comparativamente s taxas decrescimento susceptveis de ocorrerem nos pases adiantados, o conjuntodos emergentes (notadamente por causa da China e da ndia) tender aalcanar, at 2040, um PIB superior ao conjunto dos pases do G6.

    De acordo com essa projeo, se o Brasil, a partir de um crescimentonegativo correspondente ao quinqunio 2000-20056, mantiver, at 2020,uma taxa de crescimento ligeiramente superior a 6% ao ano, passando para4,6 no perodo 2020-2025 e 4,7 no perodo 2025-2030, o Brasil ultrapassao PIB italiano a partir de 2025, o francs a partir de 2035 e o alemo a partirde 2040.

    Essas projees, como outras do gnero que se possa formular comrigor tcnico e satisfatrias perspectivas de viabilidade scio-poltica indicam,claramente, a medida em que o futuro de pases emergentes, como o Brasildepende, a partir do primeiro tero deste sculo, de seu prprio esforo dedesenvolvimento. O Brasil teve taxas de crescimento econmico anual daordem de 7% ou mais no perodo que vai dos anos 50 aos anos 60. Esse

    6A previso pessimista de Dominic Wilson para o Brasil, relativamente ao quinqunio 2000-2005, foirevertida para 2004 mas se apresenta como provvel para 2005-2006

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    desempenho, historicamente j alcanado, pode certamente ser repetido,se para tal houver uma consistente vontade nacional e a adoo das medidas

    convenientes.

    O outro prazo com que se defronta o Brasil de ordem interna e bem mais curto que o precedente. Trata-se do prazo de que o pasainda dispe, antes que efeitos catastrficos se faam sentir, para superara terrvel marginalidade que cerca nossas metrpoles e, nesse processo,erradicar a deseducao, a misria e reduzir as formas mais extremas depobreza que assolam o Brasil. Essa questo sucintamente tratada nocaptulo IV deste livro. O que empresta a essa questo que expe umquadro tica e socialmente inaceitvel um adicional fator de agravamento,

    o fato de o narcotrfico ter se instalado nas faixas da marginalidademetropolitana, onde encontra abrigo e facilidade de recrutamento deagentes. Com isto o terrvel problema da misria urbana ficou associadoao crime organizado, gerando um problema de segurana pblica queultrapassa, de muito, a capacidade de um enfrentamentopredominantemente policial e a prpria capacidade dos Estados daFederao. A superao da marginalidade metropolitana, antes que o poderpblico perca o controle das cidades e que, por outro lado, uma apavoradaclasse mdia, vtima de continuados assaltos, venha a apelar para soluesfascistas de combate ao crime, abre um prazo extremamente curto, de

    alguns poucos anos, para que significativos progressos sejam alcanadosa esse respeito. Nesse contexto, deve ser seriamente considerada a opoda descriminalizao da droga, como forma de acabar com o narcotrfico.

    Tal opo, todavia, depende de uma sria e ampla discusso cientfica damatria.

    ESTADOEMODELOECONMICO

    Como foi precedentemente mencionado o Brasil, paracomplementar seu desenvolvimento nacional, erradicar a misria, comseu correlato da deseducao e superar o terrvel problema damarginalidade metropolitana, se defronta com srias deficincias de seusistema pblico e do modelo econmico que vem sendo perseguido. Cadauma dessas deficincias exigiria uma anlise que ultrapassaria as dimensesdeste breve estudo. Cabe, assim, apenas uma sucinta referncia a cada umdesses problemas.

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    O problema das deficincias do sistema pblico envolve tanto aquesto de seus insumos quanto a relacionada com suas condies

    operacionais. O problema dos insumos do sistema poltico diz respeitoao regime eleitoral e ao sistema de partidos. A restaurao democrticade 1985, institucionalizada pela Constituio de 1986, no foi capaz deinstituir, no Brasil, uma efetiva democracia representativa. O que crioufoi uma democracia clientelista. O regime eleitoral vigente e o sistema departidos polticos dele resultante no conduzem eleio depersonalidades, nem formao de partidos, representativos de projetospblicos alternativos e sim, com as excees de regra, a uma imensa redeclientelista, em que a grande maioria dos eleitos para o Poder Legislativo,nas trs esferas da Federao, no portadora de nenhum significado

    pblico. A grande maioria dos brasileiros incapaz de mencionar o nomede seus antigos eleitos para o Poder Legislativo. Isto porque seu voto foiocasional. As eleies legislativas, notadamente nos nveis estadual efederal, e tambm, no caso das grandes metrpoles, no nvel municipal,resultam, predominantemente, de opes obtidas em troca de promessasde favores pessoais ou, nos melhores casos, locais. Raros so osparlamentares brasileiros eleitos porque sejam representativos de umaimportante posio poltica ou de um significativo projeto pblico.Partidos como o PMDB o maior do pas o PTB, o PL e outros, comalgumas excees, no tm nenhuma significao pblica, nenhuma

    orientao ideolgica, nenhum compromisso com os interesses nacionais.So mquinas clientelistas de troca de votos por favores. Nesse quadro, oPT se apresenta ou se apresentava at recentemente como portadorde reivindicaes sociais de carter geral. O PSDB, a despeito de suaheterogeneidade, guarda um mnimo de compromisso com uma orientaosocial-democrata. O PFL associa o mais amplo clientelismo rural a umacerta postura liberal-conservadora.

    Os estarrecedores escndalos revelados a partir de meados de 2005comprovam, alarmantemente, as profundas deficincias de nossos regimeseleitoral e partidrio. Nesse regime eleitoral e a partir de um sistemapartidrio predominantemente clientelista, as eleies para os executivosmunicipal e estadual so essencialmente personalistas. Ostentam maiormargem de significao pblica as eleies presidenciais. Essa maiorrepresentatividade pblica, todavia, decorre muito mais dos candidatos ede suas tendncias, mais de esquerda ou de direita, do que dos partidos

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    que os apresentem. Estes, predominantemente, funcionam como merasmquinas eleitorais.

    Esse sistema poltico afeta, muito negativamente, a atuao do poderpblico. A falta de estveis e previsveis compromissos pblicos, por parteda grande maioria dos legisladores, nas trs esferas da Federao, prejudica oatendimento legislativo dos interesses nacionais, estaduais ou municipais,conforme o caso e compele os executivos a toda sorte de acordos, quasesempre s custas do errio ou dos interesses pblicos, como foi denunciado,em junho de 2005, pelo deputado Roberto Jefferson, para lograr maioriasparlamentares que aprovem seus projetos.

    A esse quadro se adicionam importantes deficincias da prpriamquina estatal, em suas trs esferas de atuao. O resultado final acusauma enorme brecha entre o custo do sistema pblico e seus produtos e da esse sistema muito baixa taxa de eficcia. Para sorte do Brasil, circunstnciasdiversas tm possibilitado nveis muito satisfatrios de desempenho a certossetores da administrao federal, notadamente o ministrio das RelaesExteriores, a cpula do Ministrio da Fazenda, o Banco Central, as Foras

    Armadas, o BNDES e, em escala mais modesta, o Banco do Brasil e aCaixa Econmica. Algumas empresas pblicas, como a Petrobrs ou aEmbrapa, so tambm louvveis exemplos de satisfatrio desempenho.

    Como resulta evidente, a consistente e exitosa execuo, pelo Brasil,no curso dos prximos vinte anos, de um grande projeto de desenvolvimentonacional requer, o mais prontamente possvel, uma abrangente reforma deseu regime eleitoral, de seu sistema de partidos e da prpria mquina doEstado.

    Tanto ou mais importante, entretanto, para os fins do desenvolvimentobrasileiro, uma urgente crtica do modelo econmico que vem pautandoo pas. O modelo em vigor, que de certa forma, mais intencional queefetivamente, orientou os governos brasileiros desde a dcada de 80, foiconsistentemente adotado pelo governo Cardoso e continuado, fielmente,pelo governo Lula, nos primeiros anos de seu mandato. Esse modelo, quepode ser denominado de equilbrio esttico, consiste num conjunto de medidasmacroeconmicas orientadas para assegurar, em cada exerccio anual, oequilbrio fiscal, monetrio e cambial, conjuntamente com a produo de

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    um significativo supervit primrio. Partindo do consenso de Washington,que prescreve esse equilbrio como fundamento de qualquer poltica

    econmica racional e recomenda confortvel supervit primrio, essemodelo, confrontado com a extrema rigidez da despesa de custeio e oslimites tolerveis para a tributao, compelido a renunciar, praticamente, ainverses pblicas. No caso brasileiro, a preocupao de conter a inflao anveis que se aproximem, no mximo, de 5% ao ano, conduz sustentao deelevadssima taxa de juros, como meio de desestimular excessos da demanda.Essa taxa bsica de juros, de 18,25% em janeiro de 2005 a mais alta domundo e muito mais alta para as empresas exerce, por seu lado, um duploefeito negativo. No tocante iniciativa privada, freia a capacidade deinvestimento das empresas. No tocante Unio, conduz o servio da dvida

    interna a comprometer cerca de um tero de sua despesa. O resultado final a prolongada estagnao em que o pas est mergulhado, desde a dcadade 80, com a relativa exceo de 2004.

    As autoridades monetrias reconhecem esse efeito estagnante, queconduziu o pas a um crescimento negativo, no exerccio de 2003, mas sustentamos mritos do modelo, alegando que ele evitou uma grave crise econmica, noprimeiro ano do mandato de Lula e ps a casa em ordem, de tal sorte que,partir do segundo ano desse governo, um importante crescimento econmicodeveria ocorrer, o que efetivamente aconteceu.

    A sustentao de alta taxa de juros, no curso de 2005, ameaa, entretanto,impedir esse prometido novo surto de desenvolvimento. Supondo-se, todavia,que se realizem as expectativas do governo, observa-se que a taxa decrescimento prevista para o perodo 2004-2006, dentro das restritaspossibilidades desse modelo, apenas da ordem de 4% por ano. Essa taxa decrescimento se situa muito abaixo do mnimo necessrio para o pas lograr,no curso dos prximos vinte anos, o acelerado desenvolvimento necessriopara que alcance o desejado patamar de autonomia e de auto-sustentabilidade.Para esse efeito, a taxa de crescimento mnima requerida, como o indica oestudo de Goldman Sachs, superior a 6% ao ano.

    INSERO INTERNACIONAL

    importante, para a maioria dos pases, lograr uma convenienteinsero no sistema internacional. Essa insero menos relevante para

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    mini-pases que dependem de fatores predominantemente da esfera privada,como o turismo ou a condio de paraso fiscal e ainda para pases

    extremamente subdesenvolvidos, que no chegam a constituir Estados aptosa participar do sistema internacional. interessante observar que mesmopara os Estados Unidos, a despeito de sua condio de nica superpotncia,a desastrada poltica unilateralista do governo Bush isolou o pas dacomunidade internacional, tornando-o uma potncia ilegtima, vista comreserva ou hostilidade pela grande maioria dos povos do mundo.

    No caso do Brasil, sua conveniente insero internacional, mais quedesejvel, condio necessria para que o pas logre atingir tempestivamentesua meta de alcanar um satisfatrio patamar de autonomia e de sustentvel

    desenvolvimento. A relevncia de uma apropriada insero internacional,para o Brasil, decorre do fato de que, nas presentes condies do processode globalizao, exacerbadas pelo unilateralismo do governo americano, opas no dispor de suficiente resistncia para se opor a imensas pressesque sobre ele sero exercidas pelos EUA, pelas grandes potncias, pelasmultinacionais e pelo sistema financeiro internacional, se no dispuser deapropriado apoio compensatrio no sistema internacional.

    Que significa esse apropriado apoio internacional? A esse respeitodiversas coisas esto em jogo. Importaria salientar, entre elas, a particular

    relevncia de cinco requisitos: (1) aliana estratgica com a Argentina e,com base nela, consolidao de Mercosul e da Comunidade Sul-Americanade Naes, com a formao de um sistema de cooperao e livre comrcio;(2) ajuste de adequadas parcerias com os trs outros pases emergentes degrandes dimenses, China, ndia e Rssia; e com a frica do Sul (3)manuteno de ativa cooperao poltica e econmico-tecnolgica com aUnio Europia, equilibrada por ativas relaes de intercmbio com osEUA; (4) dinmico relacionamento com instituies internacionais comoo Banco Mundial, o BID, o FMI, a OMC e muito particularmente as NaesUnidas e suas mais relevantes agncias; (5) urgente construo e difusointernacional de uma favorvel imagem cultural do Brasil.

    ARGENTINA- BRASIL

    A relevncia de cada um dos cinco requisitos precedentementeenumerados , em grande medida, auto-explicativa. Como o reconhecem,

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    presentemente, os setores responsveis do Brasil e da Argentina, uma slida,confivel e eqitativa aliana estratgica entre os dois pases constitui o requisito

    bsico de suas respectivas inseres internacionais. Argentina e Brasil nodispem mais, neste incipiente sculo XXI, de condies para um destinohistrico isolado. Falta Argentina massa crtica para, isoladamente, naspresentes condies do mundo, construir um destino histrico prprio. Faltaao Brasil, nessas mesmas presentes condies do mundo, a despeito de suamassa crtica, suficiente taxa de integrao social para, isoladamente, preservarsua elevada margem de integrao nacional. Observe-se, a esse respeito, queo prazo de que o Brasil necessitaria para lograr atingir um nvel de integraosocial suficiente para sustentar isoladamente sua atual taxa de integraonacional, provavelmente correspondente a trs geraes, ou seja, segundo

    Ortega, a cerca de 45 anos, o que seria muito superior ao prazo da ordemde vinte anos de que dispe para atingir um satisfatrio patamar deautonomia e desenvolvimento.

    Uma slida e eqitativa aliana argentino-brasileira j asseguraria, porsi mesma, um amplo alargamento do espao da permissibilidade internacionalde ambos os pases. Tal aliana, entretanto, tender a acarretar, com altaprobabilidade, dois outros importantes efeitos correlatos: (1) consolidaodo Mercosul e (2) consolidao da Comunidade Sul-Americana de Naes,com a formao de um sistema de cooperao e livre comrcio. Tanto Uruguai

    como Paraguai tm inerentes interesses de ordem estrutural em consolidar oMercosul, que para eles constitui um mercado que absorve cerca de 50% desuas exportaes. Circunstncias ocasionais, decorrentes de acasos eleitoraisem cada um desses pases, ou de outra procedncia podem, eventualmente,como ocorreu com a inconsistente presidncia Batle, no Uruguai, desfavorecertemporariamente o Mercosul. Uma slida e estvel aliana argentino-brasileira,entretanto, constituiria um poderoso condicionamento para eliminar,praticamente, riscos dessa natureza.

    Da mesma maneira cabe observar que os acordos firmados peloMercosul com a Comunidade Andina, no primeiro ano de governo dopresidente Lula, que conduziram a formao da Comunidade Sul-americanade Naes, em 2004, tendero a levar, com base na aliana argentino-brasileira, formao, a curto prazo, de um sistema sul-americano decooperao e livre comrcio. Esse tema requer breve referncia ao projeto

    ALCA.

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    ALCA

    Tal como formulado pelos EUA esse projeto, a pretexto daformao de uma grande rea de livre comrcio, do Alasca Patagnia,

    visa a submeter os pases sul-americanos tendo como objetivo principalBrasil e Argentina a um regime de dupla desigualdade, extremamentefavorecedor dos EUA. Desigualdade, desde logo, por instituir um regimegeral de livre comrcio entre economias extremamente desiguais,automaticamente favorecedor da economia mais avanada, que no caso a mais avanada do mundo. Desigualdade, por outro lado como se oprimeiro aspecto no fosse sobejadamente suficiente por instituir umsistema que exclui desse livre comrcio os setores menos competitivos da

    economia americana e nele inserir, artificiosamente, dispositivosexclusivamente favorecedores dos EUA, como os relativos propriedadeintelectual e a compras governamentais. Mencione-se, apenas a esterespeito, que nenhuma empresa sul-americana jamais poderia participar,competitivamente, de compras do governo norte-americano, cujos itensmais importantes so sofisticados equipamentos militares, enquantoqualquer empresa americana do ramo poderia vantajosamente competircom as compras dos governos do sul, restritas a itens banais de consumo.

    Ante essa escandalosa proposta dos EUA, o Mercosul por iniciativa

    argentino-brasileira se ops a qualquer acordo do qual no fossem eliminadasas clusulas assimtricas e exigiu que o acordo se restrinja ao livre comrcio nossetores em que os pases sul-americanos sejam satisfatoriamente competitivos.Pases da Amrica Central e alguns andinos, por razes que aqui no importaelucidar, so favorveis ALCA na sua integral formulao americana. Anteessa situao, o Mercosul prope, por um lado, que o acordo geral seja restritoaos termos aceitveis pelo Mercosul (ALCA leve) e, por outro lado, que ospases andinos que o desejarem firmem acordos mais amplos com os EUAsempre que concedam, ao Mercosul, as mesmas facilidades que outorguem aosEUA. A instituio de um sistema sul-americano de cooperao e livre comrciodaria satisfatrio atendimento a essa reivindicao do Mercosul.

    OUTROSREQUISITOS

    Os demais requisitos, precedentemente enumerados, que pautam apoltica externa brasileira, so suficientemente auto-explicativos e dispensam

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    mais elaborada discusso. Saliente-se, apenas, no que se refere aos pasesemergentes de grandes dimenses, como China, ndia e Rssia, bem como

    no caso da frica do Sul, a medida em que, independentemente de suasrespectivas especificidades, sua condio de subdesenvolvidos de grandesdimenses lhes empresta importantes interesses comuns, na arenainternacional. Importa identificar tais interesses e assegurar a proteo dosmesmos mediante apropriados acordos.

    Algo de equivalente importa mencionar, no que diz respeito UnioEuropia. Os entendimentos entre o Mercosul e a U.E. vem sendoprejudicados pela poltica de escandaloso subsidiamento agrcola por elapraticada, altamente detrimental para os pases do Mercosul. Registre-se, a

    esse respeito, o fato de que, em nome de uma razovel preocupao europiaem defender sua cultura de aldeia, so adotados subsdios de tal magnitudeque permitem que produtos extremamente subcompetitivos, como o acarde beterraba, sejam exportados para o resto do mundo, em termoscompetitivos com o melhor e mais barato acar do mundo, que o brasileiro.O amadurecimento da questo, em ambos os lados do Atlntico, est abrindoespao para um entendimento mais equilibrado entre o Mercosul e a U.E.

    Trata-se, em ltima anlise, de dar um encaminhamento reciprocamentevantajoso a questes do interesse comum, como a preservao internacionaldo multilateralismo, a cooperao cientfica e tecnolgica e, enquanto se

    mantiver o regime de subsdios agricultura europia, trata-se de suprimir ossupersubsdios destinados, artificialmente, exportao de bens no-competitivos. Supresso essa que resulta favorvel para a grande maioriados europeus.

    Um equilibrado entendimento com a Unio Europia facilita umequilibrado entendimento do Mercosul com os EUA. Trata-se, em ltima anlise,de reduzir a ALCA a termos reciprocamente aceitveis e de manter e intensificarcom os EUA relaes de intercmbio igualmente equilibradas.

    Algo deve ser dito, ainda que muito sucintamente, a respeito daconstruo e difuso internacional de uma favorvel imagem cultural doBrasil. extremamente preocupante o fato de o sistema poltico brasileiroe, por decorrncia, o poder pblico, no terem a menor idia da altarelevncia de que se reveste, para o Brasil e para sua insero internacional,sua cultura e a imagem que dela saiba projetar.

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    Vistas as coisas em perspetiva histrica, a cultura a dimenso maisimportante de um pas. Lembramo-nos do Egito, da Grcia ou de Roma,

    por causa de sua cultura. De Florena e da Itlia, por causa do Renascimento.Foi o alto nvel de cultura de pases como Frana, Inglaterra e Alemanhaque permitiu o extraordinrio florescimento de suas economias e de seussistemas polticos. Contrastando com essa decisiva realidade a cultura, noBrasil, vista, por um lado, como luxo de intelectuais e, por outro, na suadimenso popular, como se resumindo em carnaval e futebol.

    Sintoma desse profundo e fatal erro de avaliao, domesticamente, nosso terrvel atraso sociocultural e internacionalmente, a insignificanteprojeo cultural do Brasil no mundo. Contrastando com nosso pas, o

    Mxico, detentor de uma importante cultura, no necessariamente, porm,superior brasileira, tem plena conscincia de sua relevncia, dotando-a doapoio de recursos pbicos mais de dez vezes superiores aos disponveis noBrasil e dela faz, competentemente, a mais ampla difuso internacional. Comoresultado, o Mxico goza de uma alta e favorvel imagem internacional e oBrasil depreciativamente visto como pas carnavalesco.

    O Brasil no dispor, internamente, de condies para superar seusubdesenvolvimento, que predominantemente sociocultural, se noempreender, urgentemente, uma profunda reavaliao da importncia do fator

    cultural. Ademais, todos os requisitos precedentemente enunciados, cujoatendimento indispensvel para assegurar uma satisfatria inserointernacional ao Brasil, sero insuficientes se o pas, com a possvel brevidade,no elevar substancialmente a ateno que dedica a sua cultura e difusointernacional de uma boa imagem da mesma.

    4.A Tarefa do Brasil

    PERSPECTIVAS

    Como se intentou indicar, nas linhas precedentes, o mundo se depara,ao se iniciar o sculo XXI, com trs principais ordens de problemas: (1) oda formao de uma nova ordem mundial, substitutiva da antiga polaridadeamericano-sovitica; (2) o de resolver o crucial problema da culturacontempornea, relativo ao relacionamento da perspectiva tecnolgica coma humanista e, conjuntamente com essa problemtica, o do relacionamento

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    entre os grandes sistemas culturais remanescentes e as grandes subdivisesneles ocorrentes e (3) o de encontrar uma soluo satisfatria para o

    problema das crescentes e abissais diferenas que separam as sociedadesafluentes das marginais e, em ambas, seus setores extremamente ricos dosextremamente pobres.

    No que se refere nova ordem mundial trs cenrios se apresentamcomo alternativamente provveis, em termos de meados deste sculo: (1) aconsolidao e universalizao do imprio americano; (2) a formao deum sistema, sob liderana americana, de cooptao das grandes potncias epases de grande peso, semelhana de Liga Helnica formada por Felipeda Macednia e (3) a emergncia de um novo regime multipolar, em que

    Estados Unidos, China e Rssia mantenham, entre si, um tenso regime devigilncia recproca, susceptvel, ainda que indeliberadamente, de gerar umacatstrofe nuclear ou, diversamente, levado, lenta e gradualmente, a crescentesnveis de institucionalizao, conduzindo ultimamente a uma Pax Universalis.

    No que diz respeito questo cultural, dois diferentes aspectos devemser distinguidos. No mbito de cada um dos grandes sistemas culturaisremanescentes, a questo que se apresenta de como compatibilizaradequadamente os valores-meio com os valores-fim, ou seja, a perspectivatecnolgica com a perspectiva humanista. Segundo outro ngulo, o que est

    em jogo o inter-relacionamento das civilizaes contemporneas, tudoindicando que se est processando a formao de uma Civilizao Planetria,tendo por base a Civilizao Ocidental Tardia, mas incorporandoimportantes elementos das culturas islmica, chinesa, japonesa, indiana eafricana.

    No que concerne, finalmente, a questo Norte-Sul, observou-se ainviabilidade da persistncia, no curso deste sculo, de ilhas de aflunciacercadas por oceanos de misria. A preservao dos valores culturais e dospadres de civilizao das sociedades afluentes depender da medida emque sejam capazes de uma decisiva contribuio notadamente no caso da

    frica no sentido de erradicar a misria do mundo e reduzir o intervaloque separa as sociedades afluentes das marginais.

    Ante essas perspectivas, um pas como o Brasil se defronta comalgumas opes fundamentais. No que se refere formao de uma nova

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    ordem internacional, num quadro fortemente condicionado pelo processode globalizao, o Brasil se encontra submetido a prazos historicamente

    muito curtos para lograr preservar satisfatria margem de autonomia e lograratingir um patamar de desenvolvimento auto-sustentvel. Diversos requisitosinternacionais tero de ser satisfatoriamente atendidos para esse efeito, nocurso de um prazo da ordem de vinte anos. Fundamental, para tanto, apronta consolidao de uma estvel, confivel e eqitativa aliana estratgicaentre o Brasil e a Argentina. Se o Brasil lograr uma satisfatria inserointernacional presumido apropriado nvel interno de desenvolvimento dispor de condies para ser, no mbito do Mercosul e do sistema sul-americano, um importante interlocutor no processo de formao de umanova ordem mundial. No ter poder decisrio sobre o cenrio alternativo

    que venha a prevalecer. Mas otimizar suas condies de insero nessecenrio.

    Confrontado com o problema do equacionamento entre valores-meio e valores-fim, entre tecnologia e humanismo o Brasil, como de ummodo geral a Amrica Latina, dispe de condies particularmentefavorveis, na medida em que conserva uma importante dose de valoreshumanistas e manifesta grande propenso a se modernizar tecnologicamente.Esse bom equacionamento, entretanto, s poder se dar se o pas seencaminhar, com suficiente celeridade, no sentido de atingir um satisfatrio

    patamar de autonomia e desenvolvimento auto-sustentvel.

    Face ao gravssimo problema da marginalidade, mundial e nacional,a contribuio brasileira para a reduo daquela consistir,fundamentalmente, na superao dos grandes contingentes marginais desua prpria sociedade. No captulo IV deste livro procede-se a uma sucintadiscusso dessa questo. No relativamente curto prazo, ela a mais sria detodas com que o Brasil se confronta. Como precedentemente se indicou, extremamente curto o prazo de que o Brasil dispe para dar-lhe um decisivoencaminhamento. Se no o fizer, aceleradamente e desde agora, o poderpblico perder, para o crime organizado, o controle das grandes metrpolese uma classe mdia apavorada, vtima indefesa da violncia metropolitana,apelar para solues fascistas.

    Ante esse quadro abre-se para o Brasil uma inescapvel alternativa: (1)a de lograr, a relativamente curto prazo, superar os aspectos mais graves da

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    marginalidade interna, conseguir apropriada insero no sistema internacional,nele obtendo satisfatrias margens de apoio e alcanar, num prazo de no

    mais de vinte anos, um patamar de desenvolvimento econmico-tecnolgicoautnomo e auto-sustentvel equivalente ao de um pas como a Itlia e dedesenvolvimento social equivalente ao da Espanha ou (2) tornar-se um merosegmento do mercado internacional, preservando uma soberania de fachada,mas efetivamente submetido, domesticamente, ao controle das grandesmultinacionais e, internacionalmente, de Washington.

    Os problemas que o Brasil ter de resolver, a curto, mdio e longoprazos, so complexos e requerem uma enorme concentrao de esforos,com uma grande continuidade e consistncia de polticas. O pas dispe,

    objetivamente, de condies para dar exitosa soluo a esses problemas.Mas para tal necessita, em primeiro lugar, tomar plena conscincia dessaproblemtica e dos requisitos necessrios para enfrent-la.Complementarmente, como sucintamente se discute no captulo II destelivro, necessita empreender, prontamente, uma reviso crtica de seu modeloeconmico e sua substituio por um modelo que libere, diretamente dosetor pblico e, por induzimento, do privado, os imensos recursosnecessrios para dar execuo s tarefas que tem pela frente. Necessita,ainda no curso do atual mandato do presidente Lula, extremamentedebilitado pela crise poltica do mensalo, encontra formas em assegurar

    um mnimo de governabilidade para serem imposta, entre outrasprovidncias, empreender uma ampla e profunda reforma de seu sistemapoltico, conjuntamente com a adoo de medidas que elevem,significativamente, a eficcia do poder pblico, particularmente da Unio.Necessita igualmente, nesse mesmo perodo, dar significativoencaminhamento aos esforos para a superao da marginalidademetropolitana.

    CONSCINCIAEVONTADENACIONAIS

    As tarefas que o Brasil tem pela frente, num horizonte que vai doimediato at a dcada de 2020, no podem ser cumpridas, nem mesmosimplesmente entendidas, se no se formar, a esse respeito, uma amplaconscincia nacional e se mobilizar, para atac-las, uma consistente vontadenacional, fundada num consenso bsico a respeito dos aspectos essenciaisda questo.

    Miolo Livro Helio Jaguaribe.pmd 4/12/2005, 22:5042

  • 7/25/2019 JAGUARIBE, Hlio. Urgncias e Perspectivas Do Brasil

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    Por iniciativa de um grupo de destacados parlamentares,representativos das principais correntes polticas do pas, coordenados pelo

    ento deputado e atual senador Aloizio Mercadante, foi elaborada, em finsde 2002, uma Proposta de Consenso Nacional, baseada numa sria anlisedos problemas brasileiros. As eleies de fins daquele ano e as vicissitudesligadas formao de um novo governo no permitiram, no curso dosexerccios de 2003 e 2004, que foss