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73 J AMB CULTURA 2011; 1(10): 73-80 BOA LEITURA JAMB CULTURA Este caderno é parte integrante do Jornal da Associação Médica Brasileira (AMB) – Coordenação: Hélio Barroso dos Reis Bimestral julho/agosto de 2011 – nº 10 Yvonne Capuano, Clínica-geral, membro do Conselho Editorial do Departamento Cultural da AMB, São Paulo/SP Foto: José Lira Célio Ronchini Lima, nascido em Ribeirão Preto – SP, 1932. Atualmente com 78 anos, formado em Medicina em 1958 na Faculdade Nacional de Medicina (Praia Vermelha), fez espe- cialização em coloproctologia pela Sociedade Brasileira de Coloproctologia e pela Associação Médica Brasileira (1960); membro jubilado dessa sociedade e membro da Sociedade Brasileira da História da Medicina. Utiliza a escultura desde os anos 60, em materiais plásticos (argila, durepoxi e outros) para representar esquematicamente estruturas anatômicas e anatomo-patológicas, das quais foram motivos para várias exposições realizadas em congressos de cirurgia e de colo- proctologia, em diversas cidades do Brasil. É o responsável pelo Museu da Medicina do Centro Médico de Ribeirão Preto, desde a sua criação em 2000. Nesse museu encontram-se mais de 400 esculturas que representam áreas da medicina como: biologia celular, embriologia, morfologia, patologia e hepatologia. Na foto, a peça faz parte de uma coleção de Ortopedia. Autor: Célio Ronchini Lima Título: Ilíaco em gesso Dimensões: 25 x 20 x 7 cm Técnica: gesso Ano: 1980 Peça da coleção de modelos do Museu de Medicina do Centro Médico de Ribeirão Preto – Dr. Célio Rochini Lima como terreno fértil de inspiração para os escrito- res, a fronteira que separa a medicina da literatura então se estreita e faz parecer natural a linhagem daqueles que souberam ultrapassá-la, a exemplo de Joaquim Manuel de Macedo, Guimarães Rosa, Pedro Nava e tantos outros, para mencionar apenas autores brasileiros. Não é por outra razão que, em contrapartida, defende-se hoje a inclusão das chamadas humanidades nos currículos dos cursos de medicina, formalizando o incentivo à leitura de textos literários, históricos e filosóficos com a perspectiva de alargar o horizonte intelectual dos médicos. M uito já se falou sobre o fosso que sepa- ra o mundo da ciência do mundo da literatura. Nessa discussão, não faltam os argumentos que, para justificar o interesse que os profissionais da medicina mantêm, de longa data, pelo cultivo das letras, convertendo-se eles próprios em escritores de renome, mencionam a necessidade de transcender os limites, desafios e impasses colocados por um cotidiano marcado pela doença e pela morte. Se a medicina tem a particu- laridade de pressupor o conhecimento da pessoa, já que sua prática representa aquilo que Moacyr Scliar definiu como “um verdadeiro mergulho na natureza humana”, caracterizando tal processo

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73J a m b Cu l t u r a 2011; 1(10) : 73-80

Boa Leitura

Jamb CulturaEste caderno é parte integrante do Jornal da Associação Médica Brasileira (AMB) – Coordenação: Hélio Barroso dos Reis

Bimestral julho/agosto de 2011 – nº 10

Yvonne Capuano, Clínica-geral, membro do Conselho Editorial do Departamento Cultural da AMB, São Paulo/SP

Foto

: Jos

é Li

ra

Célio Ronchini Lima, nascido em Ribeirão Preto – SP, 1932. Atualmente com 78 anos, formado em Medicina em 1958 na Faculdade Nacional de Medicina (Praia Vermelha), fez espe-cialização em coloproctologia pela Sociedade Brasileira de Coloproctologia e pela Associação Médica Brasileira (1960); membro jubilado dessa sociedade e membro da Sociedade Brasileira da História da Medicina. Utiliza a escultura desde os anos 60, em materiais plásticos (argila, durepoxi e outros) para representar esquematicamente estruturas anatômicas e anatomo-patológicas, das quais foram motivos para várias exposições realizadas em congressos de cirurgia e de colo-proctologia, em diversas cidades do Brasil. É o responsável pelo Museu da Medicina do Centro Médico de Ribeirão Preto, desde a sua criação em 2000. Nesse museu encontram-se mais de 400 esculturas que representam áreas da medicina como: biologia celular, embriologia, morfologia, patologia e hepatologia. Na foto, a peça faz parte de uma coleção de Ortopedia.

Autor: Célio Ronchini LimaTítulo: Ilíaco em gesso Dimensões: 25 x 20 x 7 cm Técnica: gesso Ano: 1980 Peça da coleção de modelos do Museu de Medicina do Centro Médico de Ribeirão Preto – Dr. Célio Rochini Lima

como terreno fértil de inspiração para os escrito-

res, a fronteira que separa a medicina da literatura

então se estreita e faz parecer natural a linhagem

daqueles que souberam ultrapassá-la, a exemplo

de Joaquim Manuel de Macedo, Guimarães Rosa,

Pedro Nava e tantos outros, para mencionar apenas

autores brasileiros. Não é por outra razão que,

em contrapartida, defende-se hoje a inclusão das

chamadas humanidades nos currículos dos cursos

de medicina, formalizando o incentivo à leitura

de textos literários, históricos e filosóficos com a

perspectiva de alargar o horizonte intelectual dos

médicos.

M uito já se falou sobre o fosso que sepa-ra o mundo da ciência do mundo da literatura. Nessa discussão, não faltam

os argumentos que, para justificar o interesse que os profissionais da medicina mantêm, de longa data, pelo cultivo das letras, convertendo-se eles próprios em escritores de renome, mencionam a necessidade de transcender os limites, desafios e impasses colocados por um cotidiano marcado pela doença e pela morte. Se a medicina tem a particu-laridade de pressupor o conhecimento da pessoa, já que sua prática representa aquilo que Moacyr Scliar definiu como “um verdadeiro mergulho na natureza humana”, caracterizando tal processo

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Jamb Cultura

Eu devia ter uns 6 ou 7 anos quando meus pais me leva-ram a um museu de história natural. Talvez tenha sido esse meu primeiro contato com esse tema.

Andando pelos corredores daquele museu, em cada sala, cada corredor, cada vitrine, em meio a diferentes pedaços da história, um elemento se fazia constante: ossos! Fragmentos de ossos, artefatos feitos de ossos, de animais extintos, ossos que nos lecionavam a história da evolução humana, enfim, ossos para que te quero!

Para possibilitar a evolução das espécies, os répteis tiveram que desenvolver um aparelho capaz de dar-lhes estrutura para o deslocamento em terra e, ainda mais, que pudessem lhes conferir a capacidade de alcançar os alimentos nas árvores. Os ossos se desenvolviam à medida em que as espécies também o faziam, agora em terra firme. A postura bípede, sinal maior do surgimento da espécie humana na superfície terrestre, foi apenas mais uma das maravilhas protagonizadas pelos ossos há milhões de anos.

Em minha primeira comunhão, os ossos me intriga-ram quando me foi dito que Deus criou a mulher ao retirar uma costela de Adão. Talvez tenha sido a primeira cirurgia, ortopédica por sinal, que se tem notícia! O fato é que não foi uma costela qualquer. As costelas flutuantes, as falsas e as menores foram desprezadas. Deus usou exatamente uma costela verdadeira. Segundo um amigo, escritor de Brasí-lia e membro do Conselho Editorial do JAMB Cultura: “Deus usou a mais perfeita das costelas, a sétima. Tenho como certo que foi do lado esquerdo, que é o lado da maior pulsação do coração.” Era, portanto, o osso, mais uma

vez participando da melhor criação deste e do outro mundo: a mulher.

Alguns anos mais tarde, já na adolescência, assis-tindo TV, pude ver várias notícias que apresentavam o desvendar de crimes através da análise de ossos, rema-nescentes.

2001, uma odisséia no espaço, o filme. Fui assistir com uma namoradinha (hoje esposa) e lá estava, nova-mente, estampada na minha frente, a importância dos ossos como alicerces do desenvolvimento humano! A primeira arma, o primeiro instrumento de defesa e caça: um osso! (Figura 1).

Veio o vestibular, que prestei para medicina, e não tive muita dificuldade de me apaixonar pela “osteo-logia”, logo no primeiro ano do ensino superior. Para mim era fascinante como aquelas estruturas, de formas tão distintas, conseguiam desempenhar, de maneira tão harmoniosa, tantas funções no corpo humano. Logo no terceiro ano, lá estava eu estagiando em ortopedia...

Na faculdade, o professor perguntava “Que estru-tura óssea é essa?” ou “Qual a importância desse relevo ósseo (apontando para uma tuberosidade ou uma cris-ta)?”. Quanto mais eu estudava, mais me apaixonava pelo estudo dos ossos.

Ao final do meu curso de medicina, seria inevitável: a residência em ortopedia tornou-se meu objetivo natu-ral! Alguns de meus amigos diziam: “Não sei o que você vê nessa especialidade” ou ainda “Faça uma especiali-dade mais nobre...” e toda a sorte de frases que passei a ouvir durante toda minha residência.

Curso difícil e sacrificante devido aos plantões de traumatologia e incontáveis noites em claro, recons-truindo ossos como quebra-cabeças vivos entre fios, placas e parafusos. Após a residência, muito cedo, pude sentir algo que meu professor havia me dito lá no início do curso: “O erro da maior parte dos médicos, a terra esconde, mas o erro do ortopedista anda pelas ruas para que todos o vejam...”. Mais uma vez a vida me dizia: ossos contam histórias!

E contam mesmo! Para citar um bom exemplo, uma publicação do prestigioso Journal of Bone and Mineral Research1 traz uma das tantas vinhetas que dão prova da riqueza de informações que os ossos – E SÓ ELES – nos trazem ao longo dos tempos, desde que o mundo é mundo. O caso estudado por J. Dequeker foca em achados provenientes de Lisht, no Alto Egito, datados da 12a Dinastia (1990-1786 a.C.). Através de estudos

Os ossos são assim: indispensáveis e inspiradores

Autor: Célio Ronchini Lima; Título: Bacia Esculpida em Gesso; Dimensões:25 x 20 x 7 cm; Técnica: gesso; Ano: 1920. Peça da coleção de modelos do Museu de Medicina do

Centro Médico de Ribeirão Preto – Dr. Célio Rochini Lima

Foto

: Jos

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ra

Crônica

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anatômicos, radioló-gicos e suas medidas radiológicas, ele verifi-cou elementos de osteo-porose complicada por fratura do colo femoral em uma mulher com múltiplas compressões de corpos vertebrais. Esse caso possibili-tou acrescentar maior conteúdo a elementos históricos de que a osteoporose e suas consequências já existiam na Antiguidade. Elucidou ainda que a sobrevida daquela mulher por longo prazo, mesmo com uma fratu-ra extracapsular do fêmur proximal (vide imagem do fêmur com total reabsorção da cabeça femoral correspon-dente – Figura 2) indicariam, segundo os pesquisadores, a existência de condições sociais de suporte à vida.

E por falar em fraturas, há que ser lembrado que o tecido ósseo é o único capaz de se regenerar por comple-to, ou seja, tem a capacidade de produzir-se em resposta a lesões e de se remodelar até alcançar sua forma e funções originais.

Hoje não tenho dúvidas! Sei que os ossos nos contam muitas histórias! Quando me perguntam “Por que você escolheu a ortopedia?”, tenho uma resposta tão curta quanto plena:

Escolhi a ortopedia porque os ossos são os órgãos mais importantes do corpo humano!

Senão, vejamos:Sem ossos não nos alimentaríamos. Sem ossos nossos

dentes, fundamentais para a mastigação, não empresta-riam suas características, só possíveis graças à fenome-nal alavanca que nossa mandíbula, opondo-se à maxila, desempenha todos os dias de nossa vida;

Sem ossos, nossos olhos – guardados, ancorados e protegidos pelas órbitas de nossos crânios - não teriam referencias para desempenharem suas funções na visão e no equilíbrio. Disfunções nos ossos do crânio, com frequência, refletem-se em distúrbios da visão e suas consequências;

E o que podemos dizer da audição? Ao batermos num diapasão e o encos-tarmos na fronte, verifi-camos um papel poucas vezes comentado dos ossos na fisiologia da audi-ção: a transmissão do som. Normalmente, somente reverenciamos as estrutu-

ras do ouvido interno, o martelo, a bigorna e

o estribo (opa, que também são ossos!), como elemen-tos importantes para esse sentido humano. Mas o fato é que, de uma forma ou de outra, os ossos não são apenas importantes na audição, mas essenciais! Sem ossos não seríamos capazes de ouvir Bach, Beethoven, Chopin e tantos outros sons capazes de despertar os mais variados sentimentos humanos!

A espécie humana caracteriza-se pelo uso de seus sentidos e habilidades graças aos ossos. A mão que acari-cia, através dos movimentos complexos e absolutamen-te sincronizados das falanges, dos ossos do carpo e dos membros superiores é a mesma que extrai de um piano, de um violão ou de tantos outros instrumentos, sons que fazem a trilha sonora de vidas de bilhões de habitantes da terra. Sem os ossos, seríamos condenados a viver distan-tes de nossos semelhantes e privados de tantas belezas que chamamos de artes.

Se pensarmos nos ossos de Michelangelo trabalhando no teto da Capela Sistina, ou em sua emoção ao concluir sua célebre escultura de Moisés, poderíamos imagi-nar que, ao bater com o martelo e apontar seus dedos em profunda adoração ao próprio trabalho e exclamar “Parla!”, o fazia não à estátua mas, no fundo, aos próprios ossos de suas mãos, verdadeiros autores daquela obra e, então, postos em regozijo, admiração e êxtase plenos;

Não só a arte mas toda força de trabalho humano existe na intrínseca dependência dos ossos. Antes mesmo da invenção da alavanca, esses fascinantes órgãos já possi-bilitavam à humanidade a construção de tudo que hoje temos. Dá-me um osso longo e um ponto de apoio que poderei mover o mundo!

Mas os ossos são mais, representam mais, fazem mais: como caixas de proteção, nossos ossos garantem nossa sobrevivência durante momentos banais, mas que poderiam ser fatais sem eles. O sistema nervoso central, o coração, pulmões, o aparelho reprodutor feminino – que garante a preservação da espécie – encontram no arcabou-ço ósseo a proteção necessária para que sejam poupados dos traumas e ameaças ambientais. A vida simplesmente não seria possível sem uma grade torácica, uma pelve e um crânio protegendo nossos órgãos. O parto em si já seria um grande desafio à sobrevivência! Pacientes com Osteoge-nesis Imperfecta representam, nesse sentido, um exemplo

Figura 1: cena do filme 2001, Uma Odisséia no Espaço, Stanley Kubrick e Arthur C Clarke, 1968Disponível em : http://bulevoador.haaan.com/tag/camilo-gomes-jr/. Acessado em 09/08/2011

Figura 2: Avaliação radiológica de múmia de mulher da 12a Dinastia Egípcia, onde vê-se uma fratura do colo femoral direito (D), reabsorção da cabeça femoral esquerda (centro) e deformidades

vertebrais compatíveis com fraturas por osteoporose (E)

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Jamb Cultura

modesto do que seria a existência humana sem esses indis-pensáveis protagonistas do corpo humano – os ossos!

E por falar em perpetuação da espécie, nem precisarí-amos lembrar a importância dos ossos da pelve no proces-so reprodutivo, seja no papel de protetor de um eventual embrião e feto, como nos movimentos que precedem e possibilitam o prazer do orgasmo e da ejaculação para a inseminação. Sem os ossos, nossa reprodução seria antes que difícil, sem graça! Como não bastassem esses fatores no processo reprodutivo, ainda que a testosterona, produ-zida pelos testículos seja reconhecidamente importante na preservação da saúde óssea, a osteocalcina, sintetizada exatamente pelos osteoblastos, exerce papel fundamental na atividade das células de Leidig através de receptores de membrana para a proteína G, regulando a síntese desse hormônio sexual2. Em outras palavras, sem ossos os homens seriam menos férteis!

Até quando respiramos dependemos em vários níveis de nossos ossos. O gradil costal desempenha papel essen-cial nessa função fisiológica e, se não fosse suficiente, é neles, nos ossos, que as hemácias são produzidas, permi-tindo a hematose e consequente transporte do oxigênio a todos os tecidos do corpo humano – até mesmo aos ossos!

Boa parte do nosso sistema endócrino (lembro que algumas glândulas são protegidas pelos ossos) tem sua função diretamente regulada por elementos mantidos em estoque exatamente em nossos ossos: o cálcio e o fósforo. Sem esses estoques, nosso coração teria dificuldade de manter seu ritmo, nossas placas motoras e fibras muscu-lares não seriam eficientes e entrariam com frequência em tetania.

Ah, os ossos! Sem eles nossa dieta teria que prover quantidades de minerais a todo minuto para que míni-mas funções de sobrevivência fossem preservadas! E ainda são discriminados! São dilapidados toda vez que o sistema endócrino se desregula! Isso é uma covardia – instruir células geradas exatamente em sua medula (os osteoclastos) a reabsorverem seu próprio território com o propósito de manter a calcemia e preservar as funções de outros órgãos?!? A osteoporose vem se apresentando como uma das grandes epidemias deste século – mas que fique claro que não por culpa dos ossos! São eles, na verdade, as vítimas dessa enfermidade.

E por falar em células da medula óssea, temos que lembrar que também nos ossos é que se encontram os nascedouros de grande parte das células de defesa do nosso corpo. Ali nascem leucócitos que vão garantir na corrente sanguínea – nossa sobrevivência num mundo tão cheio de microorganismos também lutando pelas suas vidas. Sem os ossos, padeceríamos ante a agentes triviais, pois não seríamos capazes de deflagrar as respos-tas imunes que desenvolvemos. E porque não lembrar também da capacidade pluripotencial através da qual, por tão fascinante, células de nossa medula óssea vêm desven-dando um novo campo do conhecimento!

Hoje, após quase 34 anos de formado e 39 ligado à ortopedia, posso dizer que escolhi essa especialidade porque os ossos são essenciais desde a história da huma-nidade e indispensáveis para a existência humana!

P.S. Em futuros capítulos: Cartilagens, Músculos, Tendões e Ligamentos. Não percam!

Hélio Barroso dos ReisOrtopedista, Diretor Cultural da AMB

Vitória/ES

Referências:1. Jan Dequeker. HipFracture and Osteoporosis in a XIIth Dynasty

FemaleSkeleton from Lisht, Upper Egypt, JBMR, 1997; 12(6)2. Oury, F., Sumara, G., Sumara, O., Ferron, M., Chang, H., Smith,

C.E., Hermo, L., Suarez, S., Roth, B.L., Ducy, P., et al. (2011). Endocrine regulation of male fertility by the skeleton, Cell, 2011;144:796-809

Figura 3: Estátua de Moisés, por Michelangelo. Especula-se que ele, ao concluir sua obra e extasiado pelo realismo de seu resultado final, teria batido nela com seu martelo e exclamado: “Parla, parla!”. Uma grande

obra prima, essa escultura encontra-se na entrada da Igreja de San Pietro in Vincoli, Roma.Disponível: http://pt.wikipedia.org/wiki/Mois%C3%A9s_(Michelangelo), acesso em 10/08/2011

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Há alguns dias, no plantão de emergência, trou-xeram-me um paciente de 18 anos… Enquanto o maqueiro o conduzia ao local do atendimen-

to percebi, na imobilidade involuntária do corpo, que o paciente já era pó caído. O exame clínico não me deixou dúvida: parada cardiorrespiratória, ponta do pé desviada para fora, flexão do polegar na palma da mão, descora-mento da tegumentar, suor frio, horripilação da pele e a midríase paralítica denunciavam a morte!

Enquanto o examinava, sua mãe permaneceu o tempo todo ao lado. As mães, que nunca desertam, pressentem quando seu filho vai morrer. Aquela, que estava ao meu lado, o pressentiu logo e só conseguiu sussurrar aquelas duas palavras que sintetizam o sentimento universal:

- Meu filho!

O pai, transtornado, adentrou, com a ficha médica que fora providenciar e me perguntou:

- E aí, doutor?

Quando lhe disse o que ocorrera, desabou num descontrole emocional tão profundo que chegou ao ponto das invectivas. Questionou Deus, xingou os médicos, comparou os hospitais a matadouros… gritou e esgoelou, como vocifera os que não se educam para a morte, os que projetam, na finitude da vida, uma eternidade enganadora. Não era possível àquele pai compreender aquela morte…

Havia 15 dias que o paciente estava doente. Nesse período, disseram-me, acometeu-se-lhe forte cansa-ço, tosse e hemoptise… Estivera em outros hospitais às voltas com exames… Exames, eis tudo no que se resu-me a medicina da atualidade! Uma radiografia do tórax em péssima técnica, tirada há uma semana, revelava com clareza apenas aumento da área cardíaca. Morrera aquele paciente sem diagnóstico… O diagnóstico, disse Francisco de Castro, clássico da Clínica Propedêutica, é o eixo em volta do qual gira todo o problema clínico, e de tal modo que sem diagnóstico é impossível a medicina. Isto não mudou… Como não mudou, malgrado o apara-to técnico hoje existente, negou-lhe a medicina o que lhe poderia adiar a morte: o diagnóstico. “Medicina, onde está tua vitória”?

Os 30 minutos que durou aquela cena pareceu-me uma eternidade… Dois psicólogos não tiveram êxito em acalmar aquele pai. Os pacientes circunstantes já esta-vam apreensivos com os seus gritos de revolta. Eu, ao lado da maca, permaneci calado enquanto ele destilava seu inconformismo, suas culpas, suas… Quando me deu uma chance, o convenci a ir até o consultório. Pedi-lhe que se sentasse, mas ele recusou… Então, comecei assim:

- Saiba que entendo sua dor, que entendo seu deses-pero, que entendo seu desapontamento… Relevo as suas acusações; reconheço o caos da assistência pública; a

Pó com vento… Pó sem vento…Crônica

indiferença com a qual se trata, não raramente, o proble-ma de outrem. Tudo isto o sei e compreendo. Mas há o imponderável que você precisa entender. Em nenhuma escritura sagrada, em nenhum tratado de filosofia está escrito que você morreria antes que seu filho. Toda vida se completa, cedo ou tarde, quando atinge seu termo, que é a morte. Também é certo que não é preciso morrer para reverter-se ao pó, porque já somos pó. Seu filho, agora, é pó caído (cair é morrer), você, como eu, pó levantado (levantar-se é viver). Portanto se prepara para enterrar seu filho, se não com resignação, ao menos com fé. Ele encarou-me longamente, atônito, e disse:

- Obrigado, doutor…

Diante daquele fracasso, da vã ciência, voltei a meditar sobre o Sermão da Quarta-Feira de Cinzas, que o Padre Vieira pregou em Roma, na Igreja de Santo Antonio dos Portugueses, em 1672… Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris. Se vivo sou pó e morto serei pó, que difere um pó do outro pó? O pó presente do pó futuro? O mundo, disse o clássico pregador, noutros termos, está repleto de pó, dá um pé-de-vento e o levanta. Levantado, com vento, o pó se agita, caminha, corre, sobe, desce… Não aquieta o pó, já vai adiante, a tudo envolvendo, a tudo penetrando… Acalma o vento: cai o pó. Ali onde caiu, fica… O vento é a nossa vida: pó levantado; a ausência do vento é a morte: pó caído. Tudo pó: com vento, nós, os vivos; sem vento, eles, os mortos. Eis, conclui Vieira, a única diferença!

Esta medicina soberba da atualidade, que se presume invencível com sua sofisticadíssima técnica, mal ensina-da, cria na mentalidade dos estudantes, dos residentes, dos próprios médicos, uma falsa concepção científica que prejudica o entendimento moral da finitude da vida. Não ignoro os progressos, nem os maldigo, apenas constato que a técnica sobrepondo-se ao humanismo gera tamanha distorção de entendimento que corrobora a ideia do afas-tamento definitivo da morte, como o idealizou Saramago n’As Intermitências da Morte. É necessário, nessa socie-dade fútil e arrogante, afastar a morte para bem longe… Já não se morre em casa; já não se enfrenta o processo de morte no seio da família, onde o ente querido era assisti-do até o último suspiro… Tudo é frio… Tudo é frívolo… Restarão apenas o remorso e a culpa, que se dissipam em trabalhos de luto ridículos e em reações histéricas… A pergunta que mais se houve é aquela afronta:

- Por que ele (ou ela), meu Deus?

Como se Deus, senhor de tudo, que põe e dispõe, tivesse que dar explicação dos seus planos a um pobre mortal. Não, não dá, simplesmente convoca! Para o vento e faz cair o pó!

Fernando Guedes, Médico do Trabalho

Salvador/BA

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78 J a m b Cu l t u r a 2011; 1(10) : 73-80

espaço poético

Jamb Cultura

Meu consultório

Me encanto a cada consulta,

Escutando os pacientes.

Um exame, uma ausculta,

Criam laços resistentes.

Ouço histórias do “Além Mar”,

Nesta hora tão sensível.

Sou padre... sou avatar...

Um coração disponível.

Louvo a Deus esta honraria,

Tudo por eles faria,

Ofertando o melhor trato.

Retribuo nestes versos,

Inebriado eu confesso,

O quanto a eles sou grato.

Acróstico, em forma de soneto, com

versos em redondilho maior

Arnóbio Moreira Félix,

Ortopedista e Traumatologista

Belo Horizonte/MG

Soneto de reencontro

Querer te ver é sonho que acalento

A cada passo, a cada novo alento

A cada instante, ato e pensamento

A dolorosa ausência que sustento

A solidão que aqui deveras sinto

Acabará, e saibas que não minto

Então é grave a falta, assim pressinto,

de carregar em cores meu instinto ?

Minha certeza a cada instante conto

Sempre me ocorre o tema desse ponto

Se não me ouves, onde a reencontro ?

Não tarda o dia em que por ti pergunto

Não só palavras, mas o grande assunto

Que é minha alma em todo o seu

conjunto

Ivan de Melo Araújo,

Nefrologista

Marília/SP

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79J a m b Cu l t u r a 2011; 1(10) : 73-80

Eu sou um menino muito doce e minha mãe é feita de amor...

Ambos ficamos todos os dias aqui na enfer-maria da pediatria. Minha mãe gosta das mesmas coisas que eu. Às vezes nós queremos brincar no parque... Mas esses são planos para outra ocasião! Aqui fazemos tudo de bom, tudo que tem que ser feito: tomar remédio, comemos, separamos as trufas que a mamãe faz por cor e sabor, contamos estórias, brincamos de video-game, até ficamos bravos. Às vezes faço birra com o pessoal só para depois poder ficar de bem um com o outro.

Assim, somos felizes e damos carinho para os outros em nosso dia-a-dia. Esse carinho que não se compra e não se acha, foi Deus que plan-tou no meu coração desde que eu nasci e, que de tão grande que é, às vezes trinca um pedacinho do meu ossinho para que, através dela possa entrar em mim mais um pouco de amor e isso não me machuca. E é essa parte do amor que eu guardo para dar aos outros que precisam: as crianças e outros que já são grandes.

O menino e a mãe que dorme sentadaSou contente, quase sempre, embora às vezes

eu pense assim: - Por que as outras crianças vão e vêm e eu fico sempre aqui? Mas logo eu me lembro: Tenho uma missão, do tipo Super-Homem e preci-so não desistir dela. Apesar de ter só uns 7 anos sei muito bem que sou especial e necessário, sabem? Minha mãe me conta com o seu doce olhar todos os dias.

Eu não sei por que é que eu estou nessa estória de missão, só espero que as outras pessoas grandes saibam. E que elas ajudem-me a viver, como minha mãe faz, todos os dias, quando eu não puder ou não souber fazer alguma coisa...

A minha mãe e meu pai estão do meu lado e todas as outras pessoas e também os médicos e pessoas da saúde: tem muita gente, ainda bem! E tem também as crianças de perto e também as de longe que estão torcendo por mim.

Eu e as outras crianças ganhamos cuidado na enfermaria de pediatria: meninos e meninas, com seus machucados. Será que elas também têm mães carinhosas como a minha?

Aqui, todo mundo me ajuda todo o dia para que eu possa fazer o meu caminho que, talvez, só as crianças consigam fazer.

Sabe, hoje percebi que alguns médicos e mais pessoas da saúde foram-se embora da nossa enfer-maria: os médicos residentes, tontos de tanto traba-lhar... Dei até uns presentinhos para os que foram embora não se esquecerem de mim. E outros médi-cos ficaram e alguns chegaram para começar e, todos, ficam aqui bastantes horas do dia e da noite.

Penso que as missões dos médicos, enfermeiras e pessoas da saúde é parecida com a minha e de minha zelosa mãe... Talvez, assim como eu, os que trabalham com a nossa saúde não sabem bem ao certo o “porquê”.

Pouco me importa! Sou feliz! Eu, minha impor-tante missão, meus médicos e seus amigos e minha mãe que, todas as noites, dorme sentada na poltro-na ao lado.

Marisa Corrêa Christensen, Médica Sanitarista e Homeopata

Campinas/SP

Conto

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Jamb Cultura

JAMB CULTURA

Edição Bimestral | julho e agosto de 2011

www.amb.org.br | [email protected]

Presidente: José Luiz Gomes do Amaral

Coordenador e Diretor Cultural: Hélio Barroso dos Reis

Diretor de Comunicações: Elias Fernando Miziara

Conselho Editorial (2010-2011):

Armando José China Bezerra (Brasília/DF - região Centro-Oeste)

Carlos David Araújo Bichara (Belém/PA - região Norte)

Gilson Barreto (São Paulo/Campinas – região Sudeste)

Giovanni Guido Cerri (São Paulo/SP – região Sudeste)

Guido Arturo Palomba (São Paulo/SP – região Sudeste)

Hélio Barroso dos Reis (Vitória/ES – região Sudeste)

José Luiz Gomes do Amaral (São Paulo/SP – região Sudeste)

Murillo Ronald Capella (Florianópolis/SC – região Sul)

Roque Andrade (Salvador/BA – região Nordeste)

Yvonne Capuano (São Paulo/SP – região Sudeste)

Apoio cultural: Departamento de Comunicações da AMB

Assessoria em Comunicação e Cultura: Flávia Negrão

Projeto Editorial: Sollo Comunicação

Revisão: Natália Cesana

Colaboração

O JAMB Cultura é um espaço aberto que estimula

a literatura e valoriza as manifestações culturais do

Brasil. Para isso, convidamos os médicos a enviar artigos,

crônicas, poesias, textos sobre cultura e história da

Medicina para o Conselho Editorial.

A/C Hélio Barroso dos Reis (Diretor Cultural): Rua São

Carlos do Pinhal, 324 – Bela Vista – São Paulo/SP -

CEP: 01333-903 - ou pelo e-mail: [email protected]

Participe e colecione!

Normas para publicação de artigo no Jamb Cultura

1) ser médico(a) associado da Associação Médica Brasi-

leira, através da Federada de sua região.

2) texto de aproximadamente 1 lauda, em arial 12.

3) se houver fotografias, favor identificá-las, colocar o cré-

dito e enviar em 300 dpi, anexadas fora do texto (JPG).

4) o material será apreciado pelos membros do Conselho

Editorial antes de sua publicação.

5) ao enviar ao Conselho, informar autorização de

publicação.

6) assinar o artigo com: nome, especialidade, cidade,

estado e endereço para correspondência.O Jamb Cultura somente publica matérias assinadas, as quais não são de responsabilidade

da Associação Médica Brasileira

Jamb Cultura

fortaleza/CeCentro Dragão do Mar de Arte e CulturaO espaço apresenta a exposição individual “A Arte e a Cidade” do artista Erickson Britto. A mostra reúne 30 trabalhos como esculturas, maquetes de obra pública, objetos e jóias (até 02/10/11).Praia de Iracema: r. Dragão do Mar, 81, tel. (85) 3488-8622. Ter. a qui., 9h/19h; sex. a dom., 14h/21h. R$ 2 e R$ 1. www.dragaodomar.org.br

são Paulo/sPMuseu da Língua PortuguesaO modernista oswald de andrade (1890-1954) é ho-menageado em uma mostra com curadoria de José Miguel Wisnik e Cacá Machado, que reúne fotos, do-cumentos, originais, fac-símiles e intervenções virtuais (de 11/07/11 a 25/09/11). O museu, aberto em março de 2006, usa tecnologia de ponta e recursos interativos para a apresentação de seu acervo virtual. A instituição é pioneira na pre-

Dicas cuLturais

servação de um patrimônio imaterial, no caso a Língua

Portuguesa.

luz: Praça da Luz, s/nº, tel. (11) 3326-0775. Ter. a

dom., 10h/18h. Na última terça-feira de cada mês, o

horário é estendido até às 22h. Ingr.: R$ 6. Aos sába-

dos, a entrada é franca para todos os visitantes. www.

museudalinguaportuguesa.org.br

vItórIa/EsPalácio AnchietaO espaço apresenta a exposição Mestres Espanhóis

com obras de Picasso, Salvador Dalí, Miró e Goya. A

mostra reúne 101 desenhos que fazem parte do acer-

vo de Collezioni D’arte Camú, do Consorzio Camú, da

Itália (até 02/10/11). O edifício construído no século

XVI abriga o acervo da Secretaria Municipal de Vitória

e o túmulo do padre José de Anchieta.

Cidade alta: praça João Climaco, s/n, tel. (27) 3321-3578.

Ter. a dom., 10h/17h. www.palacioanchieta.es.gov.br