Jean Jacques Nattiez Etnomusicologia e Significações

Embed Size (px)

DESCRIPTION

artigo jean jacques

Citation preview

  • 5NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.PER MUSI Revista Acadmica de Msica - n. 10, 102 p., jul - dez, 2004.

    Recebido em: 25/06/2004 - Aprovado em: 13/10/2004.

    Etnomusicologia e significaes musicais

    Jean-Jacques Nattiez (Universit de Montral, Canad)Traduo de Silvana Zilli Bomskov

    [email protected]@terra.com.br

    Resumo: Em primeiro lugar, especifica-se o que se entende por semntica musical, a fim de diferenci-la dasemntica lingstica. A classificao das grandes famlias de pesquisa semntica na musicologia permite determinaro lugar da semntica musical na etnomusicologia. Numa segunda parte, prope-se uma caracterizao dosfenmenos semnticos na etnomusicologia: a utilizao de procedimentos substitutivos da linguagem; a dimensosignaltica dos signos; os aspectos simblicos, denotativos e conotativos; a remisso indicial ao poltico-social eao ideolgico. O artigo termina com observaes crticas sobre os mtodos da semntica musical naetnomusicologia: o estabelecimento dos significantes pertinentes e dos significados ligados a eles, o status a seratribudo aos autores da semantizao e a funo dos contextos.Palavras-chave: etnomusicologia, semntica musical, semiologia.

    Ethnomusicology and musical meanings

    Abstract: In the first part of this article, in order to differentiate musical semantics from linguistic semantics, aconcept of the former is presented. The classification of the major families of semantics research in musicologyallows one to determine the place of musical semantics in ethnomusicology. In the second part, the application ofthe semantic phenomena traits in ethnomusicology is proposed: the usage of the languages substitutiveprocedures; the dimension of sign; the symbolic aspects, both connotative and cognitive; the indexical remissionto the political, social and ideological planes. It ends with critical observations about the musical semantics andethnomusicology methods: the establishment of pertinent significants and significations connected to them, thestatus to be attributed to the authors of semantization and the context functions.Keywords: ethnomusicology, musical semantics, semiotics.

    1. Terminologia, definies e famlias de pesquisa.Houve um tempo em que a etnomusicologia no se preocupava com a presena dassignificaes nas msicas que estudava, apenas se concentrava na matria puramente musical das msicas tradicionais. A escola de Berlim estabelecia comparaes entre as escalase as estruturas dos novos sistemas musicais que descobria. Os folcloristas da Europa Centraldedicavam-se a classificar os cantos, na esperana de remontar s suas origens comuns. Osprimeiros pesquisadores norte-americanos a se interessarem pelos ndios da Amrica do Nortebuscavam traos estilsticos mais ou menos gerais ou faziam uma justaposio de anlisesmusicais e descries de contextos de execuo. Neste aspecto, a etnomusicologia ainda seinscrevia na tradio de Eduard HANSLICK, cuja obra Du beau dans la musique, de 1854,marcou o pensamento musical do sculo XX: A forma, em oposio ao sentimento, overdadeiro contedo, o verdadeiro fundo da msica, a prpria msica (HANSLICK, 1986,p.135). Essa situao se transforma quando a etnomusicologia adquire uma orientaoantropolgica, marcada pelo lanamento dos renomados livros de Alan P. MERRIAM (1964) eJohn BLACKING (1973). A partir do momento em que a etnomusicologia se interessa pelosvalores veiculados pela msica numa determinada sociedade e pelos laos que o autctoneestabelece entre a msica e sua vivncia, surge a questo da significao musical.

  • 6NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    Mas basta isso para falar de semntica musical ? Durante o colquio1 em que foi apresentadaa primeira verso deste artigo, Jean MOLINO observou que este termo apareceu na musicologia,nos textos dos psiclogos (FRANCS, 1958, 3a parte ; IMBERTY, 1979, 1981), provavelmentesob a influncia da lingstica, e que antes disto, os musiclogos e os estetas preferiam falarde emoes, como demonstra a primeira obra de Leonard B. MEYER, Emotion and Meaning inMusic (1956). A palavra semntica no consta do ndice da obra, como tambm no apareceno oportuno panorama de Malcolm BUDD, Music and the Emotions, consagrado s abordagensfilosficas do problema (1985).2 Antes de examinar aquilo que se pode denominar semnticamusical , convm explicar que a expresso pode remeter a dois tipos de realidade : umadimenso do fato musical, da mesma forma que se fala das estruturas sintticas ou morfolgicasde uma lngua, de harmonia ou de ritmo na msica, e a disciplina que trata dos fatos semnticos,assim como se fala de fonologia em lingstica ou de anlise formal em musicologia. No textoa seguir, a confuso entre as duas acepes da expresso a disciplina e seu objeto evitada graas aos contextos.

    Congressos inteiros tentam definir as significaes musicais. Eu poderia, maneira de Meaningof Meaning de OGDEN e RICHARDS (1923), tentar relacionar todas as significaes da expresso significao musical . Convm estabelecer aqui algumas balizas. Aquilo que denominamos significaes , quaisquer que sejam as formas simblicas (linguagem, msica, mito, cinema,pintura, etc) em que aparecem, explicam-se semiologicamente por trs princpios: todo signo aremisso de um objeto a uma outra coisa, (Santo-Agostinho); o signo remete a seu objeto pelointermdio de uma cadeia infinita de interpretantes (Peirce); estes interpretantes se repartementre as trs instncias que caracterizam todas as prticas e as obras humanas : o nvel neutro,o poitico e o estsico (MOLINO). Quanto msica, parece-me necessrio distinguir, como o fizcom freqncia em outras obras (NATTIEZ, 1975, 2a parte, cap.I ; 1987, p.147-155), entre asremisses intrnsecas e as remisses extrnsecas de que a msica capaz.

    s primeiras correspondem as relaes formais entre estruturas musicais, de que tratam asteorias formalistas da msica, tanto estticas quanto analticas. Elas tendem, muitas vezes, aconsider-las ontologicamente como sendo o prprio da msica e a tratar as remissesextrnsecas como secundrias. Essas remisses imanentes seriam o lugar do sentido musical,como se diz muitas vezes em portugus, ainda que vrios autores, ao se referirem a elas,falem de musical meaning ou, como escrevo s vezes, de significaes puramentemusicais . Embora esta dimenso do processo semitico musical no seja o que mais interessaos etnomusiclogos de hoje, em funo de sua orientao fundamentalmente antropolgica,

    1 Esse colquio, acolhido pela equipe Langues-Musiques-Socits do CNRS, realizou-se em Villejuif em 4 e5 de maro de 2003. Presidido por Simha Arom, apresentou as palestras de J.-J. Nattiez, Bernard Lortat-Jacob e Jean Molino, s quais Michel Imberty respondeu. Agradeo calorosamente aos convidados e aosnumerosos intervenientes por suas perguntas e crticas nas quais me inspirei muitas vezes ao redigir esteartigo, e particularmente a Jean Molino com quem discuti longamente a respeito de minha exposio e desteartigo. (Ethnomusicolgie et significations musicales, Lhomme, Musique et anthropologie, No. 171-172,julho/dezembro 2004, p. 58-81. )

    2 Atualmente, entretanto, observa-se um retorno dos estudos sobre a emoo musical (MARCONI, 2001; JUSLINe SLOBODA, 2001)

  • 7NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    os trabalhos de Simha AROM a ilustram de maneira decisiva e exemplar. Ainda que este artigotrate da semntica musical, eu continuo persuadido de que a anlise das estruturas musicais,baseadas em categorias micas , isto , nas categorias cognitivas das populaes estudadas,deve permanecer no centro das preocupaes da etnomusicologia. Recordo, a este propsito,que baseado no speech-signal-dance model de J.H. KWABENA NKETIA (1963, p. 17-31),o etnomusiclogo ganense Kofi AGAWU considera fundamental, dentre os trs tipos necessriospara a compreenso do funcionamento rtmico dos tambores do povo Ewe do Norte (AGAWU,1995, p. 91), o jogo puramente musical dos ritmos na dana, um modo autnomo que nodesempenha obrigatoriamente um papel na comunicao (ib., p.105).

    A semntica musical, por sua vez, se interessa pelas significaes afetivas, emotivas, imagticas,referenciais, ideolgicas, etc, que o compositor, o executante e o ouvinte vinculam msica, e delas que tratarei neste artigo. Mesmo reconhecendo de bom grado que sua presena e suanatureza variam segundo as pocas e as culturas, parece-me importante sublinhar o fato deque elas e a msica so consubstanciais eu inclusive proponho que as consideremos comosendo um parmetro imanente da msica, de importncia igual altura, durao, ao timbre,etc. (cf. NATTIEZ, 2002): no existe pea ou obra musical que no se oferea percepo semum cortejo de remisses extrnsecas, de remisses ao mundo. Ignor-las levaria a perder umadas dimenses semiolgicas essenciais do fato musical total e eu proponho, numa primeiratentativa de definio, que a expresso de semntica musical seja reservada ao estudodessa dimenso atravs da qual o processo semitico musical remete, no a outras estruturasmusicais, mas vivncia dos seres humanos e sua experincia do mundo; donde a expresso remisses extrnsecas que acabo de empregar.

    Esta posio no emite um juzo a priori da explicao dada pelos musiclogos para ofuncionamento das remisses extrnsecas. Pode-se considerar numa primeira posio queelas so imanentes msica (isto , que so uma propriedade da msica em si, da mesmamaneira que a idia de felicidade como significado vem imediatamente acompanhada, paraum locutor lusfono, pelo significante felicidade ). a posio defendida por aqueles queLeonard MEYER denomina expressionistas absolutistas , categoria em que ele prprio seposiciona (1956, p.3). Este enfoque considera que as significaes expressivas e emotivasnascem em resposta msica, e existem sem referncia ao mundo extramusical (grifos meus)dos conceitos, das aes e dos estados emotivos humanos (ib.), isto , que elas so veiculadaspelo prprio significante musical. Pode-se tambm considerar segunda posio que essasremisses extrnsecas existem unicamente em funo de uma referncia externa msica. a posio dos expressionistas referencialistas (ib.). Demonstrarei, na seqncia deste artigo,que as duas posies devem efetivamente ser admitidas: existem significantes musicais quelevam imediatamente a associaes semnticas extrnsecas, e existem aqueles que s o fazemem funo de codificaes convencionais.

    Mas, ao mesmo tempo em que se reconhece a existncia de remisses extrnsecas, qualquerque seja a explicao de seu funcionamento, essencial ressaltar, de acordo com MichelIMBERTY (1975, p.92)., que se ns atribumos significaes a uma msica, as significaesmusicais no so nem comparveis nem redutveis s significaes verbais atravs das quaiso musicfilo, o autctone ou o pesquisador tentam traduzi-las:

  • 8NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    Nada mais contestvel do que o postulado segundo o qual os significantes musicais e ossignificantes verbais (configuraes musicais e grupos de adjetivos, por exemplo) seriam ossignificantes equivalentes de um mesmo significado () O sentido, quando explicitado pelaspalavras, perde-se nas significaes verbais, demasiado precisas e literrias, que acabam portra-lo. Ao tentar dizer o que significa a msica que ouviram, os sujeitos acrescentam ao seusentido significaes conceitualizadas e referenciadas que no existem na linguagem verbal.Essas significaes levam a crer que possvel fornecer um equivalente no-verbal da formamusical e que seu sentido conceitualizvel. () A msica s significa a posteriori , isto ,somente aps uma tentativa de explicitao e de conceitualizao. Antes disto, ela no significa,ela sugere, pois ela cria as foras imagticas que provocam e norteiam as orientaes verbais.Em outras palavras, direes semnticas, na forma de impresses vagas e flutuantes, surgemna conscincia do sujeito, que as cristaliza, atravs das palavras, em significaes precisas.

    A metalinguagem musical em si uma forma simblica, portanto uma construo que tem suasprprias regras de funcionamento, diferentes daquelas da msica de que trata. O que leva acrer que a verdadeira semntica musical (as remisses extrnsecas cujo contedo est inscritode maneira imanente na matria musical, assim como o significado de uma palavra est inscritono significante) seria uma categoria pr-verbal, como props MOLINO no Congresso supracitado,ao fazer referncia Rede Consciente Potencial (RCP) dos psiclogos, isto , segundo adefinio dada por Jean Delacour numa conferncia indita, um conjunto de representaesno conscientes atualmente, mas que podem vir a s-lo . Mas como apreender este conjunto?Como explicitar seu contedo?

    Podemos, numa primeira etapa, conforme a posio e a prtica de MEYER em Emotion andMeaning in Music, examinar e analisar aqueles aspectos da significao resultantes dacompreenso e da resposta s relaes inerentes ao processo musical, em vez de faz-lo emfuno das relaes entre as organizaes musicais e o mundo extramusical dos conceitos,das aes, dos caracteres e das associaes. (ib.). Trata-se, ento, de descrever os aspectosformais da msica enquanto portadores de expectativas, de implicaes, de resolues, derealizaes interpretadas emocionalmente. Ao descrever o jogo formal das relaes de analogia(conformant relationships) ou a alternncia das tenses e relaxamentos em ao numa pea,MEYER pratica, alm da descrio das estruturas em questo, aquilo que chamo de estesiaindutiva (NATTIEZ, 1987, p.178). Segundo sua teoria, as significaes musicais imanentes matria musical nascem da confirmao, da consolidao ou da decepo das expectativasdo ouvinte. Mas notamos que as reaes do ouvinte so imaginadas por MEYER unicamentea partir da observao das organizaes musicais, e se baseiam em suas competncias tonaispessoais. Ainda que essas significaes estejam inscritas no significante musical, o ouvintedeve passar pela mediao da linguagem verbal para reconhecer seu efeito em si prprio eatribuir sua origem s estruturas musicais que descreve.

    A posio de MEYER e a existncia de significaes inscritas no significante musical parecemser corroboradas pelas mais recentes observaes da psicologia:

    Um ouvinte pode reconhecer ou identificar a emoo que [as estruturas musicais] representam,sem necessariamente senti-la. O reconhecimento icnico conduz a uma conseqncia cognitivainevitvel, do gnero: Esta uma msica feliz. Isto pode levar a outro contedo cognitivo:Esta msica faz com que eu me sinta feliz, porm no necessrio alcanar este ltimoestgio. Isto depender mais de fatores extrnsecos do ouvinte que de elementos situados namsica (SLOBODA, 2001, p. 545).

  • 9NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    Esta observao no vale apenas para os afetos que so o objeto das observaes deSLOBODA neste artigo, mas para todas as formas de associaes semnticas com a msica.Mas a proposta deste tem outras conseqncias. Ao estabelecer uma distino entre umcontedo imanente msica e as associaes efetuadas pelo ouvinte, ele nos obriga a indagarse as tradues verbais da semantizao da msica obtidas junto aos ouvintes revelam ocontedo semntico imanente da msica, experimentado num estgio pr-verbal, ou se elasfornecem uma distoro deste contedo, colorida pelas idiossincrasias dos ouvintes3 .

    Se considerarmos, tal como fao no atual estgio de minhas reflexes e de meus conhecimentos,que para reconhecer ou identificar uma emoo veiculada de maneira imanente pela msica ou qualquer outro tipo de significado, deve ocorrer uma verbalizao, ainda que internamente,para termos conscincia dessa emoo, eu concedo, pelo menos provisoriamente, um certocrdito a esse desvio pela metalinguagem lingstica, sem perder de vista as dificuldades queminha posio acarreta.

    A linguagem verbal (ou natural), com efeito, tanto uma oportunidade quanto uma dificuldadepara a semntica musical: graas a ela, no estgio atual dos conhecimentos, que podemostentar nomear as significaes, as remisses e as emoes que associamos espontaneamente escuta de uma msica, embora saibamos, como dissemos acima, que os significados dametalinguagem graas aos quais semantizamos a msica, no so significaes musicais.Como ressaltava HJELMSLEV (1971), a linguagem natural o nico sistema semiolgico capazde relatar todos os outros. Por esta razo, e conforme propus no passado

    4 (1975, p.189), eu

    reservarei, numa segunda abordagem, o termo de semntica musical enquanto disciplina(e no mais enquanto objeto da investigao), quela parte do programa de (etno)musicologiaque trata do parmetro semntico, recorrendo e assumindo as conseqncias mediaoda linguagem verbal : verbalizaes ou denominaes amplamente disseminadas na cultura.Isto conduz, evidentemente, a utilizar o termo a propsito de pesquisas que no se encontramnecessariamente no campo da semntica.

    ltimo ponto antes de abordar a semntica musical na etnomusicologia propriamente dita.Quais so, do ponto de vista metodolgico, as grandes famlias de atividades (etno)musicolgicasque se dedicam investigao semntica? Distingo quatro :

    a) A reconstituio musicolgica das significaes, j antiga : a tarefa que tentadeterminar, acerca da msica vocal notadamente, (refiro-me aos trabalhos de Pirro,Schweitzer e Chailley sobre Bach, de Noske sobre Mozart e Verdi, aos inmeroscatlogos de leitmotiven de Wagner) mas tambm da msica instrumental (Agawu eo estilo clssico), o contedo referencial da msica, geralmente atravs da

    3 Agradeo a Jean MOLINO por ter chamado minha ateno para a posio de SLOBODA e suas conseqncias,em relao aos numerosos problemas colocados pela investigao do pr-verbal, (ou do proto-semntico)cuja existncia ele defendeu na exposio j citada.

    4 Se examinarmos as pesquisas que se auto-denominam semnticas , constatamos que elas se referemqueles interpretantes que correspondem a uma significao conceitualizada e verbalizada da linguagemnatural.

  • 10

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    5 Por razes epistemolgicas que no posso desenvolver aqui, considero que o paradigma lvi-straussiano uma hermenutica.

    * N.T.- Aqui e no restante do texto, entenda-se por msica erudita, aquela que baseada em teorias sofisticadas,em oposio msica popular.

    comparao entre o texto musical e o texto lingstico musicado, ou dos tratados.Pensamos no tratado de Schubart sobre o ethos das tonalidades. O mesmo ocorre,em musicologia, acerca das culturas em que existem teorizaes semnticasexplcitas dos ritmos, dos ragas e dos maqams.

    b) A investigao hermenutica das significaes: como todas as prticas exegticas, ashermenuticas musicais tentam interpretar e aprofundar as redes de significaesassociadas a uma msica, em funo de um horizonte geralmente filosfico, social,ideolgico (psicanlise, neomarxismo, estruturalismo lvi-straussiano5 , feminismo,busca identitria). Aqui, as significaes so construdas pelo pesquisador a partir deseu quadro exegtico de referncia. Ele considera, explicita ou implicitamente, que oresultado da exegese das prticas e das obras mais verdadeiro do que o consideramseus criadores ou seus atores. A hermenutica busca o Segredo; ela permite aceder auma verdade profunda e oculta. Se admitirmos que o estudo das msicas popularespertence etnomusicologia, ento os estudos de Philip TAGG (1979, 1991; TAGG eCLARIDA, 2003) so um exemplo eloqente destas duas primeiras orientaes : oautor estabelece famlias de musemas a unidade de base da expresso musical (TAGG, 1979, p.108) baseado numa vasta cultura comparativa ( que inclui a msicaocidental dita erudita* ) e interpreta suas significaes ideolgicas e sociais dentro deuma perspectiva neo-marxista. Quando BLACKING (1973) interpreta a significaosocial da dana nacional do povo Venda de acordo com uma grade que partilha damesma influncia, ele tambm pratica a hermenutica.

    c) A abordagem experimental: desenvolvida pelos psiclogos experimentalistas (hojechamados de cognitivistas), ela incita algumas cobaias a verbalizar osinterpretantes que elas associam a um fragmento de uma pea, conforme um protocoloto explcito e controlado quanto possvel. O pesquisador agrupa em seguida asrespostas por afinidade e as trata estatisticamente, o que pode lev-lo a estabelecerum mapa semntico do estilo (IMBERTY, 1979). Nada impede que o resultadodesses estudos seja objeto de uma investigao hermenutica, como fez por sinalMichel IMBERTY (1981), ao convocar a psicanlise no segundo volume de sua obraSmantique Psychologique de la Musique.

    d) A pesquisa de campo: se por um lado, o musiclogo que estuda as msicas ocidentaisdo passado s pode contar com as partituras e os testemunhos legados pela histria,se o psiclogo pode ter acesso s verbalizaes de sujeitos no decorrer daexperincia, o etnomusiclogo, por sua vez, quando no decide substituir por suasinterpretaes pessoais o depoimento dos informantes, tem a possibilidade de

  • 11

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    investigar diretamente junto a eles. Foi esta perspectiva que propuseram CharlesBOILS (1969) e seus discpulos, principalmente Monique DESROCHES (1996). Asassociaes semnticas obtidas no campo so postas em relao com o materialmusical, segundo um mtodo que combina aquilo que os semanticistas da linguagemnatural chamam de onomasiologia, com a semasiologia, e do qual falarei mais adiante.Nada, claro, impede que o pesquisador interprete estes resultados, e neste casoreencontramos a perspectiva hermenutica. Foi o que fez Monique DESROCHESao estabelecer uma homologia estrutural entre as associaes com as divindadesde figuras rtmicas especficas e as categorias do vegetariano e do carnvoro presentesna cultura tmil.

    Depois de ter proposto um panorama dos fenmenos semnticos com que se depara oetnomusiclogo, convm analisar as famlias de mtodos que acabei de referir, para respondera duas perguntas: Quais so os aspectos das msicas considerados como significantes dasassociaes verbais? Como explicar a presena do fenmeno semntico nas msicas estudadaspela etnomusicologia?

    2. Tentativa de caracterizao dos fenmenos semnticos na etnomusicologia.Voltemos ao objeto da semntica musical na etnomusicologia. Independentemente dos mtodosutilizados, quais so os tipos de associaes, de verbalizaes e de denominaes que elaencontra no decorrer de suas investigaes?

    Houve uma poca em que o passatempo favorito dos semiologistas da msica consistia emindagar quais eram as categorias de signos encontrados na msica. Esta abordagem, portentar encerrar os fenmenos musicais em caixinhas estanques, apresentava srias dificuldades,e lamentvel que no se tenha levado em conta a advertncia de PIERCE, que, a respeito desua famosa tricotomia, teve o cuidado, segundo Jakobson, de evidenciar o papeldesempenhado pelo acmulo de trs funes [caractersticas do cone, do indcio e do smbolo],com diferenas de graduao em cada um dos trs tipos de signo . Segundo ele, os signosmais perfeitos so aqueles em que o carter icnico, o carter indicativo e o carter simblicoesto amalgamados em propores to idnticas quanto possvel (JAKOBSON, 1966, p.27).Por isto, a fim de compreender melhor os diferentes tipos de significaes musicais que oetnomusiclogo encontra em suas pesquisas, eu no vou me basear numa classificao dossignos, mas nos traos que serviram para caracterizar as diferentes espcies de signos e quecom freqncia encontram-se misturados, com graus de predominncia variveis, nos signosmusicais. Utilizarei, para a definio desses traos, a bela taxonomia proposta pelo psiclogoJean PAULUS, que distinguia entre sinais, indcios e sintomas, por um lado, e entre imagens,smbolos e signos, por outro (PAULUS, 1969, cap.I), porm sem adotar sua rigidez classificatria.Quatro traos, portanto:

    A utilizao de mtodos substitutivos da linguagem;

    A dimenso signaltica dos signos;

    Os aspectos simblicos, denotativos e conotativos;

    A remisso indiciria ao poltico-social e ao ideolgico.

  • 12

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    a) A utilizao de traos substitutivos da linguagem

    Na tipologia tripartite inspirada em NKETIA, que mencionei acima a respeito das remissesintrnsecas da msica, AGAWU (1995, p.91) define um tipo 1 de comunicao, o speech-mode . Ele designa, desta forma, a utilizao dos tambores como substituto da linguagemverbal nas sociedades em que possvel imitar musicalmente o contorno entonacional daslnguas tonais. Aqui, pode-se objetar que estamos saindo do domnio do estritamente musical,pois estamos diante daquilo que os semiologistas denominam um sistema substitutivo dalinguagem natural. Porm estaramos errados se considerssemos que a fronteira entre amsica e a no-msica passa, em culturas diferentes das nossas, pelos mesmos lugares quena msica ocidental.

    Na msica de tambores de uma dana de iniciao ao matrimnio, a dana Mbaga dos Bagandasda Uganda (NATTIEZ-NANNYONGA TAMUSUZA, 2003), um dos oito motivos em sua baseimita o contorno entonacional e rtmico da palavra baakisimba que significa : Eles plantaram[a bananeira] . difcil acreditar que, nas sociedades em que o tambor utilizado paracomunicar mensagens lingsticas, a insero destes motivos em um contexto de execuomusical e coreogrfica no se acompanhe, para os ouvintes, do contedo semntico que omesmo motivo veicula quando utilizado como meio de comunicao. O carter semiolgicodesse tipo de signos musicais pode ser precisado se sublinharmos que eles tm um aspectoicnico, pois imitam a estrutura entonacional e rtmica da palavra que os designa, sem falar darelao que o ritmo do motivo mantm com os gestos das danarinas, as quais, com seuscalcanhares, imitam a plantao da semente das bananeiras. Isto no significa que a execuodeste motivo no seja percebida como um jogo musical puro (cf. o que foi dito no princpiodas remisses intrnsecas), pois, apenas anunciado, ele objeto de variaes executadascom virtuosidade.

    b) A dimenso signaltica dos signos

    Mas este mesmo ritmo baakisimba tambm se insere no tipo 2 de NKETIA e AGAWU, o sinal modo (AGAWU, 1995, p. 91). Do ponto de vista semiolgico, entende-se por sinal uma ferramenta que anuncia um acontecimento futuro e desencadeia um comportamentocorrespondente (PAULUS, 1969, p.11), por exemplo, parar no sinal vermelho. Por sua vez,John BLACKING props que se distinguissem quatro tipos de comunicao musical (1995, p.38-46). Ainda que a expresso usada para designar o primeiro dentre eles proporcione umalcance mais amplo do que apenas os sinais

    6 , aquilo que ele denomina a induo de umestado fsico pela msica, me parece aparentar-se ao tipo 2 de NKETIA-AGAWU. O sinalpode funcionar independentemente de uma verbalizao7 , por sinal, isto lhe caracterstico.Mas muitas vezes esses sinais tm um nome, muito difundido e conhecido pelos msicos edanarinos, o que implica que eles denotem as figuras coreogrficas correspondentes e lhesassociem uma rede complexa de interpretantes que vai alm da denominao literal do sinal.

    6 Ele certamente incluiria o transe e a possesso de que falarei a seguir.7 A melhor prova disto o fato de um dos chefes dos tambores da dana Mbaga que encontrei, ser capaz de

    emitir sinais sem conhecer o som dos mesmos.

  • 13

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    Alm do mais, a funo sinaltica no a nica presente nos motivos que funcionamfundamentalmente como sinais.

    Na dana Mbaga, por exemplo, o chefe dos tambores, que, em certos momentos da dana,decide a ordem do encadeamento sinttico das seqncias coreogrficas. Cada um dos oitomotivos da dana corresponde a um tema e a uma seqncia coreogrfica bem determinada,designada pelo nome: Adotar uma disposio ldica , Comear a danar , Animado , Misturar-se 8 , etc. O chefe dos tambores utiliza, portanto, esse motivo para informar chefedas danarinas qual ser a prxima dana. Mas o motivo assume tambm associaes afetivase emotivas. Como o motivo baakisimba tambm o motivo de base dos cantos executadospara invocar os espritos, seria surpreendente que os freqentadores desses rituais (nem todosos Bagandas os freqentam nos dias de hoje) no fossem sensveis, semanticamente, suadimenso religiosa.

    c) Os aspectos simblicos denotativos e conotativos

    Convm ento prolongar a tipologia NKETIA-AGAWU e acrescentar, ao lado da funosignaltica desses motivos, uma dimenso simblica no sentido amplo, isto , a existncia deremisses a redes de interpretantes denotativos e conotativos prprios a uma cultura. O quecaracteriza os smbolos, segundo PAULUS, a comunidade de reaes afetivas que elesprovocam, comunidade esta que provm, quer do psiquismo inato, quer de hbitos culturais,quer, finalmente, de experincias e associaes individuais (PAULUS, 1969, p.14). AGAWUrefere-se implicitamente a essa dimenso semiolgica quando fala, a respeito do sinal modo ,de dimenses icnicas e simblicas da comunicao na dana (1995, p. 105). Se pareceimpossvel que os sinais no tenham, ao mesmo tempo, uma dimenso simblica e afetiva(pensemos, por exemplo, nos toques de clarim nos quartis; MOLINO, 1975, p. 45; com todosos sentimentos de orgulho patritico, de apelo coragem que denotam, ao mesmo tempo emque ordenam uma ao precisa), existem signos que no funcionam como sinais. Na msicado teatro kabuki no Japo, quando a melodia yuki acompanha a neve caindo no palco, elaevoca tambm (sobretudo?) a atmosfera que a envolve. Aqui, o simbolismo ao mesmotempo denotativo (evocao da neve) e conotativo-afetivo (evocao da brandura e da calmaassociadas a ela). No teatro chins, a msica desempenha o mesmo papel. Assim, em umaobra intitulada O Adeus do Rei, estudada por Yung BELL (2003), as percusses desempenhamnove motivos bem determinados. Se alguns deles tm a funo daquilo que TAGG (1992, p.377) denomina um episodic marker , como preldio ao canto de um personagem, ou paramarcar o final de uma cena, outros acompanham os deslocamentos do rei ou alguns de seusgestos; outros ainda ressaltam a oposio entre a pobreza e a riqueza, o estatuto social inferiorou superior do personagem, a oposio entre os momentos dramticos e lricos da obra. Naparte vocal da mesma obra, a melodia Nanbangzi utilizada para evocar a calma psicolgicado personagem Yuji; a melodia Gai Shiah Song , ao contrrio, sublinha a intensa emooque se apodera do rei, num momento dramtico especfico. Neste contexto teatral, o carter damsica funciona da mesma forma que a msica de filme: pensemos no papel desempenhadopela msica de Bernard HERMANN na famosa cena do chuveiro do filme de Hitchcock, Psicose.

    8 Aluso ao coito no contexto desta dana de iniciao ao matrimnio.

  • 14

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    Em relao ao que mostrado no palco (ou no cinema), a msica ressalta e amplifica certosmomentos da ao. Na msica vocal, a msica refora o poder afetivo das palavras, e BLACKINGfez deste fenmeno um dos quatros pontos de sua tipologia. Um belssimo exemplo distoencontra-se na explicao de textos , frase por frase, de um canto do povo Ewe do Norte,proposta por AGAWU (1995, p.83-89 ; cf. tambm AGAWU, 2003).

    Detenhamo-nos um instante na dimenso simblica denotativa dos signos (a no ser confundida,aqui, com a funo sinaltica). Nas msicas religiosas, notadamente no contexto das sociedadesanimistas, a msica usada para tornar presentes ou influenciar os animais ou os elementosda natureza. Esta parecia ser, na poca xamanista, a funo dos motivos utilizados nos jeux degorge* inutes (katajjaq) : era preciso conciliar o esprito dos animais para ter uma boa caa(cf. NATTIEZ, 1999). Seu funcionamento no divergia daquele dos cantos de feitiaria do Berrifrancs referidos por George Sand em La mare au diable e dos quais Brailoiu publicou umagravao emocionante em sua Coleo Universal de Msica Popular Gravada. Se algunsmotivos so fundamentalmente imitativos (a imitao do grito dos gansos ou das focas noskatajjait), raramente a expresso musical daquilo que imitado no comporta uma dimensoarbitrria ou convencional

    9 . O que importa, que para o autctone, existe uma associaocom o ser sobrenatural.

    Aparentemente, a etnomusicologia no atribuiu dimenso denotativa dos signos musicais,principalmente nos contextos rituais, toda a importncia que ela merece. evidente que, se oetnomusiclogo est persuadido de que a msica ontologicamente um meio a-semntico (nosentido que adotamos aqui), ele no investigar esta dimenso. No entanto, as provas de suaexistncia, em sociedades diversas e sem contatos entre si, provam que nos encontramosaqui em presena de uma dimenso semntica fundamental da msica.

    Independentemente do que se possa pensar do mtodo utilizado por Charles L. BOILS, (falareidisso na terceira parte deste artigo), ele certamente tem o mrito, na etnomusicologia, de haverdemonstrado, em sua tese (BOILS, 1969) e em alguns artigos acessveis em francs (BOILS,1973a, 1973b), que figuras musicais intervaladas remetiam, para os Otomis do Mxico, adivindades (Mi-D-R-D designa o Deus Sol ; Mi-F-R-Mi, o enviado do Deus Sol) ou osapetrechos do ritual (Mi-Sol-R-Si-D para a gua; F-R-Mi-D para o altar; Mi-Sol-D para aoferenda, etc.). Na mesma cultura, seqncias rtmicas distintas evocam a ao de ir a algumlugar, a chegada nesse lugar, a solicitao de um favor, a doao de uma oferenda, etc. Nessescasos, elas no apenas denotam, mas tambm se enquadram na funo signaltica de quefalam NKETIA e AGAWU, pois fazem referncia a determinadas aes a serem realizadas duranteo ritual. Ainda no Mxico, a anlise da cultura musical dos Tepehuas o leva a associar um intervaloespecfico s noes de lugar, de presena, mas tambm de consolo, de saudao, e a

    * N.T. - Jeux de Gorge, literalmente jogos de garganta, um canto gutural prprio aos inutes, geralmentepraticado por duas mulheres sentadas em frente uma da outra, muito prximas, e que utilizam mltiplas tcnicasvocais combinadas.

    9 Da mesma maneira que as onomatopias nas lnguas naturais: elas tm efetivamente uma relao sonoracom o grito imitado, mas diferem de uma lngua para outra.

  • 15

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    reduplicao dos intervalos, ao de dar, de vir, de trazer, de pedir perdo, etc. Vemos queaqui, a dimenso afetiva mescla-se funo denotativa e signaltica do simbolismo em questo.

    Na poca em que esses trabalhos foram publicados, vrios etnomusiclogos, provavelmentevtimas do antigo pressuposto de HANSLICK (1989), permaneceram cticos. Convm dizerque, na gramtica gerativa da msica tepehua proposta por BOILS, ele chegou ao ponto demostrar o equivalente de frases, as descries de aes que desempenham um papel dejuno entre os smbolos que remetem a entidades religiosas. Ora, uma etngrafa com aexperincia e a ponderao de Genevive CALAME-GRIAULE, trouxe, seno a prova10 , pelomenos o testemunho de que os Dogons traduzem todas as frmulas musicais (rtmicas oumeldicas) em frmulas da linguagem falada (1965, p.530) que lhes correspondem. Asucesso dos ritmos de tambor tocados nos funerais, sempre na mesma ordem, traduzidaem frmulas que expressam as diferentes reaes do grupo social diante da morte. (ib.,p.535) : Ritmo alogu tevese : reunio da famlia para o funeral. Ritmo tolo : os filhos do pai .Ritmo n : vieram . (ib.) A sucesso de dois outros ritmos significa J queaconteceu , vamos casa do morto [para celebrar o funeral], etc. Notemos que essas frmulas,para os Dogons, no so o equivalente, no tambor, das palavras correspondentes da lngua,mas smbolos convencionais. No estamos, portanto, diante de frases que seriam substitutosda linguagem natural, mas sim de produes musicais s quais associa-se verbalmente umacadeia de significaes sintaticamente coordenadas. Estamos certamente diante de um modode funcionamento anlogo ao dos Tepehuas.

    Outros elementos podem corroborar as idias de BOILS. Os fenmenos denotativos no serestringem aos povos Tepehua e Otomi. Numa obra destinada a percussionistas e consagrada msica da Santera, uma religio cubana de origem iorub, AMIRA e CORNELIUS (1991)demonstraram que ritmos especficos designam vinte e duas divindades diferentes. Essesritmos, neste caso, so motivados pela imitao dos contornos da palavra iorub (lngua tonal),que os designa. Tambm encontramos o mesmo fenmeno na populao Tmil da Martinica,onde Monique DESROCHES (1995) conseguiu associar famlias de ritmos bem determinadasa duas divindades, Malimen ou Maldvilin.

    Para sustentar a convico de BOILS, podemos reportar-nos a depoimentos histricos. Naobra de Jules COMBARIEU, La musique et la magie (1909), cuja antiguidade no deve levara subestimar a riqueza dos depoimentos, mesmo de segunda mo, que nos traz, mas condio de conservar um olhar crtico, encontramos inmeras informaes relativas capacidade dos fenmenos musicais de denotar entidades religiosas. Dentre vrios exemplos,citemos o fato que, segundo os Antigos, os autores da Escola de Pitgoras consideravamcada uma das sete cordas o smbolo de um dos planetas, ele mesmo divinizado (R para a

    10 Lamenta-se que, por uma questo de honestidade profissional, CALAME-GRIAULE, no sendo musicloga,no tenha publicado as transcries das seqncias rtmicas das quais fornece o nome e o equivalente lingstico.Isto teria possibilitado ao etnomusiclogo sensvel aos problemas semiolgicos determinar se a relao entreesses smbolos musicais e as significaes atribudas pelos autctones mais ou menos arbitrria ou mais oumenos motivada.

  • 16

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    lua, D para Mercrio, Si para Vnus, L para o sol, Sol para Marte, F para Jpiter e Mipara Saturno). Plnio, em sua Histria Natural (II, 20, paragr. 84) relacionava a escala denove sons a uma escala celeste mais vasta (COMBARIEU,1909, p. 195-196). O autor citafenmenos anlogos entre os chineses e os hindus. Segundo Se-ma-Tsien, a nota kong(F) representa o prncipe; a nota chang (Sol) representa os ministros ; a nota kio (L)representa o povo ; a nota tche (D) representa os negcios ; a nota yu (R) representa osobjetos. De fato, atravs de comunicao pessoal oportunamente feita por meu colegaFranois Picard, professor de etnomusicologia da Sorbonne, sabemos que essas informaes,creditadas a Se-Ma-Tsien, o grande historiador da China, criador de Anais histricos, umaespcie de Herdoto daquele pas, so atribuveis ao autor, annimo, do Mmorial de lamusique (cf. COUVREUR, 1950, p. 48). Mas, de qualquer maneira interessante poderconstatar que elas condizem com algumas das observaes contemporneas de Bell YUNGcitadas acima. Segundo o Mahabharata, nota sa (L) corresponde Agni; ri (Si), Prajapati; ga (D), Sonna; ma (R), Vayu; pa (Mi), Indra; dha (F), Brhaspati; ni (Sol), Varuna.E como as denotaes nunca esto isentas de conotaes emotivas e afetivas, conformeindiquei acima, o mesmo tratado hindu associa a essas alturas e divindade correspondenteas seguintes caractersticas respectivamente (para as cinco primeiras): estrondo, cor escura,cor clara, langor, vigor (COMBARIEU, 1909, p. 201-203). Vm em seguida os exemplosemprestados do Naradasiksa e dos rabes. O autor tira dessas observaes a seguinteconseqncia, perfeitamente admissvel luz da antropologia contempornea: Como cadanota da msica assimilvel a uma divindade, e que cada divindade tem um poder especial,resulta que modificar a gama consiste em modificar, ao mesmo tempo, o carter da intervenodivina nos atos aos quais o canto est associado (ib., p.204). Especialistas das msicasdos ndios da Amrica do Norte, no sculo XX (McALLESTER, HERZOG), sublinharam que,nas execues de cantos rituais, os erros eram punidos e as inovaes desencorajadas,porque podiam comprometer a validade do ritual (NETTL, 1983, p. 34).

    As observaes de COMBARIEU devem, certamente, ser reavaliadas, ou mesmo corrigidas, luz dos conhecimentos da etnomusicologia contempornea, mas constatamos que,fundamentalmente, o mecanismo de associao ao universo religioso que ele descreveu perfeitamente compatvel com aquilo que os especialistas contemporneos relatam da msicados hindus (POWERS e WIDDESS, 2001, p. 179). No sculo XIII, os ragas, isto , os modos,eram associados a uma divindade dominante, e mais tarde, no sculo XIV, a uma divindademasculina ou feminina. A partir do sculo XVI, a associao passou a se fazer com personagenserticos de ambos os sexos, na seqncia de uma secularizao da prtica musical. Algunspoderes mgicos, no entanto, ainda so atribudos aos ragas, como conseqncia provvel desua associao anterior a divindades. O raga Dapak presumidamente produz o fogo, o ragaMalhar, a chuva. Alguns ragas teriam propriedades teraputicas fisiolgicas e psicolgicas.Outros corresponderiam a divises do dia e da noite ou a uma das seis estaes reconhecidaspelos hindus: essas associaes esto provavelmente relacionadas com os ciclos de rituaisdirios e sazonais. Alm disso, essas denotaes religiosas parecem acompanhar-se deconotaes afetivas e emotivas. A palavra raga, em snscrito, significa em primeiro lugar, emoo , afeto , paixo (POWERS, 2001, p.837), e deriva da raiz snscrita raj quesignifica estar colorido, avermelhado , e tambm estar afetado, emocionado, encantado,deleitado (POWERS, WIDDESS, 2001, p.179).

  • 17

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    O carter denotativo dessas msicas rituais adquire uma dimenso convincente, na perspectivaetnogrfica, se, ao alargarmos as descries notveis de Hugo ZEMP (1971a, p. 168; 1971b),propusermos que esses signos musicais funcionem como mscaras. Os povos Dan consideramque, ao lado das mscaras mudas, e segundo a proposta dos prprios autctones, existemoutras que so exclusivamente sonoras, isto , desprovidas de disfarces visuais . Os Dansas chamam de mscaras nuas : so mscaras sonoras que s existem atravs de suavoz . Seria empolgante, em relao a este aspecto, verificar se esse fenmeno musical particularmente difundido nas sociedades onde no h mscaras visveis.

    Os simbolismos musicais denotativos e as mscaras sonoras so utilizados, como vemos,com um mesmo objetivo semiolgico fundamental: atravs deles, desenvolvemos em relaoaos objetos in absentia uma atitude caracterstica, que denominamos pensar em ou reportar-se a aquilo que no se encontra diante de nossos olhos. (PAULUS, 1969, p.10) Como jindicamos anteriormente, essa dimenso denotativa se acompanha de um cortejo deinterpretantes afetivos e emotivos dos quais no se pode separar (a segurana, o medo, amaldade, etc.). Isto fica claro na descrio que ZEMP faz das mscaras nuas : O guglou uma mscara poderosa que se destina principalmente s circunstncias graves: morte deum zomi (mgico e/ou caador de feiticeiros), casos de feitiaria, fome ou qualquer outradesgraa que atinja a comunidade. A mscara gbinngu, por sua vez, aparece num contextode divertimentos (ZEMP, 1971b).

    A capacidade da msica de denotar uma divindade, parece, a meu ver, explicarsemiologicamente o fenmeno do transe. O indivduo possudo vivencia como sendo real apresena da divindade denotada pela msica. Segundo ROUGET, em alguns casos, os iniciados entram em transe ao chamado do canto ou do ritmo caracterstico do deus que deve habit-los (1980, p.108). O tema musical, que desempenha um papel central na possesso (),pode ser definido como um signo cujo significado o deus ao qual ele se refere, e cujo significantepossui trs facetas: lingstica, musical e coreogrfica (1980, p.152-153), o que condiz comminhas observaes anteriores. Ou ainda: A escala meldica, portanto, no escolhidadevido s possibilidades meldicas ou aos recursos expressivos particulares que pode oferecer,mas enquanto signo da identidade do esprito com o qual se relaciona a melodia (ib., p.143).

    Aqui, no estou certo de poder compartilhar do ponto de vista de ROUGET, que parece terreticncias em admitir que a msica que desencadeia o transe ou a possesso tenha umcarter expressivo especfico. Esta hesitao, manifesta vrias vezes na obra, provmcertamente do fato que, para ROUGET, o transe resulta exclusivamente de um condicionamentocultural. no nvel da cultura, e no da natureza, que convm situar as relaes do ritmo edo transe (ib., p.139), ou ainda: Melodia ou tema (), trata-se de uma mensagem musicalque um signo e que tem um impacto psicolgico, e no fisiolgico, sobre o sujeito que seprepara para entrar em transe (ib., p.262). Esta tese, que se insere naquilo que MEYERdenomina expressionismo referencial , no aceita por todos (cf. BECKER, 2003). Consideroque ROUGET confundiu duas dimenses semiolgicas dos signos em questo: o convencionale o arbitrrio. Embora a associao de um significante musical com uma divindade comosignificado resulte de uma conveno cultural, esta conveno pode ter sua motivao emdeterminadas propriedades imanentes do signo. Quando ROUGET escreve: Assim, os temas

  • 18

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    11 Sublinhado pelo autor.

    rtmicos11 dos diferentes orixs do candombl so qualificados por G. COSSARD (1967, p.177)de dramtico , cheio de vivacidade, agressivo , fogoso - estes qualificativoscorrespondem ao carter da divindade em questo (ROUGET, 1980, p.150), mas ser queisto no significa tambm que as qualidades atribudas divindade provm do carter dostemas rtmicos? Sem dvida, a possesso s pode ser compreendida se estiver situada noconjunto das representaes do mundo existentes na sociedade em questo (ib., p.181).Porm, isto no nada compatvel com o fato dos significantes musicais, portadores tanto deuma dimenso denotativa (invocar o esprito) e afetivo-emotiva (o dramtico, o agressivo, ofogoso) construda na cultura, agirem como sinais, ou seja, desencadearem fisiologicamente oestado de transe ou de possesso. O fato da relao entre sinal e transe estar assente numaconveno cultural assimilada, no significa que qualquer figura musical possa provocar esseestado. Afinal, nunca se viu, que eu saiba, uma cantiga de ninar induzir o transe ou a possesso,e por isto fundamental considerar, no estudo do funcionamento semntico da msica, adimenso expressionista absolutista identificada por MEYER, ou seja, a presena imanente,no significante musical, de um certo carter emotivo ou afetivo anterior a toda codificaocultural, mas que ao mesmo tempo a torna possvel e a explica parcialmente. As capacidadessimblicas de um mesmo aspecto formal da msica podem ser objeto de associaes e decondutas muito diferentes, consoante as pessoas e as culturas, mas dentro de certos limites.

    Se os smbolos que tm uma dimenso claramente denotativa no deixam de ter uma fragrnciaconotativa, existem, ao contrrio, fenmenos semnticos com carter emotivo e afetivo queno possuem essa dimenso denotativa. Os depoimentos sobre o ethos dos modos, das notas,dos ritmos nas culturas antigas e tradicionais abundam, e no so recentes. COMBARIEUconsagra uma longa seo ao ethos dos ritmos segundo os tericos antigos (COMBARIEU,1909, p.234-248). Recordemos as observaes de Plato sobre o ethos dos modos em ARepblica ( III, 398) e As Leis (800C-802B) : o drico e o hipodrico so graves e solenes, oldio, com o hipoldio e o mixoldio so voluptuosos, etc. A respeito dos Dogons, CALAME-GRIAULE considera a msica alegre um dos quatro tipos de palavras do deus Nomo,ao lado de vinte e quatro outros tipos de palavras (CALAME-GRIAULE, 1965, p. 174). SegundoCARON e SAFVATE (1966, p.59-98), na msica persa, o modo(dastgah)chamado shur, expressaa ternura, o amor, a piedade, ele induz a tristeza mas tambm o consolo. O modo Segahrepresenta a tristeza, a aflio, o abandono de qualquer esperana, porm o modo Chahargahtransmite uma expresso de fora, enquanto que o modo Mahour conota a dignidade e amajestade. O semntico afetivo existe nas msicas estudadas pela etnomusicologia,independentemente de uma dimenso denotativa. Eis porque julgo importante separar os doisaspectos, embora seja impossvel eliminar o denotativo das possibilidades semnticas da msicae, como vimos, o afetivo-emotivo lhes seja freqentemente associado.

    nessa mesma categoria dos smbolos afetivos e emotivos que classifico um fenmeno queatualmente desperta um grande interesse por parte da etnomusicologia: as representaesidentitrias. Determinados gneros, estilos ou timbres caractersticos (sem falar dosinstrumentos) denotam, conforme os casos, um grupo etrio ou um grupo social, umacomunidade religiosa, uma etnia, uma nao, um pas (cf. SORCE KELLER, 2002), mas nesses

  • 19

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    processos semiolgicos, o componente emotivo intenso e existe h muito nos textos demusicologia. Citemos o depoimento particularmente radical de Jean-Jacques ROUSSEAU, noartigo Musique de seu Dictionnaire de musique (1767), acerca do rans-des-vaches helvtico,essa melodia to cara [aos soldados] suos que sua execuo nas tropas foi proibida sobpena de morte, porque fazia com que aqueles que a ouviam desandassem em prantos,desertassem ou morressem, de tal forma suscitava neles o ardente desejo de rever seu pas. (1995, p.924) Nesta descrio, os signos musicais funcionam tambm como sinais, pois podemprovocar lgrimas e deslocamentos. As associaes identitrias que a etnomusicologiacontempornea estuda, talvez no provoquem reaes to violentas, mas funcionam segundoo mesmo modelo: os traos ou os gneros musicais remetem a um universo simblico complexoe provocam reaes emotivas que tanto podem ser sentidas quanto traduzidas em atos. Sealguns smbolos denotativos funcionam como mscaras, os smbolos identitrios funcionamcomo bandeiras.

    Com o desenvolvimento da mdia e a expanso planetria das informaes, os autctones noso mais os nicos sensveis a essas associaes identitrias, uma vez que elas so codificadas,ou at estereotipadas. Certamente, o estrangeiro cultura em questo, no tem a mesmaexperincia emocional que o autctone, mas possivelmente saber a que universo remetemas msicas portadoras dessas associaes, freqentemente codificadas nas msicas para ocinema e a televiso. O tango o smbolo da argentinidade por excelncia; o acordeo-museta (tocado numa certa poca nos cafs populares das margens do rio Sena) conota um francesismo com um charme um tanto quanto dmod, e o flamenco remete ao mundoandaluz e aos gitanos.

    Escrevi argentinidade e francesismo entre aspas, pois convm evitar a armadilha daspalavras. As pesquisas sobre a busca identitria nada mais fazem do que resgatar o interessede uma musicologia um pouco antiga que pensava encontrar em estilos e gneros especficos a alma do povo em questo. Na verdade, argentinidade e francesismo so palavrasto idealistas quanto essa antiga expresso. Remeter os elementos de um gnero ou de umestilo a uma entidade abstrata com a qual o indivduo se identifica, no significa detectar umaespcie de essncia platnica e imutvel daquilo que seria uma nao ou um pas, mas pr emmarcha uma rede infinita de representaes coletivas mais ou menos compartilhadas,fundamentadas em experincias pessoais de acontecimentos, de prticas ou de obrasconhecidas por um grupo mais ou menos vasto, onde se misturam crenas, convicesideolgicas, e algumas realidades tambm. E, como vemos, justamente porque essasrepresentaes nada mais so do que um amlgama complexo e movedio de interpretantes,que a afirmao identitria acerca de tal ou tal msica pertence semntica musical.

    d) A remisso indiciria ao poltico-social e ao ideolgico

    Ainda nos resta abordar um ltimo aspecto da semntica musical, que insiro na categoriasemiolgica do indcio: a remisso a significaes polticas, sociais ou ideolgicas. Para PAULUS(1969, p.11), o indcio um tipo de signo que indica a existncia de um fenmeno passado,presente ou futuro, real segundo o observador, mas que no imediatamente acessvel.Exemplos clssicos: a fumaa indcio de um incndio passado ou presente; o barmetro indcio do tempo futuro.

  • 20

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    Este o aspecto que mais interessa BLACKING em sua tipologia da comunicao musical.Segundo seu tipo 3, identitrio antes do tempo, ele considera que a msica pode ser signode uma situao social (1995, p.39). Donde o interesse central que ele manifestou pelotshikona, a dana nacional dos Vendas. Ele fez, a seu respeito, uma exegese social de inspiraoneo-marxista, considerando que os vnculos entre os cantos infantis mondicos e a dana queos utiliza polifonicamente exprimem as relaes sociais correspondentes . (1980, p.114).Porm, se abordei esse exemplo nesta seo, e no a respeito dos fenmenos identitrios, porque, atravs dos textos de BLACKING, percebe-se nitidamente que essa identificao noprovm dos autctones, mas do trabalho hermenutico do etnomusiclogo. Por isto, falareiaqui da dana tshikona como indcio, para o pesquisador, de uma situao social : No surpreendente, escreve BLACKING, que haja, entre a dana tshikona e as canes infantis,relaes musicais que duplicam12 suas relaes sociais. () tentador13 considerar a formamusical de base do tema e da variao como sendo a expresso de situaes sociais e deforas sociais, transformadas em funo das estruturas culturais e do estado da diviso dotrabalho na sociedade (ib., p.114-115).

    Segundo o quarto tipo de BLACKING, a msica pode exprimir idias acerca da sociedade edas relaes entre indivduos (ib., p.43) Para o etnomusiclogo, o fato do cantor da Confrariado Oratorio della Santa Croce em Castelsardo, na Sardenha, elevar um pouco a voz, oindcio de seu desejo de afirmar uma relao de poder e de superioridade em relao a seuscolegas. Eu testemunhei um fenmeno anlogo queles que interessaram LORTAT-JACOB,quando constatei que o chefe dos tambores da dana Mbga, que referi mais acima, esquivou-se intencionalmente de tocar um determinado motivo para impedir que uma danarina, comquem estava aborrecido, sobressasse numa coreografia especfica que lhe teria proporcionadoum imenso sucesso.

    Ao concluir essa tipologia, arrisco-me a propor um princpio geral que explica os fenmenos desemantizao que o etnomusiclogo pode encontrar na prtica ou na literatura, condio quereconhea a essa dimenso semntica a legitimidade e a possibilidade (semiolgica) de suaexistncia: O ser humano pode associar, em razo de uma analogia natural e motivada entre osignificante musical e o significado ao qual remete, pelo efeito quer de uma conveno, querde uma codificao sociocultural, ou ambos, um fenmeno musical qualquer (alturas, intervalos,esquemas rtmicos, escalas, acordes, motivos, frases musicais, melismas, instrumentos, etc.)com um fragmento qualquer de sua existncia no mundo (afetivo, psicolgico, social, religioso,metafsico, filosfico, etc.), em funo de suas necessidades (religiosas, alimentares, ecolgicas,econmicas, ldicas, afetivas, etc.) e segundo as capacidades simblicas prprias da msica.

    Se admitirmos a existncia dos fenmenos semnticos na msica, tais como os defini no contextoespecfico da etnomusicologia, convm examinar quais so os mtodos de que ela dispe e,ao mesmo tempo, fazer o inventrio dos elementos que devem ser considerados para relatar asemantizao da msica.

    12 Sublinhado pelo autor.13 Sublinhado pelo autor.

  • 21

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    3. Observaes crticas sobre os mtodos da semntica musical na etnomusicologia.Por que o ser humano, em cada cultura especfica, tem a possibilidade de acrescentar, a todasas espcies de manifestaes sonoras, associaes semnticas? Simplesmente porque,semiologicamente eu diria mesmo biologicamente , faz parte da natureza do homo symbolicusligar um objeto qualquer a um horizonte qualquer pelo intermdio de uma rede infinita deinterpretantes. So eles, quando investidos pelas verbalizaes e pelas denominaeslingsticas, que a semntica musical enquanto disciplina tem a possibilidade de tornar tangveis,embora, como salientei no incio, as significaes veiculadas por sua traduo lingstica nocoincidam necessariamente com as significaes portadas pelos significantes musicais graass suas propriedades imanentes. Mas essa metalinguagem verbal a nica ferramenta de quedispnhamos, at o momento, para alcanar essa dimenso do fato musical.

    Quatro instncias intervm na descrio dos fenmenos semnticos, isto , no estabelecimentodas ligaes entre a matria sonora e os interpretantes, ou, em outras palavras, entresignificantes e significados:

    - Primeiramente a descrio da matria sonora portadora dessas associaes, os significantes .

    - Em seguida, aquilo a que remetem os significantes, os significados , termo queutilizo por comodidade, pois prefiro usar, como o fiz vrias vezes neste artigo, interpretante , um termo mais dinmico proposto por Pierce. Os significados estorelacionados a uma msica, em funo de caractersticas sonoras especficas: umatarantela jamais conota a melancolia, assim como um tango nunca conota umaexaltao exuberante. Mas este no o nico fator.

    - A semantizao operada por seres humanos, por aqueles que reagem aos signosmusicais e verbalizam os interpretantes: os compositores, os intrpretes ouexecutantes, os ouvintes e os especialistas. O seu trabalho cognitivo pode ser descritoe explicado em funo de leis psicolgicas gerais, de suas reaes corporais efisiolgicas, da cultura a que pertencem (um contexto certamente privilegiado pelosetnomusiclogos, mas que no diminui a importncia dos dois primeiros)14 .

    - As ligaes entre significante e significado dependem ainda e o ltimo termo dasemantizao da msica do contexto, no sentido lato, em que ela aparece: o gnero,as circunstncias de execuo e de audio, e o contexto cultural e histrico.

    importante considerar separadamente cada uma dessas instncias, pois so elas que noslevaro a relativizar as impresses de simplicidade, e mesmo de rigidez, que o inventrio dostipos de semantizao proposto acima pode ter deixado. Com efeito, embora no exista msicadestituda de associaes semnticas no sentido em que as defini aqui (pois trata-se de umdado universal), as associaes semnticas da msica so muito mais instveis que os outrosparmetros que a constituem: pois a msica no a linguagem, pois a msica no umsistema de comunicao cujo objetivo seja utilizar os significantes para veicular enunciados

    14 impossvel, no mbito deste artigo, referir os fundamentos psicolgicos, biolgicos e culturais dos processosde semantizao.

  • 22

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    dotados de sentido e organizados sintaticamente em funo da mensagem a ser transmitida.Isto no quer dizer que as associaes semnticas no existam, ou que no devam ser levadasem conta para compreender o seu funcionamento enquanto fato social total .15 Mas convmmostrar que os quatro fatores que contribuem para a semantizao musical, ao explicaremcomo surgem os semantismos, possibilitam a compreenso da volatilidade dos interpretantesque tentamos caracterizar, e este ltimo aspecto que quero salientar.

    a) Os significantes pertinentes

    No mbito dos significantes, como vimos, BOILS baseou-se fundamentalmente nos ritmos enos intervalos. Sua metodologia funciona de acordo com o duplo movimento da onomasiologiae da semasiologia dos lingistas. Primeiramente, ele estabelece famlias de significantesmusicais nicos, recorrendo ao mtodo paradigmtico. Alm disso, ele pede aos informantesno campo que traduzam verbalmente e denominem aquilo que associam a uma pea. Emseguida, ele determina a que significados correspondem os significantes idnticos, e a quesignificantes correspondem os significados idnticos. Ele s conserva em sua descrio finalos signos que lhe permitem estabelecer uma relao biunvoca.

    Poderamos criticar BOILS por limitar-se a apenas dois parmetros, as alturas e os ritmos,porque so os nicos que podem ser relatados atravs da transcrio inspirada na escritamusical ocidental. Nessa perspectiva crtica, o programa de anlise das msicas popularesproposto por TAGG prope uma importante correo, no sentido em que relaciona, entre ossignificantes : os aspectos temporais (incluindo a textura rtmica), os aspectos meldicos(incluindo o timbre), a orquestrao, os aspectos relacionados tonalidade e s texturas, osaspectos dinmicos, os aspectos acsticos (incluindo o grau de reverberao), os aspectoseletrnicos e mecnicos (filtragem, compresso, distoro, etc.) (TAGG, 1982, p.47-48). Ointeresse dessa grade para o etnomusiclogo reside na sua possibilidade de incit-lo aconsiderar, como significantes semnticos, aspectos da matria sonora que no sonecessariamente relatados pelas transcries habituais.

    Um outro mtodo para determinar quais so os aspectos pertinentes dos significantes consisteem transpor para a etnomusicologia o mtodo de comutao dos lingistas. Foi o mtodoseguido com maestria por Monique DESROCHES (1996, cap.VI). Aps estabelecer o paradigmados batimentos de tambor que acompanham uma cerimnia tmil na Martinica, ela perguntouao sacerdote oficiante a que divindade remetiam cada uma das unidades dessas famliasparadigmticas.16 . Foi assim que ela pde determinar que as unidades de dois dos quatroparadigmas o primeiro e o ltimo evocavam respectivamente Malimin e Maldvilin. Porm

    15 Aqui, retorno voluntariamente expresso de Marcel Mauss a partir da qual MOLINO (1975) props a expresso fato musical total que se encontra na base de sua teoria da tripartio.

    16 Ser necessrio repetir aqui, para convencer definitivamente os cticos, que no se pode fazer um estudosemntico minimamente rigoroso de um repertrio musical sem passar pela etapa da famosa anlise do nvelneutro?! No mtodo de DESROCHES, v-se bem que ele funciona, segunda a feliz formulao de OttoLASKE, como um artefato metodolgico (1977, p.221).

  • 23

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    ela no se limitou a isso. Ela observou que, no primeiro paradigma, uma clula rtmica menor(semicolcheia, semicolcheia pontuada, semicolcheia) era constante entre uma ocorrncia eoutra. Ela ento emitiu a hiptese de que essa clula era a portadora da aluso a Malimin.Para verific-lo, ela utilizou o mtodo da comutao. Ela elaborou esquemas dos quais eliminoua clula candidata denotao semntica. Verificou-se que o sacerdote foi incapaz de associara divindade a esses casos, o que demonstrou que a pequena clula rtmica em questo eraefetivamente a clula responsvel pela remisso a Malimin. TAGG, sem realizar umaexperincia, mas apenas confiando em seu sentimento semntico-musical (nos trabalhos quepublicou at o momento) no mbito do que ele mesmo denomina um enfoque semio-hermenutico , tambm utilizou o mtodo da comutao para determinar, no nvel dossignificantes, as unidades mnimas de significao na msica popular os musemas. (TAGG,1987, p.292; TAGG e CLARIDA, 2003, p.98).

    Se, por um lado, dispomos de mtodos para determinar os significantes pertinentes, mtodosque convm, obviamente, desenvolver, corrigir e aperfeioar, por outro lado, a etnomusicologiano demonstrou interesse em definir quais so as caractersticas dos significantes que conotamuma determinada famlia de significados. provvel que se esta questo no est na ordemdo dia de nossa disciplina, porque, segundo a concepo culturalista que a governa, elaconsidera que, de qualquer forma, as associaes so o produto das codificaes e convenesculturais, e que no vale a pena buscar-lhes a motivao na matria musical. A posio deROUGET a respeito do transe, conduz, em todo caso, a esse tipo de concluso. Mas as hiptesese os primeiros resultados aventados para explicar a semantizao das msicas ocidentaismereceriam ser examinados, mediante uma transposio e uma adaptao, no mbito dasmsicas de tradio oral. IMBERTY, por exemplo, demonstrou que a organizao rtmico-temporal desempenhava um papel seno exclusivo pelo menos determinante em BRAHMS eem DEBUSSY (IMBERTY, 1979, p.71-84), e isto parece ser confirmado por Mozart, compositorcujo estilo bem diferente (NATTIEZ, 2002, p.231-233; 2004, p.282-284). MEYER (1956, 1973)demonstrou, de maneira bastante convincente, que os esquemas de implicao e de realizaona estrutura das melodias ocidentais estavam na base de nossas associaes emotivas com amsica, para que no tivssemos as mesmas indagaes a respeito do funcionamento dasmonodias nas msicas tradicionais, em relao s escalas que regem seu funcionamento.Deste ponto de vista, o enfoque expressionista absolutista das msicas tradicionais tercertamente muito a nos ensinar e convm no consider-lo, a priori, etnocntrico. Nada maisposso fazer alm de propor e imaginar essa via de pesquisa.

    b) O estabelecimento dos significados

    Os significados podem ser estabelecidos de acordo com mtodos distintos. Pode-se considerarque a busca, no campo, das associaes semnticas, tal como praticada por BOILS eDESROCHES, o equivalente do enfoque experimental de Michel IMBERTY para a msica erudita ocidental, visto que o objetivo, aqui, colher a traduo dos interpretantes daprpria boca dos informantes. O mtodo parece incontornvel no que concerne aos aspectosdenotativos da semantizao. Pois h duas alternativas : ou os informantes esto de acordo,segundo uma constante estatstica aceitvel, para afirmar que uma determinada pea musicalremete a Malimin, ao Deus Sol, a Oxssi ou a Oxum, ou os informantes divergem, e nestecaso preciso tentar compreender o porqu. Como qualquer ser humano, um informante

  • 24

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    pode ignorar ou esquecer. Como indicarei mais adiante, as informaes tambm variam emfuno da faixa etria. A situao torna-se mais complexa quando os interpretantes se referema afetos e a emoes. Embora para esses ltimos, o mtodo de BOILS, baseado na ida evolta entre significantes e significados, d a impresso de uma grande estabilidade entreeles, o que pode ser (demasiado) satisfatrio para o intelecto, ele tem provavelmente oinconveniente de neutralizar aquilo que caracteriza o funcionamento simblico em ao naconstruo de uma metalinguagem: as inmeras divergncias que freqentemente aparecementre os informantes. Para BOILS, a busca de estabilidade tem certamente duas fontesepistemolgicas: o fato de ter como modelo semiolgico de referncia o modelo de CharlesMorris, e no o de Peirce; o fato que, no seguimento de BOAS, HERSKOVITS e MERRIAM,BOILS conceba, a priori, a cultura como uma totalidade homognea.

    Geralmente encontramos esse mesmo problema de reduo quando se trata de examinar ossignificados. Tal como o psiclogo experimentalista, o etnomusiclogo levado a agrupar debaixode um mesmo sema de alegria , de tristeza , de carter enrgico , etc. significadosque, na maior parte das vezes, diferem de um informante para outro. No tenho nenhumasoluo milagrosa a propor diante dessa grave dificuldade. O etnomusiclogo pode tentar reduziros riscos de distoro e de amlgama semnticas, inerentes a este tipo de empreitada,trabalhando no campo com autctones perfeitamente bilnges, ou mesmo formados emlingstica. Em todo o caso, ao contrrio do que fazia BOILS, no se pode esquecer que todaconstruo de sema trai, de alguma maneira, a fluidez e a infinidade dos interpretantesassociados a um significante, e incorre no risco de no apreender a realidade dos fenmenossimblicos estudados.

    No sou nem o primeiro nem o nico a insistir nas variaes de associaes semnticas comsignificantes musicais que podemos observar no campo de pesquisa ou na literatura. A questo pertinente no mbito das culturas em que o ethos dos modos foi objeto de tratados. Nanossa prpria civilizao, uma comparao dos tratados que definem as coloraes emotivase afetivas das tonalidades revela profundas divergncias entre um autor e outro (cf. NATTIEZ1987, p.163). Embora reconheam que os aspectos estticos e extra-musicais dos ragasso fundamentais na cultura indiana, POWERS et WIDDESS (2001, p.179) salientam que ofato de relacionar significantes e significados no aceito unanimemente e que a permannciade determinadas associaes, apesar das transformaes diacrnicas de alguns de seusaspectos estruturais, pode levar a crer que os significantes e os significados no sonecessariamente interdependentes. Citando as afirmaes de CARON e SAFVATE que relateiacima, NETTL observa que, segundo sua prpria experincia da msica iraniana, seusinformantes manifestavam um entusiasmo moderado diante da legitimidade dessasassociaes. Ademais, ele se deleita em salientar as divergncias de associaes com ummesmo modo que ele revelou, em comparao com aquelas propostas por CARON eSAFVATE. De maneira muito relevante, seus informantes referiam-se a contextos bastanteconjunturais para justificar as associaes propostas (NETTL, 1983, p.210-211). Donde seuapelo prudncia: Precisamos saber quem, no pblico, compartilha este sistema (deassociao) e at que ponto ns podemos, enquanto etnomusiclogos, aceitar que elerealmente faz parte da cultura (ib., p.211). Dois fatores explicam as divergncias de opinio:quem so os portadores de interpretantes ? em relao a que contexto(s) essasassociaes foram determinadas?

  • 25

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    c) Os atores da semantizao

    Se levarmos a srio as associaes semnticas, se considerarmos que elas pertencem aoprograma de investigao da etnomusicologia, ento absolutamente indispensvelestabelecer o estatuto do informante. No caso dos tratados das sociedades denominadas dealta cultura, que autoridade tinham os especialistas que propuseram essas associaes?Eles consignaram uma prtica comum? Ou ser que erigiram em princpio universal suaprpria percepo e compreenso das coisas, como ocorre com tanta freqncia namusicologia ocidental? Quem detm a verdade no campo de pesquisa? Mesmo numa pequenacomunidade, nem todos pensam da mesma maneira. Este fato ilustrado por ZEMP a respeitode seus informantes no mbito de suas pesquisas sobre as etno-teorias : Nem todos osmsicos Are esto cientes dessas denominaes (1979, p.6) e pode-se perfeitamenteadmitir que, num grupo, alguns tenham mais sabedoria ou conhecimentos que outros, talcomo Ogotomele, do povo Dogon (GRIAULE, 1966, p.209), de quem podemos genuinamentepensar que ele era o nico, ou um dos nicos, em sua comunidade, a ter elaborado umsistema cognitivo e filosfico to elaborado. Recordemos o depoimento de Edward SAPIR: Dois-Corvos, ndio autorizado, podia se permitir negar at a existncia de um costume, deuma atitude ou de uma crena que um outro ndio, no menos autorizado do que ele, haviadeclarado verdadeiros (1971, p.103). Questo de competncia, de memria (veremos logomais), mas tambm, questo de funo e de posio.

    Pude observar em Uganda, que eu no obtinha o mesmo tipo de respostas consoante me dirigisseao chefe dos tambores, chefe das danarinas ou aos membros do pblico. Convm fazer umaadvertncia aqui sobre a serializao das informaes, isto , das investigaes feitas, para ummesmo gnero, junto a diferentes grupos de msicos e de ouvintes. Ou h convergncia, ou noh. Se no houver, convm pesquisar os motivos. No seio de cada grupo, deve-se levar emconta a funo distinta dos atores do acontecimento estudado. Um instrumentista no tem amesma experincia que uma danarina. Alm do mais, segundo uma discrepncia bastanteconhecida, os acontecimentos no so os mesmos do ponto de vista poitico ou estsico. Publiqueitambm, o resultado de uma enquete realizada com cerca de quarenta estudantes da etniabaganda que assistiram a uma execuo da dana Mbaga, em Kampala, a fim de registrar asdivergncias de pontos de vista entre sua compreenso da dana e o depoimento dos atoresdesta dana (NATTIEZ, NANNYONGA TAMUSUZA, 2003). Por isto, parece-me decisivo deixarmuito explcito, em nossas monografias, quem e quantos eram os informantes que permitiramque se verificasse uma associao semntica (como em todos os depoimentos, por sinal). E seousarmos fazer uma interpretao do fenmeno estudado, ento isto deve ficar bem claro (noh mal nenhum em praticar a hermenutica, que uma cincia nobre), e devemos reconhecer ostatus do que fazemos. J suficientemente difcil ir ao encalo das associaes semnticascom a msica, para que o etnomusiclogo prescinda de fundamentar o raciocnio e oencaminhamento que lhe serviram de base para construir suas interpretaes e de explicar emque fatos se baseou para consider-las mais verdadeiras do que aquilo que poderia deduzir daspalavras de seus informantes 17 . uma questo de tica cientfica e de rigor epistemolgico.

    17 As advertncias expressas no passado por Jean-Claude GARDIN (1979) a respeito da construo do discursodo arquelogo, continuam vlidas para o etnomusiclogo.

  • 26

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    d) O papel dos contextos

    A semantizao da msica depende amplamente dos contextos onde o fato sonoro aparece.Vimos o papel que a referncia linguagem pode assumir para as culturas onde existemlnguas tonais. No se pode ignorar o que diz o texto das msicas vocais para compreender autilizao que feita da matria musical em relao a ele. No contexto da dana, ainda quepossamos discutir as conotaes emotivas ligadas a tal ou tal motivo agindo como sinal, evidente que a sintaxe desses motivos e das coreografias relacionadas com eles, depende desua primeira denotao. (cf.exemplo em NATTIEZ, NANNYONGA TAMUSUZA, 2003). porser portadora de significaes que a msica utilizada no teatro oriental. Se uma msica,tocada fora de contexto, portadora de inmeras possibilidades semnticas, o contextodramtico desempenha, no nvel dos interpretantes, aquela funo de ancoragem que RolandBARTHES (1964) atribuiu a um ttulo na significao de uma imagem. O contexto, bvio, tambm o contexto cultural, aquele que faz com que o rans-des-vaches helvtico s conotenostalgia para os suos. ROUSSEAU compreendeu perfeitamente a natureza antropolgica esemiolgica do problema: seus efeitos, escreveu que no se manifestam nos estrangeiros18 ,provm apenas do hbito, das lembranas, de mil circunstncias retraadas por essa Melodiaqueles que a ouvem, e lhes recordam seu pas, seus antigos prazeres, sua juventude, e todosos seus modos de viver, excitam neles uma dor amarga por terem perdido tudo aquilo. A Msica,ento, no age precisamente como Msica, mas como signo memorativo. (1995, p.924) Emcada cultura, as associaes semnticas resultam de hbitos e convenes, o que no significaque a ligao entre significante e significado, como salientei acima, no seja iconicamentemotivada pelas caractersticas imanentes do significante.

    Em todos esses casos, encontramos o equivalente do conceito de situao, cuja importnciafoi demonstrada por Leonard BLOOMFIELD (1929, cap.IX) acerca do estabelecimento dassignificaes na linguagem natural. No de surpreender que BOILS, na sua prpriaperspectiva, que consistia em assentar a semiologia musical sobre a semntica, tenhaconsagrado um livro inteiro, Man, Magic, and Musical Occasions (1978), a um inventriominucioso desses contextos especficos s diferentes culturas, pois so eles que fornecem,numa dada situao, a chave dos significados.

    Um ltimo fator contextual explica tanto a natureza da semantizap da msica quanto asdivergncias de um informante para outro: o trabalho do tempo, j assinalado nas observaescrticas de POWERS-WIDDESS e NETTL citadas acima. Demonstrei, em outro trabalho,(NATTIEZ, 1999) que, na poca xamanista, os jeux de gorge inutes eram utilizados pelasmulheres como tcnica mgica para agir sobre o esprito dos animais e de alguns elementosda natureza, a fim de garantir uma boa caa a seus maridos. Dessa forma, elas contribuam sobrevivncia da comunidade, encarregando-se do aspecto simblico da diviso do trabalho.Os membros da minha equipe de pesquisa encontraram, na dcada de setenta do sculopassado, cerca de duzentas executantes de katajjaq. Apenas uma delas, mais velha do que amaioria das outras, sem fazer diretamente aluso ao xamanismo numa poca em que a influncia

    18 Sublinhado pelo autor.

  • 27

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    dos missionrios ainda era muito forte, associou, aos motivos dos jeux de gorge, nomes deanimais, e em termos que podemos claramente interpretar numa perspectiva animista. No por ter sido a nica a semantizar os motivos dessa maneira que ela estava errada.Simplesmente, ela era portadora de informaes de carter religioso que, como conseqnciada cristianizao, tinham sido esquecidos ou recalcados, com o passar dos anos, pelas outrasmulheres inutes. Ela era a nica a ter acesso a um nvel de profundidade histrica que notemos nenhum interesse em ignorar, a partir do momento em que determinamos seu grau depertinncia diacrnica.

    *Insisti, nesta ltima parte, na flexibilidade das associaes semnticas em funo dos indivduos,dos contextos, das culturas e da histria. Quanto situao atual da etnomusicologia,poderamos invoc-la para considerar que, do ponto de vista do conhecimento das estruturasmusicais, a semntica musical tem apenas uma funo decorativa, da qual podemos prescindir.No creio que essa posio se justifique se adotarmos a perspectiva da msica enquanto fato social total , preocupada em levar em conta as estratgias poiticas e as estratgiasestsicas. Do lado poitico, no me parece que possamos estudar os fenmenos cognitivosexistentes na inveno, na produo e na execuo musical, sem que intervenham asrepresentaes semnticas ligadas msica, principalmente nas msicas vocais, nas msicasligadas dana, no teatro e nos rituais, que constituem, seno a totalidade, pelo menos umaporcentagem muito elevada das categorias de msica estudados pela etnomusicologia : elasso determinantes para explicar diferentes aspectos da morfologia e da sintaxe musical. Dolado estsico, se quisermos saber como a msica percebida, no vemos como seria possvelignorar, juntamente com as estratgias cognitivas das estruturas musicais propriamente ditas,as associaes das quais so objeto. Afinal de contas, se o objetivo da etno-musicologia, queescrevo deliberadamente com um hfen, for efetivamente, no apenas relatar a organizao damatria numa perspectiva mica, mas tambm descrever como as msicas so compreendidase vivenciadas no meio ao qual pertencem, ento as pesquisas de semntica musical, condiode serem realizadas de maneira to rigorosa e sistemtica quanto possvel, poderiam ser umelo decisivo da cadeia, que possibilitaria uma melhor compreenso, porm com todas asprecaues que referi, e outras mais, das conexes entre a msica e a cultura.

  • 28

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    Referncias BibliogrficasAGAWU, Kofi. African Rhythm. A Northern Ewe Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

    __________ Musica, linguaggio, danza. In: Enciclopedia della Musica, vol. III, Musiche e Culture. Turin:Einaudi, 2003, p.944-956 ; trad. fr., Musiques. Une Encyclopdie pour le XXIme sicle, vol. III, Musiques etcultures . Arles e Paris: Actes Sud et Cit de la musique, 2005, a ser publicado.

    AMIRA, John, CORENLIUS, Steven. The Music of Santera. Traditional Rhythms of the Bat Drums. Tempe: WhiteCliffs Media, 1991.

    BARTHES, Roland. Rhtorique de limage , Commnunications 4, 1964, p 40-51.

    Includo em uvres compltes. Paris: Seuil, vol. I, p. 1417-1429.

    BECKER, Judith . Musica e trance, Enciclopedia della Musica, vol. III, Musiche e Culture. Turin: Einaudi,2003, p.409-436 ; trad. fr., Musiques. Une Encyclopdie pour le XXIme sicle, vol. III, Musiques et cultures .Arles e Paris: Actes Sud et Cit de la musique, 2005, a ser publicado.

    BELL, Yung. Musica nel teatro chinese, Enciclopedia della Musica, vol. III, Musiche e Culture, Turin: Einaudi,2003, 889-924 ; trad. fr., Musiques. Une Encyclopdie pour le XXIme sicle, vol. III, Musiques et cultures .Arles e Paris: Actes Sud et Cit de la musique, 2005, a ser publicado.

    BLACKING, John. How Musical is Man? Seattle: Universty of Washington Press, 1973; trad. fr., Le sens musical.Paris: ditions de Minuit, 1980.

    __________ Music, Culture, and Experience. Selected papers of John Blacking. Chicago e Londres: The Universityof Chicago Press, 1995.

    BLOOMFIELD, Leonard. Language. Nova York: Holt, Rinehart and Winston, 1929; trad. fr., Le langage. Paris:Payot, 1970.

    BOILS, Charles L.. Cognitive Process in Otomi Cult Music. Tese de doutorado. Tulane University ; UniversityMicrofilms No. 70-6380, 1969.

    __________ Smiotique de lethnomusicologie , Musique en jeu 10, 1973a, p.34-41.

    __________ Les chants instrumentaux des Tepehuas : un exemple de transmission musicale de significations ,Musique en jeu 12, 1973b, p.81-99.

    __________ Man, Magic, and Musical Occasions. Columbus: Collegiate Publishing, 1978.

    BUDD, Malcolm. Music and the Emotions. The Philosophical Theories. Londres e Nova York: Routledge andKegan Paul, 1985.

    CALAME-GRIAULE, Genevive. Ethnologie et langage. La parole chez les Dogon. Paris: Gallimard,1965.

    CARON, NELLY, SAFVATE, DARIOUCHE. Iran (Les traditions musicales). Paris: Buchet-Chastel, 1966.

    COMBARIEU, Jules. La musique et la magie. tude sur les origines populaires de lart musical, son influence et safonction dans les socits. Paris: Alphonse Picard et fils, diteurs,1909 ; reed. , Genebra: Minkoff Reprint, 1978.

    COUVREUR, Sraphin. Mmoire sur les biensances et les crmonies. Paris: Cathasia, 1950.

    DESROCHES, Monique. Tambours des Dieux. Musique et sacrifice dorigine tamoule en Martinique. Montreal:LHarmattan, 1996.

    FRANCS, Robert. La perception de la musique. Paris: Vrin,1958.

    GARDIN, Jean-Claude. Une archologie thorique. Paris: Hachette, 1979.

    GRIAULE, Marcel. Dieu deau. Paris: Fayard, 1966.

    HANSLICK, Eduard. Du beau dans la musique [1854]. Paris: Christian Bourgois diteur, 1986; trad. bras., Do BeloMusical, Trad. Nicolino Simone Neto. Campinas: Ed. da Unicamp, 1989.

    HJELMSLEV, Louis. Prolgomnes une thorie du langage [1943]. Paris: ditions de Minuit, 1971.

    IMBERTY, Michel. Perspectives nouvelles de la smantique musicale exprimentale , Musique en jeu 17,1975, p.86-109.

    __________ Entendre la musique. Smantique psychologique de la musique vol. I . Paris: Dunod, 1979.

    __________ Les critures du temps. Smantique psychologique de la musique, vol. II. Paris: Dunod, 1981.

    JAKOBSON, Roman. A la recherche de lessence du langage , in Problmes du langage. Paris: Gallimard, col.Diogne, 1966, p.22-38.

    JUSLIN, Patrik , SLOBODA, John. Music and Emotion. Theory and Research. Oxford: Oxford University Press, 2001.

  • 29

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    LASKE, Otto. Towards a Musicology for the Twentieth Century, Perspectives of New Music, 1977, XV/2, P. 220-225.

    MARCONI, Luca. Musica Espressione Emozione. Bolonha: CLUEB, 2001.

    MERRIAM, Alan P. The Anthropology of Music. Evanston: Northwestern University Press, 1964.

    MEYER, Leonard B. Emotion and Meaning in Music. Chicago e Londres: The University of Chicago Press,1956.

    __________ Explaining Music. Berkeley , Los Angeles, Londres: University of California Press, 1973.

    MOLINO, Jean. Fait musical et smiologie de la musique , Musique en jeu 17, 1975, P.37-62. Trad. port. :Facto musical e semiologia da msica, in J.J. Nattiez, U. Eco, N. Ruwet, J. Molino, Semiologia da Msica,(org. Maria Alzira Seixo), trad. M.V. de Carvalho. Lisboa: Ed.Vega, s.d.

    NATTIEZ, Jean-Jacques . Fondements dune smiologie de la musique. Paris: Union gnrale dditions, 1975.

    __________ Musicologie gnrale et smiologie. Paris: Christian Bourgois diteur, 1987.

    __________ Inuit throat-games and siberian throat-singing : a comparative, historical and semiological approach ,Ethnomusicology XLIII/ 3, 1999, p.399-418.

    __________ Musica e significato , Enciclopedia della Musica, vol. II, Il sapere musicale. Turin: Einaudi,2002, p. 206-238 ; trad. fr., La signification comme paramtre musical . Musiques. Une Encyclopdie pourle XXIme sicle, vol. II, Les savoirs musicaux , Arles e Paris: Actes Sud et Cit de la musique, 2004, a serpublicado.

    NATTIEZ, Jean-Jacques, NANNYONGA TAMUSUZA, Sylvia . Ritmo, danza e sesso , Enciclopedia dellaMusica, vol. III, Musiche e Culture. Turin: Einaudi, 2003, p. 957-977 ; trad. fr., Musiques. Une Encyclopdiepour le XXIme sicle, vol. III, Musiques et cultures . Arles e Paris: Actes Sud et Cit de la musique, 2005,a ser publicado.

    NETTL, Bruno. The Study of Ethnmusicology. Twenty-nine Issues and Concepts. Urbana, Chicago e Londres:University of Illinois Press, 1983.

    NKETIA, J.H. Kwabena. Folk Songs of Ghana. Legon: University of Ghana, 1963.

    OGDEN, C.K., RICHARDS, I.A. The Meaning of Meaning. Nova York: Harcourt, Brace, Janovich, 1923.

    PAULUS, Jean. La fonction symbolique et le langage. Bruxelas: Charles Dessart diteur, 1969.

    POWERS, Harold. Mode, The New Grove Dictionary of Music and Musicians. Londres: Macmillan Publishers,2001, vol. XVI, p. 775-860.

    POWERS, Harold, WIDDESS, Richard. Raga in Article India , The New Grove Dictionary of Music andMusicians, Londres: Macmillan Publishers, 2001, vol. XVI, p. 178-188.

    ROUGET, Gilbert. La musique et la transe. Esquisse dune thorie gnrale des relations de la musique et de lapossession. Paris: Gallimard, 1980.

    ROUSSEAU, Jean-Jacques. Dictionnaire de musique. Paris: Veuve Duschesne, 1767. Reed. in uvres compltes,vol. V. Paris: Bibliothque de la Pliade, 1995, p. 605-1191.

    SAPIR, Edward. Anthropologie. Paris: Seuil, 1971.

    SLOBODA, John. Affect, in article Psychology of Music, The New Grove Dictionary of Music and Musicians.Londres: Macmillan Publishers, 2001, vol. XX, p. 544-546.

    SORCE KELLER, Marcello . Musica come rappresentazione e affermazione di identit , in Magrini, Tullia (ed.),Universi sonori. Introduzione allethnmusicologia. Turim: Einaudi, 2002, p. 187-210.

    TAGG, Philip. Kojak 50 Seconds of Television Music : toward the understanding of affect in popular music.Gteborg: University of Gteborg, Department of Musicology, tese de doutorado, 1979; reed. Nova York: TheMass Media Music Scholars Press, 2000.

    __________ Analysing popular music : theory, method and practice, Popular Music 2, 1982, p. 37-68.

    __________ Musicology and the semiotics of popular music, Semiotica LXVI/1-3, 1987, p. 279-298.

    __________ Fernando the Flute. Analysis of musical meaning in an Abba mega-hit. Nova York :Mass MediaMusic Scholars Press, 1991.

    __________ Toward a sign typology of music , in Rossana Dalmonte et Mario Baroni (ed.), Secondo ConvegnoEuropeo di Analisi Musicale. Atti. Trento: Universit degli Studi di Trento, Studi e Testi 1, 1992.

    TAGG, Philip e BOB Clarida. Ten Little Tunes. Nova York e Montreal: The Mass Media Music Scholars Press, 2003.

    ZEMP, Hugo. Musique Dan. La musique dans la pense et la vie sociale dune socit africaine. Paris: Mouton,Haia, Mouton, Cahiers de lhomme, 1971a.

  • 30

    NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significaes musicais. Per Musi, Belo Horizonte, n.10, 2004, p.5-30.

    __________ 1971b Masques Dan. Disco vinil, Paris, OCORA, OCR 52, 1971b ; reed. em CD, C 580048.

    __________ Aspects of are are Musical Theory , Ethnomusicology XXIII/1, 1979, p. 6-48.

    Jean-Jacques Nattiez Professor Titular de Musicologia da Faculade de Msica daUniversidade de Montreal. Considerado pioneiro da Semiologia Musical, publicou: Fondementsdune smiologie de la musique (UGE, 10-18, 1975), Musicologie gnrale et smiologie(Bourgois, 1987), De la smiologie la musique (UQAM, 1987), Le combat de Chronos etdOrphe (Bourgois, 1993). Aplicou seus conceitos semiolgicos s relaes entre a msica ea literatura (Proust musicien, Bourgois, 1984, 1999); s obras de Wagner (Ttralogies, Bourgois,1983; Wagner androgyne, Bourgois, 1990); ao pensamento de Pierre Boulez (do qual editouvrios volumes de escritos, dentro os quais a correspondncia com John Cage); msica dosInuit (Cand), dos Anous (Japo) e dos Baganda (Uganda), destes publicando diversos discos.Autor do romance Opera (Lemac, 1997) e da autobiografia intelectual La musique, la rechercheet la vie (Lemac, 1999). Foi o primeiro co-editor e co-fundador da Revue de musique desuniversits canadiennes, dirigindo Circuit de 1990 a 1999. Hoje, diretor geral de umaEnciclopdia de Msica, em 5 volumes, cuja publicao, em italiano, pela EINAUDI, iniciou-seem 2001, e, em 2003, pela ACTE-SUD, em francs. Escreveu cerca de 150 artigos, realizandosries de conferncias em vinte pases. Vrios de seus livros for