Jean Paul Sartre - Com a Morte Na Alma

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  • 7/29/2019 Jean Paul Sartre - Com a Morte Na Alma

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    J EAN- PAUL SARTRE

    Os Cami nhos da Li berdade

    COM A MORTE NA ALMA

    TRADUO DE I SABEL BRI TO

    3 . ' edi o

    LI VRARI A BERTRAND

    T t ul o da edi o or i gi nal : LA MORT DANS L' AW

    Capa de j os Cndi do

    di t i ons Gal f f i nar d, 1949 Di f el , 1968

    Li vr ar i a Ber t r and, S. A. R. L. , 1975Todos os di r ei t os r eser vados para a publ i cao dest a obra em l i nguapor t uguesa pel a LI VRARI A BERTRAND, S. A. R. L. ( Li sboa)

    Acabou de i mpri mi r - se em Agost o de 1983

    PRI MEI RA PARTE

    Nova I orque, nove hor as da manh, sbado, 15 de J unho de 1940. Um pol vo?Pegou na f aca, abr i u os ol hos, er a um sonho. No. O pol vo est ava l ,sugava- o com as vent osas: o cal or . Suava. Ti nha adormeci do cerca da -uma hor a; s duas, o cal or havi a- o acordado, mergul hara numbanho f r i o et or nar a- se a dei t ar sem se l i mpar ; l ogo em - segui da a f or j a vol t - ar a - ar essoar - l he sob a pel e, r ecomeara a t r anspi r ar. De madr ugada t i nhaadormeci do, sonhou comi ncndi os; agora o Sol j i a - al t o, e Gomez suavaai nda: suava sem i nt err upo h quarent a e oi t o horas. " Meu Deus! " ,suspi r ava ao passar a mo pel o pei t o mol hado. I st o no era do cal or ,era uma doena da at mosf era: o ar t i nha f ebr e, o ar - suava, desf az a- seem suor . Levant ar - se. Comear a suar dent r o de uma cami sa. Er guer - se:"Hombre! J no t enho mai scami sas. " Enchar cara a l t i ma, a azul , porqueera obr i gado a mudar- se duas vezes por di a. Agora era o f i m: usar i a est et r apo hmi do e mal chei r oso at que a r oupa vi esse da l avandar i a.Levant ou- se caut el osament e, mas sem poder evi t ar a i nundao, as got ascorr i am- l he pel o cor po como pi ol hos e f azi am- l he ccegas. A cami saamarr otada, chei a de pr egas, est ava no espal dar da cadei r a. Apal pou- a:nada seca nest e pa s de merda. O corao bat i a- l he, sent i a um t r avo na

    boca, como se se t i vesse embr i agado na vspera. Vest i u as cal as,apr oxi mou- se da j anel a e corr eu as cor t i nas: na r ua, a l umi nosi dade er abranca como uma cat st r of e; mai s t r eze horas de l uz. Ol hou para a rua comangst i a e rai va. A mesma10cat st r of e: l l onge, na f r t i l t er r a negr a, debai xo de f umo, sangue egr i t os; aqui , ent r e as casi nhas de t i j ol o ver mel ho, l uz, apenas l uz,apenas l uz e t r anspi r ao. Mas era a mesma cat st r of e. Doi s negrospassaram e r i r am, uma mul her ent r ou no dr ugst ore. "Meu Deus! " Vi a ascor es t ornarem- se ber r ant es: mesmo t endo t empo, mesmo t endo cabea para

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    i sso, como poderi a pi nt ar com est a l umi nosi dade! ", Meu Deus! ", di sse,"meu Deus! " Bat er am por t a. Gomez f oi abr i r . Er a R t chi e. - um cr i me-di sse Ri t chi e ao ent r ar. Gomez est r emeceu: - o qu? - Est e cal or : umcr i me. O qu - acr escent ou comum ar de censura - , no est s vest i do?Ramon espera- nos s dez horas. Gomez encol heu os ombros: - Ador mecit ar de. Ri t chi e of f i ou- o a sor r i r , e Gomez apr essou- se a acrescent ar : -Est mui t o cal or . No consi go dormi r . - Acont ece, nos pr i mei r os t empos -

    di sse Ri t chi e compl acent ement e. - Depoi s habi t uas- t e - Tomas past i l has desal ? - Ol hou par a el e at ent ament e. - Si m, cl ar o, mas no f azemef ei t o.Ri t chi e abanou a cabea e a sua benevol nci a mat i zou- se de sever i dade: -as past i l has de sal devi ami mpedi r a t r ansp r ao. Se no pr oduzi amef ei t o em Gomez, ent o el e no er a como as out r as pessoas. - Mas ent o!di sse subi t ament e Ri t chi e, f r anzi ndo o so- br ol ho - , t u devi as est art r ei nado: em Espanha t ambmh mui t o cal or . Gomez pensou nas manhssecas e t r gi cas de Madr i d, nessa bel a l umi nosi dade sobr e Al cal , que eraai nda a esper ana; abanou a cabea: - No er a o mesmo cal or . - Menoshmi do, no? - di sse Ri t chi e, com uma espci e de or gul ho. - Si m. E mai shumano, ~ 11 Ri t chi e t i nha um j ornal na mo; Gomez est endeu o braopar a l he pegar , mas no ousou. A mo pendeu- l he. - ' um gr ande di a -di s~e Ri t chi e al egr ement e- : a f est a de Del aware. Sou de l , sabes? Abr i u

    o j ornal na dci ma t ercei r a pgi na; Gomez vi u uma f otogr af i a. L Guardi acumpr i ment ava um homemf ort e e ambos sor r i am com natur al i dade. - Est et i po esquerda - cont i nuou Ri t chi e - o governador de DI aar e. LGuardi arecebeu- o ont emno Wor l d Hal l . Foi f ormi dvel . Gomez t i nha vont adede l hear r ancar o j ornal e de ver a pr i mei r a pgi na. Maspensou: "Est ou- menas t nt as", ef oi para a casa de banho. Encheu a banhei r a de gua f r i a ebar beou- se rapi dament e. Quando se i a a meter nobanho, Ri t chi e gr i t ou- l he:- Como vai s de massas? - Mui t o mal . j no tenho nenhuma cami sa e r est am- medezoi t o dl ar es. Al mdi sso, Manuel chega na segunda- f ei r a, t enho de l hedevol ver o apar t ament o. Mas est ava a pensar no j ornal : Ri t chi e l i aenquant o esper ava; Gomez ouv a- o vol t ar as pgi nas. Li mpou- secui dadosament e; em vo: e gua emergi a da toal ha. Enf i ou a cami sa hmi da,esf r egando- a nas cost as, e ent r ou no quar t o. - Desaf i o dos Gi gant es. Gomezol hou Ri t chi e sem compr eender . - O basebol , ont em. Ganharam os Gi gant es.- Ah! , si m, o basebol . . , . Bai xou- se par a aper t ar os sapat os. Pr ocur aval er , espr ei t ando, os t t ul os da pr i mei r a pgi na. Acabou por per gunt ar : - EPar i s? - No ouvi st e a r di o? - No tenho r di o. - Acabado, l i qui dado -di sse R t ch e t r anqui l ament e. - - - Ent r ar am est a noi t e. Gomez di r i gi u- separ a a j anel a, col ou a t est a ao cai xi l ho escal - 12 dant e, ol houpar a a r ua. Est e sol i nt i l , est e di a i nt i l . De f ut ur o, apenas di asi nt ei s. Vol t ou- se e dei xou- se cai r na cama. - Despacha- t e- - di sseRi t chi e. - Ramon, no gost a de esper ar . Gomez l evant ou- se. A cami sa j estava enchar cada. Foi pr a gr avat a em f r ent e do espel ho: - El e est deacor do? - Em pr i nc pi o, si m. Sessent a dl ar es por semana e f ar s a crni cadas exposi es. Mas el e quer ver - t e. - Ver- me- - di sse Gomez. - Ver - me-. Vol t ou- se br uscament e: - Preci so de um adi ant ament o. Achas que el e i r ni sso? Ri t chi e encol heu os ombr os. e, aps um moment o: - Di sse- l he que

    vi est e de Espanha e el e desconf i a de que no - t ens gr ande admi r ao porFranco; - mas no l he f al ei das tuas. . . expl oraes. No l he di gas queeras general : no f undo, no sabemos o que pensa. General ! Gomez ol houpara as cal as usadas e para as manchas escur as que o suor punha nacami sa. Di sse ser enament e: - No t enhas medo, no t enho vont ade de megabar . Sei o que cust a, aqui , t er f ei t o a guer r a em Espanha: h sei smeses que est ou sem t r abal ho. Ri t chi e par eceu abal ado: - Os Amer i canos -no gost am de guer r a - expl i cou secament e. Gomez ps o casaco debai xo dobr ao: - Vamos. Ri t chi e dobr ou l ent ament e o j ornal e l evant ou- se. Naescada per gunt ou: - A t ua mul her e o t eu f i l ho est o em Pari s? - Esper o

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    bem que no - - r epl i cou vi vament e Gomez. - Espero que Sarah t enha si dosuf i ci ent ement e esper t a para se r aspar para Mont peUi er . Acr escent ou: -No t enho not ci as del es desde o di a 1 de j unho. 13 Se t i ver est r abal ho, podes mand- l os vi r - di sse Ri t chi e. Si m - di sse Gomez. - Si m,si m. Ver emos. A r ua, o br i l ho das j anel as, o sol a i nci di r sobr e asl ongas casas achat adas e sem t ect o, de ti j ol os escur eci dos. Em f r ent e decada por t a degr aus de pedra br anca; uma br uma de cal or do l ado de East

    Ri ver ; a ci dade t i nha um ar def i nhado. Nem uma sombr a: em nenhuma r ua domundo nos sent i r amos t o est r anhos. Agul has i ncandescent es f ur vam- l heos ol hos; l evant ou a mo para se def ender, e a cami sa col ou- se- l he pel e. Ar r epi ou- se: - Um cri me! - Ont em - di sse Ri t chi e - , um pobr e vel hocai u mi nha f r ent e: i nsol ao. Br r - excl amou. - No gost o de vermort os. "Vai para a Eur opa e est s servi do", pensou Gomez. Ri t chi eacrescent ou: - Fal t am quarent a pr di os. mel hor apanhar o aut ocar r o.Par aramj unt o ao post o amarel o. Uma j ovemesperava. Ol hou- os com arsabi do e t r i st e, depoi s vol t ou- l hes as cost as. - Bel a r apar i ga - di sseRi t chi e com ar col egi al . - Tem ar de pr ost i t ut a - di sse Gomez com r ancor .Aquel e ol har t nha- o f ei t o sent i r - se suj o e t r anspi r ado. El a no est ava at r anspi r ar . Ri t chi e t ambmno: r osado e f r esco na sua boni t a cami sabr anca, s o nar i z ar r ebi t ado br i l hava um pouco. O bel o Gomez. O bel o

    general Gomez. O general debr uar a- se sobr e ol hos azui s, ver des, negr os,sombr eados pel o bater dos c l i os; a pr ost i t ut a apenas se apercebera de umpequeno mer i di onal aval i ado em ci nquent a dl ares por semana, - que suavano seu f at o comprado f ei t o. "Tomou- me por um dago *. " Mesmo ass i m, ol houpar a as bel as per nas l ongas enquanto cont i nuava a suar . "H quat r o mesesque no sei o que f azer amor . " Dant es, sent i a o desej o como um solseco no vent r e. Present ement e, o bel o general Gomez t i nha desej osver gonhosos e f ugi di os de vagabundo. - Um ci gar r o? - of er eceu Ri t ch e. *Ter mo, em g r i a nort e- amer i cana, e= que so desi gnados os i mi grantes doSul da Eur opa. ( N. da T. ) 14 - No. Si nt o a gargant a a arder.Gost ar i a - mai s de beber. - No' t emos t empo. ComU' ar pert ur bado deu- l heuma pequena pal mada no ombro: Faz por sor r i r - di sse. Se Ramon t e v comessa car a, assust a- se. No t e peo - que sej as cer i moni oso - apr essou- se adi zer , per ant e um gesto 4, ~ ~- Qm z. - Ao ent r ar es, f azes um sorr i soi mpessoal e esf oras- t e por p' ~6nser var ; dur ant e esse t empo podes pensarno que qui seres: ~, ~v 1, ou sor r i r di sse Gomez. R t c i e o-ou comsol i ci t ude. b como garot o que est s pr eocupado? CI 1 ,No. - - i ~hI f ~z pr . p 5~Qr oso esf or o de r ef l exo: ' ' ~ o' r e a u- , . 4, s~ ~~ ari s? est ou- Me nas t i nt as por Par i s di sse Gomezvi ol ent ament e. Ai nda bem que t omaram a ci dade sem combat e, no achas? OsFr ani `c` ' s 4~M. def end- l a - r espondeu Gomez com uma voz neut r a. - Babl ,ma ci dade pl ana. - Pod: l amdef end- l a. Madr i d r esi st i u doi s anos emei o. . . - Madr i d. . . . r epet i u Ri t chi e com um gest o vago. Ret omou: - Maspar a qu def ender Pari s? est pi do. Teri am dest r u do o Louvre, a per a,Not r e- Dame. Quanto menos est r agos houver , mel hor . Agor a- acr escentou -sat i sf ei t o_, a- - - per r a, acabar depr essa. , ssa a or a! - di sse Gomezi r oni cament e. - - Nt ~ dar , dent r o de t r s - meses t eremos a paz nazi .

    "`Paz - di sse Ri t chi e- no democr t i ca, nei p nazi : a paz. Sb~s qeno gost o dos nazi s. Mas so homens como os out r os. Uma ~W conqui st ada aEur opa, ver

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    conf l i t os ser i amsanados. No t i nha mui t a si mpat i a - pel os i mi gr ant es der aa l at i na; ent endi a- se mel hor com os - al emes. "A t omada de Par i s, parael e, que poder i a repr esent ar? " Gomez vol t ou - a cabea e ol hou para omost r ur i o mul t i cor do vendedor de j or nai s: Ri t chi e par eceu- l he, de -r epent e, i mpi edoso. - Vocs, os Eur opeus - di sse Ri t chi e - , agarr am- sesempre a s mbol os. H oi t o di as que se ~sabe que a Fr ana est perdi da.Bem: vi vest e l , t ens boas r ecor daes, compreendo que i sso te

    ent r i st ea. Mas a t omada de Par i s? Em que t e pert ur ba, se a ci dade, est i nt act a? No f i m da guerr a vol t aremos. Gomez sent i u- se - t omado de umaext r aor di nr i a e col r i ca al egr i a: - Em que que me per t ur ba? -per guntou com voz t r mul a. - D- me pr azer ! Quando Franco ent r ou emBarcel ona el es abanavam a cabea, di zi am que era pena, mas ni ngum mexeuum dedo. . Poi s bem, a vez del es; que se avenham! Si m, d- me pr azer -gr i t ou no mei o do ru do do aut ocarr o que, ent r etant o, t i nha chegado - ,d- me pr azer! Subi r am depoi s da mul her j ovem. Gomez f ez o poss vel porl he ver as - pernas; f i car amde p na pl ataf orma. Um homem gordo, decul os de our o, af ast ou- se preci pi t adament e del es e Gomez pensou: "Devo,chei r ar mal . " Na l t i ma f i l a de l ugar es sent ados, um passagei r o ti nhadesdobr ado um j ornal . Gomez. l eu, por ci ma do ombro: "Toscani ni acl amadono Ri o, onde t oca pel a pr i mei r a vez depoi s de ci nquent a e quat r o anos. " E

    mai s abai xo: "Est r ei a em Nova I or que: Ray Mi l l and e Lor et t a Yot i ng emODout or V 16 Casar. " Por t odo o l ado se abr i am j or nai s: L Guardi ar ecebe o governador de Del aware; Loret t a Young; i ncndi o no I l l i noi s; RayMi l l and; o meu mar i do comeou a gost ar de mi m quando compreidesodor i zant e Pi t t s; compr em Chr i sar gyl , o l axat i vo da l ua- de - mel ; umhomem empi j ama sor r i a j ovem esposa; La Guardi a sor r i a - ao governadorde Del aware; "No h bol os para os mi nei r os" , decl ara Buddy Sm t h. I aml endo; as grandes f ol has - br ancas e negr as f al avam- l hes de si pr pr i os,das suas pr eocupaes, dos seus prazer es; sabi am quem era Buddy Smi t h, eGomez no sabi a; vi r avam para o cho, par a as cost as do condut or , asl et r as gr ossas da pr i mei r a pgi na: "Tomada de Par i s" , ou ent o"Mont mort r e em chamas". I am l endo, mas os t t ul os gr i t avam- l hes ent r e asmos sem serem ouvi dos. Gomez sent i u- se vel ho e cansado. Par i s est aval onge; era o ni co a pr eocupar - se, no mei o de cent o e ci nquent a. mi l hesde homens, era . apenas uma pequena pr eocupao pessoal , pouco mai si mpor t ant e do que a sede que l he quei mava a garganta. - D- me o j ornal -pedi u a Ri t chi e. Os Al emes ocupam Par i s. Presso em di r eco ao Sul .Tomada do Havr e. Assal t o da Li nha Magi not . As l et r as gr i t avam, mas ost r s negr os que conver savam atr s del e cont i nuavam a r i r sem ouvi r .I nt act o o exrci t o f r ancs, a Espanha t oma Tnger . O - homem de cul os deour o pr ocur ava al guma coi sa, met odi cament e, na past a, e acabou porr et i r ar uma chave Yal e, que exami nou com sat i sf ao. Gomez t evever gonha, sent i a vont ade de f echar o j ornal , como se nel e se f al asse dosseus segr edos mai s nt i mos. Est es gr i t os enormes que l he f azi am t r emer asmos, os pedi dos de socor r o, os est ert ores, eram enormes i ncongr unci as,como o seu suor de est r angei r o, como o seu chei r o demasi ado i nt enso. Apal avra de hi t l er posta emdvi da; o pr esi dent e Roosevel t no acr edi t a

    . . . ; os Est ados Uni dos f aro o que puderem pel os Al i ados; o Governo deSua Maj est ade f ar o que puder pel os Checos; os Fr anceses f aro o quepuderempel os r epubl i canos de Espanha. Li gadur as, medi cament os, l atas del ei t e. Mi sr i a! Mani f est ao de est udant es em Madr i d par a exi gi r adevol uo de Gi br al t ar aos 17 Espanhi s. Vi u a pal avr a Madr i d e j no pde cont i nuar . "Bem f ei t o, pati f es! Pat i f es! Que peguem o f ogo aosquat r o cant os de Par i s- que a reduzam a ci nzas. " Tour s ( do nossocorr espondent e part i cul ar Ar chambaud) : A l ut a- cont i nua, os Fr ancesesdecl aramque a pr esso i ni mi ga di mi nui ; pesadas perdas nazi s.Natur al ment e apr e&so di mi nui , di mi nui r at ao l t i mo di a e at ao

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    l t i mo j or nal f r ancs; pesadas per das, pobr es pal avras, l t i mas pal avr asde esperana que j no enganam ni ngum; pesadas per das f asci st as vol t ade Tar r agona; a pr esso di mi nui ; Bar cel ona r esi st i r . . e, no di asegui nt e, a debandada. Berl i m ( do nosso cor r espondent e par t i cul ar Br ookPet ers) : A Frana perdeu t oda a i ndst r i a; Mont mdy f oi t omado; a Li nhaMagi not assal t ada; o i ni mi go em f uga; cant o de gl r i a, cant o chei o desonor i dade, sol ; em Ber l i m, em Madr i d, cant - a- se em uni f or me; Bar cel ona,

    Madr i d, em uni f or me; Bar cel ona, Madr i d, Var svi a, Pari s, - amanhLondr es. Em Tour s, - senhores de casaco escur o passeavam pel os cor r edoresdos hot i s. - Bem f ei t o! bem f ei t o, que t omem t udo, a Frana, aI ngl aterr a, que desembarquem emNova I orque, bem f ei t o! O senhor decul os de our o ol hava- o; Gomez t eve vergonha, como se t i vesse gr i t ado. Osnegr os sor r i am, a j ovem mul her sor r i a, o cobr ador sor r i a, not t o gr i n i sa si n. - Vamos descer - di sse Ri t chi e sor r i ndo. Nos annci os, na capa dasr evi st as, a Amr i ca sor r i a. Gomez pensou em Ramon e comeou a sor r i r .So dez horas - cont i nuou Ri t chi e - , s est amos at r asados ci nco mi nut os.Dez horas, t r s horas em Fr ana: uma tarde enevoada, sem esperana,despont ava dest a manh col oni al . Trs horas em Fr ana. - Est amos bemar r anj ados - di sse o ti po. Est ava pet r i f i cado no assent o; Sar ah vi a osuor escor r er - l he pel a nuca; ouvi a o barul ho das buzi nas. 18 - j

    no t emos gasol i na! Abr i u a port a, sal t ou do carr o e f i cou parado emf r ent e del e, ol hando- o ' t ernament e: - Sant o Deus! - - mur mur ou ent r edent es. - Sant o Deus! Af agava o carr o escal dant e: Sarah vi a- o, at r avs daj anel a, de p cont r a o cu f ai scant e, no mei o de t ant o barul ho; os car r osque passavam desde manh di st anci avam- se numa nuvem de poei r a. At r sdel es, as buzi nas, os api t os, as campai nhas: um gor j ei o de pssaros def err o, o cant o do di o. - Por que se zangam? - pergunt ou Pabl o. - Por quei mpedi mos a passagem. El a gost ar i a de t er sal t ado do car r o, mas odesesper o mant nha- a no assent o. O t i po l evant ou a cabea: - Desa! -di sse el e i r r i t ado. - No os est a ouvi r ? Aj u de- me a empur r ar .Descer am. - Empur r e at r s - ordenou o t i po a Sara. - E com f ora. -Tambm quer o empur r ar - di sse Pabl o. Sarah agarr ou- se ao car r o e empurr oucom t oda a f ora, de ol hos f echados, como numpesadel o. O suor ensopava-l he a bl usa: at r avs das pl pebr as cer r adas, o sol f er i a- l he os ol hos.Abr i u- os: emf r ent e del a, o t i po empur r ava com a - mo esquerda apoi ada naj anel a; com a di r ei t a, manobr ava o vol ant e; Pabl o t i nha- se preci pi t adocont r a o pra- choques t r asei r o e dava gr i t os sel vagens. - Cui dado parano - ser es ot r opel ado - r ecomendou Sarah. O carr o desl i zou devagar par a aberm. a da est r ada. - Par em! Par em! - di sse o t i po. - j est , meu Deus!As buzi nas cal aram- se; o ri o recomeou a cor r er. Os carr os passavam j unt odo aut omvel avar i ado, com r ostos col ados cont r a as j anel as; Sarahsent i u- se cor ar sob esses ol har es e escondeu- se. Um homem al t o e magr o,ao vol ant e de um Chevr ol et, debr uou- se e gr i t ou: - Fi l ho da put a!Cami es, cami onetas, aut omvei s, t xi s combandei r as pr etos, carr oas. Decada vez que um carr o passava por el es, Sarah perdi a 19 um pouco decorageme Gi en af ast ava- se um pouco mai s. Depoi s, o desf i l e das carr oas,e Gi en af ast ava- se cada vez mai s, r angendo; por f i m a mancha negr a dos

    pees cobr i u a est r ada. Sar ah ref u gi ou- se na val et a: as mul t i desassust avam- na. Andavamdevagar , comdi f i cul dade, o sof r i ment o dava- l hesum ar de f am l i a: quemquer que ent r asse no gr upo se l hes assemel har i a.Recuso- me. Recuso- me a ser como el es. No a ol havam; evi t avam o carr o semo ol har : j no t i nham ol hos. Um gi gant e de chapu de pal ha com uma mal aem cada mo esbarr ou no car r o~- deu mei a vol t a e r et omou a sua marcha.Est ava pl i do. Uma das mal as t i nha et i quetas de vr i as cor es: Sevi l ha,Cai r o, Ser aj evo, St r esa. - Est mort o de cansao - gr i t ou Sar ah. - Vaicai r . No ca a. El a - segui u com os ol hos o chapu de f i t a ver mel ha ever de que bal anava al egrement e aci ma do mar de chapus. Pegue na mal a e

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    cont i nue sem mi m. Sarah est r emeceu - , sem r esponder : ol hava amul t i do comuma r epugnnci a assust ada. - - - ~ Est a ouvi r - - - o' que eudi go? El a vol t ou- se par a ~ el e: - No ser - poss vel esper ar que um car r opasse e pedi r - l he uma l ata de gasol i na? Depoi s dos pees, vi r o mai saut omvei s. O t i po sor r i u agr essi vament e. - Aconsel ho>- a a t ent ar . - Por queno, por que no havemos de t ent ar? El e cuspi u com despr ezo e dur ant e um -moment o no r espondeu. ' - No os vi u? - pergunt ou el e por f i m. -

    Empur r aram- se uns aos out r os. Como quer que par em? - E se eu encont r argasol i na? - j l he di sse que no encont r a. Ou pensa que vo perder o l ugarna bi cha por sua causa? - Ol hou- a de al t o a bai xo, t r oando: - Se vocf osse boni t a e t i vesse vi nt e anos no di go que no. Sar ah f i ngi u ' noouvi r . I nsi st i u: - E se, - pesar de t udo, eu consegui sse? 20 21Abanou a cabea, t ei moso: - No h nada a f azer . No cont i nuo. Mesmo quear r anj e vi nt e l i t r os; ou at cem. j vi como . Cr uzou os br aos. - Est - a ver - di sse el e com sever i dade. - Tr avar , der r apar , engat ar de vi nt eem vi nt e - metr os. Mudar de vel oci dade cem vezes por hora: i sso que dcabo de um car r o! O vi dr o est ava suj o. El e pegou no l eno e l i mpou- osol i ci t ament e. - No me devi a t er dei xado arr ast ar . - Bast ava t ergasol i na em quant i dade suf i ci ent e. Abanou a cabea sem r esponder ; el at i nha vont ade de o esbof et ear . Cont eve- se e di sse cal mament e: - Ent o? O

    que tenci ona f azer ? - Fi car aqui e esper ar . - Esper ar o qu? El e nor espondeu. El a pegou- l he no br ao e apert ou- o com t oda a f ora: - Sef i car aqui , sabe o que l he acont ece? Os al emes depor t aro t odos oshomens vl i dos. - Cl ar o! E cor t ar o as mos ao garot o e vi ol - l a- o, set i ver em coragem. Tudo i sso so bal el as: el es no so cert ament e to mauscomo di zem. Sarah t i nha a gargant a seca e osl bi os t r emi am- l he. E, quasesem voz: - Est bem. Onde est amos? - A vi nt e e quat r o qui l met r os deG en. "Vi nt e e quat r o qui l met r os! No me vou pr a chorar emf r ent edest e pat i f e! " Ent r ou para o car r o, pegou na - mal a, t or nou a sai r , deu amo a Pabl o. - Vem, Pabl o! - Aonde? - Par a Gi en. - l onge? -Ai nda bast ant e, mas pegar- t e- ei ao col o quando est i ver es cansado. Edepoi s - acrescent ou emar de desaf i o - encont r aremos. cer t ament e boagent e que nos aj ude. O homem pl ant ou- se- l hes na f r ent e, i mpedi ndo- l hes apassagem. Fr anzi a o sobr ol ho e coava a cabea com ar i nqui eto. - Quepretende? - pergunt ou Sarah secament e. El e no sabi a o que quer i a. Ol havaal t ernadament e para Sar ah e Pabl o; pareci a pr ocur ar al guma coi sa. -Ent o? - di sse el e i nsegur o. - Vai - se embora sem se quer me agr adecer? -Obr i gada - di sse Sarah apr essadament e - , obr i gada, O homem t i nhaencont r ado o que pr ocur ava: o, di o. Encol er i zou- se e tornou~seescar l ate. - E os meus duzent os f r ancos? Onde est o? - No l he devo nada -di sse Sarah. - No me pr omet eu duzent os f r ancos? Est a manh? Em Mel un? Na- mi nha gar agem? - Si m' se me l evasse a Gi en: mas dei xou- me no mei o daest r ada com uma cr i ana. - No sou eu que a dei xo, o car r o. Abanou acabea e as vei as das t mporas i nchar am- l he. Os ol hos br i l havam- l he epar eci a cont ent e. Sar ah no t i nha medo del e. - Quer o os meus duzentosf r ancos. El a meteu a mo na car t ei r a. - Tome l cem f r ancos. No l hosdevo, e voc cer t ament e , mai s r i co do que eu. Dou- l hos para que me

    dei xe em paz. El e pegou na not a e meteu- a no bol so; depoi s t ornou a est ender a mo. Est ava vermel ho, com a boca abert a e ol har pensat i vo. Ai nda medeve cemf r ancos. No l he dou nem - mai s umt ost o. Dei xe- me passar. El eno se mexi a, i mpvi do. Na verdade, no quer i a os cem f r ancos. No sabi ao que quer i a: t al vez qui sesse que o garoto l he desse um bei j o ant es depar t i r : a sua l i nguagem t r aduzi a i sso. Avanou para el a e el a per cebeuque l he i a t i r ar a mal a. - - No me t oque. 22 - Ou me d os cemf r ancos ou f i co com a mal a. Ol havam- se ol hos nos ol hos. Er a vi s vel queel e no t i nha vont ade l guma de f i car com a mal a e Sarah est ava t ocansada que de boa vont ade l ha t er i a dado. Mas, present ement e, era

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    preci so r epr esent ar a cenaat ao f i m. Hesi t aram, como se no sel embr assem do respect i vo papel ; depoi s Sar ah di sse: - Exper i ment e l ev- l a!Exper i ment e! El a agar r ou na mal a pel apega e comeou a puxar . O homempodi a t er - l ha arr ancado com um est i co, mas l i mi t ava- se a puxar , sem vero que est ava a f azer ; por seu l ado, Sar ah puxava t ambm; Pabl o comeou achorar . O r ebanho de pees j i a l onge, r ecomeara o desf i l e dosaut omvei s. Sar ah sent i u- se r i d cul a. Puxou com f or a pel a mal a; el e, por

    sua vez, , puxou ai nda mai s e ar r ancou- l ha. Ol hou par a Sarah e para a mal acom espant o; t al vez nunca l ha t i vesse quer i do t i r ar , mas er a um f act o,present ement e: segur ava- a na mo. - Devol va- me a mal a- di sse Sarah. El e nor espondeu; t i nha um ar i di ot a e persi st ent e. A r ai va apoderou- se deSarah, , que se l anou emdi r eco aos aut omvei s: - Agarr em que l adr o!- gr i t ou el a. Um gr ande Bui ck pr eto passou ao p del es. - Vamos - di sse ot i po - , nada de hi st r i as! . Agar r ou- a pel os ombr os, - mas el a consegui ul i ber t ar - se; as pal avr as e os gest os sa am- l he com segur ana epr ec so.Sal t ou para o degr au do - aut omvel e agarr ou- se ao cai xi l ho da j anel a. -Um l adr o! Um l adr o! Um br ao sai u do carr o e empur r ou- a. - Desa, vaimat ar - se. El a comeava a sent i r - se endoi decer : er a agr advel . - Par em-gr i t ou. - Um l adr o! Aj udem- me! - Vamos, desa! Como quer que pare?Chocar i am comi go. A r ai va de Sarah desapareceu subi t ament e. Sal t ou par a o

    cho * t r opeou. O garagi st a l evant ou- a do cho. Pabl o gr i t ava e chorava.Tudo acabado; Sarah t nha vont ade de mor r er . Met eu a mo na car t ei r a et i r ou cem f r ancos. 23 - Tome! Mai s t arde t er ver gonha. O t i po pegouna nota sem l evant ar os ol hos e dei xou a mal a. - Agora, dei xe- nos passar,El e af ast ou- se; Pabl o ai nda estava a chor ar . - No chor es, Pabl o - di sseel a sem mei gui ce. - Acabou - se, vamos embora. - Af ast aram- se, O t i pof i cou a murmurar : - Quem me pagava a gasol i na? O cor t ej o de f ormi gasnegr as cont i nuava a ocupar a est r ada; Sar ah t ent ou apr oxi mar- se del es,mas o bar ul ho das buzi nas at i r ou com el a par a a val et a. - Vem atr s de' l m. Tor ceu o p e parou. - - Sent a- t e. Sent aram- se na erva. Os i nsect osarr ast avam- se sua f r ent e, enor mes, l ent os, mi st er i osos; el e estava decost as, coma i nt i l nota de cem f r ancos na mo; os aut omvei s r angi amcomo l agost as, cant avam como gr i l os. Os homens hav am- se t r ansf ormado emi nsect os. El e t i nha medo. - El e mau - di sse Pabl o. - Mau! Mau! - Ni ngum mau! - di sse Sr ah apai xonadament e. - Ent o porque que roubou - a mal a?- No se di z: por que que roubou a mal a. Porque roubou a mal a. - Ent opor que r oubou a mal a? Est ava com medo - expl i cou el a. De que est amos esper a? - per guntou Pabl o. De que os automvei s passem, par a podermos i rpel a est r ada. Vi nt e e quatr o qui l met r os. O gar ot o pode f azer . oi t o,quando mui t o. Br uscament e subi u a r ampa e comeou a acenar . Os car r os i ampassando por el a e sent a- se vi st a por ol hos escondi dos, por est r anhosol hos de moscas, de f ormi gas. - Que est s a f azer , mam? - Nada - di sseSar ah amargament e. - Tol i ces. Tor nou a descer par a a val et a, pegou na mode Pabl o e ol ha- 1 24 r am par a a est r ada emsi l nci o. A est r ada eas car apaas que por el a se - arr ast avam. Gi en, vi nt e e quat r oqui l met r os. Depoi s de Gi en, Ne~ers, Li moges, Bordus, Hendai a, osconsul ados, pape- l ada, as esper as humi l hant es nas r epar t i es. Ter i a -

    mui t a sor t e se ar r anj asse um comboi o para Li sboa. Em Li sboa, seri a ummi l agr e apanhar bar co para Nova I orque. E em Nova I orque? Gomez est semdi nhei r o, , t al vez vi va com uma mul her ; t al vez sej a a desgr aa e aver gonha t ot al . El e abr i r i a o t el egr ama e di r i a: "Sant o Deus! " Vol t - ar -se- i a par a uma l oi r a enor me, com um ci gar r o ent r e os l bi os gr ossos, edi r - l he- i a: "A mi nha mul her est para chegar , que gr ande desgr aa! " Agorav- o no cai s, os out r os acenamcom l enos; el e no, ol ha par a a escadacom ar car r ancudo. "V, anda" , - pensou el a, "se eu f osse sozi nha' nuncamai s ouvi r i as f al ar de mi m; mas t enho de vi ver para educar o f i l ho que mef i zest e". Os aut omvei s t i nhamdesapar eci do, a est r ada est ava vazi a. Do

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    out r o l ado da rua, havi a campos amarel os e col i nas. Passou um homem debi ci cl et a; est ava pl i do e suava; pedal ava f ur i osament e. Ol hou par a Sar ahdesnort eado e gr i t ou sem parar : - Par i s est em chamas. Bombasi ncendi r i as. - Como? Mas el e j at i ngi r a, os aut omvei s, el a vi u- oagar r ar - se part e t r asei r a de um . Renaul t . Par i s em chamas. Par a quvi ver ? Par a qu pr ot eger est a f r gi l vi da? Par a que el e vaguei e de pa sem pa s, amargo e amedr ont ado?, - par a que ar r ast e dur ant e - mei o scul o a

    mal di o que pesa sobre a sua r aa? Par a que aos vi nt e anos mor r a numaest r ada, met r al hado e com as t r i pas de f or a? Ser s or gu l hoso, sensual emordaz como o t eu pai . E j udeu, como eu. Pegou - l he na mo: - Anda! -Vamos! So horas. A mul t i do i nvadi u a est r ada e os campos, densa, t enaz,i mpl a cvel ; uma i nundao. Nenhum barul ho, al m do r oar chi ant e dassol - as dos sapat os. Sar ah sent u- se angust i ada por um i nst ant e, - t evevont ade def ugi r para os campos; mas cont r ol ou- se, pegou em Pabl o, l evou- oconsi go, dei xou- se i r . O chei r o. O chei r o dos homens, quent e e i ns pi do,de sof r i ment o, amargo, per f umado; o 25 chei r o ant i natur al dosani mai s que pensam. Por ent r e duas nucas aver mel hadas abr i gadas porchapus, el a vi u af astar em- se os l t i mos car r os, as l t i mas esper anas.Pabl o ps- se a r i r e Sarah est r e meceu. - Chi u! di sse el a enver gonhada. -No devemos r i r . Cont i nuava a ri r , sem f azer bar ul ho. - Por que r i s? -

    como nos ent er r os - expl i cou el e. Sar ah, sent i a r ost os e ol hos, di r ei t a, esquerda, mas no t i nha cor agemde ol har para el es. Andavam;obst i navam- se em andar como el a t ei mava em vi ver : l evant avam- se nuvens depoei r a que ca am sobr e el es; cont i nuavam a- - andar . Sar ah, mui t o di r ei t a,de cabea er gui da, ol hava - f i xament e para l onge, ent r e cabeas, emur murava: "No ser ei como el es! " Mas, i nst ant es depoi s, est e cami nharcol ect i vo penet r ou- a, subi u- l he pel as coxas at ao vent r e, sent i u- o bat erdent r o de si como um grande cor ao. O corao de t odos. - El es mat avam-nos, os nazi s, se nos apanhassem? - pergunt ou Pabl o de - r epent e. Chi u! -di sse Sar ah. - No sei . Mat avam t oda est a gent e? - Est cal ado. J t edi sse que no sei . - Ent o vamos a cor r er . Sarah apert ou- l he a mo. - Nocor r as. Fi ca aqui . No nos mat aro. sua esquerda, uma r espi r aospera. H ci nco mi nut os que a ouvi a seml he pr est ar ateno. Agoraapoder ar a- se del a, i nst a l ar a- se- l he nos br nqui os, t or nar a- se a suar espi r ao. Vol t ou- se e vi u uma vel ha de mel enas - ci nzent as e hmi das desuor . Er a uma vel ha da ci dade, pl i da e ol hei r ent a; of egava. Devi a t erv vi do sessent a anos num pt i o de Mont r ouge, nas t r asei r as de uma l oj a deCl i chy; agora, havi am- na abandonado na est r ada; sust i nha con t r a el a umpacot e de f orma al ongada; cada passada, uma queda: t r opeava ora num pora nout r o e a cabea ca a- l he t ambm. 26 "Quem a t er i a aconsel hadoa par t i r , com esta i dade? As pessoas no sero, j suf i ci ent ement ei nf el i zes, par a ai nda pr ocur arem mai s compl i caes?" A bondade subi u- l heao pei t o como l ei t e: aj udar - l heei , pegar - l he- ei no pacot e, na f adi ga, nadesgraa. Per gunt ou t ernament e: - A senhora est sozi nha? A vel ha nemsequer vi r ou a cabea. - Est sozi nha? - pergunt ou Sarah mai s al t o. Avel ha ol hou- a com um ar her mti co. - Posso l evar - l he o embr ul ho -of ereceu Sarah. Esper ou um i nst ant e; ol hava o embr ul ho com

    concupi scnci a. Acr escent ou comuma voz i nsi st ent e: - D- mo, peo- l he:l ev- l o- ei enquant o o garoto puder*andar . - No l he dou o embr ul ho - di ssea vel ha. - Mas a senhor a est exaust a; no chegar ao f i m. A vel ha l anou-l he um ol har r ai voso e deu um passo par a o l ado: - No dou o meu embr ul hoa ni ngum - r espondeu el a. Sarah suspi r ou e cal ou- se. A sua bondade nout i l i zada en chi a- a como um gs. No quer em ser amados. Al gumas cabeast i nham- se vol t ado para el a, corou. No querem ser amados, no est ohabi t uados. - Ai nda - l onge, mam? - Quase t o l onge como h bocado -r espondeu Sar ah, abor r eci da. - Pega- me ao col o, mam. Sar ah encol heu osombr os. "Est a exper i ment ar- me, f i cou com ci mes por eu querer l evar o

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    embrul ho da vel ha. " Tent a andar mai s um bocado. a no posso mai s, mam.Pega- me. - Ai nda no est s cansado, Pabl o- cochi chou- l he sever ament e. -Acabas de sai r do car r o. O gar ot o recomeou, a endar ; Sar ah cami nhava, decabea ergui da, esf or ando- se por no pensar nel e. Aps um moment o,l anou- l he uma ol hadel a e vi u- o chorar . Chorava cal mament e, sem - barul ho,s par a el e; de vez emquando l evava a mo cara para l i mpar asl gr i mas. El a t eve ver gonha, e pensou: "Sou demasi ado dur a. Boa para os

    out r os por orgul ho, dur a para el e que meu. " Ent r egava- se aos out r os,esquec a- se de si , esqueci a- se de que era j udi a; porque era persegui da,evadi a- se numa gr ande car i dade i mpessoal e, nesses moment os, det est avaPabl o, porque el e er a car ne da sua car ne e porque ref l ect i a a sua r aa.Ps a mo na cabea do garot o e pensou: "No t ens cul pa de teres a car ado t eu pai e a raa da t ua me. " Os s i l vos da respi r ao da vel haent r avam- l he nos pul mes. "No t enho o di r ei t o de ser generosa. " Passou -a mal a para a mo esquer da e acocorou- se. - Pe os br aos vol t a do meupescoo - di sse el a al egr e ment e. - Faz- t e l eve. Upa! El e era pesado,r i a- se s gar gal hadas e o sol secava- l he as l gr i mas, el a t or nar a- secomo os out r os, uma ovel ha do r ebanho; l nguas de f ogo l ambi am- l he osbrnqui os de cada vez que respi r ava; uma dor aguda e f al sa ser r ava- l he oombro; uma f adi ga, que no era desej ada nem gener osa t ocava t ambor no seu

    pei t o. Uma f adi ga de me e de j udi a, a sua f adi ga, o seu dest i no. Aesperana apagou- se: nunca mai s chegar i a a Gi en. Nem el a, nem ni ngum.Ni ngum t i nha esper ana, nem a vel ha, nem as duas nucas encha pel adas,nem o casal que empur r ava um car r i nho depneus f urados. Mas est amosmet i dos na - mul t i do e a mul t i do avana e ns avanamos; somos a- penaspat as dest e i nt ermi nvel ver me. Par a qu andar se a esper ana est mor t a?Para qu vi ver? Quando comearam a gr i t ar , quase no se sur preendeu;par ou enquant o t odos debandavam, sal t avam a val et a e se dei t avam nosf ossos. Dei xou cai r a mal a e f i cou no mei o da est r ada, di r ei t a, sozi nha eorgul hosa; ouvi a os est r ondos do cu, ol hava a sua som br a j l onga,aper t ava Pabl o cont r a si , os ouvi dos encher am- se- l he de est r pi t os; por -moment os, f oi a mort e. Mas o barul ho di mi nui u, vi u que os g r nos sesumi am nas guas do cu, as pessoas sa amdos f ossos, era pr eci sor ecomear a vi ver , r ecomear a andar. 28 - Bem vi st as as coi sas -di sse. Ri t chi e - , cor r eu t udo bem: of ereceu- nos o al moo e avanou- t e cemdl ares. _ Si m, de f acto - di sse Gomez. Encont r avam- se no rs- do- cho doModem Ar t Museum, na sal a de exposi es t emporr i as. Gomez est ava decost as par a os quadr os e par a Ri t chi e: t i nha a t esta apoi ada na j anel a eol hava par a o asf al t o e par a a r l va do j ar di nzi nho. Di sse, sem sevol t ar : - Agora t al vez. possa pensar em al go mai s do que a mi nhasobr evi vnci a. - Deves est ar mui t o cont ent e - di sse R t chi e bondosament e.Er a um convi t e di scr eto: "Encont r ast e um empr ego, t udo est pt i mo nomel hor dos mundos; convm que mani f est es um ent usi asmo const r ut i vo. "Gomez ol hou de sosl ai o para Ri t ch e: "Con t ent e? Tu que est s cont ent e,porque j no - me - t ers sempr e t ua vol t a. " Sent i a- se to i ngr atoquant o poss vel . - Cont ent e? - di sse el e. - Vamos a ver . A expr esso deRi t chi e endur eceu l i gei r ament e: - No est s cont ent e? - Vamos a ver -

    r epet i u Gomez com ar t r oci st a. Tor nou a apoi ar a test a na j anel a, ol houpara a r el va comum mi st o de desej o e r epul sa. At est a manh, gr aas aDeus, as cor es t i nham- no dei xado t r anqui l o; ent err ara as r ecordaes do -t empo em que vagueava pel as r uas de Par i s, al uci nado, doi do de or gul hoperant e o dest i no, e repet i ndo cem vezes por di a: sou pi nt or. Mas Ramont i nha- l he dado di nhei r o, - Gomez beber a Chi l i Whi t e Wi ne, f al ar a dePi casso pel a pr i mei r a vez em t r s anos. Ramon di sser a: "Depoi s dePi casso, no vej o o que um pi nt or possa f azer de mel hor. " Gomez sor r i r a er espondera: "Eu sei " , uma chama seca r eacender a- se- l he no pei t o. sa dado rest aur ant e, f oi como se o t i vessem operado a uma cat arata: t odas - as

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    cores se t i nham t ornado vi s vei s ao mesmo t empo e f est ej avam- no, como em29, no bai l e de mscar as, no Carnaval , a Fant asi a; as pessoas e osobj ect os havi am- se congest i onado; um vest i do l i l s t ornar a- se 29arr oxeado, a port a ver mel ha de um dr ugst or e t or nara- se escar l at e, ascores pal pi t avam vi ol ent ament e nos obj ectos, como pul sos desordenados;eram pont adas, vi br aes que i nchavam at expl oso; os obj ect os i amdest r ui r - se ou cai r apopl ct i cos, e t udo gr i t ava, em' un ssono; er a uma

    f ei r a. Gomez encol hera os ombr os: devol vi am - l he as cores quando el e j no acredi t ava no dest i no; sei mui t o bem o que pr eci so f azer , mas out r oo f ar . Agar r ar a- seco br ao de Ri t chi e; apr essar a o passo, de ol har f i xo,mas as cores cont i nua vam a assal t - l o, r ebent avam- l he nos ol hos comoampol as de sangue e f el . Ri t ch e ar r ast ara- o at ao museu e,pr esent ement e, est ava l e, do out r o l ado da j anel a, exi st i a est e verde,est e verde natural , i nacabado, amb guo, uma secreo or gni ca, semel hant eao mel , ao l ei t e cru; est e ver de a of er ecer - se; at r a - l o- ei , l ev- l o- ei i ncandescnci a. . . Que f ar ei del e? j no pi nt o. Suspi r ou: um cr t i co dear t e no pago para se ocupar da l oucura da erva, mas si m para pensar nopensament o dos out r os. At r s del e, as cor es dos, out r os est endi am- se sobr eas t el as: ext r act os, essnci as, pensament os. Essas havi am t i do a sor t ede se concr et i zar em; t nham- nas i nchado, sopr ado, l evado ao ext r emo

    l i mi t e, e cumpr i amo seu dest i no; agora bast ava conserv- l as nos museus.As cor es dos out r os; pr esent e ment e er a t udo o que possu a. - Vamos -di sse el e - , t enho de ganhar est es cem dl ar es. Vol t ou- se: ci nquent at el as de Mondr i an nas par edes br ancas dest a cl ni ca: pi nt ur a est er i l i zadanuma sal a cl i mat i zada; nada de suspei t o; est ava- se ao abr i go dosmi cr bi os e das pai xes. Apr oxi mou- se de um quadr o e ol hou- oatent ament e. Ri t chi e auscul t ava o rost o de Gomez e sor r i aanteci padament e. - No me di z nada - murmurou Gomez. Ri t chi e par ou desorr i r , mas most r ou- se mui t o compr eensi vo. - Cl ar o - di sse el e, dandopr ovas de t act o. - No vem de repent e, t ens de t e adapt ar. - Adapt ar - me?- r epet i u Gomez i r r i t ado. - Mas no a i st o. Ri t chi e vol t ou- se par a oquadr o. Uma ver t i cal negr a cr uzada por doi s t r aos - hor i zont ai ssobr essa a de um f undo ci nzent o; um di sco azul coroava ext r emi dadeesquerda do t r ao superi or . 30 - Pensei que gost asses de Mondr i an. -Tmbm eu - di sse Gomez. Par ar am em f r ent e de out r a t el a; Gomez ol hava- a et ent ava l embr ar - se. - mesmo necessr i o que escr evas sobr e i st o? -per gunt ou Ri t chi e i nqui et o. - Necessr i o, no. Mas Ramon quer que o meupr i mei r o ar t i go l he sej a dedi cado. Par ece- me que el e acha que d um ar deseri edade. - Tr at a de ser pr udent e - di sse R t chi e. - No comeces comatr i t os. Por que no? - pergunt ou Gomez agr essi vo. r I t chi e sor r i u com umai r oni a benvol a: - V- se que no conheces o pbl i co amer i cano. Sobr et udo, pr eci so no o assust ar. Comea por f azer nome: di z coi sas si mpl es sensat as, e di - l as de um modo agr advel . E se t i ver es mesmo de at acaral gum, que no sej a Mondr i an: o nosso Deus. - Evi dentement e -concor dou Gomez - , no l evanta pr obl emas. Ri t chi e abanou a cabea e deuvr i os est al os com a l ngua, em si nal de desapr ovao. . - Levant amui t ssi mos - di sse. Si m, mas. no pr obl emas i mport ant es. Ah! - cont i nuou

    Ri t chi e , r ef er es- t e a pr obl emas sobr e a sexual i dade, ou o sent i do davi da, ou a pobr eza? cer t o que est udast e na Al emanha. A Gr ndl i cbkei t ,hem? - di sse el e bat en do- l he no ombr o. - No achas que est - umpoucof ora de moda? Gomez no r espondeu. - A mi nha opi ni o - prossegui u R t chi e- que a art e no f ei t a para - l evant ar probl emas pert ur badores.I magi na que al gum me pergunta se eu desej ei a mi nha me: p- l o- i a nar ua, a no ser que se t r at asse de um i nvest i gador ci ent f i co. Nest ascondi es, no vej o por que se ho- de aut or i zar os pi nt or es a i nt er r ogat -me publ i camente sobre os meus compl exos. Sou como t oda a gente -acrescent ou conci l i ador - , t enho os meus pr obl emas. S que, no di a 31

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    em que el es me angust i am, ' no, vou ao - museu: t el ef ono o psi canal i st a.Cada um no seu l ugar : o psi canal i st a i nsp r a- me conf i ana porque comeoupor se f azer anal i sar . Enquant o os pi nt ores no f i zeremo mesmo, podemdi zer o que qui ser em, mas no l hes pedi r ei que me ponham per ant e mi mprpr i o. - Que l hes pedes? - pergunt ou Gomez di st r ai dament e.I nspecci onava a tel a at ent ament e. Pensava: " gua l mpi da. " - Peo- l hesi nocnci a - di sse Ri t chi e. - Esta t el a. . . - Ent o? - ser f i ca cont i nuou

    el e em xt ase. - Ns, os Amer i canos, queremos, a pi nt ur a para as pessoasf el i zes ou que t ent am s- l o. - No sou f el i z - r et or qui u Gomez - , e ser i aumpat i f e se t ent asse s- l o, quando t odos os meus companhei r os est opr esos ou f or am f uzi l ados. A l ngua de Ri t chi e est al ou out r a vez: - Meuvel ho - di sse el e - , compreendo mui t o bem as t uas i nqui etaes de homem.O f asci smo, a der r ot a dos Al i ados, a Espanha, a t ua mul her , o t eu f i l ho:so pr obl emas! Mas necessr i o, por moment os, que nos el evemos aci ma det udo i sso. - - Nem por um i nst ant e! - r epl i cou Gomez. - Nem por umi nst ant e! Ri t chi e cor ou l i gei r ament e. - Que pi nt avas ent o? - per gunt ouel e, magoado. - Gr e ves? Car ni f i ci nas? Capi t al i st as de car t ol a? Sol dadosat i r ando sobr e o povo? Gomez sorr i u. - Sabes, nunca acr edi t ei mui t o naart e revol uci onri a. E, pr esent ement e, no acredi t o mesmo nada. - Si m, eent o? - di sse Ri t chi e. - Est amos de acor do. - Tal vez; - s que agor a

    per gunt o a mi m pr pr i o se no dei xei de acr edi t ar mesmo na ar t e. - E nar evol uo? - pergunt ou Ri t ch e. Gomez no r espondeu. Ri t chi e sor r i unovament e: 32 - Vocs, os i nt el ectuai s eur opeus, di ver t em- me: t mum compl exo de i nf er i ori dade r el at i vament e aco. Gomez v r ou- sebr uscament e e agar r ou Ri t chi e pel o br ao: - Vem! J vi o suf i ci ent e.Conheo Mondr i an de cor , posso per f ei t ament e engendr ar um art i go.Subamos. - Aonde? - Ao pr i mei r o andar , quero ver os out r os. - Quai sout r os? At r avessaram as t r s sal as de exposi o. Gomez empur r ava Ri t chi e sua f r ent e sem ol har par a nada. - Quai s out r os? - r epet i u Ri t chi e demau humor. - Todos os out r os. Kl ee, Rouaul t , Pi casso: os que l evant amprobl emas i mpor t ant es. Est avam ao p da escada. Gomez par ou. Ol hou paraRi t chi e, per pl exo, e di sse, quase t i mi dament e: - So os pri mei r os quadr osque vej o desde tr i nt a e sei s! - Desde t r i nt a e sei s! - r epet i u Ri t ch eestupef act o. - Foi nesse ano que par t i par a Espanha. Nessa al t ur a f azi agravur as em cobr e. Houve uma que no t i ve t empo de acabar , f i cou em ci mada mi nha mesa. - Desde t r i nt a e sei s! E em Madr d? E as t el as do Pr ado? -Encai xot adas, escondi das, di sper sas. Ri t chi e abanou a cabea: - Deves tersof r i do mui t o. Gomez sor r i u de um modo gr ossei r o: - No. O espant o deRi t chi e mi st ur ava- se de censura: - Pessoal ment e - di sse - - nunca t oqueinum pi ncel , mas t enho de i r a t odas as exposi es: uma necess i dade.Como pode um pi nt or est ar quat r o anos sem ver pi nt ur a? - Esper a -r espondeu Gomez - , espera um pouco! Daqui a um i nst ant e saberei se souai nda um pi nt or . Subi r am a escada, ent r aram numa sal a. Na parede da esquerda est ava um Rouaul t ver mel ho e azul . Gomez ps- se em f r ent e doquadr o. 33 - umr ei mago- di sse Ri t chi e. Gomez no r espondeu. - Euno apr eci o mui t o Rouaul t - cont i nuou Ri t chi e. - Mas a t i deve- t e agr adar .- Cal a- t e, por f avor ! Ol hou ai nda um i nst ant e, depoi s bai xou a cabea: -

    Vamo- nos embora. - Se gost as de Rouaul t - di sse Ri t chi e - , h um, aof undo, que me parece mui t o mai s bel o. - No val e a pena - r epl i cou Gomez.- Tor nei - me cego. Ri t ch e ol hou para el e, ent r eabr i u a boca e cal ou- se.Gomez encol heu os ombros. - Era pr eci so no t er at i r ado sobr e os homens.Descer am a escada. Ri t chi e mui t o di r ei t o, com ar de apr eci a dor . "El eacha- me suspei t o", pensou Gomez. Ri t chi e er a um anj o, bem ent endi do;l i a- se nos seus ol hos a obst i nao dos anj os; os seus bi savs, que tambmer am anj os, t i nham quei mado f ei t i cei r os nas praas de Bost on. "Transpi r o,sou pobr e, t enho pensament os equ vocos, pensament os eur opeus; os bel os -anj os da Amr i ca aca baro por me quei mar . L l onge os campos de

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    concent r ao, aqui a f oguei r a: r est a- me escol her. " Ti nham chegado aobal co de venda, ao p da ent r ada. Gomez f ol heou di st r ai dament e um l bumde r epr odues. A ar t e opt i mi st a. _Co nsegui mos f azer f otos - magn f i cas- di sse Ri t chi e. - Ol h~ para est as cor es: um ver dadei r o quadr o. Umsol dado mort o, uma mul her a gr i t ar : r ef l exos sobr e um cor ao t r anqui l o.A ar t e opt i mi st a; os sof r i ment os j ust i f i cam- se, poi s ser vem de or i gem bel eza. No est ou t r anqui l o, no quer o j ust i f i car os sof r i ment os que vi .

    Par i s. . . Vol t ou- se br uscament e par a Ri t chi e. - Se a pi nt ur a no f or t udo, uma br i ncadei r a. - Agr ada- t e? Gomez f echou vi ol ent ament e o l bum: - nose pode pi nt ar o Mal - 34 A desconf i ana t i nha gel ado o ol har deRi t ch e; f i t ava Gomez com um ar pr ovi nci ano. De r epent e r i u- se aber t ament ee apont ou- l he um dedo para as cost el as: - Compr eendo, ami go! Quat r o anosde guerr a: vai ser pr eci sa t oda uma reeducao. - No val e a pena - di sseGomez. - Est ou pr ont o par a ser cr t i co. Fez- se um si l nci o; depoi sRi t chi e f al ou apr essadament e: ' Sabes que h um ci nema na cave?Nunca l pus os ps. Proj ect am cl ssi cos e document r i os. - Quer es l i r ? - Pr eci so de f i car por aqui - j ust f i cou- se Ri t chi e. - Tenho umencont r o aqui pert o, s ci nco horas. Apr xi maram- se de um pai nel demadei r a l aqueada e l eram o pr ogr ama: - Caravana para o Oest e, j o vit r s vezes - di sse R t chi e. Mas' ext r aco dos di amant es no Transval

    t al vez sej a di ver t i do. Tu vens? - acrescent ou sem ent usi asmo. - No gost ode di amant es - r espondeu Gomez. Ri t chi e pareceu al i vi ado. Sorr i uabert ament e, de l bi os sal i ent es, e deu- l he uma pal mada no ombr o. - Seeyou agai n - despedi u- , se em i ngl s, como se r et omasse ao mesmo t empo asua l ngua natal e a sua l i berdade. - " omoment o de l he agr adecer " ,pensou Gomez. Mas no consegui u di zer uma pal avra. Apert ou- l he a mo emsi l nci o. r i t chi e o pol vo; mi l vent osas o sugavam, o suor br ot ava port odos os por os e encharcou- l he de uma s vez a cami sa, passavam- l he umal mi na i ncandescent e pel os ol hos. Que i mport a! Que i m port a! Est vacont ent e porque t i nha sa do do museu: o cal or era um catacl i smo mas erar eal . Tambemera real o sel vagemcu ndi o que o ci mo dos arr anha- cusaf ast ava mai s do que t odos os cus da Eur opa; Gomez andava por ent r ecasas de t i j ol os, que er amr eai s, demasi ado f ei as par a que al gumpensasse em pi nt - l as, e aquel e edi f ci o al t o que se assemel hava, como osbarcos de l aude I , or r ai n, . 35 a uma l eve pi ncel ada sobr e uma t el a,era r eal , enquant o os barcos de Cl aude Lorr ai n no eramr eai s: os quadr osso sonhos. Pensou nessa vi l a da Si er r a Madr e onde se t i nham bat i do demanh noi t e: na est r ada o ver mel ho er a real . Nunca mai s pi nt ar i a,deci di u comum sper o pr azer . Dest e l ado do vi dr o, pr eci sament e aqui ,aqui i esmagado - por est e espesso f orno, nest e passei o escal dant e; aver dade const r u a al t os mur os sua vol t a, t apava t odas as f en das dohor i zont e; no havi a nada no mundo al m dest e cal or e dest as pedr as, ano ser os sonhos. Vol t ou no St i ma' Aveni da; a - mul t i do avanava como asmar s, cada vaga t r azi a na cr i st a um f ei xe de ol hos bri l hant es e mor t os,o passei o est r emeci a, as cor es superaqueci das sal pi cavam- no, a mul t i dof umegava como um t r apo hmi do ao sol ; sor r i sos e ol hos, not t o gr i n i s asi n, ol hos vagos ou f i r mes, r pi dos ou l ent os, t odos mor t os. Tudo l he

    r eben t ou nas mos, a al egr i a apagou- se; t i nham ol hos como nos quadr os.Saber o que Par i s f oi t omada? Ser que pensam? Andavam t odos com o mesmopasso apr essado, a espuma branca dos ol har es r oa va- o de passagem. "Noso r eai s" , pensou el e, " so os ssi as. Onde est aro os r eai s? Noi mpor t a onde, mas aqui no est o. Ni ngum aqui est a sr i o; eu no mai sdo que os out r os" . O ssi a de Gomez t i nha apanhado o aut ocar r o, l i do oj or nal , sor r i do a Ramon, f al ado de Pi casso, obser vado os Mondr i an. I acami nhando por Par i s; a Rue Royal est desert a, a Pl ace de I a Concordeest 5~ser t a, uma bandei r a al em f oi i ada na Cmara dos Deputados, umr egi ment o de SS passa sob o Ar co do Tr i unf o, o cu est coal hado de

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    avi es. As paredes de t i j ol os ca r am, a mul t i do r ecol heu- se, Gomezandava sozi nho por Pari s. Em Par i s, na verdade, na ni ca Verdade; nosangue, no di o, na de- ~- r , >t a e na mort e. "Pat f es- de Fr anceses! " ,murmurou cer r ando os punhos. "No souberam aguentar - se, f ugi r am comocoel hos, j sabi a, eu sabi a que est avam per di dos. " Vi r ou di r ei t a,meteu- se pel a 56 a Rua, par ou em f r ent < e de um bar - r est aur ant ef r ancs: I a Pet i t e Coquet t e. Ol hou para a ent r ada vermel ha e verde,

    hesi t ou um i nst ant e, depoi s empur r ou a port a: quer i a ver a car a que osf r anceses t i nham. 36 ~ No so f amosas as not ci as, poi s no? -pergunt ou Gomez. L dent r o est ava escur o- - e quase f r i o; as cor t i nasest avamcorr i das, os candeei r os acesos. Gomez f i cou cont ent e porencont r ar l uz ar t i f i ci al . A sal a do f undo, mer gul hada na sombr a e nosi l nci o, er a o r est aur ant e. Um t i po enor me, de l unet as e cabel o cor t ado escovi nha, est ava - no bar ; de vez em quando a cabea ca a- l he para af r ent e, mas el e end r ei t ava- a l ogo, com di gni dade. Gomez- sent ou- se numt ambor et e do bar . Conheci a vagament e o barman. - Um u sque dupl o- pedi u emf r ancs. , - No t emum j ornal de hoj e? O barman t i r ou de uma gaveta um NewYor k Ti mes e deu - l ho. Era um j ovem l ouro de ar t r i st e e - pont ual ;poder i a parecer de Li l l e se no t i vesse sot aque de Borgonha. Gomez f i ngi uque est ava a l er o Ti mes e l evantou subi t ament e a cabea. O bar man ol hou-

    o com um ar cansado. O barman i ncl i nou a cabea. - Par i s f oi t omada -di sse Gomez. O bar man emi t i u um som mel ancl i co, encheu uma medi da deu sque e despej ou- a para um copo gr ande; r ecomeou a operao e ps ocopo grande di ante de Gomez. O amer i cano de l unet as ol hou por umi nst ant epar a el es com ol hos v t r eos, depoi s a cabea i nel i nou- se- l he -l ent ament e, como se os est i vesse a cumpr i ment ar . - Soda? - Si m. Gomezr ecomeou sem se desencoraj ar . - Par ece- me que a Fr ana est perdi da. Obar man suspi r ou sem r esponder e Gomez pensou, com uma al egr i a cr uel , queest ava demasi ado i nf el i z par a poder f al ar . I nsi s t i u, quase t er nament e. -No acr edi t a? O barman dei t ou a gua gasosa no copo de Gomez. Gomez nodei xava de ol har para est a cara l unar e l amur i ent a. E se, no 37moment o exacto, l he di ssesse com voz al t erada: "O que f ez voc pel aEspanha? Poi s bem, a vossa vez. " O barman l evant ou os ol hos e o dedo;subi t ament e, comuma voz gr ossa, l ent a e agr advel , um pouco nasal , comum f ort e sot aque da. Bor gonha, di sse: - Tudo se paga. E Gomez, t r oci st a: -Si m - di sse el e t udo se paga. O bar man passeou o dedo por ci ma da cabeade Gomez: um comet a anunci ando o f i m do mundo. No t i nha, de modo al gum,um ar i nf el i z. - A Frana - pr ossegui u el e - vai saber o que cust a abandonar os al i ados natur ai s. "Que quer i sso di zer?" , pensou Gomezespant ado. O t r i unf o i nsol ent e e r ancor oso que el e esper ava que l hebr i l hasse no rost o acabava de o surpreender nos ol hos do barman. Comeouprudent ement e, para t actear : - Quando a Checosl ovqui a. . . O barmanencol heu os ombr os e nt err ompeu- o: - A Checosl ovqui a! - r etorqui u comdesprezo. - Ent o? - pergunt ou Gomez. - Voc dei xou t r anspar ecer qual quercoi sa. O bar man sor r i a: - Senhor - di sse el e - , no rei nado de Lu s, obem- Amado, a Fr ana j no t i nha mai s nenhum err o para comet er . Ah! -excl amou Gomez - , voc canadi ano? Sou de Mont r eal - expl i cou o bar man.

    - J ' o devi a ter di t o. Gomez ps o j or nal no bal co. Depoi s per gunt ou: -Nunca c vm f r anceses? O bar man apontou par a t r s de Gomez e est evol t ou- se: sen tado a uma mesa cober t a comuma t oal ha br anca, umvel hosonhava em f r ent e de um j or nal . Um ver dadei r o f r ancs, de car a r edonda,sul cada, enr ugada, de ol hos br i l hant es e dur os e com um bi gode ci nzent o.Ao p da bel a f ace amer i cana do homem de l u- netas, pare- 38 cl i ent e.c a f ei t o de um - mat er i al pobr e. Um ver dadei r o f r ancs, com um ver dadei r odesesper o no cor ao. - boa! - di sse el e - , no o t i nha vi st o. - Est esenhor de Roanne - expl i cou o bar man. - um Gomez bebeu o u sque deum gol e e sal t ou para o cho. - Que f ez pel a Espanha? - quase gr i t ou. O

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    vel ho ol hou- o espant ado. Gomez pl ant ou- se di ant e del e e cont empl ou essevel ho r ost o avi dament e. - f r ancs? - Sou - r espondeu o vel ho. - Pago- l heum copo - di sse Gomez. - Obr i gado. No al t ur a para i sso. A cr ueza dovel ho f ez bater o cor ao de Gomez. - Por causa di sso? - per guntoupousando o dedo no t t ul o do j or nal . Por causa' di sso. Por i sso l heof ereo um copo - di sse Gomez. - Vi vi dez anos em Fr ana, a mi nha mul here o meu f i l ho ai nda l est o. U sque? - Sem soda, ent o. - Um u sque sem

    soda - e out r o com- pedi u Gomez. Cal aram- se. O amer i cano de l unetasvol t ara- se par a el es e ol ha va- os emsi l nci o. Br uscament e o vel hoper gunt ou: - No i t al i ano' , esper o? Gomez sor r i u: - No - r espondeu. -No, no, sou i t al i ano. - Os I t al i anos so uns pat i f es - di sse o vel ho. -E os Fr anceses? Gomez cont i nuou, com voz doce: - Tem l al gum? - EmPar i s, no. S t enho os - meus sobr i nhos em Moul i ns. Ol hou para Gomezat ent ament e: - V- se bem que no est c h mui t o t empo. - E voc? -per guntou Gomez. 39 - Est abel eci - me c em novent a e set e. al gumacoi sa. Acr escent ou: - No gost o del es. - Por que f i ca? O vel ho encol heu osombr os: - Ganho di nhei r o. - comerci ant e? - Barbei r o. O meuest abel eci ment o - pert o daqui . De t r s em t r s anos i a doi s meses aFrana. Devi a l i r est e ano, mas acont eceu i st o. - Poi s f oi - di sse Gomez.- Desde est a manh - r etomou o vel ho - , j f oram quarent a cl i ent es

    mi nha bar bear i a. H di as assi m. E quer i am t udo: bar ba, cor t e, l avagemdacabea, massagens el ct r i cas. Pensa que me f al aram da, mi nha t er r a? Umaova! Li am os j ornai s sem uma pal avr a e eu i a vendo os t t ul os enquant o osbarbeava. Havi a ent r e el es doi s cl i ent es de vi nt e anos, e nada di sser am.Se no os cort ei , f oi por que t i ver am sort e: a mo t r emi a- me. Fi nal ment edei xei o t r abal ho e vi m at aqui . - Est o~se nas t i nt as - di sse Gomez. -No tant o por se est arem nas t i ntas, que no sabem o que ho- dedi zer . Par i s uma pal avr a que l hes di z al guma coi sa. Por i sso no f al am:j ust amente porque os t oca. So ass i m. Gomez l embrava- se da mul t i do daSt i ma Aveni da. - Todos esses t i pos que andam pel as r uas, acr edi t a quepen samem Par i s? - pergunt ou Gomez. - De cer t o modo, si m. Mas, sabe, noo f azemcomo ns. Par a o Amer i cano, pensar em qual quer coi saque oaborr ea con si st e em f azer t udo o que pode para no pensar ni sso. Obarman t r ouxe copos. O vel ho pegou no del e e l evant ou- o. Bom- di sse - , sua sade. sua: - - br i ndou Gomez. O vel ho sor r i u t r i st ement e. - Nosabemos ao cer t o o que desej ar , hem? Reconsi der ou, aps uma br ever ef l exo: 40 - Si m: - bebo pel a Fr ana. Apesar de t udo, pel a Fr ana.- Pl a ent r ada dos Est ados Uni dos na guerr a. O vel ho f ez um br evesor r i so. - Pode esper ar! Gomez esvazi ou o copo e vi r ou- se para o barman.- A mesma coi sa. Ti nha necessi dade de beber . Ai nda h pouco pensava ser oni co a pr eocupar - se com a Fr ana, a queda de Par i s er a consi go: umadesgr aa par a a Espanha e ao mesmo t empo uma puni o par a Fr ana. Agorasabi a que el a est ava tambm no bar , er r ando sob uma f orma vaga eabst r act a - at r avs de sei s mi l hes de al mas. Er a quase i nsuport vel :t i nham- se- l he rompi do os l aos com, Par i s, no er a mai s do que umi mi gr ant e r ecm- chegado, at r avessado, como t ant os out r os, por umaobsesso col ect i va. - No sei - di sse o vel ho - se me vai compr eender ,

    mas h - mai s de quar enta anos que c vi vo, e s est a manh que me sent iver dadei r ament e no est r angei r o. Conheo- os e no guardo f l u soes,gar ant o- l he. Mas pensei que, pel o menos, haver i a um que t i vesse umapal avr a de conf or t o para me di zer . Os l bi os comear ama t r emer- l he,r epet i u: - Cl i ent es de vi nt e anos. " um f r ancs" , pensou Gomez. "- Umdesses que nos chama vam Fr ent e Cr apul ar " . Mas ' no consegui a sent i r - sesat i sf ei t o: " demasi ado vel ho", deci di u. O vel ho ol hava vagament e edi sse, sem acredi t ar mui t o: - Repar e: t al vez por di scri o. - Hum! -f ez Gomez. - poss vel - cont i nuou o vel ho. - mui t o poss vel . Com el est udo poss vel . Prossegui u no mesmo t om: - Ti nha uma casa em Roanne.

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    Cont ava ret i r ar - me para l . Agora - penso que morr o c: i sso mede aper spect i va. "Natur al ment e", pensou Gomez, "natur al ment e, vai s morr erc". Vol t ou a cabea; sent i a vont ade de se i r embor a. Mas r econ-bal eando. 41 si derou, corou br uscament e, f i t ou o vel ho nos ol hos eper gunt ou com voz est r i dent e: Er a pel a i nt erveno em Espanha? Quali nterveno? - per guntou por sua vez o vel ho, espantado. Ol hou par a Gomezi nt eressadament e: - Voc espanhol ? - Sou. - Tambm t eve mui t as

    desgraas, voc. - Os Fr anceses no nos - aj udaram mui t o - di sse Gomez comvoz neut r a. - No. E vej a: os Amer i canos t ambm no nos aj udam. As pessoase os pa ses so a mesma coi sa: cada um por s i . - Si m - conf i r mou Gomez - ,cada um - por s i . No l evant aramo dedo para def ender Barcel ona; Barcel onacai u; Par i s cai u e ns est amos os doi s no ex l i o, nas mesmas condi es. Oempregado - pousou os doi s copos na mesa; el es pegaram- l hes ao mesmot empo, sem dei xar em de se ol har. - Bebo pel a Espanha - decl arou o vel ho.Gomez hesi t ou, depoi s di sse ent r e dent es: - Bebo pel a l i ber t ao daFrana. Cal ar am- se. Er a i ncr vel : doi s f ant oches vel hos e par t i dos, nof undo de um bar de Nova I orque. Bebi am pel a Espanha, pel a Frana.Desgr aa! O vel ho dobr ou cui dadosament e o j ornal e l evant ou- se: - Tenhode vol t ar barbear i a. A l t i ma rodada mi nha. - No - di sse Gomez. -No, no. Barman, eu pago t udo. - Ent o obr i gado. O vel ho chegou por t a,

    Gomez vi u que el e coxeava. "Pobr e vel ho", pensou. - A - mesma coi sa- pedi uao barman. O amer i cano desceu do t amborete e di r i gi u- se par a el e, -Est ou bbedo - di sse el e, - Ah! - excl amou Gomez. 42 - No t i nhanot ado? - No, i magi ne. - E sabe porque est ou bbedo? - pergunt ou. -Est ou- me nas t i nt as. O amer i cano ar r otou r ui dosament e e cai u sobr e acadei r a que o vel ho acabara de dei xar . - Por que os " hunos" t omaramPar i s.A expr esso t or nou- se- l he t r i st e e acrescent ou: a pi or not ci a desde1927. Em 1927, o . que acont eceu? Ps um dedo naboca. - Chi u - di sse el e.- Pessoal . Pousou a cabea na mesa e pareceu ador mecer . O bar man dei xou obal co e apr ox mou- se de Gomez: - Tome cont a del e doi s mi nut os - pedi u. -Est na hor a: pr eci so de l he i r buscar um t xi . Quem est e ti po? -perguntou Gomez. Trabal ha na Wal l St r eet . ver dade que se embebedoupor que Par i s f oi t omada? Se o di sse, deve ser ver dade. S que, na semanapassada, f oi por causa dos acont eci ment os da Ar gent i na e, na semana ant er i or , t i nha si do por causa da cat st r of e de Sal t Lake Ci t y. Embebeda- set odos os sbados, mas nunca semr azo. - demasi ado sens vel - concl ui uGomez. - O barman sai u rapi damente. Gomez ps a cabea ent r e as mos eol hou para a parede; vi a- se com ni t i dez a gr avur a que t i nha dei xado emci ma da mesa. Ser i a necessr i a uma, mancha escura esquer da paraequi l i br ar . Ar bust os. Revi u a gr avur a, a mesa, a gr ande j anel a e comeoua chorar. Domi ngo, 16 de j unho. - Al i ! Al i ! Mesmo por ci ma das rvores.Mat , hi eu dor mi a e a guerr a est ava perdi da. Per di da at ao 43 f undodo seu sono. A voz acor dou- o sobr essal t ado: dei t ara- se de cost as. , deol hos f echados, com os br aos col ados ao cor po, e t i nha perdi do a guerr a.No se l embrava mui t o bem do s t i o onde se encont r ava, mas sabi a queper dera a guer r a. - di r ei t a! - gr i t ou Char l ot vi vament e. - Mesmo porci ma das r vor es, como t e di sse! No t ens ol hos na cara? Mathi eu ouvi a a

    voz l ent a de Nl pgert . - Ah! , ah! Assi m! - excl amou Ni ppert . - Assi m! Ondeest amos? Na erva. Oi t o ci t adi nos no campo, oi t o ci vi s em uni f orme,enr ol ados doi s a doi s em cobert ores do exrci t o e dei t ados no mei o de umpomar . Per demos a guer r a ; conf i aram- no- l a e ns perdemo- l a. Ti nha- se-l hes escapado- e f ora perder- se al gur es no Nort e, desgr aadament e. - Ah!Assi m! Assi m! Mathi eu abr i u os ol hos e vi u o cu; est ava ci nzent o- prol a,sem nuvens, sem prof undi dade, apenas como uma ausnci a. Nel e se f ormaval ent ament e uma manh, uma got a de l uz que i a cai r sobre a t er r a e i nund-l a de ouro. Os Al emes est o em Pari s e ns perdemos a guer r a. Um comeo,uma manh. A pr i mei r a manh do mundo, como t odas as manhs: t udo est ava

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    por f azer , t odo o f utur o est ava no cu. Ti r ou uma mo debai xo do cobert ore coou uma or el ha: o f ut ur o dos out r os. Em Par i s, os Al emes l evant avam os ol hos par a o cu, l i am nel e a vi t r i a e o f ut ur o. Eu j no t enhof ut ur o. A manh acet i nada acar i ci ava- l he o r ost o; mas el e sent i a cont r asi , di r ei t a, o cal or de Ni pper t ; esquer da, na coxa, o cal or deCharl ot . Ai nda mui t os anospara vi ver : anos para matar . Est e di at r i unf ant e que se anunci ava, vent o br ando de manh nos choupos, ao mei o-

    di a sol nas searas, tar de odor de ter r a aqueci da; noi t e, os Al emesf aro de ns pr i si onei r os. O barul ho aument ou, el e pde ver o avi o nosol - nascent e. - um macar oni - di sse Char l ot . Vozes sonol ent as l anar ampragas ao ar . Ti nham- se habi t uado escol t a compl acente dos avi esal emes, a uma guerr a c ni ca, baru l hent a e i nof ensi va: era a sua guerr a.Os i t al i anos no f azi amo mesmo j ogo: at i r avambombas. 44 - Ummacar oni ? Ah! Par ece- me que si m - conf i r mou Lub r on. - No ouves ot r abal har r egul ar do motor? mesmo um Messer schmi dt . Sent i - u- se umal vi o debai xo dos cober t or es; r ost os vol t ados par a ci ma sor r i r am aoavi o al emo. Methi et i ouvi u al gumas det onaes abaf adas e quat r onuvenzi nhas r edondas f ormaram- se no cu. - Bandi dos! - pr ot est ou Char l ot .- Agora at i r am sobr e os al emes. - Ai nda acabamos num massacr e - di sseLongi n i r r i t ado. E Schwar t z acr escent ou com despr ezo: - Esses ti pos

    ai nda no compreenderam. Soar am duas detonaes, e duas nuvens escur as eespessas apareceram por ci ma dos choupos. - Bandi dos! - r epet i u Char l ot .- Bandi dos! Pi net t e ti nha- seapoi ado, num cot ovel o. Como seu arpar i si ense est ava rosado e f r esco. Ol hava para os camaradas numa at i t udede desaf i o: - Cumpr em o seu dever - di sse secament e. Schwar t z encol heu osombr os: - Par a qu, nest e moment o? A D. C. A. cal ara- se; as nuvensdesf azi am- se; j s se ouvi a um r oncar gl or i oso e regul ar . - j no ovej o, - di sse Ni ppert . - Ol ha, al m, na di r eco do meu dedo. Um l egumebranco l evant ou- se e apont ou para o avi o: Char l ot dor mi a nu debai xo doscobert ores: - Est qui eto - ordenou o sar gent o Pi ern com uma vozi nql ~et a. - Podem ver - nos. - Nem penses ni sso! A est a hor a, pensamquesomos cou ves- f l ores. Mesmo assi m encol heu- se quando o avi o passou sobr eel es e t odos segui r amcom os ol hos, a sorr i r , esse pedao de solr ut i l ant e: er a uma di st r aco mat i nal , o pr i mei r o acont eci ment o do di a. -D um pequeno passei o como aperi t i vo - di sse Lubron. , 45 Er amoi t o ehavi am per di do a guer r a, ci nco secret r i os, doi s obser vador es, ummeteor ol ogi st a, dei t ados uns ao l ado dos out r os no mei o de al hos- porr os ecenour as. Ti nham perdi do a guer r a, como se perde t empo: sem seaperceberem. Oi t o: Schwart z ' o canal i za dor , Ni ppert , o empr egadobancr i o, Longi n, o pr ecept or , Lubr on, * of i ci al de di l i gnci as, Char l otWr ocl aw, f abr i cant e de sombr i nhas * guarda- chuvas, Pi net t e, cont r ol adorna T. C. R. P. , e os doi s pr of essores: Mat hi eu e P er n. Ti nham- seaborr eci do dur ant e nove meses, ora nos pi nhai s or a nas vi nhas; um bel odi a, uma voz de Bordus anunc ara- l hes a der r ota e havi am compr eendi doque no t i nham r azo. Uma mo desaj ei t ada passou pel a cara de Mat hi eu.Vol t ou- se par a Char l ot : - Que quer es, r apaz? Char l ot dei t ara- se de l ado,Mat . hi eu vi a- l he as f aces ver mel has e a boca bem r asgada. - Quer i a saber

    - r espondeu Charl ot em voz bai xa - se par t i mos hoj e. Pel o seu r ost oj ovi al passou um ar de angst i a que no chegou a perdurar . - Hoj e? Nosei . Ti nham dei xado Morsbr onn a 12; havi amf ei t o uma cor r i da desor denadae, depoi s, de repent e, est a paragem. - Que est amos aqui a f azer ? Sabesd zer~me? - Di zem que est amos esper a da i nf ant ar i a. - Se el es noconsegui r em saf ar- se, no nos vamos dei t ar a perder comel es.Acr escentou, com modst i a: - Sou j udeu, compreendes. E t enho um nomepol aco. - Eu sei - di sse Mathi eu t r i st ement e. - Cal em- se - ordenouSchwar t z. - Ouam! Era um r u do abaf ado e cont nuo. Na vsper a e naent evspera dur ara de madr ugada at noi t e. Ni ngum sabi a quem at i r ava

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    nem cont r a quem. - Devem ser quase sei s hor as - di sse Pi nett e. - Ont emcomear am s sei s menos umquar t o. 46 Mathi eu l evant ou o br ao eol hou par a o r el gi o: - So sei s e ci nco. - Sei s e ci nco - conf i r mouSchwar t z. - Mui t o me admi r ava se part ssemos hoj e. - Bocej ou. - Vamos!Mai s um di a nest e t er r eno. O sargent o Pi ern t ambmbocej ou: Poi s bem -di sse , t emos de nos l evant ar . Si m - apoi ou Schwart z. - Si m, si m. Temosde nos l e vant ar . Ni ngum se mexeu. Um gato passou ao p, del es a t oda a

    vel oci dade, aos zi guezagues. De r epent e agachou- se, pr est es a dar umsal t o; depoi s, esquecendo . o pr oj ect o, af ast ou~se desi nt eressado.Mat hi eu apoi ar a- se sobr e o cot ovel o e segui a- o como ol har . Vi u di ant e desi . umas pernas arqueadas met i das empol ai nas de caqui e l evant ou acabea: o t enent e Ul mann pl ant ara- se di ant e del es, de br aos cr uzados, eol hava- os ar queando as sobr ancel has. Mat hi eu r eparou que el e no f i zer a abar ba. - Que est o a f azer? Mas que est o a f azer ? So doi dos? Podemdi zer - me o que f azem aqui ? Mat hi eu esperou umi nst ant e e, como ni ngumf al ava, r es pondeu sem se l evant ar : . - Pr ef er i mos dor mi r ao ar l i vr e, meut enent e. - Vej ami st o! Comavi es i ni mi gos a sobr evoar a r egi o! A vossapr ef ernci a- pode f i car - nos car a: vocs so capazes de f azer bombardear adi vi so. - Os al emes sabem mui t o bem que esi amos aqui , poi s ds l ocmo-nos sempr e l uz do di a - di sse Mat hi eu paci ent ement e. O t enent e pareceu

    no ouvi r . - Ti nha- vos pr oi bi do - i nsi st i u el e. - T nha- vos pr oi bi do desa r em da qui nt a. E que manei r as so essas de cont i nuarem dei t ados napr esena de um super i or! Ouvi u- se um r emexer i ndol ent e pel o cho e osoi t o homens sent aram- se nos cobert ores, pi scos de sono. Charl ot , queestava nu, t apou o sexo com um l eno. Est ava f r i o. Mathi eu teve umar r epi o e pr ocur ou sua vol t a o casaco para pr pel os ombros. COM AMORTE NA. ALMA 47 - Voc t ambm a est , Pi ern! No t em vergonha, umgra duado? Devi a dar o exempl o. Pi ern cerr ou os l bi os e no r espondeu.- I ncr vel - coment ou o t enent e. - Mas expl i cam- me por que dei xar am aqui nt a, ou no? Fal ava sem convi co, com uma voz vi ol ent a e cansada;t i nha ol hei r as, e o seu ar f r esco t or nara- se car r egado. - T nhamos mui t ocal or , meu t enent e. No pod amos dormi r . - Mui t o cal or? O que quer i ammai s? Um quart o cl i mat i zado? Vou mand- l os dormi r para a escol a, est a -noi t e. Com os out r os. No sabemque est amos emguerr a? Long n f ez umgest o com a mo. - A guerr a acabou, meu t enent e - di sse com um est r anhosor r i so. - No acabou. Devi a t er ver gonha de di zer que acabou, quando ht i pos que morr em a t r i nt a qui l met r os daqui para nos def enderem. - Pobr est i pos - coment ou Longi n. - Do- l hes or dens par a se dei xar em abaterenquant o assi namo ar mi st ci o. O t enent e cor ou vi ol ent ament e. - Em t odo ocaso, vocs ai nda sosol dados. Enquant o no vos mandarem par a casa, ser osol dados e obedecero aos vossos chef es. - Mesmo nos campos depri si onei r os? perguntou Schwar t z. O t enent e no r espondeu: ol hava para ossol dados com uma t i mi dez desdenhosa; os homens devol vi am- l he o ol har semi mpa ci nci a nem pert ur bao; mal gozavam o pr azer i ndi t o de se sent i r em i nt i mi dant es. Aps um moment o, o t enent e encol heu os ombr os e deumei a vol t a: - Faam- me o f avor de se l evantarem, e depr essa - ordenou porci ma do ombr o. Af ast ou- se, - mui t o di r ei t o, compassos de dana. "A sua

    l t i ma dana", pensou Mat h eu; "daqui a al gumas hor as os past ores al emesl evar - nos- o par a l est e, embi cha, semdi st i no de hi er ar - 48t ambm. qui a". Schwar t z bocej ou e comeou a chorar ; Longi n acendeu umci gar r o; Char l ot ar r ancava t uf os de er va sua vol t a. Todos t i nham medode se l evant arem. - Vi u? - coment ou Lubr on. - El e di sse: "Vou mand- l osdormi r para a escol a. " Port ant o, porque no part i mos hoj e. - Di sse pordi zer - r espondeu* Charl ot . - Sabe tant o como ns. O sargent o Pi ernexpl odi u br uscament e: - Ent o quem que sabe? - pergunt ou. - Quem quesabe? Ni ngum r espondeu. Um i nst ant e depoi s, Pi nett e deu um sal t o: -Vamo- nos l avar? - pergunt ou. - Eu vou - assent i u Char l ot bocej ando.

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    Levantou- se. Mat hi eu e o sar gento Pi ern l evantaram- se - Beb Cadum! -gr i t ou Longi n. Rosado e nu, - semum pl o, com as f aces r osadas e abarr i ga gorda acar i ci ada pel a l uz cl ara da manh, Char l ot pareci a o mai sbel o beb de Frana. Schwart z f oi at r s del e sorr atei r ament e, como t odasas manhs. - Est s t odo ar r epi ado - di sse f azendo- l he ccegas. - Est st odo ar r epi ado, beb. Charl ot r i u e gr i t ou, esqui vando- se, como decost ume, mas com menos ent usi asmo. Pi net t e vol t ou- se par a Longi n, que

    f umava com ar cont r ar i ado. - No vens? - Fazer o qu? - Lavar - t e. - Merda!- supl i cou Longi n. - Lavar - me! Par a quem? Para quem? Par a os " boches"?Levam- me como est ou. - Ai nda no se sabe se t e l evam. - Vamos, vamos! -di sse Longi n. - Vamos! - Podemos saf ar - nos, meu Deus! - coment ou Pi net t e.- Acr edi t as no Pai Natal ? 49 - Mesmo que t e l evassem, no era r azopar a est ar es suj o. - Par a el es, no me quer o l avar . . - i di ot a o queest s a di zer ! - cont r aps Pi net t e. es t upi dament e i di ot a! Longi n t r oousem r esponder; cont i nuava met i do nos cober t ores com um ar desuper i or i dade. Lubron t ambm no se mexera: f i ngi a dor mi r . Mat hi eu pegouno cant i l e apr oxi mou- se. do t anque. A gua cor r i a por doi s canos def err o para o t anque de pedr a; era f r i a e nua como a pr pr i a pel e; dur ant et oda a noi t e Mat hi eu t i nha ouvi do o seu mur mr i o chei o de esper ana, asua i nt err ogao i nf ant i l . Mergul hou a cabea no t anque, o pequeno cant o

    el ement ar t ornou- se numa - f r escur a muda e l uzi di a nas or el has, nasnar i nas, nest e ramo de r osas mol hadas, de f l ores de gua sem corao: osbanhos no Loi r e, os j uncos, a pequena i l ha verde, a i nf nci a. Quando seendi r ei t ou, Pi net t e ensaboava o pescoo f ur i osament e. Mat hi eu sorr i u- l he:gost ava mui t o de Pi net t e. - Longi n parvo - di sse Pi net t e. - Se os"boches" che garem, t emos de est ar l i mpos. Met eu umdedo no ouvi do er odou- o vi ol ent ament e. - Se gost as t ant o de l i mpeza - gr i t ou- l he Longi n,do seu l ugar l ava t ambm os ps. Pi net t e l anou- l he um ol har de pi edade.- Os ps no se vem. Mat hi eu comeou a f azer a barba. A l mi na era vel hae ar r anhava- l he a pel e: "No cat i vei r o dei xar ei cr escer a bar ba. " Nasci a oSol . Os l ongos r ai os obl quos cei f avam a er va; sob as rvor es a er vaest ava t enr a e f r esca, um pedao de sono apesar da manh. Na f ol hagem doschoupos, obedecendo a um si nal i nvi s vel , uma mul t i do de pssaros ps- sea cant ar est r i dent ement e, como, uma raj ada ext r aor di nari ament e vi ol ent a,e, depoi s, cal ou- se mi st er i osament e. A angst i a r ondava pel a ver dur a epel os l egumes desabrochados como. as f aces de Char l ot ; no consegui upousar em par t e nenhuma. Mat hi eu l i mpou a l mi na cui dadosament e e p- l ana cai xa. O f undo do seu corao era cmpl i ce da madr ugada, do orval ho,da sombra; nof undo do seu cor ao esper ava uma f est a. 50 Levantara-se cedo e barbeara- se como para uma f est a. Uma f est a num j ardi m, umapri mei r a comunho ou um casament o, com l i ndos vest i dos r odados nosbosques, uma mesa post a na rel va, o zumbi do quente das vespas br i as deacar . Luber on l evant ou- se e f oi ur i nar cont r a a cer ca; Longi n ent r ou naqui nt a, com os cober t or es debai xo do br ao; t or nou a sai r , apr oxi mou- sedesc' o' nt r a dament e do t anque e mergul hou um dedo na gua com um art r oci st a e oci oso. Mat hi eu no pr eci sou de ol har mui t o par a o seu r ostopl i do par a sent i r que no - haver i a f est a, nem agor a, nem nunca mai s. O

    vel ho l avr ador sa r a de casa. Ol hava para el es, enquant o f umava cachi mbo.. - Vi va, papa - cumpr i ment ou Charl ot . - Vi va! - r espondeu o l avr adorabanando a cabea. - EW Si m. Vi va! Deu al guns passos epl ant ou- se di ant edel es: - Ent o? No se f oram embora? - como v- r espondeu Pi net t esecament e. O vel ho escarneceu, no pareci a bem- di spost o. - j vos t i nhadi t o. Vocs no par t i r o. - Tal vez. Cuspi u ent r e os ps e l i mpou obi gode. - E os " boches"? hoj e que vm? Puseram- se ' a r i r : - Tal vez si m,t al vez no - r espondeu Luberon. Est amos como voc, esper amo- l os:preparamo- nos para os r eceber . O vel ho ol hava para el es comum arest r anho. - Como eu, no bemassi m - r epl i cou. - Vocs esca' par o.

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    Ti r ou uma f umaa e acr escentou: - Eu sou al saci ano. - j sabemos, pa- pa -di sse Schwart z - , mude de di sco. O vel ho sacudi u a cabea. - umaest r ' anha guerr a - coment ou el e. - Agora so os ci vi s que so mort os eos, sol dados que escapam. mat am. ci ano. 51 - Vamos, vamos! Vocsabe mui t o bem que el es no o j t e di sse que sou al saci ano. Tambm eu -r et or qui u Schwart z. - Tambm sou al sa- Pode ser - i nsi st i u o vel ho- ; maseu, quando dei xei a Al sci a, el a per t enci a- l hes. No l he f ar o mal -

    t r anqui l i zou- o Schwar t z. - So homens como ns. - Como ns? - r epl i cou ovel ho subi t ament e i ndi gnado. - Ent o, merda! Tu eras capaz de cor t ar asmos a uma cr i ana, t u? Schwart z desat ou a r i r . - Est - nos a cont arhi st r i as da out r a guerr a- di sse pi s cando o ol ho a Mathi eu. Pegou nat oal ha, l i mpou os br aos muscul osos e expl i cou, vol t ando- se para o vel ho:- El es no so doi dos. Cl aro que vos daro ci garr os e cho col ates, o quese chama pr opaganda, e vocs no t ero out r o r emdi o seno f i car comel es, i sso no obr i ga a nada. Acrescent ou, r i ndo sempr e: - j l he di sse,pap, hoj e em di a val e mai s ser de Est r as burgo do que de Par i s. - No mequer o tor nar al emo com esta i dade - r etor qui u o l avrador . - Bol as!Pref i r o que me f uzi l em. Schwar t z deu uma pal mada napr pr i a coxa: -Ouvi r am? Bol as! - coment ou i mi t ando- o. - Eu pr ef er i a ser um al emo vi vodo que um f r ancs mort o. Mathi eu l evant ou a cabea e ol hou- o; Pi net t e. e

    Char l ot ol ha vam- no tambm. Schwar t z par ou de r i r , corou e sacudi u osombr os. Mat , hi eu desvi ou os ol hos; no gost ava de br i ncar - aos j ui zes e,al m di sso, apr eci ava aquel e homem r ude, f or t e e t r anqui l o; no quer i a demodo al gum cont r i bui r par a a sua conf uso. Ni ngumdi zi a pal avra; o vel hoi ncl i nou a cabea e ol hou em vol t a com r ancor . 52 - Ah - di sse el e- , er a pr eci so no a per der , est a guer r a. absol ut ament e necessr i o.Cal aram- se; Pi net t e t ossi u, apr oxi mou- se do t anque e ps- se a. mexer nat ornei r a com um ar i mbeci l . O vel ho despej ou o cachi mbo no cho,esgr avat ou a ter r a com o sal t o do sapat o par a ent er r ar a ci nza, depoi svol t ou- l hes as cost as e di r i gi u- se par a casa com passos l ent os. Houve uml ongo si l nci o; Schwar t z mant i nha- se mui t o di r ei t o, de br aos aber t os.Por f i m, par eceu t er acor dado. Ri u- se dol or osament e: - Di sse aqui l o par ao aborr ecer . No obt eve r espost a: t odos os - homens ol havam para el e. Edepoi s, sem que nada t i vesse mudado apar ent ement e, al guma coi sa cedeu, sedi st endeu; - assi st i u- se a uma di sper so i mvel ; o pequeno gr upocar r ancudo que se f ormara sua vol t a desf ez- se, Longi n comeou a pal i t aros dent es com uma f aca, Lubron coou o pescoo, e Char l ot , de ol hari nocent e, ps- se a cant arol ar . No consegui am nunca mant er - se i ndi gnados,a no ser quando se t r atava de uma l i cena ou do r ancho. Mathi eu sent i usubi t ament e um odor a absi nt o e a hort el : depoi s dos pssar os, as er vase as f l ores acordavam; l anavam os seus odores como el es t i nham l anadoos seus gr i t os: " verdade", pensou Mathi eu, "os odores t ambm exi st em".Odor es ver des e al egr es, ai nda pont i agudos, ai nda ci dos: t or nar- se- i amcada vez mai s doces, cada vez mai s opul ent os e f emi ni nos, medi da que ocu se t ornasse azul e se apr oxi massem os t anques al emes. Schwart zf ungou r ui dosament e e ol hou par a o banco que havi am ar r ast ado na vsper apara j unt o do mur o da casa. - Bem - di sse el e - , bem, bem. Foi sent ar - se

    no banco. Ti nha as mos pendent es ent r e os j oel hos e as cost as curvas,mas mant i nha a cabea ergui da e ol hava em f r ent e com um ol har dur o.Mathi eu hesi t ou por um moment o, depoi s j unt ou- se- l he e sent ou- se ao l adodel e. Pouco depoi s, Char l ot af ast ou- se do gr upo e f oi - se pr em f r ent edel es. Schwart z l evant ou a cabea e ol hou para Charl ot , comarconcent r ado. - Tenho de i r l avar a r oupa - di sse. 53 Fez- se umsi l nci o. Schwart z cont i nuava a ol har par a Char l ot. - No f ui eu quem aper deu, est a guer r a. . . Char l ot par eci a per t ur bado; ps- se a r i r . MasSchwart z con t i nuou na sua i dei a. - Se toda a gent e t i vesse f ei t o comoeu, t al vez a ganhsse mos. Nada tenho a censurar - me. Coou, a f ace com um

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    ar surpr eendi do: - Tem gr aa! - coment ou. "Tem gr aa", pensou Mathi eu."Si m, t em gr aa. Ol ha sem ver , pensa: " sou f r ancs " e acha i ssoengr aado, pel a pr i mei r a vez na vi da. Tem gr aa. A Fr ana, nunca at nhamos vi st o: est vamos c dent r o, sent amos a pr esso do ar , aat r aco da t er r a, o espao, a vi si bi l i dade, a cer t eza t r anqui l a de que omundo f oi f ei t o para o homem; era t o nat ur al ser f r ancs, era o mei omai ssi mpl es, mai s econmi co, de nos sent i r mos uni ver sai s. No havi a nada a

    expl i car : competi a aos out r os, aos Al emes. , aos I ngl eses, aos Bel gas,expl i car por que desgraa ou er r o el es no er am compl et ament e homens.Agor a, a Frana vi r ou- se ao cont r r i o e vemo- l a, vemos uma gr ande mqui naavar i ada e pensamos: er a i st o. I st o: um aci dent e de t er r eno, um aci dent eda Hi st ri a. Ai nda somos f r anceses, mas j no, natur al . Bast ou umaci dent e para nos f azer compr eender que ns r amos aci dent ai s. Schwar t zpensa que aci dent al , j no se compr eende, sent e- se embar aado; -pensa: "Como que se pode ser f r ancs?" Pensa: "Com umpouco de sor t epodi a t er nasci do al emo. " Toma ent o um ar gr ave e apur a o ouvi do parasent i r chegar a pt r i a subst i t ut a; esper a o' exr ci t o ci nt i l ant e que o vaif est ej ar; espera. o moment o em que possa t r ocar a nossa derr ota pel a ruavi t r i a, em que par ecer nat ur al ser vi t or i oso e al emo". Schwar t zl evant ou- se bocej ando: _Vamos- di sse- , vou l avar a roupa. Charl ot deu mei a

    vol t a e j unt ou- se a Long n com Pi net t e. Mat hi eu f i cou sozi nho no banco.Lubron bocej ou tambm, r ui dosament e. - Abor r ecemo- nos i menso aqui ! -concl ui u. que conversava 54 COM A / MORTE NA ALMA Char l ot e l ongi nbocej aram. Lubron vi u- osbocej ar e bocej ou mai s uma vez. O que nos f al t a- di sse - um bord~l . E como que consegui as f azer o ser vi o s sei shor as da manh? - pergunt ou Char l ot i ndi gnado. - Eu? Consi go a qual querhor a. - Poi s bem, eu no. De rest o, no t enho mai s vont ade de f azer amordo que de receber um pont ap no cu. Lubr on r i u- se. - Se f osses casado,apr ender i as a f azer i sso mesmo sem von t ade, grande par vo! O que h debomno amor que no se pensa em mai s nada. Cal ar am- se. Os chouposagi t avam- se, um vel ho sol est r emeci a ent r e as f ol has; ~ ouvi a- se ao l ongeo r oncar sereno dos canhes, t o quot i di ano, t o cal mo, que mai s par eci aum r u do da nat ureza. Al guma coi sa r ebent ou no ar e uma vespa f ez o seuapareci ment o ent r e el es. - Ouam! - excl amou Lubron. - Que ?. . . Havi auma espci e de vazi o vol t a del es, uma est r anha cal ma. Os pssar oscant avam, um gal o r i a na capoei r a; ao l onge, al gumbat i a r egul arment esobr e um pedao de f er r o; no ent ant o, havi a si l nci o: o barul ho doscanhes par ar a. - El i ! - di sse Char l ot . - Eh! , ouam! - Si m. Apur ar am oouvi do sem dei xar em de se ol har. - Assi m que vai comear - coment ouPi ern desi nt eressado. - Num dado moment o, em t oda a f r ent e, f ar - se- osi l nci o. - Em que f r ent e? No h f r ent e nenhuma. - Enf i m, por t oda apart e. Schwart z deu um passo em di r eco a el es, t i mi dament e. - Sabem -di sse - , parece- me que vamos t er pr i mei r o um t oque de cl ar i m. - Nemsonhes! - cont r ar i ou Ni ppert , j no h l i gaes: 55 mesmo que j t i vessem assi nado h vi nt e e quat r o horas ai nda c est ar amos espera. -Tal vez a guer r a t enha acabado mei a- noi t e. - Ou ao mei o- di a. - No,pateta, mei a- noi t e: s zero horas, compr eendes? - Cal am- se, ou no? -

    pergunt ou Pi ern Cal aram- se. Pi e- r n apur ava o ouvi do com esgares denervosi smo; Char l ot mant i nha a boca abert a. at r avs do si l nci o murmur ant e ouvi am a Paz. Uma Paz sem gl r i a nem si nos, sem t ambores nemt r ombet as, que pareci a a mort e. - Merda! - excl amou Lubron. Obar ul ho doscanhes r ecomeara: par eci a menos surdo, mai s prxi mo, mai s - ameaador .Longi n aper t ou as - mos e f ez est al ar as f al anges. Coment ou com azedume:- Mas, meu Deus, por que esper am el es! Acham que ai nda no f omossuf i ci ent ement e der r ot ados? Que ai nda no. per demos uma quant i dadesuf i ci ent e de homens? Ser pr eci so que a Frana est ej a compl etament edesf ei t a par a par ar em ' com a car ni f i ci na? Estavam ner vosos e mol es,

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    i ndi gnados na sua f r aqueza, comesse t om aci nzent ado pr pr i o dasi ndi gnaes. Bast ara um r u do de t ambor ao l onge para que a gr ande vagada guerr a se abatesse sobr e el es. Pi net t e vol t ou- se br uscament e paraLongi n. Ti nha os ol hos col ri cos, a mo cr i spada na borda do tanque. -Que car ni f i ci na? Hem? Que car ni f i ci na? Onde est o os mort os e f eri dos? Seos vi st e, t ens sort e. Eu s vi medr i cas como t u, que cor r i am pel asest r adas com o rabo ent r e as per nas. - Que t ens t u, pateta? - pergunt ou

    Longi n sol i ci t a e vel hacament e. - No t e sent es bem? Ol hou para os out r oscom cumpl i ci dade: - Er a bom - t i po, o nosso Pi net t e, gost vamos del eporque sent i a medo como ns, no era el e que se apr esent ava quando -pedi amum vol unt r i o. Agora que a guer r a est no f i m que l he est adar. Os ol hos de Pi net t e f ai scaram. 56 - No agora, ouvi st e,pat i f e? - Ent o est s ' a br i ncar aos sol dadi nhos. - mel hor do que borr ar -me t odo, como t u. - Est o a ver: bor r o- me t odo por que di go que oexrci t o f r ancs f oi derr otado. - Como que sabes