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66 CIÊNCIA HOJE • vol. 34 • nº 201 dem Homoptera (a mesma das cigarras) e à família Fulgoridae. O gênero Fulgora, encontrado do Méxi- co à Argentina, abrange oito espécies. O nome gené- rico provavelmente tem origem na mitologia roma- na: Fulgora era a deusa que protegia as residências contra relâmpagos e tempestades terríveis. Embora notáveis pelo tamanho (algumas espécies chegam a 9,5 cm de comprimento) e por formas bizarras, co- res brilhantes e secreções de cera, pouco se sabe sobre a ecologia das espécies que habitam as flores- tas tropicais – exceto no caso dos fulgorídeos de im- portância econômica, como Phrictus diadema (pra- ga do cacau no Brasil) e Pyrops candelaria (praga da manga na Ásia). As características do inseto Embora seja de difícil observação na natureza, o in- seto tem importância cultural significativa, devido às crenças e lendas associadas a ele. No Brasil, apresenta vários nomes populares, além de jequitiranabóia: jaquitiranabóia, jiquitiranabóia, jitiranabóia, jaquiranabóia, jaquiti- rana, jequitirana, tiranabóia, tiram- bóia, gitirana, jitirana, cobra-de-asa, cobra-do-ar, cobra-voadora, cobra-do- eucalipto, cobra-cigarra, serpente-vo- adora, gafanhoto-cobra, cigarra-doi- da, cigarra-cobra e jacaré-namboya. A palavra jequitiranabóia tem origem no tupi-guarani e significa cigarra pa- recida com cobra (yeki = cigarra; rana = parecido; mboya = cobra). Essa abundância de nomes para as espécies de Fulgora parece resultar de sua aparência – em especial o for- mato do apêndice cefálico (a ‘cabe- que apenas ouviram falar de sua suposta ‘picada mortal’. Na Costa Rica, por exemplo, existe a crença de que uma pessoa jovem ‘ferroada’ pelo inseto deve ter relações sexuais em menos de 24 horas, ou mor- rerá. Diz-se ainda que, se a vítima é um homem, uma virgem seria o melhor antídoto. De modo se- melhante, a expressão “picado por la machaca” é aplicada, na Colômbia, a quem exibe grande apetite sexual. Já no Brasil, o inseto é considerado portador de um veneno mortal, que resseca as árvores das quais se alimenta e fulmina homens e animais. No Ceará, o nome do inseto é visto como um sinônimo de indivíduo terrível, e dado àqueles que perderam sua boa reputação. Por sua importância lendária, a jequitiranabóia está presente nas artes plásticas e na música de vá- rios países. Quando a Sociedade Bra- sileira de Entomologia (SBE) fez 50 anos, em 1987, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos lançou dois selos comemorativos, um deles ilus- trado com a espécie Fulgora servillei (hoje, F. laternaria), símbolo da enti- dade. Igualmente, a Sociedade Colom- biana de Entomologia tem no perió- dico humorístico La Machaca um de seus órgãos de difusão. Na música fol- clórica do Equador e da Colômbia, o ritmo rápido conhecido como cumbia reflete as emoções supostamente cau- sadas pela ferroada do inseto. Em al- guns lugares do Peru, o inseto ainda é considerado atração turística e tem valor como souvenir. A jequitiranabóia pertence à or- inseto popularmente chamado de jequitira- nabóia provoca curiosidade e medo mesmo nos O ENSAIO Fatos reais e lendários sobre a jequitiranabóia ETNOENTOMOLOGIA ETNOENTOMOLOGIA ETNOENTOMOLOGIA ETNOENTOMOLOGIA ETNOENTOMOLOGIA Inseto de aparência curiosa e que inspira medo ainda é pouco conhecido Fatos reais e lendários sobre a jequitiranabóia Eraldo Medeiros Costa Neto Eraldo Medeiros Costa Neto Eraldo Medeiros Costa Neto Eraldo Medeiros Costa Neto Eraldo Medeiros Costa Neto Departamento de Ciências Biológicas, Universidade Estadual de Feira de Santana (BA) A jequitiranabóia (Fulgora laternaria) assusta a população amazônica, devido ao seu estranho aspecto FOTO DE E. M. COSTA NETO

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dem Homoptera (a mesma das cigarras) e à famíliaFulgoridae. O gênero Fulgora, encontrado do Méxi-co à Argentina, abrange oito espécies. O nome gené-rico provavelmente tem origem na mitologia roma-na: Fulgora era a deusa que protegia as residênciascontra relâmpagos e tempestades terríveis. Emboranotáveis pelo tamanho (algumas espécies chegam a9,5 cm de comprimento) e por formas bizarras, co-res brilhantes e secreções de cera, pouco se sabesobre a ecologia das espécies que habitam as flores-tas tropicais – exceto no caso dos fulgorídeos de im-portância econômica, como Phrictus diadema (pra-ga do cacau no Brasil) e Pyrops candelaria (praga damanga na Ásia).

As características do insetoEmbora seja de difícil observação na natureza, o in-seto tem importância cultural significativa, devido

às crenças e lendas associadas a ele.No Brasil, apresenta vários nomespopulares, além de jequitiranabóia:jaquitiranabóia, jiquitiranabóia,jitiranabóia, jaquiranabóia, jaquiti-rana, jequitirana, tiranabóia, tiram-bóia, gitirana, jitirana, cobra-de-asa,cobra-do-ar, cobra-voadora, cobra-do-eucalipto, cobra-cigarra, serpente-vo-adora, gafanhoto-cobra, cigarra-doi-da, cigarra-cobra e jacaré-namboya.A palavra jequitiranabóia tem origemno tupi-guarani e significa cigarra pa-recida com cobra (yeki = cigarra; rana

= parecido; mboya = cobra).Essa abundância de nomes para as

espécies de Fulgora parece resultarde sua aparência – em especial o for-mato do apêndice cefálico (a ‘cabe-

que apenas ouviram falar de sua suposta ‘picadamortal’. Na Costa Rica, por exemplo, existe a crençade que uma pessoa jovem ‘ferroada’ pelo inseto deveter relações sexuais em menos de 24 horas, ou mor-rerá. Diz-se ainda que, se a vítima é um homem,uma virgem seria o melhor antídoto. De modo se-melhante, a expressão “picado por la machaca” éaplicada, na Colômbia, a quem exibe grande apetitesexual. Já no Brasil, o inseto é considerado portadorde um veneno mortal, que resseca as árvores dasquais se alimenta e fulmina homens e animais. NoCeará, o nome do inseto é visto como um sinônimode indivíduo terrível, e dado àqueles que perderamsua boa reputação.

Por sua importância lendária, a jequitiranabóiaestá presente nas artes plásticas e na música de vá-rios países. Quando a Sociedade Bra-sileira de Entomologia (SBE) fez 50anos, em 1987, a Empresa Brasileirade Correios e Telégrafos lançou doisselos comemorativos, um deles ilus-trado com a espécie Fulgora servillei

(hoje, F. laternaria), símbolo da enti-dade. Igualmente, a Sociedade Colom-biana de Entomologia tem no perió-dico humorístico La Machaca um deseus órgãos de difusão. Na música fol-clórica do Equador e da Colômbia, oritmo rápido conhecido como cumbia

reflete as emoções supostamente cau-sadas pela ferroada do inseto. Em al-guns lugares do Peru, o inseto ainda éconsiderado atração turística e temvalor como souvenir.

A jequitiranabóia pertence à or-

inseto popularmente chamado de jequitira-nabóia provoca curiosidade e medo mesmo nosO

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Fatos reais e lendários sobrea jequitiranabóia

ETNOENTOMOLOGIAETNOENTOMOLOGIAETNOENTOMOLOGIAETNOENTOMOLOGIAETNOENTOMOLOGIA Inseto de aparência curiosa e que inspira medo ainda é pouco conhecido

Fatos reais e lendários sobrea jequitiranabóia

Eraldo Medeiros Costa NetoEraldo Medeiros Costa NetoEraldo Medeiros Costa NetoEraldo Medeiros Costa NetoEraldo Medeiros Costa NetoDepartamento de Ciências Biológicas,

Universidade Estadual de Feira de Santana (BA)

A jequitiranabóia(Fulgora laternaria)assusta a populaçãoamazônica, devido aoseu estranho aspecto

FOTO

DE E. M

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ça’). Pesquisadores diferentes jácomentaram que esse apêndi-ce é bastante parecido com acabeça de um jacaré, con-tendo até falsas reproduçõesde olhos protuberantes e dedentes afiados. Também há se-melhanças com a cabeça de co-bras, como uma mancha que lem-bra as escamas labiais e caroçosdas serpentes da família Boidae (ji-bóia, por exemplo) e um ponto ne-gro, entre os falsos olhos e a narina, pareci-do com a fosseta loreal (órgão sensor que perce-be diferenças de temperatura) das jararacas (gêneroBothrops).

O curioso formato da ‘cabeça’ das espécies deFulgora resulta do crescimento extraordinário decertas regiões de sua superfície, que ‘incham’ comouma bexiga e formam a protuberância que lhes dá aaparência de uma cabeça de réptil. Acredita-se queo apêndice frontal atue como uma defesa contra ini-migos naturais (aves, lagartos e pequenos mamífe-ros), mas não há estudos que confirmem essa vanta-gem protetora.

Associado à cabeça está o ‘ferrão’, tido como oórgão com que o inseto injeta sua ‘peçonha mortal’.Na verdade, trata-se do estilete sugador, situado nalinha média do corpo, entre as articulações das per-nas, e que se projeta para fora apenas quando o inse-to se alimenta. Índios e caboclos da Amazônia di-zem que, logo após a cabeça, o inseto tem um ‘espi-nho’ venenoso capaz de causar uma ferida se elevoar direto para o peito de um homem. Como elescostumam considerar a jequitiranabóia uma ‘cobra’,transferem a esse inseto, por analogia, o mesmo pa-vor que têm do réptil.

Outro aspecto salientado nas lendas é a ‘ausênciade olhos’ na jequitiranabóia. Um dos motivos do pâ-nico causado pela presença do inseto nas imedia-ções de uma casa deve-se a essa suposta cegueira.Na verdade, ele tem olhos compostos, locali-zados na base da cabeça. A presença, nas asas poste-riores de F. laternaria (mais curtas e largas que asanteriores), de manchas arredondadas semelhan-tes a olhos é outra característica curiosa. As man-chas, segundo alguns pesquisadores, lembram o as-pecto da borboleta-coruja (gênero Caligo), que tam-bém exibe em suas asas manchas ocelares seme-lhantes a olhos de coruja. Os ‘olhos falsos’ parecemservir como alarme ou ter função de aviso para ini-migos naturais.

Os fulgorídeos também produzem e secretam umacera que se solidifica em contato com o ar, formandofilamentos brancos parecidos com flocos de amian-to. Às vezes, essa cera é tão abundante que cobre

parte do corpo do inseto, ajudando a escondê-lo depredadores. Na Colômbia, tal secreção é tida comoaltamente afrodisíaca. A inalação do pó branco quereveste o corpo do inseto já foi tida como capaz deprovocar vômitos, mas não há pesquisas que com-provem o fato.

Ecologia e comportamentoJequitiranabóias nutrem-se exclusivamente de ve-getais, sugando sua seiva com o aparelho bucal (‘fer-rão’ ou ‘bico’), introduzido através do revestimentodos caules. Os danos que a ‘picada’ causa ao vegetalsão insignificantes, e nunca o levam à morte. Noentanto, algumas espécies de insetos sugadores deseiva podem eventualmente transmitir vírus ou bac-térias capazes de prejudicar ou até matar a plantahospedeira.

As árvores hospedeiras das espécies de Fulgora

são, em geral, aquelas que produzem e concentramresinas (gêneros Hymenaea, Myroxylon, Vochysia) eóleos (Lecythis e talvez Eucalyptus), ou contêm subs-tâncias amargas em sua seiva (Simaba, Zanthoxylum,Simarouba), possivelmente gerando compostos se-cundários. Sabe-se que na seiva do marupá ou paraíba(Simarouba amara) há uma substância, a simarolida,que provavelmente é responsável pela grande atra-ção do inseto pela árvore. No final do século 19, nacosta sul da Bahia, a jequitiranabóia era chamadade ‘bicho-do-pau-parahy’ba’ justamente por freqüen-tar essa árvore.

A preferência por certas espécies de árvores foiconstatada em estudo realizado durante cinco anosno Parque Nacional Santa Rosa, na Costa Rica, e temuma explicação científica: em geral, esses insetosestão intimamente associados às plantas hospedei-ras, que lhes fornecem alimento, abrigo e proteçãocontra predadores. Segundo estudos publicados, os

Durante o vôo, podem ser vistas as manchas ocelares(semelhantes a olhos) em suas asas posteriores

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espécimes de Fulgora descansam durante o dia nostroncos das árvores mencionadas, em posição verti-cal e com a cabeça formando um ângulo com o cor-po. Esse comportamento imita o dos lagartos da fa-mília Iguanidae. Tais lagartos comedores de insetostalvez sejam os predadores mais próximos dajequitiranabóia, o que explica o fato de o inseto pro-curar parecer-se com eles.

A bioluminescência (produção orgânica de luz)em espécies do gênero Fulgora – descrita pela pri-meira vez em 1681 pelo botânico inglês NehemiahGrew (1641-1712) e registrada em 1705 pela ilus-tradora e naturalista alemã Maria S. Merian (1647-1717) no livro Metamorphosis insectorum su-

rinamensis – foi motivo de muita controvérsia entreos pesquisadores. Erroneamente, Grew atribuiu aespécies de Fulgora a luz gerada por besouros dogênero Pyrophorus. De fato, já foi observadaluminescência em Fulgora, mas esta se deve aosurgimento eventual, em geral fatal, debactérias patogênicas na superfície doabdome e da cabeça dos fulgorídeos,ou na porção anterior de seu intes-tino, alojada no apêndice cefálico.

Na Amazônia, os caboclos di-zem que o inseto produz um somprolongado, semelhante ao apitode um trem, mas esse ruído é naverdade produzido pela cigarraQuesada gigas.

O conhecimento sobre o comporta-mento reprodutivo dos espécimes deFulgora ainda é escasso. Sabe-se que ambosos sexos têm a mesma cor, desenho e tamanho. As-sim, a não ser pelos caracteres genitais, não têm qual-quer diferença aparente entre si. A literatura regis-tra dados referentes à cópula e postura dos ovos, queacontecem na planta hospedeira. Os ovos são postosem massa na superfície do tronco, colados com umfluido cimentante e cobertos com cera. O ciclo devida é hemimetabólico – nesse processo as formasjovens, chamadas ninfas, são parecidas com a formaadulta, mas com asas atrofiadas, e há uma passagemdireta de uma forma à outra, inexistindo a fase depupa, como em outros insetos.

A origem da tradição aterradoraOs comportamentos socialmente construídos em

relação à jequitiranabóia a colocam como um orga-nismo que, na opinião leiga, deve ser temido e eli-minado sempre que encontrado. Há vários relatosde encontros dramáticos e trágicos. O entomólogoinglês Henry Bates (1825-1892), por exemplo, quepor 11 anos coletou insetos ao longo do rio Amazo-nas, registrou que uma jequitiranabóia surgiu de re-pente da floresta e atacou e matou oito dos nove tri-

pulantes de um barco. Por toda a Amazônia, quandoum macaco subitamente caía morto das copas dasárvores, sem causa aparente, dizia-se que tinha sidopicado pelo inseto. Seu aparecimento inusitado emaglomerados humanos costuma ser associado a chu-vas torrenciais e à sua atração pela luz artificial (qua-se sempre é visto pousado em postes da rede de luzelétrica, à noite).

Aparentemente, o mal atribuído ao inseto não éde todo uma simples crença. É possível que ajequitiranabóia de fato ferroe quando manuseadainadvertidamente. E circunstâncias acidentais po-dem tornar o inseto tóxico. Às vezes, ele se alimentade açacuzeiros e outros vegetais que produzem com-postos tóxicos ou nocivos, tornando-se depositáriode substâncias fatais. Sabe-se que alguns insetoscoletam e utilizam substâncias tóxicas (terpenóides,por exemplo) como defesas. Felizmente, a literatura

científica não registra qualquer caso de óbitodecorrente do ataque de jequitiranabóia.

Se o inseto é inofensivo, por queexiste a tradição aterradora? Segu-

ramente, a semelhança com cobrasé uma explicação possível, mas aorigem desse temor pode tambémser encontrada nos mitos e len-das indígenas. Certos gruposamazônicos vêem os insetos (ou

ao menos alguns) como a manifes-tação palpável de princípios dano-

sos, atribuídos à atividade de feiticei-ros mal intencionados. Os xamãs de

muitas tribos amazônicas, talvez devido àmorfologia diferente da jequitiranabóia, consideramo inseto magicamente poderoso e o carregam emseus sacos de amuletos.

Conservação da jequitiranabóiaLevando em conta o estado de conservação das flo-restas primárias no Brasil, é provável que algumasespécies de Fulgora venham a figurar em listas deanimais ameaçados de extinção. Na Venezuela,F. laternaria já está nessa lista. A entomóloga LoisO’Brien, do Centro de Controle Biológico, na Flórida(Estados Unidos), acredita que apenas a manuten-ção das florestas remanescentes protegerá essesinsetos.

Estratégias eficazes de conservação precisam deuma abordagem regional, que inclua a participaçãodas comunidades humanas residentes. Assim, o co-nhecimento entomológico tradicional ajudaria ospesquisadores a melhor investigar o papel ecológicodos insetos e também a compreender as culturasnativas, e influenciaria os responsáveis pela tomadade decisões a aplicar práticas de manejo e conserva-ção culturalmente mais viáveis. ■

A literatura

científica não registra

qualquer caso de óbito

decorrente do ataque

de jequitiranabóia