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121 Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, Nº 6 - Junho de 2005 SOBRE OS DIREITOS HUMANOS, A CIDADANIA E AS PRÁTICAS DEMOCRÁTICAS NO CONTEXTO DOS MOVIMENTOS CONTRA- HEGEMÔNICOS. João Ricardo W. Dornelles * SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Direitos da liberdade: os direitos individuais. 3. Os direitos da igualdade: direitos econômicos, sociais e culturais. 4. Os direitos da solidariedade: direito dos povos, novos direitos ou direitos de toda humanidade. 5. Direito à democracia: direito a viver numa sociedade democrática. 6. Cidadania, direitos humanos e democracia. 1. Introdução O conceito de Direitos Humanos apresenta uma série de interpretações que dependem da orientação que se tenha sobre o fenômeno jurídico, a sociedade e as relações de poder. Dessa maneira, o conteúdo dos Direitos Humanos é marcadamente político e ideológico, não existindo uma uniformidade conceitual sobre o tema. O autor espanhol Enrique Pedro Haba, 1 por exemplo, distingue três momentos distintos em sua classificação: Direitos Humanos, como a expressão axiológica que serve como base para a sua positivação jurídica, ou seja, * Professor da FESO; Diretor do Departamento de Direito da PUC-Rio; Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; Membro da Rede Brasileira de Educação para os Direitos Humanos; Professor do Programa de Mestrado da Faculdade de Direito de Campos. 1 Ver Antologia Básica do Curso Interdisciplinário en Derechos Humanos, IIDH, texto de Sonia Picado S., intitulado Apuntes sobre los Fundamentos Filosóficos de los Derechos Humanos, San José, Costa Rica, p. 13.

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Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, Nº 6 - Junho de 2005

SOBRE OS DIREITOS HUMANOS, A CIDADANIAE AS PRÁTICAS DEMOCRÁTICAS NO

CONTEXTO DOS MOVIMENTOS CONTRA-HEGEMÔNICOS.

João Ricardo W. Dornelles*

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Direitos da liberdade:os direitos individuais. 3. Os direitos da igualdade:direitos econômicos, sociais e culturais. 4. Osdireitos da solidariedade: direito dos povos, novosdireitos ou direitos de toda humanidade. 5. Direito àdemocracia: direito a viver numa sociedadedemocrática. 6. Cidadania, direitos humanos edemocracia.

1. Introdução

O conceito de Direitos Humanos apresenta umasérie de interpretações que dependem da orientação quese tenha sobre o fenômeno jurídico, a sociedade e asrelações de poder. Dessa maneira, o conteúdo dos DireitosHumanos é marcadamente político e ideológico, nãoexistindo uma uniformidade conceitual sobre o tema.

O autor espanhol Enrique Pedro Haba,1 por exemplo,distingue três momentos distintos em sua classificação:Direitos Humanos, como a expressão axiológica queserve como base para a sua positivação jurídica, ou seja,

* Professor da FESO; Diretor do Departamento de Direito da PUC-Rio;Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; Membro da RedeBrasileira de Educação para os Direitos Humanos; Professor do Programa deMestrado da Faculdade de Direito de Campos.1 Ver Antologia Básica do Curso Interdisciplinário en Derechos Humanos,IIDH, texto de Sonia Picado S., intitulado Apuntes sobre los FundamentosFilosóficos de los Derechos Humanos, San José, Costa Rica, p. 13.

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o direito como valor, como o conjunto de princípiosnorteadores da lei; Direitos Fundamentais, como aexpressão positivada, em textos legais, daquela dimensãovalorativa original; Liberdades Individuais, como umacategoria referente às liberdades que se concretizam nasrelações sociais, a manifestação fática dos direitosprevistos legalmente, o exercício prático dos direitosreconhecidos como fundamentais.

Outro autor, Gregório Peces-Barba,2 não faz adistinção que vimos acima. Parte de uma única definiçãode Direitos Fundamentais, afirmando que todos os direitossão humanos visto que apenas o ser humano é sujeito dedireito capaz, portanto, de exercer a sua personalidadejurídica. Assim, para Peces-Barba, a preocupação é emestabelecer, dentre todos os direitos que são humanos,aqueles que serão considerados essenciais.

A fundamentação dos Direitos Humanos, assim,passa por inúmeras definições. Seja entendendo-os comovalores, seja apenas como direitos que se tornamfundamentais pela força legal. O que importa é que após1948, com a Declaração Universal da ONU, tornou-semais usual a atual denominação Direitos Humanos, pelasua importância simbólica e de valor, que expressa umcaráter de universalidade para todos os seres humanos.

Podemos observar que a discussão sobre osfundamentos dos Direitos Humanos também recebeutratamento de Norberto Bobbio3 em publicação que reuniuuma série de seus artigos sobre o tema. Para o jurisfilósofoitaliano, é uma ilusão atribuir um fundamento absoluto aosDireitos Humanos, já que são direitos historicamenterelativos. E, por outro lado, o Bobbio afirma que existemvárias perspectivas para o tratamento da questão dosdireitos humanos: a filosófica, ética, política, histórica,

2 Idem. Ibidem. p. 13.3BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Editora Campus. Ver especialmenteos capítulos da Primeira Parte do livro, principalmente das p. 15-24.

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cultural, etc. Existe, sem dúvida, uma vinculação entrecada uma dessas perspectivas.

Os direitos e valores considerados fundamentaisvariam, assim, de acordo com o modo de organização davida social e o contexto histórico. Dessa maneira, é quese torna impossível determinar um único fundamentoabsoluto dos Direitos Humanos. Ao contrário, podemospartir de três concepções diferentes no campo da suafundamentação jurídica e filosófica: a). concepçõesidealistas; b). concepções racionalistas-positivistas; c).concepções crítico-materialistas.

A concepção idealista nos remete ao campo domodelo jusnaturalista e busca a sua base de fundamentaçãoem uma visão abstrata, ideal, identificando os direitoshumanos a valores informados por uma ordem superiormetafísica de conteúdo transcendente que se expressa comanterioridade à sociedade e à existência do Estado político,tendo como fundamento a razão natural do indivíduo. Osdireitos, no campo do jusnaturalismo moderno, seriaminerentes ao indivíduo, portanto seriam Direitos Naturais.

As concepções racionalista-positivistas, partindo dafilosofia positivista, e de sua expressão no positivismojurídico, entendem os Direitos Humanos como DireitosFundamentais, e não como valores suprapositivos, desdeque reconhecidos formalmente pela ordem jurídica positiva.Assim, a fundamentação dos Direitos Humanos, e a sualegítima existência, se prende a um reconhecimento porparte do Estado, através da sua elaboração legislativa. Osdireitos considerados fundamentais para o ser humano,portanto, seriam apenas aqueles que emanam do Estado.

Por fim temos a concepção crítico-materialista, decaráter histórico-estrutural, que se desenvolveu a partirdo século XIX através, principalmente, da contribuição deKarl Marx expressa em “A Questão Judaica,” de 1844. Poressa concepção, o reconhecimento de direitos e garantiasresultam de um processo histórico marcado por

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contingências políticas, econômicas e ideológicas, e quese expressa através de uma conquista da história social.

2. Direitos da liberdade: os direitos individuais

Apesar de os termos Direitos Humanos e DireitosFundamentais terem aparecido na França durante o séculoXVIII, e a sua formulação jurídico-positiva no plano doreconhecimento constitucional datar do século XIX, asorigens de sua fundamentação filosófica remontam aosprimórdios da civilização humana.

No mundo antigo diferentes princípios embasavamsistemas de proteção aos valores humanos, marcadospelo humanismo ocidental e pelo humanismo oriental.Assim, distintos ordenamentos jurídicos da Antigüidade,como o Código de Hamurabi, ou os Dez Mandamentos,previam princípios de proteção de valores humanosatravés de uma concepção ético-religiosa.

Durante a chamada Idade Média européia seconstituiu o jusnaturalismo cristão, cuja fonte principal foi opensamento de São Tomás de Aquino. A lei humana e asinstituições políticas estavam subordinadas ao direito divino,onde a proteção dos seres humanos seria uma dádiva deDeus, expressa nas ações do soberano em seu exercícioabsoluto do poder. Os valores considerados fundamentaispara os seres humanos tinham como fonte de legitimidadea vontade divina em sociedades fechadas onde o espaçodos interesses privados se identificava - podemos mesmodizer que se confundiam - com o espaço de interessepúblico. Tratava-se, assim, de sociedades onde não existiaa noção de igualdade formal entre as pessoas, mas sim derelações baseadas nos privilégios - leis privadas - de cadaclasse social organizadas dentro de uma estrutura rígidaonde praticamente inexistia a mobilidade social.

Uma sociedade onde a formação sócio-política-econômica - a Cristandade - se funda em argumentos de

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encantamento da realidade, onde a Igreja Católica nãoapenas serve de referência espiritual, mas bem mais doque isso é a fonte do poder político proveniente do domíniosobre a terra - não podemos nos esquecer que a quasetotalidade das terras européias pertenciam à Igreja -, ondeo conhecimento científico é considerado uma ameaça,onde as relações econômicas sofrem restrições e onde,ao invés da noção de cidadania-direito, existe a noção desoberania-súdito-privilégio, os valores fundamentais dasociedade tira a sua legitimidade da vontade divina e anoção de proteção das pessoas se restringe ao âmbitoda igualdade cristã perante Deus.

Foi somente a partir da passagem do século XV paraos séculos XVI e XVII que surgiram as condições objetivas esubjetivas que possibilitaram a modificação das referênciasde conhecimento, com o desenvolvimento de novosparadigmas sócio-culturais, éticos, estéticos, que seexpressaram através do Renascimento e da ReformaProtestante, onde a valorização do indivíduo e odesenvolvimento da noção de livre arbítrio abriu o caminhopara a posterior constituição do modelo jusnaturalista moderno.

Portanto, o processo que levou à constituição danoção de Indivíduo-Pessoa Humana como valor-fonte deordenamento da vida social se apresentou formalmente apartir do jusnaturalismo moderno com a elaboração danoção de direitos inatos, como verdade evidente, medidada comunidade política, mas dela mantendo-seindependente. Tal processo marca a passagem para umanova era, o Projeto Civilizatório da Modernidade, quetem como principais elementos fundantes os conceitos deuniversalidade, individualidade e autonomia. É, portanto,desta matriz civilizatória que se constitui a referência-valordos Direitos Fundamentais do Ser Humano.

A passagem das prerrogativasestamentais para os direitos do homemencontra na Reforma, que assinala apresença do individualismo no campo

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da salvação, um momento importantede ruptura com uma concepçãohierárquica de vida no plano religioso,pois a Reforma trouxe a preocupaçãocom o sucesso no mundo como sinalda salvação individual.4

Partindo da ruptura dos referenciais sócio-culturaisdo medievo, a noção de direito natural se laiciza -primeiramente com Grócio, mas, sem dúvida nenhuma,principalmente a partir de Hobbes.5

Ou seja, a partir do século XVI - e mais precisamentedo século XVII - se formulou a moderna doutrina sobre osdireitos naturais, preparando o terreno ideológico e político paraa transição do feudalismo para a sociedade burguesa. Tratava-se não mais dos direitos naturais fundados no direito divino,mas sim de propor a razão como o fundamento do direito.

Foi, principalmente a partir do século XVII, com opensador inglês Thomas Hobbes, que se desenvolveu ochamado modelo jusnaturalista moderno, onde a fundaçãodo Estado Político seria resultado de uma ação racionalatravés da manifestação da livre vontade dos indivíduos.Inicia-se um tipo de formulação que passou a influenciaro pensamento filosófico-político, levando à constituição domodelo liberal da sociedade e do Estado.

Com outro pensador inglês, John Locke, já no finaldo século XVII, desenvolveu-se a teoria da liberdade paraproteger a propriedade como valor fundamental.6

4 LAFER, Celso. A reconstrução dos Direitos Humanos. Um diálogo com opensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 121.5 Ver BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado naFilosofia Política Moderna. 2ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense.6 É importante notar que Locke utiliza a noção de propriedade com dois sentidos:a). o primeiro, mais amplo, como o conjunto das capacidades e potencialidadesdo indivíduo para a manutenção da própria existência e da sua liberdade.Trata-se da noção de propriedade enquanto particularidade humana deautodeterminação; b). o segundo sentido, restrito, seria entendido como oresultado do exercício da propriedade que cada ser humano tem de determinara própria existência através de sua relação com a natureza e utilizando a suapotencialidade e criatividade através do trabalho. O resultado é a constituiçãoda propriedade material, produto do trabalho humano individual, no exercíciode um direito inalienável de autodeterminação e auto-suficiência humana.

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Assim, para Locke, a condição prévia para o plenoexercício da liberdade seria a garantia do direito àpropriedade. Dessa concepção individualista burguesa,que marca o pensamento lockeano, nasceu a modernaidéia do cidadão, e de uma relação contratual entreindivíduos onde a propriedade, a livre iniciativa econômica,e uma relativa margem de liberdades políticas e desegurança pessoal seriam garantidas pelo Poder Público.

Locke, portanto, apontava a propriedade como odireito natural fundamental e inalienável do ser humano, odireito-fonte, do qual decorrem os demais direitos dosindivíduos. A proteção ao direito natural da propriedadeseria, então, o motivo pela qual cada indivíduo cedeparcelas de suas liberdades e direitos para a formaçãoda instância que protegerá a existência desse direito, ouseja, o Estado-Governo.

A noção jusnaturalista do Contrato Social, comogênese do Estado, foi difundida durante o século XVIII, dandoorigem à concepção contratualista do direito e da sociedade.O contratualismo, tendo por base a igualdade jurídica,aparece como forma de superação do direito baseado emprivilégios - fundado no “status” - e a constituição de umdireito baseado na vontade individual. O indivíduo passa aser entendido como valor-fonte do direito.

No contexto do século XVIII, caracterizado pelafilosofia iluminista, e por uma radicalização do confrontoantiabsolutista, foram apresentadas as idéias de pensadorescomo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) que inspiraramos movimentos revolucionários na França e na América. Éo período que preparava as grandes transformações sociaise políticas que levaram à elaboração da Declaração deDireitos de Virgínia, em 1776, e da Declaração de Direitosdo Homem e do Cidadão, aprovada pela AssembléiaNacional francesa, em agosto de 1789.

O pensamento de Rousseau desenvolveu-seafirmando a existência de uma condição natural humana defelicidade, virtude e liberdade. Ao contrário de Locke, entendia

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que é a civilização que limita as condições naturais defelicidade humana. Assim, Rousseau afirmou que o “homemnasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros.” 7

Para Rousseau a propriedade era a fonte dadesigualdade humana e, como tal, da perda da liberdade. Osindivíduos através de um pacto iníquo, iludidos, teriam formadoa sociedade civil onde tornaram-se desiguais e prisioneiros.Presos à uma ordem desigual, visto que alguns teriam seapropriado de forma fraudulenta dos bens da natureza que atodos pertencem. O resgate da condição natural de liberdadee igualdade somente seria possível com um novo pacto, dessavez racional, com base na vontade livre e consciente de cadaindivíduo e objetivando a constituição da República, comopatamar superior das condições do Estado de Natureza.Através do Contrato Social os indivíduos recuperariam a suaigualdade, como condição primeira para o exercício do direitoda liberdade. Assim, os indivíduos não deveriam abrir mão desua soberania.

É interessante notar que o pensamento de Rousseauultrapassa as limitações elitistas do liberalismo clássico,introduzindo uma concepção radical-democrática que secoaduna com as condições históricas da França do séculoXVIII, onde a burguesia aparecia no cenário político-social comouma classe revolucionária em luta contra o absolutismo feudal,aglutinando em torno de seus projetos um enorme contingentede setores, possibilitando o amadurecimento das condiçõessubjetivas que levaram à derrocada do antigo regime e ainstauração da nova ordem burguesa.

Foi a partir dessas lutas travadas pela burguesia européiacontra o Estado Absolutista que se criaram às condições paraa instituição formal de um elenco de direitos que passariam aser considerados fundamentais para a totalidade dos sereshumanos. E, como vimos, esse elenco de direitos coincidiacom as aspirações de amplas massas populares em sua

7 ROUSSEAU, J.J. Do Contrato Social. Os Pensadores. Abril Cultural. SãoPaulo, 1973. p. 28.

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luta contra os privilégios da aristocracia. No entanto, em últimainstância, eram direitos que primeiramente satisfaziam osinteresses da burguesia, dentro do processo de constituiçãodo mercado livre (direitos da liberdade expressando-se comolivre iniciativa econômica, livre manifestação da vontade, livrecambismo, liberdade de pensamento, opinião e expressão,liberdade religiosa, liberdade de ir e vir, mercado de trabalholivre, etc.) e conseqüentemente criando as condições para aconsolidação do modo de produção capitalista. Para isso foifundamental a formação do Estado Liberal e oreconhecimento constitucional de direitos dos indivíduos.

Sob a inspiração da Constituição dos Estados Unidosda América, os demais países das Américas, recémindependentes, passaram por um processo deconstitucionalização dos Direitos Humanos, através dapositivação dos direitos individuais, agregando um capítuloespecífico sobre o tema em suas Cartas Magnas. Estasconstituições restringem-se, assim, ao reconhecimento dasgarantias individuais, ou melhor, os direitos de cada indivíduoperante o Poder Público.

Dessa maneira, os Direitos Humanos em seu primeiromomento moderno, ou em sua primeira geração, são aexpressão das lutas da burguesia revolucionária, com basena filosofia iluminista e na tradição liberal, contra o despotismodos antigos Estados Absolutistas. Se materializam comoDireitos Civis e Políticos, ou como Direitos Individuaisatribuídos - segundo a tradição jusnaturalista - a uma pretensacondição natural do ser humano. São a expressão formal denecessidades individuais que requerem a abstenção doEstado para a garantia de seu pleno e livre exercício. O legadodo jusnaturalismo nos proporciona direitos que não devemser invadidos pelo Estado, e que por este devem serprotegidos contra a ação de terceiros. 8

8 Ver BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 2ª ed. São Paulo: EditoraBrasiliense, 1988.

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3. Os direitos da igualdade: direitos econômicos,sociais e culturais

A segunda metade do século XVIII assistiu a grandestransformações na sociedade capitalista liberal, ganhandoum desenho mais definido na passagem para o séculoXIX. Assim, os primeiros setenta anos do século XIXmarcaram a consolidação do Estado Liberal e o fenomenaldesenvolvimento da economia capitalista urbano industrial.Por outro lado, a liberdade do mercado, a necessidade dedesenvolvimento no processo produtivo para fazer frenteà competição, a consolidação dos mercados nacionaisnas sociedades da Europa Ocidental - principalmente naInglaterra, - a formação do proletariado urbano, aprogressiva concentração do capital, entre outras coisas,passaram a apresentar os primeiros sinais de crise danova sociedade capitalista.

Após o período denominado de “Era das Revoluções”pelo historiador inglês Eric Hobsbawn, temos já formadoo Estado Liberal burguês, uma economia capitalista demercado com base industrial, e um ordenamento jurídicoadequado ao funcionamento de uma sociedade burguesa.É o início da “Era do Capital”, que se desenvolveu e levou,no decorrer do século XIX, ao surgimento de contradiçõesno seio do próprio sistema.

O novo quadro do capitalismo faz com que a ideologialiberal seja inadequada para dar resposta para asconstantes crises, para os conflitos e contradições sociais.A ideologia liberal passa a ser questionada pelo movimentooperário e pelo pensamento socialista. Por outro lado,procurará se redefinir através do processo de valorizaçãocientífica, influenciado pela filosofia positivista, que marcouo século XIX. O positivismo surge buscando explicar arealidade social visando a manutenção da ordem burguesa.É dentro desse marco que surgem as “Ciências do Homem”como um conjunto de disciplinas pretensamente científicasque explicariam os problemas sociais existentes na

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sociedade burguesa-industrial, legitimando suas práticasdiscriminatórias, racistas, etnocentricas e marginalizadorasde grandes contingentes populacionais.

A Revolução Industrial, ao mesmo tempo que elevoua patamares nunca vistos na história humana acapacidade de produção e a produtividade do trabalho,destruiu violentamente o modo de vida tradicional dostrabalhadores e introduziu a rígida disciplina do sistemafabril. As condições da vida dos trabalhadores eramdeploráveis, com jornadas de trabalho - inclusive decrianças e mulheres - de cerca de 15 horas diárias, semleis sociais, trabalhistas ou previdenciárias protetoras, sobcondições de completa insegurança. As condições de vidanas cidades também eram terríveis, no que se refere àmoradia, ao saneamento básico e à infra-estruturanecessárias para a garantia de condições dignas de vida.O resultado era uma legião de desempregados,miseráveis, e diversos problemas sociais como oalcoolismo, a prostituição, ao banditismo, a loucura, etc.9

O positivismo identificava esses problemas sociais como“resquícios do passado”, onde o modelo capitalista seriaisento de responsabilidade.

Nesse contexto, os Direitos Humanos serãoentendidos não mais como um produto normativo do Estadoou uma garantia de reconhecimento de direitos àquelesindivíduos adequados aos valores da sociedade burguesa.

Do ponto de vista do pensamento socialista, omarxismo apresentou-se como a crítica mais contundenteà referência liberal. Observamos que Karl Marx, em “AQuestão Judaica,” de 1844, analisa a concepção de DireitosHumanos como princípios de caráter individualista-burguês,marcados pela ideologia liberal. Dessa maneira, a pretensãoa um caráter universal desses direitos não afastaria a sua

9 Ver HUNT, E.K. História do Pensamento Econômico: Uma Perspectiva Crítica.Rio de Janeiro: Editora Campus. 1982; HUNT E.K. & SHERMAN, H.J. Históriado Pensamento Econômico. Petrópolis: Editora Vozes. 1978.

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verdadeira natureza liberal-burguesa. Ao contrário, a suauniversalidade aparece exatamente quando a burguesiarevolucionária do século XVIII conseguiu encarnar comoconquista sua as demandas e interesses de amplossegmentos humanos e que puderam ser generalizados naluta contra o poder despótico do absolutismo. Por outro lado,para Marx, as declarações formais de Direitos Humanosnão faziam nada mais do que formalizar as condições reaisda sociedade burguesa, com uma separação entre osespaços público e privado. Essa dicotomia público-privadose materializa com a distinção entre as esferas de atuaçãodo ser humano. Uma clara separação entre o “Homem” e o“Cidadão”. Dessa maneira, os Direitos Humanos seriamos direitos que se estabelecem na esfera privada, o queremeteria às condições do mercado, ou o posicionamentode cada indivíduo na sua distinção com os outros humanos(cristãos e judeus; nacionais e estrangeiros; operários epatrões; homens e mulheres; etc.). Seriam direitos doHomem egoísta, individualista, motivado apenas pelos seusinteresses particulares. A ética do Homem Burguês.

Enquanto isso, a esfera do “Cidadão” seria aquela decada ser humano na sua relação com a coletividade, suaesfera pública. No fundo o “Cidadão” da sociedade burguesa,para Marx, seria uma figura de retórica, um ente abstratode igualdade pública que pouco ou nada representava noespaço real da existência que seria o espaço privado, ou omercado, onde na prática se reproduziriam as diferenças,as desigualdades, a opressão e a exploração, com basenessas diferenças.

As obras posteriores de Marx mantiveram aconcepção de que os Direitos Humanos proclamados emdocumentos liberais apenas concretizava uma divisão entre“Homem-Indivíduo” da sociedade civil-mercado e o“Cidadão”. E os direitos reconhecidos seriam os direitosdaquele “Homem-Indivíduo,” egoísta, separado do espaçopúblico. Essa concepção acompanha a típica dicotomia dassociedades burguesas entre os espaços público e privado.

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O autor Claude Lefort, em “A Invenção Democrática:Os Limites do Totalitarismo,”10 de 1981, questiona algunspontos referentes às observações de Marx, principalmentea sua omissão em relação aos artigos da Declaração deDireitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesaque dispõe sobre a liberdade de pensamento, de expressãopolítica e religiosa e de comunicação, enquanto direitos declara repercussão coletiva. Recoloca-se a questão partindodas experiências totalitárias do século XX (nazi-fascismo eestalinismo) e das experiências dos Regimes Burocrático-Autoritários de corte militar da América Latina. Ao partirdessas realidades podemos rever alguns dos conceitostrabalhados por Marx, principalmente no que se refere aodireito de opinião e de expressão, e a sua dimensão coletiva.E foi exatamente nas experiências do nazi-fascismo e doestalinismo que os seres humanos foram transformadosem indivíduos isolados, dissolvendo a individualidade emum coletivo de controle absoluto. Nessas experiências ocoletivo não chegava a ser a expressão do público, nãoocupava o espaço público como sujeito social autônomocom consciência e projeto definidor de sua prática social,ao contrário, o coletivo era o espaço de dissolução daindividualidade numa massa amorfa, sem definição, semconsciência de classe ou de uma capacidade própria deintervenção direta no espaço de sociedade.

No entanto, o que o pensamento socialista e a práticado movimento operário europeu e norte-americano doséculo XIX questionava era a existência de uma enormecontradição entre os enunciados da doutrina liberal daburguesia revolucionária anti-absolutista, formalmentedivulgados nas declarações de direitos, e a realidade vividaquotidianamente por uma ampla maioria do povo. Ostrabalhadores encontravam-se submetidos às mais durascondições de existência. A lógica de existência e

10 Ver LEFORT, Claude. A Invenção Democrática: Os Limites do Totalitarismo.2ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense.

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funcionamento do Estado Liberal não admitia a hipóteseda intervenção pública na questão social. Dessa maneira,estava descartada a possibilidade de regulamentação domercado de trabalho, da existência de uma legislaçãosocial protetora e de uma política previdenciária. Todasessas questões sociais referentes às relações entrecapital e trabalho deveriam ser reguladas pelo mercadolivre. Com isso, o desemprego era grande, a remuneraçãoinsuficiente para garantir uma vida digna, a jornada diáriade trabalho - como vimos antes - poderia chegar a 16horas, o trabalho infantil era utilizado sem limitações, astrabalhadoras não tinham direitos reconhecidos de acordocom a sua condição específica de mulher, a salubridade eas condições de segurança no trabalho não eramgarantidas, etc. No que se refere às condições gerais devida, outros problemas apareciam, como o desemprego,a falta de moradia, a inexistência de serviços públicos desaúde, a falta de acesso à educação, etc.

Existia, portanto, um verdadeiro fosso entre oenunciado das declarações de igualdade de direitos, deliberdades para todos os seres humanos, e a vida realdos trabalhadores urbanos. E isso representava o maisradical questionamento aos princípios liberais dos DireitosHumanos ou, pelo menos, demonstrava as limitações deuma concepção meramente formal e declaratória dedireitos que eram insuficientes para a garantia do efetivoexercício dos mesmos. Ter formalmente expresso em umdispositivo constitucional o direito à vida, ou à propriedade,não garantiria necessariamente que todos viveriam ouseriam proprietários. Uma das características docapitalismo é exatamente a concentração da propriedadedos meios de produção nas mãos de poucos proprietáriosprivados. Ou ainda, num plano abstrato, a idéia de que setrata de uma sociedade de proprietários: poucos sãoproprietários de meios de produção e a imensa maioriaproprietária da sua força-de-trabalho. Dessa maneira, damesma maneira que princípios abstratos de igualdade

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formal, de liberdade individual como requisitos necessáriospara a felicidade humana não garantiriam nem a igualdadematerial, nem a liberdade real, e muito menos a felicidade.

Se por um lado essas declarações de princípiostiveram um papel importante e civilizatório no empenhorevolucionário da burguesia dos séculos XVII e XVIII contra odespotismo, o obscurantismo, a superstição do “anciénrégime,” por outro, no decorrer do século XIX, confrontadoscom uma realidade de contradições antagônicas no seio daordem capitalista, onde a própria burguesia já era outra - agoraconservadora - tais princípios caem no vazio, deixam de tersentido apenas declaratório e passam a fazer parte daspautas de reivindicação do movimento operário e dos demaismovimentos populares da cidade e do campo. Osmovimentos sociais passam a exigir que a noção de liberdadese materialize na liberdade de associação sindical, na livreparticipação política, obrigando à ampliação do Estado e asocialização da política através da adoção do sufrágiouniversal e do surgimento dos primeiros partidos políticos detrabalhadores; exigindo, também, que a noção de igualdadenão se restrinja a uma declaração formal dos enunciadoslegais, mas que se materialize em políticas públicas do Estadovisando garantir efetivas melhorias nas condições de trabalhodos trabalhadores e nas condições gerais de vida de toda apopulação pobre; exigem que a noção de propriedade seconcretize como o verdadeiro direito a ser proprietário dosmeios de produção, principalmente apontando as formas depropriedade coletiva e o acesso à propriedade fundiáriaatravés da reforma agrária, visto que os tempos heróicosdas revoluções burguesas aliadas ao campesinato já tinhamficado para trás.

As opressivas condições de vida impostas aostrabalhadores europeus durante o século XIX levaram ossindicatos e os partidos socialistas a reivindicarem aintervenção do Estado na vida econômica e social, visandoa regulamentação do mercado de trabalho.

Por outro lado, o próprio capitalismo encontrava-se emtransformação. O capitalismo não era mais o simples sistema

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produtivo da livre concorrência, como no século XVIII e naprimeira metade do XIX. Principalmente a partir dos anossetenta do século passado já se anunciava a fasemonopolista do capitalismo, organizado com base emgrandes conglomerados econômicos. Essa nova etapa dodesenvolvimento capitalista requeria uma organizaçãoeconômica baseada numa nova divisão internacional dotrabalho - o imperialismo clássico desempenhou um papelimportante nesse processo - e uma nova lógica que obrigoua uma redefinição da ideologia liberal clássica e do papeldo Estado. Este gradativamente deixa de ser o “árbitro” dasociedade e passa a assumir o seu papel interventor nasatividades econômicas e sociais.

A crítica do pensamento socialista e as lutas operáriase populares colocaram como necessários os DireitosColetivos, ou Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Asituação de crise e desigualdade social, somadas àconcentração do capital, tornou insuficiente a interpretaçãoliberal sobre os Direitos Humanos, entendidos como supra-estatais, inerentes à uma razão natural do ser humano,independente dos condicionamentos sociais, históricos,culturais, das contradições de classe, etc.

Se para a concepção liberal, a garantia dos direitosnecessitaria de uma abstenção do Estado, deixando aosindivíduos a melhor maneira de exercer os seus direitosindividuais, as lutas sociais reivindicavam a presença efetivado Estado através de políticas públicas e leis quepromovessem os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Como dissemos antes, o movimento operário e aslutas populares baseados no pensamento socialistaforam os elementos que possibil i taram tornarconseqüentes os direitos humanos ampliando seucampo de atuação e integrando a noção dos chamadosdireitos individuais com os direitos coletivos. Não bastaser cidadão individual, com uma participação formal nasdecisões políticas, por exemplo. É necessário a presençapública garantindo o exercício dos direitos individuais e a

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proteção igualitária no campo social, exigindo uma açãopositiva do Estado, criando condições institucionais parao seu efetivo exercício.

A partir da conscientização do proletariado, tornando-se classe para si, do aparecimento dos primeiros partidossocialistas de massa, da atuação dos trabalhadores noâmbito da política institucional e as conseqüentesconquistas populares, garantindo a ampliação do conteúdode Direitos Humanos, a Igreja Católica se vê obrigada aformular a sua moderna doutrina social apresentando aEncíclica Papal “Rerum Novarum”, de 1891.

Durante as primeiras duas décadas do século XX, aConstituição Mexicana de 1917; a Revolução Russa de1917 com o início da formação do primeiro Estado Socialistae a primeira Constituição Soviética ; a Constituição daRepública de Weimar, na Alemanha, em 1919; e a criaçãoda Organização Internacional do Trabalho (OIT), ampliarama abrangência dos Direitos Humanos, possibilitando dar oscontornos jurídicos reguladores das condições de trabalhoe das demais condições sociais. Assim, a ampliação daconcepção dos Direitos Humanos, entendidos não maisapenas como os clássicos direitos da primeira geração,mas também incorporando os chamados direitos dasegunda geração (Direitos Econômicos, Sociais eCulturais), direitos que exigem a ação positiva do Estado,cria condições institucionais para o seu efetivo exercício.

4. Os direitos da solidariedade: direitos dos povos,novos direitos ou direitos de toda humanidade

A ampliação do conteúdo dos Direitos Humanosseguiu o caminho aberto pelas reivindicações sociais epelas transformações econômicas e políticas quemarcaram as sociedades nos últimos três séculos,possibilitando importantes conquistas civilizatórias para ahumanidade. Esse processo de ampliação de direitos

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passou a encarnar as demandas levantadas pelas lutasdemocráticas e populares que historicamente passarama expressar os anseios de toda a humanidade. Assim, foicom as lutas sociais contra o absolutismo feudal duranteos séculos XVII e XVIII e nas lutas contra a exploração dotrabalho, e por novos espaços de liberdade coletiva eigualdade material que garantissem as condições deviabilização da existência digna dos seres humanos.

Durante o século XX, após grandes conflitos sociais,novas reivindicações humanas, de caráter individual,social e estatal, passaram a fazer parte da cenainternacional e do imaginário social das sociedadescontemporâneas. As condições para a ampliação doconteúdo dos Direitos Humanos se apresentavam atravésde novas contradições e confrontos que exigiam respostasno sentido da garantia e proteção das liberdades e da vida.

O contexto histórico inaugurado com o final daSegunda Guerra Mundial abriu para a humanidade uma novaera. A luta contra os modelos totalitários de Estado revelouao mundo uma série de crimes contra a humanidadecometidos por regimes de orientação fascista. Por outrolado a experiência totalitária do estalinismo, desvirtuandoos ideais do socialismo, colocaram o chamado socialismoreal no campo do totalitarismo.

A realidade após o conflito mundial foi, no entanto,mais complexa. Junto com a valorização de um idealabstrato de democracia, o mundo do pós-guerra nasceudividido em blocos, sob a direção político-ideológico-militardas duas grandes potências emergentes do conflito -Estados Unidos e União Soviética - marcado pelo signoda “guerra fria.” Iniciava-se a era nuclear, que demonstrouque a ciência, a tecnologia, o conhecimento humano podemser utilizados para a destruição e para o exercício ilimitadodo poder. Com o fim da guerra, a humanidade passou aconviver com a ameaça da destruição total.

Por outro lado, as novas relações internacionais dopós-45 apresentavam novos atores nascidos do processo

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de descolonização da Ásia e da África, com o surgimentode novos Estados Nacionais, como também de novosconflitos regionalizados.

O final da guerra deu início a um novo ciclo deacumulação econômica do capital a partir de uma novadivisão internacional do trabalho, através do modelo datransnacionalização do capital. Iniciava-se a “Era dasMultinacionais.” O período que vai de 1945 até fins dadécada dos 60 foi marcada por um grande impulsoeconômico com base no capital monopolistainternacionalizado. O processo de desenvolvimentoeconômico do capitalismo internacional, vivendo um cicloexpansivo, teve como conseqüência imediata a ampliaçãodo uso intensivo das fontes de energia e recursos naturaisde todas as regiões do planeta. Tal modelo dedesenvolvimento ampliou consideravelmente a destruiçãoambiental, já iniciada desde as primeiras etapas dodesenvolvimento industrial, afetando principalmente ospaíses do chamado “terceiro mundo.”

Toda essa nova e complexa realidade nascida como pós-guerra, colocou na ordem do dia uma série de novosanseios e demandas dos novos movimentos sociais.

Surgem os chamados Direitos dos Povos, Direitosde toda a Humanidade, ou Direitos da Solidariedade, comoa Terceira Geração dos Direitos Humanos. São ao mesmotempo direitos individuais e coletivos, interessando à todaa humanidade e aos próprios Estados. São, portanto,direitos a serem garantidos com o esforço conjunto doEstado, dos indivíduos, dos diferentes segmentos dassociedades e das diferentes nações.

Estos derechos se caracterizan por tresfactores: En primer lugar, sonreclamables frente al Estado, pero sutitular también puede ser el Estado. Ensegundo lugar, estos derechos requierende prestaciones positivas y negativas detoda la comunidad internacional.

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Finalmente, estos derechos seinvolucran en el concepto de paz en unsentido amplio, no solamente comoausencia de guerra sino,fundamentalmente, como la posibilidadede una paz integral del ser humano.” 11

Entre esses novos direitos podemos citar o Direitoà Paz, o Direito ao Desenvolvimento, o Direito àAutodeterminação dos Povos, o Direito ao Meio AmbienteSaudável e Ecologicamente Equilibrado, o Direito aoPatrimônio Comum da Humanidade, o Direito à Informação.

5. Direito à democracia: direito a viver numasociedade democrática

A rigor não existe no campo da reflexão acadêmicasobre os Direitos Humanos uma sistematização emrelação à democracia como direito fundamental. Noentanto alguns autores tem levantado essa questão desdefins dos anos 70. Autores como Claude Lefort e NorbertoBobbio,12 entre outros, enfretaram a questão das práticassócio-políticas democráticas e, mais do que isso, de umaexistência e uma cultura democrática como requisitospara a efetivação dos Direitos Humanos. É verdade queBobbio tratou o tema mais no campo institucional, ou seja,a democracia como uma forma de governo, um regimeonde estão definidas as regras do jogo institucionaldemocrático e as condições básicas para a garantiainstitucional dos direitos fundamentais.

11 PICADO, Sonia. Apuntes sobre los fundamentos filosóficos de los derechoshumanos. Antologia Básica. IIDH-CAPEL. San José, Costa Rica. 1990. p. 45.12 Para tratar do tema da democracia e a sua relação com os direitos humanosver os livros de LEFORT, Claude. A Invenção Democrática: Os Limites doTotalitarismo. São Paulo: Editora Brasiliense; Pensando o Político: Ensaiossobre Democracia, Revolução e Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1991; de BOBBIO, Norberto ver O Futuro da Democracia. São Paulo: Paz eTerra, 1984 e A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992.

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A partir de tais reflexões podemos, a título de explicaçãosobre a ampliação conceitual, definir o direito à democraciacomo a 4ª Geração dos Direitos Humanos. Oconstitucionalista Paulo Bonavides chegou a afirmarexplicitamente, em artigo publicado no Jornal do Brasil,13 queos direitos das gerações anteriores, a saber os da liberdade,os da igualdade e os da solidariedade, formam uma pirâmidecujo ápice é o direito à democracia, como ponto culminantedos direitos antecedentes. Conclui que, ao contrário dosdireitos da primeira geração que devem ser interpretados,os direitos das gerações subseqüentes são concretos, nãose bastam pelo seu enunciado formal. Enquanto os direitosda liberdade, as liberdades civis e políticas, dependem deuma abstenção do Estado, e apresentam uma forçasimbólica a partir de sua enunciação formal, os direitos dasdemais gerações dependem diretamente de suaconcretização, de uma ação efetiva. No que diz respeito aosdireitos econômicos, sociais e culturais, dependendo de umaação positiva direta do Estado, a materialização de tais direitosse dá com a existência de leis e de políticas públicasdistributivas. No que se refere aos direitos da solidariedade asua concretização se dá não apenas com a participaçãoativa do Estado, como também de órgãos internacionais,organizações não-governamentais, movimentos sociais, etc.E no caso do direito à democracia, o papel da sociedade civilé fundamental, desde que nosso entendimento não sejarestrito e, ao contrário, a identifique como resultado daspráticas sócio-políticas e culturais. No entanto, não podemosperder de vista o potencial revolucionário e transformador dademocracia onde a noção de cidadania individual deixa deser passiva, como na tradição liberal, e aparece como umaforça simbólica capaz de liberar energias sociais de lutacapazes de criar as condições para conquistas no campoda cidadania coletiva.

13 BONAVIDES, Paulo. A Globalização que interessa. Jornal do Brasil, Rio deJaneiro, 16 jan.1996.

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Sem dúvida existem questões que se entrelaçamnesse campo. Por um lado as questões relacionadas aoEstado Democrático em contraste com as inúmerasformas burocrático-autoritárias e, principalmente, com oPoder Totalitário. Por outro lado, questões referentes aoexercício da cidadania.

É neste campo que se coloca o anseio de uma vidademocrática, ou da existência social num ambientedemocrático como uma reivindicação ou uma demandahumana, individual e coletiva, onde a existência de umEstado Democrático de Direito aparece como o resultadodas práticas dos cidadãos e do respeito aos direitosfundamentais. Trata-se, dessa maneira, de entender ademocracia não como simples regime político, ou comoforma de governo, mas sim como forma social, comoprática sócio-política que se expressa no espaço cultural.

Uma das questões mais importantes colocadas ésobre a capacidade dos direitos humanos serem meio deluta que tem contribuído para a emergência e aconsolidação democrática.

Se no decorrer do século XIX, principalmente na suaprimeira metade, o Estado Liberal se apresentava como“guardião” das liberdades civis, embora assegurando aproteção de interesses dominantes, as lutas sociais e asmodificações do capitalismo e do próprio Estadopossibilitaram a ampliação do espaço político marcandoo advento da sociedade liberal-democrática com aconquista do sufrágio universal masculino (as limitaçõesdos direitos da cidadania permaneceram por longo tempopara as mulheres), a liberdade de opinião, a liberdade deassociação para os trabalhadores, o direito de greve, etc.Trata-se, portanto, de transformações impulsionadas nãoapenas pelas lutas dos trabalhadores e pela influência dospensamentos socialista e libertário, mas também pelaprópria mutação dos padrões de acumulação capitalistaque ampliaram os espaços de mercado internoincorporando, como consumidores-contribuintes, amplos

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contingentes sociais subalternos. É assim que a compreensãodo sentido dos direitos humanos no quadro dos Estados deBem-Estar Social requer uma análise do significado históricoe das transformações ocorridas no Estado Liberal e a própriaconsolidação de práticas democráticas.

Na sua caracterização do Estado Democrático deDireito, Lefort14 faz o contraponto com o Estado Totalitário.Parte da noção do totalitarismo não como regime, mascomo forma de sociedade, onde o núcleo de poder sefundamenta em nome da verdade absoluta, ou do saber,ou da ciência, ou da história. O poder totalitário faz coincidirabsolutamente a esfera pública com a esfera estatal e estase confunde com o privado não deixando espaço deautonomia para o desenvolvimento das liberdades civis epolíticas. Já a democracia implica afirmar uma “fala” que édistinta do próprio poder do Estado. O poder totalitário ignoraessa “fala,” e só reconhece a “fala” que esteja dentro desua órbita de influência direta. O discurso totalitário do poderbasta por si. Falta, assim, autonomia para a sociedade civil.Os indivíduos não são tratados como cidadãos e aquilo queseria considerado direito não passa de um disfarce para aspráticas assistenciais do Estado. Seria, portanto, aexistência das liberdades civis e políticas a condiçãoindissociável e geradora do debate democrático.

Para Lefort, portanto, não existem direitos numasociedade totalitária, visto que a lógica da sua existêncianão é o bem-estar. A lógica que prevalece numa sociedadetotalitária é do poder do Estado, do Partido-Estado.

Desta análise, Lefort parte para a compreensão dademocracia como forma de sociedade. As liberdades civise políticas são os requisitos para existência de um debatepúblico que se expressa como debate democrático. Ou seja,sem as liberdades democráticas, mesmo quando apenas

14 v. LEFORT, Claude. Os Direitos do Homem e o Estado-Providência. In:Pensando o Político: Ensaios sobre Democracia, Revolução e Liberdade.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

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expressas em enunciados formais, não é possível existirdemocracia. São tais liberdades, inclusive, que garantemas condições de reivindicação, protesto e demanda para oreconhecimento de direitos econômicos, sociais e culturais.

Devemos perceber o caráter radical e subversivo dademocracia no sentido da ampliação das liberdades, e dopotencial que abre para as forças sociais se expressarem eocuparem o espaço público com autonomia, independênciae formas próprias de participação e organização, com umobjetivo transformador. Portanto, o projeto de autonomiaindividual e coletiva está na base de uma sociedadedemocrática e os Direitos Humanos, mesmo quandoindividuais, tem uma natureza social e política porque supõemuma dinâmica no campo das relações sociais.

Assim, os Direitos Humanos são substanciais à umasociedade democrática. E é em nome de tais direitos quese possibilita o debate público-democrático, a contestação,a democracia, a luta e o conflito democrático, constituindoo espaço público, de “fala” e ação, possibilitando oexercício, individual e coletivo, da cidadania.

Dessa forma, enquanto para a tradição liberal aênfase é na cidadania passiva, que emana do poder doEstado, enquanto direitos reconhecidos, e a tradiçãomarxista tradicionalmente deu ênfase ao processo de lutassociais e de direitos como conquista de uma cidadania ativa,Lefort amplia seu entendimento incorporando a dimensãosimbólica da democracia como expressão transformadoraradical e subversiva. O que se evoca é que a democracia éuma forma de relação social onde todos podem participar,produto do conflito social. Assim, o projeto de umademocracia radical é fundamentalmente revolucionário euma idéia altamente subversiva para qualquer tipo de poder.

O reconhecimento da democracia no campo dosdireitos fundamentais, ou como condição básica para agarantia dos demais direitos humanos nos coloca peranteum debate sobre a questão da relação entre os DireitosHumanos, a Cidadania e o Estado Democrático.

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6. Cidadania, direitos humanos e democracia

As teorias da cidadania moderna partem daexistência do Estado-Nação. Define, portanto, aqueles quesão membros de uma sociedade comum, de umacoletividade. Assim, o sua natureza política está presente.

Primeiramente, é necessário observar a existênciade um ponto de tensão entre o conceito de Cidadania e anoção de Direitos Humanos, pois se restringimos aCidadania aos nacionais, aos membros de um comunidadenacional ou de uma sociedade comum, passa existir umdistanciamento com a concepção mais ampla de DireitosHumanos, estes últimos gerais, universais, nãodiretamente vinculados à instância nacional.

Diferentes autores trataram o tema, mas devemospartir de uma análise crítica da obra do autor inglês T. H.Marshall, “Cidadania e Classe Social”, do ano de 1950.Para o autor a plena expressão da cidadania requer aexistência de um Estado de Bem-Estar Social Liberal-Democrático. Dessa maneira, Marshall trabalha com anoção de integração social, dentro de uma perspectivaliberal-reformista keynesiana. O autor centra a sua análisena natureza da cidadania na Inglaterra do pós-guerra. Éuma concepção de “cidadania passiva” ou “privada”, vistoque o exercício dos direitos não implica numa obrigaçãosocial de participação na vida pública, dependendo apenasda capacidade assistencial do Estado.15

Marshall parte da noção de status. A cidadania seriaum “status concedido àqueles que são membros de umacomunidade”. Se a noção da cidadania é incompatível coma desigualdade formal fundada no sistema de privilégiosdas sociedades feudais pré-burguesas, requer, portanto,

15 Os autores canadenses Will Kymlicka e Wayne Norman denominaram essaconcepção de Teoria Ortodoxa do Pós-Guerra. Ver destes autores o artigo ElRetorno del Ciudadano: Una revisión de la producción reciente en teoría de laciudadanía. In Cuadernos del CLAEH, nº 75, Montevidéo, Uruguay, 1996.

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a igualdade formal jurídica, a existência de uma medidaúnica de valor jurídico, um direito único igual para todos.

A teoria de Marshall leva a um rompimento com atradição liberal de cidadania das Revoluções Burguesas,ligada apenas aos direitos políticos, ampliando-a com osdireitos civis e sociais.

Assim, Marshall conceitua a cidadania partindo de seustrês elementos constitutivos, direitos civis, direitos políticos edireitos sociais, fazendo uma análise das relações entre acidadania, a sociedade e os órgãos institucionais quegarantem o seu exercício. Portanto, parte de uma relaçãoinstrumental entre cidadania, poder político e Estado.

Para a teoria marshalliana a existência de um suporteinstitucional estatal através de políticas públicas deserviços sociais e educacionais é fundamental para aexistência da cidadania ampliada. Do contrário nãopassaria de um enunciado formal vazio, sem essência.Portanto, para Marshall, mesmo os direitos civis e políticosdependem do Estado. Como se poderia efetivar os direitoscivis sem a instituição de uma Justiça Civil e osprocedimentos de acesso à Justiça como meio paragarantir a igualdade de todos perante a lei. Ou, comogarantir o direito político de participação e representaçãosem uma instituição como o Parlamento. Assim, são asinstituições do Estado - com políticas sociais e instituiçõespúblicas - que efetivam os direitos civis, políticos e sociais.

Portanto, o autor inglês estabelece um corte importantecom a noção liberal de cidadania, ligada apenas aos direitospolíticos, e amplia a sua noção com os direitos civis e sociais.

O autor inglês indica que o desenvolvimento de umEstado Social leva a que a cidadania evolua e se amplie,deixando de ser um sistema de direitos que se originamnas relações de mercado para se transformar em umsistema de direitos que são, em parte, antagônicos comesse sistema de mercado e a desigualdade de classessociais - embora considere a desigualdade das classes,desde que não excessiva, como necessária e funcional

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ao sistema pois estimularia o esforço pessoal edeterminaria a relação de poder. A questão se coloca pelaconstatação da ampliação da cidadania e, ao mesmotempo, da manutenção da desigualdade através dosistema de classes nas sociedades capitalistas do séculoXX, o que, para Marshall, não se trata de uma contradição.

Em última instância, Marshall buscou demonstrarcomo a cidadania tem alterado o padrão de desigualdadesocial. No entanto, permanece a contradição entre osdireitos sociais e o valor do mercado. Existiriamdesigualdades permitidas ou moldadas pela cidadania.Assim, as desigualdades podem ser toleradas no seio deuma sociedade considerada igualitária, desde que dentrode limites precisos e que tais desigualdades sejamdinâmicas, oferecendo estímulo para a mudança eaperfeiçoamento que possibilite a diminuição dessadesigualdade existente. Dessa maneira, Marshall, acreditaque a cidadania social possibilita um estreitamento nadistância da desigualdade.

Marshall trabalha pela ótica do Estado instituído,representado pelo Estado de Bem-Estar Social, e não doinstituinte, ou seja, uma ótica da sociedade civil, que seexpressaria nos movimentos sociais. Com Marshall existe,portanto, uma reificação da experiência inglesa do EstadoSocial, como um modelo que se universaliza. Sua concepçãose dá no contexto histórico dos anos 50, em plena “guerrafria,” onde uma definição no campo da social-democraciaeuropéia passava a ser fundamental como um contrapontosocial alternativo de combate ao modelo socialista.

Como Marshall trabalha com uma idéia deevolucionismo, a cidadania seria sempre ascendente.Assim, sua teoria aparece como o próprio “fim dacidadania,” o seu alcance superior sob umainstitucionalidade do “Welfare State.”

A partir do final dos anos 80 há uma reabilitação deMarshall. A crise dos modelos de Estado Social - seja nasua versão liberal-reformista do Estado de Bem-Estar, seja

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na sua versão socialista - possibilita a hegemonia neoliberale retrocessos profundos no campo dos direitos sociais.Apesar de ser um autor liberal-reformista, que se baseia nokeynesianismo, Marshall, ao incluir os direitos sociais e opapel do Estado no conceito de cidadania, passa a receberduras críticas dos neoliberais. Para o neoliberalismo oEstado de Bem-Estar Social, com suas políticas sociais,gera a crise fiscal, a inflação e encarna a figura do mal, umagente do parasitismo social financiado pelo Estado, umagente da corrupção, da falta de caráter moral pois nãoestimularia o esforço pessoal e a acumulação competitiva,mas sim a acomodação. Toda a ofensiva neoliberal vai nosentido de afirmar que os direitos da cidadania são apenasos direitos individuais, os direitos civis e políticos, enquantoenunciados formais, reduzidos a uma identidade do cidadãocomo proprietário-consumidor-contribuinte.

Assim, se nas décadas de 50, 60 e 70, Marshall nãoestaria no campo progressista da esquerda socialista, apartir do final dos anos 80 sua teoria, em parte, é resgatadana luta contra o neoliberalismo. E é Barbalet16 um dosautores que consideram a atualidade de Marshall, apesarde afirmar que não chega a existir uma teoria acabadasobre a cidadania.

A consideração sobre a atualidade de Marshall estáno quadro das transformações ocorridas no capitalismocom a crise do modelo fordista, que só foi possível - noque se refere à uma política distributivista - no quadro de“guerra fria”, o que levou aos compromissos deincorporação, aliança e cooptação das classessubalternas e da promoção dos direitos sociais com taxasaltíssimas de acumulação de capital.

Como, para Marshall, a cidadania é sempreascendente a partir de um mínimo que a caracteriza, acrise do final do século XX, e as ameaças do neoliberalismo

16 v. BARBALET, J.M. A Cidadania. Temas de Ciências Sociais. Lisboa: EditorialEstampa, 1989.

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à cidadania social, tem levado a uma diminuição dessemínimo de direitos. E o minimalismo de defesa, nessecontexto de hegemonia neoliberal, coloca como objetivodos segmentos da esquerda a busca da manutenção deum mínimo de presença estatal necessária para garantiras tarefas sociais.

Ao contrário de Marshall, o pensador italiano Bobbioafirma que os direitos da cidadania são históricos, nãotendo um fim, e não sendo necessariamente ascendentes.E, sendo históricos, são direitos que expressam as lutasentre diferentes atores sociais. Por outro lado Bobbio nãose restringe apenas aos direitos da cidadania, mas tratados Direitos Humanos que, sem a garantia institucionaldo Estado, não se materializam, não tem efetividade e nãopodem ser garantidos.

Bobbio abre espaço, com sua reflexão, para umanoção ampliada e global da cidadania ao perceber oprocesso de internacionalização e universalização dosDireitos Humanos, que possibilita a idéia de uma cidadaniado mundo, que não se restrinja à clássica concepçãobaseada no Estado-Nação.

O campo da tradição marxista, por outro lado,entende que o Estado de Bem-Estar Social é o patamarmais avançado que o capitalismo poderia almejar nagarantia de direitos sociais e de uma igualdade relativa,superando a desigualdade absoluta. Ao mesmo tempo quegarante direitos, no entanto, cria uma heteronomia, ondeas classes subalternas são menos cidadãs e maisclientela do sistema de bem-estar social.

No decorrer dos anos 90, no entanto, houve umpronunciado deslocamento das originais referências deMarshall sobre diferentes questões relacionadas àcidadania. Novas identidades que não se relacionamunicamente com a noção do Estado-Nação, diferentesclivagens na dinâmica conflitiva das sociedadescontemporâneas, que são geradoras de direitos,demandas individuais e coletivas, inclusão e exclusão

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social. Assim, o crescimento da exclusão social e damiséria, com as políticas de ajuste estrutural realizadas apartir dos anos 80, fez crescer o debate sobre a cidadaniae os Direitos Humanos.

Dessa forma, sob a interpelação da nova direitaneoliberal, o debate contemporâneo obrigou a umaredefinição do campo progressista, se ampliando emostrando em que medida existe um tensionamento emsociedades cada vez mais complexas, plurais,diversificadas e conflitivas. Por um lado, a exigência derelações societais democráticas - um alto grau dedemocracia - para dar conta desses múltiplos conflitos,complexidade e diversidade. Por outro lado, a colocaçãoem cheque da própria institucionalidade democrática. Eisso abre todo um campo de reflexão sobre os sujeitossociais, a democracia e os direitos humanos como práticasócio-política.

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RESUMO

Desde o século XVIII, o conceito de direitos humanos passoupor um processo de ampliação, resultado da incorporação deconquistas políticas. As diferentes concepções que fundamentamos direitos humanos fazem com que o seu conteúdo sejaeminentemente político e ideológico. O contexto que se abre comos anos oitenta do século passado, com a hegemonia do modeloneoliberal e a crise dos modelos do “Welfare State”, colocou sobuma nova ótica o debate sobre os direitos humanos, a cidadaniae a sua relação com as práticas democráticas. O retrocesso nocampo dos direitos econômicos, sociais e culturais comoconseqüência das políticas de ajuste da produção capitalista, eas limitações no campo dos direitos civis e políticos, comoconseqüência da política implantada pelo governo dos EstadosUnidos da América a partir de 11 de setembro de 2001, como oafastamento da tradição da cidadania marshalliana, indicam abusca de uma concepção de “cidadania de mercado”, maisadequada aos padrões do momento neoliberal. É neste contextoque a questão democrática ganha uma dimensão nova, vinculadaaos movimentos contra-hegemônicos globais.Palavras-chave: Direitos Humanos; Democracia; Cidadania;Movimentos Contra-Hegemônicos.

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Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, Nº 6 - Junho de 2005

ABSTRACT

Since the 18th century, the concept of human rights has beenexpanded, as a result of the incorporation of political gains. Thedifferent conceptions supporting human rights have made itsconcept primarily political and ideological. Starting in the 1980’s,with the hegemonic neoliberal model and “Welfare State” modelcrisis, human rights debates, citizenship and democracy havebeen looked at from a different perspective. The retraction ofthe economic, social and cultural rights as a consequence ofthe capitalist production adjustments, and the limitations onthe civil and political rights as a consequence of the policy setby the government of the United States of America fromSeptember 11, 2001, as well as the detachment from themarshallian citizenship tradition, indicate the search for aconcept of “market citizenship”, better suited to the standardsof the neoliberal movement. Under such circumstances thedemocratic question takes up a new dimension, in close relationto the global counter-hegemonic movements.

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Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, Nº 6 - Junho de 2005