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1 JOGA BOSTA NO HERÓI Geni E O Zepelim Chico Buarque [SOBRE A PLATÉIA HÁ UM ZEPELIM, COM AS BOCAS DOS CANHÕES VOLTADAS PARA AS CADEIRAS DA PLATÉIA, AS PAREDES INFERIORES DO ZEPELIM BEM BAIXAS, QUASE TOCANDO AS CABEÇAS; BEM OPRESSIVO MESMO, mais adiante, NO MOMENTO DO APARECIMENTO – de início não aparece, pois o teatro está às escuras; vão passando no telão todos os que se serviram de Geni, as crianças de costas] De tudo que é nego torto Do mangue e do cais do porto Ela já foi namorada O seu corpo é dos errantes Dos cegos, dos retirantes É de quem não tem mais nada [mostra os lugares onde Geni foi comida] Dá-se assim desde menina Na garagem, na cantina Atrás do tanque, no mato [mostra mais um monte de lazarentos da Cidade] É a rainha dos detentos Das loucas, dos lazarentos Dos moleques do internato E também vai amiúde Com os velhinhos sem saúde E as viúvas sem porvir [sobre Geni paira um halo] Ela é um poço de bondade E é por isso que a cidade Vive sempre a repetir [cada espectador recebe ao entrar duas pedras de isopor e agui jogam uma – a outra é para o bis] Joga pedra na Geni Joga pedra na Geni Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir Ela dá pra qualquer um Maldita Geni [soam trovões assustadores, raios pipocam, barulhos de pés e tropas, balbúrdia tremenda] Um dia surgiu, brilhante Entre as nuvens, flutuante Um enorme zepelim Pairou sobre os edifícios Abriu dois mil orifícios Com dois mil canhões assim A cidade apavorada Se quedou paralisada Pronta pra virar geléia [o comandante desce com uma bazuca no ombro e aponta pra

Joga Bosta no Heroi

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uma das músicas para levar ao teatro

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Page 1: Joga Bosta no Heroi

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JOGA BOSTA NO HERÓI Geni E O Zepelim Chico Buarque

[SOBRE A PLATÉIA HÁ UM ZEPELIM, COM AS BOCAS DOS CANHÕES

VOLTADAS PARA AS CADEIRAS DA PLATÉIA, AS PAREDES INFERIORES DO ZEPELIM BEM BAIXAS, QUASE TOCANDO AS CABEÇAS; BEM OPRESSIVO

MESMO, mais adiante, NO MOMENTO DO APARECIMENTO – de início não aparece, pois o teatro está às escuras; vão passando no telão

todos os que se serviram de Geni, as crianças de costas] De tudo que é nego torto

Do mangue e do cais do porto Ela já foi namorada

O seu corpo é dos errantes Dos cegos, dos retirantes É de quem não tem mais nada

[mostra os lugares onde Geni foi comida] Dá-se assim desde menina Na garagem, na cantina Atrás do tanque, no mato

[mostra mais um monte de lazarentos da Cidade] É a rainha dos detentos

Das loucas, dos lazarentos Dos moleques do internato

E também vai amiúde Com os velhinhos sem saúde

E as viúvas sem porvir [sobre Geni paira um halo] Ela é um poço de bondade E é por isso que a cidade

Vive sempre a repetir [cada espectador recebe ao entrar duas pedras de isopor e agui

jogam uma – a outra é para o bis] Joga pedra na Geni Joga pedra na Geni

Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir

Ela dá pra qualquer um Maldita Geni

[soam trovões assustadores, raios pipocam, barulhos de pés e tropas, balbúrdia tremenda]

Um dia surgiu, brilhante Entre as nuvens, flutuante

Um enorme zepelim Pairou sobre os edifícios Abriu dois mil orifícios

Com dois mil canhões assim A cidade apavorada Se quedou paralisada

Pronta pra virar geléia [o comandante desce com uma bazuca no ombro e aponta pra

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platéia, desce e toca a ponta nas cabeças; ele é um sujeito sujo e babão, horripilante, com dentes projetados, pele

bexiguenta] Mas do zepelim gigante Desceu o seu comandante Dizendo - Mudei de idéia - Quando vi nesta cidade

[a Cidade é a Terra e o planeta aparece em seu esplendor, com uma nave gigante chegando] - Tanto horror e iniqüidade

[ele passeia pelo palco, meditativo; tem asas demoníacas] - Resolvi tudo explodir

- Mas posso evitar o drama - Se aquela formosa dama

[aponta pra Geni, que é um doce de criatura, de saia rendada, castiça e pura (é porisso que ela dá pra qualquer um)]

- Esta noite me servir [todos estão espantadíssimos, os rapazes e as moças do coro,

fazendo “oh!” à moda do teatro do século XIX] Essa dama era Geni

Mas não pode ser Geni [cochicham]

Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir

Ela dá pra qualquer um Maldita Geni

[mas é ela mesmo, pura e casta, pois a castidade não está no corpo, está na mente] Mas de fato, logo ela

Tão coitada e tão singela Cativara o forasteiro O guerreiro tão vistoso Tão temido e poderoso

[o comandante está cheio de medalhas universais, de todo o universo; uniforme garboso e generalesco]

Era dela, prisioneiro Acontece que a donzela

- e isso era segredo dela [o cantor-contador sussura, põe a mão sobre a boca]

Também tinha seus caprichos E a deitar com homem tão nobre Tão cheirando a brilho e a cobre

Preferia amar com os bichos [Geni faz cara de nojo, aponta para o comandante, dá com a mão]

Ao ouvir tal heresia A cidade em romaria Foi beijar a sua mão O prefeito de joelhos

O bispo de olhos vermelhos E o banqueiro com um milhão

[bilhão, o banqueiro leva uma pasta enorme, a mala preta; todos vão de joelhos e se arrastando]

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Vai com ele, vai Geni Vai com ele, vai Geni Você pode nos salvar Você vai nos redimir

Você dá pra qualquer um Bendita Geni

[Geni vai mudando de opinião, já que é singela e sem maldade] Foram tantos os pedidos

Tão sinceros, tão sentidos Que ela dominou seu asco

[as pessoas rolam no chão, choram, se chicoteiam] Nessa noite lancinante

[ouvem-se trompetes rascantes e desafinados] Entregou-se a tal amante

Como quem dá-se ao carrasco Ele fez tanta sujeira

Lambuzou-se a noite inteira Até ficar saciado

[ouvem-se ruídos obscenos] E nem bem amanhecia

Partiu numa nuvem fria Com seu zepelim prateado

[o teatro escurece novamente; o Zepelim agora está repleto de estrelas, simbolizando o Céu pacificado]

Num suspiro aliviado Ela se virou de lado E tentou até sorrir Mas logo raiou o dia

E a cidade em cantoria Não deixou ela dormir Joga pedra na Geni Joga bosta na Geni

Ela é feita pra apanhar Ela é boa de cuspir

Ela dá pra qualquer um Maldita Geni

[rapazes e moças jogam o corpo para a esquerda e a direita, depois para frente e para trás, enquanto ondeiam as mãos em escárnio total, fazendo cara de vômito, enquanto gritam]