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PARÁ O Estado é Jatene O governador cria uma secretaria extraordinária dois meses depois de anunciar uma reforma administrativa profunda. E coloca a filha no cargo, indiferente ao significado do seu ato. Um momento de absolutismo republicano? JARI: PASSADO/PRESENTE ÍNDIO EXECUTADO EM 3 MILHÕES SÓ CARAJÁS SALVA A AGENDA AmAzôNicA DE Lúcio FLávio PiNto • ANo XXviii • N o 581 • 2 a quiNzENA / mARÇo DE 2015 • R$ 5,00 S imão Jatene foi assunto de O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo no mesmo dia, 19. Com destaque incomum, os dois jornais abriram espaço para um fato noticiado anterior- mente apenas pelo Diário do Pará: o governador criou uma secretaria extraordinária, dedicada a promover a integração de políticas sociais, e no- meou a própria filha para o cargo. O ato foi logo classificado de nepotismo, em contradição com os planos anunciados por Jatene de racionalizar e moralizar a administração pú- blica estadual. Ao assumir o cargo pela terceira vez, Jatene decidiu cortar gastos, reduzindo de 26 para 18 o número de secretarias. A partir daí, de- sencadeou uma autêntica operação de desmonte da máquina oficial: demitiu inicialmente dezenas de servidores remanescentes do governo de Ana Júlia Carepa, do PT (2007/2010), e, em seguida, centenas de funcionários ligados ao senador Jader Barbalho, nomeados durante o período em que o PMDB mantinha acordo com o PSDB, o partido de Jatene e do tucano que o antecedeu, o médico Almir Gabriel. A iniciativa causou perplexidade geral, inclu- sive fora do Pará, que costuma atrair atenção para esse tipo de acontecimento. Por uma lei de 2001, a

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Jornal Pessoal

PARÁ

O Estado é JateneO governador cria uma secretaria extraordinária dois meses depois de anunciar uma reforma administrativa profunda. E coloca a filha no cargo, indiferente ao significado

do seu ato. Um momento de absolutismo republicano?

JARI: PASSADO/PRESENTEÍNDIO EXECUTADO EM 3 MILHÕESSÓ CARAJÁS SALVA

A AGENDA AmAzôNicA DE Lúcio FLávio PiNto • ANo XXviii • No 581 • 2a quiNzENA / mARÇo DE 2015 • R$ 5,00

Simão Jatene foi assunto de O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo no mesmo dia, 19. Com destaque incomum, os dois jornais

abriram espaço para um fato noticiado anterior-mente apenas pelo Diário do Pará: o governador criou uma secretaria extraordinária, dedicada a promover a integração de políticas sociais, e no-meou a própria filha para o cargo.

O ato foi logo classificado de nepotismo, em contradição com os planos anunciados por Jatene de racionalizar e moralizar a administração pú-blica estadual. Ao assumir o cargo pela terceira vez, Jatene decidiu cortar gastos, reduzindo de 26

para 18 o número de secretarias. A partir daí, de-sencadeou uma autêntica operação de desmonte da máquina oficial: demitiu inicialmente dezenas de servidores remanescentes do governo de Ana Júlia Carepa, do PT (2007/2010), e, em seguida, centenas de funcionários ligados ao senador Jader Barbalho, nomeados durante o período em que o PMDB mantinha acordo com o PSDB, o partido de Jatene e do tucano que o antecedeu, o médico Almir Gabriel.

A iniciativa causou perplexidade geral, inclu-sive fora do Pará, que costuma atrair atenção para esse tipo de acontecimento. Por uma lei de 2001, a

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- JORNAL PESSOAL Nº 581 • MARÇO DE 2015 • 2ª quinzena2

6.378, o governador pode criar secreta-ria extraordinária. Por que exatamente agora? Por que uma única secretaria, se a lei abriga essa possibilidade em caso de “necessidade e foco da política pú-blica”? Quais os antecedentes que jus-tificariam o órgão de integração, se as secretarias especiais, criadas com essa finalidade, foram extintas? Por que en-tregar a nova secretaria à filha, que se tornou alvo de denúncias por alegado tráfico de influência, ocorrido em 2011 e revelado três anos depois?

Uma gravação telefônica foi apre-sentada como prova de que Izabela Jatene andou recolhendo dinhei-ro entre empresários, usando como meio de convencimento a máquina de fiscalização tributária do Estado. Ela obteve, na Secretaria da Fazenda, uma lista das 300 maiores empresas do Estado a pretexto de “buscar esse dinheirinho deles”.

A controvérsia não chegou a um desfecho nem o governo se mostrou preocupado com a denúncia. A posi-ção de Izabela não sofreu qualquer abalo aparente, nem junto ao gover-no e nem ao pai. O programa Propaz,

que ela dirigia, foi transformado em fundação, com o objetivo de atender “crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade”.

Com a secretaria extraordinária ela dá a volta por cima, num car-go hierarquicamente superior ao que ocupava no Propaz, programa de assistência a pessoas carentes. Passará a receber salário de 21 mil reais por mês.

Procurada pelo Estadão, a asses-soria do governador alegou que o novo órgão não acrescentará despe-sas, por não possuir orçamento pró-prio. Os seis funcionários subordina-dos à secretária serão deslocados de outras funções, com custeio por conta da casa civil do governo. Mas o salá-rio da filha do governador aumentou, além do seu status. Seria a resposta do pai aos ataques feitos à filha?

Se essa foi a intenção, Jatene con-fundiu sua condição pessoal com o cargo público que ocupa. Mesmo que a legalidade e a legitimidade da sua decisão pudessem ser aceitas, por que, depois de ter dado ao programa a condição de fundação, resolveu dar

um passo maior no rumo da temerida-de moral e política com a ascensão da filha a uma secretaria extraordinária? O Estado é Jatene?

É, tenta O Liberal convencer a opinião pública (e o próprio governa-dor, atraído para a operação caça-ní-quel). Em nota publicada no dia 19, a coluna Repórter 70 proclamou: “A imprensa nacional identifica Jatene como ‘a voz do Norte’ entre lideran-ças e governadores”.

Onde apareceu esse reconheci-mento? Alguém, em qualquer outro Estado da Amazônia, se tornou lide-rado do governador do Pará? Há o eco da sua liderança no Amazonas ou no Acre? Qual a vez em que Jatene apa-receu como porta-voz ou defensor de reivindicações das demais unidades federativas regionais? Quando ele foi a Boa Vista ou Porto Velho para tratar de problemas locais, alguns de dimensão internacional, como as hi-drelétricas do rio Madeira?

A retórica do governador se cir-cunscreve aos limites da sua jurisdi-ção territorial e política. Mas mesmo os seus discursos cansaram. É uma litania que esbarra na quadratura do círculo, demarcada por concei-tos e clichês que, até hoje, não fo-ram além de papeis e palavras. Os tucanos assumiram o poder maior no Estado em 1995, na onda do Plano Real. Em 20 anos a distância entre o potencial de riqueza do Pará e a con-dição de pobreza da sua população em nada diminuiu. Pelo contrário: só fez aumentar e, diga-se, com a deci-dida colaboração do intervalo petista de Ana Júlia.

A criação da secretaria extraor-dinária e sua destinação a Izabela exemplificam à perfeição o que, ao início do seu 9º ano como governador do Pará, às vésperas de passar à fren-te do tempo de mando do tenente-co-ronel Alacid Nunes, que ficou nove anos em dois mandatos, o economista Simão Jatene parece ter-se cansado do que não fez e mostrar-se iludido pelo que o grupo Liberal lhe atribui em doses diárias de falso elogio e indevida declaração de conquistas. Talvez por essas fantasias, ele já não se preocupe mais pelo que é, de fato, mas pelo que imagina ser. Retrato de um Pará disperso e desencontrado.

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JORNAL PESSOAL Nº 581 • MARÇO DE 2015 • 2ª quinzena - 3

BALAIO DO REPÓRTER

A Amazônia de peões e milionáriose a ação da censura sobre a imprensa

Opinião, sediado no Rio de Janeiro, foi, para mim, a mais importante (e a melhor) publicação da imprensa alternativa brasi-leira republicana. A partir do seu primei-ro número, que foi às bancas na primeira semana de novembro de 1972, o jornal – de 24 páginas, em formato tabloide – foi subindo como um foguete. Surpreendidos por sua qualidade, os leitores que queriam ficar mais bem informados, mesmo no auge da ditadura militar, corriam para as bancas atrás de Opinião.

Em pouco tempo a sua tiragem come-çou a se aproximar de Veja (em circulação desde 1968), que, para surpresa geral, se tor-nou sua competidora direta. Era como se o Gavião Parakatejê se tivesse tornado páreo duro para o São Paulo. Nessa progressão, o semanário alternativo emparelharia e talvez viesse a passar à frente da revista dos Civita, a um custo infinitamente menor.

Nunca qualquer publicação alternati-va chegou a esse ponto – nem antes nem depois. Qual o segredo de Opinião? Em primeiro lugar, ser feito por jornalistas pro-fissionais e não por militantes políticos. Jornalistas comprometidos com seu ofício, de encontrar a verdade (ou sua reconstitui-ção mais fiel) e apregoá-la para a sociedade, assumindo todos os riscos dessa opção.

Todos os integrantes do jornal eram remunerados, graças ao caixa do empre-sário Fernando Gasparian, o mecenas do empreendimento, mas ganhavam pouco proporcionalmente às suas habilidades ou biografias. Alguns tinham um pé no pe-queno semanário e outro num veículo da grande imprensa. Não só para manter a si e à família: carreavam para o jornal pobre as informações que só podiam ser obtidas com investimentos, aos quais uma publica-ção como Opinião jamais teria acesso.

Quando todos estavam felizes e em-polgados pelo sucesso do jornal, a censura começou a agir. Inicialmente levada pelo compromisso ideológico de sufocar as ver-dades incômodas. Quando, mesmo assim, o jornal resistia, graças à fidelidade do seu leitor, a censura se transformou numa sabo-tagem explícita. O que ela queria era acabar com aquele jornal inconformado e resisten-te. Aos poucos, os cortes brutais feitos pe-los censores começaram a descaracterizar e empobrecer o leitor. Não valia mais a pena pagar para tê-lo. Opinião já só publicava o que a censura deixava. E o que ela aceita-va era o irrelevante. O jornal acabou, não sem antes passar por uma crise interna que o cindiu e transformou-o de órgão de in-formação e análise de conjuntura em uma

publicação de ensaios – de bom nível, mas apenas para um público mais reduzido.

Fui colaborador ativo de Opinião a par-tir da minha base, em São Paulo, na redação de O Estado de S. Paulo. Com matérias com ou sem assinatura, às vezes mais de uma por edição. Outro dia, revendo a coleção, fiz uma descoberta: um dos meus artigos foi o primeiro a apresentar os sinais da tesoura do censor.

CENSURA E AMAZÔNIAFoi na 20ª edição, de 19 a 26 de mar-

ço de 1973, quando o general Garrastazu Médici ostentava o bastão de comando da república. Três números antes, o editor do jornal, o grande Raimundo Rodrigues Pe-reira, escreveu matéria de página inteira, que foi a capa da edição, relatando a visita do presidente ao projeto Jari, o império do milionário americano Daniel Ludwig no Pará e Amapá.

Da sua experiência na coordenação da lendária edição especial da revista Reali-dade sobre a Amazônia, Raimundo extraía certa simpatia por Ludwig e entusiasmo por sua moderna empreitada capitalista na jungle. Parecia partilhar o entendimen-to dos que consideravam necessária a ins-talação desse foco de contemporaneidade numa região primitiva para que ela pudesse se desenvolver mais rapidamente e melhor. Talvez, quem sabe, no futuro, se desfazendo do guia dos novos tempos. Uma versão or-todoxa do marxismo nascido na Inglaterra superdesenvolvida ao apreciar um cenário remoto no mundo primitivo.

No seu texto, Raimundo se desincum-biu da tarefa de desfazer as críticas da es-querda, várias delas de fato improcedentes ou fantasiosas, à presença do bwana ameri-cano numa parte estratégica da foz do rio Amazonas, na saída para o vasto oceano. Uma terceira das suspeitas analisadas por Raimundo era “a acusação de ser estran-geiro e estar tentando tomar um pedaço da Amazônia”.

Nesse caso, raciocinava o editor do jor-nal, a defesa de Ludwig – colocada num condicional distante do autor da matéria – “poderia ser feita por seus amigos ainda como no caso dos peões [que fizeram um surpreendente protesto durante a visita de Médici contra suas condições de trabalho]: é ele o único? Perto de suas realmente vastas terras, outros estrangeiros têm áreas se não iguais pelo menos comparáveis”. E citava os exemplos, como os da Icomi, Bruynzeel, Georgia Pacific e Toymenka.

A conclusão de Raimundo era de que “todas essas terras foram – salvo talvez ex-

ceções pouco expressivas – adquiridas de acordo com a lei. Os estrangeiros, gente como Daniel Keith Ludwig, por exemplo, são talvez as que melhor a respeitem, com medo de perderem os seus favores”.

Raimundo então arrematava a argu-mentação: “O fato de todas essas terras for-marem uma espécie de cordão de isolamen-to fechando a estratégica boca de saída do Rio Amazonas representa um perigo para o país? Seria correto dizer – como o fale-cido brigadeiro Haroldo Velloso, homem de passado pouco convincente, cujo fim de vida foi melancolicamente passado num quarto solitário em vãs batalhas políticas na cidade de Santarém [Raimundo revela des-conhecimento sobre o fim de Veloso, ferido pela polícia militar do Estado durante um conflito em Santarém, vindo a morrer depois de com-plicações causadas pelo ferimento de sabre] – que ‘a impressão tida ao examinar (as terras estrangeiras) num mapa é a da formação de um cordão isolando a Amazônia do resto do país’? Isso talvez seja raciocinar como diria um oficial, com base na teoria conspi-rativa da história’”.

Concluía Raimundo a sua reportagem: “O que parece seguro é que, com uma re-gião estratégica como essa nas mãos de grandes empresas e capitalistas interna-cionais como Daniel Keith Ludwig, para qualquer mudança que se queira fazer nos destinos dessa área o país não poderá op-tar independentemente: esses homens e empresas terão de ser ouvidos. E é difícil imaginar que Daniel Keith Ludwig, que conseguiu amealhar perto de 3 bilhões de dólares, seja um homem ingênuo”.

Não gostei de alguns dos momentos mais relevantes da matéria de Raimundo Pereira. Nossos divergentes modos de ver a Amazônia começaram a se chocar antes da conclusão da edição de Realidade. Decidi escrever a minha matéria a respeito. Como em outros momentos, tive que discutir com o editor antes que o meu texto fosse aceito. Para minha surpresa, ao ler a publicação, vi que em três trechos houve supressão do que escrevi. No lugar, pontinhos entre parênte-ses, além de um bloco negro com o título do jornal, também o primeiro. Foi a sina-lização gráfica inaugural alertando o leitor para a intervenção da censura, que evoluiria para uma agressão aberta à integridade do conteúdo que lhe era submetido pela edi-toria.

Reproduzo em seguida a matéria tal como saiu em Opinião, com a participação do censor. É instrutivo observar que, além do rosto de Médici ocupando toda a capa • • •

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da edição anterior do jornal, a matéria de Raimundo não foi alvo da intervenção do censor, como a minha seria. Qual podia ser a razão dessa dualidade? Naturalmente, o conteúdo do meu texto, como o leitor po-derá verificar.

Por que republicá-lo agora? Porque, mais de 40 anos depois, a situação no Jari se modificou dramaticamente. A área não é mais de propriedade de um estrangeiro. O sucessor atual de Ludwig é o paulista Sérgio Amoroso. Ele tinha todos os seus investimentos no interior de São Paulo. Hoje todo seu negócio se concentra no Jari. Amoroso quitou a dívida que Ludwig se recusou a pagar entre 1981 e 1982, quando passou em frente o projeto.

A principal atividade econômica, a produção de celulose, sofreu uma trans-formação tecnológica, deixando de ser destinar ao setor papeleiro e se tornando insumo principalmente da indústria de tecidos. A fase de mudança tem um com-ponente de incerteza tanto em relação ao produto quanto ao mercado. E agora há duas outras atividades em crescimento na área, que podiam ser complementares mas se tornaram antagônicas: a extração de madeira, realizada por novos (e ocultos) personagens e o manejo florestal, desen-volvido pela empresa.

A população nativa, dedicada a agri-cultura de subsistência e ao extrativismo, que foi reprimida e segregada na era Lu-dwig, agora assume papel ativo na história. A migração para o Jari se intensifica, tanto pelo ingresso de extratores e compradores de madeira como por moradores do Xingu expulsos pela construção da hidrelétrica de Belo Monte e o processo especulativo que a obra desencadeou.

Essa combinação de fatores leva a uma ameaça e uma advertência: a margem es-querda do rio Amazonas no território pa-raense, ainda dominada pela floresta nati-va em grandes maciços, pode ter o destino de destruição semelhante ao da margem direita a partir de agora. O primeiro e de-cisivo lance para a definição da tendência está se constituindo no vale do rio Jari. É preciso uma urgente intervenção do po-der público e o atento acompanhamento da sociedade para que esse novo capítulo não seja igual ao massacre da natureza na metade meridional do Estado.

Segue-se o texto, com os marcos gráfi-cos das garras da censura.

OS PEÔES DEPOIS DE MISTER LUDWIG

Depois que o Presidente da Repúbli-ca visitou a Jari Florestal e Agropecuária, o imenso projeto do bilionário norte-ameri-cano Daniel Keith Ludwig na Amazônia, em fins do mês passado, e lá assistiu a uma tímida – mas eloquente – manifestação de trabalhadores contra as condições de traba-lho no projeto, investigações oficiais e outras

medidas foram anunciadas com a aparente intenção de impedir a exploração dos 3.200 peões da Jari. Em vista da grande repercussão das críticas e do espanto da comitiva presi-dencial diante da precária situação dos traba-lhadores, anunciou-se que o próprio Ludwig iria encontrar-se com Médico no princípio da semana passada, no Rio. Até o fim da semana passada, contudo, a esperada audiência não tinha acontecido, por motivos que não foram revelados.

Embora o projeto Jari seja um dos maio-res empregadores de mão-de-obra na Amazô-nia, tudo indica que as condições de trabalho existentes ali não são muito diferentes das vigentes em dezenas de outros projetos, onde trabalha um número que pode situar-se perto de 100 mil peões, também contratados atra-vés de empreiteiros, sugestivamente conheci-dos na região como “gatos”. Há também fortes razões para supor que essa situação não seja novidade nem na Jari, nem na história da conquista da Amazônia, nem para o gover-no. É o que mostra esta reportagem de Lúcio Flávio Pinto.

Desde que 1.500 índios remaram du-rante mais de um ano pesadas canoas

para que o português Pedro Teixeira as-sombrasse o mundo com uma viagem de ida e volta Belém-Quito, em 1737, ven-cendo sete mil quilômetros de rios e di-ficuldades que separam o Pará do Peru, a história da colonização da Amazônia tem sido também a história da escravização do homem que a desbrava. Talvez por isso os comandantes da colonização de hoje, como o lendário Pedro Teixeira do século XVII, não se espantem quando novas de-núncias de escravização de trabalhadores saem de redutos amazônicos pioneiros e atingem todo o país. Foi o que aconteceu há três semanas, quando o presidente da República se confessou espantado com as condições de vida dos peões que trabalham no projeto Jari e que realizaram, diante da comitiva presidencial, um patético e quase desesperado protesto.

De fato, esse espisódio pode ter sido a culminação de outras indignações, mas nunca a primeira, provavelmente não a úl-tima. Há mais de cinco anos, tímidas de-núncias têm procurado demonstrar que, se o modo de ocupar a região mudou muito, as relações de trabalho permaneceram as mesmas.

As denúncias foram se avolumando tanto que obrigaram o Ministério do Tra-balho a enviar à Amazônia o próprio dire-tor do Departamento Nacional de Mão-de-Obra, Rômulo Marinho, em abril do ano passado. A visita de Marinho espantou as dezenas de inquéritos que estavam arqui-vados na Secretaria de Segurança Pública do Pará e na delegacia da Polícia Federal (na delegacia do Ministério do Trabalho não havia nenhum). Ao chegar a Belém, dizendo-se disposto a devassar tudo para chegar à verdade, Marinho tratou logo de

visitar o vale do rio Jari, de onde haviam partido as acusações mais graves, segundo o entendimento dele.

Os fatos, entretanto, foram circuns-critos apenas a aspectos burocráticos. A delegacia do Trabalho em Belém desco-briu que 184 carteiras foram expedidas irregularmente para trabalhadores da Jari. A questão era impedir que essas pessoas chegassem à região e descobrir o autor da fraude. Algumas horas depois de visitar as belas instalações da Jari (limpo e arejado restaurante, moderno hospital e confortá-veis alojamentos – aos quais só os técnicos e o pessoal administrativo têm acesso) e conversado com os empreiteiros, Rômu-lo Marinho retorno a Belém anunciando nada ter constatado de irregular nas fren-tes de desmatamento do projeto.

Estranhamente, cancelou a segunda parte da sua missão: inspeção à tumultuada e hostil região de São Domingos do Capim, não mais ao norte, onde está a plantação de gmelina e arroz do milionário americano, mas ao sul, reduto de mais de 300 proje-tos agropecuários sulistas aprovados pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Depois de ficar um dia sem programa em Belém, Romulo Ma-rinho retornou a Brasília.

Os resultados da visita não podiam ir contra o itinerário percorrido. Um dia antes de voltar a Brasília, a 20 de abril, Marinho anunciou que nenhuma pessoa poderia ser contratada para os trabalhos ligados à agropecuária sem contrato assi-nado regularmente na carteira profissional e que todas as empreiteiras (geralmente controladas por uma só pessoa, o “gato”) que atuam na região e servem de interme-diárias para os donos de projetos e os tra-balhadores ficam proibidas de usar contra-tos particulares para empregar os braçais.

A medida visava apenas abolir um im-presso que as empreiteiras usavam como “contrato de trabalho agrícola por obra certa”. Entre suas exigências mais absur-das, esse contrato fazia do trabalhador um autônomo “e sem subordinação a qualquer outro vínculo empregatício”. Sujeitava ain-da o contratado à “fiscalização por parte do contratante”, obrigando o trabalhador a “refazer todos os serviços que porventura não estivessem de acordo com as normas exigidas, sem que para isso tivesse direito a qualquer remuneração”.

Os embarques de trabalhadores para a Jari, feitos através de um porto parti-cular em Belém, começaram a ser fisca-lizados por soldados da Polícia Militar e a delegacia do Trabalho enviou um fiscal para Monte Dourado, onde está a sede da empresa, a fim de verificar se todos os trabalhadores estavam com carteira profis-sional. A visita presidencial trouxe novas medidas básicas que pretendiam acabar com o problema: a presença do Projeto Rondon e a fiscalização através dos minis-térios do Trabalho e da Saúde.

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JORNAL PESSOAL Nº 581 • MARÇO DE 2015 • 2ª quinzena - 5

Os recursos legais

Seriam as medidas ideais? A prática parece indicar que não. A fiscalização dos trabalhadores na hora do embarque é du-vidosa. (.......................)

O fiscal do Ministério do Trabalho é um burocrata que, sediado no escritório da Jari, cuida apenas do que chega às suas mãos. Mas entre o escritório e as frentes de trabalho, a muitos quilômetros dali, tudo acontece. Para evitar o controle das autoridades e as rebeliões dos trabalhado-res, as cinco empreiteiras da Jari renovam o pessoal todo a cada seis meses. Assinam as carteiras profissionais, mas o que ainda vigora são os contratos particulares. E os contratados continuam pagando a péssima comida (arroz e feijão bichados, carne seca e café) e a “assistência médica” (dada por um enfermeiro).

Mesmo quando os trabalhadores che-gam até à justiça para reclamar dos salários prometidos e nunca pagos (eles passam de cinco meses a dois anos trabalhando para conseguir saldo) e é instaurado processo – como o que existe em Belém contra a maior das empreiteiras, a Serviços Flores-tais Ltda., movida por 300 empregados que querem uma indenização de 120 mil cruzeiros – as empreiteiras sabem que táti-ca adotar: não comparecem às sessões. Os braçais, trazidos geralmente do Maranhão, ficam hospedados em pensões dos subúr-bios, garantidos pelo dinheiro que espe-ram ganhar. Mas quando a questão co-meça a demorar, aceitam qualquer acordo para voltarem às suas terras, mais pobres do que quando delas saíram.

Se a furiosa investida das autoridades contra a Jari não tem impedido todas es-sas irregularidades, o que pode acontecer nas grandes e isoladas fazendas no sul do Pará? O sistema de empreitada, usado por todos os projetos agropecuários na Ama-zônia, tem atravessado sem arranhões todos os ataques. Os donos das fazendas alegam que nada têm a ver com os homens que derrubam as matas e fazem as planta-ções. Os empreiteiros estão inteiramente à margem de toda a legislação e mesmo das inspeções diretas das autoridades.

(....................................)A Polícia Federal instaurou inquérito

por causa das denúncias de seis trabalha-dores que, se apossando de uma das em-barcações que fazem o transporte entre Belém e a Jari, conseguiram fugir dali.

Tudo como antigamente

Os outros fazendeiros desmentem a escravização de trabalhadores em suas terras, dizendo que a própria Sudam faz fiscalizações periódicas nelas. Mas é difícil acreditar na seriedade dessas fiscalizações. Os funcionários da Sudam são transpor-tados em aviões particulares das fazendas,

acertam antecipadamente o dia em que irão fazer a fiscalização e até são recebidos com almoço. Às vezes se recusam a sair da sede da fazenda e voltam imediatamente após o almoço.

Segundo o ex-secretário-geral do ór-gão, Manoel Reis, “os técnicos na inspeção direta observam os dados relativos à conta-bilidade, à organização, controle e implan-tação do projeto”. O secretário reconhecia que a fiscalização “tem preocupação maior pela parte financeira e operacional”, mas se defendia com a alegação de que as equipes técnicas da Sudam “nunca constataram irregularidades empregatícias que atingis-sem as proporções de impor um regime de escravatura ou exploração ao trabalhador”.

O difícil é saber o que a Sudam enten-de por trabalho escravo. O mesmo Mano-el Reis dizia que a Sudam nunca recebeu uma denúncia direta “e o que sabemos é através da imprensa”. O que não faltaram foram oportunidades para começar a se preocupar um pouco mais com os proble-mas sociais criados pelos projetos que aprova com tanta rapidez e tão pouco rigor (a ponto de reconhe-cer que 99% das terras do Pará estão com títulos de propriedade ilegais, em-bora até hoje nenhum dos órgãos encarregados do problema – Sudam, Incra e Secretaria de Agricultura – tenha feito um cadastra-mento. A própria Sudam tem aprovado projetos cujos títulos de terras estavam ilegais e tiveram que ser reformulados em plena implantação.

Em junho do ano passado, três homens conseguiram fugir de uma fazenda em Conceição do Araguaia, onde trabalham seis meses sem pagamento e na qual eram vigiados por pistoleiros armados, que fis-calizavam as saídas. Os três conseguiram fugir porque, doentes, foram levados para um hospital em Conceição. “Lá, pedimos ajuda da polícia, mas ela não fez nada, di-zendo que não queria encrencas. Resol-vemos fugir num caminhão pela Belém-Brasília”, relatou um dos trabalhadores, Malaquias Abimael da Silva.

Logo depois, mais seis trabalhadores fugiram da Fazenda Jabuti, em São Do-mingos do Capim, apavorados com o ca-pataz, que matou um dos peões quando ele tentava fugir, e o enfermeiro, que aplicava injeções para “amansar” os rebeldes. Em julho, outros cinco braçais conseguiram fugir da Fazenda Reunida, em Ipixuna, e procuraram o major Hércules Silva, dele-gado do Interior, pedindo garantias contra as ameaças de morte e maus tratos pelo capataz, conhecido como Zezinho (Zezi-nho é também o nome do dono).

As fugas de trabalhadores e abertu-ras de inquéritos passaram a fazer parte da rotina. Até hoje, apenas os padres da

região têm recusado as justificativas dos fazendeiros e tentado verificar no local a verdadeira situação. Mas, à exceção do bispo de São Félix do Araguaia, d. Pedro Casaldáliga, os outros preferem que suas investigações não cheguem à imprensa.

(..........................................) novos trabalhadores conseguiram fugir da Fa-zenda Alacid, em São Domingos do Ca-pim, depois de travarem tiroteio com os funcionários, Francisco Pereira do Vale, um dos 39 maranhenses levados para a propriedade, contou que seu irmão já trabalhava ali havia bastante tempo, sob a vigilância de homens armados, sem re-ceber dinheiro, quando eles chegaram. “O Raimundo, quando nos viu chegar, con-tou o que aconteceu. Meus companheiros disseram que iam voltar imediatamente. Tentei acalmar o pessoal porque havia empatado 500 cruzeiros para servir aos peões e precisava recuperá-los. Desci para tentar um entendimento, quando alguém atirou da margem do rio. Muitos traba-

lhadores procuraram se refugiar no barco e outros correram por terra. Com meu irmão e mais oito, invadimos o mato. Via-jamos dias e noites e re-solvemos nos separar para conseguir caça. No dia 3 (de fevereiro) avistamos

um barco e fizemos sinais para ele. Mas dentro tinha uma turma da fazenda. Ten-tei conversar com o topógrafo Francisco de Almeida em busca de entendimento. Foi quando saltou do barco o capataz Ferreirão e começou a atirar. Meu irmão foi logo baleado e fugimos. Não sei se meu irmão morreu”.

Os fazendeiros acham que a emprei-tada é o único sistema de trabalho para uma região pioneira como a Amazônia. O representante geral da Jari no Brasil, Antonio Marinho Nunes, acha mesmo que os trabalhadores gostam desse siste-ma: “A prova disso é que os nossos colonos contratados durante o período de desma-tamento retornam no ano seguinte para realizar um novo trabalho e, normalmente, trazem consigo parentes e amigos”. O que ele esquece é que esses trabalhadores são recrutados numa das áreas mais pobres e miseráveis do país: às margens da Belém-Brasília e da Pará-Maranhão.

Durante a época da exploração in-tensiva da borracha, que transformou a Amazônia num Eldorado mundial (1870-1910) foram trazidos entre 300 mil e 500 mil nordestinos. Metade deles morreu nos seringais enquanto sonhava com os ricos salários prometidos. Eles trabalhavam 15 horas por dia apenas para comer feijão e arroz bichados, carne seca e café, e mor-riam de malária, beribéri ou flechados por índios. O sistema de trabalho era o mesmo adotado atualmente: a empreitada.

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- JORNAL PESSOAL Nº 581 • MARÇO DE 2015 • 2ª quinzena6

Trinta anos depois, um estranho silêncio

Por que a data da redemocrati-zação do Brasil, depois de 21 anos de ditadura militar, passou quase em branco no dia 15 de março? Muitos brasileiros devem ter-se feito esta per-gunta. O sociólogo paraense Orlando Sampaio Silva, em São Paulo, foi um deles. E foi buscar motivação para en-frentar o silêncio quase generalizado no testemunho de um dos personagens principais do drama vivido em 15 de março de 1985: o vice-presidente José Sarney (que o acaso tornou presidente nesse dia, em função da doença do ti-tular, Tancredo Neves).

Orlando reproduz trechos de arti-go escrito por Sarney para a Folha de S. Paulo que o grande público ignora, mas que foram publicados na biografia de Sarney escrita por Regina Echever-ria. Alguns chefes militares, contrários à devolução do poder aos civis, tenta-ram um golpe de Estado, mas já não tinham forças para obstruir o avanço da história. Felizmente para o Brasil.

Há um quase total esquecimento de um episódio de nossa história

recente, cujo aniversário, no último dia 15 de março, dever-se-ia come-morar. Foi nessa data que, há exatos trinta anos, o Brasil deixou de ter um militar na presidência da república, o General João Batista Figueiredo, e passou a ter no posto maior do pre-sidencialismo um presidente civil, o vice-presidente José Sarney. Deveria assumir a Presidência, nessa data, o então deputado federal Tancredo Ne-ves, que havia sido eleito presidente da república em eleição indireta pelo Congresso Nacional.

O país atingiu a data da assunção, mas o presidente eleito se encontrava gravemente enfermo. O Vice-Presiden-te, também eleito indiretamente ao lado de Tancredo, constitucionalmente, teve que assumir o cargo. O presidente que saía não lhe passou a simbólica faixa presidencial e deixou a palácio pela porta lateral, a fim de não estar presen-te no ritual da posse. A partir daquela data, o país não estava mais governado

por um general, por um presidente mi-litar. Terminara a ditadura militarista, depois de quase vinte e um anos.

Surpreende-me o esquecimento desta data. Nos movimentos populares de rua, principalmente, nos que se estão realizando hoje, se, por um lado, não há referências a esse episódio histórico de tão grande significação, por outro, re-gistram-se muitos apelos pelo retorno dos militares ao domínio do governo. Percebe-se a ocorrência de esqueci-mento e/ou desconhecimento, em parte da população, de toda a desconstrução, o obscurantismo, o estado policial, as torturas, os embates armados entre go-vernistas e os adversários do sistema, o terrorismo, os “justiçamentos” e tantos vitimados com a perda da própria vida, durante a ditadura militar.

No jornal O Estado de S. Paulo, edição do dia 15, há minimização do fato. A Folha de S. Paulo, se, por um lado, não reservou nenhuma manchete de qualquer página nobre ao tema, pu-blicou, é verdade, um caderno anódino sobre a matéria e, pelo menos, trouxe, nesta edição, um artigo, com o desta-que do alto da 3ª página, intitulado “Trinta anos: a história se contorce”. Autor: José Sarney, aquele presidente de 15 de março de 1985.

Para despertar a memória de muitos, transcreverei um trecho do artigo do acadêmico (Academia Brasileira de Le-tras) Sarney, que desvela episódios pou-co conhecidos pelo povo brasileiro: “Os que vivem hoje jamais poderão avaliar o que estava em jogo naquela noite de 14 para 15 de março. A nove horas de tomar posse, o abdômen de Tancredo Neves, presidente eleito, começava a ser aberto no Hospital de Base de Brasí-lia. Não se sabia que ali começava o seu martírio e a sua agonia”.

“A realidade imita a ficção. O país atônito. Os políticos envoltos em per-plexidades não tinham nenhum grupo mobilizado. Reuniam-se improvisada-mente na Câmara e no Senado. Os jan-tares organizados para antecipação da festa se transformavam em desorienta-ção e tristeza”. [Atenção para os fatos

que vêm revelados a seguir!] “O minis-tro do Exército comunicava ao chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, que iria voltar ao seu posto de comando e de-sencadear uma ação para interromper o longo processo de transição”.

“No meio de tudo isso, dois ho-mens apareceram, mostram grande espírito público e capacidade de gerir crises: Ulysses Guimarães e Leônidas Gonçalves”.

“Quando, tomado de profunda emo-ção e saindo de uma depressão que es-condi do país durante vários meses, voltado totalmente para o problema humano de Tancredo, disse a Ulysses que não desejava assumir sozinho, ele, rispidamente e mostrando sua fibra de grande chefe, me disse: ‘Não é hora de sentimentalismo, Sarney. Temos deve-res com a nação. Um processo tão lon-go de luta pelas instituições não pode morrer nas nossas indecisões’”.

“O general Leônidas, já escolhi-do ministro do Exército, partiu para ações concretas: ‘Vamos ao Leitão de Abreu, não para discutir a suces-são, mas para dizer que amanhã, às 10 horas, o vice-presidente, conforme determina a Constituição, irá prestar juramento perante o Congresso e as-sumir a Presidência até o restabeleci-mento de Tancredo’”.

“E assim fez, em companhia de Ulysses e dos senadores José Fragelli e Fernando Henrique Cardoso. As me-sas do Senado e da Câmara decidiram no mesmo sentido. O Supremo Tribu-nal Federal, convocado secretamen-te pelo presidente Cordeiro Guerra, deliberou que esse era o caminho da Constituição”.

“Quando me comunicaram as con-clusões, às três horas da manhã, eu era um homem batido pelo imprevisto. Tomei posse ‘com os olhos de ontem’ e enfrentei o desconhecido dos anos que estavam à frente.”

“Passados 30 anos...”Eis aí. Todos os que leram este tra-

balho tinham conhecimento desses fa-tos? Sabiam que, conforme a narrativa de Sarney, àquela altura do andamento

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JORNAL PESSOAL Nº 581 • MARÇO DE 2015 • 2ª quinzena - 7

da história, um general, o ainda minis-tro do Exército do governo militarista, estava pronto para fazer a história pa-rar, retroceder, e manter a ditadura mi-litar, depois de todas as lutas do povo brasileiro nas praças e nas ruas, dos es-forços de líderes democráticos civis e do empenho dos dois últimos generais presidentes – Geisel, com a “disten-são”, e Figueiredo, com a “abertura” –,

e das negociações do general Golbery, para o retorno da democracia?

Esses detalhes dos fatos históricos, narrados por um personagem nos mes-mos, são chocantes! Veja-se, também, a ação de um general, Leônidas Gon-çalves (o ministro do Exército escolhi-do por Tancredo), no único momento possível, levando consigo políticos ci-vis, interferindo para que a história não

parasse e, afinal, a Constituição demo-crática prevalecesse.

No próximo artigo, abordarei esse mesmo episódio de nossa história, po-rém a partir da versão apresentada por Fernando Henrique Cardoso, em seu li-vro “O Improvável Presidente do Bra-sil – Recordações” (2014). Ver-se-á a confirmação desses fatos acima narra-dos, porém, com outros vieses.

União executa índiopor 3 milhões de reais

Um único índio é capaz de carregar consigo seu artesa-nato no valor de 75 mil reais, equivalente a um automóvel de luxo? O Ibama de Brasília acha que sim. Foi nesse valor que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis arbitrou a infração cometida por Ti-moteo Tayatasi Wai Wai, flagrado ao transportar artesanato “confeccionado com sub-produto da fauna silvestre”.

Eram peças fabricadas com penas de arara e papagaio, aves da família dos “psitasidios”, como adverte a certidão da dívida ativa da Procuradoria Geral da União. Por não ter au-torização para a comercialização das peças, Timoteo come-teu infração ambiental e foi autuado.

A dívida venceu em 15 de outubro de 2013 e não foi qui-tada. A partir daí o surreal vira non-sense absoluto. Os absurdos 75 mil reais de origem se multiplicaram ao passar pela Secretaria da Receita Fe-deral e a Procuradoria-Geral Federal em Belém, para os cálculos devidos. Ao valor da multa foram acrescen-tados R$ 1,5 milhão de majoração, agravamento e amortização; R$ 706 mil de taxa Selic; R$ 297 mil de multa moratória, e R$ 497 mil de encargo legal. O valor consolidado da dívida ficou em R$ 2.985.517,18. Mas ainda pode crescer até o fim do processo.

Inscrita a dívida, em setembro do ano passado o procu-rador federal Aldenor de Souza Bohadana Filho solicitou a execução da dívida, tratando de pedir o arresto prévio de valores existentes em contas bancárias de Timóteo ou seus responsáveis, “a fim de evitar possível desfazimento de bens ou valores em depósito de instituições financeiras após a ci-tação”, o que caracterizaria fraude ao credor.

Acolhendo o requerimento, em novembro, o juiz da vara única de Oriximiná, Daniel Ribeiro Dacier Lobato, instruiu o oficial de justiça a fazer penhora dos bens do devedor, “pro-cedendo desde logo à avaliação, devendo o valor constar do termo ou auto de penhora”.

Três semanas depois desse despacho, o oficial de justi-

ça Humberto de Sousa Sarubi Júnior cumpriu o mandado, intimando pessoalmente Timoteo. Mas deixou de proceder à penhora dos seus bens porque o executado só tinha um, a casa em que mora com a família, toda de índios como ele, construção que o oficial de justiça avaliou em 15 mil reais.

Os “bens de maior monta que guarneciam a casa” eram um aparelho de televisão, uma geladeira pequena, um fogão, uma mesa pequena com cadeiras de madeira, duas camas, um micro sistem e uma cômoda de modulado. O oficial de justiça não encontrou no imóvel “automóveis, motocicletas ou bicicletas”.

Nesse momento os autos do processo eram formados por 13 folhas de papel. Nenhuma das peças continha a au-

tuação de Timóteo pelo Ibama, que não se deu ao trabalho de detalhar as peças e quantificá-las. O pedido de execução e o deferimento judicial se basearam numa raquítica certidão de dívida ativa emitida pela Procurado-ria Federal.

Como Timoteo é índio da tribo dos wai wai, o mínimo de caute-la imporia ouvir o órgão oficial que exerce a tutela dos índios, a Funai, que, se foi consultada, não se mani-festou. Nada há a respeito nos autos.

Timoteo pertence a um grupo indígena que só estabeleceu contato definitivo com a sociedade nacional há meio século, enquadrando-se perfeitamente na relação de tutela com a Fundação Nacional do Índio.

Como atestou o diligente oficial de justiça, o executado pela União não tem bens de significação para dar em garan-tia aos quase R$ 3 milhões da dívida que lhe foi atribuída, nem contas bancárias, dentro ou fora do país. Não pertence, portanto, ao cartel dos corruptos e corruptores identificados pela Operação Lava-Jato. Está muito longe de poder mere-cer uma investida punitiva como a que se materializou nos autos da execução fiscal. Autos que certamente entrarão para a história contemporânea da combinação de burocracia irra-cional atormentando a vida dos povos mais antigos do Brasil.

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Salvação da Vale está em CarajásAo longo deste ano a Vale não ini-

ciará nenhum projeto novo. Desen-volverá apenas os empreendimentos já aprovados, mas seus investimentos ainda serão expressivos: de 10 bilhões de reais. No próximo ano a dieta será ainda mais rigorosa: investirá quatro bilhões de reais na manutenção de qua-tro projetos e R$ 3,6 bilhões na execu-ção de projetos que iniciou antes. Suas inversões de capital, que chegaram a R$ 16,3 bilhões em 2011, não atingirão um bilhão em 2019. Dos R$ 9 bilhões pagos em 2011, os dividendos do ano passado ficaram em menos da metade: R$ 4,2 bilhões. E para este ano a previ-são é de R$ 2 bilhões.

A receita bruta em 2014 foi de 38,2 bilhões de reais, não por causa do preço do minério de ferro, que atingiu os ní-veis mais baixos do mercado, mas pela produção recorde de 319 milhões de to-neladas. A dívida bruta da empresa foi para quase 40 bilhões de dólares.

A Vale está apertando fortemente o cinto. Está cortando todas as despe-sas que pode, inclusive as de pessoal, com a demissão crescente de funcio-nários, sobretudo em Minas Gerais.

Vende todos os bens e ativos que não estão vinculados à mineração. Sabe que os próximos três anos serão de va-cas muito magras. Mas, a julgar pela exposição de uma das suas analistas, Andrea Gutman (Estratégia da Vale na área de mineração), acredita no futuro. Em 2018 o fluxo de caixa livre e divi-dendos da maior mineradora brasileira e das maiores do mundo “alcançará níveis sem precedentes”, prevê ela no trabalho, elaborado neste mês.

A confiança da Vale está deposita-da na ampliação das minas de Carajás, no Pará, que contribuirá decisivamen-te para que a produção atinja 460 mi-lhões de toneladas de minério de ferro em 2019. O investimento original no projeto S11D, que quase duplicará a produção de Carajás, para 230 milhões de toneladas, era de US$ 19,6 bilhões. Submetido a revisão, o orçamento bai-xou para US$ 16,4 bilhões, dos quais US$ 6,2 bilhões já foram aplicados.

O cronograma na mina de Serra Sul está mais adiantado, com a realização de 56% da meta, de US$ 6,9 bilhões, enquanto a conclusão na ferrovia é de 32% dos US$ 9,5 bilhões projetados.

A elevada qualidade do minério de Carajás fará a diferença tanto em re-lação ao preço mais baixo do ferro no mercado como em relação aos com-petidores. O custo de produção da Vale no Brasil é atualmente de US$ 23,5 a tonelada. Em Carajás, é US$ 21,2. Quando foi definida a execução do S11D, a previsão era de que cada tonelada seria extraída por US$ 15. Agora esse vale é de US$ 11 por to-nelada.

Se for assim, a Vale ressurgirá dos seus problemas em 2018 como a mais poderosa mineradora de ferro do planeta, graças a Carajás. Supe-rando as graves dificuldades atuais, a antiga CVRD terá voltado ao seu perfil original, de mineradora: mais de dois terços da sua receita origi-nada de minério de ferro e pelotas, complementados por níquel, cobre e carvão. E companhia de logística, com duas das melhores ferrovias e dois dos mais invejáveis portos do mundo.

Tudo isso graças a Carajás, ao que parece, por mera casualidade, locali-zado no Pará.

Igreja do Carmo reabre para o povoMuito sugestiva a plateia durante o

ato de reabertura da igreja do Carmo, na Cidade Velha, em Belém, no dia 23. Raros integrantes do poder públi-co presentes. Do governo do Estado, o secretário de turismo, Adenauer Goes. Da prefeitura, a presidente da fundação cultural, a Fumbel, Heliana Jatene. Al-guns outros gatos pingados, invisíveis no conjunto de promotores da sole-nidade, convidados e muita gente do povo anônimo.

Autoridades maiores ganhariam muito se tivessem ido à festa, na ma-nhã de uma segunda-feira chuvosa. Discursos breves, alguns bem ponde-rados. Um lindo coro de crianças, uma afinadíssima orquestra de cordas, sob o vigoroso comando do seu jovem maes-tro, produto de um dos melhores patro-cínios culturais da maior mineradora

do país, o Programa Vale Música, sob a inspiração da incansável e sempre ino-vadora Glória Caputo.

Um programa que podia ser bem apresentado em São Paulo, em Nova York ou Paris, algo incomum numa Belém barbarizada e submetida a ni-velamento por baixo, a começar pela obtusidade dos seus dirigentes. O go-vernador Simão Jatene já foi músico, compositor e cantor. Por que não foi? O restauro da mais que bissecular igreja foi um presente precioso para a cidade – e por onde andava o seu prefeito?

Especial foi a ausência do secretá-rio de cultura que por mais tempo ocu-pou o cargo, o arquiteto Paulo Chaves Fernandes. Na sua primeira tempora-da à frente da Secult ele foi batizado de “o novo Landi” pelo governador

Almir Gabriel. O exagero, evidente e inapropriado, não é de todo impro-cedente diante de tantas intervenções de Paulo Chaves em mais de 16 anos como secretário. Logo, sua presença na reinauguração da igreja do Carmo devia ser compulsória. Foi exatamente o arquiteto Antonio Landi que, na se-gunda metade do século 18, deu forma final ao templo, cuja primeira tapera, praticamente no mesmo local, tem a mesma idade da capital paraense, me-nos 10 anos.

Quem não registrou seu nome no livro de presenças do dia 23 deixou de testemunhar um acontecimento históri-co. O restauro da igreja custou seis mi-lhões de reais. O projeto foi uma feliz combinação de dinheiro particular, in-duzido por incentivo oficial, saído dos cofres da Vale, e competência gover-

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JORNAL PESSOAL Nº 581 • MARÇO DE 2015 • 2ª quinzena - 9

Álbum da memóriaO Pará do Século XX A seleção dos dois primeiros livros

da série Memória do Cotidiano (a seção preferida dos leitores do

Jornal Pessoal), já no 8º volume.

O ginásio do Carmo

namental, associada à participação dos administradores religiosos da igreja.

Pode-se estranhar um pouco a destinação de um milhão dos R$ 6 milhões a “ações de comunicação e material de divulgação”, das quais o produto final foi um livreto de 50 páginas, quando bem que podia ser um álbum sobre a história do templo, item ainda inédito na bibliografia de Belém. Provavelmente a rubrica en-gordou para abrigar a formação de monitores recrutados na universidade e no bairro, que atuaram nas visitas orientadas e agora podem se tornar defensores da conservação da igreja.

A restauração foi um trabalho técnico de primeira qualidade e que seguiu uma diretriz mais ilustrada, valorizando a dimensão religiosa, es-

piritual e social da construção como catalisadora de energias humanas, so-bretudo da Cidade Velha.

O valor da igreja do Carmo foi destacado quando ela se tornou monu-mento nacional, em 1941. Sua existên-cia a partir daí foi assinalada pelo con-fronto entre o desgaste imposto pelo tempo, o abandono geral e o esforço limitado de paroquianos e amigos, que agregou algum apoio oficial nas inter-venções restritas. Nada sequer pareci-do à restauração que culminou no dia 23, reapresentando ao público uma das mais belas e originais edificações religiosas do Brasil.

Belém podia utilizar melhor a con-centração de igrejas na Cidade Velha como polo de turismo cultural e fonte de informação para seus próprios mo-

radores. O livreto abre com um dese-nho de Righini do largo do Carmo da perspectiva da igreja dos homens dos pés brancos, que não existe mais. Foi o único dos templos destruídos, restando íntegros quatro magníficos exemplares da arquitetura de época no bairro onde Belém começou a sua história, desde o estilo jesuítico de Santo Alexandre até a fachada de cantaria do Carmo.

Quem voltou à igreja na sua rea-bertura deve ter observado que o res-tauro seguiu a perspectiva histórica cumulativa, respeitando cada etapa desse percurso, sem buscar uma pure-za impossível e castradora, sob pena de chegar à tapera de taipa dos idos de 1626, marco de uma trajetória di-fícil, mas que evoluiu até o ato festi-vo do dia 23.

Fiz todo meu curso ginasial (o fun-damental de hoje) no Colégio Salesiano Nossa Senhora do Carmo, entre 1960 e 1964, incluindo um ano do curso de admissão. A cada ano fui – em conjunto ou isoladamente – quase todos os dias à igreja, agora com sua restauração con-cluída. Para rezar, para datas festivas ou mesmo para reuniões, como quan-do presidi o Grêmio Domingos Sávio. Também para atuar como coroinha, ajudando os padres nas missas domini-cais ou mesmo em dias de semana.

Nunca fui carola, muito pelo con-trário. No último ano, fui suspenso 10 vezes. O padre conselheiro, o mineiro Efigênio Passos, queria me expulsar. O diretor, o italiano Guido Tonelotto, não deixava. Quando eu era colocado para fora da sala de aula pelo Efigênio perseguidor e mandado para o imenso pátio, deserto naquele momento, o di-retor, se abria o seu gabinete e me via, mandava me chamar. Seu escritório era confortável e tinha um aparelho de te-levisão Philco, giratório, ainda raro nes-sa época. Puxava uma conversação em francês, sua paixão, e depois me deixava

vendo TV, até o conselheiro aparecer e me arrastar de novo.

Na semana de Dom Bosco, ha-via confissão coletiva na igreja, com direito a indulgência plenária. O di-retor, ao microfone, de costas para o belíssimo altar, lavrado em prata, ia incitando os alunos a se manifestar intimamente sobre cada pecado ou ato indigno que tivesse cometido, em silêncio. De cabeça baixa, como os demais, eu fazia traquinagens, res-pondendo com besteiras.

Pé sobre pé, o conselheiro se apro-ximou. Ouviu pelo tempo necessário para caracterizar o flagrante delito. Avançou na minha direção e me tirou do banco pela orelha, me arrastando até chegar ao diretor, onde me deixou como um réprobo. Foi uma risada ge-ral quando mirei o padre Guido com um ar angelical de injustiçado. Só o conselheiro não riu. Homem brabo, aquele.

Histórias e mais histórias que eu sempre reconstituía mentalmente nas visitas ocasionais ao colégio e sua igreja. Junto com o passado, a visão

do presente inquietadora na sua ma-terialização mais ameaçadora: as gra-ves infiltrações nas paredes por causa do telhado entregue à própria sorte. As manchas negras avançando a cada nova visita e destruindo as pinturas.

Foi isso o que primeiro observei na reestreia da igreja do Carmo. Tudo foi meticulosamente restaurado. Do outro lado do colégio pude contem-plar a sólida cobertura construída, que deverá ser duradoura se a inércia for substituída pela atenção operativa. Até a torre do sino está recomposta. Certa noite, depois do ensaio para a opereta Marcos, o Pescador, dirigida pelo incan-sável Efigênio Passos (que me tirou um papel de destaque e me reduziu a três telegráficas frases do enredo), avancei pelo madeirame podre para chegar ao campanário. Francisco de Assis Ishihara, o Chico, sabiamente, preferiu ficar à entrada. Havia luar no céu advertindo, talvez, para as conse-quências da aventura. Tentá-la, porém, foi algo triunfal. Agora, felizmente, é coisa prosaica na igreja do Carmo. Ela está plenamente viva de novo

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- JORNAL PESSOAL Nº 581 • MARÇO DE 2015 • 2ª quinzena10

CABANAGEM/180 ANOS

A ficção históricaA editora da Universidade Federal do Pará anuncia para

o próximo ano uma nova edição, a terceira, dos Motins Políti-cos, de Domingos Antonio Rayol. Precisa ser bem organizada para afastar a pedregosidade da primeira edição, mantida na seguinte, de 1970. As notas de pé de página se alongam e ultrapassam os limites da página a que se referem. Com idas e vindas, a leitura deixa de ser fluente, prejudicando a inteli-gibilidade do texto, que é primoroso.

Uma edição didática e crítica pode combater ou preve-nir os males de um tipo de abordagem que empobrece a cabanagem. É o caso de Ma-rio Furley Schmidt, autora de uma Nova História Crítica do Brasil (São Paulo, Nova Geração, 1999, 392 páginas). O subtítulo do livro didático, destinado aos alunos do ensino médio, é 500 anos de História mal contada. Sobre a cabanagem, a autora tam-bém contou pessimamente a sua.

Não só por fatos ou nomes errados, mas porque criou verdadeira ficção. Imaginando estar realizando uma análise marxista, na verdade ela transportou a cabanagem para a atualidade e lhe aplicou conceitos irreais, sem conteúdo concreto, tirados do armário das capitulações e adjetivações esquerdistas.

Um tipo de análise dualista e manique-ísta: os bons de um lado, os maus do outro; trabalho e capital; revolução e reacionarismo. Apertados nesses moldes explicativos, os alu-nos de manuais como esse estão prontos para julgar e definir os fatos históricos sem preci-sar conhecê-los. Os rebeldes são revolucioná-rios, conhecem o sentido da história.

Os cabanos, que não conhecem a história por serem anal-fabetos (num comprometedor preconceito da autora, que ignora a fertilidade da história oral, como a saga de Carlos Magno e os sete pares de França), a têm no coração. Ao es-crever essa frase gloriosa, Mario Schimidt pode estar fazen-do poesia ou epopeia, mas nunca história.

Para estimular uma reedição mais rápida da obra clássica do barão do Guajará, segue-se o texto do manual de história:

CABANAGEM EXÓTICA

Cabano era o pobre do Pará. Morava num barranco de madeira e bambu, em cima do pântano, entre cobras, mos-quitos transmissores de doenças, vermes e fome. Trabalhava muito, mas vivia mal. Porque os frutos do seu trabalho iam quase todos para os latifundiários e para os grandes comer-ciantes que dominavam a província. Em todos os cantos, os pobres sussurravam entre os dentes: “terra para o povo, li-berdade e igualdade”. Analfabetos, não tinham a revolução francesa na cabeça. Mas certamente a tinham no coração.

A região estava agitada desde o tempo em que mercená-

rios ingleses, a mando de D. Pedro I, assassinaram patriotas brasileiros no porão de um navio. Bandos armados de jus-ticeiros atacavam os fazendeiros e levavam os bens para ser distribuídos entre os carentes. Um padre ligado aos exalta-dos, o cônego Batista Campos, era muito querido por pregar o Evangelho da Revolução. Nos sermões costumava benzer as armas dos rebeldes. Daí o apelido de Padre benze-cacetes.

A revolta adquiriu enormes proporções. Uma multidão, em Belém, invadiu o palácio do governador. O homem ten-

tou fugir, mas acabou morto a golpe de tacapes. Seu corpo foi arrastado pelas ruas para que o povo em festa cuspisse nele.

Alguns latifundiários, querendo se apro-veitar do movimento, usaram seu prestígio e força para assumir a liderança da revolta. Mas, chegando ao governo da Província, procuraram negociar com a Regência: foi o caso de Malcher e dos irmãos Vinagre.

Traição atrás de traição! Os líderes po-pulares começaram a perceber isso. Eram homens e mulheres de quem a memória histórica, tão maltratada pelas classes do-minantes, só conservou os apelidos: Do-mingos Onça, Negro Patriota, Mãe [e não Mão] de Chuva, João do Mato, Gigante do Fumo, Piroca Cana, Chico Viado, Maria da Bunda, Zefa de Baixo e tantos outros. Para eles, não houve estátuas, nem praças ou nomes de escolas. Muitos não tiveram sequer direito a uma sepultura. Porque sua luta apavorava os ricos. Os pobres falavam em distribuir terras e acabar com a escravi-dão. E havia até quem levantasse a possibi-

lidade de arrancar o couro delicado dos brancos.Tropas do Rio de Janeiro e mercenários ingleses foram

enviados. Muita força militar. A repressão foi feroz. Os caba-nos se refugiaram na floresta e promoveram guerrilhas. Para a “tranquilidade” (dos latifundiários, claro) voltar, aldeias de índios foram arrasadas, cabanas incendiadas e quase 40 mil camponeses assassinados.

Segundo o historiador paulista Caio Prado Jr., a Caba-nagem foi o único movimento regencial “em que as camadas mais inferiores da população conseguiram ocupar o poder de toda uma Província com certa estabilidade”.

Talvez a melhor imagem seja a do destino de Vicente Ferreira de Paula, um dos comandantes dos bravos cabanos. O governo o perseguiu implacavelmente, mas só conseguiu capturá-lo em 1850, quando já era um velhinho. Apesar dis-so, foi levado a ferros para a ilha-presídio de Fernando de Noronha. Depois de arrebentarem-no de pancadas, vesti-ram-no com uma camisa de couro molhada apertadíssima. Amarrado, ficou exposto ao sol. O couro ia secando e enco-lhendo. Ele, então, vomitava sangue. Assim morrem os cam-poneses no Brasil.

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JORNAL PESSOAL Nº 581 • MARÇO DE 2015 • 2ª quinzena - 11

Uepa adere ao Enem sem ouvir interessadosPublico a seguir o texto que me foi enviado por um aluno da Uepa. Mantivemos seu anonimato para preservá-lo da reação interna. O tema é dos mais importantes para a comunidade universitária.

A Universidade do Estado do Pará, que possui o dever de primar pela responsabilidade

social e pela manutenção de suas iden-tidades culturais, aderiu de forma arbi-trária, no dia 17 de dezembro do ano passado, ao Exame Nacional do Ensino Médio e pôs fim aos respeitáveis Prise e Prosel (sendo o 1° realizado em três etapas, uma em cada ano do ensino se-cundário), fato que causou e ainda cau-sará vários transtornos à comunidade acadêmica e externa. 

Apesar do sucesso do vestibular regional, a Uepa aderiu ao exame na-cional sem sequer consultar os princi-pais interessados no assunto, que são os estudantes secundaristas. A aprovação (ocorrida a portas fechadas e quebran-do o regimento em vigor – capítulo IV, artigo 33) não decidiu qual será o novo critério de ingresso, deixando tais pen-dências para futuras reuniões do Con-selho Universitário.

Mesmo com o adiamento, fica explí-cito que a intenção de seus verdadeiros interessados é extinguir os conceitua-dos Prise e Prosel e manter unicamente o Enem, que desde 2009 deixou de ser apenas um exame avaliativo do ensino médio para se tornar um dos maiores vestibulares do mundo, obrigando, as-sim, todo e qualquer brasileiro a realizá-lo para poder ingressar em uma insti-tuição de ensino superior.

O Prise, além de ser uma prova res-peitável, possui real função avaliativa do ensino médio por ser realizado em três etapas. O Enem, por sua vez, ape-sar de usar seus dados para tal função, não é confiável por uma série de fatores. Entre eles está a forma de aplicação e o tempo disponibilizado para os dois dias seguidos de prova (de apenas 10 horas para 180 questões e mais uma redação), que chegam a ir além das capacidades da maioria dos candidatos e beneficiam principalmente os que dispõem de re-cursos para se manter em cursinhos preparatórios. 

Em 2014 foram registradas mais de 95 mil inscrições no Prise e Prosel, sendo as provas realizadas em 27 muni-cípios paraenses. O Enem, sem dúvida, contempla uma quantidade maior de municípios em relação ao tradicional vestibular da Uepa e tal fator foi uma

das justificativas para legitimar a ade-são da instituição ao Exame Nacional do Ensino Médio.

Mas não se pode negar que o Esta-do do Pará possui um dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano do país e consequentemente uma das mais baixas médias na prova. Foi assim em 2013, quando o Pará ficou com três escolas entre as 15 com piores médias da Federação. Esses resultados dificul-tarão em demasia o ingresso dos estu-dantes de baixa renda aqui residentes.

Outra justificativa apresentada pela Uepa é de que, com o Enem, mais es-tudantes da rede pública teriam acesso às vagas oferecidas, o que é uma gran-de inverdade. Na UFPA, por exemplo, uma aprovação considerável de alunos de escolas públicas só é possível graças ao sistema de cotas e não à prova de-fendida pela Uepa, que apresentou em seu último vestibular (através do Prise e do Prosel) o ingresso de 55,31% da mesma rede. Precisa de Enem? O Prise, criado em 1997, pode ser considerado como o processo seletivo mais demo-crático, já que ocorre em cada fase do ensino médio e proporciona maiores chances a quem dificilmente consegui-rá se preparar em um cursinho. 

No que tange à informação, a Uni-versidade do Estado do Pará falhou ao tratar precariamente um tema de tamanha magnitude, restringindo as discussões em dois únicos eventos (que ocorreram na EGPA) voltados majo-ritariamente para a gerência da insti-tuição, excluindo, assim, os principais interessados na adesão ou não desta universidade ao Enem. Não houve a apresentação do projeto e tão pouco a realização de consultoria para saber a opinião da população, que mantém viva a universidade através de seus impostos. Por isso, além de equivocada, tal adesão foi arbitrária e contrária aos princípios democráticos que tanto defende. 

A resolução 2784/14, do Consun, publicada no Diário Oficial do Estado em 22/12/2014, aponta que o Prise dei-xará de ser ofertado a partir de 2016, mas o processo 2014/520494, aprova-do pelo mesmo conselho, indica que o Prise poderia ser mantido e apenas o Prosel seria substituído pelo Enem. Por quê? Além do conflito citado, a pró-

pria Uepa deixa claro no documento de adesão que a nova forma de ingresso só seria definida futuramente, através de edital elaborado pela Pró-reitoria de Graduação.

Se não tinha um projeto pronto, qual a necessidade de se aderir ao ves-tibular nacional? Considerando a falta de argumentos que justificassem a troca do vestibular regional pelo nacional, a falta de debate, a quebra do regimen-to interno, as várias contradições pre-sentes no documento de adesão, além de outros problemas, fica claro que os interesses políticos mais uma vez passa-ram por cima dos interesses sociais, que serão duramente afetados.

O maior ônus, sem dúvida, será a ampliação da desvalorização dos es-tudos voltados para a Amazônia, que mais uma vez se firma como colônia ao abdicar da própria cultura. As discipli-nas de Letras, Geografia e História se-rão amplamente afetadas, assim como os futuros docentes que a Uepa lançará à sociedade, que deveriam “integrar os saberes amazônicos com outras realida-des” e não se desfazer dos primeiros.

Nada disso foi levado em considera-ção pelo Consun no ato da adesão, que por incrível que pareça é composto ma-joritariamente por docentes da própria universidade. Que tipo de educador é capaz de atentar contra quem deveria ajudar a libertar? É uma pergunta que fica sem respostas, mas ao mesmo tem-po com muitas, já que tais docentes, em sua maioria, são frutos do trágico acordo MEC-Usaid, que reformulou a educação brasileira na época do regime militar e tornou a mesma menos crítica e mais mecanizada, conforme os inte-resses do capital internacional.

O Enem é uma herança desse acor-do, implantado na Uepa (assim como na época da ditadura) de forma arbi-trária; mas não significa que os estu-dantes aceitarão calados essa decisão, já que, mesmo com a adesão ocorrida a uma semana das férias, os estudantes continuaram com as discussões e hoje o caso tramita no MP e na Defensoria Pública, sem descartar a realização de atos populares. 

Que a população local (que não foi consultada sobre o assunto) se manifes-te a respeito.

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Memória doFOLCLOREEm 1950 foi fundada a Comissão Regio-

nal de Folclore por José Coutinho de Oli-veira, Armando Bordalo da Silva, Bruno de Menezes, Bolívar da Silva, Paulo Maranhão Filho, Levi Hall de Moura, Jacques Flores, De Campos Ribeiro, Washington Costa, João Viana, Raimundo Viana, Pedro Tupinambá, Nunes Pereira, George Colman [do consulado americano], César Pereira, Margarida Schiva-zzapa, Maria Brígido e Ítala Silveira.

Durante certo tempo a comissão se reu-niu no casarão de Paulo Maranhão Filho, na esquina da Nazaré com a Rui Barbosa. Quando ele morreu, sua biblioteca foi saque-ada aos poucos. O poeta Max Martins, que trabalhava na Sucam, localizada na transver-sal, testemunhou as invasões cuidadosas de quem saía carregado de livros. Uma pilha-gem e uma pena.

BARATADepois de dois meses em tratamento de

saúde no Rio de Janeiro, Magalhães Barata reassumiu o governo do Pará em novembro de 1956. Recebeu o cargo de um antigo ad-versário político, o deputado estadual Catette Pinheiro, que ocupou interinamente a fun-ção por ser o presidente da Assembleia Le-gislativa. Nesse período, Cattete foi tratado como traidor por seus correligionários por se ter recusado a mudar a administração públi-ca, afastando os baratistas.

Catette se disse vítima de ataques “dos que já se acostumaram a fazer a indústria do antibaratismo”. Prometeu continuar lutando “para que o Pará não volte aos tormentosos dias do passado”.

Barata também se considerou alvo dos que se uniram para combatê-lo, só vendo em sua pessoa o soldado que, durante o Estado Novo, recebeu o governo do Estado, em mu-dança de regime, como verdadeira prebenda”.

Garantiu que nunca foi violento e arbi-trário “e sempre recebeu os chavões com sor-riso: classificavam como violência a maneira como fazia cumprir as leis e regulamentos”.

Em mais uma afirmativa desconcertante, Barata disse que o baratismo foi criado pelos seus adversários racorosos, interessados em explorar a indústria do antibaratismo”. Ad-mitiu que não podia trabalhar sozinho, dis-pondo-se a deixar as portas do palácio “sem-pre abertas e a sua atenção sempre voltada para as críticas construtivas e sugestões que possam, de algum modo, evitar erros”.

Barata morreu dois anos e meio depois, antes de concluir o seu mandato.

CONTRABANDOA Folha do Norte de fevereiro de 1957 registrou que, na véspera, a alfândega

de Belém, cumprindo mandado de segurança concedido pela justiça estadual, entregou um automóvel Ford apreendido ao seu reclamante, Oscar Steiner, observando:

“Não sabemos se foi essa medida amparada pela lei ‘Oliveira Brito’, que determina o depósito ou caução no valor de 150% em casos dessa natureza”.

Naquele momento ainda estavam retidos no pátio da aduana, como contra-bando, um automóvel Chevrolet e outro Mercury, além de um jeep. O jornal previa que os proprietários desses caros “naturalmente irão tratar de conseguir a mesma medida, de vez que as situações irregulares são as mesmas” em que estava o Ford liberado.

“Isso foi um incentivo salutar para aqueles que, possuidores de carros, com a sua entrada irregular no Estado, agora podem usá-los sem medo de ser mo-lestados pela fiscalização do imposto de consumo, como também dará uso à entrada de muitos outros em situações idênticas”.

A previsão se cumpriu.

BOÊMIAO intelectual amazonense Ramayana de Chevalier (pai de Roniquito, o fa-

moso personagem da boemia de Copacabana e Ipanema) foi homenageado na sede do sempre festivo Pará Clube, quando era na avenida Nazaré. Ao voltar à sua terra, escreveu sobre a instituição que era então o clube. E em certo trecho fala de uma Belém que se foi, com seus personagens e cenários:

“Sobe o dia, o sol ferve para os lados do Ver-o-Peso, o Barbinha [bar que ficava no início da rua Campos Sales] está cheio. Começa o tumulto. Os cas-quinhos de caranguejo inigualáveis. O Baratinha, também. Onde exista um telefone e uma oportunidade, aí está o Baratinha. Fino, elegante, sensitivo, equacionado para o triunfo como um avião a jato. Dali a turba investe para o Pará Clube. As horas passam e o conforto espiritual se eterniza no salão da Academia Boêmia. Belém tem estradas largas e belas, tem a mouraria e a alfama das ruas estreitas, onde se vende o amor sem preconceito, tem a zona bancária, sempre azafamada, as esquinas do tacacá e do açaí”.

PROPAGANDA

Ir e vir

O voo, em 1957, em aparelho de dois motores a explosão, como o deste anúncio, era muito mais demorado do que hoje. O passageiro comum ganhou em tempo, mas perdeu no atendimento. A Real Aerovias Nacional (em consórcio com a Aeronorte)

oferecia aos seus clientes, no Super-Convair, “grandes e macias poltronas reclináveis”, com atendimento por uma modelar aeromoça. Os três voos semanais para São Luiz, Fortaleza e Recife eram “3 oportunidades de melhor viajar”. Por isso a companhia adotava como slogan: “Vá e volte pela frota da boa viagem”. A agência era na avenida Presidente Vargas, que ainda era a mais importante de Belém.

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JORNAL PESSOAL Nº 581 • MARÇO DE 2015 • 2ª quinzena - 13

Cotidiano

CLÉOUm leitor que leu o registro feito nesta seção sobre a prisão,

em 1964, do advogado e ex-deputado estadual Cléo Bernardo, na edição anterior, lembrou um fato.  No dia em que Cléo foi solto, o então governador Jarbas Passarinho, no carro oficial, com direito a bandeirinha que o identificava, foi na hora do almoço buscar o recém-libertado preso político em sua casa (que ficava na Alcindo Cacela) e o levou para almoçar na casa governamental onde hoje é o Parque Residência. O gesto emocionou o líder socialista. Os dois eram amigos.

O episódio dá razão a Gilberto Freire: no Brasil, às vezes as relações de amizade, familiares ou de compadrio superam as diferenças políticas, os conflitos ideológicos e a luta de classes.

MULHERESEm maio de 1964 as organizadoras da “Marcha da Família”

em Belém foram a Brasília para uma audiência com o presi-dente da república, marechal Castelo Branco, manifestar-lhe a confiança da mulher paraense “nos ideais da revolução que livrou o Brasil do movimento comunista”. Quando soube que as visitantes chegaram à capital federal um dia antes da data da audiência, Castelo, que foi comandante do exército em Be-lém, antecipou o encontro. E levou-as pessoalmente depois para uma visita ao Palácio do Planalto.

Integravam a comitiva as esposas de Cláudio Dias, Do-mingos Acatauassú Nunes, Eduardo Castro ribeiro, Jesus Medeiros, viúva Ana Guerreiro, Gilda Medrado, Maria Lídia Mendonça e Carmélia Palmeira.

FOTOGRAFIA

Jânio em campanha

Jânio Quadros discursa em comício realizado em Belém durante sua campanha para a presidência da república, em 1960. Seria eleito com a maior de todas as votações obtidas por pretendentes ao cargo máximo do poder público. Seria o presidente mais fugaz e controverso também. Ao fundo, o deputado federal Gabriel Hermes Filho (depois senador e que presidiu a Federação das Indústrias do Pará por 40 anos) e ao lado o futuro prefeito de Belém e deputado federal Stélio Maroja.Jânio deixou a nação órfã da sua tentativa de golpe branco.

TEATROEm 1965 o Teatro da Paz estava “em ruína e deca-

dência”, admitia uma nota oficial do governo do Estado, que respondia a notas da imprensa atribuindo ao governa-dor Jarbas Passarinho críticas ao diretor do teatro, Edgar Proença. A nota garantia que ele continuava a merecer respeito e confiança, mas a situação era um fato docu-mentado e fora constatada pelo próprio governador.

Prova da decadência era o desaparecimento dos lus-tres do teatro, que vinha ocorrendo “há muitos anos”, mas só se tornara possível por falta de vigilância: “Os buracos das portas estão ali para documentar que uma prática des-sa ordem só é levada a cabo quando o arrancamento das fechaduras se faz com a certeza da impunidade”.

O governador aproveitou para convidar Edgar Proen-ça a “acompanhá-lo numa visita ao Teatro da Paz para se convencer que não são as fotografias e os informantes que desnaturam a clamorosa realidade dos fatos”.

REMOHá derrotas que são gloriosas, como a que o Clube

do Remo sofreu em 1965. Levou nove gols do Santos de Pelé & Cia., o maior time de futebol do mundo na época. Mas colocou quatro gols na rede santista. O que quase não se lembra é que o Remo estava com um “timinho”. O quadro titular ficaria por dois meses numa excursão ao Acre e Rondônia, que era uma verdadeira odisseia. Se-guiu na comitiva o treinador, o ex-craque Danilo Alvim. Treinando os reservas ficou Arleto Guedes, considerado apenas um “curioso”.

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Editor: Lúcio Flávio Pinto

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SAúDE[A carta a seguir é de uma

brasileira residente nos Esta-dos Unidos, que quis manter seu anonimato nesta impor-tante mensagem.]

Passei a vista no Uol e me deparei com uma noti-cia que certamente será sem importância para a maioria das pessoas e sobre a qual não tenho como resistir em comentar: faltam vacinas (muitos tipos) nos postos da rede publica de saúde e até nos estabelecimentos pri-vados no Brasil. A razão: o Ministério da Saúde redu-ziu o suprimento! Seria um problema de produção, não explicado, mas o que parece ser, na realidade, uma tenta-tiva de economizar! Qual o custo de um paciente com um simples sarampo para o sistema?

Um país que se livrou da pólio, tem poucos casos de meningite e tétano e tem sob controle a febre amarela, agora não tem vacina sufi-ciente. Imagina se o pessoal com menor condição vai fi-car retornando aos postos/hospitais para se vacinar. Vejo isso como o sinal mais concreto ate aqui da falência deste governo.

Não sei já pararam para pensar nas implicações disso até fora do país e os proble-mas de imagem que isso vai gerar. Imagina que eu e meu marido, depois de uma via-gem à Amazônia, sejamos questionados pela imigração (Estados Unidos/Europa) onde fomos e a gente fale a verdade: Marabá, Belém ou qualquer ponto na Região

Norte. Qual é a chance de que vão pedir o cartão de vacinação contra febre ama-rela? Altíssima. Ando com o meu na carteira. O mesmo para o meu marido.

E eu achava, até aqui, que umas das maiores levianda-des das administrações do PT, era o fato de a Ana Julia Carepa ter proibido a Seduc a receber milhares de do-cumentos escolares (como o meu) dos ex-alunos do Cearense e que não foram colocados em meio magné-tico, comprar o prédio para a Seduc e mandar retirar os documentos do prédio e que foram jogados num gráfica em Ananindeua e o qual me levou um ano e meio cor-rendo atrás, inclusive com a ajuda da Corregedoria do MPF, em Brasília, para que fossem levados à Seduc.

Só quero ver quando vão começar a nova vaquinha para ajudar os novos “heróis” da Lava Jato. É muito abuso!

CABANAGEMNão resta dúvida que o

tema é palpitante e deveria suscitar aos paraenses – nos estudantes de um modo geral, nos estudiosos da Academia e nos leigos – o interesse pelos primórdios da nossa história. Trata-se com efeito de uma obriga-ção, tanto do estudante, em aprender, como da Escola proporcionar aos seus alu-nos o acesso a conhecimen-tos tão importantes que irão balizar a suas formações cívica e intelectual. Com este propósito, não se pode perdoar a incúria e o deslei-

xo que a sociedade civil e o poder público vêm tratando de assunto tão importante. De nossa parte, durante a passagem pelos bancos es-colares desde os primeiros anos até o curso superior, os ensinamentos sobre o tema foram irrisórios ou insufi-cientes, que nem mesmo para despertar a curiosidade serviram.

Na mesma sequência posso assegurar que meus filhos e netos não tiveram tratamento diferenciado. Não obstante os percalços, ao longo da vida, tive um razoável acesso ao assunto através dos autores (todos contidos na bibliografia ofe-recida pelo editor deste JP) Arthur Cezar Ferreira Reis, José Veríssimo, Vicente Sal-les e Pascuale Di Paolo. Co-nheço o trabalho do vigiense Domingos Antonio Rayol, o Barão de Guajará, porém confesso que não tive fôlego para vencer as suas intermi-náveis 2.300 páginas, peja-das de notas explicativas e remissivas, conforme esse editor já registrou. Preferi ler o livro do Pasquale Di Paolo que, não tem o tutano do Ba-rão, mas satisfaz e confirma muitos casos e afirmações que hoje conheço com a re-tomada das leituras esparsas sobre o movimento rebelde, sobressaindo o livro Caba-nagem - Documentos Ingle-ses, organizado pelo histo-riador David Cleary, editado pela Secult, em 2002, com a tradução de Christine Mo-ore Serrão, contendo valio-sas informações do ponto de vista histórico, resultante

da privilegiada posição da armada inglesa na costa pa-raense no período dos confli-tos cabanos.

Disso afloraram mui-tos detalhes até então des-conhecidos e omitidos na historiografia brasileira. O caso mais escabroso foi o conchavo do Regente Feijó com as autoridades france-sas e inglesas para enfrentar a sedição local arregimenta-da pelos cabanos, mas que os estrangeiros teimavam em chama-la de “rebeldes nativos”, “celerados”, “ple-be armada”, “conspiração de índios”, “desordeiros”, “po-pulação de cor” e que tais.

Não tiro o mérito de o editor achar a atitude do Regente Feijó de, diga-se grosseiramente, lesa-pátria. Entretanto e de certa forma, os franceses e ingleses já atuavam nas atividades de guerra e defesa da província desembaraçadamente, com a primazia dos britânicos, que inclusive reclamaram e de-nunciaram ao Presidente do Pará (José de Souza Soares Andrea, em correspondência de 09.09.1836) “... a ocu-pação pelo governo francês de uma parte do território da Guiana”. O pano de fun-do da intriga inglesa era que o assento dos franceses no extremo norte iria dificultar a plena navegação e os inte-resses comerciais da Pérfida Albion. Percebe-se, não só pelos pequenos fatos venti-lados antes, que a alienação do Império com relação às suas Províncias era quase total, elas viviam mercê da ajuda dos navios mercantes

CART@S

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e de guerra que freqüen-tavam e navegavam no litoral brasileiro.

Aqui no Pará agra-vou-se mais a dependên-cia devido que, no frigir dos ovos, os ingleses já agiam com desenvol-tura, como mostra esta convocação pelo próprio Presidente da Província, com a missiva ao Vice-Cônsul Hesketh, datada de 27..07.1837, que ter-mina assim: “...para que unidas as deste Governo se salve esta malfadada Pro-víncia dos horrores da carni-ficina e nenhuma duvida me resta que nas circunstâncias aflitivas em que me acho; pela longevidade do gover-no Central...”. Era patente o isolamento e omissão, como se dizia, do Governo Central com as suas Províncias.

A Bahia só conseguiu expulsar os renitentes por-tugueses que ocupavam seu território, com a colaboração decisiva do então flibusteiro e mercenário, com larga ex-periência de lutas no conti-nente americano e que aqui foi dignificado com o título de primeiro almirante da desorganizada e ineficiente Marinha, o escocês Thomas Alexander Cochrane, mais conhecido como Lord Co-ckrane. A sua contratação foi feita a peso de ouro, afora o ganho com os saques que cometia aos bens dos venci-dos, como aconteceu em São Luis. Como a ação de Lord Cochrane no Maranhão e no Pará tenha ocorrido logo após a proclamação da Inde-pendência, estranha-se ne-nhuma menção desses fatos

nos Documentos Ingleses, uma vez que eles (ingleses) já andavam e mandavam nessas paragens há muito tempo.

Desse modo, conside-ro que o enfrentamento dos insurretos nas terras paraen-ses deu-se com a decisiva e direta participação dos es-trangeiros (preponderando os ingleses), algo que pode ser confirmado na leitura das correspondências troca-das pelos altos funcionários do Ministério do Exterior (Foreign Office), do Consu-lado, da Embaixada no Rio de Janeiro e do almirantado, impregnadas de notícias re-levantes, como por exemplo, além das já citadas: “... são baseadas em relato mandado por Almirante John Taylor, mercenário britânico que comandou as forças legalis-tas no Pará, nos anos chaves 1835 e 1836”.

É por isso que não con-cordo que se deva cruci-ficar o Regente Feijó pela iniciativa de conjurar ato lesivo à Pátria em constru-ção, por dois motivos: 1) a Monarquia Constitucio-nalista atribuía ao Impera-

dor o chamado poder mo-derador, disto resulta que, mesmo não aprovado pela Assembléia, a última pala-vra era do Monarca, e ele era o representante do dito cujo; 2) deve-se ao fato de os britânicos terem sido os principais adversários dos cabanos, porque possuíam o domínio da situação e man-tinham o cerco naval aos revoltados, conforme escla-rece a carta do Presidente da Província, datada de 27 de julho de 1835, pedindo socorro para combater “os desordeiros, movimentos anárquicos, que pretende envolver todos os pretos, em o especioso pretexto de que finda a luta serão livres...”. Nestas circunstâncias, de que serviria um documen-to permissível, chancelado pela Assembleia? Já estava tudo dominado, como se diz prosaicamente.

Finalmente, entendo que há carência de um traba-lho didático interpretativo, elaborado por profissionais compromissados com a re-alidade – nada de academi-cismo e firulas intelectuais – enfim, um material que

espelhe tanto quanto possível a crueza dos entreveros mortais ha-vidos entre os nativos, os negros e os estran-geiros, assim como as razões das insurgências, se de consistência po-lítico ideológica, ou de desigualdades sociais e raciais, ou simplesmente porque se recusaram a aderir a independência, nos termos que foram sacramentados no Rio de Janeiro.Reconhece-se que havia

dissidência de opiniões so-bre o regime a ser adotado, uns pugnavam pela sim-ples reunião Brasil/Portu-gal (Reino Único), e outra ala pregava a Monarquia Constitucional, que acabou prevalecendo. Qual era a nítida opção dos nossos he-róis cabanos? Aqueles que de um modo geral estiveram nos campos de batalha: mui-tos foram imolados na luta, uma pequena parte – mesmo estropiada – conseguiu so-breviver e um ínfimo seg-mento ganhou as glórias da insurreição. Todos indistin-tamente tinham convicção e sabiam por que estavam guerreando?

Espera-se que o leitor aproveite a iniciativa do Jornal Pessoal, divulgando o assunto e emitindo a sua apreciação crítica, usando a bibliografia publicada no Dossiê 9/Jornal Pessoal - Cabanagem 180 anos - A guerra de um povo, como instrumento para as próxi-mas diligências sobre tão controvertido assunto.

Rodolfo Lisboa Cerveira

CorreçãoA revenda citada na matéria de capa da edição passada é de motocicletas e automóveis

BMW. Por lapso, o texto citou motocicletas Mercedes.Aliás, na manifestação de protesto do dia 15 de março podiam ser vistas 45 motocicletas

de luxo, metade das quais eram Harley-Davidson.

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O desenho que Delfimnão pendurou na parede

No ano passado escrevi sobre o perfil de Delfim Netto publicado na revista Piauí. Um dos fatos que destaquei foi a coleção de 20 caricaturas dele feitas por artistas co-nhecidos, que ele mandou emoldurar e pendurou como troféus no seu escritório. Aprisionadas dessa maneira, elas se pareciam aos animais empalhados com os quais os ca-çadores decoram suas salas. Por mais que tivessem a in-tenção de criticar o personagem, os cartunistas acabaram sendo mais leves no traço, deixando-o domesticável. Del-fim Netto merecia essa deferência.

A coleção, entretanto, não incluiu o cartum reproduzido nesta página, desenhado pelo argentino Luíz Tri-mano para o quarto número do sema-nário Opinião, de dezembro de 1972. Trimano, que se tornou um dos mais importantes ilustradores da impren-sa brasileira, inigualável na colagem, nunca mereceu a atenção devida ao seu talento.

\Em 1972, quando virou cartum de Trimano, Delfim era o mais poderoso ministro no governo do general Emílio Garrastazu Médici, no auge da ditadu-ra militar. Não só por ocupar a pasta da Fazenda, de tradicional destaque, mas pelo seu estilo imperial e agressivo de agir. Ele posava como o mago do “milagre econômico” brasileiro e nessa condição recebeu em Brasília, nessa época, um dos principais representan-tes de outro milagre, o do Japão.

Saburo Okita, ministro do comér-cio exterior, era mais discreto, embo-ra não menos enfático. Ele, Delfim e mais alguns tecnocratas, dentre os quais com papel especial o engenheiro Eliezer Batista, da Companhia Vale do Rio Doce (e pai do futuro empresário Eike Batista), estavam promovendo a intensificação (como nunca antes – nem depois) dos dois milagres.

O Japão comparecia com capital, tecnologia e mercado. O Brasil, com as matérias primas de que os japoneses, a partir da crise do petróleo, se torna-riam cada vez mais carentes. Para in-tensificar a parceria, brasileiros e japo-neses passaram a circular intensamente entre os dois países, a ponto de Eliezer se tornar o não residente que por mais vezes foi ao Japão, em para mais de uma centena de viagens.

A história dessa ofensiva ainda está para ser escrita, com seu capítulo especial no Pará, que forneceu minério de ferro e alumínio para as indústrias japonesas. Como estímulo a quem se interessar possa, fica o desenho do grande Trimano para advertência dos que glamourizam agora aquele período de crescimento econômico tão in-tenso quanto frágil, enquanto a mão pesada da repressão sufocava a liberdade, sem a qual nada vale a pena numa sociedade de seres humanos.