Jose Horta Nunes

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  • 7/29/2019 Jose Horta Nunes

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    LEITURA DE ARQUIVO: HISTORICIDADE ECOMPREENSO

    Jos HORTA [email protected]

    Universidade Estadual Paulista"Jlio de Mesquita Filho" (UNESP)

    Para abordar a leitura de arquivo, poderia partir de vrios pontos, taiscomo a distino foucaultiana entre documento e monumento (Foucault, 2000),a oposio entre corpora experimental e corpora de arquivo, a noo depercurso temtico ou percurso de arquivo, a relao entre arquivo e instituio, a

    oposio discutida por Pcheux (1994) entre os modos de leitura literrio ecientfico abalados frente s novas tecnologias informticas, dentre outros.

    No entanto, gostaria de partir de duas noes que, apesar de trabalhadasmuito freqentemente, talvez no tenham alcanado o mesmo estatutoconceitual de outras. Tratam-se das noes de historicidade e de compreenso.Quando afirmo que elas no tm o mesmo estatuto de outros conceitos, noquero com isso dizer que elas o deveriam ter, mas sim considerar o fato de que acincia funciona no somente com conceitos relativamente estabilizados, mastambm com outros que funcionam um pouco margem e que permitemsignificar novos fatos ou demarcar o lugar de um campo de saber em relao aoutros.

    Da histria historic(idade)

    O termo historicidade funciona de modo a caracterizar a posio doanalista de discurso em relao do historiador. O deslocamentohistria/historicidade marca uma diferena entre as concepes de histria, deum lado como contedo, e de outro como efeito de sentido. Aos historiadoresligados AD cabe questionar a transparncia da linguagem, levando-se em conta

    a espessura da lngua. Aos analistas de discurso, a histria passou a ser vista nocomo um pano de fundo, um exterior independente, mas como constitutiva daproduo de sentidos.

    Trabalhar a historicidade implica em observar os processos deconstituio dos sentidos e com isso desconstruir as iluses de clareza e decertitude. Ao mesmo tempo, trabalhar a historicidade na leitura de arquivos levaa realizar percursos inusitados, seguindo-se as pistas lingsticas, traando

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    percursos que desfazem cronologias estabelecidas, que explicitam a repetio demecanismos ideolgicos em diferentes momentos histricos, que localizamdeslocamentos e rupturas. Desse modo, o arquivo no visto como umconjunto de "dados" objetivos dos quais estaria excluda a espessura histrica,mas como uma materialidade discursiva que traz as marcas da constituio dossentidos. O material de arquivo est sujeito interpretao e, mais do que isso, confrontao entre diferentes formas de interpretao e, portanto, nocorresponde a um espao de "comprovao", onde se suporia uma interpretaounvoca.

    Lembremos tambm que a noo de gesto de interpretao, tal comotrabalhada no livro Gestos de leitura: da histria no arquivo (Orlandi, 1994) levaa considerar os materiais de arquivo como gestos simblicos que se inscrevem nahistria. Por um lado, os fatos e os eventos clamam por sentidos, pedem porinterpretao, conforme a afirmao de P. Henry (cf. 1994). Por outro, os efeitos

    de arquivo se produzem por meio de diversos mecanismos lingsticos queservem de base para os processos discursivos. De acordo com Orlandi (1996, p.18), a noo de gesto, na perspectiva discursiva, "serve para deslocar a noo de'ato' da perspectiva pragmtica; sem, no entanto, desconsider-la". Assim, aindade acordo com a autora, "o gesto de interpretao se d porque o espaosimblico marcado pela incompletude, pela relao com o silncio. Ainterpretao o vestgio do possvel. o lugar prprio da ideologia e 'materializada' pela histria.".

    Desse modo, diremos em sntese que a noo de historicidade desloca anoo de histria como contedo e como fonte unvoca de interpretao. O

    sufixo -idade nos parece funcionar a como um ndcio desse modo de concebera histria na anlise de discurso, juntamente com as noes de processo deconstituio do sentido e de gesto de interpretao.

    A compreenso: um conceito histrico-poltico

    Passemos agora noo de compreenso. Em um captulo do livroDiscurso e Leitura, E. Orlandi (1988, p. 115) distingue "o inteligvel, ointrepretvel e o compreensvel". O inteligvel "a atribuio de sentidoatomizadamente (codificao)", o interpretvel "a atribuio de sentidolevando-se em conta o contexto lingstico (coeso)" e o compreensvel a"atribuio de sentidos considerando o processo de significao no contexto desituao, colocando-se em relao enunciado/enunciao". Deste modo, aindaconforme a autora, "compreender, na perspectiva discursiva, no , pois, atribuirum sentido, mas conhecer os mecanismos pelos quais se pe em jogo umdeterminado processo de significao". Com essa concepo, Orlandi trabalha oque ela chama um "conceito histrico (poltico) de compreenso" (p. 117).

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    A noo de compreenso, portanto, se distingue tanto de uma perspectivapsicolgica, quanto de uma perspectiva lgica: trata-se de uma noo histrico-poltica. Praticar a compreenso na leitura no somente levar em consideraouma ou outra interpretao, mas ter em vista os "conflitos" de interpretao. atentar para os vrios direcionamentos de sentido que funcionam em um mesmoespao discursivo. Podemos mencionar a as injunes interpretao, os gestosde reproduo de sentidos, as coeres e os interditos, os controles dainterpretao, a censura, e tambm as diversas formas de resistncia interpretao: as oposies e as migraes de sentido, as desidentificaes, asdesconstrues interpretativas, enfim, os gestos que colocam em suspeio aestabilidade de uma interpretao.

    O arquivo nesse contexto tido como um espao de polmica, em que seconfrontam as posies interpretativas. preciso primeiro observar os gestos deinterpretao a partir das posies de sujeito e, em seguida, mostrar as relaes

    entre essas interpretaes, identificando as filiaes discursivas, as contradies,as retomadas e deslocamentos, enfim, explicitando o movimento dos sentidos edos sujeitos, no espao tenso em que o real da interpretao pode tantoapaziguar quanto ameaar.

    Na anlise de discurso, a compreenso tem a ver diretamente com a teoria,e por conseguinte, com a posio do analista. Ainda conforme E. Orlandi (1999,p. 116), "o sujeito que produz uma leitura a partir de sua posio interpreta. Osujeito-leitor que se relaciona criticamente com sua posio, que a problematiza,explicitando as condies de produo da sua leitura, compreende."

    O conceito de dispositivo de interpretao, trabalhado por Orlandi (1999),

    traz mais elementos para se pensar criticamente a posio do analista e seusprocedimentos para se comprender os processos discursivos. Ao se distinguir odispositivo terico de interpretao do dispositivo analtico, entra em cena aresponsabilidade do analista, suas questes frente ao material de anlise, suarelao com o discurso e seu trabalho com a interpretao.

    Construir dispositivos de anlise de arquivo que levem em conta ahistoricidade dos sentidos e que permitam compreender a pluralidade dos gestosde interpretao: para alm de uma relao imediata com as instituies, esseparece ser um campo produtivo para a continuidade das prticas de leitura dearquivo que a AD promove.

    A temporalidade na leitura de arquivo

    A fim de tratar da operacionalizao das noes que viemos de abordar,vamos refletir sobre alguns procedimentos de leitura de arquivo. Tomamoscomo ponto de partida a questo da temporalidade do/no discurso ecomeamos por evocar o fato de que a AD no trabalha com a temporalidade

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    emprica, cronolgica, mas com a temporalidade dos processos discursivos. Umdiscurso remete a outros discursos dispersos no tempo, ele pode simular umpassado, reinterpret-lo, projet-lo para um futuro, fazendo emergir efeitostemporais de diversas ordens. Compreender a temporalidade significa atentarpara as diferentes temporalidades inscritas no discurso, mostrando as relaesentre elas e os efeitos de sentido que a se produzem.

    Os trabalhos sobre discurso fundador, coordenados por E. Orlandi(1993), so um lugar produtivo para se observar diversas formas detemporalidade no discurso. Se o discurso no tem um comeo assinalvel, comose explicam os novos sentidos, como se d a passagem do sem-sentido aosentido? As anlises de discursos como os de Caminha, Nbrega, Oswald de

    Andrade, Zumbi, os primeiros jornais brasileiros, esteretipos sobre o brasileiro,discursos da argentinidade, dentre outros, nos fazem compreender melhor oimaginrio das fundaes dos discursos, os modos de repetio, de continuidade

    e de ruptura, enfim, as muitas maneiras de "inventar", projetar ou apagar umtempo. Tomo esta obra para evocar os diversos trabalhos que abordam atemporalidade como um fato discursivo, que no tem uma origem cronolgica,mas que apresenta formas histricas de aparecimento especficas.

    Gostaria, agora, de me deter em um caso, que o do discurso sobre aslnguas indgenas em meados do sculo XIX, para a pensar a temporalidade, ainterpretao e a compreenso. Ao realizar um estudo (Nunes, 1996) sobre odicionrio de Gonalves Dias (1858) dentro do projeto Histria das IdiasLingsticas (coordenado por E. Orlandi), a leitura de arquivo me levou aabordar a temporalidade e seus desdobramentos. Chamou-me a ateno nesses

    dicionrios o fato de eles trazerem nas definies diversos verbos no pretritoimperfeito (grifos nossos):

    PJE, feiticeiro. Era o cantor, o mdico, o augure e o sacerdote dosindgenas.PARIC, servia aos ndios em vez de fumo. (...)PARACABA, rvore da qual os Muras faziam os seus arcos. (Dias, 1858)

    O aparecimento das marcas de pretrito, quando considerado no percursode arquivo, desloca a temporalidade em relao a dicionrios anteriores, como osdos jesutas, que descreviam a lngua em uso (os ndios dizem X, quer dizer, Y)em uma prtica de traduo-interpretao na qual o prevalecia o tempo presente(ao mesmo tempo em que a historicidade dos mitos e da tradio oral indgenaera silenciada)1. A marca do pretrito nos dicionrios do Imprio estabelece a1 Cf. anlise do Vocabulrio na Lngua Braslica (J. H. Nunes. Discurso e instrumentoslingsticos: dos relatos de viajantes aos primeiros dicionrios. Tese de doutorado. Campinas,IEL-Unicamp, 1996).

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    lngua indgena como pertencente a um passado lingstico: trata-se do tupiantigo, lngua "dos antepassados brasileiros", romanticamente simulada. Esse um primeiro gesto de interpretao que se depreende da escrita do dicionrio.

    Tal gesto est ligado a uma srie de discursos que nessa conjuntura abordam ondio como antigo e primitivo: na escrita da histria do Brasil, na literatura, assimcomo na histria das lnguas indgenas empreendida por Gonalves Dias (s.d.).

    Mas, para a compreenso dessa interpretao, preciso estar atento aosmecanismos ideolgicos que silenciam outras interpretaes. A imagem do tupiantigo torna inacessvel o tempo presente das lnguas indgenas existentes, assimcomo as varianas dessas lnguas. Colocar os ndios no passado funciona comouma simulao que impede observ-los no presente. Produz-se desse modo um"esquecimento" da temporalidade da atualidade. Tal discrepncia entre ascondies reais e as formaes imaginrias fundamental para o trabalho doanalista e onde se percebe uma duplicidade na interpretao das

    temporalidades. No atentar para esse desdobramento pode levar a interpretarsem compreender, tomando o imaginrio como o real.Ao abordar longos perodos, a leitura de arquivo trabalha os diversos

    efeitos da temporalidade. Se, por um lado, a Anlise de Discurso voltou-se para aNova Histria, articulando-se a trabalhos como os de M. de Certeau (1990), como estudo dos acontecimentos cotidianos e do "homem ordinrio", por outro, elano deixou de refletir sobre longos perodos, identificando sries, explicitandocontinuidades e rupturas, mostrando os efeitos discursivos de imagens histricastais como as da colonizao, da Independncia, da Repblica, do Estado Novo,etc., que continuam produzindo seus efeitos. Poderamos evocar aqui a figura de

    E. Hobsbawn, transitando nas fronteiras entre esses dois espaos, como se notana dade formada por A Era dos Extremos (Hobsbawn, 2002a), que incide sobretrs perodos do sculo XX: a "era da catstrofe", a "era de ouro" e o"desmoronamento", ao lado de Tempos Interessantes (Hobsbawn 2002b), ondese misturam histria pessoal e "Histria" do sculo XX. Isto mostra a dupla viaentre a "grande" e a "pequena" histria, a histria dos grandes acontecimentos ea histria dos indivduos sem notoriedade, com o desdobramento de duasdimenses da temporalidade.

    Consideraes finais

    Em Discurso: estrutura ou acontecimento (1990), M. Pcheux propepara a Anlise de Discurso um batimento, um vai-e-vem, entre descrio einterpretao. Descrio e interpretao funcionariam alternadamente, semserem indiscernveis. De um lado, o real da lngua em sua espessura e em suasujeio ao equvoco; de outro, as interpretaes, os discursos possveis, quefuncionam sob a base lingstica. Penso que poderamos aqui re-inscrever a

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    noo de compreenso discutida mais acima, que nos parece fazer ver a posiodo analista diante da descrio e da interpretao. Descrio, interpretao,compreenso: a insero desse terceiro termo se nos afigura como uma marca daincompletude, do silncio2 e do possvel para o analista.

    Operacionalizar esses conceitos na leitura de arquivo, construindo umdispositivo de anlise, construir a posio do analista em seu movimento pelo(s) arquivo(s). Movimento que no necessariamente se limita a "um" arquivoinstitucional (leitura do arquivo), mas que pode atravessar diversos arquivos einstituies (leitura de arquivo)

    Diremos, para finalizar, que alguns conceitos da AD funcionam um poucosilenciosamente, mas no de forma menos produtiva e por vezes at mesmo demodo crucial. Vrias noes poderiam ser mencionadas juntamente com as queabordamos aqui. Evoquemos, por exemplo, as noes de silenciamento,juridismo, ressonncia interdiscursiva, stio de significao, sujeito escolarizado

    urbano, dentre muitas outras. Isso mostra que no funcionamento do discurso hum espao de invisibilidade dos conceitos, que no entanto funcionam eproduzem seus efeitos. Tal invisibilidade, produzida por mecanismos ideolgicose pelos esquecimentos da resultantes, bastante presente no contextointernacional, ou mesmo no nacional, quando alguns conceitos so tomados porincompreensveis, quando no desconsiderados.

    Uma das marcas da AD no Brasil, a meu ver, corresponde ao modo denomear os conceitos, segmentando as palavras, produzindo novas formasmateriais (por prefixao, infixao, sufixao), hifenizando, empregandoparnteses ou barras, trabalhando a no-coincidncia do conceito com ele

    mesmo.Ao invs da fixao dos conceitos ou de sua dicionarizao, no teramos

    a a significao deles em pleno vo?

    Referncias Bibliogrficas

    DE CERTEAU, Michel. A inveno do cotidiano. Petrpolis: Editora Vozes,2000.DIAS, Gonalves. Dicionrio da Lngua Tupi chamada lngua geral dosindgenas do Brasil. Lipsia: F. A. Brockhaus, 1858.DIAS, Gonalves. O Brazil e a Oceania. Rio de Janeiro/Paris: H. Garnier, (s.d.).FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: ForenseUniversitria, 2000.

    2Pensamos o silncio de acordo com E. Orlandi, como "horizonte de significao" (As formasdo silncio. Campinas: Editora da Unicamp, 1992).

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    HENRY, Paul. A histria no existe?. In ORLANDI, E. (Org.). Gestos deLeitura - da Histria no Discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1994.HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve sculo XX 1914-1991. SoPaulo: Companhia das Letras, 2002a.HOBSBAWN, Eric. Tempos Interessantes: uma vida no sculo XX. So Paulo:Companhia das Letras, 2002b.NUNES, Jos Horta. Discurso e instrumentos lingsticos: dos relatos de

    viajantes aos primeiros dicionrios. Tese de doutorado. Campinas, IEL-Unicamp, 1996.ORLANDI, Eni P. Discurso e leitura. Campinas: Cortez/Editora da Unicamp,1988.ORLANDI, Eni P. As formas do silncio. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.ORLANDI Eni P. Discurso fundador: a formao do pas e a construo daidentidade nacional. Campinas: Pontes, 1993.

    ORLANDI, Eni P. (Org.). Gestos de Leitura - da Histria no Discurso.Campinas: Editora da Unicamp, 1994.ORLANDI Eni P. Interpretao: autoria, leitura e efeitos do trabalho simblico.Petrpolis: Vozes, 1996.ORLANDI, Eni P. Anlise de Discurso. Campinas: Pontes,1999.PECHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes,1990.PCHEUX, Michel. Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, E. (Org.). Gestos deLeitura - da Histria no Discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1994.