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Joseph Anton - Salman Rushdie

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Salman Rushdie

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DADOS DE COPYRIGHTSobre a obra:A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o obj etivode oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem como o simplesteste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. expressamente proibida e totalmente repudavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercialdo presente contedoSobre ns:O Le Livros e seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educao devemser acessveis e livres a toda e qualquer pessoa. Voc pode encontrar mais obras em nosso site:LeLivros.us ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link."Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro epoder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel." Para meus filhos, Zafar e Milan,suas mes, Clarissa e Elizabeth,e para todos que ajudaram. E graas a isso teve como destino dar-nos a oportunidade derepresentar uma pea em que o passado no passa de prlogoe o futuro depende apenas de ns.William Shakespeare, A tempestadeSumrioPrlogo O primeiro corvo 1. Um pacto faustiano ao contrrio2. Originais no queimam3. Ano zero4. A armadilha de querer ser amado5. Estive embaixo tanto tempo que para mim parece o alto6. Por que impossvel fotografar os pampas7. Um caminho de estrume8. Sr. Manh e sr. Tarde9. Sua iluso milenarista10. No Halcyon Hotel AgradecimentosPrlogoO primeiro corvoDepois, quando o mundo explodia a seu redor e os corvos mortferos se reuniam no trepa-trepanoptiodaescola,elesesentiuirritadoconsigomesmoporteresquecidoonomedareprterda bbcquelheavisaraquesuavidaantigatinhaacabadoequeumavidanova,maissombria,estavaparacomear.Elaligaraparaacasadele,emsualinhaprivada,semexplicarcomo tinha conseguido o nmero. Como voc se sente, perguntou, sabendo que foi condenado morte pelo aiatol Khomeini? Era uma tera-feira ensolarada em Londres, mas foi como se apergunta apagasse a luz do sol. O que ele respondeu, sem saber direito o que dizia, foi: No mesintobem.Oquepensoufoi: Estou morto.Ficoupensandoemquantosdiaslherestavamparaviver,eachouquearespostaseria,comtodaprobabilidade,umnmerodeumsalgarismo.Desligou o telefone e desceu, apressado, a escada de sua sala de trabalho, no andar de cima daestreitacasageminadaemquemorava,emIslington.Asj anelasdasalatinhamvenezianasdemadeira,e,levadoporumimpulsoabsurdo,eleasfechouetrancou-ascombarras.Depois,passou a chave na fechadura da porta de entrada.Era o Dia dos Namorados 14 de fevereiro , mas ele no estava em bons termos comamulher,aromancistaamericanaMarianneWiggins.Seisdiasantes,elalhedisseraquenoestava feliz com o casamento, que j no se sentia bem com ele, embora estivessem casadoshavia pouco mais de um ano, e tambm ele sabia que o casamento tinha sido um erro. Agora elaofitavaenquantoeleandavapelacasa,nervoso,fechandocortinas,verificandoasfechadurasdas j anelas, com o corpo galvanizado pelas notcias, como se uma corrente eltrica passasse porele, e teve de lhe explicar o que estava acontecendo. Ela reagiu bem, e comeou a falar sobre oque deveriam fazer. Usou o pronome ns. Foi um gesto de coragem.Um carro parou diante da casa, mandado pela cbs. Naquela manh, ele deveria aparecer,aovivo,noprogramadenotciasdarededetelevisoamericana,emtransmissoviasatliteapartir dos estdios em Bowater House, Knightsbridge. Tenho de ir, disse. ao vivo. No possodeixar de ir. Mais tarde, ainda de manh, seria realizadanaigrej aortodoxanaMoscowRoad,emBayswater,acerimniaemmemriadeseuamigoBruceChatwin.Menosdedoisanosantes,elecomemoraraseuquadragsimoaniversrioemHomerEnd,acasadeBruceemOxfordshire. Agora Bruce tinha morrido de aids, e a morte batia tambm sua prpria porta. Eacerimnia?,perguntousuamulher.Elenosoubeoquelheresponder.Abriuaporta,saiu,entrounocarroepartiuparaosestdios.Emboraaindanosoubessedissonaquelahora,eporisso a sada no lhe pareceu especialmente carregada de significado, ele s voltaria quela casa,onde morava havia cinco anos, trs anos depois, quando ela j no lhe pertenceria.Na sala de aula em Bodega Bay, na Califrnia, as crianas cantam uma msicatriste,semp nem cabea. Ela s penteia o cabelo uma vez ao ano, tiri-ri, tiri-l, l, l, l. Do lado de fora daescolasopraumventofrio.Umcorvodescedoaltodocuepousanotrepa-trepadoptio.Amsica das crianas umrond. Comea,masnotermina.Repete-sesemparar,semparar. Acadapassadadopente,derramavaumalgrima,tiri-ri,tiri-l,l,l,l,ei-bumbosidade,petralhapetralha, retroquo-qualidade, carvalh, carvalh, l, l, l. J so quatro corvos no trepa-trepa, e logo chega um quinto. Na sala de aula, as crianas cantam. Agora so centenas os corvosno trepa-trepa, e outros milhares enchem o cu, como uma praga do Egito. Comeou uma cano,que no tem fim.Quandooprimeirocorvopousounotrepa-trepa,pareciaindividual,especial,especfico.No era necessrio deduzir uma teoria geral, um estado de coisas mais amplo que se devesse suapresena. Mais tarde, depois que a praga comeou, foi fcil para as pessoas ver o primeiro corvocomo um prenncio. Mas, quando ele pousou no trepa-trepa, era apenas uma ave.Nosanosseguintes,elesonharcomessacena,entendendoqueahistriadeleumaespciedeprlogo:anarrativadomomentoemqueoprimeirocorvopousa.Quandoahistriacomeou,erasadele;individual,especial,especfica.Ningumsesentiapropensoatirarquaisquerconclusesdela.Dozeanosoumaissepassariamantesqueahistriacrescesseatencherocu,comoseoarcanjoGabrielestivesseempnohorizonte,comodoisaviesseesborrachandocontraarranha-cus,comoapragadepssarosassassinosnograndefilmedeAlfred Hitchcock.Nosestdiosda cbs,eleeraagrandenotciadodia.Nasaladaredaoeemvriosmonitoresj usavamapalavraqueembreveestariapenduradaemseupescoocomoumapedra de moinho. Usavam essa palavra como se fosse umsinnimodesentenademorte,eelequeriaargumentar,pedantemente,quenoeraesseosignificadodapalavra.Noentanto,dessediaemdiante,elasignificariaissoparaamaiorpartedaspessoasnomundo.Eparaeletambm.Fatwa.Informo aos muulmanos zelosos do mundo queoautordolivro Versos satnicos,quecontraoisl,oProfetaeoCoro,bemcomotodosaquelesque,conscientesdeseucontedo,envolveram-se em sua publicao, esto sentenciados morte. Peo a todos os muulmanos queos executem, onde quer que os localizem. Algum lhe entregou uma verso impressa do textoenquanto ele era levado em direo ao estdio para a entrevista. Mais uma vez, seu velho eu quiscontestar, dessa vez o verbo sentenciar. Aquilo no era uma sentena lavrada por um tribunalque ele reconhecesse, ou que tivesse alguma j urisdio sobre ele. Era o edito de um velho cruel emoribundo.Maselesabiatambmqueoshbitosdeseuantigoeunotinhammaisserventiaalguma. Ele era agora uma nova pessoa. Era a pessoa que estava no olho do furaco, no mais oSalmanqueseusamigosconheciam,maso Rushdieautorde Versossatnicos,umttulosutilmentedistorcidopelaomissodoartigo Os.Osversossatnicoseraumromance. Versossatnicoseramversosqueeramsatnicos,eeleeraoautorsatnicodessesversculos,oSatRushdy, a criatura chifruda que estava nos cartazes carregados por manifestantes pelas ruas deuma cidade distante, o enforcado de lngua vermelha para fora da boca nos cartazes toscos quecarregavam. EnforquemoSatRushdy.Comoerafcilapagaropassadodeumhomemeconstruir uma nova verso dele, uma verso esmagadora, contra a qual parecia impossvel lutar.O rei Carlos i negara a legitimidade da sentena lavrada contra ele. Isso no impediu queOliver Cromwell o mandasse decapitar.Ele no era rei. Era o autor de um livro.Olhouparaosj ornalistasqueofitavameps-seaimaginarseeraassimqueaspessoasolhavamoshomensqueeramlevadosaopatbulo,cadeiraeltricaouguilhotina.Umcorrespondente estrangeiro se aproximou para demonstrar simpatia, e o escritor perguntou a essehomemoqueelepensavasobreoqueKhomeinidissera.Atquepontodeverialevaraquiloasrio? Era apenas retrica ou alguma coisa genuinamente perigosa?Ah,nosepreocupemuito,disseoj ornalista.KhomeinisentenciaopresidentedosEstados Unidos morte toda sexta-feira de tarde.No ar, quando lhe perguntaram como reagira ameaa, ele respondeu: Eu gostaria de terescrito um livro mais crtico. Orgulhou-se, naquele dia e para sempre, de ter dito aquilo. Era averdade.Noconsideravaqueseulivrocriticassedemaisoisl,mas,comodissenatelevisoamericananaqueledia,eraprovvelqueumareligiocuj oslderesprocediamdessaformamerecesse algumas crticas.Terminada a entrevista, disseram-lhe que sua mulher tinha telefonado. Ele ligou para casa.No volte aqui, disse ela. H duzentos j ornalistas na calada, sua espera.Vou para a agncia, disse ele. Arrume uma mala e se encontre comigo l.Suaagncialiterria,aWylie,Aitken&Stone,ficavanumacasadeestuquebranco,naFernshaw Street, em Chelsea. No havia j ornalistas acampados diante dela era evidente que aimprensa mundial no imaginara que ele fosse sua agncia num dia daqueles e, quando eleentrou, todos os telefones do prdio estavam tocando, e todas as chamadas eram a respeito dele.Gillon Aitken, seu agente britnico, lanou-lhe um olhar estupefato. Falava ao telefone com KeithVaz,representanteanglo-indianodeLeicesterEastnoParlamento.Cobriuobocalesussurrou:Quer falar com essa pessoa?.Naquela conversa, Vaz disse que o acontecido era espantoso, nada menos que espantoso,eprometeuseuplenoapoio.Semanasdepois,foiumdosprincipaisoradoresnumamanifestaocontra Osversossatnicos,comapresenademaisde3milmuulmanos,edescreveu o evento como um dos grandes dias na histria do isl e da Gr-Bretanha.Ele percebeu que no podia planej ar o que fazer, que no conseguia imaginar como seriasua vida da em diante ou que planos fazer. S podia se concentrar no imediato, e o imediato erao culto fnebre em memria de Bruce Chatwin. Meu caro, voc acha que deve ir?, perguntouGillon.Elemesmotomouadeciso.Bruceforamuitoamigodele.Quesedane,disse.Vamos.Mariannechegou,comumcertoartresloucado,furiosaportersidocercadapelosfotgrafos ao sair de casa na St. Peters Street, 41. No dia seguinte, estava na primeira pgina detodos os j ornais do pas. Um dos j ornais deu nome sua expresso, em letras garrafais: o rosto domedo. No falaram muito. Nenhum dos dois. Entraram no carro deles, um Saab preto, e ele saiupeloparqueemdireoaBayswater.GillonAitkeniaj unto,comumaexpressodepreocupao, e o corpo comprido e lnguido estirado no banco de trs.SuameeairmmaisnovamoravamemKarachi.Oquelhessucederia?Airmdomeio,haviamuitoafastadadafamlia,moravaemBerkeley,Califrnia.Estariaasalvol?Airm mais velha, Sameen, sua gmea irlandesa, morava em Wembley, subrbio da zona nortedeLondres,nomuitolongedofamosoestdio.Oqueteriadeserfeitoparaproteg-los?Seufilho, Zafar, que s tinha nove anos e oito meses, estava com a me, Clarissa, na casa deles emBurmaRoad,60,quesaideGreenLanes,pertodeClissoldPark.Naquelemomento,odcimoaniversrio de Zafar parecia muito, muito distante. Papai, Zafar perguntara, por que voc noescreve livros que eu possa ler? Aquilo lhe fizera lembrar um trecho de St. Judys comet, umacanoquePaulSimonescreveracomoacalantoparaofilhopequeno. Senoconsigocantarparafazermeumeninodormir,bem,seupapaifamosopareceumbobo. Boapergunta,elerespondera. Quando eu acabar este livro em que estou trabalhando, escrevo um livro para voc.Certo? Certo. De modo que ele tinha acabado o livro, que fora publicado, e agora talvez notivessetempoparaescreveroutro. Nuncasedevequebrarumapromessafeitaaumacriana,pensou,easuacabeaamilacrescentouumadendoidiota: masamortedoautorumadesculpa vlida?Sua mente estava voltada para o tema assassinato.Cincoanosantes,eleestiveraviajandocomBruceChatwinpelocentrovermelhodaAustrlia, onde, em Alice Springs, anotara o grafite que dizia renda-se, homem branco, sua cidadeestcercada,fazendoumesforosemnomeparasubirarochaAyer,enquantoBruce,queseorgulhavadeterrecentementechegadoatoacampamento-basedoEverest,avanavasuafrenteaossaltos,comoseestivessesubindocorrendoamaissuavedasladeiraseouvindoashistrias que a gente do lugar contava sobre o chamado caso do beb levado pelo dingo. TinhasehospedadonumpulgueirochamadoInlandMotel,onde,noanoanterior,umcaminhoneirode36 anos, chamado Douglas Crabbe, a quem haviam negado servir uma bebida porque ele j estavabbado demais, insultara o pessoal do bar e, depois de ser expulso, tinha jogado seu caminho, emalta velocidade, contra o bar, matando cinco pessoas.Crabbe estava sendo julgado num tribunal em Alice Springs, e ele e Bruce foram assistir. Ocaminhoneiroestavacabisbaixo,vestidodeformaconservadora,efalavaemvozbaixa.Insistiuem que no era o tipo de pessoa capaz de fazer uma coisa daquelas e, quando perguntado por quetinha tanta certeza disso, respondeu que dirigia caminhes havia muitos anos e que cuidava delescomo se fossem seus prprios (seguiu-seaquiumapausa,eapalavranopronunciadanaquelesilnciopoderiatersidofilhos),equeparaeledestruirumcaminhoeraumatoqueiainteiramente contra sua ndole. Os jurados retesaram-se visivelmente ao ouvir isso,maserabvioqueasortedeCrabbeestavaselada.Naverdade,porm,murmurouBruce,oqueeleestdizendo a mais absoluta verdade.Amentedeumassassinoatribuamaisvaloracaminhesdoqueasereshumanos.Cincoanos depois, talvez algumas pessoas estivessem se preparando para executar um escritor por suaspalavrasblasfemas,eafouumadeterminadainterpretaodaf,eraocaminhoaqueelesdavam mais valor do que vida humana. Aquela no era a sua primeira blasfmia, ele lembrou asimesmo.SuaescaladadarochaAyerscomBrucetambmestariaproibidaagora.Arocha,devolvidapropriedadedosaborgines,quelherestituramonomeantigo,Uluru,eraterritriosagrado, e as escaladas no eram mais permitidas.Foinovoodevoltaparacasa,encerrandoaquelaviagemAustrliaem1984,queelecomeara a compreender como escreveria Os versos satnicos.O ofcio na catedral ortodoxa grega de Santa Sofia, da arquidiocese de Thyateria e da Gr-Bretanha,construdaedecoradacomesplendor110anosantes,demodoalembrarumagrandiosacatedraldaantigaBizncio,eratodocelebradonumgregosonoroemisterioso.Sualiturgia era floreada e bizantina. Bruce Chatwin bl-bl-bl, entoavam os sacerdotes, bl-bl-bl,Chatwinbl-bl-bl.Elesselevantavam,sentavam-se,aj oelhavam-se,levantavam-seesesentavamdenovo.Oarestavacarregadodocheirofortedefumaa.Eleselembroudopaialev-lo,quandoaindacriana,emBombaim,pararezarnodiadeEid-ul-Fitr.L,noIdgah,ocampo de orao, era tudo em rabe, muitas cabeas subiam e desciam, com testas batendo nopiso, pessoas de p com as palmas das mos mantidas na frente do corpo, como se segurassemum livro, alm de muita falao de palavras estranhas numa lngua que ele no conhecia. Faaoqueeufizer,disseopai.Noeramumafamliareligiosa,equasenuncaiamacerimniascomoaquela.Elenuncaaprendeuasoraesousoubeoquesignificavam.Umaoraoocasionalmedianteimitaoeumadecorebameiomastigadaeramtudooqueelesabia.Porisso,acerimniasemsentidonaigrej adaMoscowRoadlhepareciafamiliar.Marianneeeleestavam sentados ao lado de Martin Amis e sua mulher, Antonia Phillips. Estamos preocupadoscomvoc,disseMartin,abraando-o.Euestoupreocupadocomigo,elerespondeu.BlChatwinblBrucebl.OromancistaPaulTherouxestavasentadonobancoatrsdele.Achoque vamos estar aqui na semana que vem por voc, Salman, disse ele.Haviaalgunsfotgrafosdoladodefora,nacalada,quandoelechegou.Emgeral,escritoresnoatraamumbandodepaparazzi.medidaqueoofcioavanava,porm,comearamachegarj ornalistasigrej a.Umareligioincompreensvelestavaservindodecenrioparaumareportagemgeradapeloataqueincompreensivelmenteviolentodeoutrareligio. Umdospioresaspectosdoqueaconteceu,eleescreveumaistarde, foiqueoincompreensvel se tornou compreensvel, o inimaginvel tornou-se imaginvel.Oofciochegouaofimeosj ornalistasavanaramemsuadireo.Gillon,MarianneeMartintentaramcont-los.Umcamaradaabsolutamentecinza(ternocinza,cabelocinza,rostocinza,vozcinza)abriucaminhonamultido,estendeuumgravadoremsuadireoefezasperguntasbvias.Desculpe,elerespondeu.Vimaquiparaoofcioemmemriademeuamigo.Noumlugarapropriadoparaentrevistas.Osenhornoestentendendo,disseosuj eitocinza,parecendoperplexo.Eusoudo DailyTelegraph. Elesmemandaramaquiespecialmente.Gillon, preciso de sua aj uda, ele disse.Gillondebruou-senadireodoreprter,baixandodesuaestaturadescomunal,edissecom voz firme e empostada: Se manda, porra.Osenhornopodefalarcomigodessej eito,disseohomemdo Telegraph.Eufrequentei uma escola particular.Depoisdissonohouvemaiscomdia.QuandoelesaiuparaaMoscowRoad,j ornalistasenxameavam como zanges perseguindo sua rainha, fotgrafos subiam nas costas de outros paraformar pirmides cambaleantes que explodiam em flashes. Ele piscava, sem saber para onde ir,por um momento sem saber o que fazer.No parecia haver fuga possvel. No havia como caminhar at o carro, estacionado a unscemmetrosdali,semserseguidoporcmeras,microfonesehomensquetinhamidoavriostipos de escolas e que tinham sido mandados ali especialmente. Foi resgatado por seu amigo AlanYentob, da bbc, cineasta e alto executivo que ele conhecera oito anos antes, quando Alan estavafazendo um documentrio da srie Arena sobre um j ovem escritor que acabara de publicar umromancebemacolhidointitulado Os filhos da meia-noite.Alantinhaumirmogmeo,maserafrequente que se dissesse: Salman quem parece ser seu irmo gmeo. Os dois discordavamdessa opinio, mas ela persistiu. E aquele poderia no ser o melhor dos dias para que Alan fosseconfundido com seu no gmeo.Ocarroda bbcdeAlanparouemfrenteigrej a.Entre,eledisse,elogoestavamfugindodosj ornalistasvociferantes.CircularamporNottingHilldurantealgumtempo,atamultidodoladodeforadaigrej asedispersar,eentovoltaramparaondeoSaabestavaestacionado.EleentrounocarrocomMarianne,ederepenteestavamsozinhos,eosilnciopesavasobreosdois.Noligaramordiodocarro,poissabiamqueonoticirioestariacheiodedio.Aonde vamos?, ele perguntou, ainda que ambos soubessem a resposta. Marianne tinha alugadorecentementeumpequenoapartamentodesubsolonaLonsdaleSquare,emIslington,apoucadistnciadacasanaSt.PetersStreet,oficialmenteparausarcomolocaldetrabalho,mas,narealidade, por causa da tenso que vinha crescendo entre eles. O apartamento lhes daria espao etempoparaavaliarasituaoedecidiroquefazer.SeguiramparaIslingtonemsilncio.Eracomo se nada houvesse a ser dito.Marianne era uma boa escritora e uma bela mulher, mas ele vinha descobrindo coisas deque no gostava.Ao se mudar para a casa dele, ela havia deixado uma mensagem na secretria eletrnicadeumamigo,BillBuford,editordarevista Granta,dizendoqueseunmerodetelefonetinhamudado.Talvezvocreconheaonmeronovo,continuavaamensagem,easeguir,depoisdo que Bill achou que era uma pausa alarmante, Peguei o cara. Ele a pedira em casamento noperododemuitaemooqueseseguiramortedopai,emnovembrode1987,eorelacionamentodelesnopermanecerabomdurantemuitotempo.Seusamigosmaisntimos,BillBuford,GillonAitkeneseucolegaamericanoAndrewWylie,aatrizeescritoraguianensePaulineMelville,esuairmSameen,quesempreestiveramaisprximadeledoquequalqueroutrapessoa,todostinhamcomeadoaconfessarquenogostavamdela,oqueeraoqueosamigos sempre diziam quando as pessoas estavam se separando, claro, e por isso, ele pensava,era preciso dar um desconto em algumas coisas que diziam. No entanto, ele prprio a apanharaem algumas mentiras, e isso o abalara. O que ela achava que ele era? Com frequncia pareciazangada, e tinha um j eito de olhar para o nada, por cima do ombro dele, quando lhe falava, comoseestivessesedirigindoaumfantasma.Elesempresesentiraatradoporsuainteligncia,seusensodehumor,etudoissoaindaestaval,comotambmaatraofsica,asondasdeseucabelo castanho-avermelhado, seu largo sorriso americano, de lbios cheios. Mas ela se tornaramisteriosa para ele, que s vezes tinha a sensao de ter casado com uma estranha. Uma mulhercom uma mscara.Erameiodatarde,enaquelediaosproblemasparticularesdelesdoispareciamirrelevantes.Naqueledia,multidesdesfilavampelasruasdeTeercomcartazesemqueseurostoapareciacomosolhosvazados,comoumdoscadveresde Ospssaros,comasrbitassanguinolentas, enegrecidas, furadas a bicadas. Esse era o assunto do dia: seu carto do Dia dosNamorados,nadaengraado,mandadoporaqueleshomensbarbudos,poraquelasmulheresdevu e pelo velho assassino que agonizava em seu quarto, fazendo sua ltima tentativa de alcanaralgum tipo de glria sinistra, homicida. Depois de tomar o poder, o im matara muitos dos que ohaviampostoalietodosdequemelenogostava.Sindicalistas,feministas,socialistas,comunistas,homossexuais,prostitutasetambmseusex-auxiliares.Haviaem Osversossatnicos um retrato de um im como ele, um im que se tornara um monstro, devorando com aboca gigantesca sua prpria revoluo. O im de carne e osso tinha levado seu pas a uma guerraintil com o pas vizinho, e uma gerao de j ovens morrera, centenas de milhares de j ovens deseu pas, antes que o velho interrompesse a luta. Dissera que aceitar a paz com o Iraque tinha sidocomocomerveneno,masqueeleocomera.Depoisdissoosmortosclamaramcontraoimesua revoluo tornou-se impopular. Ele precisava de um meio de mobilizar os fiis, e o encontrouna forma de um livro e de seu autor. O livro era a obra do diabo, o autor era o diabo, e isso lheproporcionavaoinimigodequeeleprecisava.Esseescritoremseuapartamentodesubsolo,aconchegadomulher,dequemestavameioseparado.Esseeraodiabodequeoimmoribundo necessitava.Naquelahora,asaulasestavamacabando,eeletinhadeverZafar.LigouparaPaulineMelville e pediu-lhe que fizesse companhia a Marianne enquanto ele fazia sua visita. Pauline forasuavizinhaemHighburyHillnocomeodadcadade1980,eeraumaatrizdeolhosvivos,muitogesticuladora,calorosaecheiadehistrias.HistriassobreaGuiana,ondeumdeseusantepassados Melville tinha conhecido Evelyn Waugh, mostrando-lheolugare,provavelmente,segundo ela, virando o modelo para Mr. Todd, o velho maluco que captura Tony Last na selva eo obriga a ler Dickens em voz alta para ele, sem parar, em Umpunhadodep;sobrecomoelaresgatara o marido, Angus, da Legio Estrangeira, postando-se j unto ao porto do forte e gritandoat que o deixaram sair; e sobre a poca em que fez o papel da me de Adrian Edmondson nafamosasriede tvTheYoungOnes.Paulinefazia stand-upcomedyecriaraumpersonagemmasculino que ficou to perigoso e assustador que tive de parar de faz-lo, dizia. Ela escreveravrias de suas histrias sobre a Guiana e mostrara-as a ele. Eram boas, timas, e quando forampublicadasnoprimeirolivrodela, Shape-shifter,tinhamsidomuitobemrecebidas.Paulineerarealista,espertaeleal,eeletinhatotalconfiananela.Veioimediatamente,semreclamar,embora fosse seu aniversrio e apesar de suas reservas quanto a Marianne. Ele se sentiu aliviadopordeixarMariannenoapartamentodaLonsdaleSquareedirigirsozinhoatBurmaRoad.Obelo dia de sol, cuj o espantoso esplendor de inverno foracomoqueumarepreensosnotciasnadaagradveis,tinhachegadoaofim.Emfevereiro,Londresj estavasescurasquandoascrianas saam da aula. Quando ele chegou casa de Clarissa e Zafar, a polcia j estava l. Aest o senhor, disse um policial. Estvamos quebrando a cabea para imaginar onde o senhorteria se metido.Oqueestacontecendo,papai?Seufilhotinhanorostoumaexpressoquenuncadeveriaestarnorostodeummeninodenoveanos.Euconteiaele,disseClarissa,animadamente,quevotomarcontadevocdireitoatissoacabar,equetudovaicorrerbem. E ento ela o abraou como no o abraava havia cinco anos, desde o fim do casamentodeles. Ela fora a primeira mulher a quem amara. Ele a conhecera em 26 de dezembro de 1969,cinco dias antes do fim dos anos 1960, quando ele tinha 22 anos, e ela, 21. Clarissa Mary Luard.Tinha pernas compridas e olhos verdes, e naquele dia usava um xale hippie de l e uma faixa nocabelo ruivo, muito cacheado, e dela emanava um brilho que iluminava todos os coraes. TinhaamigosnomundodamsicapopqueachamavamdeHappily(aindaque,tambmporfelicidade, esse apelido tivesse morrido com a dcada maluca que o gerou), uma me que bebiademaiseumpaiquevoltaraparacasacomneurosedeguerra,naqualpilotaraaviesPathfinder,equesaltaradoaltodeumedifcioquandoelatinhaquinzeanos.Tinhaumbeaglechamado Bauble que urinava na cama dela.Havia nela muita coisa trancada debaixo da vivacidade. Clarissa no queria que os outrosvissem as sombras que havia nela e, quando batia a melancolia, ia para seu quarto e fechava aporta. Talvez sentisse em si a tristeza do pai e temesse que essa angstia pudesse arremess-la doaltodeumedifcio,comolevaraopaiafazer,eporissoseencerravanoquartoatatristezapassar. Tinha o nome da herona trgica de Samuel Richardson e estudara, durante certo tempo,na Harlow Tech. Clarissa da Harlow, um estranho eco de Clarissa Harlowe, outra suicida em seumundo,esteficcional;outroecoasertemidoeencobertopelofulgordeseusorriso.Suame,LaviniaLuard,tambmtinhaumapelidoembaraoso, Lavvy-Loo, e agitava atragdiafamiliarnum copo de gim e a deixava dissolver ali, para poder representar o papel da viva alegre comhomens que se aproveitavam dela. Primeiro houve um ex-oficial de um regimento dos Guards,chamado coronel Ken Sweeting, que vinha da ilha de Man para namor-la, mas nunca deixava amulher,nemtencionavafaz-lo.Maistarde,quandoelaemigrouparaaviladeMij as,naAndaluzia,seguiu-seumasriedeparasitaseuropeusdesej ososdeviversuacustaegastarmuito do dinheiro dela. Lavinia tinha se oposto demais resoluodafilhade,primeiro,morarcom um escritor indiano de cabelo comprido e, depois, casar-se com ele, um suj eito esquisito decuj afamliapoucosesabiaequenopareciatermuitodinheiro.EraamigadafamliaLeworthy, de Westerham, em Kent, e, segundo seus planos, o filho dos Leworthy, Richard, umcontadorplidoeossudo,comumacabeleirawarholescaloirssima,secasariacomsuabelafilha. Clarissa e Richard namoravam, mas ela comeara tambm a sair escondido com o escritorindiano de cabelo comprido; tinha levado dois anos para se decidir entre eles, mas, numa noite dej aneirode1972,quandoeledeuumafestadeinauguraodeseuapartamentorecm-alugadoem Cambridge Gardens, Ladbroke Grove, ela chegara de deciso tomada e a partir da ficaraminseparveis.Eramsempreasmulheresquefaziamaescolha,ecabiaaohomemsemostrargrato se tivesse a sorte de ser o escolhido.Todos os anos, por eles vividos, de desej o, amor, casamento, filho, infidelidade (sobretudodele), divrcio e amizade estavam no abrao que ela lhe deu naquela noite. O fato novo inundaraamgoaentreosdoisealevaraembora,eporbaixodamgoahaviaumacoisaantigaeprofunda que no fora destruda. Alm disso, claro, eles eram os pais daquele menino bonito e,como pais, sempre tinham mostrado unio e harmonia. Zafar nascera em j unho de 1979, bem napocaemque Osfilhosdameia-noiteestavaprestesaserconcludo.Mantenhaaspernascruzadas, ele disse a ela. Estou escrevendo o mais depressa que posso. Uma tarde, houve umfalsoalarme,eelepensou: Acrianavainascermeia-noite,masissonoaconteceu,Zafarnasceu no domingo, 17 de j unho, s 2h15 da tarde. Ele ps isso na dedicatria do romance. ParaZafar Rushdie, que, contra todas as expectativas, nasceu de tarde.Equeagoraestavacomnoveanos e meio perguntando, ansioso: O que est acontecendo?Precisamos saber, o policial dizia, quais so seus planos imediatos. Ele pensou antes deresponder.Provavelmentevouparacasa,respondeuporfim,eoenrij ecimentodoshomensfardadosconfirmousuassuspeitas.Eunorecomendariaisso,senhor.Entoelelhesfalou,comosabiadesdeocomeoqueofaria,sobreoapartamentodesubsolonaLonsdaleSquare,ondeMarianneoesperava.umlugarqueaspessoasemgeralsabemqueosenhorfrequenta? No, no . Est bem. Depois que o senhor voltar para casa, no saia de novo estanoite, se puder. Esto fazendo reunies, e o senhor ficar sabendo do resultado delas amanh, omais cedo possvel. At l, deve ficar em casa.Eleconversoucomofilho,abraadoaele,decidindo,naqueleinstante,quecontariaaomeninoomximopossvel,dandoaoqueestavaacontecendoacoloraomaispositivaquepudesse; que a forma de aj udar Zafar a lidar com o que estava acontecendo seria inform-lo detodososfatos,dar-lheumaversopaternaqueeleaceitasseenaqualconfiasse,enquantoerabombardeadocomoutrasverses,noptiodaescolaoupelateleviso.Aescolaestavasendoespetacular, disse Clarissa, mantendo fora fotgrafos e uma equipe de tv que queria filmar o filhodo homem ameaado, e as crianas tambm tinham sido timas. Sem discusso, tinham cerradofileiras em torno de Zafar e permitido que ele tivesse na escola um dia normal, ou quase normal.Quase todos os pais tinham dado apoio; uma ou duas pessoas haviam opinado que Zafar devia serafastadodaescola,poissuapresenapoderiapremperigoseusfilhos,mastinhamsidocensuradaspelodiretoreseretirado,envergonhadas.Foialentadorveremao,naqueledia,coragem, solidariedade e princpios, os melhores valores humanos impondo-se sobre a violnciaeaintolernciaoladosombriodahumanidade,exatamentenahoraemquepareciatodifcilresistirmarmontantedastrevas.Oqueforaimpensvelataquelediaestavasetornando pensvel. Mas em Hampstead, na Hall School, a resistncia j comeara.Vouvervocamanh,papai?Elefezquenocomacabea.Masvoutelefonar,disse.Vouligarparavoctodososdias,ssete.Sevocnoforestaraqui,pediuaClarissa,por favor, deixe uma mensagem na secretria eletrnica e diga a hora em que devo ligar. Eraocomeode1989.Ostermos pc,laptop,celular,internet,wi-fi, sms,torpedo,e-maileramdesconhecidosounovssimos.Elenotinhacomputadornemcelular.Mastinhaumacasa,mesmoquenopudessepassaranoitenela,enacasahaviaumasecretriaeletrnica,eelepodiatelefonare interrogaroaparelho,umnovousoparaumapalavravelha,epegar,no,recuperar suas mensagens. Sete horas, repetiu. Toda noite, certo? Zafar balanou a cabea,srio. Est certo, papai.Elevoltouparacasadecarrosozinho,etodasasnotciasnordioeramruins.DoisdiasanteshouveraumdistrbioRushdiediantedoCentroCulturaldosEstadosUnidosemIslamabad,noPaquisto.(NoficouclaroporqueosEstadosUnidosestavamsendoconsiderados responsveis por Os versos satnicos.) A polcia disparara contra a multido e haviacinco mortos e sessenta feridos. Os manifestantes carregavam cartazes que diziam rushdie,vocest morto.Agoraoeditoiranianomultiplicaraemmuitooperigo.OaiatolKhomeininoeraapenas um clrigo poderoso. Era um chefe de Estado que ordenava a execuo de um cidadode outro Estado, sobre quem ele no tinha j urisdio. E ele contava com assassinos a seu servio,que j tinham sido usados antes contra inimigos da revoluo iraniana, inclusive inimigos queviviam fora do Ir. Havia outra palavra nova que ele tinha de aprender. Ali estava ela, no rdio:extraterritorialidade. O conceito era tambm chamado de terrorismo de Estado. Voltaire disseraumavezqueumescritorfariabememmorarpertodeumafronteirainternacional,poisseprovocasse a clera de homens poderosos poderia atravessar a fronteira e ficar em segurana. OprprioVoltairedeixaraaFranaeserefugiaranaInglaterradepoisdeseindisporcomumaristocrata, o Chevalier de Rohan, permanecendo no exlio durante sete anos. No entanto, morarem outro pas no era mais garantia de segurana. Agora havia a ao extraterritorial. Em outraspalavras, os perseguidores encontravam o perseguido onde ele estivesse.AnoitenaLonsdaleSquareestavafria,escuraeclara.Haviadoispoliciaisnapraa.Quandoelesaiudocarro,elesfingiramnonot-lo.Faziamumarondacurta,vigiandoarua,perto do apartamento, caminhando cem metros em cada direo, e ele ouvia seus passos mesmodedentrodoquarto.Elesedeuconta,nosilnciomarcadopelaspassadasdospoliciais,dequeno compreendia mais sua vida ou o que ela poderia se tornar, e, pela segunda vez naquele dia,pensouquetalveznorestassemaismuitavidaparacompreender.Paulinevoltouparacasa,eMariannedeitou-secedo.Elefoiparaacama,aoladodamulher.Elasevirouparaeleeseabraaram, rgidos, como o casal infeliz que eram. Depois, separados, cada um deitado com seusprprios pensamentos, no conseguiram dormir.Passos.Inverno.Umaasanegraagitando-senumtrepa-trepa. Informoaosmuulmanoszelosos do mundo, tiri-ri, tiri-l, l, l, l. Que os executem, onde quer que os localizem. Tiri-ri, tiri-r, ei-bumbosidade, petralhapetralha, retroquo-qualidade, carvalh, carvalh, l, l, l.1. Um pacto faustiano ao contrrioQuando ele era pequeno, na hora de dormir seu pai lhe contava as histrias maravilhosasdoOriente,contava-aserecontava,refazia-asereinventavasuamaneiraashistriasdeXerazade, de As mil e uma noites, histrias que, narradas por ela para evitar a morte, provavam opoder que tm as histrias para civilizar e derrotar at o mais homicida dos tiranos; as fbulas doPanchatantra; os contos fantsticos que escoavam, como uma cachoeira, do Kanthasaritsagara,oOceanodascorrentesdehistrias,oimensolagodehistriascriadonaCaxemira,ondeseusantepassadostinhamnascido;eoscontosdeherispoderososreunidosno HamzanamaenasAventurasdeHatimTai (esseeratambmumfilme,emuitosdeseusembelezamentosaooriginaleramacrescentadossnarraesnahoradedormir,aindamaisampliados).Crescerimerso nessas narrativas ensinava duas lies inesquecveis: primeiro, que as histrias no eramverdadeiras(noexistiamgniosdeverdadeemgarrafas,tapetesvoadoresoulmpadasmaravilhosas), mas, por no serem verdadeiras, elas faziam com que ele sentisse e conhecesseverdades que a verdade no era capaz de lhe dizer; segundo, que todas elas lhe pertenciam, tantoquanto pertenciam a seu pai, Anis, e a todo mundo tambm, todas eram dele, como eram de seupai,ashistriasalegreseastristes,assagradaseasprofanas,eramdele,paraalterar,renovar,abandonarepegardenovo,comoequandolheaprouvesse;eramdelepararirdelas,paraexultar, para viver nelas, com elas e por meio delas, para infundir-lhes vida por am-las, e paraser,porsuavez,vivificadoporelas.Ohomemeraoanimalcontadordehistrias,anicacriatura no mundo que criava histrias para entender que espcie de criatura era. A histria eraseu direito nato, e ningum podia roub-lo.Suame,Negin,tambmlheserviahistrias.NeginRushdienasceracomonomedeZohraButt.AosecasarcomAnis,mudaranososobrenomecomotambmoprenome,reinventando-separaele,deixandoatrsaZohraemqueelenoqueriapensar,queestiveraapaixonadaporoutrohomem.SenofundodocoraoelaeraZohraouNegin,ofilhonuncasoube,poiselanuncalhefalavadohomemquedeixaraparatrs,preferindo,emvezdisso,contar os segredos de todo mundo, menos o dela mesma. Era uma fofoqueira de marca maior, e,sentado na cama dela, massageando-lhe os ps do j eito como ela gostava, ele, seu primognito enicovaro,absorviaosmexericosdacidade,deliciososesvezeslascivos,queelatrazianacabea,asgigantescaseentrelaadasflorestasdervoresgenealgicassussurradasqueelalevavaconsigo,carregadasdesuculentosfrutosproibidosdeescndalo.Etambmessessegredos,elepassouasentir,pertenciamaele,pois,assimqueumsegredoeracontado,nopertenciamaisaela,queocontara,esimaele,queoouvira.Sealgumnoquisessequeumsegredo fosse conhecido, s havia uma regra a seguir: No o contasse a ningum. Tambm essaregra lhe seria til mais tarde. Nesse mais tarde, quando ele se tornou escritor, sua me lhe disse:Vouparardelhecontaressascoisas,porquevocascontaemseuslivroseeuquearranj oencrenca.Issoeraverdade,etalvezelafizessebememparardecontar,masfofocareraseuvcio, e ela no conseguia parar de contar coisas, do mesmo modo que o marido, o pai dele, noconseguia parar de beber.Villa Windsor, Warden Road, Bombaim-26. A casa ficava numa colina, com vista para omar e para a cidade, que corria entre a colina e o mar. Seu pai era mesmo rico, embora passassea vida perdendo todo o seu dinheiro e tivesse morrido quebrado, sem ter como pagar as dvidas,comumapilhadecdulasderupiasnagavetasuperioresquerdadesuaescrivaninha,todoodinheiro que deixara no mundo. Anis Ahmed Rushdie (Bacharel Cantab., Advogado, anunciavaa placa de lato aparafusada na parede, j unto da porta de entrada da Villa Windsor), filho nicodeummagnatadostecidos,herdouumafortuna,gastou-a,perdeu-aeentomorreu,oquepoderiaserahistriadeumavidafeliz,masnoera.Osfilhossabiamcertascoisasaseurespeito:quedemanhmostrava-sealegreatfazerabarba,mas,depoisqueaPhilishavecompletavaseutrabalho,elesetornavairascvel,eascrianasprocuravamnoficaremseucaminho;que,quandoeleoslevavapraianosfinsdesemana,iaanimadoeengraadonocaminho de ida, mas na volta estava sempre furioso; que, quando j ogava golfe com a me delesnoWillingdonClub,elatinhadeterocuidadodeperder,emboraj ogassemelhordoqueele,porquenovaliaapenaganhar;eque,quandoestavabbado,contraaorostoemesgaresestranhosehorrorosos,coisaqueosassustavaterrivelmente,masquenenhumestranhoj amaispresenciava, de modo que ningum entendia quando diziam que o pai fazia caretas. Entretanto,quandoeleserampequenoshaviaashistriasedepoisosono,eouviam-sevozesalteradasemoutroquarto,amechorando,nohavianadaquepudessemfazer.Cobriamacabeacomolenol e sonhavam.Anis levou o filho de treze anos Inglaterra em j aneiro de 1961, e durante mais ou menosumasemana,antesqueelecomeasseocursonaRugbySchool,dividiramumquartonoCumberlandHotel,pertodoArcodeMrmore,emLondres.Dedia,saamparacompraromaterialeasroupasexigidaspelaescola,comopaletsdetweedecalascinzentasdeflanela,camisasVanHeusencomcolarinhossemidurosseparados,queexigiamousodebotesdecolarinho que machucavam o pescoo do menino e dificultavam sua respirao. Tomavam milk-shake de chocolate na Lyons Corner House, na Coventry Street,foramaocineOdeonverumacomdia sobre moas sapecas de um internato feminino, e ele desej ou que houvesse garotas emsua escola. Ao anoitecer, o pai comprou um frango assado no Katdomah da Edgware Road e fezcom que ele o levasse para o apartamento do hotel, embrulhado na capa de chuva nova, de sarj aazul.noite,Anisembriagou-se,edemadrugadaps-seasacudirofilho,gritando-lhenumpalavreadotochuloqueomenino,queacordaraapavorado,espantou-secomofatodeopaisimplesmenteconhecertaistermos.DepoisforamRugbySchool,compraramumapoltronavermelha e se despediram. Anis tirou uma fotografia do filhodiantedointernatocomseubonde listras azuis e brancas e sua capa que cheirava a frango, e quem visse a tristeza nos olhos dorapaz poderia crer que ele estivesse triste por estar matriculado numa escola to longe de casa. Averdade, porm, era que o filho no via a hora de o pai ir embora, para comear a esquecer asnoitesdelinguagemobscenaegratuita,deolhosvermelhosdefria.Queriapratristezanopassadoecomearseufuturo,edepoisdissotalvezfosseinevitvelqueeleprocurasselevaravidaomaislongepossveldopai,interpondooceanosentreelesdoisedeixando-osassim.Quando se formou pela Universidade de Cambridge e disse ao pai que pretendia ser escritor, umgemido de dor irrompeu, involuntariamente, da boca de Anis. O que vou dizer a meus amigos?,disse ele.Noentanto,dezenoveanosdepois,quandoofilhofezquarenta,AnisRushdieenviou-lheuma carta, escrita de prprio punho, que se tornou a mais preciosa comunicao que o escritor j havia recebido ou viria a receber. Isso se deu apenas cinco meses antes da morte de Anis, aos 77anos, de um mieloma mltiplo, de progresso galopante um cncer da medula ssea. Naquelacarta, Anis deixava patente com quanto cuidado e sagacidade lera e compreendera os livros dofilho, a avidez com que procurara ler outros, a profundidade com que cultivava o amor paternoque passara metade da vida sem expressar. Viveu o suficiente para alegrar-se com o sucesso deOsfilhosdameia-noitee Vergonha,mas,quandofoipublicadoolivroquetinhaamaiordvidapara com ele, j no estava presente para l-lo. Talvez isso tenha sido bom, porque tambm noviu o furor que se seguiu; entretanto, uma das poucas coisas de que seu filho tinha a mais absolutacertezaeraquenabatalhaprovocadapor Osversossatnicoseleteriacontadocomoapoioirrestritoeinflexveldopai.Naverdade,semasideiaseoexemplodopaiainspir-lo,aqueleromance nunca teria sido escrito. Eles ferraram com voc, sua me e seu pai? No, no foi nadadisso.Bem,talveztenhamfeitoisso,mastambmpermitiramqueelesetornasseapessoa,eoescritor, que estava destinado a ser.Oprimeiropresentequereceberadopai,umpresentesemelhanteaumamensagemnumacpsuladotempo,queelenocompreendeuatviraradulto,foionomedefamlia.RushdiefoiumainvenodeAnis.Onomedopai deleforabemimponente,Khwaj aMuhammadDinKhaliqiDehlavi,umbelonomedaDelhiAntigaquecaacomoumaluvanaquelecavalheirodavelhaguardaquenosfitavafixamentedanicafotografiadelequesobrevivera,aqueleindustrialbem-sucedidoeensastanashorasvagasquemoravanum havelicaindo aos pedaos no famoso e antigo mulhalla, ou bairro, de Ballimaran, um labirinto de vielassinuosasnareadomercadodeChandniChowk,ondeviveraGhalib,ograndepoetadelnguaprsieurdu.MuhammadDinKhaliqimorreuj ovem,deixandoaofilhoumafortuna(queeledilapidaria)eumnomepesadodemaisparasecarregarnomundomoderno.Anisadotouumnovonome,Rushdie,devidosuaadmiraoporIbnRushd,conhecidonoOcidentecomoAverris, o filsofo rabe-espanhol de Crdoba, do sculoxii, que veio a tornar-se cdi, ou j uiz,emSevilha,tradutoreaclamadocomentaristadasobrasdeAristteles.OfilhodeAnisusouonome durante duas dcadas antes de compreender que o pai, um verdadeiro letrado do isl, aindaque inteiramente destitudo de f religiosa, o escolhera por respeitar Ibn Rushd, que assumira, emsuapoca,avanguardadacrticaracionalistaaoliteralismoislmico.Eoutrosvinteanostranscorreramantesqueabatalhacomrelaoa Osversossatnicosproduzisseumeco,nosculo xx, daquela crtica de oitocentos anos.Aomenos,elepensouquandoatempestaderibombousobresuacabea,vouentrarnessabatalhacomonomecerto.Seupailhedera,dotmulo,abandeirasobaqualelesedispunha a lutar, a bandeira de Ibn Rushd, que exprimia o intelecto, a argumentao, a anlise e oprogresso,querepresentavaaliberdadedafilosofiaedosaberemrelaoaosgrilhesdateologia,quesimbolizavaarazohumanacontraafcega,asubmisso,aresignao,aparalisia. Ningum j amais quis ir para a guerra, mas, se a guerra surgisse na vida de uma pessoa,queaomenosfosseaguerracerta,pelascoisasmaisimportantesnomundo,e,sevocfosseparticipardela,erabomquesechamasseRushdieesepostasseondeseupaiopusera:natradio de Averris, o grande aristotlico, Abul Walid Muhammad ibn Ahmad ibn Rushd.Eles tinham a mesma voz, seu pai e ele. Quando ele atendia o telefone em casa, os amigosdeAniscomeavamalhefalarcomoseelefosseopai,eeletinhadedet-losantesquedissessemalgoembaraoso.Elestambmeramparecidosfisicamente,equando,duranteostrechos mais tranquilos da acidentada viagem deles como pai e filho, sentavam-se numa varandanuma noite quente, com o perfume de buganvlias nas narinas, e discutiam calorosamente sobreomundo,ambossabiamque,emboradiscordassemquantoamuitospontos,tinhamamesmamentalidade. E o que mais tinham em comum, acima de tudo, era a descrena.Anis era ateu uma declarao ainda chocante nos Estados Unidos, nada excepcional naEuropa e incompreensvel em grande parte do resto do mundo, onde o conceito de no crereradifcilatdeformular.Noentanto,eleeraisso,umateuquepensavamuitoemDeus.Onascimento do isl o fascinava, por ser a nica das grandes religies do mundo surgida no mbitodahistria,cuj oprofetanoeraumalendadescritaeglorificadaporevangelistasqueescreveramcemanosoumaisdepoisdavidaedamortedohomemreal,ouumpratorequentadoparaumfcilconsumoglobalpelobrilhanteapstoloquefoisoPaulo,esimumhomemcuj avidaestavabemregistrada,cuj ascircunstnciaseconmicasesociaiseramconhecidas,umhomemqueviveunumapocadeprofundamudanasocial,umrfoqueaocrescertornou-seumcomerciantebem-sucedidocomtendnciasmsticasequeviu,certodia,nomonteHira,pertodeMeca,oarcanj oGabrielempnohorizonte,enchendoocueinstruindo-oarecitar,eassim,lentamente,acriarolivroconhecidocomoaRecitao: al-Quran.Issopassoudopaiparaofilho:acertezadequeahistriadonascimentodoislerafascinante por ser um evento dentro da histria, e de que, como tal, era obviamente influenciadopelos acontecimentos, pelas presses e pelas ideias da poca de sua criao; de que historicizar ahistria,tentarcompreendercomoessasforasmoldaramumagrandeideia,eraanicaabordagem possvel do tema; e de que era possvel aceitar Maom como um mstico genuno tanto quanto se podia aceitar que Joana dArc realmente escutara as vozes ou que as revelaesde so Joo Evangelista fossem as experincias reais daquela alma atormentada sem ter deaceitar tambm que, se algum estivesse ao lado do Profeta do isl no monte Hira, naquele dia,tambmteriavistooarcanj o.Arevelaodeveriaserentendidacomoumeventointerior,subj etivo, e no como uma realidade obj etiva, e um texto revelado deveria ser analisado comoqualquer outro texto, com o emprego de todos os instrumentos do crtico literrios, histricos,psicolgicos,lngusticosesociolgicos.Emsuma,otextodeveriaservistocomoumartefatohumano e, portanto, como todos os artefatos, suj eito falibilidade e imperfeio humana. Ficoufamosa a definio que o crtico americano Randall Jarrell deu ao romance: Um texto literriolongo que tem em si algo de errado. Anis Rushdie j ulgava saber o que havia de errado no Coro:ele se tornara, aqui e ali, bagunado.De acordo com a tradio, quando Maom descia da montanha, comeava a recitar eleprpriotalvezfosseanalfabetoeumdeseuscompanheiros,omaisprximo,escreviaoqueele dizia em qualquer coisa que estivesse mo (pergaminho, pedra, couro, folhas e, s vezes, aoqueconsta,atossos).Essaspassagensforamguardadasemsuacasaatdepoisdesuamorte,quandoosCompanheirossereuniramparafixarasequnciacorretadarevelao;eessainiciativanosdeuoatualtextocannicodoCoro.Paraqueessetextofosseperfeito,oleitortinhadeacreditar:(a)queoarcanj o,aotransmitiraPalavradeDeus,ofizerasemlapsosoquepodeserumaideiaaceitvel,umavezqueosarcanj ossotidoscomoimunesaerros;(b)que o Profeta, ou o Mensageiro, como Maom chamava a si mesmo, lembrava-se das palavrasdo arcanj o com total exatido; (c) que as apressadas transcries dos Companheiros, registradasaolongode23anos,eramigualmenteprovadeerros;e,finalmente,(d)que,quandosereuniram para dispor o texto em sua forma final, a memria coletiva deles da sequncia corretatambm era perfeita.Anis Rushdie no se dispunha a contestar as proposies (a), (b) e (c). No entanto, era maisdifcil para ele engolir a proposio (d), porque, como qualquerpessoaquelesseoCoropodiafacilmenteperceber,diversassuras,oucaptulos,apresentavamdescontinuidadesradicais,mudandodeassuntosemaviso,eesseassuntopostodeladosvezesressurgia,semanncioprvio,numasuraposteriorque,ata,tratavadeumtemainteiramentediferente.DurantemuitotempoAnisalimentouodesej odedesenredaressasdescontinuidadese,assim,chegaraum texto que fosse mais claro e mais fcil de ler. importante dizer que isso no era um planosecreto ou furtivo; ele o discutia abertamente com amigos no j antar. No havia ideia alguma deque o empreendimento pudesse trazer riscos para o revisor, nenhum frisson de perigo. Talvez ostemposfossemdiferentes,etaisideiaspudessemserdebatidassemtemorderepreslias;ouosamigos fossem dignos de confiana; ou Anis fosse um ingnuo inocente. Mas foi nesse clima depesquisafrancaqueelecriaraosfilhos.Nadaestavaalmdoslimites.Nohaviatabus.Tudo,mesmo as escrituras sagradas, podia ser investigado e, se possvel, melhorado.Elenuncafezoquepretendia.Quandomorreu,noseencontroutextoalgumentreseuspapis.Olcoolefracassoscomerciaisdominaramseusltimosanos,eeletinhapoucotempoou inclinao para a trabalheira pesada dos estudos cornicos profundos. Talvez aquilo tenha sidosempre um sonho vo ou uma fanfarronada vazia, alimentada a usque. Mas deixou uma marcanofilho.EssefoiosegundograndepresentedeAnisaosfilhos:umceticismoaparentementeintrpido,acompanhadodeumdescompromissoquasetotalcomareligio.Entretanto,haviauma certa atitude de fachada. A carne do porco no era consumida pela famlia Rushdie, nemse via em sua mesa de j antar os igualmente proscritos comedores de restos da terra e do mar;naquelamesanoseserviacurrydecamaresdeGoa.HaviaasvisitasmuitoespaadasaoIdgah para o sobe-e-desce ritual das oraes. Havia, uma ou duas vezes por ano, j ej um durante operodo que os muulmanos da ndia, que falam o urdu, e no o rabe, chamavam de Ramzn, eno de Ramad. E certa vez, por pouco tempo, houve um maulvi, um letrado religioso, chamadoporNeginparaensinaraofilhoesfilhas,todospagos,osrudimentosdaf.Mas,quandoosfilhos pagos revoltaram-se contra o maulvi, um ssia baixote de Ho Chi Minh, e o apoquentaramcomtantaimpiedadequeelefoisequeixaraospais,AniseNeginapenasrirametomaramopartido dos filhos. O maulvi foi-se embora de maus modos, para nunca mais voltar, imprecandocontraosdescrentes,edepoisdissocessaramastentativasdeinstruoreligiosa.Ospagoscresceram meio paganizados e, pelo menos na Villa Windsor, isso no era problema.Depoisqueelesedespediudopai,usandoobondelistrasazuisebrancasdaBradleyHouseeacapadesarj a,emergulhouemsuavidainglesa,opecadoda estrangeiricefoiaprimeira coisa que ficou clara para ele. At aquele dia, ele nunca pensara em si mesmo como oOutroparaalgum.DepoisdaRugbySchool,j amaisesqueceualioqueaprendeuali:quesemprehaveriapessoasquesimplesmentenogostavamdevoc,paraquemvoceratoextico quanto homenzinhos verdes ou criaturas viscosas do espao sideral, e no adiantava tentarfazer com que mudassem de ideia. Alienao: essa foi uma lio que ele depois reaprendeu emcircunstncias mais dramticas.Numinternatoingls,nocomeodadcadade1960,elelogodescobriu,umalunopodiacometertrserrosgraves,mas,secometesseapenasdoisdostrs,poderiaserperdoado.Esseserros eram: ser estrangeiro; ser esperto; ser fraco em esportes. Na Rugby, os garotos estrangeiroseespertosquesedavambemerambonsj ogadoresdecrqueteou,nocasodeumcontemporneo seu, o paquistans Zia Mahmood, era to bom com um baralho na mo que virouumdosmelhoresj ogadoresdebridgedomundo.Osmeninosquenolevavamj eitoparaesportesdeviamtercuidadoparanoserespertosdemaise,sepossvel,noserdemasiadoestrangeiros, que era o pior dos trs erros.Ele cometia todos os trs. Era estrangeiro, esperto e uma negao no esporte. E por isso osanos que passou l foram, na maior parte, infelizes, embora fosse bem nos estudos e tivesse sadodaRugbycomasensaodeterrecebidoumaexcelenteeducaocomaquelalembranareconfortante de timos professores, que, se tivermos sorte, podemos levar conosco para o restodavida.HaviaP.G.Lewis,chamado,comoerainevitvel,dePig,quetantoomotivounoamor pela lngua francesa que, em certo perodo, ele passou do grupo dos ltimos colocados paraoprimeirolugarnaturma.Ehaviadoisprofessoresdehistria,J.B.Hope-Simpson,tambmconhecidocomoHopeStimulus,eJ.W.GutHele,graasacuj ahbilorientaoeleconseguiuganharumapequenabolsaparaestudarhistrianafaculdadedeseupai,oKingsCollege, em Cambridge, onde conheceu E. M. Forster e descobriu o sexo, embora no ao mesmotempo. (Coube a Hope Stimulus apresent-lo a O senhor dos anis,deTolkien,obraquepodiano ser muito valiosa em termos acadmicos, mas que penetrou em sua conscincia como umadoena, uma infeco que ele nunca conseguiu curar.) Seu velho professor de ingls, GeoffreyHelliwell,aparecerianatelevisobritnicanodiaseguinteaoda fatwa,balanandoacabeapesarosamenteeperguntando,emtonsmelfluos,vagos,vazios:Quempoderiaimaginarqueum menino to bonzinho e quieto iria se meter numa encrenca to grande?.NingumoforaraairparauminternatonaInglaterra.Neginforacontraaideiademandarseunicofilhohomemparatolonge,almdeoceanosecontinentes.Anistinhalheoferecidoaoportunidadeeoincentivaraafazeroexamedeadmisso,mas,mesmodepoisdeele ser aprovado com certa distino e conquistar a vaga na Rugby, a deciso final de ir ou nofora inteiramente sua. Mais tarde ele se espantaria com sua prpria escolha feita aos treze anos, amenina dos olhos de seus pais, um garoto com razes em sua cidade, feliz com seus amigos, queia bem na escola (apesar de uma certa dificuldade com a lngua marata). Por que aquele meninodecidiradeixartudoissoparatrseviaj armetadedomundo,rumoaodesconhecido,longedetodos que o amavam e de tudo que ele conhecia? Teria sido influncia da literatura (pois ele era,decerto, um rato de biblioteca)? Nesse caso, os culpados talvez tivessem sido seus amados JeeveseBertie,ou,provavelmente,ocondedeEmsworthesuarobustaporca,aimperatrizdeBlandings.Ou,quemsabe,noseriamasquestionveisatraesdomundodeAgathaChristiequeohaviamconvencido,emboramissMaplemorassenacidadezinhamaisassassinadaInglaterra,aletalSt.MaryMead?Haviaaindaasrie Swallowsandamazons[Andorinhaeamazonas], de Arthur Ransome, que falava de crianas fazendo bobagens com barcos em LakeDistrict,easterrveistraquinicesliterrias,muito,muitopiores,deBillyBunter,oCoruj adaClasse Intermediria, o gorducho da ridcula Grayfriars School, de Frank Richards, onde, entreoscolegasdeclassedeBunter,haviapelomenosumindiano,HurreeJamsetRamSingh,onababotostadodeBhanipur,quefalavauminglsesquisito,pomposo,sintaticamentecontorcido(acontorcioneidade,comoonababotostadopoderiaterdito,erafantstica).Teria sido, em outras palavras, uma deciso infantil aventurar-se numa Inglaterra imaginria ques existia em livros? Ou seria, em vez disso, uma indicao de que, sob a superfcie do meninoto bonzinho e quieto, ocultava-se um ser mais estranho, um suj eito de ndole aventureira foradocomum,cominiciativasuficienteparadarumsaltonoescuroexatamente porqueeraumsaltonodesconhecidoumj ovemqueintuaacapacidadedeseufuturoeuadultodesobreviver,eatprosperar,emqualquerlugardomundoaondesuasperambulaespudessemlev-lo,equeeracapazde,comtodafacilidade,atumpoucodecrueldade,entregar-seaosonho de sumir, distanciando-se do lar, deixando para trs, sem muito remorso, a me e asirms desoladas? Talvez um pouco de cada coisa. Sej a como for, ele deu o salto, e os caminhosse bifurcaram a seus ps. Ele seguiu pela vereda oeste e deixou de ser quem poderia ter sido setivesse ficado em casa.Apedracor-de-rosaengastadanoMurodoDoutorcuj onomehomenageiaolendriodiretor dr. Arnold , fronteiro aos campos de j ogos do Close, tinha uma inscrio cuj o obj etivoeraimortalizarumatoderevolucionriaiconoclastia.EmcomemoraoaofeitodeWilliamWebb Ellis, dizia, que, com refinado desrespeito pelas regras do futebol tal como praticado emsuapoca,pelaprimeiravezpegouabolanasmosecorreucomela,criandoassimacaracterstica distintiva do j ogo de rugby. Mas a histria de Webb Ellis era apcrifa, e a escola,tudomenosiconoclstica.AliestudavamosfilhosdecorretoresdaBolsaedeadvogados,eorefinado desrespeito pelas regras no fazia parte do currculo. Enfiar as duas mos nos bolsosera contra as regras. O mesmo se diga quanto acorrernoscorredores.Noentanto,o fagging servir como criado no remunerado de um aluno mais velho e castigos fsicos ainda erampermitidos.EssescastigospodiamserministradospelochefededisciplinaoumesmoporumalunonomeadoChefedaCasa.Noprimeiroperododelenaescola,oChefedaCasaeraumcerto R. A. C. Williamson, que mantinha a bengala pendurada, plena vista, sobre a porta de seugabinete. Nela havia incises, uma para cada surra que Williamson tinha dado.Ele nunca foi surrado. Era um menino bonzinho, quieto. Aprendeu as regras e cumpria-as escrupulosamente. Aprendeu a gria da escola: dics eram as oraes noturnas nos dormitrios(dolatim dicere,falar); toposeramosbanheiros(dapalavragregaquesignifica lugar);eumtermo mais rude, oiks, designava os moradores da cidade, conhecida como centro de fabricaoe cimento. Embora os Trs Erros j amais fossem perdoados, ele fazia o mximo possvel para seaj ustarescola.Nosextoano,ganhouaMedalhadaRainhacomumadissertaosobreoministrodoExteriordeNapoleo,ocoxo,cnico,amoralelibertinoTalleyrand,aquemdefendeucomvigor.Tornou-sesecretriodasociedadededebatesdaescolaedefendeucomeloqunciao fagging,abolidonomuitodepoisqueeledeixouaescola.Vinhadeumafamliaindiana conservadora, mas no era em nenhum sentido um radical. O racismo, porm, foi umacoisa que ele rapidamente compreendeu. Ao voltar para sua salinha de estudo, mais de uma vezencontrouumtrabalhoqueescreverapicadoempedacinhos,espalhadosnoassentodesuapoltronavermelha.Certavez,algumescreveuemsuaparede negros,voltemparacasa.Elerilhou os dentes, engoliu o insulto e fez seu trabalho. S contou aos pais como era a escola depoisdedeix-la(e,quandolhesfalou,ficaramhorrorizadosporeleterguardadotantadorparasimesmo).Suamesofriacomsuaausncia,opaipagavaumafortunaparamant-lol,enoseria certo queixar-se. Por isso, nas cartas para casa, ele criou suas primeiras fices, sobre umaidlica vida escolar de sol e crquete. Na verdade, era mau j ogador de crquete, e no inverno faziaumfriohorrvelnaRugby,maisaindaparaumj ovemdostrpicos,quenuncadormiracomcobertorespesadosetinhadificuldadeparaconciliarosonodebaixodetantopeso.Mas,seosafastasse, tiritava. Tinha de se acostumar tambm com esse peso,eseacostumou.noite,nosdormitrios, depois do apagar das luzes, as camas metlicas comeavam a chacoalhar quando osmeninosaliviavamseusimpulsosadolescentes,easbatidasdascamascontraostubosdecalefao, que corriam j unto das paredes, enchiam os grandes cmodos escuros com a msicanoturna do desej o reprimido. Nessa rea, como em tudo o mais, ele se esforava por ser comoosoutroseparticipar.Naverdade,elenoera,pornatureza,rebelde.Naquelesprimeirostempos, preferia os Rolling Stones aos Beatles e, depois que um de seus colegas mais amistosos,um garoto srio, de rosto angelical, o fez sentar-se e escutar The freewheelin Bob Dylan,elesetornou um admirador ardoroso de Dylan; mas era, no fundo, um conformista.Entretanto,praticamentenomomentoemquepisounaRugbyeleserebelou.AescolafaziaquestodequetodososalunosseinscrevessemnaCombinedCadetForce,a ccf,e,nastardes de quarta-feira, com uniformes militares cqui, praticassem exerccios militares na lama.Elenoeraotipodegarotoqueachavaquetalcoisapudesseserdivertidanaverdade,viaaquilo como uma espcie de tortura e na primeirasemanadesuacarreiraescolarprocurouseu chefe de disciplina, o dr. George Dazeley, um suj eito amvel com traos de cientista louco,com um sorriso resplandecente mas sem alegria, para lhe explicar que no queria participar daccf. O dr. Dazeley empertigou-se, faiscou e observou, num tom meio glido, que os alunos notinham o direito de optar por no participar. De repente, tomado de desusada obstinao, o garotodeBombaimretesou-se.Senhor,disse,ageraodemeuspaistravourecentementeumaguerra de libertao contra o Imprio Britnico, e por isso no posso concordar, de modo algum,emfazerpartedasforasarmadasdoimprio.Essainesperadaexplosodeemoops-colonialimpressionouodr.Dazeley,queacontragostocedeuedisse:Ah,muitobem,nessecaso melhor voc ficar em seu estdio e estudar. Quando o j ovem obj etor de conscincia saadesuasala,Dazeleyapontouparaumquadronaparede.Esseomaj orWilliamHodson,disse. Hodson de Hodsons Horse. Foi um rapaz da Bradley. William Hodson tinha sido o oficialinglsdecavalariaque,depoisdarepressodoLevanteIndianode1857(naRugby,oepisdioerachamadodeMotimIndiano),capturouoltimoimperadormogol,opoetaBahadurXZafar, e assassinou seus trs filhos, despindo-os, matando-os a tiros, despoj ando-os de suas j oias eatirando seus corpos no cho, j unto a um dos portes de Delhi, que a partir de ento passou a serchamado de Khooni Darvaza, a porta de sangue. O fato de esse Hodson ter residido na BradleyHousefezcomqueoj ovemrebeldeindianoficasseaindamaisinfladodeorgulhoporterserecusadoafazerpartedoExrcitoemqueserviraocarrascodosprncipesmogis.Odr.Dazeley acrescentou, vagamente, e talvez incorretamente, que, segundo acreditava, Hodson foraumdosmodelosdopersonagemFlashman,ovalentodaescolanoromance TomCrownsschooldays,deThomasHughes,ambientadonaRugby.HaviaumaesttuadeHughesnogramado diante da biblioteca da escola, mas ali na Bradley House o veterano homenageado eraa suposta verso original, na vida real, do mais famoso valento da literatura inglesa. Isso pareciabem cabvel.Asliesqueseaprendemnaescolanemsempresoaquelasqueaescolaj ulgaestarensinando.Duranteosquatroanosseguintes,elepassouastardesdequarta-feiralendoromancesdefico cientfica de sobrecapa amarela, que pegava na biblioteca da cidade, comendo sanduchesde salada de ovos e batatas fritas, bebendo Coca-Cola e escutando o programa Two-WayFamilyFavoritesnoradinhotransistor.Tornou-seumespecialistanachamadaeradeourodaficocientfica, devorando obras-primas como Eu, rob, de Isaac Asimov, que expe as Trs Leis daRobtica; OstrsestigmasdePalmerEldritch,dePhilipK.Dick;asrie Pilgrimage,deZennaHenderson;asfantasiasdesvairadasdeL.SpraguedeCamp,e,acimadetudo,oinesquecvelcontoOsnovetrilhesdenomesdeDeus,deArthurC.Clarke,quenarraoserenofimdomundoassimqueoobj etivosecretodeumgrupodemongesbudistas,alistagemdetodososnomesdeDeus,alcanadocomaaj udadeumsupercomputador.(Talcomoopai,eleerafascinadoporDeus,mesmoqueareligiopoucooatrasse.)Essemergulhonafantasia,sustentadoasanduchesdelanchonetes,durantequatroanosemeio,podenotersidoamaiorrevoluodahistria,mas,todavezqueeleviaoscolegasvoltaremcorrendodeseusj ogosdeguerra, exaustos, enlameados e machucados, passava por sua cabea que defender seus prpriosinteresses s vezes podia valer a pena.Com relao a Deus: a intensa averso dele pela arquitetura da capela da Rugby extirpoudeseuespritoosltimosresduosdef.Muitosanosdepois,quandoporacasoelepassoupelacidade,ficouchocadoaodescobrirqueoedifcioneogticodeHerbertButterfieldera,naverdade,belssimo.Quandomenino,achava-omedonhoeconclura,naquelapocadededicao fico cientfica, que ele lembrava demais um foguete espacial pronto para decolar;e certo dia, quando o fitava pela j anela de uma sala do Prdio Novo, durante uma aula de latim,ocorreu-lhe uma questo. Que tipo de Deus, pensou, moraria numa casa feia como aquela?Num instante, a resposta se apresentou: obviamente, nenhum Deus que se prezasse moraria ali naverdade,erabvio,Deus noexistia,nemmesmoumDeusdemaugostoarquitetnico.Nofim da aula de latim, ele era um ateu empedernido, e para provar isso caminhou, resoluto, at acantina da escola, durante o intervalo entre duas aulas, e comprou um sanduche de presunto. Acarnedeporcopassouporseuslbiosnaqueledia,eofatodeoTodo-Poderosonoprostr-locom um raio provou-lhe o que ele j desconfiava havia muito tempo: que no havia ningum lem cima com raios para arremessar.Num certo perodo, j untamente com os demais alunos, ele ensaiou o Coro do Aleluia, nointeriordacapela,comopartedeumaapresentaodantegrado Messiascomsolistasprofissionais.Participavadasmatinasedasvsperas,pois,tendoestudadonaCathedralSchoolemBombaim,notinhaargumentosparafugirobrigaodemastigaroraescrists.Enopodia negar que gostava dos hinos, cuj a msica fazia voar seu corao. Nem todos os hinos. Porexemplo, ele no precisava contemplar a excelsa cruz/ em que o prncipe da glria pereceu;masum menino solitrio no podia deixar deseemocionaraocantar Nestanoiteescuraestoulongedos meus/ Segura-me a mo, Senhor. Gostava de cantar Adeste fidelesem latim, lngua que, poralgum motivo, tirava da letra a ideia de religio: venite, venite in Bethlehem. Gostava de Comigohabita,quefoicantadoportodaatorcida,umamultidode100milvozes,noestdiodeWembley, antes da final da Copa da Inglaterra. E tambm do hino em que ele pensava como ohino geogrfico Terminou, Senhor, o dia que deste e que o enchia de saudade de casa:Osolqueagorasepedesperta/nossosirmosnoOcidente(aquieledizia,mentalmente,Oriente). A linguagem da descrena era visivelmente mais pobre que a da f. Mas pelo menos amsica dos descrentes estava chegando ao mesmo nvel de qualidade das canes dos fiis, e, medidaqueeleavanavanaadolescnciaeaeradeourodorocklheenchiaosouvidoscomsonoridades cativantes, com I-cant-get-no, hard rain, try-to-see-it-my-waye dadooronron,atoshinosperderampartedopoderdecomov-lo.MasaindahaviacoisasnacapeladaRugbycapazes de tocar o corao de um descrente livresco: ashomenagensaMatthewArnoldeseusexrcitosignorantesbatendo-senoite,RupertBrookemortoporcausadeumapicadademosquitoduranteumcombatecontraumdessesexrcitos,j azendoemalgumcantodeumcampo estrangeiro que foi para sempre a Inglaterra; e, acima de tudo, a pedra em memria deLewis Carroll, com as silhuetas de Tenniel danando, nas beiradas do mrmore preto e branco,uma ei-que ?, uma espcie de ah-sim! quadrilha. No quero, no posso, no quero,no posso, no posso danar tambm. Era seu hino privado a si mesmo.AntesdedeixaraRugby,elefezumacoisaterrvel.Todososalunosqueestavamterminandoocursotinhamautorizaoderealizarumavendadeestdio,quelhespermitiapassaradiante,ameninosmaisnovoseporpequenasquantias,suasmesas,luminriaseoutrospertencesusados.Eleafixouumafolhadeleilonaparteinternadaportadesuasalinhadeestudo,estipuloulancesiniciaismdicosparaseusobj etoseesperou.Quasetodososobj etosoferecidosnessasvendaserambastanteusados.Ele,porm,tinhasuapoltronavermelha,queforanovaquandoopaiacompraraparaele.Umapoltronaquestiveraumdonoeraumararidade de alta qualidade e muito procurada nas vendas de estdio, e a poltrona vermelha atraiulances elevados. Por fim, restaram dois licitantes: um de seus criados, um certo P. A. F. Reed-Herbert, que era chamado de Weed Herbert Herbert Maconha , um suj eitinho de culos,franzino,quetinhaumacertaadoraoporele,eumgarotomaisvelho,JohnTallon,que,pormorarnaBishopsAvenue,ondecongregavam-seosmilionriosnazonanortedeLondres,presumivelmente poderia pagar mais pela poltrona.QuandooslancesescassearamomaisaltofoideReed-Herbert,emtornodecincolibras , ocorreu-lhe a tal ideia terrvel. Pediu secretamente aJohnTallonquedesseumlancebastanteelevado,coisade oitolibras,eprometeu-lhequenoexigiriaqueelepagasseessaquantia se a sua acabasse sendo a proposta mais alta. A seguir, na hora do dics,disseaHerbertMaconha,solenemente,quesouberaqueorivalricodele,Tallon,estavadispostoasubiraindamaisseulance,chegandoat,quemsabe,anadamenosquedozelibras.EleviuorostodeHerbertMaconhasombrear,notousuaexpressodedesapontamento,epartiuparaoataquefinal.Massevocmeoferecer,digamos,dezpilasagora,eufechooleiloedeclaroqueacadeirafoivendida.Issoumbocadodedinheiro,Rushdie,disse.Pensenoassunto,respondeu Rushdie, magnnimo, enquanto voc faz as oraes.Terminadoodics,HerbertMaconhamordeuaisca.OmaquiavlicoRushdiesorriu,tranquilizador. Excelente deciso, Reed-Herbert. Ele havia, a sangue-frio, persuadido o garotoafazerumlancecontrasimesmo,dobrandoseuprpriolancevencedor.Apoltronavermelhatinha um novo dono. Vej am o poder da orao.Isso aconteceu na primavera de 1965. Nove anos e meio depois, durante a campanha paraas eleies gerais inglesas de outubro de 1974, ele ligou a televiso e ouviu o final do discurso docandidato da Frente Nacional Britnica, de extrema direita, racista, fascista e raivosamente anti-imigrantes. O nome do candidato aparecia na telinha, embaixo. Anthony Reed-Herbert.HerbertMaconha!,elegritou,tomadodehorror.MeuDeus,crieiumnazista!Numinstante,tudosetornouevidente.Levadopelasartimanhasdespudoradasdeumimigranteindiano,ateueconluiado com a elite, a gastar uma quantia bastante elevada, Herbert Maconha alimentara umaraivasurdaaolongodesuainfnciarasteirae,depois,navidaadulta,nomenosrasteira,paraacabar se tornando um poltico racista, vingando-se assim de todos os estrangeiros, com ou sempoltronas vermelhas carssimas para vender. (Mas seria aquele o mesmo Herbert Maconha? Erapossvelquehouvessedois.No,elepensou,tinhadeseropequenoP.A.F.,quej noerapequeno.) Na eleio de 1974, Herbert Maconha recebeu 6% dos votos no distrito de LeiscesterEast,aotodo2967votos.Emagostode1977,concorreudenovo,naeleiosuplementardeBirminghamLadywood,eficouemterceirolugar,nafrentedocandidatoLiberal.Felizmente,essa foi sua ltima apario significativa na cena nacional.Mea culpa,pensouovendedordapoltronavermelha. Meamaximaculpa.Naverdadeirahistriadeseucursosecundriohaveriasempremuitasolidoealgumatristeza.Mashaveriatambm essa mancha em seu carter; esse crime sem registro, sem expiao.Em seu segundo dia em Cambridge, ele foi a uma reunio de calouros no Kings College eviu,pelaprimeiravez,amagnficacpulabrunellesquianaqueeraacabeadeNoelAnnan.LordeAnnan,reitordoKings,ograndiloquentehomem-catedralaquempertenciaaquelacpula,estavadiantedele,emtodaasuaglriaglidaemelflua.Vocsestoaqui,disseAnnanaoscalourosreunidos,portrsrazes:Intelecto!Intelecto!Intelecto!Um,dois,trsdedos furaram o ar medida que ele relacionava as trs razes. Mais adiante em sua alocuo,ele superou at essa trplice sntese. A parte mais importante da educao de vocs aqui no sedar nas salas de aula, nas bibliotecas ou nas avaliaes, enunciou. Ela se realizar quando, j tarde da noite, vocs se sentarem uns nos quartos dos outros, fertilizando-se mutuamente.Ele havia sado de casa no meio de uma guerra, o despropositado conflito entre a ndia e oPaquistodesetembrode1965.ACaxemira,oeternopomodediscrdia,haviadesencadeadouma guerra de cinco semanas em que morreram quase 7 mil soldados, e no fim da qual a ndiaadquiriumais1813000quilmetrosquadradosdeterritriopaquistans,enquantooPaquistoseapoderarade518milquilmetrosquadradosdeterrasindianas,enada,menosquenada,haviasido alcanado. (Em Os filhos da meia-noite, as bombas dessa guerra mataram a maior parte dafamlia de Salim.) Durante alguns dias, ele ficou hospedado com parentes distantes em Londres,num quarto sem j anela. Era impossvel falar com sua famlia pelo telefone, e telegramas vindosdandia,disseram-lhe,estavamlevandotrssemanasparachegar.Elenotinhacomosabercomo iam os pais e as irms. Tudo o que pde fazer foi pegar o trem para Cambridge e torcerpelo melhor. Chegou ao Market Hostel, do Kings College, em ms condies fsicas, agravadaspelo medo de que os anos de universidade que tinha diante de si fossem uma repetio do perodoinfelizqueviveranaRugby.SuplicaraaopaiquenoomandasseparaCambridge,muitoembora j houvesse ganhado a vaga. No queria voltar para a Inglaterra, disse, passar mais anosde sua vida entre todos aqueles peixes mortos e inamistosos. No podia ficar em casa e cursar afaculdadej untodecriaturasdesanguemaisquente?Entretanto,Anis,ex-alunodoKings,convenceu-oair.Edepoisdisse-lhequeeleprecisavamudarsuareadeestudos.Notinhacabimento desperdiar trs anos numa coisa intil como histria. Ele precisava dizer faculdadequequeriamudarparaeconomia.Seguiu-seatumaameaa:seelenofizesseisso,Anisnopagaria as mensalidades.Sobrecarregadoportrsmedosj ovensinglesesinamistosos,aobrigaodeestudareconomia e a guerra , ele descobriu, em seu primeiro dia no Kings, que no conseguia sair dacama. O corpo pesava mais que de costume, como se a prpria gravidade o tentasse reter, e elefez que no ouviu vrias batidas na porta do quarto, decorado num estilo escandinavo moderno.(Naqueleanotinhasidolanadoo lpRubberSoul,dosBeatles,eelepassougrandepartedelecantarolandoNorwegianWood.)Mas,aoanoitecer,umasriedebatidasparticularmenteinsistentes o obrigou a sair da cama. Na porta, com um largo sorriso de Eton e a cabeleira loira eondulada de Rupert Brooke, estava a figura alta e sempre amistosa de Jan Pilkington-Miksa... Soumeio polons, sabe, o acolhedor anj o no portal do futuro, que carregou o indiano numa mar deruidosa j ovialidade para sua vida nova.JanPilkington-Miksa,aformamaisplatnicadealunodasescolasparticularesinglesas,aparentavaserexatamenteigualatodasascriaturasquehaviamtornadotodesagradvelsuavida na Rugby, mas era o mais doce dos rapazes, e parecia ter sido enviado como sinal de que ascoisasdessavezseriamdiferentes.Eforammesmo.CambridgeemgrandepartecurouasferidasqueaRugbyhaviainfligido,elhemostrouquehaviaoutrasInglaterras,maisatraentes,em que viver, e nas quais ele poderia sentir-se plenamente vontade.Tanto basta com relao ao primeiro medo. Quanto economia, ele foi resgatado por umsegundoanj osalvador,ocoordenadorpedaggico,dr.JohnBroadbent,professordeliteraturainglesa, to fantstico que com toda certeza poderia ter sido (embora no fosse) um dos modelosdo supercalmo e ultrapermissivo dr. Howard Kirk, protagonista do romance The history man,deMalcolm Bradbury. O dr. Broadbent lhe perguntou, quando ele, tristonho, informou que precisavamudardecursoporexignciadopai:Eoque vocquerfazer?.Bem,elenoqueriaestudareconomia,obviamente;tinhaumapequenabolsaemhistriaequeriaestudarhistria.Deixeisso por minha conta, disse o dr. Broadbent, e escreveu a Anis Rushdie uma carta amvel, masfirme, em que declarava que, no entender da faculdade, seu filho Salman no estava habilitado aestudar economia e que, se ele continuasse a insistir nisso, seria melhor tir-lo da universidade, afim de dar lugar a outra pessoa. Anis Rushdie nunca mais tocou no assunto.O terceiro medo tambm logo acabou. A guerra no subcontinente chegou ao fim, e todosos seus entes queridos estavam a salvo. Sua vida universitria comeou.Elefezascoisasdesempre:ganhouamigos,perdeuavirgindade,aprendeuaj ogaromisteriosoj ogodepalitosdefsforoqueapareceem AnopassadoemMarienbad,j ogouumamelanclicapartidadecroqucomE.M.ForsternodiaemqueEvelynWaughmorreu,compreendeu aos poucos o significado da palavra Vietn, ficou menos conservador e foi eleitopara os Footlights, tornou-se uma lampadazinha naquele grupo ofuscante de iluminados CliveJames,RobBuckman,GermaineGreereviuGermainefazerseunmerodaFreiraStrip-Teaser, despindo o hbito religioso com gestos muito pouco erticos, para revelar, sob ele, umaroupa completa de homem-r, no palquinho minsculo na rua de pedestres Petty Cury, um andarabaixodoescritriodaGuardaVermelhachinesa,ondeeravendidooLivrinhoVermelhodopresidenteMao.Tambmcheirou,viuumamigomorrerporcausadecidovagabundonoquarto defronte ao seu, viu outro sucumbir a uma leso cerebral induzida pelo uso de drogas, foiapresentadoaoCaptainBeefharteaoVelvetUndergroundporumterceiroamigoquemorreupoucodepoisdeseformar;apreciouminissaiaseblusastransparentes;escreveudurantealgumtempoparaoj ornalestudantil Varsityatconcluirqueafolhanoprecisavadeseusservios;atuou em peas de Brecht, Ionesco e Ben Jonson; e entrou de penetra no Trinity May Ball com ofuturocrticodeartedo TheTimes,paraouvirFranoiseHardycantarohinodaangstiaamorosa j uvenil, Tous les garons et les filles.Maistarde,elefalariacomfrequnciasobreafelicidadedeseusanosemCambridgeeconcordouconsigomesmoemesquecerashorasdedesesperadasolido,quandochoravasozinho no quarto, embora a capela do Kings estivesse bemdiantedesuaj anela,fulgurantedebeleza (isso foi no ltimo ano, quando ele estava morando no andar trreo na prpria faculdade,numquartocomvista,equevista!capela,gramado,rio,barcos,umcarto-postaldeslumbrante). Naquele ltimo ano, ele voltara das frias acabrunhado. Isso foi no fim do verode1967,oVerodoAmor,quandoquemfosseaSanFranciscoteriadeusarfloresnocabelo.Ele,infelizmente,ficaraemLondressemningumparaamar.Poracaso,deraconsigonocorao do agito, na linguagem da poca, hospedado num quarto alugado em cima da butiquemaispra-frentedopedao,GrannyTakesaTrip,napontadoWorldsEnddaKingsRoad.Cynthia, a mulher de John Lennon, usava os vestidinhos da butique.Diziamque MickJaggerosusava.Tambmalihaviaumaeducaoareceber.Eleaprendeuaselivrardetodasasgriasantigas.NaGranny,dizia-se beautifulparaexpressarsimples aprovao; quando se queria dizer que uma coisa era bonita, dizia-se reallynice.Eleaprendeu a balanar muito a cabea, com uma expresso de sapincia. Para ser blas, aj udava ofato de ser indiano. ndia, cara, as pessoas diziam. Longe pra burro. Isso a!, ele respondia,balanandoacabea.Omaharishi,cara,diziam.Beautiful.RaviShankar,cara,elerespondia.Nesseponto,emgeralaspessoasnoconheciammaisindianosparamencionareficavam s balanando a cabea, com um ar beatfico. Certo, certo, diziam. Certo.Eleaprendeuumalioaindamaisprofundacomamoaquecuidavadaloj a,umapresena etrea naquele espao de elegante penumbra, que recendia a patchuli e onde se ouviamsicadesitar,umespaonoqual,depoisdealgumtempo,elepercebeuumcertofulgorviolceoemquesedivisavamcertasformasimveis.Eram,provavelmente,roupas,provavelmentevenda.Nogostavadeperguntar.AGrannyeraassustadora.Mas,umdia,j untoucoragemedesceuparaseapresentar, Oi,estoumorandoaquiemcima,meunomeSalman.Amoaseaproximoubastante,ecomissoeleviuodesdmemseurosto.Depois,devagar, como mandava o figurino, ela deu de ombros.Cara, a conversa acabou, disse.DeumladoparaoutronaKingsRoad,desfilavamasmoasmaisbonitasdomundo,ridiculamentemalvestidas,dandorisada,acompanhadasderapazesempavonados,toridiculamente bem-vestidos quanto, com palets longos, camisas com babados, calas de veludoamassadas e botas de pele de cobra falsa, tambm dando risada. Ele parecia ser a nica pessoaque no sabia o que era ser feliz.VoltouparaCambridgesentindo,naidademaduradevinteanos,queavidaestavapassando por ele. (Alguns dos seus colegas tambm tiveram a depresso do ltimo ano. MesmoJan Pilkington-Miksa, invariavelmente animado, estava numa prostrao de dar pena. No entanto,por sorte se recuperou e disse que tinha resolvido ser diretor de cinema e pretendia ir para o suldaFranaassimqueselivrassedeCambridge,porque,disserindo,provavelmenteestoprecisandodecineastasporl.)Eleserefugiounotrabalho,comotinhafeitonaRugby.Ointelectodohomemobrigadoaescolher/Aperfeiodavidaoudotrabalho,disseraYeats,e,como a vida perfeita estava evidentemente alm de seu alcance, era melhor ele se voltar para otrabalho.Foi nesse ano que ele tomou conhecimento dos versos satnicos. Na Parte ii do exame paraobterdistinoemhistriaeledeviaescolhertrstemasespeciaisdeumaamplalistaeconcentrar-se neles. Os que escolheu foram os seguintes: a histria da ndia durante o perodo daluta pela independncia contra os britnicos, do levante de 1875 at o Dia da Independncia, emagostode1947;oextraordinrioprimeirosculodahistriadosEstadosUnidos,1776-1877,daDeclarao de Independncia ao fim do perodo ps-Guerra de Secesso, chamado em geral deRestaurao; e um terceiro tema, proposto pela primeira vez naquele ano, intitulado Maom, aascenso do isl e o califado primitivo. Em 1967, poucos estudantes de histria em CambridgeestavaminteressadosnoProfetadoisltopoucos,naverdade,queoprofessordesignadoparaocursocancelousuaspalestrasedeclinoudeorientarospouqussimosalunosquehaviamescolhido o curso. Era uma forma indireta de dizer que o tema no estava mais disponvel e queosestudantesdeveriamoptarporoutro.Todososdemaisalunosrealmentepuseramdeladootrabalho sobre Maom e se dedicaram a outros assuntos. Ele, porm, sentiu crescer em si a velhateimosia.Seotemaforaproposto,nopodiasercancelado,nemqueumnicoalunoestivesseinteressado nele; essa era a regra. Bem, ele estava mesmo interessado. Ele era filho de seu pai,ateu,masfascinadopordeuseseprofetas.Eratambmproduto,aomenosemparte,daarraigadaculturamuulmanadosuldasia,oherdeirodasriquezasartsticasliterriasearquitetnicas dos mogis e de seus predecessores. Estava determinado a estudar aquele tema. Sprecisava de um historiador disposto a orient-lo.DostrsgrandeshistoriadoresqueeramprofessoresdoKingsnapoca,ChristopherMorris era o mais publicado e o de maior renome, especializado no pensamento poltico Tudor,na histria eclesistica e no Iluminismo, enquanto John Saltmarsh era um dos grandes excntricosda universidade, com uma desgrenhada cabeleira branca, suas, ceroulas que apareciam abaixodabainhadacalaesobreospsmetidosemsandlias,conhecedorsemrivaldahistriadoKingsCollegeedesuacapela,como,deresto,dahistriadaregio.EravistocomfrequnciacaminhandopelastrilhasruraisemtornodeCambridgecomumamochilanascostas.TantoMorrisquantoSaltmarsheramdiscpulosdesirJohnClapham,quefezdahistriaeconmicauma rea de estudos srios, e ambos admitiam que o terceiro membro da trindade de histria doKings,omedievalistaArthurHibbert,eraomaisbrilhantedetodos,umgnioque,segundoalenda da faculdade, em seu prprio exame final de histria havia escolhido as questes sobre asquaismenossabia,paraquepudessecompletarasrespostasnotempodado.Hibbert,estavadecidido,eraapessoamaisindicadaparaorient-locomrelaoaotema;esempestanej arconcordouemfaz-lo.Nosouespecialistanessecampo,disse,modestamente,masseialguma coisa a respeito, de modo que, se voc me aceitar como seu orientador, eu me disponhoa orient-lo.A proposta foi aceita com gratido pelo j ovem e teimoso formando que estava na sala doprofessor,bebericandoumataadexerez.Ecomissodeu-seumaestranhasituao:otemaespecial sobre Maom, a ascenso do isl e o califado primitivo nunca tinha sido oferecido antes;noanoacadmicode1967-8,somenteaquelealunoobstinadooescolheu;enoanoseguinte,devido falta de interesse, deixou de ser oferecido. Para aquele nico formando, o curso era avisodopaiconcretizada.EstudavaavidadoProfetaeonascimentodareligiocomoeventosdentrodahistria,deformaanaltica,j udiciosa, correta.Ocursopareciacriadoespecialmentepara ele.Nocomeodotrabalhoconj unto,ArthurHibbertdeu-lheumconselhoqueelej amaisesqueceu.Nuncasedeveescreverhistria,disse,antesdeouviraspessoasfalarem.Elepensounissoduranteanos,eporfimpassouaacharqueeraumprincpioimportantetambmpara quem escreve fico. Quem no fazia ideia de comoaspessoasfalavamnoasconheciadireito,eporissonopodiano deviacontarahistriadelas.Oj eitocomoaspessoasfalavam, em frases curtas, lacnicas, ou com um palavreado floreado e fluente, revelava muitosobreelas:seulocaldeorigem,suaclassesocial,seutemperamentosecalmoouirascvel,cordialoufrio,desbocadoourespeitoso,gentilourude;e,sobotemperamento,suaverdadeiranaturezaseintelectualousimplria,francaoudissimuladae,tambm,bondosaouperversa.Se isso fosse tudo quanto ele aprendeu com Arthur, j teria sido suficiente. Mas ele ganhou muitomais do que isso. Aprendeu um mundo. E, naquele mundo, uma religio estava nascendo.Eram nmades que estavam se tornando sedentrios. Suas cidades eram novas. Meca notinha mais do que algumas geraes. Yathrib, que depois passou a ser chamada Medina, era umgrupo de acampamentos em torno de um osis, sem sequer uma muralha. Ainda no estavam vontade em sua nova vida urbana, e as mudanas deixavam muitos deles infelizes.Umasociedadenmadeeraconservadora,cheiaderegras,valorizavamaisobem-estarcoletivodoquealiberdadepessoal,maseratambminclusiva.Omundonmadeeraummatriarcado.Soboamparodesuasfamliasampliadas,atcrianasrfsencontravamproteo,bemcomoumasensaodeidentidadeeparticipao.Tudoissoestavamudandoagora. A cidade era patriarcal, e sua unidade familiar preferida era a nuclear. Crescia a multidodosprivadosdedireitoscivis,quesetornavammaisinquietosacadadia.Meca,porm,prosperava,eosanciosqueadirigiamgostavamdascoisasassim.Aheranaeraagorapatrilinear. Tambm isso agradava s famlias governantes.Juntosportasdacidadeerguiam-setemplosatrsdeusas,al-Lat,al-Manateal-Uzza.Deusasaladas,comoavesexcelsas.Ouanj os.Semprequeascaravanasqueenriqueciamacidadepassavamporessasportas,desadaoudevolta,paravamnumdessestemplosefaziamuma oferenda. Ou, para usarmos a linguagem moderna, pagavam um tributo. As famlias maisricas de Meca controlavam os templos, e grande parte de sua riqueza vinha dessas oferendas.As deusas aladas ocupavam um lugar central na economia da nova cidade, da civilizao urbanaque estava surgindo.NoedifciochamadoCuboouCaaba,nocentrodacidade,haviadolosdecentenasdedeuses.Umadessasesttuas,demodoalgumamaispopular,representavaumadivindadechamadaal-L,ou o deus,damesmaformaqueal-Latera adeusa.Al-Leradiferente,pelofatodenoserespecializadonoeraumdeusdachuva,dariqueza,daguerraoudoamor.Eraapenas,vagamente,umdeusdetudo.Talvezessafaltadeespecializaoexplicassesuarelativa impopularidade. Quem fazia oferendas a deuses em geral tinha razes especficas, comoa sade de uma criana, o futuro de um empreendimento comercial, uma seca, uma briga, umromance. Preferiam deuses que fossem especialistas em seu campo, e deixavam de lado aqueladivindade verstil e nada especfica. No entanto, al-L estava destinado a se tornar mais populardo que qualquer outro deus pago em todos os tempos.O homem que tiraria al-L da quase obscuridade e se tornaria seu Profeta, transformando-o no igual, ou ao menos no equivalente, do Deus Eu Sou do Velho Testamento e do Trs-em-Umdo Novo Testamento, era Mohamed ibn Abdala, um rfo do empobrecido cl dos Hashim quemoravanacasadotio.Jadolescente,comeouaacompanharessetio,AbuTalib,emsuasviagenscomerciaisSria.Duranteessasviagens,comcertezaencontrouosprimeiroscristosque viu, seguidores da seita nestoriana, e ouviu suas histrias,muitasdelasepisdiosdoVelhoedoNovoTestamentosadaptadosscondieslocais.Porexemplo,paraosnestorianos,JesusCristonasceunumosis,debaixodeumapalmeira.Maistarde,noCoro,oarcanj oGabrielrevelouaMaomasurachamadaMaryam,Maria,naqualJesusnascenumosis,sobumapalmeira.Mohamed ibn Abdala cresceu com a reputao de ser um comerciante hbil e honesto, ecom 25 anos isso lhe valeu uma proposta de casamento, feita por uma mulher mais velha e maisrica,Cadidj a,eduranteosquinzeanosseguintesfoibem-sucedidonosnegciosefeliznocasamento.Entretanto,eraclaramenteumhomemqueprecisavadesolido,edurantemuitosanos s vezes passou semanas a fio vivendo como eremita numa caverna do monte Hira. Quandoestavacomquarentaanos,oarcanj oGabrielperturbouseuisolamentoeordenou-lhequerecitasse.Comoeranatural,eleachouquetinhaperdidooj uzoefugiu.Svoltouparaouviroque o anj o tinha a lhe dizer quando a mulher e amigos prximos o convenceram de que poderiavaler a pena voltar montanha, por via das dvidas.ConvinhaverificarseDeusestavamesmotentando fazer contato com ele.ErafciladmiraroqueocorreumedidaqueomercadorsetransformavaemMensageirodeDeus;solidarizar-secomele,que,perseguido,foiobrigadoamudar-separaMedina; acompanhar sua rpida evoluo, na comunidade de Yathrib, para legislador respeitado,governante capaz e competente lder militar. Era fcil tambm ver que o mundo em que o Corofoi revelado e os fatos na vida do Mensageiro influenciaram diretamente a revelao. Quando osmuulmanosmorriamembatalha,oarcanj ologoinduziaseusirmosasecasaremcomsuasvivas, para que as mulheres enlutadas no se perdessem para a f, casando-se de novo fora dareligio. Quando correu o boato de que sua amada Aisha se conduzira de maneira imprpria, aose perder no deserto com um certo Safwan ibn Marwan, o Anj o do Senhor apressou-se a descerpara dizer que, na opinio de Deus, a senhora virtuosa havia procedido com toda correo. E, deformamaisgenrica,eraevidentequeoespritodoCoro,osistemadevaloresporeleendossado,era,essencialmente,ocdigoemviasdedesaparecimentodosrabesnmades,dasociedadematriarcal,maiscompassiva,quenodeixavarfosdesprotegidos;rfoscomooprprioMohamed,porexemplo,cuj osucessocomomercador,emseuentender,lhedavaodireitodeocuparumlugarnorgogovernantedacidade,eaquemforanegadataldistinoporque no tinha uma famlia poderosa que lutasse em seu favor.Eisumparadoxofascinante:umateologiaemessnciaconservadora,quelanavaumolharcarinhosoparaumaculturaqueestavadesaparecendo,torna-seumaideiarevolucionriaporqueaspessoasqueelamaisatraaeramaquelasquetinhamsidomarginalizadaspelaurbanizaoospobresressentidosearaldasruas.Eraporisso,talvez,queaelitedeMecavia o isl como to ameaador; por isso, talvez, o novo credo foi perseguido com tanta violncia;e por isso uma proposta atraente, com o obj etivo de suborn-lo, pode ateno, pode ter sidofeita a seu fundador.Os dados histricos eram incompletos, mas a maioria das coletneas mais importantes dehadith,outradies,sobreavidadoProfetaascompiladasporIbnIshaq,Waqidi,IbnSad,BukharieTabarinarraumincidentequemaistardeficariaconhecidocomooincidentedosversos satnicos. O Profeta desceu da montanha certo dia e recitou a sura (nmero 53) chamadaan-Najm, a Estrela. Continha as seguintes palavras: Ouvistes falar de al-Lat, de al-Uzza e de al-Manat,aterceira,aoutra?Elassoasavesexcelsas,esuaintercessomuitodesedesej ar.Emdataposteriorteriamsepassadodias,semanasoumeses?elevoltoumontanhaedesceudesconcertado,dizendoquetinhasidoludibriadoemsuavisitaanterior.ODiabolheaparecera, disfarado de arcanj o, e os versos que ele recebera no eram divinos, mas satnicos,eeraprecisoexpurg-losdoCorosemdemora.Nessaocasio,oanj otrouxeranovosversos,enviados por Deus, para substituir os versos satnicos no grande livro: Ouvistes falar de al-Lat eal-Uzza.Edaoutra,aterceira,Manat.Tais[divindades]nosomaisdoquenomes,comquevossosantepassadosasdenominaram,enohnelasverdadealguma.Porventura,teriaDeusfilhas, enquanto vs tendes filhos? Tal seria uma partilha inj usta.Eassimextirpou-sedaRecitaoacontribuiodoDiabo.Masrestavamperguntas:porqueMaomdeincioaceitouaprimeirarevelao,afalsa,comoverdadeira?Eoqueaconteceu em Meca no perodo entre as duas revelaes, a satnica e a anglica?Umacoisasesabe:MaomqueriaseraceitopelapopulaodeMeca.Eleansiava,escreveuIbnIshaq,porumaformadeatra-los.E,quandoaspessoassouberamqueeleaceitaraastrsdeusasaladas,anotciafoirecebidacomalegria.Ficaramcontentesemuitosatisfeitascomamaneiracomoelefalarasobreseusdeuses,escreveuIbnIshaq,ediziamMaom falou sobre nossos deuses de uma maneira esplndida. E Bukhari declarou: O Profeta[...] prostrou-se ao recitar an-Najm, e com ele prostraram-se os muulmanos, os pagos, os dj inse todos os seres humanos.Por que, ento, o Profeta depois retratou-se? Alguns autores ocidentais, como o escocs W.MontgomeryWatt,estudiosodoisl,eomarxistafrancsMaximeRodinson,propuseramumaleitura poltica do episdio. Os templos das trs deusas aladas eram importantes, do ponto de vistaeconmico,paraaelitegovernantelocal,daqualMaomestavaexcludo,emsuaopinioinj ustamente. Por isso, talvez, a proposta a ele oferecida teria sido algo mais ou menos assim:seMaom,oarcanj oGabrielouAlconcordassemqueasdeusas-avespodiamsercultuadaspelosseguidoresdoisl,nocomoparesdeAl,obviamente,mascomoseressecundrios,menosimportantes,como,porexemplo,osanj os(e,comoexistiamanj osnoisl,quemalpoderiahaveremacrescentaraopanteomaistrs,quej erampopulareselucrativosemMeca?),aperseguioaosmuulmanoscessaria,eseriaconcedidaaoprprioMaomumacadeira no conselho governante da cidade. E foi a essa tentao, talvez, que o Profeta sucumbiupor pouco tempo.Ea,oqueaconteceu?Teriamosaristocratasdacidadedescumpridoapromessa,avaliandoque,aoflertarcomopolitesmo,Maomsedesprestigiaraaosolhosdeseusseguidores? Porventura os seguidores haviam se recusado a aceitar a revelao sobre as deusas?TeriaoprprioMaomlamentadocomprometersuasideiasaocederaocantodesereiadaascenso social? No havia como afirmar coisa alguma com segurana. A imaginao teria depreencheraslacunasnosdados.Noentanto,oprprioCorofalavadecomotodososprofetastinhamsidopostosprovanotocantetentao.Nuncavosmandamosumsprofetaouapstolo em cuj os desej os Satans no procurasse intrometer-se, diz a sura 22. E, se o incidentedosversossatnicosfoiaTentaodeMaom,cumpriadizerqueelesaiu-semuitobem.Eletantoconfessoutersidotentadocomorepudiouaquelatentao.AssimocitaTabari:Forj eicoisas contra Deus e imputei-Lhe palavras que Ele no pronunciou. Depois disso, o monotesmodoisl,tendosidopostoprova,permaneceuinflexveleforte,adespeitodeperseguies,exlios e guerras, e antes que se passasse muito tempo o Profeta suplantou seus inimigos e a novaf se espalhou como um incndio por todo o mundo.Porventura teria Deus filhas, enquanto vs tendes filhos? Isto seria uma partilha injusta.Os versos reais, anglicos ou divinos, eram claros: era a feminilidade das deusas aladasasavesexcelsasqueastornavainferiores,fraudulentas,eissocomprovavaquenopodiam ser filhas de Deus, como os anj os. s vezes o nascimento de uma grande ideia revelavacoisasarespeitodeseufuturo;aformacomoonovoentranomundovaticinavacomoelesecomportariaaoficarvelho.pocadosurgimentodessagrandeideia,afeminilidadeeratidacomo obstculo glorificao.Boa histria, ele pensou ao ler sobre ela. J ento sonhava tornar-se escritor, e arquivou aboahistrianofundodocrebroparaposteriorconsiderao.Vinteanosdepois,descobririaoquanto a histria era boa.j esuismarxiste,tendancegroucho,diziaografiteemParis,naquelaprimaverarevolucionria.Semanasdepoisdos vnementsparisiensesdemaiode1968,epoucasnoitesantesdesuaformatura,algumengraadinhoannimo,quemsabeummarxistadalinhagrouchista,decidiuredecorar,emsuaausncia,seuquartoburguseelitistanafaculdade,despej ando um balde de molho e cebolas nas paredes e nos mveis, para no falar do toca-discosedasroupas.Comaquelaantigatradiodej ustiaeintegridadedequeasinstituiesdeCambridgeseorgulhavam,oKingsCollegenumtimoconsiderou-oonicoresponsvelpelabaguna,ignoroutodososseusprotestosemcontrrioeinformou-lheque,amenosqueelepagasse pelos danos, no poderia se formar. Essa foi a primeira, mas infelizmente no a ltima,ocasio em que ele se veria falsamente acusado de espalhar suj eira.Elepagoue,levadopeloespritodesafiador,foicerimniacomsapatosmarrons.Numabrir