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Justiça condena TV Globo a indenizar donos da Escola Base A Rede Globo foi condenada a pagar R$ 1,35 milhão para reparar os danos morais sofridos pelos donos e pelo motorista da Escola Base. Segundo informou o Consultor Jurídico, os donos da escola, Icushiro Shimada, Maria Aparecida Shimada e Maurício Monteiro de Alvarenga, devem receber, cada um, o equivalente a 1.500 salários mínimos (R$ 450 mil). Antes da Globo, outros veículos de comunicação, como jornais e emissoras de tevê, também foram condenados a pagar indenização. Em todos os casos, no entanto, ainda cabe recurso. A decisão foi tomada na manhã de quarta-feira, dia 14, pela 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Os desembargadores negaram o recurso da Globo e concederam em parte o pedido dos donos da escola, mantendo o valor da indenização fixado em primeira instância e aumentando os honorários do advogado. Entre as teses de defesa acolhidas pelo TJ, há a alegação de que o direito de informação e a liberdade de imprensa não se sustentam no espetáculo nem no linchamento, mas na cautela para com a honra e dignidade das pessoas. A Justiça entendeu, ainda, que a atuação da imprensa deve ter o cuidado na divulgação ou veiculação de fatos ofensivos à dignidade e aos direitos de cidadania. Para entender o caso A história ocorreu em março de 1994, quando a imprensa publicou reportagens sobre seis pessoas que estariam envolvidas no abuso sexual de crianças, alunas da Escola Base, localizada no Bairro da Aclimação, na capital. Jornais, revistas, emissoras de rádio e de tevê basearam-se em fontes oficiais - polícia e laudos médicos - e em depoimentos de pais de alunos. No entanto, foi um equívoco que, porém, ao ser descoberto, a escola já havia sido depredada, os donos estavam falidos e eram ameaçados de morte em telefonemas anônimos. A Justiça determinou, em 1996, que o governo paulista pagasse R$ 100 mil para cada um, a título de reparação moral, e uma quantia a ser calculada para ressarcir os danos materiais. A professora Maria Aparecida Shimada iria receber, ainda, uma pensão vitalícia, por ter sido obrigada a abandonar a profissão. Insatisfeitas, as partes recorreram ao Superior Tribunal de Justiça. A Segunda Turma do STJ reformou a decisão e condenou o Estado de São Paulo a pagar indenização de R$ 250 mil a cada um. O caso ainda está na Justiça por causa de um Recurso Extraordinário interposto pela Fazenda do Estado contra a decisão do STJ. Vera Jardim A última aula da Escola Base Cobrança de indenização milionária pode forçar a imprensa a pagar por seus erros num assassinato social Os sinos dobraram de novo pela Escola Base. Na primeira quinzena de dezembro, o caso voltou ao noticiário quando o juiz Paulo Aliende Ribeiro, da 5ª Vara da Fazenda Pública, condenou o governo do Estado de São Paulo a pagar uma indenização de cem salários mínimos a dois donos da escola, Icushiro Shimada e sua mulher Maria Aparecida, e um colaborador, Maurício de Alvarenga. A indenização cobre apenas os danos morais, devendo ser feita uma perícia para avaliar os prejuízos materiais das vítimas. O advogado Kalil Abdalla disse que vai recorrer e insistir em cobrar do Estado uma indenização de R$ 2,8 milhões para cada um. Essa é a parte do Estado. Como fica o erro da imprensa? “Eu acho que a imprensa tem a sua parcela de culpa”, disse Shimada no programa Opinião Nacional da TV Cultura de São Paulo em 12/12. No entanto, seu advogado não quer briga com os meios de comunicação. Mas a advogada Maria Elisa Munhol, que representa o casal Saulo e Mara Nunes, outros denunciados no episódio, já está processando as TVs Globo e SBT e os

Justiça Condena TV Globo a Indenizar Donos Da Escola Base

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Justiça condena TV Globo a indenizar donos da Escola BaseA Rede Globo foi condenada a pagar R$ 1,35 milhão para reparar os danos morais sofridos pelos donos e pelo motorista da Escola Base. Segundo informou o Consultor Jurídico, os donos da escola,  Icushiro Shimada, Maria Aparecida Shimada e Maurício Monteiro de Alvarenga, devem receber, cada um, o equivalente a 1.500 salários mínimos (R$ 450 mil). Antes da Globo, outros veículos de comunicação, como jornais e emissoras de tevê, também foram condenados a pagar indenização. Em todos os casos, no entanto, ainda cabe recurso.

A decisão foi tomada na manhã de quarta-feira, dia 14, pela 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Os desembargadores negaram o recurso da Globo e concederam em parte o pedido dos donos da escola, mantendo o valor da indenização fixado em primeira instância e aumentando os honorários do advogado. Entre as teses de defesa acolhidas pelo TJ, há a alegação de que o direito de informação e a liberdade de imprensa não se sustentam no espetáculo nem no linchamento, mas na cautela para com a honra e dignidade das pessoas. A Justiça entendeu, ainda, que a atuação da imprensa deve ter o cuidado na divulgação ou veiculação de fatos ofensivos à dignidade e aos direitos de cidadania.Para entender o casoA história ocorreu em março de 1994, quando a imprensa publicou reportagens sobre seis pessoas que estariam envolvidas no abuso sexual de crianças, alunas da Escola Base, localizada no Bairro da Aclimação, na capital. Jornais, revistas, emissoras de rádio e de tevê basearam-se em fontes oficiais - polícia e laudos médicos - e em depoimentos de pais de alunos.No entanto, foi um equívoco que, porém, ao ser descoberto, a escola já havia sido depredada, os donos estavam falidos e eram ameaçados de morte em telefonemas anônimos.A Justiça determinou, em 1996, que o governo paulista pagasse R$ 100 mil para cada um, a título de reparação moral, e uma quantia a ser calculada para ressarcir os danos materiais. A professora Maria Aparecida Shimada iria receber, ainda, uma pensão vitalícia, por ter sido obrigada a abandonar a profissão.Insatisfeitas, as partes recorreram ao Superior Tribunal de Justiça. A Segunda Turma do STJ reformou a decisão e condenou o Estado de São Paulo a pagar indenização de R$ 250 mil a cada um. O caso ainda está na Justiça por causa de um Recurso Extraordinário interposto pela Fazenda do Estado contra a decisão do STJ.Vera Jardim

A última aula da Escola Base

Cobrança de indenização milionária pode forçar a imprensaa pagar por seus erros num assassinato social

Os sinos dobraram de novo pela Escola Base. Na primeira quinzena de dezembro, o caso voltou ao noticiário quando o juiz Paulo Aliende Ribeiro, da 5ª Vara da Fazenda Pública, condenou o governo do Estado de São Paulo a pagar uma indenização de cem salários mínimos a dois donos da escola, Icushiro Shimada e sua mulher Maria Aparecida, e um colaborador, Maurício de Alvarenga. A indenização cobre apenas os danos morais, devendo ser feita uma perícia para avaliar os prejuízos materiais das vítimas. O advogado Kalil Abdalla disse que vai recorrer e insistir em cobrar do Estado uma indenização de R$ 2,8 milhões para cada um. Essa é a parte do Estado. Como fica o erro da imprensa?

“Eu acho que a imprensa tem a sua parcela de culpa”, disse Shimada no programa Opinião Nacional da TV Cultura de São Paulo em 12/12. No entanto, seu advogado não quer briga com os meios de comunicação. Mas a advogada Maria Elisa Munhol, que representa o casal Saulo e Mara Nunes, outros denunciados no episódio, já está processando as TVs Globo e SBT e os jornais Folha de S.Paulo, Folha da Tarde e Notícias Populares. Ela quer que esses meios de comunicação paguem R$ 3,2 milhões a cada um dos seus clientes (JB, 11/12).

Não há notícia, no Brasil, de uma indenização tão alta por danos morais ou materiais. Os juízes preferem arbitrar valores simbólicos que demarcam, mas não desestimulam a repetição do erro. “Nos Estados Unidos custa caro indenizar por falsa acusação”, tripudiou a revista Veja ao noticiar (18/12) a indenização paga em acordo extrajudicial pela rede de televisão NBC ao guarda de segurança Richard Jewell, acusado por muitos jornais, rádios e Tvs americanos de ter armado a bomba que explodiu no estádio do Centenário durante a Olimpíada de Atlanta.

Jewell foi citado como suspeito pelo FBI e a mídia o tratou como culpado — algumas vezes em longas reportagens onde nem a expressão “segundo fontes do FBI” foi usada como aval da calúnia. O ex-guarda de segurança ameaça processar cada um deles, a menos que, como se antecipou a NBC, façam acordos de indenização. A quantia não foi revelada, mas, como no Brasil quem não sabe inventa, Veja inventou: “... é coisa pra lá de milhão.”

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No país da impunidade, o caso Escola Base é um dos mais eloqüentes da crônica policial desde que Pedro Álvares Cabral largou aqui criminosos degredados de Portugal. Em 28 de março de 1994, duas mães de alunos, Lúcia Eiko Tanoi e Cléa Parente, queixaram-se na delegacia do bairro do Cambuci de que seus filhos de quatro e cinco anos estavam sendo molestados sexualmente na escola e talvez levados numa Kombi para orgias num motel, onde seriam fotografados e filmados.

O delegado Edélcio Lemos e a maior parte da mídia encamparam a denúncia como fato provado, mas ao final do inquérito os acusados foram declarados inocentes. Eles sofreram um assassinato social: perderam os empregos, a paz e isolaram-se da comunidade.

Registre-se que a denúncia das mães era notícia de primeira página

O pecado original foi da polícia, mas é cristalino que a mídia espetacularizou a denúncia e a seguir assumiu as acusações como verdade provada e fechou os olhos para o linchamento dos acusados. Registre-se que a denúncia das mães era notícia de primeira página. Qualquer pai com filho na escola, em qualquer escola, possivelmente sentiu um frio na espinha ao saber da suspeita de pornografia com crianças. Mas era só notícia, não linchamento.

Já nos primeiros dias da cobertura deveria ter sido aceso o sinal amarelo diante do desequilíbrio do delegado Edélcio Lemos. Ele assegurava, com convicção de vidente, a culpa dos acusados. Não parecia um investigador, mas uma testemunha ocular. Sua única “prova”, além do depoimento tatibitate das crianças, devidamente pajeadas pelas mães, era um telex do Instituto Médico Legal sugerindo violação sexual de um menino. Mais tarde, o laudo do IML foi dúbio e incapaz de se contrapor à evidência de que o garoto sofria de assaduras crônicas. “Ciente da fragilidade das provas que tinha em mãos, agiu [o delegado] com culpa, nas modalidades de imprudência e imperícia”, disse o juiz Paulo Ribeiro na sentença (JB, 11/12).

Prudência e perícia se afastaram também do noticiário. “Perua escolar carregava crianças para orgia”, estampou a Folha da Tarde. Notícias Populares, um pasquim indigno da liberdade de imprensa, afirmava: “Kombi era motel na escolinha do sexo”. A orgia das invencionices alterava os hormônios da imprensa de elite. “Escola de horrores”, sentenciou a revista Veja.

A cobertura escrachada não preservou ninguém, nem mesmo as crianças, reconhecíveis pela identificação dos pais e atazanadas em noticiários da TV. Em pleno jornal do meio-dia, emissoras pediam a um menino de quatro anos que contasse detalhes escabrosos do suposto molestamento sexual. “A tia passou a mão em você?”, sugeria a repórter da Globo à criança inocente que brincava com o microfone.

A TV Cultura educava seus telespectadores com um jornalismo espúrio, conforme o diálogo do repórter com um garotinho, reproduzido pelo jornalista Alex Ribeiro no livro Caso Escola Base - Os abusos da imprensa:

“— Esta mulher, ela deitava em cima de você?— Deitava. — O que ela fazia, o que ela queria? Diante da relutância do garoto, o jornalista sugeriu a resposta: — Te beijar a boca? O garoto respondeu com um aceno de cabeça...”

Os erros da polícia e da mídia na Escola Base nada tiveram de originais. Apenas reiteraram a versão reforçada de uma sucessão de disparates profissionais, truculência, prepotência, desrespeito aos direitos humanos a que estão acostumados a polícia e a imprensa. E tome autocrítica: nunca a imprensa se penitenciou tanto de um erro, mas o fez genericamente.

Se um erro grave foi cometido numa reportagem, deve ser feita uma reportagem grave sobre o erro. Ninguém fez isso. A autocrítica no jornalismo só é aceitável com jornalismo: cabe ao meio de comunicação reconhecer que errou (mentiu? inventou?) ao noticiar determinada fantasia ou barbaridade. Se um erro grave foi cometido numa reportagem, deve ser feita uma reportagem grave sobre o erro. Ninguém fez isso. A autocrítica genérica, ao debitar a trapalhada na costa larga “da imprensa”, serve para que tudo continue como sempre foi: erra-se e pede-se desculpa para ter direito a outro erro.

A principal causa da tragédia foi o barbarismo policial e a conivência da mídia com esse barbarismo. Uma é o espelho canibal da outra. A polícia não investiga, condena e divulga. A imprensa divulga, condena e não investiga. Ao final, as vítimas se amontoam na próprio infortúnio, a polícia nunca é responsabilizada e a imprensa se defende com a alegação invariável que apenas publicou o que lhe disseram.

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Desde o número 1 deste boletim, lançado em março de 1995, a autocrítica da mídia no Caso Escola Base tem sido tratada como lágrimas de crocodilo: “O que a imprensa aprendeu com o caso da Escola Base — aquele em que, escudada num delegado afoito, crucificou, achincalhou inocentes e depois fez uma fugaz autocrítica ? Aparentemente, nada. O efeito Escola Base é nulo, por que é o método de trabalho das redações que forja esses casos, e de pouco adianta a má consciência posterior dos jornalistas. Como não mudaram os métodos, os escândalos com a reputação alheia continuam. Uma autocrítica profícua produziria mudanças na aceitação — às vezes, provocação — das levianas deduções da polícia.

A imprensa joga fichas viciadas na roleta das investigações policiais, e ganha notícias que um questionamento mínimo deixaria inéditas. A imprensa não duvida da suposta eficiência com que, uma hora depois do crime, delegados saciam repórteres com teorias de Sherlock Holmes.

A autocrítica foi tão inócua que dentro do Caso Escola Base a imprensa logo se esqueceu do erro e forjou outro — e desta vez dispensou a ajuda da polícia e mentiu sozinha. O delegado Lemos já estava afastado e em seu lugar assumira Jorge Carrasco quando, em abril, foi preso o americano Richard Pedicini, sob a suspeita de ceder o casarão em que morava, no bairro da Aclimação, para as “orgias” com as crianças. Levadas para reconhecer camas redondas e espelhos no teto, as crianças não reconheceram nada. Os policiais concordaram em que não houvera a identificação do local e despistaram os repórteres.

No dia seguinte, abastecidos em off-de-record pelo advogado das mães, Artur Proppmair, alguns jornais detonaram os torpedos habituais: “Alunos da Escola Base reconhecem a casa do americano”, disse o Estadão; “Criança liga americano a abuso de escola”, disse a Folha. Note-se que em plena temporada de autocrítica a recidiva foi tão grave quanto a epidemia original. “No dia seguinte, até os delegados estavam indignados com aquela história”, escreveu o jornalista Alex Ribeiro.

Texto do Boletim do Instituto Gutenberg

Cautela na pauta do repórter

Valmir Salaro conta o que aprendeu na cobertura da Escola BaseO repórter Valmir Salaro, da Rede Globo, deu a primeira notícia sobre a Escola Base, abateu-se com o linchamento moral dos denunciados e desde então faz o que o conjunto da mídia deveria fazer: por mais espetacular que seja a notícia e mais eloquente o delegado, Salaro checa antes de divulgar. Mais de uma vez convenceu os chefes de que a notícia era boa mas seu efeito ruim demais para que fosse publicada sem equidade. Mais de uma vez, viu a notícia nos concorrentes enquanto aprofundava sua investigação.Hoje eu sinto muita, muita dificuldade para fazer reportagem policial. Sinto-me usado, me sinto como um carrasco, quando o papel do repórter teria de ser outro; ele teria que fiscalizar a polícia e ajudar a sociedade. Hoje você acaba sendo uma espécie da ponta-de-lança da polícia. Se a polícia apresenta uma pessoa como sendo um “grande bandido”, você acaba embarcando e divulgando essa versão, e muitas vezes prejudica a vida desse suposto bandido que na verdade não passa de um coitado.Recentemente acompanhei o caso de um ex-segurança que acusou a família Matarazzo. Depois o suspeito foi preso e desmentiu tudo. Fiz duas horas de entrevista, sem ele saber, com uma câmera escondida, e não colocamos a matéria no ar. O Diário Popular deu manchete, escrachou a dona Maria Pia; a Veja embarcou na história, o Jornal da Tarde fez matéria de páginas. O caso não teve tanta repercussão como erro da imprensa, mas eu o qualifico como semelhante ao da Escola Base. Acontece que as pessoas que foram denunciadas têm muito dinheiro, e isso acabou não abalando a vida delas. A Maria Pia não se manifestou, e todo mundo já esqueceu a notícia.Teve um caso recente de um promotor de Justiça que fez uma investigação pessoal com base numa informação de um delegado. Segundo a investigação, toda quarta-feira, num restaurante na Marginal, um grupo de políticos, comandantes da PM, delegados, deputados e um procurador de Justiça almoçavam com um homem que seria braço direito do bicheiro Ivo Noal, com um passado na contravenção. A denúncia era muito forte, mas sem prova. Todo esse material veio pra minha mão inclusive com uma fita gravada. A decisão do promotor era mandar apurar. Só que a gente não divulgou porque não tinha uma prova concreta. A rádio Bandeirantes divulgou, o Diário Popular divulgou, o Jornal da Tarde divulgou, o SBT divulgou. Resultado: todos os envolvidos — acho que são 35 delegados, um procurador e oficiais da PM — estão processando a imprensa, porque não ficou comprovado o envolvimento deles com o tal homem. A princípio todos são inocentes.Esses erros estão sendo cometidos todos os dias. Quando eu saio pra rua pra fazer uma matéria fico preocupado: será que vou acertar, vou errar, vou precisar de quatro, cinco dias pra investigar a história, a

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minha chefia vai admitir que eu faça essa investigação durante todos esses dias, a minha concorrência como é que fica? Quer dizer, o repórter hoje está sendo superquestionado, e tem que ser mesmo. Não vejo uma saída a princípio para isso, a não ser reconhecer o erro imediatamente, imediatamente dar o mesmo espaço ou espaço ainda maior para o desmentido, se for necessário. No caso do pessoal da Escola Base eu virei testemunha de acusação contra o delegado. E fiz várias matérias sobre o drama que vivem hoje os seis inocentes.O que estou reavaliando é como vou lidar com essas fontes, em quais fontes posso realmente confiar, e, mesmo confiando, ir buscar outras alternativas para checar a informação, quer dizer, redobrar a minha atenção, ficar sempre atento. O grande mal é a polícia partir do suposto suspeito para esclarecer o crime. Ninguém controla a polícia. É um poder paralelo. Eu fiz uma matéria que me assustou: onze policiais envolvidos com droga, craque e álcool. Imagina os policiais de rua loucos de tanto fumar craque. Qual o equilíbrio que um homem desses tem? Não adianta discutir o jornalismo policial se não discutir esses programas de TV que estimulam a truculência, a violência e a impunidade dos policiais: Aqui Agora, Cidade Alerta, Rota do Crime. Esse tipo de imprensa acaba contribuindo para fortalecer o poder da polícia. As equipes do Aqui Agora chegam junto com a polícia. Um dia desses Rota do Crime pediu pra PM fazer uma batida numa periferia da Zona Leste. Os PMs espancaram todo mundo, mulher grávida, crianças, um absurdo, e foi tudo filmado. Isso era motivo para prender todos, imediatamente, tirar os policiais da rua e tirar esse programa do ar...A corrupção, a prepotência estão enraizadas em alguns setores da polícia. Um suspeito é levado para a delegacia e muitas vezes é torturado para confessar. Você não pode confiar na polícia, nunca pôde e agora menos ainda. Não pode confiar na testemunha, não pode confiar nem na vítima, o que é muito mais trágico. Você não sabe se a vítima está mentindo para se promover, para prejudicar uma outra pessoa. Está difícil fazer jornalismo na minha área. Você lida com a incompetência, a prepotência e a violência dos policiais. Eles acham que têm o poder para tudo, poder do bem, do mal, poder de espancar, torturar, e ficam impunes. O presídio da Polícia Civil está cheio de policiais que roubaram, mas os que cometeram violências físicas, espancamentos, esses não estão na cadeia. Em casos como o da Agroceres isso não aconteceu porque tinha muita gente ali pra fiscalizar o trabalho do delegado, e ele também não era louco de torturar o filho de um grande empresário. Mas eu ficava pensando: se isso acontece na periferia... Um dia o delegado me ligou e disse: — Eu tenho um laudo da Polícia Técnica que comprova que o Frederico, filho do empresário, é suspeito: tinha partículas de metal na mão, indicando que ele matou o pai.A partir daí nós acompanhamos a investigação durante dois meses sem colocar absolutamente nada no ar. Só demos a notícia da morte do dono da Agroceres no dia e demos que a primeira suspeita era de suicídio. Durante dois meses acompanhamos a investigação da polícia, não divulgamos mais nada a partir do momento que eu tive aquela informação do delegado. Roberto Muller era o diretor da TV Globo em São Paulo, falei com ele e ficou acertado: “Tudo bem, não vamos divulgar nada até a polícia concluir o caso”. Acompanhamos o depoimento de testemunhas, do próprio Frederico, tudo. Passamos dois dias no Instituto de Criminalística filmando todo trabalho de recolhimento da prova técnica, o exame residuográfico, que era fundamental na investigação. O perito Osvaldo Negrini foi o mesmo que fez o trabalho na Casa de Detenção, que comprovou as execuções dos 111 presos com um laudo fabuloso que hoje é exemplo de investigação científica no Brasil. Um perito sério e independente. Ele nos mostrou como foi feito o trabalho para coletar as partículas de metal da mão do Frederico. O material foi colocado num equipamento da Polícia Técnica —só existem cinco no mundo — que aumenta 30 mil vezes qualquer coisinha invisível a olho nu. Eles fizeram um laudo detalhado. Nós filmamos fase por fase o trabalho da Polícia Técnica. Os peritos dispararam a arma que o Frederico usou, para colher com um adesivo especial as partículas. Esse material passou para o setor de química da Polícia Técnica, depois foi analisado no microscópio eletrônico, e aí deu o resultado positivo. Com base nisso, o delegado ouviu outras testemunhas, investigou a vida do Frederico, que tinha um relacionamento traumático com o pai. A prova técnica foi fundamental pra me convencer, pra convencer a polícia, o Ministério Público e a Justiça de que ele é suspeito de matar o pai. Se houve intenção ou não, é uma outra discussão. Ele deve ir a julgamento no começo do ano.Pusemos uma matéria no Jornal Nacional, de cinco minutos, com todos esses detalhes da investigação. Na entrevista, o perito diz que com base naquele laudo pode afirmar que o Frederico matou o pai. Ele fala isso mesmo, mas eu repeti a entrevista várias vezes pra ele confirmar que estava dando o depoimento com base no laudo: “O garoto matou o pai.”Eu acho que esse trabalho teria de ser feito com todos os casos policiais. Hoje não tenho dúvida disso. Acho que não se deve divulgar de primeira, como eu não dei notícia no caso dos Matarazzo, como eu não dei a notícia no caso dos policiais, deputados e coronéis que estariam participando de um almoço suspeito, quer dizer, a Globo não deu, as outras emissoras deram, tanto é que estão sendo processadas por “danos morais”.Outro caso interessante foi o do Zezinho do Ouro, que acusou muitos policiais de corrupção. Eu só coloquei no ar o nome das pessoas que consegui ouvir. Ele acusava mais de setenta policiais e eu consegui ouvir acho que cinco ou seis. Esses policiais foram condenados. Eu fiz questão de procurá-los para entrevistar e

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eles disseram que era mentira, invenção do Zezinho do Ouro. Muitos jornalistas que deram a lista toda e estão sendo processados.Estou lembrando três, quatro, cinco exemplos semelhantes à Escola Base, que aconteceram depois da Escola Base, dos quais ninguém tomou consciência. Você sabe que houve um erro mas acaba esquecendo, e se esquece comete outros. A Escola Base vive permanentemente na minha cabeça. É um ponto de referência. Fiz uma matéria na semana retrasada num asilo e pedi pro cinegrafista: “Não quero imagem de rostos, nem das velhinhas nem das crianças, porque é uma segunda violência”. Mostramos as más condições do asilo sem mostrar o rosto de ninguém.” E foram ouvidos os suspeitos. Luís Antônio Giron responde à crítica de "mensalinho" da Veja

Luís Antônio Giron, jornalista das revistas Época e Bravo!

Não fui ouvido por Veja

No Brasil, não vale o ditado "quem não deve não teme". Por aqui, de fato, quem não deve tem muito a temer. Vejam o que acaba de acontecer comigo. Eu, jornalista, com mais de 20 anos de carreira na área cultural, estou sentindo na carne o que muitos cidadãos já sofreram: o ataque calunioso de um veículo poderoso da imprensa e a diferença entre o espaço dado à acusação e o conferido à defesa. Fui vítima do próprio meio em que trabalho. É também uma oportunidade para refletir outra vez sobre o papel do jornalismo e para elaborar uma pequena meditação sobre o jabaculê, ou jabá, que é como a indústria da música chama a propina dada a DJs e a jornalistas em troca de espaço na mídia. Mesmo que minha consciência esteja limpa e eu não deva nada a ninguém, mesmo que minha honestidade continue preservada, tenho tudo a temer. Estou com medo da espetacularização da notícia a qualquer preço, notícia que chega ao leitor sem apuração, sem ouvir o outro lado, criando factóides que não se apóiam na realidade. É a síndrome da Escolinha de Base (a escola e a reputação de seus donos destruída nos anos 90 em São Paulo por uma campanha unilateral da imprensa) aplicada aos intestinos do jornalismo.

O fato é o seguinte: a revista Veja publicou nesta semana – edição 1.925, ano 38 nº 40, datada de 5 de outubro de 2005 – uma matéria não-assinada com o título "O mensalão da filha de Elis". Ela conta como a cantora Maria Rita teria se valido de um expediente típico do jabaculê para divulgar seu novo CD, Segundo. Sua gravadora, a Warner, distribuiu duas ou três dezenas de aparelhos i-Pod shuffle para diversos veículos de comunicação brasileiros. Com isso, a cantora teria obtido matérias em revistas e jornais. Em uma passagem que me toca especialmente, a matéria afirma que a gravadora "matou dois coelhos de uma cajadada", valendo-se do jornalista de Época e colaborador da revista Bravo! – ou seja, eu, Luís Antônio Giron – que ganhou um i-Pod e, em troca, fez dois favores à Warner: "ele escreveu uma matéria simpática na revista e outra mais elogiosa ainda na Bravo!, publicada pela Editora Abril, o mesmo grupo de Veja". Em seguida, afirma que "poucos veículos recusaram o jabá da gravadora".

Ficou evidente que eu não havia devolvido o i-Pod. Mas se trata de uma grande calúnia, pois não apenas devolvi o aparelhinho , sem nem tocá-lo, à assessoria da cantora no dia 15 de setembro, dois dias depois de ter sido entregue a mim (sem que eu pedisse), como não fiz matérias "simpáticas" à cantora. Na matéria da Época, escrevi que Maria Rita "fracassa" ao tentar fugir da influência dos pais. Na da Bravo!, fiz uma reflexão em estilo de improviso sobre como não consigo ouvir Maria Rita com ouvidos inocentes. De fato, para mim, é impossível ouvi-la sem pensar na mãe. Portanto, as duas matérias, cada uma para um fim, trataram criticamente e de forma independente em relação ao CD. Para a Época, fiz uma entrevista. Para Bravo!, uma "pensata" crítica. E, outra vez, devo dizer que o aparelhinho com valor médio de R$ 240, enviado a título de material suplementar aos jornalistas (o preço de uma caixa de 6 DVDs ou de muitos outros materiais enviados à imprensa a título de divulgação, sem caracterizar o jabá, como veremos adiante), foi devolvido gentilmente à Warner. Achei que não era lá muito justo receber um objeto do desejo de consumo, mesmo que sem nenhum tipo de obrigação, embora não gostasse de causar qualquer constrangimento à gravadora com algo que soasse como uma desfeita. Consultei o Diretor de Redação de Época, devolvi o aparelho à assessoria da Warner e fiquei tranqüilo.

Não devia dar qualquer satisfação sobre isso. Mas, pelo jeito, nada disso tem importância. O fato mais importante no caso dos redatores da reportagem de Veja foi que nem sequer tomaram o cuidado de me ouvir, ou seja, conferir o famoso "outro lado" da investigação. Ao não fazer isso, incorreram em erro e praticaram uma calúnia, ao dizer que o jornalista de Época reteve o aparelho. Fiquei sabendo do caso ainda na sexta por meio da diretoria de Bravo!. Fui informado que dois velhos amigos meus trataram de produzir a peça acusatória: um repórter de música que trabalhou no Notícias Populares na época do escândalo da Escola de Base e com quem tive ocasião de conviver fraternalmente em várias ocasiões e o redator-chefe de Veja, velho companheiro dos tempos de Folha e pessoa a quem devoto o maior respeito e admiração.

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Bom, dirão os incautos, com amigos assim a gente não precisa de inimigos. Pois, na sexta-feira 30 de setembro, passei o dia tentando falar com eles, ligando para a redação para que a matéria fosse corrigida. Eu havia devolvido o i-Pod. Depois de muito esforço, Martins me ligou para se desculpar, afirmando algo como "não sou policial, não tenho nada a ver com isso, foi matéria encomendada". Mas, Sérgio, porque você não ligou para mim ao menos para saber se era verdade? Não ligou, disse, por vergonha. Tentei contactar Sabino o dia todo, sem sucesso. No final da tarde, Veja disse que a matéria estava fechada, sem possibilidade de correção. Sem saber do que se tratava, pois não me mostraram o seu conteúdo, escrevi uma carta à redação me defendendo.

A carta saiu espremida na última página das cartas, evidentemente cortada na parte em que digo que Veja não me ouviu. Transcrevo aqui o e-mail original (grifando o que não saiu):

"Prezados Senhores,

Quero esclarecer que o aparelho i-Pod, enviado para os jornalistas de música dos principais veículos da imprensa, inclusive para mim, colaborador da revista Bravo e editor de Cultura da revista Época, foi devolvido à assessoria de imprensa da cantora Maria Rita, intacto.

Meu trabalho como crítico sempre se pautou pela independência e jamais aceitei qualquer tipo de oferta em troca de minha liberdade de opinião. Mais: minha atitude me foi prejudicial em muitas ocasiões".

Não fui ouvido por Veja.

O CD Segundo (Warner) de Maria Rita é de ótima qualidade e a cantora obteve na imprensa o espaço que lhe é merecido. Exijo que este esclarecimento seja publicado na edição atual. Caso contrário, tomarei as medidas legais cabíveis."

O fato é que acabei servindo aos propósitos da Veja, que estampou o texto para se resguardar de um possível processo. Eu tentei me defender no escuro, pois não me foi dado o direito de ler a reportagem. E Veja não ouviu o outro lado, não me procurou para saber a verdade. Além de ferir uma regra do jornalismo, os jornalistas que não tiveram coragem de assinar o nome cometeram uma atrocidade, caluniaram um colega, sob pretexto de denunciar um jabá que não existiu. A defesa, como sempre, é bem menor que a acusação. Com amigos assim...

Arrisco afirmar que a Veja atuou dessa forma inescrupulosa, chamando essa ótima cantora de "filha de Elis" e omitindo autores, porque, em 2003, segundo fui informado, a revista, como é de seu hábito, exigiu exclusividade sobre a matéria e a entrevista. Não obteve o privilégio, pois Maria Rita teve o bom senso de manter a democracia da informação. Com a negativa, a revista publicou apenas uma nota sobre o primeiro CD, que se tornou o maior fenômeno da MPB naquele ano, tendo vendido 700 mil exemplares. Agora, com o segundo CD, a Veja resolveu retaliar a cantora com uma matéria supostamente de denúncia. Atingiu a reputação da cantora e dos jornalistas de outros veículos. Tudo para figurar como isenta.

A prepotência dessa revista de grande circulação é já antiga. Várias personalidades do mundo cultural já foram vítimas de seus ataques irracionais. Mas jamais esperaria tamanha destemperança. Primeiro, porque Maria Rita, ótima cantora, não precisa distribuir i-Pod para jornalista. Seu valor como intérprete é suficiente para ocupar os espaços que merece. Segundo, porque a questão do jabaculê é muito outra. Jornalistas de cultura vivem recebendo produtos de gravadoras, distribuidoras e recebendo convites para viagens e outras mordomias. Isso não configura corrupção, se o veículo e o jornalista deixam evidente que a posição do veículo e do autor são invendáveis. Em geral, recebemos material de trabalho. Recebe centenas de livros, CDs e DVDs que são ruins e descarto – nas chamadas "feirinhas" da redação, quando tudo isso é distribuído. No Natal, parte desse material é doado para crianças pobres. O material acaba sendo útil de alguma forma. E guardo muito CD, DVD e livro que recebo. Minha obrigação é ser claro na opinião e honesto com o leitor. A gente chama de jabá por brincadeira o material recebido – mas ele é bem-vindo e útil. Empresas jornalísticas não têm como bancar tudo quanto é produto.

Jabaculê mesmo é outra coisa, é o ato de corrupção de uma gravadora, interessada em promover uma música ou um artista, realizado em associação com emissoras de rádio, que exigem um dinheiro alto para executar faixas de música. Nada a ver com o i-Pod mandado aos jornalistas. Apesar de entender o gesto da gravadora, tratei de devolver porque seria reter um aparelho que não se esgota no produto – no caso, o CD Segundo, de Maria Rita. Houve jornalistas que receberam o i-Pod, ficaram com ele e falaram mal do CD de Maria Rita. Não vejo problema nisso. É uma questão de opção e consciência crítica. E a crítica tem que se pautar pela independência, como sempre me pautei. Jabaculê mesmo é coisa séria. E nunca testemunhei jabaculê real em redações de jornais e revistas onde trabalhei.

Page 7: Justiça Condena TV Globo a Indenizar Donos Da Escola Base

O patrimônio do jornalista é o seu nome. Considero obviamente inestimável o valor do meu nome; jamais me vendi por um prato de lentilha, um aparelho de som ou mesmo por qualquer quantia. A calúnia de que fui alvo deverá ser reparada. Sinto-me como aqueles donos da Escola de Base, que não tiveram como se defender da sanha da grande imprensa. No meu caso, tudo vai passar, porque a verdade irá prevalecer sobre a calúnia. Quem não deve pode temer, mas precisa ir à luta. Estou pronto para polemizar mais uma vez. Até onde a grande imprensa pode avançar em supostas denúncias sem consultar as fontes, em nome de razões oculltas que o público desconhece? Calúnia continua sendo crime ou a imprensa tem o direito de fazer o que quer em nome do espetáculo?