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Número 2 do jornal KK - Jornal de Crítica

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  • 2 K Jornal de Crtica

    Endereo: Rua Dona Ana, 10 A V. Mariana So Paulo CEP 04111-070.Contato: [email protected] texto de K Jornal de Crtica pode ser reproduzido sem a prvia autorizao, por escrito, de seus editorese/ou autores. As crticas e artigos assinados so de total responsabilidade de seus autores, no expressandonecessariamente a opinio dos editores.Edio de julho de 2006 Tiragem: 2.000 exemplares Distribuio gratuita.Confira edio anterior em www.weblivros.com.br/k

    K um jornal mensal de crtica literria em suas mais diversas formas: resenhas, comentrios, notas, ensaios, entrevistas,debates. Seu amplo corpo editorial guiar os trabalhos a partir de suas mltiplas preferncias, descobertas e apostas,sem temer contradies. Como lema, a mxima de Kafka: Tudo o que no literatura me aborrece.EDITORES: Carlos Felipe Moiss, Eduardo Sterzi, Fabio Weintraub, Franklin Valverde, Heitor Ferraz, Manuel daCosta Pinto, Reynaldo Damazio, Ricardo Lsias, Ricardo Rizzo, Tarso de MeloEDITORES DE ARTE: Regina Kashihara, Ricardo BotelhoJORNALISTA RESPONSVEL: Franklin Valverde MTB 14.342

    Transposio barroca da luz: lucidez

    RICARDO RIZZO

    Em seu livro sobre Leibniz (A Dobra Leibniz e o Barroco, trad. de Luiz B. L.Orlandi, Campinas: Papirus, 1991), GillesDeleuze repara na especificidade da luzbarroca: um novo regime da luz na pintura,que substitui o fundo de gesso ou giz porum fundo sombrio marrom-vermelho, apartir do qual, recobrindo-o, barrocos comoTintoretto e Caravaggio constroem as co-res, inclusive o branco. Como no mundo dasmnadas de Leibniz, a treva o ponto departida, e a luz apenas penetra por fendasno interior sem janelas da cmara escura,como que reconhecendo o limite cujatransposio est vedada, e detendo-se nele.O branco, a, concentrao dessa luz fini-ta que separa blocos de treva, um grandenmero de pequenos espelhos refletores.No regime esttico do barroco, a luz modu-la-se em concavidades e convexidades, in-dicando o ponto de incidncia das divisesentre o alto e o baixo, o interior e exterior.Para Deleuze, as figuras barrocas, por con-seguinte, definem-se mais pelo recobrimen-to que pelo contorno, o que explicita o modode emergncia do mundo objetivo e suarepresentao a partir de uma treva basalque totalidade e unidade em si mesma.O contorno estranho ao objeto: est dadodesde antes, como se a figura j existisse nomesmo plano que o fundo. O recobrimen-to, por seu turno, concentrao de luz,textura, ndice permanente do esforoque faz o volume para vir tona do visvel.

    Muitos dos temas da poesia de OridesFontela podem ser relacionados com esse

    possvel flagrar essas passagens barrocas,na forma especfica que elas assumem nopercurso de Orides. O Poema II (p. 24),do livro Transposio, funciona comoenunciao do princpio que tentamos aquidelinear: Ser em espelho / fluxo detido /ante si mesmo // lucidez. O movimentoessencialmente barroco da forma, entreascenso e queda, toma como refernciametafrica um dos elementos mais centrais

    na teia simblica de Orides, a gua: A guafragmentada ascende / em brancura din-mica / e no pice de si constri o arco / deque permanentemente cai / regressando unidade de seu ser (Figuras, p. 126).

    A esse respeito, a reflexo de Oridessobre a forma situa-se no entrecruzamentoentre contemplao e inferncia nunca apenas descritiva, mas comporta o tempotodo um raciocnio esttico, assentado emestruturas sonoras e rtmicas que se desdo-bram em quebras e continuidades: a luzda forma um nico / pice, lemos emAurora (II) (p. 98). de se notar, ainda,que a dobra em Orides no simples parti-o, seco do verso. Como na dobra bar-roca, que tende ao infinito e obsesso,a palavra em Orides est sujeita a flexescontinuadas, a dobras que somam, supri-mindo a distncia semntica por meio dearticulaes retesadas pela fora de atra-o de dois ou mais ncleos de sentido. Aspalavras dobradas, como vidaluz, uni-versofluxo, cantoflorivivncia, novi-fluente, olharamor, deixam reconhec-veis as arestas pelas quais possvel refazero caminho da justaposio. Por conseguin-te, como mbiles, os poemas de Orides ad-quirem movimento em funo dos prprios

    engates pnseis que os estruturam, brincan-do com a distribuio do peso. Bela met-fora desse movimento que no disperso a do girassol: Variando de horizonte /porm sempre / audazmente fiel / fitando aluz intensamente (Girassol, p. 50). Ojogo com a posio dos advrbios repro-duz a oscilao do centro de gravidade daflor essa outra idia-fora em Orides em funo da posio do sol, o guia quecega e ao mesmo tempo faz florescer.

    No por acaso, no poema intituladoQuadros (II), ainda de Transposio,encontramos a explicitao desse racioc-nio esttico cuja matriz a luz barroca: Umndulo cego / e a luz destacando-o / numespao total / vivo e infinito // Um ndulocego / e a luz contornando-o / luz densagerando um plano / cruel e ntido. (p. 25).A referncia a opacidade cega da ma-tria, funo da luz que ora a destaca, oraa contorna, mas sempre a retira das trevas.Ao final de cada estrofe introduzem-se ele-mentos valorativos o espao vivo, oplano cruel. A sutil adjetivao confereespessura operao da luz; o saldo nunca neutro, porque a nitidez do objeto, assimcomo a lucidez do sujeito, crueldade.A experincia esttica registra o sofrimen-to da claridade, duplo do prazer e do encan-tamento: Lminas sob a luz / como senti-dos (em Fronde, p. 53).

    Da mesma maneira, a existncia, de ummodo geral, beira o insuportvel, sempreextrema. A tal ponto que a humanidade dascoisas necessariamente uma suavizao dasua presena bruta no mundo: O ao nodesgasta / seus espelhos mltiplos / curvas /arestas / apocalptica fera. (...) // forma/ violenta pura / como emprestar-te algo/ humano / uma vivncia / um nome?(Escultura, p. 85). Essa violncia replica-se na fora da sugesto, no forte componenteplstico das imagens. No poema Impres-ses, lemos, como se nos deparssemos com

    Poesia reunida [19691996], Orides Fontela. SoPaulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.(Coleo s de Colete; v. 12); 376 p.

    esforo barroco de delimitao do objetopela conteno ou derramamento retidoda luz. No que o claro-escuro seja umjogo adstrito ao barroco, nem que Oridesseja, ao sugeri-lo como mecanismo semn-tico, uma poeta barroca. Mas as relaesentre luz e lucidez, to constitutivas douniverso referencial de Orides, fixaram-sede maneira decisiva para a histria da artee da cultura no barroco plstico e mesmofilosfico, elucidativo, alis, das dilacera-es de um esprito de poca essencialmen-te moderno, cindido entre a reposio decrenas em torno da unidade (ltima ema-nao do classicismo) e os expedientesnecessariamente dessacralizantes do esp-rito cientfico. Na poesia de Orides, a pro-fuso de espelhos, da luz detida que tornaquase insuportvel a existncia dos obje-tos, da gua como metfora da unidadeque se derrama contendo-se, sem face,das asas como equipamentos de liberdade,da captura do ser na experincia da forma,revelam a fora com que a poeta experi-mentou, a seu modo, transposies barro-cas do sentido e do lugar do homem entreo extremo da experincia sensvel e a fini-tude que se resolve em silncio.

    Conciso que imita a luz: poderosa edetida. Apenas o verso curto, quando o, mas a sugesto de sentido imensa, pro-longa-se semanticamente e nega a concisocomo substituio vlida ou sequer neces-sria de um equilbrio perdido. O fabul-rio da poeta bastante eloqente nesseaspecto: longe de filiar-se a uma espciede tica protestante do trabalho potico,Orides muito mais apaixonadamente oregistro de revelaes que se do na mate-rialidade da linguagem, mas se ligam a gran-des experincias dalma o vo, o espan-to, a lucidez que apreende os limites darazo, alucinando-se. Indo de um plano aoutro, da textura e das dobras do poema transposio da experincia em sentido,

    Orides muito maisapaixonadamente o registrode revelaes que se dona materialidade da linguagem

  • K Jornal de Crtica 3

    TARSO DE MELO

    Antes que um sebo me concedesse agraa de encontrar o to famoso quantoraro Trevo (lanado em 1988 pela editoraDuas Cidades, na coleo Claro Enigma),que rene os quatro primeiros livros deOrides Fontela, chegou s estantes suaPoesia reunida [1969-1996], na generosacoleo s de Colete (Cosac Naify/7Letras).E este no um fato qualquer no notici-rio da poesia brasileira.

    No bem por obra do acaso que huma relao inversamente proporcionalentre a fama que alguns poetas atingem ea escassez de seus livros. Por aqui, ao me-nos, muito comum um poeta digamos destaque no ter livro algum acess-vel, seja nas livrarias (que no tm muitacoisa), nos sebos (em que viram fetiches,com preos correspondentes) ou nas bi-bliotecas (em que no chegaram ou se per-deram). Para ficar nos casos mais recen-tes, era assim, por exemplo, com a obrade Mrio Faustino, Cacaso, Torquato Netoe Francisco Alvim, o que foi recentementeresolvido. Mas ainda h um amplo lequede autores, sobre os quais ouvimos as me-lhores referncias, cujas obras so moscabranca: quem v por a Caprichos &relaxos de Leminski? E Um por todos doJos Paulo Paes? E Obra em dobras do Se-bastio Uchoa Leite?

    Orides Fontela era, certamente, umadessas vtimas do abastecimento excntri-co de nossas livrarias e bibliotecas. Vocsabia que ela era lida e elogiada, desde aestria, por leitores de peso, percebia suafora num poema de antologia, podia as-sistir a um longo e timo documen-trio sobre ela, mas nada de encontrar seuslivros, inclusive para poder verificar se afama era justa. (Eu, por exemplo, chegueia encontrar a prpria Orides, em pessoa,sem nunca ter encontrado Trevo...)

    Agora, que temos toda a Orides nasmos, podemos conhec-la diretamente.Da biografia, apenas para situar, rele-

    o objeto exposto em uma galeria: Cubo /de metal opaco / Deus (p. 79).

    Vizinha vivncia do extremo est aquebra. Pode-se argumentar que a quebra a dobra especfica de Orides ela dobraat quebrar. uma fixao do momentoexato em que a matria cede s foras des-medidas que a sua prpria existncia desen-cadeia gravidade, opacidade, giro, pre-sena. Muitos poemas de Orides registramo acmulo dessas foras, cada estrofe acres-centando uma tenso ou um torque a mais,seja despetalando a flor at a intuio dofruto ou girando o caleidoscpio at que-br-lo. A quebra constitui, ademais, o atoldico por excelncia: Quebrar o brinquedoainda / mais brincar (Ludismo, p. 19).No fundo da operao barroca de Oridesreside um princpio de rebeldia que cons-purca o branco construdo trata-se doldico extremo, forma que termina assumin-do a violncia experimentada na ruptura,no transbordamento do sangue, esse outrolquido que, derivado da gua, passou pelocorpo e est carregado de urgncia: Branco/ sinal oferto / e a resposta do / sangue: /agora! (Alba, p. 148).

    A luz barroca de Orides , portanto,lcida e ldica, porque revela cruamente oobjeto e o destri. Para alm do jogo depalavras, o lcido e o ldico constituem viasde passagem para um estatuto do homemdiante da experincia, do conhecimento, daliberdade, que no recua um milmetro daintensidade plena, vivida na precariedade:A luz demais para os homens, porquedestri os segredos (em Meio-dia, p.34). Destruindo segredos, quebrando brin-quedos, caindo de seu arco, atravessandoa gua ou deixando-se atravessar pelo san-gue, a luz de Orides a chama exausta,que sua prpria luz consome, e vai florin-do (p. 263). Se h uma Casa lcida, habi-tada / de denso vazio vivo, com altas ja-nelas cerradas (p. 262), a luz a invasoque inaugura a experincia da forma. Nacmara barroca, escurssima, como quepreparada precisamente para essa invaso,a experincia conquistada com esforoldico, com violncia, quase com avidezpela mesma luz que, construindo o bran-co, toma partido pela vida a mesma vidaque impossvel, cruel, urgente, assusta-dora: O branco branco apenas. Sem re-fgio / insistimos na luz. A luz constri / aflor em ns (sua roscea branca) (p. 267).Insistir na luz sem fuga a apostaradical e lcida de Orides, renovada emmais de trinta anos de produo potica, acada florao.

    Ricardo Rizzo poeta e ensasta, autor de Cavalo mari-nho e outros poemas (Nankin/Funalfa).

    vante dizer que Orides de Lourdes TeixeiraFontela nasceu em 1940, em So Joo daBoa Vista, e morreu em 1998, em Cam-pos do Jordo. Filha de operrio e dona-de-casa, Orides veio para So Paulo nofinal dos anos 1960, onde estudou filo-sofia na USP e trabalhou como bibliote-cria e professora. Publicou os seguinteslivros: Transposio em 1969, Heliantoem 1973, Alba em 1983, Roscea em1986, Trevo (que rene os anteriores) em1988 e Teia em 1996.

    Uma primeira constatao diante dareunio da poesia de Orides de que seuslivros formam um conjunto bastante har-mnico, at surpreendentemente harmni-co se considerada a alimentao aleatriae autodidata que, segundo a prpriaOrides, est na sua base. A poeta que pu-blicava sonetos nos jornais de sua cidadenatal no aparece nos livros: no primeirolivro de Orides sua potica j est forma-da e, da em diante, mesmo quando ofere-ce algum alargamento nos temas, Orides apoeta que a um s tempo tende ao sublimee desconfia dele, como boa proletria.

    Ao colocar sua poesia num esforo paraassumir o pessoal e o concreto, isto ,

    condensar as abstraes e apresent-lascomo imagens, se possvel exemplares,como declarou nos anos 1980, Orides nose perdeu. Na sua inclinao para o zen-budismo ou na negao de sua condiode pobre como tema potico (a poesia ditasocial no um tema para proletrias au-tnticas [...] aos burgueses fica bem escreversobre os pobres, mas quem pobre quer fugir at do tema), Orides sempre mante-ve a preciso e a eletricidade, como afir-mou Davi Arrigucci Jr. sobre seus versos.

    O mesmo Arrigucci, por outro lado,afirma que, na recorrncia do instant-neo lrico forte, por vezes Orides se per-dia e sua escrita estagnava, tornando can-sativos os prprios tpicos que a distin-guiam. provvel. Mas, ao cerrar fogosobre os elementos que amarram toda suaobra (ser, forma, equilbrio, absoluto,pssaro, essncias), durante mais de trsdcadas em que escreveu, Orides, se noinova com relao a si mesma, se no sereinventa, sempre fortalece a sua poesiacomo um todo. Seu bater na mesma te-cla nunca se d como acomodao, comoopo por aquilo que j est dominado,mas, pelo contrrio, um reacender doselementos que, na sua viso de mundo, soinevitveis, insubstituveis teia inten-samente prenhe.

    Orides no a nica poeta que sai be-neficiada por uma leitura que suponha quetodos seus poemas compem um mesmo(e, no caso dela, no to longo) poema.O fio que une vida e poesia em Orides,como aquele que une tudo por dentro desua vida e de seus poemas, est completa-mente emaranhado. Pensar sua poesia comrelao de seus contemporneos, porexemplo, expe uma trilha nova para ahistria recente de nossa literatura. Pen-sar o acento filosfico de sua poesia, oenfrentamento da tradio potica, a bus-ca do absoluto no contingente, tudo issofaz Orides crescer. Contudo, estranha-mente, Orides sai muito bem de casa semtoda essa parafernlia!

    Ler sua poesia toda, poema aps poe-ma de 1969 a 1996, pode cansar, talvez,pela recorrncia, quase renitncia com quecerca algumas palavras. A janela diminutaque ela constri fruto de um obstinadomergulho no detalhe, no mais ntimo desuas escolhas. Se h algum ponto em que possvel transpor o abismo entre palavra ecoisa, entre poesia e real, Orides tentalevar o leitor at l: Eu assassinei a pa-lavra / e tenho as mos vivas em sangue.Agora, enfim, podemos acompanh-la.

    Tarso de Melo poeta, autor de Planos de fuga e outrospoemas (Cosac Naify).

    Toda palavra CRUELDADE

    Orides: ser, forma, equilbrio, absoluto, essncias

    DIVU

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  • 4 K Jornal de Crtica

    HEITOR FERRAZ

    Em 2000, o poeta Francisco Alvim lanou Elefante.Ele estava h doze anos sem publicar e o seu livro era bas-tante esperado. Seus poemas j vinham circulando, isolada-mente, nas pginas de revistas literrias, mas ainda faltavao livro, quando os poemas deixariam de falar sozinho efalariam em conjunto, na tenso que h muito caracterizaas montagens de seus livros, variando registros objetivos,recolhidos de falas annimas, e o registro subjetivo, dolirismo possvel.

    Para lanar o livro, o poeta esteve em So Paulo. Massua passagem foi rpida. Chegou na vspera, matou a sau-dade de alguns amigos, lanou o livro no dia seguinte e foiembora para o Rio de Janeiro. Quase no teria tempo paraentrevistas longas. Mas, mesmo assim, ele encontrou umabrecha no dia e pude me encontrar com o poeta, na casade um dos seus amigos, onde estava hospedado.

    Pelo relgio, teramos menos de uma hora de conversa.Era pouco tempo, j que eu chegava com uma cadernetacheia de perguntas. Naquele momento, estava justamentepreparando minha dissertao sobre sua poesia e queriaaproveitar sua presena na cidade para tirar dvidas, parasaber um pouco mais sobre seus livros, sobre a confecode cada um deles, sobre sua histria familiar e sobre sua ligao com a poesia dos anos70, no pas. A conversa correu solta, tranqila, e fui esquecendo meu questionrio(quase uma argio!). Nem vi a tarde passar e o relgio bater seis horas, horrio queo poeta deveria seguir para a livraria da Vila, na Vila Madalena.

    Por que publicar, tanto depois, a entrevista que se segue? Hoje, certamente, Alvimteria muito mais coisas a dizer. Atualmente, ele est na Costa Rica, vivendo outra rea-lidade, outra paisagem. E sabemos que isso influi em sua poesia, principalmente navertente mais subjetiva: a paisagem local sempre conta. O jogo de luz e sombra vazapelos versos (um bom exemplo o poema indito Alegria, que o poeta e futurodiplomata Ricardo Rizzo ganhou de Alvim e trouxe para K). Porm, com Elefante ea nova edio de sua Poesia completa, a obra de Alvim ganhou maior visibilidade,passou a influenciar muitos outros poetas e a ser amplamente discutida e comentada.Nesta entrevista, feita com objetivos pragmticos, ou seja, de tirar dvidas de um estu-dante universitrio, Alvim fala sobre sua relao com a natureza e a tenso que surgeentre uma poesia contemplativa e outra que trabalha com o registro de uma ideologiacristalizada na fala cotidiana. Ambas como faces de uma mesma moeda, gerando ten-ses no interior de suas obras que figuram a nossa prpria realidade.

    K: Voc nasceu em Arax, em 1938. Voc passou a infncia l?Alvim: No, eu sa de Arax com dois anos de idade. Eu no tenho a menor memriada cidade de Arax. Minhas primeiras memrias esto todas ligadas ao Rio. Nos anos40, morvamos beira-mar, no Leblon. Tenho uma impresso muito forte do mar,daquela estradinha a Niemeyer e dos azulejos do banheiro do nosso apartamen-to. Lembro disso com enorme clareza, porque os azulejos repetiam um pouco as coresdo mar. De 1940 a 47, ficamos no Rio, morando em vrios bairros: em Laranjeiras,depois mais tempo em Copacabana. Em 1947, com a redemocratizao do pas, meupai foi para Minas Gerais, trabalhar no governo do Milton Campos. Moramos de 1947a 53 em Belo Horizonte. Em 1953, quando eu estava com 12, 13 anos, voltamos ao Rio

    Esfacelamento do sujeito lricode Janeiro e l fiquei at sair para o exterior, aos 30 anos, jformado. Mas minha famlia se manteve muito ligada vidada fazenda. Meu pai, j urbanizado, sempre exercendocargos pblicos no Rio de Janeiro ou em Belo Horizonte,nunca deixou de ir fazenda. A realidade da famlia demeu pai e de meus tios girava muito em torno daquelasfazendas que eles conservaram.

    K: Em vrios de seus poemas surgem imagens desse uni-verso da fazenda. A ltima parte de seu primeiro livro,por exemplo, se chamava Fazenda e era composta depoemas mais contemplativos.Alvim: verdade, isso j aparece ali. Essa coisa da natureza,uma certa contemplao que a minha poesia teve e foiperdendo para prejuzo meu era uma coisa pacificado-ra. Numa certa medida, ela foi se tornando cada vez maisconflitiva. O sentimento de apaziguamento, que a naturezame trazia, vinha muito dessa relao com a fazenda e tam-bm com as memrias e com histrias que meu pai contava.Ele era um grande causeur, um contador de histrias. Tinhauma imaginao fulgurante.

    K: Voc falou que os poemas contemplativos comearam a perder espao para esseoutro tipo de poema. Voc poderia explicar esse processo em sua poesia?Alvim: Eu recuso um pouco esse tipo de coisa e sinto muita falta desses outros poemas.Luto para mant-los tona. Antes, esses poemas vinham impregnados de um sentimen-to de natureza, de uma fuso com a natureza no que os mais atuais tenham perdidoisso, mas eles so cada vez mais menos numerosos e, em alguma medida, de minhaprpria vivncia. No sei se isso est nos textos, mas havia ali a minha vivncia ante-rior, no espao. No sei se seria capaz de dizer com alguma clareza aquilo que eu sinto,mas como se fosse um espao de poesia interna, alguma coisa que ainda no est nonvel da palavra. uma espcie de matriz de sensibilidade, de percepo, muito ligada memria, inclusive desses lugares: da fazenda, da natureza, do Rio, da descida. Na-quela poca, quando ainda morava em Belo Horizonte, lembro-me que o tempo que selevava da fazenda, na Zona da Mata mineira, ao Rio, era muito longo. Hoje voc fazessa viagem em duas horas e meia, mas naquela poca eram de seis a sete horas. A gentevinha por Petrpolis, por aquela estradinha ajardinada de Petrpolis, com serras incr-veis. Entrava nos tneis e de repente saa naquele azul. Ento, esse contraste de paisa-gens durante muitos e muitos anos me acompanhou. De uns anos para c, essa intensi-dade tornou-se menor. Os meus poemas contemplativos no mergulham mais nessalinfa. Acho que eles esto fora, mesmo que eles tenham alguma coisa, alguma ligao,no plano da linguagem, com aqueles planos anteriores. Na realidade, acho que a matrizdeles no tem a mesma unidade. uma coisa distinta, diferente. Eu no sei se a idadeinflui nisso. Um certo lado esse outro lado da histria, da historicidade foi dealguma maneira corroendo esta parte de minha poesia, acentuando-se com enormepesar para mim, porque esses poemas eram uma rea de repouso.

    K: Em Sol dos cegos, percebe-se uma voz solitria se quebrando, tentando, com dificul-dade, olhar para fora. Voc poderia falar sobre esse seu primeiro livro?Alvim: Sol dos cegos reunia treze anos de poesia. Os poemas mais remotos so, portanto,

    Entrevista com Francisco Alvim

    O poeta Francisco Alvim durante encontro literrio em Parati

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    A L E G R I A

    Borboletas desaparecemno poroNa sala enormeflores se expandemem meio a vozesalegresGuirlandas de ar,de floresBasta tocar uma delas um sonhopara que de cada florsurjam de novoas borboletasa voarseu vo de papelna alegriado ar

    POEM

    A I

    NDI

    TOde 1955. Eu devia ter uns 17, 18 anosquando os escrevi. Mas nunca tinha meocorrido isso que voc disse. Acho que uma observao muito interessante, so-bretudo naquela segunda parte do livro,Paralaxe, e no poema anterior, Cor-po, que fala do nibus. Aquilo j umaantecipao, de certa maneira, do que euqueria fazer. Sempre via Sol dos cegos deforma bastante superficial, pensando maisnas influncias. Eu o considero uma esp-cie de caderno de estudos do modernistatardio. As influncias esto todas ali, muitontidas. Mas confesso que gosto muitodessa observao que mostra a individua-lidade nascendo.

    K: E Passatempo, o que ele representa emsua poesia?Alvim: Para mim, ele tem uma importn-cia muito grande. Foi um livro j disseisso vrias vezes que se escreveu. Eu nome sinto autor dele. Ele mais ou menos seimps, no seu tom, no seu ritmo.

    K: O livro dividido em duas partes. Naprimeira, escrita na Frana, as falas umamarca de sua poesia de hoje j come-am a aparecer.Alvim: J. Foi ali que isso surgiu, com ano-taes. Nesta poca, estava lendo a poesiado Pound. Estava interessado nas perso-nas. Mas tambm havia uma coisa ante-rior. Lembro-me de que uma das resistn-cias que a minha poesia armava, de per-cepo, estava ligada a uma coisa que oMrio Faustino e os concretos falavammuito. Eu acompanhava apaixonadamen-te aquelas discusses que eles mantinhamno Jornal do Brasil. Eles tinham uma vi-so da subjetividade que, instintivamen-te, eu sentia que no me favorecia. Aomesmo tempo, eles chamavam atenopara coisas que realmente eram interessan-tes, ou seja, eles falavam do sujeito lricogasto, ultrapassado na enunciao subje-tiva, na enunciao do eu. Acho que essasvozes na minha poesia partiram dessa ne-cessidade. Lendo Pound, eu via um poucoesse esfacelamento. Ao mesmo tempo, ti-nha de manter as vozes, achava que eraessencial. No concordava com eles de queera preciso eliminar o eu, nem dar s coi-sas uma voz prpria. E, ao mesmo tempo,sentia que tinha de encontrar outras vias.Assim, as vozes foram se armando. Noinventei a roda, aquilo j estava em Ban-deira e em Drummond. Era s olhar paraesses referenciais e se fortalecer com eles.

    K: Depois deste livro, veio Dia sim, diano, com Eudoro Augusto. Como foi aexperincia de fazer um livro junto com

    outro poeta, deixando de lado o estatutoda autoria?Alvim: Isso foi uma coisa muito boa edevo muito ao Eudoro. Estvamos mo-rando em Braslia. Eu j estava h muitotempo longe do Rio de Janeiro. Aquelaexperincia mais direta com a poesia dosanos 70 durou poucos anos. Uns quatroou cinco anos, no mximo. Estvamosbastante exilados em Braslia. Nessa po-ca, o pessoal de l estava ouriado comaquela histria dos marginais, e houve umgrupo que se organizou em torno de umCentro de Criatividade, fazendo eventosque reuniam artes plsticas, teatro e poe-tas da cidade. Eles tinham um projeto depoesia muito distinto do nosso. Achva-mos que no havia mais clima para aqui-lo. Ento, eu e Eudoro engatamos nesseprojeto. Fiquei meio desanimado, poisachava que os meus poemas no estavambons. Eudoro tinha mais confiana nospoemas dele. Ele acabou me animando,me empurrando. Gosto muito desse livroe acho que nele e exatamente isso a autoria se desfaz. Coloquei o livro naedio de Poesias reunidas, da coleoClaro Enigma, exatamente como foi pu-blicado originalmente. O precedente quehavia, na nossa histria, era Tnica in-constil, do Jorge de Lima e Murilo Men-des. Quando eles fizeram as obras com-pletas, eles dividiram, separaram os poe-mas que eram de um e de outro. A minhaprimeira tendncia foi essa. Mas fui meconvencendo que aquilo era um todo eno podia ser separado. O diabo queem algumas ocasies foram citados, comoexemplos da minha poesia de qualidade,os poemas do Eudoro Mame, porexemplo, foi publicado numa antologiafeita por dois autores ingleses como sefosse de minha autoria...

    K: A luta um tema constante em suapoesia. O que ela significa para voc?Alvim: Isso uma coisa muito esquisita eno sei se teria condies de dar uma res-posta. Isso me preocupa, pois uma cons-tante enorme, com brigas entre mulhere homem, entre amigos, entre irmos.Gosto particularmente de O que foi dele?[Ns no brigvamos/ Combinvamosdemais], que esconde uma mgoa, um de-sentendimento. aquela coisa da desaven-a, mas no sei a que atribuir isso. umadas componentes de desarmonia, de falta,de um conflito permanente que est fora eque entra dentro de voc; so os medos,as raivas e tudo o que a briga representa. algo alm da ratio, algo que voc j nocontrola. O sentimento de frustrao e deinfelicidade de tal ordem que a luta

    um pouco isso: a manifestao concretada situao de infelicidade. H tambmas pequenas brigas, que so a falta deconsiderao, de sensibilidade, a carnciaabsoluta de falta de referncia. So tam-bm resultados da infelicidade. Voc pr-prio, quando est mergulhado num marde infelicidades, encontra na briga a sadadesesperada. Um amigo meu disse certa vez no sei se tem ligao com que estamosfalando que para o brasileiro tudo derepente desandava, como se tivesse umapecinha que de repente saa do lugarAcho essa uma idia muito cruel noapenas na subjetividade, que acaba te pe-netrando , mas desde menino convivocom esse sentimento de medo e de raivaque o pas sempre me causou. Medo e rai-va so os elementos que levam briga, anulao do outro ou auto-anulao,pois ningum sabe quem vai ganhar.

    K: Em sua poesia, nota-se que voc re-cupera uma vertente da poesia moder-nista brasileira, que voc explora, porvias tortas, o chamado poema-piada.Mas parece que a piada, se podemosfalar assim, passa a ser o problema e oriso se desfaz.Alvim: O Roberto Schwarz falou umacoisa que gostei muito. Ele disse que opoema-piada foi um grande momento dapoesia brasileira. Aquele texto do Mriode Andrade, onde ele critica o poema-pia-da, ele mesmo nem o publicou. Era umprocesso de autocrtica excessiva. Achoque o modernismo e nisso sou coinci-dente com o que o Roberto pensa, e jtinha essa percepo quando li o Oswald,atravs do Alexandre Eullio, antes daonda de Oswald era uma coisa auroral.O Brasil estava sendo descoberto, haviaum otimismo, uma fora, uma irradiaode energia. Enquanto que os modernistastardios, como ns, vivemos num pas ques teve problemas, s traz problemas. uma viso crepuscular, no tem otimismonenhum. Embora no seja contra essa per-cepo dos poemas efetivamente bem hu-morados. Mas a coisa no essa, quandoh o riso, h tambm um esgar, um mal-estar. Dentro dessa linha que fiz o O cor-po fora. O editor Augusto Massi me in-duziu a fazer isso de maneira insidiosa, aocolocar 1968-1988 ao lado de Poesiasreunidas. Eram vinte anos. Era 68, de umlado. E, do outro, era 88: o smbolo denossa tragdia de sempre, o nico fato his-trico relevante do Brasil, que a escravi-do. Foram quase 400 anos da escravido.Isso nos distingue do resto mundo. O pasque tem a experincia brasileira, quanti-tativamente possvel que haja outro

    pas, mas no Brasil extraordinrio o fatode termos tido quase 400 anos de traba-lho escravo. A quantidade de escravos quechegou aqui, se voc contar com a Am-rica espanhola e a inglesa, foi muito, muitomaior. Ento, aquilo me fez fazer O corpofora. Mas para fazer este livro, eu tivede cortar uma poro de poemas. Achoque 90% do Elefante surgiu dos cortesde O corpo fora. No era o momento defazer o Elefante.

    K: Voc falou que teve de cortar algunspoemas. Como que voc organiza seuslivros?Alvim: uma moviola danada, tudo noouvido, no ritmo. s vezes, entra o tema.Eu procuro fazer isso desde Lago, mon-tanha procuro seguir esse tipo de orga-nizao. No Passatempo, tenho a impres-so de que escrevi muito pouco e meximuito pouco. A disposio do ritmo deveter interferido. J em Lago, montanha,comecei a sentir a necessidade de fazerisso. Em O corpo fora, tambm h unsncleos intermedirios, mas o ritmo quemarca a entrada de cada poema: a ento-nao, as vozes, as quebras. Por mais quevoc no queira, voc arma e, de repente,aquilo acaba e precisa ter um corte, sem-pre um corte, uma fuso interessante,uma ruptura. Agora, alguns ncleos nofuncionam to bem, mas voc s perce-be isso muito tempo depois. Esse riscoest sempre presente.

    Heitor Ferraz poeta e jornal ista , autor de Coisa simediata s (7 Letras), en tre outros.

  • 6 K Jornal de Crtica

    Noes de anliseHISTRICO-LITERRIA

    REYNALDO DAMAZIO

    Num tempo como o nosso de pesqui-sas apcrifas na Internet, de apropriaoindbita de idias e conceitos em disser-taes feitas por encomenda, de crticasligeiras e juzos rasteiros em cadernos decultura, de miscelneas intertextuais rea-lizadas a pretexto de inveno, de cita-es no reveladas, a publicao de umlivrinho como o de Antonio Candido Noes de anlise histrico-literria mais que oportuna. Chega a funcionarcomo um possvel antdoto para o bes-teirol, alm de inestimvel lio de rigore honestidade intelectual.

    Resultado das anotaes para um cursode Introduo aos estudos literrios naFaculdade de Filosofia, Cincias e Letras deAssis, em 1959, o livro apresenta quase queem forma de apostila os requisitos essen-ciais para a identificao da origem e daautoria de um texto, que no caso de ummanuscrito antigo pode se tornar uma ver-dadeira aventura, nos moldes da melhorinvestigao arqueolgica. Desde a locali-zao de um manuscrito at a fixao defi-nitiva do texto, passando pela edio prin-ceps, a comparao de verses e de varian-tes, a edio crtica, a determinao daautoria e das datas de um original so fun-es do estudioso e do analista de literaturaque busquem as condies elementares deobjetividade crtica, como ensina Candido.

    A elegncia e a clareza com que taiscontedos so apresentados superamlargamente qualquer reduo didtica efazem a leitura correr agradvel, espe-cialmente quando so discutidos casoshistricos de fraude, como nos Cantos deOssian, de James Macpherson (1736-1796); ou de autoria duvidosa em virtudedo uso de pseudnimo, como nas Cartas

    chilenas, de Toms Antnio Gonzaga(1744-1810), cujos manuscritos circula-ram em Vila Rica com a assinatura de umenigmtico Critilo. O recurso ao argumen-to fictcio de textos encontrados ao acaso,em alfarrbios ou bibliotecas empoei-radas, como foi explorado por UmbertoEco no romance O nome da rosa, viroumoeda corrente na prosa contempornea,mas grandes obras da literatura univer-sal se consolidaram sobre o terreno mo-vedio da incerteza autoral e da confia-bilidade do original. Basta lembrar opoema pico Cantar de mio Cid, de au-toria desconhecida, e que foi brilhante-mente editado entre 1908 e 1911 pelofillogo e historiador espanhol RamnMenndez Pidal, citado por Candido. Ou

    legtimo indagar, seguindo a lio de Anto-nio Candido, qual o verdadeiro FernandoPessoa e quais os autnticos textos deCaeiro, Reis, Campos, Soares e Baro deTeive a que temos acesso?

    Se certo que muito do que tem sidopublicado ficou mesmo inacabado, comolidar com o grau de impreciso naquiloque se l como definitivo? Como saberse a edio que se tem em mos, conse-guida por uma pechincha na esquina, confivel? Em que medida o FernandoPessoa que conhecemos no tambmuma co-autoria dos organizadores deseus textos, como Maria Aliete Galhozou Richard Zenith, entre outros? Nose trata, portanto, de picuinha do eru-dito chato.

    Quem me alertou para essa questoem Fernando Pessoa foi o poeta e ensas-ta Carlos Felipe Moiss (que resenha napgina ao lado a recente edio de A edu-cao do estoico). Curiosamente, o temano aparece na alentada fortuna crticapessoana, mas foi discutido por Moissno ensaio Buraco negro, que est nolivro Fernando Pessoa: almoxarifado demitos (So Paulo: Escrituras, 2005), desua autoria.

    Reynaldo Damazio editor e poeta, autor de Nu entrenuvens (Cincia do Acidente).

    Noes de anlise histrico-literria , AntonioCandido. So Paulo: Humanitas, 2005, 114 p.

    O crtico literrio Antonio Candido, em foto de 1966, na cidade de Poos de Caldas

    ento o caso pitoresco da continuaode Dom Quixote escrita pelo misteriosoAlonso Fernndez de Avellaneda.

    Para o afoito leitor ps-moderno, acos-tumado mistura de cdigos e propensoa confundir histria e fico, sem um cer-to distanciamento criterioso que todareflexo crtica exige e pressupe, essasquestes podem at parecer anacrnicas.No entanto, a simples indagao da auten-ticidade de um texto, ou de uma obra,pode ser dramtica se pensarmos numautor bem prximo e caro a todos nscomo Fernando Pessoa.

    As edies do genial poeta portugusesto em bancas de jornal, lojas de con-venincia, supermercados, mquinas delivros nos metrs, em verses eletrnicas(os e-books) e at em livrarias, nos maisvariados formatos e preos. Da edio re-finada mais chinfrim, a obra de Pessoavirou leitura obrigatria para vestibulan-dos e referncia carimbada em papos des-colados. O autor, no entanto, s viu umlivro seu impresso em vida: Mensagem,publicado em 1934 com dinheiro empres-tado de amigos. Todo o restante da com-plexa e imensa produo que conhecemosde Pessoa fruto de edio pstuma domaterial encontrado nos bas do poeta,ou seja, em seus manuscritos, muitas vezesde difcil interpretao. Nesse sentido,

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  • K Jornal de Crtica 7

    O leitor brasileiro tem agora mais fcilacesso a um aspecto menos conhecido deFernando Pessoa, o semi-heternimo Barode Teive, autor de uns esparsos e lacunaresapontamentos auto-biogrficos, nos quaisesclarece porque no chegou a escrever aobra superior a que estava destinado: faltou-lhe vontade de realiz-la. A falncia da von-tade, diz ele, incapacitou-o igualmente paraa criao literria e para a vida, levando-o aoptar pelo suicdio, racionalmente medita-do e cumprido. Sua prosa refinadamentesentenciosa d conta dessa meditao.

    O Baro comea por afirmar que noh maior tragdia do que a igual intensida-de, na mesma alma ou no mesmo homem,como no seu caso, do sentimento intelec-tual e do sentimento moral. Para que umhomem possa ser distintivamente e absolu-tamente moral, tem que ser um pouco est-pido. Para que um homem possa ser abso-lutamente intelectual, tem que ser um pou-co imoral. [...] Assim, por ter duas virtudes,nunca pude fazer nada de mim. No foi oexcesso de uma qualidade, mas o excessode duas, que me matou para a vida (p. 20).

    Um dos temas centrais que da decorre o da perda da f, e o modo como Teive oenuncia aproxima-o do neopaganismo deRicardo Reis, assim como do sarcasmopseudofuturista de Campos: Perteno auma gerao [...] que perdeu por igual af nos deuses das religies antigas e a fnos deuses das irreligies modernas. Noposso aceitar Jeov, nem a humanidade.Cristo e o progresso so para mim mitosdo mesmo mundo. No creio na VirgemMaria nem na eletricidade (p. 26).

    V-se por a que o nosso Baro , comoReis, um legtimo pago inocente da de-cadncia, para quem o impasse do subje-tivismo e o hiperracionalismo levam paralisia total: H qualquer coisa de vil,de degradante, nesta transposio das nos-sas mgoas para o universo inteiro; h qual-quer coisa de sordidamente egosta emsupor ou que o universo est dentro de ns,ou que somos uma espcie de centro e re-sumo, ou smbolo, dele (p. 31); a digni-dade da inteligncia est em reconhecer que limitada e que o universo est fora dela(p. 55). Para ele, no h sada: Tudo quan-to penso ou sinto, inevitavelmente, se mevolve em modos de inrcia (p. 36). E nolhe serve de consolo saber que, se todosos grandes espritos houvessem tido a gran-deza escrupulosa de fazer s o perfeito [...],haveriam abdicado, como eu abdico (p.51). A concluso inevitvel: Atingi, creio,a plenitude do emprego da razo. E porisso que me vou matar (p. 57).

    Desse modo, a figura do Baro vem aser uma espcie de caixa de ressonncia,

    onde repercutem algumas das obsesses detoda a famlia heteronmica. A ironia quese trata de um escritor que s deixou unsrascunhos, em que explica porque abdi-cou... de escrever. O caso ganha um in-teresse aparentemente mais biogrfico queliterrio: o foco dos seus escritos incide so-bre a vida que viveu, ou deixou de viver. Aartimanha posta em prtica, ou apenas es-boada por Fernando Pessoa (j que Teive

    um heternimo por desenvolver), conduza uma lgica determinista inescapvel: avida explica a obra no caso, a no-obra.Tal lgica corroborada pelo prprioBaro, que confessa abertamente a sua abs-tinncia sexual, por exemplo, e se declaraincapaz de levar para a cama qualquer dasmuitas e oferecidas raparigas que o servem,em sua abastada quinta (No havia umacriada da minha casa que no pudesse terseduzido, p. 40), sugerindo que a priva-o da sexualidade seria a causa suficienteda sua inrcia, assim na obra como na vida.

    O tema interessante e o heternimosuicida pe lenha na fogueira quando, refe-rindo-se a trs poetas pessimistas (Leopar-di, Vigny e Antero), destaca a base sexualdos seus pessimismos (p. 53), para emseguida lanar mo de um argumento a umtempo simplrio e irrefutvel: Comoposso eu encarar com seriedade e com penao atesmo de Leopardi se sei que esse ates-mo se curaria com a cpula? (p. 54). Ficaassim armada a equao: frustrao sexual= obra superior ou obra nenhuma.

    aliciante, sem dvida, estender essatese (mais freudiana do que o prprioFreud admitiria) no ao ortnimo, mas aoindivduo Fernando Pessoa, como o fazRichard Zenith no posfcio da edio (pp.87-109). De fato, vrios crticos e bigrafostinham j assinalado a importncia dasexualidade, ou da ausncia dela, na obrapessoana, mas ningum havia afirmado que,atravs do Baro de Teive, este heterni-mo to pouco fingido [...], com a sua eufe-mstica timidez antecipada perante as mu-lheres, Pessoa fez a sua mais clara confissode incapacidade nesta matria (pp. 99-100).

    Por aliciante que parea, a tese tem oinconveniente de dar por encerrado o assun-to-Pessoa, j que explica tudo, desobri-gando-nos de continuar a investigar as com-plexidades da obra. E corre ainda o risco deinduzir algum ambicioso e incauto escritora partir para a abstinncia sexual ple-na, na expectativa de que isso possa

    melhorar a qualidade dos seus versos ouda sua prosa. Uma vez armada, a equaodeterminista logo posta abaixo pela ino-cuidade da contraprova. A obra pessoana explicvel pela frustrao sexual? S sea mesma causa produzisse necessaria-mente, em qualquer um, efeito similar.

    A educao do estico, em suma, no recomendvel a escritores incautos, nem apessoas com propenso suicida. Nem tam-pouco a leitores inteiramente jejunos emmatria de Fernando Pessoa: tirar melhorproveito quem j tenha alguma familiarida-de com o restante da obra e no se deixeincomodar pela ortografia lusitana. que aedio brasileira reproduz, com outracapa, o projeto editorial e o projeto grficoda publicao original (Lisboa, Assrio &Alvim, 2001), abrindo mo do direito (de-ver?) de adaptar a ortografia s normasbrasileiras vigentes. Em tempo: a ortografiautilizada na edio no a do autor, semprehesitante, mas uma ortografia atualizada,adaptada s normas portuguesas.

    Car los Felipe Moiss poeta, tradutor e ensasta,autor de Alta traio (Unimarco) e Fernando Pessoa:almoxarifado de mitos (Escrituras).

    A educao do estico, Fernando Pessoa / Barode Teive. So Paulo: A Girafa, 2006, 110 p., edioorganizada por Richard Zenith.

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  • 8 K Jornal de Crtica

    MANUEL DA COSTA PINTO

    As tardes de domingo enlouquecem.O tdio, o torpor que se segue aos encon-tros familiares e o desamparo que nemlivros nem sesses de cinema conseguemremediar so sintomas de uma espcie de de-sespero sem causa, de angstia sem objeto.Nada aconteceu: a promesse de bonheuranunciada pela sexta-feira se dissolve naespera por um novo recomeo, que nessesmomentos de clarividncia dominical sa-bemos estar fadada ao fracasso.

    As tardes de domingo so o cenrio idealdos suicidas a menos, claro, para quemtem a felicidade de estar em contato comessa esfera superior da existncia: o futebol.

    Num ano de Copa do Mundo, escrito-res, jornalistas culturais e editores procuramexplorar as possibilidades de fazer do fute-bol um tema literrio, com romances, cole-tneas de contos, livros com a histria dosclubes, biografias de craques e personagensdo mundo da bola. Na fico, existem tex-tos que se tornaram clssicos, como Corin-thians 2 x Palestra 1, de Antnio de Alcn-tara Machado, e narrativas de outros escri-tores galticos da literatura brasileira, comoPlnio Marcos, Joo Antonio, Rubem Fon-seca e Srgio SantAnna.

    Nos cadernos de cultura e nas revistasliterrias, so invariavelmente lembradosos poemas futebolsticos de Drummond(que em A lngua e o fato ironizou aque-les que queriam rebatizar o futebol compalavras esdrxulas como bulopdio,globipdio, ludopdio), Vincius deMoraes (que celebrou Man Garrincha emO gnio das pernas tortas) e Joo Cabralde Melo Neto, que em Ademir da Guiaprojeta no Divino (como era conhecido ojogador palmeirense) a imagem de sua pr-pria poesia, austera e precisa: Ademirimpe com seu jogo/ o ritmo do chumbo(e o peso)/ da lesma, da cmara lenta,/ dohomem dentro do pesadelo.

    Mas o futebol prescinde dessas repre-sentaes episdicas, pelo simples fatode ser, ele mesmo, uma forma superior demmese do real.

    Durante muito tempo, coube ao roman-ce (epopia do mundo burgus, na fr-mula hegeliana de Lukcs) ser o porta-vozdas experincias cotidianas, no que estascontm de exemplaridade, idealizao edesvio. O heri romanesco essa figuraque, colhida no seio daquilo que reco-

    nhecvel, transtorna seu meio, introduz umelemento perturbador, amplia o horizontedo possvel.

    Nossa existncia, contudo, perdeu apossibilidade de encontrar em si uma refe-rncia para ir alm de si mesma. Numa cr-nica de 1969 intitulada Ainda existemvidas romanescas, publicada no livro Caos(Brasiliense, 1982), o diretor de cinema eescritor Pier Paolo Pasolini exps o pro-blema nos seguintes termos:

    Os homens tendem cada vez mais aconsiderar o que lhes acontece como intei-ramente previsto e normal; a civilizao tc-nica e a produo em srie determinam mi-lhes de destinos todos iguais e, portanto,privados daquele espanto diante do eventoque o sentido do romanesco (grifo meu).

    Na viso marxista de Pasolini, existe umafratura entre realidade emprica e represen-tao ficcional (que jamais mera repro-duo do existente, mas reapresentao doreal em novas vestes). No plano da puraexistencialidade, diz o escritor italiano,ainda existem vidas romanescas (o primei-ro dia em que um rapaz ou uma moatrabalham, depois de terem conseguidoemprego numa fbrica, ou o ltimo diade trabalho de um velho que se aposenta).

    Entretanto, essas vivncias individuaistendem a se diluir num mundo protoco-lar no qual j no h o sentimento doalhures, do confronto com o diferenteque fez da viagem o arqutipo do ro-mance moderno. Isso ocorre, continuaele, porque os escritores pertencem a clas-ses cujo acesso a tecnologias e meios detransporte cancela as distncias e os par-ticularismos. As viagens horizontais (no

    espao) e verticais (na escala social) fo-ram tragadas por uma entropia indus-trial que j compreende, praticamente, todaa humanidade: o descobridor e o viajan-te se transformaram em turistas; e o he-ri, no podendo mais fundar sua diferen-a numa realidade em que tudo homo-gneo (at a individualidade, como sepode ver pelo mecanismo da moda), serefugiou nas paisagens interiores ou nummundo de identidades instveis.

    H, no entanto, uma forma de expressona qual o autor ainda encontra em sua pr-pria vida a experincia modelar do heri.No futebol, o jogador cria um enredo noqual palavras como sacrifcio e graa, aca-so trgico e jbilo sublime ainda no foramidentificadas com aquela esttica kitschque o fim ltimo das nossas emoes.

    O paralelo do futebol com a arte no possvel apenas no mbito da performan-ce, do estro coletivo e individual. O pr-prio Pasolini, num ensaio intitulado O golfatal, mostrou que se cada lance dentrodo gramado corresponde a um fonemadessa linguagem que o futebol, o cdigodos boleiros, assim como o cdigo ver-bal, tem tambm seus gneros literrios:h um futebol de poesia, com arabescose reinvenes do repertrio de jogadas;mas h tambm um futebol prosaico, maisutilitrio e pragmtico.

    Podemos partir dessa dicotomia e acres-centar que, se a poesia um gnero menosproblemtico do que o romance, tambm mais fcil identificar a potica de virtuosescomo Maradona ou Romrio do que o sen-tido mimtico do futebol, essa encenaocujo realismo se deve ao fato de o heri dos

    gramados duplicar a vida de seu criador earrastar seu mundo para o campo.

    Ao contrrio da poesia, que pode daras costas para realidade sua volta, a pro-sa de fico guarda com ela uma relaosempre ambgua: as grandes personagensemprestam rosto a sua poca. Pode-se falarem poesia pura, mas nunca em romancepuro ou prosa absoluta: o referentesempre invade a cena.

    impossvel ver filmes de Barbosa,Garrincha ou Zico sem pensar no destinoque os rondou dentro e fora dos estdios o estigma dos gols sofridos na final de50; o frenesi demente dos dribles dandolugar ao alcoolismo; o pnalti perdido emmomento capital a enterrar a apoteose deuma gerao de semi-deuses.

    Os heris desapareceram h muito tem-po da poesia; as personagens da pica mi-graram para o romance (da aquela defini-o, citada anteriormente, de epopia domundo burgus) e para o drama. Pel eRonaldinho Gacho so poetas, mas care-cem com o perdo da blasfmia contra oRei do Futebol daquela dimenso dolo-rosa que no falta a Zidane e Ronaldo.Dois casos excepcionais so Garrincha eMaradona poetas magistrais convertidosem protagonistas de tragdias.

    A crer em Pasolini, o romance moder-no deixou de falar de vidas romanescas,dando voz conscincia torturada do anti-heri. Nesse sentido, o futebol tem algo deretrgrado, como o so os romances natu-ralistas ou autobiogrficos na era do fluxoda conscincia. Retrgradas tambm soas emoes coletivas que suscita esp-cie de regresso a estgios tribais.

    Mas isso tambm est em vias de aca-bar. Pouco a pouco, times e craques voperdendo aquele particularismo de quefala Pasolini. No futebol globalizado, asequipes viram conglomerados econmicossob a fachada do multiculturalismo tni-co; os heris populares viram produtosmiditicos que, quanto mais expostos,mais se desrealizam: ningum duvida dasfaanhas sem registro televisivo de Didi,mas as piruetas de Ronaldinho deixamsempre a impresso de serem um truquedo editor de imagens.

    Na era do Camp Nou e do Stade deFrance, os campos de vrzea esto em ex-tino. H um lado bom nisso: com o fimdo jargo da autenticidade, desaparecemos hooligans; mas com eles vo tambmesses Prometeus da vida danificada, que acada domingo roubam o fogo dos deuses.

    M anuel da Costa Pint o jornal ista, t orcedor doFlamengo e estudioso das obras completas de Zicoe Zidane.

    Prometeus da vida danif icada

    Man Garrincha e Djalma Santos na concentrao da seleo brasileira, em 1965

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