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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
JOS ARLINDO DE AGUIAR FILHO
KANT ENTRE HUSSERL E HEIDEGGER
UM ARGUMENTO CONTRA O CONTINUSMO DO PROJETO
FENOMENOLGICO ACERCA DA SUBJETIVIDADE
Recife,
2012
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
JOS ARLINDO DE AGUIAR FILHO
KANT ENTRE HUSSERL E HEIDEGGER
UM ARGUMENTO CONTRA O CONTINUSMO DO PROJETO
FENOMENOLGICO ACERCA DA SUBJETIVIDADE
Tese apresentada Universidade Federal de
Pernambuco como requisito parcial para
obteno do ttulo de doutor em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Jesus Vzquez Torres
Recife,
2012
JOS ARLINDO DE AGUIAR FILHO
KANT ENTRE HUSSERL E HEIDEGGER
UM ARGUMENTO CONTRA O CONTINUSMO DO PROJETO
FENOMENOLGICO ACERCA DA SUBJETIVIDADE
Tese apresentada Universidade Federal de
Pernambuco como requisito parcial para
obteno do ttulo de doutor em Filosofia.
Aprovado no dia _______ de _________________ de 2010
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________
Prof. Dr. Jess Vzquez Torres UFPE
______________________________________________________
Prof. Dr. Oscar Bauchwitz UFRN
______________________________________________________
Prof. Dr. Juan Bonaccini UFRN
______________________________________________________
Prof. Dr. Acylene Ferreira UFBA
______________________________________________________
Prof. Dr. Pedro Manuel Dos Santos Alves Universidade de Lisboa
AGRADECIMENTOS
A famlia e em especial aos mais prximos, minha esposa, meus pais e meus irmos.
Aos professores Jesus Vzquez, Karl-Heinz Efken, Juan Bonaccini, Markus Figueira,
Jos Trindade, Fernando Raul, Fernando Magalhes, Vincenzo Di Matteo, Oscar Bauchwitz e
todo o programa de doutoramento por suas lies e inspirao dentro e fora da sala de aula.
Aos colegas de curso e amigos Andr, Rodrigo e Enoque. Aos colegas de trabalho e
amigos Walter DAngelo, Isabele, Valter Romeiro, Z Roberto, Isaac e toda equipe de
professores e funcionrios da Faculdade Maurcio de Nassau. Aos amigos Helder e Mrcio.
RESUMO
A tese procura estabelecer um ponto de apoio para o estudo da subjetividade na obra de
Martin Heidegger. Para alcanar este objetivo traa seu argumento a partir das obras do
perodo entre 1925 e 1930. Os principais textos sobre o assunto so abordados
individualmente e indicam uma reapropriao da transcendncia e liberdade como centro do
que poderia ser o sujeito bem entendido de que Heidegger fala. A caracterizao enfrenta,
entre outras, a dificuldade de uma proximidade com o projeto fenomenolgico de Husserl.
Essa dificuldade ser articulada em duas verses de um mesmo argumento continusta. A
verso francesa e a verso escandinava. A apresentao das verses e suas principais
caractersticas e argumentos sero dispostos em busca de um eixo de decidibilidade
encontrado na influncia kantiana. Para superar a dificuldade do continusmo o trabalho
prope uma anlise da influncia da interpretao kantiana no projeto fenomenolgico de
Heidegger em comparao com o de Husserl. As anlises indicam uma incompatibilidade
entre a abordagem heideggeriana da subjetividade e a fenomenologia em termos estritamente
husserlianos desautorizando assim o argumento continusta.
ABSTRACT
The thesis seeks to establish a foothold for the study of subjectivity in the work of Martin
Heidegger. To achieve this goal it locates his argument in the works of the period between
1925 and 1930. The individual approach of the main texts on the subject indicates a
representation of transcendence and freedom as the center of what could be the well
understood subject of which Heidegger speaks. This characterization will deal with the
problem of Heideggers supposed debt to Husserl's phenomenological project. This difficulty
will be exposed in two versions of the same argument: the French version and the
Scandinavian version. The presentation of both versions in their key features and arguments
will be directed to an axis of decidability found in Kant's influence. To overcome the
continuism problem, this work proposes an analysis of Heideggers interpretation of Kant as
major influence on his phenomenological project in comparison with that of Husserl. The
analysis indicates a mismatch between the approach of Heidegger's particular view on
subjectivity and phenomenology in strictly Husserlian terms. This mismatch allows the
conclusion for the continuistic arguments invalidity.
SUMRIO
INTRODUO 10
1 O DILEMA DO SUJEITO E SEU LUGAR NA FILOSOFIA DE HEIDEGGER 12
1.1 Localizando a questo da subjetividade: Problemas bsicos da Fenomenologia 14
1.2 Localizando a questo da subjetividade: Ser e tempo 21
1.3 Localizando a questo da subjetividade: Fundamentos metafsicos da lgica 32
1.3.1 A transcendncia do Dasein: pargrafos dez e onze dos Fundamentos metafsicos da
lgica 37
1.4 Localizando a questo da subjetividade: a Introduo filosofia 54
1.5 Localizando a questo da subjetividade: Kant e o problema da metafsica 59
1.6 Possveis concluses: uma sntese 64
2 HUSSERL, HEIDEGGER E O ARGUMENTO DE CONTINUIDADE 67
2.1 Questes cronolgicas 67
2.2 A questo do continusmo 79
2.2.1 O argumento continusta: Levinas e a fenomenologia na Frana 80
2.2.2 O argumento continusta: Seeing the Self 94
2.2.2.1 O todo e as partes 97
2.2.2.2 O todo e as partes em Heidegger 105
2.2.2.3 Conceitos husserlianos associados teoria do todo e das partes presentes na
questo da subjetividade 111
3 EXPOSIO DE KANT COMO FATOR DE DECIDIBILIDADE 116
3.1 Desenvolvimento da questo da cincia em Heidegger e seus predecessores 116
3.1.2 A dupla trajetria kantiana 119
3.1.3 Espao e tempo da esttica transcendental primeira antinomia 124
3.1.4 A antinomia da razo e o mundo espao-temporal: questo da decidibilidade 128
3.1.5 Da cincia em Kant para a interpretao heideggeriana 133
3.2 A interpretao heideggeriana do projeto kantiano 134
3.2.1 A Interpretao fenomenolgica da crtica da razo pura 134
3.2.2 Interpretao fenomenolgica da crtica da razo pura: uma anlise textual 142
CONCLUSES 160
ANEXO I 164
REFERNCIA BIBLIOGRFICA 166
INTRODUO
Aqui se apresenta o resultado de uma pesquisa sobre o pensamento do filsofo
alemo Martin Heidegger. Escrever um trabalho assim no uma tarefa fcil. E a dificuldade
a que nos referimos, mesmo que por vezes antecipada, sempre volta a lanar dvidas e
direes que misturam os objetivos iniciais com concluses opostas. Por tal motivo,
necessrio apresentar esta tese atravs da transformao por que seus objetivos iniciais
passaram na superao de obstculos para chegar s concluses finais. Esta introduo no
deixa de ser a histria de uma luta.
As principais dificuldades que o estudo de um pensador como Heidegger apresenta
so relativamente bem conhecidas. Os melhores exemplos so a linguagem hermtica, o
volume da obra, a escassez de seus originais e a polmica que seu nome gera no meio
acadmico.
Levando em conta as dificuldades previstas, o tema do trabalho foi definido: o
problema da subjetividade. A vantagem que se obtm com essa temtica a localizao
pontual de textos que contribuem para a questo. O perodo imediatamente prximo ao ano de
publicao de Ser e tempo, 1927, inclui obras como os Fundamentos metafsicos da lgica e a
Interpretao fenomenolgica da crtica da razo pura, ambas de 1928. Por contar com boas
e acessveis tradues, um volume factvel de textos e certa uniformidade de linguagem, este
perodo especfico surge como boa escolha para delimitar o tema e dar viabilidade ao
trabalho.
Amenizados e superados alguns dos problemas a partir da leitura e pesquisa das
obras entre 1925 e 1930, outras dificuldades surgiram. O prprio tema da subjetividade
levanta diversas questes quanto terminologia, quanto ao projeto da Destruktion anunciado
em Ser e tempo e tambm na polarizao da literatura secundria sobre a superao da
subjetividade moderna. O primeiro captulo da tese enfrenta essas questes. Nele est
colocada a posio que adotamos acerca da subjetividade atravs da interpretao das obras
heideggerianas.
Na execuo do primeiro captulo, fica clara a impossibilidade de esgotar o tema da
subjetividade. Mesmo com a limitao cronolgica, o confronto entre as correntes
interpretativas levantou alguns argumentos contrrios posio que defendemos. A extenso
e significado dessa argumentao no poderiam ser plenamente desenvolvidos. Desse
obstculo, surge um direcionamento no previsto no projeto original: a anlise de uma
interpretao especfica, contrria ao entendimento do primeiro captulo, em busca de suas
falhas e contradies; uma Destruktion em menor escala do argumento continusta, que
defende uma filiao da subjetividade heideggeriana ao pensamento fenomenolgico de
Husserl.
O segundo captulo procura elaborar o argumento continusta o mais amplamente
possvel. Apresenta suas diferentes verses e bases de sustentao. Dessa anlise, surge um
ponto que capaz de decidir sobre a filiao fenomenolgica e que coincidentemente retoma
os textos particulares do perodo 1925-1930: a interpretao fenomenolgica do pensamento
kantiano. A interpretao do pensamento de Kant nos textos de Heidegger incompatvel
com as bases husserlianas das Investigaes lgicas e de sua Filosofia como cincia de rigor.
Kant se apresentou como fator decisivo para a validade do argumento continusta.
O pensamento de Heidegger e Husserl sobre Kant confrontado no terceiro captulo.
Nessa comparao, o primeiro captulo ganha novas dimenses: a forte influncia de Kant na
arquitetura de Ser e tempo e na subjetividade do pensamento de Heidegger e a prpria
execuo implcita da Destruktion que aproxima Heidegger de uma superao do esprito
epistemolgico da fenomenologia eidtica de Husserl. Nesse captulo, ao longo da
comparao entre as interpretaes de Kant surgem, como perspectivas, diversas
possibilidades de reflexo mais amplas sobre o papel da apropriao de Kant na construo da
filosofia contempornea.
Do movimento de restrio que vem da questo do sujeito, a tese passa para o
argumento continusta e termina chegando ao confronto das diversas interpretaes do
pensamento kantiano, passando para um movimento de expanso de perspectivas. Kant
aparece como um fator de renovao das bases da filosofia contempornea, interpretar as
disputas do perodo reler as disputas sobre a perspectiva epistemolgica e ontolgica do
pensamento kantiano. Nesse ponto, chega ao fim o trabalho, afirmando uma possibilidade de
subjetividade propriamente heideggeriana, baseada na invalidade provada na
incompatibilidade de apropriao da filosofia kantiana do argumento continusta.
12
1 O DILEMA DO SUJEITO E SEU LUGAR NA FILOSOFIA DE HEIDEGGER
H referncias na obra de Heidegger ao sujeito e a sua funo. O tema no
absolutamente um vcuo preenchido pelos comentrios ao seu trabalho. Mas antes de
avaliar a temtica uma primeira observao: o lugar topogrfico do sujeito no
conjunto da obra Heideggeriana est decisivamente marcado nos textos entre 1925 e
1930.
Sem negar a recorrncia do tema em obras posteriores1, no passa despercebida
da academia esta maior incidncia da questo do sujeito no perodo imediatamente
anterior e imediatamente posterior a Ser e tempo. Diz, por exemplo, Zahavi (2003, p. 156,
nota 1):
em contraste com a leitura majoritria, defendo a viso que a prpria
noo heideggeriana de Dasein deve ser interpretada como um
conceito clarificado de subjetividade. [...] Esta interpretao pode
encontrar suporte, por exemplo, em Ser e tempo, Problemas bsicos
da fenomenologia (1927), Introduo filosofia, e Kant e o problema
da metafsica. (ZAHAVI, 2003, p. 156, nota 1)2.
Aos livros apontados pelo autor dinamarqus acrescentamos o curso de vero
de 1928, Fundamentos metafsicos da lgica (HEIDEGGER, 1928b)3. Assim, teremos
um ponto de partida para a questo da subjetividade nas obras de 1927, Ser e tempo
(HEIDEGGER, 1927a) e Problemas fundamentais da fenomenologia (HEIDEGGER,
1927b); de 1928, Fundamentos metafsicos da lgica (HEIDEGGER, 1928b); e de
1929, Introduo filosofia (HEIDEGER, 1929a) e Kant e o problema da metafsica
(HEIDEGGER, 1929b).
Esse conjunto de obras, exemplificativo por mais que significativa sua
importncia, traz uma rica coleo de passagens que corroboram a tese da determinao
cronolgica do projeto de subjetividade no perodo alegado entre 1925-1929.
Confirmemos. A ausncia de obras do binio 1925-1926 contingente. No devemos
excluir o perodo de nossa caracterizao, pois nesse tempo ocorreu um curso de vero,
1 Inclusive trechos valiosos para nosso trabalho, como as anotaes de 8 de maro de 1965 (que sero
analisadas oportunamente) quando contava Heidegger seus 76 anos. (HEIDEGGER, 1965). 2 Nas citaes desta tese repetimos a seguinte conduta: todas as tradues de texto que consta da
bibliografia em lngua estrangeira so nossas. Todos os grifos e destaques nas citaes so do autor. 3 Para destacar a cronologia das obras, trao importante para o argumento da tese, usamos a data da
publicao original nos textos de Heidegger (e alguns de Husserl tambm) em que julgamos valiosa essa
informao. A data original est relacionada nas referncias entre parnteses aps o ttulo original.
13
Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs, no qual o conceito de tempo, que
permear Ser e tempo, j se apresenta em movimento4; e em Anfnger:
Phnomenologische bungen (Kant, Kritik der reinen Vernunft), seminrio de inverno
em Marburgo quando comea a tomar fora a presena kantiana no pensamento de
Heidegger5. Ambos encontram lugar em momentos posteriores da pesquisa, o primeiro
ter espao no captulo dedicado a Husserl e o segundo, na caracterizao da recepo
de Kant pela filosofia de Heidegger.
Importante notar a presena dessas obras em pontos focais do argumento pela
descontinuidade, pois alm de estarem cronologicamente prximos do perodo que
tentamos caracterizar como do projeto de subjetividade originria esto prximos
tambm do perodo de convivncia direta entre Husserl e Heidegger.
A presena do tema do sujeito no perodo suscita uma aproximao entre a
influncia de Husserl e a abordagem heideggeriana. Afinal, a poca imediatamente
posterior ao trabalho conjunto dos dois pensadores no projeto fenomenolgico.
Heidegger foi professor assistente de Edmund Husserl durante o perodo de 1918 a
1923, ano em que, no dia 18 de junho, assume a ctedra em Marburgo. L permanecer
por cinco anos at o retorno, em 1929, sucedendo o antigo mestre em Freiburg.
Sem dvida, h que se conceder o indcio cronolgico para o argumento da
continuidade entre a obra de Husserl e a de Heidegger. Mas a mera coincidncia
temporal entre o perodo de colaborao e os anos imediatamente posteriores, com o
desenvolvimento comprometido da filosofia heideggeriana com as ideias da
fenomenologia ao modo husserliano, no garante de forma nenhuma a certeza para uma
tese continusta sobre a subjetividade por parte Heidegger.
A pergunta a ser feita aqui pelo significado da concentrao cronolgica de
um projeto de subjetividade originria. Enfrentamos aqui um desdobramento, uma
situao que permite tanto a interpretao continusta como uma leitura de superao.
Porm, preciso decidir se h de fato um projeto de subjetividade nessa fase peculiar e
profcua da obra heideggeriana antes de atrelar tal suposio a uma derivao de seu
pensamento das lies husserlianas. Por fim, s poderemos decidir a questo de
4 Theodore Kisiel dedica o captulo oito de seu tratado e mais de 40 pginas a essa obra, que considera o
primeiro esboo definitivamente ontolgico de Ser e tempo. Ao citar as Kassel Lectures, srie de dez
aulas ministradas por Heidegger entre 16 e 21 de abril de 1925 afirma: Heidegger est claramente
anunciando seu primeiro esboo ontolgico de Ser e tempo, o qual ele lanar duas semanas depois em
seu curso de semestre de vero em 1925 (KISIEL, 1995, p. 361). 5 Este curso ser revisitado, em Marburgo no curso do semestre de inverno, na Interpretao
fenomenolgica da crtica da razo pura, (HEIDEGGER, 1928a).
14
continuidade a partir da caracterizao de como o projeto se apresenta. da anlise de
sua estrutura e de caractersticas que se faro as inferncias quanto pertinncia dessa
subjetividade originria ideia de fenomenologia husserliana.
A concluso provisria a que a adio dessas obras iniciais, no conjunto que
caracterizamos, permite que as premissas derivadas de sua anlise so legtimas para
definir o significado do projeto de subjetividade do perodo. Tais premissas, a relao
de superao da fenomenologia husserliana e a apreenso do logos moderno atravs de
Kant como inverso do conceito de verdade na cincia, sero apresentadas e
desenvolvidas ao longo deste trabalho, servindo sua citao aqui como adiantamento
meramente elucidativo. Se no trazemos para anlise neste momento os trechos dos
referidos textos, entenda-se por disposio de organizao, tal apresentao ser mais
bem aproveitada em momento posterior.
1.1 Localizando a questo da subjetividade: Problemas bsicos da fenomenologia
Antes de explorar o primeiro texto de 1927, Ser e tempo, que merece destaque
parte, lancemos um olhar para o curso ministrado na sequncia dessa obra. Nos
Problemas bsicos da fenomenologia (HEIDEGGER, 1927b), curso de vero em
Marburgo, encontram-se comentrios sobre a subjetividade e sua relao com o Dasein.
De fato, difcil acreditar numa leitura do pargrafo 15, seo d em especial, que negue
a centralidade do tema. Inclusive h interpretao mais extensiva: o tema da
subjetividade perpassa toda a obra! Cite-se Albert Hofstadter, tradutor da verso inglesa
da obra, em seu prefcio:
Os Problemas Bsicos da Fenomenologia um trabalho da maior
importncia, indispensvel para obter uma perspectiva clara sobre a
regio ontolgico-fenomenolgica para a qual Heidegger se
direcionava quando preparou Ser e tempo, do qual esta a desenhada
e designada sequncia. (HOFSTADTER in: HEIDEGGER, 1927b, p.
xi).
Essa ideia de sequncia entre Ser e tempo e o curso (cujo incio, em maio,
imediatamente subsequente ao aparecimento do Jahrbuch fr Philosophie und
phnomenologische Philosophie com a primeira edio de Ser e tempo, ao final de
abril) razovel cronologicamente e h indcios documentais de sua procedncia.
15
no curso que Heidegger faz referncia pela primeira vez ao trabalho recm
publicado em tom de continuidade:
Devemos nos refrear de uma discusso sobre sua funo [ontologia do
Dasein] como uma fundamentao do questionamento filosfico em
geral; e ainda menos possvel desenvolver e trazer uma exposio da
ontologia do Dasein mesmo em seus modos principais. Eu j ofereci
tal tentativa na primeira parte de meu recm publicado tratado Ser e
Tempo. (HEIDEGGER, 1927b, p. 56).
A consequncia clara: o curso deve evitar a ontologia do Dasein, mesmo que
seja um pressuposto da anlise, pois ela est realizada em Ser e tempo. Esse o primeiro
passo, pea inicial, obra pioneira cujas consequncias esto sendo desenvolvidas j
durante o perodo do curso de vero de 1927.
A outra evidncia da correo de uma interpretao dos Problemas bsicos
como sequncia de Ser e tempo nos foi indicada claramente pelo prprio Heidegger.
Quando da publicao do curso nas obras completas em 1975, ele o identifica com uma
nova elaborao da Terceira Diviso da Primeira Parte de Ser e tempo
(HEIDEGGER, GA 24:1/1, apud KISIEL, 1995, p. 488)6. A organizao planejada por
Heidegger para Ser e tempo est descrita em seu pargrafo oitavo cujo ttulo O
sumrio do Tratado:
A elaborao da questo do ser se divide, pois, em duas tarefas; a
cada uma corresponde a diviso do tratado em duas partes:
Primeira parte: a interpretao da presena pela temporalidade e a
explicao do tempo como horizonte transcendental da questo do
ser.
Segunda parte: Linhas fundamentais de uma destruio
fenomenolgica da histria da ontologia, seguindo-se o fio
condutor da problemtica da temporariedade.
A primeira parte divide-se em trs sees:
1. A anlise preparatria dos fundamentos da presena.
2. Presena e temporalidade.
3. Tempo e ser.
A segunda parte estrutura-se, tambm, em trs sees:
1. A doutrina kantiana do esquematismo e do tempo como estgio
preliminar da problemtica da temporariedade.
6 Apenas as duas primeiras divises esto publicadas sob o ttulo Ser e tempo. Levanta-se ento uma
curiosa pergunta, como pode Heidegger nos Problemas bsicos da fenomenologia estar reescrevendo a
terceira diviso nunca publicada? A resposta est em visita feita a Karl Jaspers, em Heidelberg, entre 1 e
10 de janeiro de 1927, durante a qual se tornou claro para Heidegger que sua diviso trs, j escrita e
sobre a qual disputava com o amigo, estava incompreensvel. O autor se refere ao episdio em 1941:
Claro, naquele tempo eu pensava que no curso daquele ano tudo poderia ser dito de forma mais clara.
Isto foi uma iluso. (HEIDEGGER, GA 49, p. 39f apud KISIEL, 1995, p. 486).
16
2. O fundamento ontolgico do cogito sum de Descartes e a
introduo da ontologia medieval na problemtica da res
cogitans.
3. O tratado de Aristteles sobre o tempo como critrio de
discriminao da base fenomenal e dos limites da antiga ontologia.
(HEIDEGGER, 1927a, p. 71).
Assim colocado, o Problemas bsicos corresponderia ao ltimo passo para a
interpretao do Dasein atravs da temporalidade e explicao do tempo como
horizonte transcendental da questo do ser, diviso trs: Tempo e ser. A imediata
sequncia das duas divises publicadas estaria nos Problemas bsicos da
fenomenologia, tese confirmada documentalmente pelo autor, cronologicamente
razovel e sistematicamente consistente com o projeto heideggeriano.
interessante perceber que exatamente na sequncia do pensamento suscitado
por Ser e tempo surge com maior vigor a necessidade de questionar a subjetividade. A
necessidade percebida por Hofstadter que a atribui ao prprio Heidegger: A
concepo de Heidegger da necessidade para seu prprio pensamento, como em todo
pensamento filosfico (no Ocidente pelo menos), orientar-se primeiramente ao sujeito, o
Dasein humano, ainda melhor entendida nos Problemas bsicos do que em Ser e
tempo (HOFSTADTER in. HEIDEGGER, 1927b, p. xi).7
Aqui uma hiptese se constitui: h um interesse crescente sobre a subjetividade
nas obras da segunda metade da dcada de 1920. Tal hiptese se confirma segundo a
apreciao de Hofstadter e no cotejamento das aparies do tema, mais recorrentes nos
textos de 1928 e 1929 que em Ser e tempo. No encontramos neste livro um pargrafo
como o quinze dos Problemas bsicos; nele, o tema o centro da anlise e tambm o
horizonte histrico que a permite.
A disposio do tema da subjetividade num contexto posterior a Ser e tempo
levanta a pergunta: se a subjetividade est superada aps a analtica existencial, como
explicar a reincidncia da temtica, de forma ainda mais vigorosa, nos escritos
imediatamente posteriores a ela? Uma hiptese se apresenta frente ao foco dado ao
problema da subjetividade, ela sugere que Heidegger est desenvolvendo o projeto da
analtica existencial. Para que tal hiptese faa sentido, foroso admitir que no projeto
heideggeriano de Ser e tempo, a sequncia planejada envolva a reapropriao da
subjetividade.
7 por concordar com essa opinio de Hofstadter que optamos por iniciar um mapeamento da questo
do sujeito por esse curso ao invs da opo cronolgica natural Ser e tempo.
17
A reapropriao est conforme a ideia de Destruktion da histria da metafsica
anunciada no pargrafo oitavo de Ser e tempo para a segunda parte do tratado como
Linhas fundamentais de uma destruio fenomenolgica da histria da ontologia,
seguindo-se o fio condutor da problemtica da temporalidade (HEIDEGGER, 1927a,
p. 71).
Convm nesse ponto uma ressalva! Essa associao do curso de vero de 1927
com a segunda parte do projeto de Ser e tempo, apesar de plausvel frente a algumas
analogias, choca-se com a afirmao do prprio Heidegger sobre seu lugar no projeto.
Como j exposto, os Problemas bsicos seriam a terceira diviso da primeira parte,
ainda preparatria, da tarefa de Destruktion.
Adotamos em nossa viso uma soluo parcial. Consiste em creditar aos
trechos em que a obra atm-se ao problema da subjetividade, principalmente na sua
colocao como horizonte, um adiantamento do autor da Destruktion que estava
prevista para a segunda parte de Ser e tempo. Esta soluo parece a mais coerente, pois
permite apreciar o pargrafo quinze como passos preliminares da Destruktion sem
contradizer o sentido geral da obra como terceira diviso da primeira parte de Ser e
tempo.
A subjetividade como horizonte da tarefa de destruio da ontologia, como fio
condutor da Destruktion, parece ser a sugesto do incio do pargrafo quinze dos
Problemas bsicos da fenomenologia: A filosofia deve talvez comear do sujeito e
retornar ao sujeito em suas questes ltimas, e ainda para tudo que no possa ser
questionado em uma maneira unilateralmente subjetivista. (HEIDEGGER, 1927b, p.
155). Mas, esse guia para o percurso primeira vista contrasta com o apresentado no
pargrafo sexto de Ser e tempo, no qual a Destruktion descrita pela primeira vez:
Caso a questo do ser deva adquirir a transparncia de sua prpria
histria, necessrio, ento, que se abale a rigidez e o endurecimento
de uma tradio petrificada e se removam os entulhos acumulados.
Entendemos essa tarefa como destruio do acervo da antiga
ontologia, legado pela tradio. Deve-se efetuar esta destruio
seguindo-se o fio condutor da questo do ser at se chegar s
experincias originrias em que foram obtidas as primeiras
determinaes do ser que, desde ento, tornaram-se decisivas.
(HEIDEGGER, 1927a, p. 51).
A diferena entre o texto dos Problemas e o de Ser e tempo, a mais evidente na
forma como colocamos a questo e assumimos a sequncia entre os dois, o fio
18
condutor da tarefa da Destruktion. Neste fala-se em questo do ser; naquele do sujeito.
Para essa discrepncia, apresentamos uma soluo que pode explicar a hiptese
anteriormente levantada: o interesse crescente no sujeito em textos subsequentes a Ser e
tempo. O fio condutor da Destruktion a questo do ser. Mas isso se revela
historicamente como a questo do ser do sujeito. O fio condutor da Destruktion deve ser
o sujeito, pois essa a manifestao temporal da questo do ser na histria da ontologia.
H uma ressalva que se impe: a questo da subjetividade no primeira,
originria, pressuposto da questo do ser. A primeira sucede a segunda. A questo do
ser a base da pesquisa heideggeriana. A expresso dessa problemtica na histria da
metafsica a filosofia da subjetividade. O ser antecede o sujeito, este a manifestao
daquele na histria. Precisamos elucidar a questo do sujeito para elucidar a do ser, mas
no porque o sujeito o antecede.
H um alerta para a inverso de prioridade entre a problemtica da
subjetividade e a do ser nos Problemas bsicos. preciso disciplina filosfica para se
manter na compreenso da subjetividade como passo necessrio ao projeto de
Destruktion guiado pela questo do ser. Notadamente lidando com a histria da filosofia
que
desde Descartes e, sobretudo no idealismo germnico a constituio
ontolgica da pessoa, o ego, o sujeito, determinado pelo modo da
autoconscincia. No suficiente tomar a autoconscincia no sentido
formal de reflexo sobre o ego. Ao invs disso, necessrio exibir as
diversas formas do auto-entendimento do Dasein. Isto leva
descoberta que o auto-entendimento sempre determinado pelo modo
de ser do Dasein, pelo modo da autenticidade e inautenticidade da
existncia. Disto emerge a necessidade de colocar a questo na
direo inversa. No podemos definir a constituio ontolgica do
Dasein atravs da autoconscincia, mas, ao contrrio, temos que
clarificar as diversas possibilidades de auto-entendimento por meio de
uma estrutura da existncia adequadamente clarificada.
(HEIDEGGER, 1927b, p. 174)
A mudana de direo do problema significa, segundo nossa interpretao, a
inverso da manifestao do ser enquanto pensamento da subjetividade; inverter a
questo manifestar a subjetividade atravs do ser. A autoconscincia determinada
pelo modo de ser do Dasein, e sua estrutura (ontolgica, existencial) capaz de
clarificar a autocompreenso.
Uma observao a ser feita, que corrobora a tese de Zahavi assim como a de
Hofstadter, a determinao de um modo de ser como antpoda do sujeito moderno, e
19
no uma oposio deste com o ser em geral. Melhor dizendo, quando surge a inverso
na linha de compreenso que substitui a primazia da questo do sujeito para clarificar a
do ser, pela primazia da questo do ser para clarificar a do sujeito, segue-se uma
sequncia esperada: devo me ater ao ser em sentido geral e dessa forma terei
possibilidade de determinar a subjetividade. Mas no trecho no se fala em constituio
do ser, no aparece o fio condutor do problema ontolgico. Fala Heidegger da
constituio ontolgica do Dasein. Esse, portanto, como antpoda da autoconscincia
no pode a ela ser igualado. Porm no pode dela se desligar, pois a prpria estrutura
de existncia que clarifica as possibilidades da autoconscincia.
Heidegger parece j estar avanando quando, na inverso do fio condutor da
subjetividade para o fio condutor do ser, apresenta uma forma de existncia, o Dasein,
frente ao sujeito, ao invs de apresentar a prpria questo do ser, mais primitiva e
anunciada em Ser e tempo. Dessa reflexo, retiramos duas concluses que sero mais
tarde no trabalho postas prova: 1 o Dasein no pode equivaler ao sujeito,
manifestao da metafsica, autoconscincia. Ao menos no era essa a inteno de
Heidegger sem dvida. Se o Dasein apresenta atributos ou caractersticas que permitem
pens-lo nos moldes do sujeito cartesiano ou do idealismo alemo, supor-se- que a
tentativa de inverso da questo do sujeito pela do ser falhou em algum aspecto. 2 o
Dasein , de alguma forma, ligado subjetividade na medida em que colocado como
sua superao, como o mbito em que podemos encarar a subjetividade depois de
realizada a inverso da questo do sujeito pela do ser. O Dasein pode apresentar-se
como o sujeito considerado, transposto, a partir de sua fonte originria de manifestao
do prprio ser: o modo de manifestao do ser que possibilita a autoconscincia.
H no texto dos Problemas bsicos referncia a essa transposio ainda no
pargrafo quinze: A constituio da existncia do Dasein como ser-no-mundo emergiu
como uma peculiar transposio do sujeito que forma o fenmeno que ns devemos
ainda mais particularmente definir como transcendncia do Dasein. (HEIDEGGER,
1927b, p. 174).
Sem desenvolver a temtica da transcendncia do Dasein e ainda sobre esse
trecho, chamamos ateno para o modo como o termo sujeito e o prprio termo Dasein
surgem de forma, em parte, intercambivel. Essa equivalncia est afastada, segundo
nossas concluses anteriores, e sem dvida h ressalvas quanto ao uso dos termos
sujeito e Dasein como o mesmo ente. O prprio Heidegger resolve essa divergncia
incidental: h um intercmbio entre os termos, que revela a ligao entre os dois (nossa
20
segunda concluso), mas essa equivalncia sempre se segue ressalvada por alguma
observao (em conformidade com nossa primeira concluso). O usual a colocao de
aspas no termo sujeito quando em analogia com o Dasein; outra ressalva comum o
acrscimo da locuo adjetiva bem-entendida, a subjetividade bem-entendida ou
sujeito bem-entendido. Exemplo desse padro ainda no pargrafo quinze: Ns
tentamos tornar claro que o mundo no nada que ocorre dentro do reino do extenso,
mas pertence ao sujeito, algo subjetivo no bem entendido sentido, assim o modo de
ser do Dasein ao mesmo tempo determinado pelo modo do fenmeno do mundo.
(HEIDEGGER, 1927b, p. 174).
Analisando a transcendncia. Mundo e sujeito se pertencem e se determinam
medida que so dois aspectos do fenmeno unitrio do ser-no-mundo, modo de ser do
Dasein que revela a transcendncia. Mas essa no nossa pesquisa, ao menos no aqui.
Logo em seguida: Apenas com a ajuda de uma interpretao radical do sujeito pode um
subjetivismo no-genuno ser evitado e igualmente um realismo cego, que gostaria de
ser mais realista que as prprias coisas so porque desconstri o fenmeno do mundo.
(HEIDEGGER, 1927b, p. 175).
A apreciao de Heidegger expe sua percepo do modo como sua tarefa
caminha: o radicalismo. H um reforo nossa hiptese acerca da pertinncia de uma
discusso sobre o sujeito como adiantamento da destruio da histria da ontologia. A
metafsica levada ao seu horizonte radical de possibilidade ruir, revelando aquilo que
h a ser pensado. Nesse sentido, aceitando essa leitura, podemos acrescer nossa hiptese
de ligao entre Dasein e subjetividade de uma direo: a interpretao radical da
subjetividade impe o modo de ser do Dasein ao pensamento.
Num juzo de valor resume Hofstadter (in. HEIDEGGER, 1927b, p. xxx):
Apesar de Heidegger desejar destruir toda a tradio, a destruio deve ser feita no
numa remoo da orientao para o sujeito, mas numa correo dele..
Para terminar esta apresentao inicial do tema da subjetividade a partir dos
escritos heideggerianos do perodo de 1925 a 1929 citamos outras duas passagens, como
exemplos, da proximidade entre sujeito e Dasein. Elas se encontram na seo dedicada
a estudar a possibilidade da verdade, sua funo e ligao com o Dasein. O tema
recorrente e se mostrar de forma mais clara que aqui na Introduo filosofia, que
analisaremos mais frente. Observe-se a presena de aspas e do complemento bem-
entendida para as referncias subjetividade corretamente considerada a partir de
uma primazia da questo do ser, ou seja, do Dasein, o sujeito corrigido.
21
Ser verdadeiro desvelamento, desvelamento um
comportamento do ego, e portanto, como dito, ser verdadeiro
algo subjetivo. Ns respondemos, subjetivo sem dvida, mas no
sentido do bem entendido conceito do sujeito, como Dasein
existente, o Dasein com ser no mundo. (HEIDEGGER, 1927b, p.
216).
Tambm no trecho: H verdade desvelamento e desvelo apenas quando e
enquanto existir Dasein. Se e quando no h sujeitos, tomados de fato no bem
entendido sentido de Dasein existente, ento no h nem verdade nem falsidade.
(HEIDEGGER, 1927b, p. 219).
Em Ser e tempo tambm encontramos sinais dessa correo da subjetividade
moderna. Porm nas pginas dessa obra, em acordo com seu carter preparatrio, a
discusso do tema se mostra menos incisiva. A esta altura, adiantamos dois aspectos que
aderem questo da subjetividade em Ser e tempo e que refletiro mais tarde em
desenvolvimentos acerca do tema. Esses desenvolvimentos so exatamente o material
que fornece a possibilidade de nossa primeira hiptese sobre a localizao da pergunta
sobre o sujeito nos anos perifricos a 1927. So eles a estrutura da subjetividade,
superada como ultrapassamento do sujeito kantiano, e a ligao originria entre a
subjetividade e a noo de verdade.
1.2 Localizando a questo da subjetividade: Ser e tempo
Muito h para dizer sobre essa obra de Martin Heidegger. consenso na
academia sua centralidade, assim atestam os comentadores,8 e no h trabalho
acadmico srio que conteste sua importncia no pensamento heideggeriano. Nesta
seo no pretendemos abarcar os problemas colocados em relao subjetividade em
Ser e tempo. Esta tarefa est reservada a posteriores sees do trabalho, aqui apenas
localizamos as passagens principais que permitem confirmar algumas hipteses
levantadas: a primeira a presena da questo do sujeito. A segunda tarefa avaliar a
frequncia e a dimenso dessa presena para caracterizar a segunda hiptese: o interesse
e a discusso crescentes sobre a questo da subjetividade nos escritos imediatamente
8 Ser e Tempo ultrapassa de muito uma obra de filosofia. um marco na caminhada do pensamento pela
histria do Ocidente. (CARNEIRO LEO, Emmanuel. In. HEIDEGGER, 1927a). Citamos duas obras,
exclusivamente dedicadas ao tema, que do dimenso da importncia de Ser e tempo na histria da
filosofia: o Heidegger and Being and Time, de Stephen Mulhall (MULHALL, 2000), e o impressionante
trabalho de Theodore Kisiel, The Genesis of Heideggers Being & Time (KISIEL, 1995).
22
posteriores a Ser e tempo. Por ltimo, uma caracterizao inicial das situaes
especficas em que a questo do sujeito se mostra na obra, essa caracterizao
preliminar ser direcionada pelo desenvolvimento do projeto heideggeriano. Nossa
terceira hiptese a confirmar envolve dois aspectos singulares: a superao do
pensamento kantiano e a implicao de uma reapropriao do conceito de verdade.
Em primeiro lugar perceptvel que em Ser e tempo encontram-se menos
referncias questo da subjetividade que em outras obras de Heidegger. Mas elas esto
l. A primeira passagem em que a palavra sujeito se apresenta est no pargrafo sexto:
Na medida em que, no curso dessa histria, se focalizam certas
regies privilegiadas do ser que passam ento a guiar, de maneira
primordial, toda a problemtica (o ego cogito de Descartes, o sujeito,
o eu, a razo, o esprito, a pessoa), essas regies permanecem
inquestionadas quanto ao ser e estrutura de seu ser, de acordo com o
consoante descaso da questo do ser. (HEIDEGGER, 1927a, p. 51).
Dessa passagem podemos retirar algumas hipteses. Primeiro percebemos que
as regies do ser arroladas equivalem a diferentes abordagens da questo que
procuramos evidenciar: a questo da subjetividade. A afirmao categrica, portanto a
questo da subjetividade permanece inquestionada. Ainda uma ltima informao
deriva da citao: a falta de questionamento da subjetividade um reflexo da falta de
questionamento acerca do sentido do ser.
J neste primeiro passo podemos afirmar que a questo da subjetividade est
presente em Ser e tempo, afinal apenas tratando de sua problemtica poderia Heidegger
inferir pelo seu esquecimento. Afirmar que algo permanece encoberto no deixa de ser
uma abordagem desse objeto. A subjetividade, ainda que em sentido restrito e negativo,
aparece na antecipao9 que os pargrafos quinto e sexto fazem do projeto
heideggeriano.
O pargrafo sexto trata de definir antecipadamente a tarefa de destruio
fenomenolgica da histria da ontologia. A subjetividade moderna surge como ponto
fundamental dessa histria. Se o esquecimento da questo do ser se reflete na metafsica
e sua histria, o sujeito moderno precisa fazer parte desse reflexo. Heidegger
forosamente h que incluir num resgate do sentido da questo do ser uma
reapropriao desse momento singular em que se cristaliza a noo de subjetividade.
9 O pargrafo quinto antecipa resumidamente os passos da primeira parte do tratado; e o pargrafo sexto
faz o mesmo com a segunda parte.
23
Conquistamos assim mais uma concluso: h no projeto da Destruktion,
precisa haver forosamente nesse projeto, uma tomada de posio frente questo da
subjetividade. Ser e tempo prev esta tarefa e a exige em sua arquitetura. Em poucas
palavras, a questo do ser s pode ser colocada porque no est adequadamente
respondida. O motivo de sua precria resposta est no esquecimento que a metafsica
tradicional manifesta, um destino a que chegou o prprio movimento histrico da
ontologia ocidental. O trabalho para resgatar o sentido do questionamento ontolgico
passa por dois caminhos: a analtica do Dasein, via de acesso ao desvelamento da
verdade do ser; e a reapropriao da histria da ontologia, a Destruktion. No h sentido
nessa segunda tarefa sem abordar a questo da subjetividade moderna, manifestao
central da metafsica tradicional durante a modernidade.
Evidncia desse raciocnio se apresenta na sequncia do pargrafo sexto. Ao
mencionar o pensamento de Kant, Heidegger chega a afirmar numa verdadeira
antecipao da diviso um da segunda parte de seu projeto razes pelas quais o
filsofo permanece preso tradio sem realizar o resgate da pergunta pelo ser10
:
Tambm haver de mostrar porque Kant fracassou na tentativa de
penetrar na problemtica da temporariedade. Duas coisas o
impediram: em primeiro lugar, a falta da questo do ser e, em ntima
conexo com isso, a falta de uma ontologia explcita da presena ou,
em terminologia kantiana, a falta de uma analtica prvia das
estruturas que integram a subjetividade do sujeito. (HEIDEGGER,
1927a, p. 52-3).
Ao reforado tema da ligao entre a questo do ser e a da analtica do Dasein,
soma-se a traduo do termo em terminologia kantiana. Aqui uma determinao da
relao entre Dasein e a subjetividade transcendental: o que Heidegger chama de
ontologia explcita do Dasein, Kant chamaria (segundo o prprio Heidegger) de
analtica prvia das estruturas que integram a subjetividade do sujeito.
No se trata de uma sinonmia plana. No passa nem perto da coerncia
afirmar, com base no trecho, que o Dasein equivalente ao conceito de sujeito. A
concluso razovel seria que a ontologia do Dasein resultado de uma analtica prvia
das estruturas que integram a subjetividade do sujeito. O Dasein, portanto, equivale a
qualquer instncia da subjetividade na medida em que a reconstri, atravs da analtica
de suas estruturas. A natureza dessa analtica o fator decisivo que desequilibra uma
10
No caso j pressuposto o desenvolvimento da estrutura do Dasein em volta da temporalidade. O ser
da presena tem seu sentido na temporalidade. (HEIDEGGER, 1927a, pg. 47)
24
equiparao plana entre os conceitos. A analtica segue, conforme os princpios
apresentados no pargrafo a que pertence o trecho, o fio condutor da questo do ser (p.
51). ela na verdade a prpria Destruktion em seu incio, a primeira diviso da parte
dois, acerca da doutrina kantiana. O tema ser explorado posteriormente nas obras sobre
Kant que suprem essa diviso no publicada, apenas adiantada neste pargrafo.
Guardemos a concluso: a subjetividade surge pela primeira vez em Ser e tempo na
discusso antecipatria acerca da primeira diviso da parte dois do tratado: a
Destruktion e o pensamento kantiano.
A referncia ao pensamento kantiano no meramente exemplificativa ou
cronologicamente orientada. Sua importncia reside na caracterstica nica que seu
pensamento possui, que o torna a primeira via para a realizao de uma destruio da
histria da ontologia. Para Heidegger, Kant foi o nico pensador que se aproximou da
questo do sentido do ser por tematizar a problemtica da temporalidade como seu
princpio.
De acordo com a tendncia positiva da destruio, deve-se perguntar
de sada se, e at onde, no curso da histria da ontologia, a
interpretao do ser est tematicamente articulada com o fenmeno do
tempo e se, e at onde, a problemtica da temporariedade, aqui
necessria, foi e podia ser elaborada em princpio. Kant foi o primeiro
e o nico a dar um passo no caminho de investigao para a dimenso
da temporariedade. (HEIDEGGER, 1927a, p. 52).
Esse primeiro passo, cujo caminho posterior seria o caminho trilhado por
Heidegger, implica uma ligao entre a origem estrutural de Ser e tempo com o
pensamento kantiano, com os passos subsequentes no realizados. O caminho indicado
pelo passo kantiano associado fenomenologia vide pargrafo oitavo: Segunda
parte: Linhas fundamentais de uma destruio fenomenolgica da histria da ontologia,
seguindo-se o fio condutor da problemtica da temporariedade. (HEIDEGGER, 1927a,
p. 71) implica um ponto de ligao que premissa bsica em nossa argumentao.
Kant e Husserl, de modo interligado na estrutura da Destruktion, moldam o caminho
que Heidegger ir trilhar na segunda parte de Ser e tempo. E caso possamos afirmar que
a questo da subjetividade est inserida nesse contexto, ento na apropriao dspar do
pensamento kantiano por Heidegger e seu mestre Husserl teremos um argumento para
demonstrar a incompatibilidade da tese continusta de uma subjetividade heideggeriana
como desenvolvimento do sujeito husserliano.
25
O tema do sujeito no est, porm, restrito ao pargrafo preparatrio, ou
antecipatrio, sexto. Em passagem posterior, volta Heidegger ao questionamento da
subjetividade agora em outro contexto. No pargrafo dcimo, encontramos a seguinte
referncia:
Uma das primeiras tarefas da analtica ser, pois, mostrar que o
princpio de um eu e sujeito, dados como ponto de partida, deturpa, de
modo fundamental, o fenmeno da pre-sena. Toda idia de sujeito
enquanto permanecer no esclarecida preliminarmente mediante uma
determinao ontolgica de seu fundamento refora, do ponto de
vista ontolgico, o ponto de partida do subjectum (), por mais que, do ponto de vista ntico, se possa arremeter contra a
substncia da alma ou a coisificao da conscincia.
(HEIDEGGER, 1927a, p. 82).
Como se percebe na primeira linha do trecho, neste ponto do trabalho
Heidegger j est enfrentando a tarefa da analtica existencial. Esta corresponde em seu
programa diviso um da primeira parte: A primeira parte divide-se em trs sees: 1.
A anlise preparatria dos fundamentos da presena. [...] (HEIDEGGER, 1927a, p.
71). Seguindo a organizao do livro esta diviso se inicia no pargrafo nono com O
tema da analtica da pr-sena (HEIDEGGER, 1927a, p. 77) que, somado aos
pargrafos dcimo e onze, correspondem ao primeiro captulo da diviso: Exposio da
tarefa de uma anlise preparatria da pr-sena. J nas primeiras linhas do pargrafo se
mostra o contexto em que devemos nos mover quando comentamos a passagem citada:
10. A delimitao da analtica da presena face antropologia,
psicologia e biologia.
Depois de se ter delineado positivamente o tema de uma
investigao, sempre importante caracterizar negativamente seu
propsito, embora discusses sobre o que no deve acontecer se
tornem, muitas vezes, infrutferas e estreis. (HEIDEGGER, 1927a, p.
81)
A concluso fcil: nesse pargrafo estar exposto aquilo que no serve como
caracterizao do modo de ser do Dasein. Estamos diante de uma caracterizao
negativa. A caracterizao positiva do Dasein est esboada no pargrafo precedente em
dois caracteres: o primado da existncia frente essncia e o ser sempre minha
(HEIDEGGER, 1927a, p. 79). Nesse ponto, Heidegger utiliza-se do termo existencial, j
apresentado no pargrafo quarto na pgina 39, para caracterizar o Dasein. O primado
da existncia e o ser sempre minha so existenciais do Dasein em oposio s
26
categorias das ditas cincias, antropologia, psicologia e principalmente biologia. Essa
oposio est declarada nas ltimas linhas do nono pargrafo, imediatamente antes
daquele cuja passagem tentamos aqui contextualizar:
A analtica existencial da pr-sena est antes de toda psicologia,
antropologia e, sobretudo, biologia. A delimitao frente a estas
possveis investigaes da pr-sena pode tornar ainda mais preciso o
tema da analtica. E a necessidade da analtica deixa-se ento
comprovar de maneira ainda mais penetrante e profunda.
(HEIDEGGER, 1927a, p. 81).
Sabemos agora o que Heidegger faz no pargrafo dcimo: caracterizao
negativa do Dasein. E para que o faz: tornar mais preciso o tema da analtica e
comprovar sua necessidade. Por fim, o modo como essa caracterizao negativa se
apresenta envolve uma distino entre existenciais, caracterizadores positivos, e
categorias, caracterizadores negativos do Dasein.
Denominamos os caracteres ontolgicos da pr-sena de
existenciais porque eles se determinam a partir da existencialidade.
Estes devem ser nitidamente diferenciados das determinaes
ontolgicas dos entes que no tm o modo de ser da pr-sena, os
quais chamamos de categorias. (HEIDEGGER, 1927a, p. 80).
Essa distino absolutamente indispensvel para qualquer tentativa de
estipular a questo da subjetividade e sua ligao com o fenmeno do Dasein. Se ele
caracterizado por existenciais, ento sua pretensa subjetividade s poder surgir ou se
manifestar atravs dessa estrutura. O horizonte existencial define que o homem se
mostra na sua relao com o ser dos entes, relao ontolgica, e no em sua relao,
normalmente cognitiva e cientfica, ou seja, categorial, com os entes. Somos
existenciais, movemo-nos frente dimenso ontolgica anteriormente dimenso
ntica.
A primazia ontolgica enquanto caracterizadora do fenmeno do Dasein uma
das chaves para separar seu pensamento dos seus antecessores cuja proximidade alegada
constitui o argumento objeto desta tese. Guardemos essa distino entre existencial e
categorial para posterior apreciao, quando tentaremos formar uma analogia entre
Heidegger e Kant-Husserl. Por ora, fixemos a percepo de dois planos na
caracterizao do Dasein: o ontolgico, existencial e positivo do pargrafo nono, e o
ntico, categorial e negativo do pargrafo dcimo. Daquele retiramos os existenciais
27
primado da existncia e o ser sempre minha do Dasein, deste afastamos as
categorias da psicologia, antropologia e biologia. Porm esse afastamento significa uma
total rejeio ao princpio de uma subjetividade? Retomemos a discusso da passagem.
De volta passagem na pgina 82, percebemos o acrscimo de um detalhe
importante a este contexto: a noo de uma ordem a ser respeitada! o princpio de um
eu e sujeito, dados como ponto de partida, deturpa, de modo fundamental, o fenmeno
da pre-sena.. A subjetividade deturpa o fenmeno do Dasein. Essa uma concluso.
Mas, seguindo adiante, em que condies essa subjetividade o deturpa? A subjetividade
sempre deturpar o fenmeno do Dasein? A frase de Heidegger mostra que no. H
uma condio para que o princpio do eu torne a analtica existencial deturpada. Esta
condio tomar este princpio da subjetividade como ponto de partida.
As concluses sobre a condio ponto de partida podem ser perigosamente
enganosas. Aquilo que podemos inferir de um condicional so a afirmao do
consequente por modus ponens, ou negao do antecedente por modus tollens. Ou seja,
podemos afirmar com a sentena que se h subjetividade como ponto de partida, h
deturpao do fenmeno do Dasein. Portanto, j que claro que Heidegger no deseja
deturpao do fenmeno do Dasein em sua analtica, inferimos que no pode haver
subjetividade dada como ponto de partida. A negao do antecedente, falcia
conhecida, pode nos levar ao seguinte problema: no havendo subjetividade tomada
como ponto de partida, seguindo a frase de Heidegger, no haver deturpao no
Dasein. Seguindo adiante: se consideramos alguma forma de subjetividade qualquer,
no como ponto de partida, temos a negao da condio. Mas isso no implica a
concluso apressada de negao da consequncia! Considerar que a subjetividade
heideggeriana aquela que no tomada como princpio de partida, baseando-se nessa
negativa, erro lgico infantil.
Se h subjetividade no pensamento heideggeriano, ela no princpio, ponto de
partida, ou axioma inicial de qualquer tipo de teorizao. Porm isso no garantia de
que tal subjetividade esteja presente. Para que possamos afirmar algo assim, teramos
ainda algumas condies a serem atendidas. O fenmeno do Dasein precisa evitar as
deturpaes, pois assim trataramos daquilo que est no projeto heideggeriano, no
comprovadamente atingido. E a subjetividade, se esse projeto confirmar-se, ainda pode
ser vislumbrada hipoteticamente caso no se considere como ponto de partida.
Enfim, se h subjetividade em Heidegger, ela pode consistir em um ponto de
partida, caso o fenmeno que apresentado na analtica contenha deturpaes alheias
28
vontade de seu autor, ou se essa subjetividade um modo de ser posterior a outras
estruturas ontolgicas e no sua base.
A discusso sobre a efetiva realizao do projeto heideggeriano foge ao nosso
objetivo. O argumento de uma subjetividade heideggeriana, no entanto, invoca essa
tarefa. O continusmo entre o pensamento de Husserl e Heidegger, todavia, pode ter
como questo de decidibilidade, no tangente ao quesito subjetividade, uma
possibilidade de soluo afastada desse problema, que permite, segundo seu projeto,
evitar a deturpao do fenmeno do Dasein. Para decidir sobre a fora da
fenomenologia husserliana no pensamento de Heidegger, tomamos como base o que ele
de fato realiza e no o que poderia ter realizado. No interessa ao cotejamento do
argumento continusta aquilo que falta ser afastado da analtica existencial para
manifestar um fenmeno ontolgico do Dasein, mas aquilo que de fato foi afastado,
sobre aquilo a que Heidegger se dirige. Aquilo que Husserl no realiza e que no est
realizado em Heidegger no garante uma continuidade, apenas o desenvolvimento
positivo garante fora ao argumento continusta, no a falta de desenvolvimento.
Concordar ou discordar nesse ponto implica aceitar toda uma viso sobre a
questo da subjetividade que ampla e mais abrangente que a discusso do argumento
continusta. Na posterior apresentao deste, colocaremos uma posio razovel para
enfrentar o problema: considerar como base de deciso a principal dificuldade para
efetivar o projeto de uma analtica existencial em relao ao afastamento das
deturpaes de um princpio subjetivo, a questo da verdade. Heidegger encontra nesse
questionamento um ponto necessrio de substituio da subjetividade tradicional por
sua abordagem existencial. No por acaso que o tema se encontra no pargrafo
quarenta e quatro, ltimo da primeira diviso. Afastar a subjetividade enquanto ponto de
partida exige uma retomada de um conceito fundamental: o conceito de verdade.
Assim, na questo sobre o ser da verdade e sobre a necessidade de sua
pressuposio, bem como na questo sobre a essncia do
conhecimento supe-se um sujeito ideal. O motivo implcito ou
explcito dessa suposio reside na exigncia justa, que, no entanto,
tambm precisa ser fundamentada ontologicamente, de que a filosofia
tem como tema o a priori e no os fatos empricos como tais. Mas
ser que a suposio de um sujeito ideal satisfaz a essa exigncia?
Ele no seria um sujeito fantasticamente idealizado? No conceito de
um tal sujeito no estaria faltando justamente o a priori do sujeito de
fato, isto , da pre-sena? No pertence ao a priori do sujeito de fato,
ou seja, facticidade da pre-sena, a determinao de que ela e est,
29
de modo igualmente originrio, na verdade e na no verdade?
(HEIDEGGER, 1927a, p. 298-9).
O a priori do sujeito que necessrio para reformular a questo da verdade e
do conhecimento, esse modo anterior metafsica de manifestao da subjetividade, a
apropriao daquilo que no pargrafo nono anunciou-se como existencial: a primazia da
existncia sobre a essncia. A dimenso ontolgica do homem anterior s categorias
nticas, e na imposio dessa anterioridade est a inverso do pensamento
heideggeriano. No posso pensar a verdade a partir do sujeito, posso pens-la apenas se
essa pressuposio da subjetividade j estiver desdobrada em suas pressuposies
peculiares, em seu a priori, em sua dimenso ontolgica.
Compartilha esse trecho com aquele citado da pgina 82 a ideia que o sujeito
no pode ser jamais o ponto de partida de uma filosofia que se pretenda originria.
Porm, apesar de no ser de modo algum um ponto de partida, notamos aqui uma
exigncia. A questo da verdade e a questo do conhecimento exigem, e a exigncia
justa, um sujeito ideal, motivado pelo tema a priori da filosofia. A concluso
admitir que se h interesse da parte de Heidegger em estabelecer alguma investigao
sobre a verdade essa ter de passar pela investigao da subjetividade, na medida em
que investiga o a priori. Verdade e subjetividade se interpenetram e pertencem
mutuamente.
Alm dessa concluso, uma ressalva: essa exigncia de uma subjetividade
precisa ser fundamentada ontologicamente. Pois o sujeito ideal no atende exigncia
do pensamento sobre a verdade. uma pressuposio vazia na medida em que no
atinge a dimenso filosfica por no manifestar o a priori de sua prpria concepo. A
subjetividade idealizada surge de uma necessidade da filosofia de compreender o
conhecimento e a verdade em seus elementos a priori. Mas a pressuposio do sujeito
apenas muda a questo de direo sem a resolver, j que tambm a subjetividade
pressupe uma estrutura a priori. Essa deve ser fundamentada para solucionar o
problema e findar com a mera mudana de nomes para o mesmo problema.
Heidegger chama de sujeito de fato como equivalente do Dasein em dois
momentos nesse trecho. Ainda coloca que o sujeito de fato em seu a priori corresponde
facticidade do Dasein. A concluso natural a confirmao da hiptese j colocada ao
final do ponto 1.1 sobre a correo da subjetividade que representa o Dasein.
Lembremos das locues subjetividade bem entendida, corretamente considerada dos
30
Problemas bsicos da fenomenologia. A distino entre sujeito fantasticamente
idealizado e a priori, do sujeito de fato ou facticidade do Dasein leva a crer que a
correo do sujeito moderno de fato estava inserida no projeto heideggeriano j nos
termos de Ser e tempo. Ainda em carter preparatrio, ainda apenas anunciada, mas com
indcios fortes de sua presena e relevncia.
Por fim, uma ltima passagem revela a origem dessa discusso acerca do a
priori da subjetividade. A linguagem no nos deixa enganar, o tema tem razes
kantianas:
Sem dvida, Kant no est preocupado com uma interpretao
temtica da orientao. Ele pretende apenas mostrar que toda
orientao necessita de um princpio subjetivo. Subjetivo significa
aqui a priori. O a priori do direcionamento segundo direita e esquerda
funda-se, por sua vez, no a priori subjetivo do ser-no-mundo, o que
nada tem a ver com uma determinao previamente restrita a um
sujeito destitudo de mundo. (HEIDEGGER, 1927a, p. 158-9).
O a priori enquanto subjetividade ideal encontra em Kant seu melhor exemplo.
O a priori enquanto princpio subjetivo kantiano encontra fundamento no a priori
subjetivo do ser-no-mundo. Ser-no-mundo outro existencial do Dasein. A sugesto
do raciocnio, alm de base para o questionamento do conhecimento e verdade
anteriormente colocado, que a fundamentao ontolgica da subjetividade pode ser
realizada atravs do fenmeno do Dasein. Essa hiptese no pode ainda ser confirmada,
mas surge da leitura de Ser e tempo. Ainda uma ressalva: mesmo considerada a hiptese
no h que se falar em equivalncia entre sujeito e Dasein. A subjetividade pode ter seu
fundamento ontolgico no Dasein, mas este no se restringe a isso: o Dasein no se
resume ao conceito de sujeito ontologicamente considerado. De sua anlise, da analtica
existencial, considerando a hiptese de uma correo da subjetividade, podemos inferir
atravs do modo de ser do Dasein uma fundamentao ontolgica da subjetividade.
Dasein o lugar de onde tal fundamentao surge, o sujeito pode ser fundado no
Dasein, e no o contrrio. Isso impossibilita qualquer tentativa de chamar ao Dasein
sujeito, ao menos baseado no fato de estar naquele a fundamentao deste.
Ponto a ser observado a posio de Kant nessa fundao ontolgica. Ele
aparentemente se apercebeu de sua necessidade, tentou realiz-la e em algum momento
recuou para o sujeito idealizado, que criticado no pargrafo quarenta e quatro. Por sua
proximidade da questo ontolgica est Kant destinado a preencher as pginas da
31
primeira diviso da segunda parte de Ser e tempo. A Destruktion comea no ponto em
que Kant parou e recuou: Para que a expresso ser venha a adquirir um sentido
verificvel, deve-se esclarecer, em princpio e explicitamente, diante de que Kant, por
assim dizer, recua. (HEIDEGGER, 1927a, p. 52). Esse recuo colocado exatamente no
incio do sexto pargrafo, j comentado como precursor ou adiantamento temtico da
tarefa da Destruktion. Continua o pargrafo: Na medida em que assume a posio
ontolgica de Descartes, Kant omite uma coisa essencial: uma ontologia da pr-sena.
(HEIDEGGER, 1927a, p. 53).
Enfim, antes de passarmos apreciao dos textos posteriores a 1927, nos
quais poderemos confirmar ou refutar as ideias aqui desenvolvidas, precisamos assumir
alguns pontos como hipteses para serem postas prova. Primeiro parece razovel, a
partir dos textos de 1927, assumir que a questo da subjetividade est presente. A tarefa
agora comparar o modo como surge nos textos posteriores e confirmar se ela se
desenvolve como realizao da Destruktion. A hiptese da Destruktion passa pela
afirmao da ligao entre a questo da subjetividade e o pensamento kantiano. Esse
pensamento o ponto de partida para abordar a questo. Por fim, a terceira hiptese se
refere ligao entre a verdade e o conhecimento e questo da subjetividade. A
questo do sujeito, conforme apresentada no pensamento kantiano, precisa ser
ontologicamente fundamentada numa reconstruo do prprio conceito de verdade e
conhecimento. Resumindo: h um questionamento acerca da subjetividade na obra de
Heidegger em 1927. Segundo esse questionamento, Kant o ponto de partida para uma
destruio e superao do sujeito. O resultado dessa superao exige uma nova noo de
verdade.
1.3 Localizando a questo da subjetividade: Fundamentos metafsicos da lgica
Os Fundamentos metafsicos da lgica consiste no curso de quatro horas
semanais do semestre de vero, ltimo ministrado por Heidegger em Marburgo, de
1928. Originalmente Logik, o ttulo do curso foi ampliado na edio de 1978, seguindo
os manuscritos do prprio Heidegger, para Fundamentos metafsicos da lgica. Sua
realizao dista um ano do aparecimento de Ser e tempo e do curso Problemas bsicos
da fenomenologia. Ainda anterior ao curso de 1928 encontra-se a importante obra
Interpretao fenomenolgica da crtica da razo pura, curso de inverno de 1927/1928.
32
Por fim, ainda levaria um semestre para o curso de inverno Introduo filosofia de
1928/1929 e cerca de um ano para o Kant e o problema da metafsica.
O ttulo do curso pode no levantar suspeitas maiores, mas nas suas passagens
est a mais frontal posio do perodo quanto s questes da subjetividade do sujeito,
nos moldes impostos pela analtica existencial. A anlise dos primeiros captulos sobre
o princpio de razo suficiente e o pensamento de Leibniz d lugar, nos ltimos
pargrafos, ao reposicionamento dos pargrafos doze e treze de Ser e tempo. Essa
recolocao tem um perfil voltado para a questo da transcendncia do Dasein, e em sua
especificao encontramos nossa melhor aposta para caracterizar aquilo que se pode
compreender como a subjetividade do sujeito no pensamento heideggeriano.
Mesmo nos pargrafos dedicados a analisar a verdade da proposio, e talvez
exatamente derivando dessa possibilidade, surge a necessidade de colocar o
questionamento do sujeito. H um incio exploratrio dos fundamentos ontolgicos da
subjetividade na anlise da transcendncia do Dasein. Por baixo de todo o problema
anterior da relao do sujeito para o objeto est o indiscutido problema da
transcendncia (HEIDEGGER, 1928b, p. 135).
Esse percurso segue uma dimenso j preparada em Ser e tempo referida pelo
prprio Heidegger:
Este fenmeno de transcendncia no idntico com o problema da
relao sujeito-objeto, mas mais primordial em dimenso e tipo
como problema; ele diretamente conectado com o problema do ser
enquanto tal, (cf. Ser e tempo, 12 e 13; e repetidamente feito mais
visvel em estgios, cf. 69 e 83.) (HEIDEGGER, 1928b, p. 135).
O fenmeno da transcendncia ser ento ceracterizado como ser-no-mundo:
O problema da transcendncia enquanto tal no de modo algum
idntico ao problema da intencionalidade. Como transcendncia
ntica, a segunda em si mesma apenas possvel sobre a base da
transcendncia original, sobre a base do ser-no-mundo. Esta
transcendncia primria torna possvel toda relao intencional ao
ente. (HEIDEGGER, 1928b, p. 135).
Se ento a transcendncia primordial (ser-no-mundo) torna possvel a
relao intencional e se a segunda , no entanto, uma relao ntica, e
a relao para o ntico fundada no entendimento-do-ser, ento deve
haver uma relao intrnseca entre a transcendncia primordial e o
entendimento-do-ser. Eles devem ser, no fim das contas, um e o
mesmo. (HEIDEGGER, 1928b, p. 135-6).
33
Em sequncia, no pargrafo dcimo, trata dos problemas levantados em Ser e
tempo. Recoloca posicionamentos acerca do Dasein e em certo ponto os revela numa
interpretao de Parmnides contra a viso epistemolgica. Para Heidegger, este no se
move no plano de uma diviso entre sujeito e objeto, como definida pela teoria do
conhecimento moderna.
Parmnides j havia reconhecido e focado a correlao entre e
: (Frag. 3). Aqui importante primeiro eliminar desentendimentos. Houve tentativas
durante o sculo dezenove de utilizar esta afirmao em vrias
concepes de teorias do conhecimento. Nela foi vista uma das
primeiras fascas do idealismo, como se Parmnides defendesse que
o sujeito quem primeiro coloca os seres como seres, ou como se
Parmnides tivesse pensado, como alguns acreditam ter defendido
Kant, que os objetos se ordenam segundo nosso conhecimento. Tudo
isto contm um certo ncleo de verdade, tanto porque foi
primeiramente colocado por Parmnides que o ser relacionado ao
sujeito. Mas aqui importante notar que o em correlao com o
no ainda claramente diferenciado do ; mas isto certamente
no significa que o somente se tornaria um ente na medida em que
produzido e causado por um . No h dependncia ntica causal ou posio intentada. Isto seria to prematuro quanto
procurar em Parmnides a assim chamada predileo pela crtica, i.e.,
intenes epistemolgicas no sentido de uma revoluo copernicana,
que, ainda por cima, reside numa m interpretao de Kant.
(HEIDEGGER, 1928b, p. 142). Para entender a abordagem de Parmnides e seu desenvolvimento na
filosofia grega temos que manter em mente: 1) O [ser] no deriva
onticamente do ou (Estes ltimos so, dizendo melhor,
um , um tornar manifesto.); 2) No estamos lidando com uma tese epistemolgica sobre uma inverso do padro pelo qual o
conhecimento medido. Estas duas interpretaes errneas residem
metafisicamente na relao sujeito-objeto, e tomam o problema muito
superficialmente. Como a passagem no Theaetetus [185a ff.] mostra
que o problema, na verdade concerne ao ser, mesmo que aqui apenas
de forma incipiente, e este problema orientado ao sujeito enquanto
. Neste ponto o que chamamos subjetividade est ainda tnue. Devemos conseqentemente distinguir o que expressamente,
conscientemente reconhecido como subjetividade, em termos como
, , , , , e ; Mas o modo como a
subjetividade funciona de forma bastante diferente em e
, este tambm reconhecido, mesmo que no em sua funo ontolgica. O resultado positivo para o problema do ser a obteno
de algumas conexes especiais entre o ser e a subjetividade (Dasein).
(HEIDEGGER, 1928b, p. 143-4)
34
Procuramos aqui no revisitar o pensamento de Heidegger sobre a filosofia
grega, tarefa fora de nossos objetivos. Apenas indicamos atravs desse trecho a ligao
entre uma interpretao no epistemolgica que se estende a Kant e a correta apreenso
da subjetividade, aqui sem nenhuma ressalva indicada pelo modo de ser do Dasein. A
colocao condiz com a conhecida prioridade dada por Heidegger ao pensamento pr-
socrtico e representa j uma antecipao de sua terceira diviso da segunda parte de
Ser e tempo.
No contexto de uma busca pela perspectiva no epistemolgica para a
subjetividade, encontra-se Heidegger com os antigos. O vis de teoria do conhecimento
s pode ser superado com uma renovao da noo de verdade. Ao relacionar a noo
de verdade com a teoria do conhecimento, a relao entre sujeito e objeto se impe, da
a necessidade de superar essa dicotomia se pretendemos superar a noo
correspondentista de verdade.
Os elementos que colocam a prioridade de uma reapropriao da subjetividade
passam pela negao de uma filosofia como epistemologia, e tal projeto exige uma
noo de verdade diferente da adequao tradicional. A destruio da histria da
ontologia encontra na subjetividade um passo para destruir o prprio conceito de
verdade que a levou para o caminho de uma filosofia epistemolgica, e at mesmo para
a tcnica e cincia que hoje dominam o cenrio acadmico.
H no livro colocao acerca de passos fundamentais para enfrentar o
problema da subjetividade. Passos sobre os quais Heidegger e Max Scheler acordaram
em dezembro de 1927:
Em nossa ltima longa conversa em dezembro de 1927, concordamos
em quatro pontos: 1) O problema da relao sujeito-objeto precisa ser
levantado de modo completamente novo, livre dos esforos anteriores
de soluo. 2) Esta no uma questo da epistemologia; ou seja, no
deve ser levantada primariamente com respeito a um sujeito que
apreende um objeto; como uma apreenso no pode ser pressuposta de
incio. 3) O problema tem importncia central para a possibilidade da
metafsica e intimamente ligado ao seu problema bsico. 4) O quarto
e mais importante ponto do acordo foi que o momento este, agora
quando a situao da filosofia oficial desesperanada, arriscar
novamente o passo em uma metafsica autntica, ou seja, desenvolver
a metafsica dos seus fundamentos. (HEIDEGGER, 1928b, p. 131-2).
A concluso primeira a derivar do trecho diz respeito ao colocado
anteriormente quanto relao entre o estudo da subjetividade e o conceito de verdade.
35
Essa relao est mediada pela necessidade de escapar ao vis epistemolgico que o
lugar da diviso sujeito e objeto, e da verdade correspondentista. A possibilidade de
superao para tanto ser a pr-compreenso do mundo atravs da significncia, uma
instncia anterior ao conhecimento terico e marcantemente prtica. Conhecer apenas
uma forma derivada da relao do homem com o mundo, essa perspectiva permitir
uma recolocao dos problemas da subjetividade fora da perspectiva epistemolgica.
Segundo, torna-se clara uma tentativa de resgate da metafsica. Esse resgate
corresponde ao trabalho de Destruktion e seu seguimento. No difcil associar a ideia
da destruio ao movimento de desenvolver a metafsica em seu caminho de volta.
Ainda em relao ao plano metafsico a afirmao trs, em nossa interpretao, indica
que a diviso sujeito e objeto se encontra na possibilidade mesma da metafsica por
constituir pressuposto necessrio do conceito de verdade correspondentista a que a
tradio est atrelada. No toa que o tema surge no pargrafo nono, A essncia da
verdade e sua relao essencial ao fundamento (HEIDEGGER, 1928b, p. 123), e
apenas na segunda seo: b) Intencionalidade e transcendncia (HEIDEGGER,
1928b, p. 128), aps a colocao do conceito tradicional correspondentista a) A
essncia da verdade proposicional (HEIDEGGER, 1928b, p. 123). O conceito de
verdade da proposio insuficiente para a Destruktion por mais um motivo alm do
vis epistemolgico que suscita: a impossibilidade de satisfazer a qualquer projeto de
fundamentao: Posteriormente se torna claro que se o ser-verdadeiro de um enunciado
no primordial, e se fundamento , no entanto, essencialmente relacionado verdade,
ento o problema primordial do fundamento no pode ser concebido se temos como
base a verdade proposicional. (HEIDEGGER, 1928b, p. 128).
nesse contexto de superao da verdade da proposio esboada nas
primeiras partes do pargrafo nono que Heidegger, em um passo preparatrio, coloca
uma abordagem do problema da subjetividade:
Algum poderia acreditar que h um ser-pelas-coisas e ento tambm
um ente dado mo [Vorhandensein], o primeiro pertencendo
subjetividade do sujeito. Mas subjetividade, se acredita,
caracterizada pelo posicionamento de uma relao sujeito-objeto. O
ltimo entendido como ente dado mo junto do sujeito e do objeto,
no sentido que nenhum deles sem o outro; h (1) um objeto mo
com cada sujeito, e (2) um sujeito mo com cada objeto.
(HEIDEGGER, 1928b, p. 128).
36
Os dois modos de pensar a subjetividade demonstram uma diferena entre uma
subjetividade posta posteriormente prpria separao entre os mbitos subjetivo e
objetivo. O resultado mesmo da compreenso epistemolgica fundada na verdade da
proposio. O segundo caso implica a inseparabilidade originria que desafia a posio
anterior. No pode haver sujeito isolado sem objeto e vice-versa.
Demonstrada a impossibilidade de isolamento est demonstrada a insuficincia
da separao entre sujeito e objeto tomados como ponto de partida. A relao entre
sujeito e objeto possui um fundamento originrio que implica sua inseparabilidade e que
deve ser buscado no contexto de superao da verdade da proposio, passo necessrio
da Destruktion. No podemos caracterizar a subjetividade a partir da separao sujeito e
objeto; o caminho a ser tomado, aparentemente, o oposto, sob pena de perder o
fundamento originrio da prpria relao.
Quando se apela para a relao sujeito-objeto, especialmente para
caracterizar a subjetividade, ento deve ser dito que, nesta relao
sujeito-objeto e na apelao a ela, algo essencial omitido e algo
crucial se perde. As caractersticas desta relao entre so omitidas,
a prpria coisa a ser explicada. O conceito genuno de subjetividade
est faltando, assim como segue despercebido que a relao a
pertence essncia da subjetividade. (HEIDEGGER, 1928b, p. 129).
Posteriormente, no mesmo pargrafo, ir indicar que a anlise da subjetividade
est previamente colocada em Ser e tempo. E mais ainda: uma de suas tarefas
preparatrias principais! A questo da subjetividade, uma das tarefas principais de sua
obra mxima. Uma das mais importantes tarefas preparatrias de Ser e tempo trazer
esta relao radicalmente luz em sua essncia e fazer isto em toda a sua
possibilidade (cf. 12 e 13 como a primeira caracterizao introdutria).
(HEIDEGGER, 1928b, p. 131).
A caracterizao da relao se define por transcendncia do Dasein conforme
j colocado anteriormente. E exatamente este o ttulo do pargrafo subseqente: O
problema da transcendncia e o problema de Ser e tempo (HEIDEGGER, 1928b, p.
136) e tambm do pargrafo onze, A transcendncia do Dasein (HEIDEGGER,
1928b, p. 159).
Esses pargrafos, segundo Heidegger (1928b, p. 136), recolocam os pontos
principais de Ser e tempo, realando o problema da transcendncia, o problema prprio
da subjetividade que resgata o existencial ser-no-mundo. Se h uma investigao da
37
subjetividade no pensamento de Heidegger no perodo imediatamente prximo a Ser e
tempo, esta se encontra nesses pargrafos. Sua reapropriao da obra anterior evidencia
a confessa tentativa de desenvolver os pargrafos doze e treze de Ser e tempo. Aqui
concedemos hiptese de haver no pensamento de Heidegger um questionamento da
subjetividade nossa concordncia. H em Heidegger um questionar pela subjetividade.
H nesse questionar uma trajetria at agora caracterizada como preparatria e
finalmente desenvolvida positivamente no conceito de transcendncia do Dasein.
Caracterizaremos agora essa transcendncia e por fim terminaremos a tarefa de localizar
a questo do sujeito em Heidegger com sua posterior reflexo sobre sua investigao
nos textos de 1929.
1.3.1 A transcendncia do Dasein: pargrafos dez e onze dos Fundamentos
metafsicos da lgica
Os dois pargrafos do final dos Fundamentos metafsicos da lgica
representam, tanto em seu ttulo quanto em declarao expressa (p. 131 e 135), o
desenvolvimento da relao entre sujeito e objeto prelineada nos pargrafos 12 e 13 de
Ser e tempo.
A retomada do projeto de Ser e tempo explicitamente assumida logo nas
primeiras linhas do dcimo pargrafo:
A compreenso do ser forma o problema bsico da metafsica como
tal. O que significa ser? Esta , simplesmente, a questo
fundamental da filosofia. No estamos aqui apresentando a
formulao do problema e sua recuperao em Ser e tempo. Ns
queremos fazer uma apresentao externa de seus princpios gerais e
assim fixar o problema da transcendncia. (HEIDEGGER, 1928b, p.
136).
Essa apresentao externa se perfaz atravs de doze pontos ordenados em
sequncia no pargrafo dcimo. Estes pontos Heidegger ir colocar como os princpios
guias da apresentao, deles dever retirar uma perspectiva incisiva acerca do problema
da transcendncia.
No primeiro de seus princpios, Heidegger afasta o uso do termo homem.
Coloca o termo Dasein como apropriado para substitu-lo, invocando sua neutralidade e
definindo-o como ente cujo modo de ser no lhe indiferente. O termo homem no
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foi usado para este ente que tema da anlise. Em seu lugar, o termo neutro Dasein foi
escolhido. Por ele designamos o ente para o qual seu prprio modo de ser em um
sentido definido no lhe indiferente. (HEIDEGGER, 1928b, p. 136).
Depois desta definio na base dos princpios, encontramos o primeiro
problema: a neutralidade do Dasein. Ela levanta alguns problemas que precisam ser
enfrentados. A posio de afastamento da tica e uma aproximao com a subjetividade
tradicional, isolada, encontram nessa neutralidade terreno para alicerar crticas ao
projeto da analtica.11
Tanto estava Heidegger ciente desse problema que em seu elenco
de princpios em sequncia tenta dar conta da problemtica da neutralidade.
O segundo princpio justifica a neutralidade do Dasein: A neutralidade
peculiar do termo Dasein essencial, porque a interpretao de seu ser deve ser
realizada antes de qualquer concretude factual. (HEIDEGGER, 1928b, p. 136). O
fundamento de um recurso neutralidade se justifica como meio de afastar de uma
analtica existencial a influncia de fatores factuais, de elementos nticos concretos da
contingncia humana.
Justificada a necessidade de uma abordagem neutra, o terceiro princpio a
restringe para evitar sua concepo como neutralidade vazia, como mera abstrao:
Neutralidade no o vazio de uma abstrao, mas precisamente a potncia da origem,
que carrega em si a possibilidade intrnseca de cada concretude factual humana.
(HEIDEGGER, 1928b, p. 137).
A posio do Dasein como fundamento originrio comea a se delinear. No se
trata de uma abstrao de qualidades gerais, que s pode ser realizada posteriormente
apreenso do prprio fenmeno, mas uma regresso anterioridade de onde podem
surgir tanto as qualidades gerais quanto as concretas e contingentes do homem. A
origem da estrutura do prprio homem est num modo de ser originrio neutro,
enquanto fundamental, nos existenciais do Dasein.
Os dois prximos princpios tratam de especificar essa relao entre a base
ontolgica originria e o homem factual. A existncia do primeiro s pode acontecer na
manifestao do segundo. O Dasein existe apenas enquanto homem concreto, mas no
essa concreo. O homem s existe na medida em que se manifesta seu modo de ser
ontolgico, esse modo de ser lhe faz ser homem, mesmo assim no se confunde no
11
Como em Levinas. Essas crticas sero avaliadas oportunamente neste trabalho sob o prisma desses
mesmos princpios apresentados nos Fundamentos metafsicos da lgica.
39
objeto factual. A diferena ontolgica entre o ser e o ente e sua interdependncia se
manifesta analogamente na relao entre indivduo factual e modo de ser do Dasein.
No princpio quarto, Heidegger (1928b, p. 137) define: Dasein neutro nunca
o que existe; Dasein existe apenas no caso de sua concretude ftica.. Essa anterioridade
no pode ser entendida como uma sistematizao, uma estrutura abstrata de um ente
concreto num plano ideal. S h Dasein na medida em que se manifesta nos indivduos;
a ressalva importantssima no reduzir o prprio Dasein ao indivduo. Tal confuso
recai no esquecimento da diferena ontolgica, caracterstica fundamental da tradio
metafsica que o prprio Heidegger se prope a destruir. Assim o princpio quarto afasta
da analtica existencial o carter de sistema ideal. O princpio quinto afasta o perigo
inverso, a anlise do Dasein no pode se guiar pelos aspectos isolados da
individualidade.
Nem este neutro Dasein o indivduo egocntrico, o indivduo ntico
isolado. A egoidade do indivduo no se torna centro da problemtica.
O contedo essencial do Dasein, em sua existncia e pertencimento a
si mesmo, deve ser apreendido com esta abordagem. A abordagem
que se inicia com neutralidade implica um isolamento peculiar do ser
humano, mas no em um sentido ftico existencirio, como se aquele
que filosofasse estivesse no centro do mundo. Claramente, isto seria o
isolamento metafsico do ser humano. (HEIDEGGER, 1928b, p. 137).
O isolamento que a analtica contm ao partir do modo de ser do homem no se
aplica ao mbito de sua concreo factual. O ser humano em sua estrutura ontolgica
isolado na medida em que se retira da anlise suas categorias nticas, seus aspectos
individuais como tal. No representa a analtica um isolamento dos indivduos entre si,
mas de um isolamento de todo e qualquer trao individual no originrio. A
neutralidade no afasta os indivduos, mas os aproxima numa anlise geral e ainda ao
mesmo tempo aqum da abstrao que separa o homem de suas peculiaridades
concretas. A concreo humana resta protegida na analtica pelo prprio isolamento de
sua base ontolgica a que sempre est ligada, o isolamento metafsico separa do
indivduo aquilo que lhe permite ser um indivduo antes de ser este ou aquele indivduo.
A condio metafsica de possibilidade de individuao, que nos une enquanto
humanidade por representar a possibilidade da diferena entre os homens, a estrutura
ontolgica isolada metafisicamente na analtica existencial.
O Dasein tem o lugar de base para a manifestao do indivduo. Essa no se
mostra como sistema idealizado, mas como estrutura ontolgica sempre presente apenas
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no plano factual sem com ele se confundir. No apresenta essa estrutura caractersticas
da subjetividade tradicional por estar anteriormente colocada ao modo de relao do
conhecimento. O modo de ser do homem sua relao com o mundo, e deste modo de
ser derivam as vrias manifestaes nticas que conhecemos atravs da dicotomia
sujeito e objeto.
Da anterioridade ontolgica retira Heidegger seu sexto princpio: o Dasein se
dispersa em manifestaes nticas, factualmente concretas. A positividade dessa
disperso forma a individualidade, como no caso da Destruktion no h conotao
negativa no termo disperso. Ele traduz a superao do isolamento metafsico,
reconstitudo na analtica, que impe as manifestaes nticas de relao entre homem e
mundo. A neutralidade metafsica do ser humano, mais isolado como Dasein, no
uma abstrao do ntico, um nem um nem outro, , melhor dizendo, a concretude
autentica da origem, o ainda no da disperso ftica [Zerstreutheit]. (HEIDEGGER,
1928b, p. 137).
Essa disperso, ou disseminao, que anteriormente explicada em algumas
possibilidades como disperso espacial, por exemplo, Heidegger ir chamar em seu
princpio stimo de estar-jogado, ou projeo. A disseminao transcendental prpria
da essncia metafsica do Dasein neutro, como a possibilidade de ligao de cada
disperso e diviso existencial ftica, baseada numa caracterstica primo