6
KAPP, Silke. Lógica de instrumentos, lógica de sonhos. In: Rodrigo Duarte; Virgínia Figueiredo; Imaculada Kangussu (ed.). Theoria Aesthetica: em comemoração ao centenário de Theodor W. Adorno. Porto Alegre: Escritos, 2004.

KAPP, Silke. Lógica de instrumentos, lógica de sonhos. In

  • Upload
    others

  • View
    3

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: KAPP, Silke. Lógica de instrumentos, lógica de sonhos. In

KAPP, Silke. Lógica de instrumentos, lógica de sonhos. In: Rodrigo Duarte; Virgínia Figueiredo; Imaculada Kangussu (ed.). Theoria Aesthetica: em comemoração ao centenário de Theodor W. Adorno. Porto Alegre: Escritos, 2004.

Page 2: KAPP, Silke. Lógica de instrumentos, lógica de sonhos. In

mesmo tempo, o caráter aporético da funcionalidade pouco semodificou. Por isso, não é anacrônico retomar o raciocínio de Adorno e tentar responder à seguinte pergunta: é possível que a logicidad interna de um artefato e sua funcionalidade para fins externo s coincidam? Ou, dito de outro modo : é possível uma arte aplicada na nossa sociedade? O que seria funcionalismo , hoje?

O mote da "arte aplicada" surgiu no século XIX, em resposta à desvalorização do trabalho dos antigos artesãos, ao crescente distanciamento entre arte e vida cotidiana e à massificação da produção utilitária. Desde então, a polêmica sobre atividades como arquitetura e design tem oscilado entre sua exclusão radical do âmbito artístico -como defendida primeiro por Adolf Loos - e diversas tentativas de fusão. A mais comum dentre tais tentativas consiste em simplesmente identificar a arte ao belo, de modo que "arte aplicada" passa a ser o mesmo que produção de objetos utilitários com algum incremento plástico que os toma mais atraentes ao consumo. Essa vertente não nos interessa aqui, porque o tipo de estetização que faz as mercadorias agradáveis e suficientemente instigantes para estimular sua aquisição já se transformou, por sua vez, em um trabalho instrumentalizado. Sabe-se que um objeto adequado à sua função empírica ou econômica não é automaticamente belo, mas dispomos de algumas técnicas simples para adequá-lo ao gosto do público e para realimentar esse gosto a cada temporada, tomando de empréstimo dos experimentos da arte de ponta aqueles aspectos de mais fácil assimilação . Deixo, pois, de lado essa estetização dos objetos utilitários e o problema do belo - ou pseudobelo - destinado ao consumo. O que quero retomar no tema da arte aplicada, tal como aparece em Funcionalismo hoje e na Teoria estética de Adorno, são as diferenças e semelhanças nos processos de constituição de objetos com ou sem uma finalidade predeterminada; processos esses que são regidos pelos dois tipos de lógica que dão o nome a este texto .

Nexo

Como já indicado, existe logicidade na constituição tanto dos artefatos utilitários, quanto dos não utilitários. "Logicidade" significa, aqui, um nexo entre as partes que integram uma unidade, por mais frágil ou dissonante que ela seja. Uma obra de arte não é um mecanismo, como um relógio, mas seus elementos têm relações entre si, e tais relações são construídas. Adorno supõe que o crescente

184

11 •or dessa construção seja um aspecto que a arte moderna compartilh a ·0 111 as aspirações de objetividade da moderna produção utilitária:

( ... ) o movimento antiornamental atingiu também as artes não-utilitárias. Está na natureza das obras de arte perguntar pelo que lhes é necessário e reagir contra o supérfluo. Depois que a tradição deixou de fornecer às artes um cânone do certo e do errado, tal reflexão é imputada a toda obra individualmente. Cada qual deve examinar-se a si mesma com respeito à sua lógica imanente, não importando se esta é movida por um fim externo ou não.3

Para Adorno, a produção artística participa do movimento mais geral do esclarecimento. À semelhança do conhecimento técnico-ientífico , a arte deixa de acatar fórmulas e processos tradicionais

normatizados, emancipa-se de antigos modelos e os dissolve cada vez mais profundamente . A arquitetura , não obstante suas difer enças em relação a outras artes, mostra esse desenvolvimento com bastante nitidez: da combinação entre diferentes ordens clássicas (no século XVIII), ela passa à disponibilização total das antigas unidades estilísticas (no século XIX) , depois às tentativas de reinvenção de repertórios ornamentais completos (no fim do século XIX e início do XX) e, finalmente, à dissolução da própria idéia de um vocabulário formal convencionado. Com esse esfacelamento das antigas regras, cresce a exigência de logicidade interna e singular de cada obra ou a exigência de que nela "não reste amorfo nenhum pedacinho sequer ". 4

Nesse sentido , Adorno faz distinção entre a construção da arte nova e a composição surgida no Renascimento . A composiçãotambém contém um aspecto de emancipação - no caso , das regras do culto- , mas ela ainda opera com muitos elementos pré-formados . Já a construção é da ordem rnicrológica. Ela se caracteriza "pela submissão sem reservas , não só de tudo o que lhe vem a partir de fora, mas também de todos os seus momentos parciais imanentes" .5 Dela decorre também a distância cada vez maior entre as obras significativas e a mera apreensão e reprodução dos meios historicamente disponíveis, tal como praticada tanto na estetização de mercadorias , quanto no artesanato mais tradicional. Num contexto pré-moderno , o bom artesão pouco se distingue do artista . Já para a arte nova, o procedimento artesanal habilidoso e norteado por regras é insuficiente , pois faltam-lhe a reflexão dos meios, sua alteração e as rupturas no interior de repe1tórios dados que caracteri zam o esclarecimento dentro e fora da arte .

Dada a noção de que tanto os construtos utilitários quanto os

185

Page 3: KAPP, Silke. Lógica de instrumentos, lógica de sonhos. In

não utili tários se constituem de modo lógico, cabe a pergunta sobre a dife rença entre a lógica de uns e de outros. Por que a liberdade em relação aos fins utili tários não desemboca na arbitrariedade absoluta? Qual é, afinal, a diferença entre a lógica dos instrumentos e a coerênc ia interna das obras de arte?

Lógica de instrumento s

Um instrum ento ou um artefa to utilit ário é aqu ele cuja existência é poss ibili tada pelo fato de ele causar um dete1minado efeito; para dizê -lo com Kant , a existência do objeto é possibilitada pela "representação de um fim" . Os eletro domésticos, por exemplo , existem porqu e produ zem certos efeitos. Isso significa que a produção de tais obj etos depende, por um lado, do conce ito de um fim - é necessá rio saber aond e se quer chegar - e, por outro, dos meios técnicos para realizá-lo. Kant chama o conhecimento necessár io para isso de proposições "prático-técnicas" : escó lios do conhecimento da natureza, pe los quais é poss íve l realizar empiri camente "aqu ilo o quer que seja" .6 Ra ciocínios desse tipo permitem inserir objetos em cadeias causais cont ro ladas pelo suj eito. Talvez o pro cesso de produção inco rra em erro s, mas eles são pass íve is de corr eção paulatina, seja mediante rev isão dos prin cípios gera is dos quais as propos ições técnicas fora m derivadas , seja mediante a elimin ação de especificidades da matéria-prim a ou da exec ução, que interferira m indevidamente na cadeia causal prevista. É possível ainda que, quando da invenção de novo s obje tos, tais etapas de tentativa, erro e correção se repitam muit as vezes . Mas , no momento em que eles integra m a produ ção de merc ad ori as, ta is in cide ntes deve m - ao menos teoricamente - estar elimin ados .

Esquematicamente, a lógica instrumental de constituição de objetos é a seguinte: tem-se o conceito de um efe ito deseja do; a pa1t ir de proposições técnicas derivadas do conhecime nto científico ou de normas, regras e convenções , esco lhem-se os meios para alcançar esse efeito; tes ta-se a va lidade dos meios esco lhidos; se os efeitos desejados ocorrerem, o processo te1mina e a produção do objeto pod e ser repetida quantas vezes fore m necessá rias; se os efeitos desejados não oco rrerem, recomeça-s e a operação até corr igir -se o pro cesso.

186

Lógica de sonhos

Algo bastante dife rente ocorr e nos processos artísti cos. Ao contrário dos instrum entais , que visam à repe tição (isto é, à produ ção cm quant idade) , os processo s artísticos têm por primazia a concreção de objetos ou eventos singulares, que geram princípios ou regras também singulares para cada caso . Portanto , o processo não se guia por leis universais preestabelecidas, pela reunião do maior número de entidades sob essas leis e pela repetição dos efeitos delas deduzidos. Sendo assim, ele também não pode ser regido por um conceito prévio e uma aplicação predefi nida, po is, se isso fosse fe ito , as especificidades de cada situação estaria m elin1inadas de antemão . Trata -se de "fazer coisa s, as quais não sabemos o que são" .7

A primaz ia da concreção de obj etos singulares confere aos processos artíst icos um caráter ant iinstrumen tal. Para Adorno , esse caráter anti instrumenta l é levado ao extremo pela arte nova: as obras de arte são objetos cujos mom entos parciais se organi zam de modo a escapa r à instrum entali zação da realidad e empír ica da qual eles provêm . 8 Os processos artísticos mobil izam o po tenci al das forças produtivas de que a soc iedade dispõ e, mas interditam sua adequação ao sistema de produção a que tais forç as estão submetidas . Dito de outro modo , as obra s de arte são enfática e proposit almente inúteis.

Pod er-se- ia imaginar que não há nada mais fác il do que produ zir inuti lidades. No entanto, repelir apropri ações predefinidas, suspendendo qualquer indicação de conveniência, faz da lógica intra­estética um problema sempre novo. A posição que urna determinada obra ocup a, entre a potencia lidade das forças produ tivas e a realidade do sistemas de produç ão, se modifica h istoricamente . Isso basta para impedir que utilidade e inutilidade sejam inva riantes. Pelo contTário, não é nada despre zível a estratég ia necessá ria para que se engendre o inúti l num contexto histór ico em que tudo deve ser ou se torna r útil1. Os elementos das obras de arte provêm do mund o empírico; elas não se fazem num território impem1eáve l às determ inaçõe s do real, que garan ta que qualquer objeto nele produzido não sirva para nada. O material com que o artista opera - assim como a consciência do próprio artista - é pleno de pontas eriçadas. O esforço que reúne parte delas num objeto sem fim deixa outras expostas. Assim, o problema de uma obra é traçado pela configuração histórica do seu material, ou, dito de maneira mais pr ec isa, pelas distor ções dos diverso s componentes desse mat erial entre si. A exec ução do problema , por um art ista, atuali za

187

Page 4: KAPP, Silke. Lógica de instrumentos, lógica de sonhos. In

histórica e objetivamente tais desequilíbrios ou falsos equilíbrios,9 como que reincorporando pontas expostas do seu material. Por isso, a finalidade e seus correlatos lógicos são, intra-esteticamente , as categorias que fornecem às obras sua realidade sui generis, 10 o seu não-ser-para-outro.

A práxis que segue a precariedade do seu material exige operações avançadas, justamente para ser capaz de atender, no processo da feitura, às indagações do objeto, e não simplesmente a exigências externas predeterminadas . Com isso, as categorias lógicas subjacentes ao domínio científico-instrumental da natureza, que na verdade também são construções subjetivas, perdem sua necessidade e universalidade.

A disposição sobre essas formas [ espaço, tempo, causalidade] e sobre sua relação com os materiais toma evidente, em contraposição à aparência do inevitável que têm na realidade, o caráter arbitrário nelas mesmas. Se uma música comprime o tempo, se um quadro redobra o espaço, concretiza-se a possibilidade de que poderia ser diferente. Aquelas formas são preservadas, seu poder não é negado, mas são desapossadas de sua obrigatoriedade. Assim, paradoxalmente, a arte é, justamente pelo lado dos constituintes formais que a libertam da empiria, menos ilusória, menos cegada pelas legalidades subjetivamente ditadas do que o conhecimento empírico.''

De modo geral, a lógica que se constrói nas obras de arte permite uma variação muito maior do que a lógica instrumental; mas, de modo particular, no interior da obra especifica, a lógica ali construída é tão constringente quanto a lógica instrumental. Por isso, Adorno compara a lógica imanente das obras à lógica de sonhos, em que também se combinam contingência e necessidade inescapável.

Ornamento

Mediante a diferenciação entre a lógica dos instrumentos e a lógica singular, construída pela racionalidade estética em cada obra de arte, tomam-se mais claras as diferentes noções de ornamento que estão em jogo na discussão da arte utilitária . Se a lógica é o nexo entre as partes de uma unidade (mesmo que ela seja frágil ou interrompida), "ornamentos" serão sempre partes à margem desse nexo. No entanto, seu caráter supérfluo pode estar relacionado ao nexo instrumental, cuja medida é uma função externa, ou a esse nexo onírico, que não se deixa medir por parâmetros externos. O primeiro tipo de ornamento foi atacado por AdolfLoos e por todo o Movimento Moderno explicitamente:

188

o ornamento-aplique, o enfeite acrescido ao objeto utilitário que, no extremo, não tem nenhuma relação com o uso ou os usuários, sendo substituível por qualquer outro. Nesse primeiro caso, o ornamento é algo à margem da constituição do objeto enquanto instrumento para um fim. O outro tipo de ornamento é aquele que está fora da lógica imanente, mas que, por força de convenções externas, persiste no objeto "co mo algo de venenoso, algo de orgânico em putrefação ". 12 De modo análo go, há também dois tipos diversos de funciona lidade : a instrumental e a sem função das obras de arte .

É perfeitamente possível que um elemento funcional e não ornamental pela lógica de urna obra seja ornamental e não funcional pela lógica da utilidade . Mas é possível haver coincidência das duas funcionalidades? Se tomarmos por pressuposto os pro cessos de consecução delineados , a resposta é não. Isso porque não é possível que tal processo atenda às premissas da lógica instrumental e, ao mesmo tempo, construa uma lógica própri a para o objeto em formação . A aplicabi lidade universal exclui a concreção singular; a mobi lização do máximo de casos específicos para um mesmo recurso técnico é o oposto da mobili zaçã o do máximo de recursos técnicos para um caso específico; uma destinaç ão predefinida impede o experimento sem meta; a compreensão do inesperado como erro impossibilit a acatá -lo positivamente; o proc edimento normati zado contraria a necessi dade de respond er às menor es especifici dades de cada situação ; operar com meios instituí dos contraria a intenção de buscar meios novos sempre quand o os antigos são incapazes de gerar coerência; ocupar­se dos detalhes depois de estabelecida a totalidade é o oposto de estabelecer conexões mínin1as, mesmo sem saber se terão efeito.

Nesse sentid o, arte e produção utilitária são mutu amente excludentes na nossa sociedade:

Uso

( ... ) aos objetos de uso sucede injustiça assim que são adicionados de algo não exigido pelo seu uso; à arte, ao intrépido protesto contra o domínio dos fins sobre os homens, sucede injustiça quando ela é reduzida exatamente àquela práxis a que se opõe. ( ... ) A "artificação" antiartística das coisas práticas foi tão repugnante quanto a orientação da arte não utilitária por uma práxis que acabaria submetendo-a ao domínio universal do lucro( ... ).13

Mas, poder -se-ia perguntar, por que significa uma "injustiça" adicionar aos objetos de uso elementos não exigi dos pe lo próprio uso? O argumento de Ernst Bloch , por exemplo, difere do de Adorno:

189

Page 5: KAPP, Silke. Lógica de instrumentos, lógica de sonhos. In

" um fórceps há de ser liso, uma pinç a de açúcar não". 14 Para Bloch , a maior parte dos obj etos que utili zamos cotidianamente não pertence à catego ria .dos instru mentos cirúrgicos , com funções abso lutam ente determinadas e determinantes. Há como que um espaço de manobra qu e pode ser ocupado por a lgo qu e transcend e a utili zação imediata e que pode conter o momento utópico. A pinça de açúcar é, por exce lência , um supérfluo, pois não pe ga r os torrõ es com as mãos demo nstra antes uma ult rapassagem da nece ss idade do que qualquer outra coisa. Se uma ferramenta desse gê nero fosse absolutame nte funcionalizada seria inconveni ente, pois j á não cumpriria sua principal função : no caso, acentuar que a necessid ade "co mer" pode ir além de si mesma . Por isso , os ornamentos na arquitetura ou nos artefatos utilitários fazem sentido para Bloch. Aliás , num texto de 194 1, o próptio Adorno ainda parece defender as camuflagens ecletistas da arquitetura do séc ulo XIX, apontando que some nte num contexto de dominação total os objetos técnico s se desvencilham de suas máscaras e se mo stram nu s e crus . O fato de tai s objetos serem ad icion ados de algo não exigido pelo uso aparece aí como indício de possibilidades para além da funcionalização total , como "o emprego de partes do produto soc ial que não serve direta nem indiretam ente à reprodução das forças de trabalho , mas aos hom ens enquanto não tota lm ente apre endidos pelo princípio da utilidade" .15

De fato, a contradição entre procedimentos artísticos e utilitários é algo qu e surg iu historic amente e qu e pode mudar. Em Funcionalismo hoje, Adorno demonstra os paradoxos da idéia de uma arte útil nas atuais circunstâncias, mas tamb ém relativi za essas c ircunstânc ias . Arte e produ ção utilitária est iveram imbricadas no passado: as formas qu e agora vemos como autônom as não são invenções operadas numa esfera esteticam ente pura e apartada do resto do mundo ; em algum momento , as fotmas migraram para a arte autôno ma a pa1tir de técnica s de produ ção e finalidades concretas. A própria arte autônoma é um fenôm eno hi stórico surg ido da transformação de produções des tinadas ao culto , à representação ou ao uso . E - mais impo1tante - da mesma forma que a a1te já pe1tenceu à esfera do uso , o próprio uso pode ser mais do que instmm ental.

Na sociedade burguesa, a utilidade tem sua dialética própria. A utilidade seria a sua maior conquista, a coisa tomada humana, a reconciliação com os objetos que deixariam de armar-se contra os homens e de ser humilhados por eles. A percepção infantil das coisas técnicas promete um estado assim: elas aparecem como imagens de algo próximo e solidário, sem o

190

interesse pelo lucro. ( ... ) Como um ponto de fuga do desenvolvimento poder-se-ia imaginar que as coisas tomadas totalmente úteis perderiam a sua frieza. Não apenas os homens deixariam de sofrer com o caráter coisificado do mundo: também as coisas teriam o que lhes convém, assim que encontrassem plenamente o seu fim, assim que fossem libertadas da própria coisidade. Mas, na sociedade presente, toda utilidade está destorcida, enfeitiçada. A fraude está no fato de a sociedade fazer com que as coisas pareçam existir em função dos homens; elas são produzidas em função do lucro, satisfazem as necessidades apenas paralelamente, geram essas necessidades de acordo com os interesses do lucro e podam-nas também na sua medida. Uma vez que uma utilidade em prol dos homens é libertada de sua dominação e exploração, seria o correto, nada é mais insuportável esteticamente do que a forma atual das coisas utilitárias, subjugadas pelo seu oposto e deformadas por ele até a essência. A raison d 'étre de toda arte autônoma, desde os primórdios da era burguesa, reside no fato de que somente o inútil responde por aquilo que o útil seria um dia: o uso feliz, o contato com as coisas para além da antítese de utilidade e inutilidade. ( ... ) Nela [ na arte autônoma] a inutilidade, presa à sua forma limitada e particular, está desesperadamente exposta à crítica por parte da utilidade; enquanto a utilidade, ou aquilo que já existe de qualquer modo, fecha-se contra as suas possibilidades. O segredo sombrio da arte é o caráter de fetiche da mercadoria. O funcionalismo quer escapar desse emaranhado; mas, enquanto continuar dependente da sociedade emaranhada, ele forçará as amarras em vão. 16

O prob lema de uma arte ap licada ou utilitária na noss a soci edad e é o condicionamento do uso por um a lógica que faz de le mesmo um instrument o e, mai s espec ificamente, um instmmento para o lucro . Sem essa paradoxal instrumen talização do uso, a arte aplicada deixaria de ser contraditória ; aliás, nesse cas o, toda arte talvez fosse não ap licada, ma s livremente aplicá ve l.

191

Page 6: KAPP, Silke. Lógica de instrumentos, lógica de sonhos. In

Lógica de instrumento s, lógica de sonhos

1• Professora da Escola de Arquitetura da VFMG. ALBERT!, Lcon Battista. De Re Aedificaloria (1485), VI, 2. Utilizei a

edição: 011 theA rt of /111i{di11g i11 Ten /Jooks. Cambridgc/M assachusctts: M !T Prcss, 996. 3· ADORNO, Tbcodor W. Olme Leitbild - Parva Aestctica. Frankfurt amMain: Suhrkamp, 1967. p. 105. 4• ADORNO. Asthetische Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1990. p. 263. 5· Ibidem, p. 9 1. 6. KANT, 1 mmanucl. Ei11/eit1111g i11 die Kritik der Urtei{skraft. Hamburg: Fel ix Meiner, 1990. p. 7. 7· ADORNO. Schirften I 6- Musika\ischc Schríftcn 1-ITI. Frankfu1i am Main: Suhrkamp, 1973. p. 634. 8· Cf. ADORNO . . AesthetischeTheorie, p. 21 O. 9

· Cf. Ibidem, p. 403. 10. Cf. Ibidem, p. 206. 11 Cf. Ibidem, p. 207-208. 12· ADORNO. 0/111e Leitbild .... , p. 106. D. Ibidem, p. l 07. 14 BLOCH, Ernst. Geisl der Utopie. Zweitc Fassung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991. p. 23. 15. ADORNO. Prismen - (- Gcsellschaftstheorie und Kulturkritik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987. p. 82. 16 ADORNO, Theodor. Funktionalismus 1--lcute. ln:_ . 0/111e leitbild . Parva Aesthetica. Frankfurt am Maio: Suhrkamp, 1967, p. 124.

364