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Análise das Obras Indicadas aos Vestibulares 2008/2009 Prof. Marco Antonio Leão de Chácara (João Antonio) Modernismo: No Brasil o Modernismo tem três fases, também chamadas de gerações. A Primeira tem início com a Semana de Arte Moderna, em 1922 e termina em 1930. Entre suas características estão a iconoclastia, a liberdade de criação, a reverência e a rebeldia. O experimentalismo lingüístico está entre as características desta geração, visível nas poesias e mesmo na prosa de Oswald de Andrade, Mário de Andrade, nos contos de Antônio de Alcântara Machado e poesias de Juó Bananere. A Segunda (de 1930 a 1945) é mais social, mais participativa e mais engajada. Há um retorno aos modelos tradicionais do romance que volta a ter características de análise psicológica e crítica social (realismo moderno). Já a Terceira, também chamada de pós-moderna, ou de pós-45, é (analisando de forma genérica) mais introspectiva e eclética, isto é, tem várias tendências. A partir de década de 70, costuma-se inserir os autores no período contemporâneo. Na década de 80, a diversidade de temas e estilos, aliada à necessidade de dar voz aos escritores menos conhecidos, fez surgir toda uma tendência de uma literatura mais voltada às minorias. Pós-Modernismo: A Pós-Modernidade pode ser dividida em várias fases, de acordo com as influências históricas, ou de acordo com as tendências dos autores. Nela é possível encontrarmos a literatura com inovações lingüísticas de João Antonio e Dalton Trevisan, enfocando as baixas camadas, a malandragem, o “bas- fond” de São Paulo e do Rio de Janeiro e de Curitiba, respectivamente; e a violência urbana que começa a fazer vulto como conseqüência das transformações e da migração que ocorria em nosso país, como é visível na obra de Rubem Fonseca. Ela é o resultado das grandes mudanças ocorridas da metade do século XX para cá. Desde os anos 50, houve no mundo todo, profundas transformações na economia, na política e, especialmente, na área tecnológica. Evidentemente, tudo isso se refletiu nas artes em geral. A literatura contemporânea, assim, demonstra a intertextualidade desta mistura dos meios de comunicação, incorporando suas técnicas. Nela estão presentes, também, a liberdade formal, o humor, a captação do cotidiano e de cenas da vida urbana. Sua linguagem é mais próxima do coloquial e o vocabulário é bem simples, como propugnado na primeira fase. Há a eliminação das fronteiras entre o erudito e o popular, o que permite a valorização da arte popular feita por pessoas simples, oriundas das classes mais baixas da população e de expressões típicas dessas pessoas, inclusive com a utilização de palavrões. Além disso, uma das tendências visíveis nos anos 80 é a literatura que enfoca as minorias, realizada por escritores que não fazem parte das antologias, nem são conhecidos pelo “grande público”. Na esteira da “Constituição Cidadã” de 1988, e dos governos democráticos posteriores ao período de Ditadura, são festejadas as publicações sobre as classes mais proletárias e marginalizadas. Biografia

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Análise das Obras Indicadas aos Vestibulares 2008/2009Prof. Marco AntonioLeão de Chácara (João Antonio)

Modernismo: No Brasil o Modernismo tem três fases, também chamadas de gerações.

A Primeira tem início com a Semana de Arte Moderna, em 1922 e termina em 1930. Entre suas características estão a iconoclastia, a liberdade de criação, a reverência e a rebeldia. O experimentalismo lingüístico está entre as características desta geração, visível nas poesias e mesmo na prosa de Oswald de Andrade, Mário de Andrade, nos contos de Antônio de Alcântara Machado e poesias de Juó Bananere.

A Segunda (de 1930 a 1945) é mais social, mais participativa e mais engajada. Há um retorno aos modelos tradicionais do romance que volta a ter características de análise psicológica e crítica social (realismo moderno).

Já a Terceira, também chamada de pós-moderna, ou de pós-45, é (analisando de forma genérica) mais introspectiva e eclética, isto é, tem várias tendências. A partir de década de 70, costuma-se inserir os autores no período contemporâneo. Na década de 80, a diversidade de temas e estilos, aliada à necessidade de dar voz aos escritores menos conhecidos, fez surgir toda uma tendência de uma literatura mais voltada às minorias.

Pós-Modernismo: A Pós-Modernidade pode ser dividida em várias fases, de acordo com as influências históricas, ou de acordo com as tendências dos autores. Nela é possível encontrarmos a literatura com inovações lingüísticas de João Antonio e Dalton Trevisan, enfocando as baixas camadas, a malandragem, o “bas-fond” de São Paulo e do Rio de Janeiro e de Curitiba, respectivamente; e a violência urbana que começa a fazer vulto como conseqüência das transformações e da migração que ocorria em nosso país, como é visível na obra de Rubem Fonseca. Ela é o resultado das grandes mudanças ocorridas da metade do século XX para cá. Desde os anos 50, houve no mundo todo, profundas transformações na economia, na política e, especialmente, na área tecnológica. Evidentemente, tudo isso se refletiu nas artes em geral. A literatura contemporânea, assim, demonstra a intertextualidade desta mistura dos meios de comunicação, incorporando suas técnicas. Nela estão presentes, também, a liberdade formal, o humor, a captação do cotidiano e de cenas da vida urbana. Sua linguagem é mais próxima do coloquial e o vocabulário é bem simples, como propugnado na primeira fase. Há a eliminação das fronteiras entre o erudito e o popular, o que permite a valorização da arte popular feita por pessoas simples, oriundas das classes mais baixas da população e de expressões típicas dessas pessoas, inclusive com a utilização de palavrões. Além disso, uma das tendências visíveis nos anos 80 é a literatura que enfoca as minorias, realizada por escritores que não fazem parte das antologias, nem são conhecidos pelo “grande público”. Na esteira da “Constituição Cidadã” de 1988, e dos governos democráticos posteriores ao período de Ditadura, são festejadas as publicações sobre as classes mais proletárias e marginalizadas.

Biografia João Antônio Ferreira Filho nasceu na cidade de São Paulo em 1937, filho de uma família de imigrantes portugueses de

poucos recursos. Em 1949 publica seus primeiros contos no jornalzinho infanto-juvenil "O Crisol". Em 1954 começa a freqüentar os salões de sinuca da cidade, e em 1958, ganha os concursos de contos da revista "A Cigarra" e do jornal "Tribuna da Imprensa", ambos do Rio de Janeiro. Inicia o curso de jornalismo. Em 1959, ganha o concurso de contos do jornal "Última Hora", de São Paulo. Os originais de seu livro Malagueta, Perus e Bacanaço são destruídos em um incêndio em sua casa, em 1960. O livro só será publicado em 1963, totalmente reescrito. Ganha o Prêmio Fábio Prado e dois Prêmios Jabuti (revelação de autor e melhor livro de contos do ano). Muda-se para o Rio de Janeiro, para trabalhar no "Jornal do Brasil", em 1964. Em 1966 volta a São Paulo, onde fará parte da equipe criadora da revista "Realidade". Tem contos publicados na Alemanha, Venezuela e, naquela época, Tchecoslováquia. De volta ao Rio, em 1968, passa a colaborar com diversos jornais. Publica, em 1975, Leão-de-chácara (Prêmio Paraná de 1974) e Malhação do Judas carioca. Edita o Livro de cabeceira do homem e cria a expressão "imprensa nanica" no jornal "O

Pasquim". Ainda nesse ano, é agraciado com o Prêmio Ficção da APCA (SP). Em 1977, seu conto "Malagueta, Perus e Bacanaço" é adaptado para o cinema, recebendo o nome de "O jogo da vida". Outro prêmio: em 1983, seu livro "Dedo-duro" recebe o Troféu Calango do Prêmio Brasília de Ficção. Ganha também o Prêmio Pen Club. Nos mais de quinze livros que deixou mostra sua extrema habilidade em fundir a linguagem falada nas ruas e a escrita literária. Atuou intensamente na imprensa e foi um ardoroso defensor dos direitos do escritor no Brasil. Premiada, sua obra é objeto de análise dos mais importantes críticos literários brasileiros.

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Outras obras do autor: "Casa de loucos" (1976), "Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de lima Barreto (1977), "Lambões de caçarola" (1977), "Ô, Copacabana" (1978), "Noel Rosa" (1988), "Meninão do caixote" (1983), "Dez contos escolhidos" (1983) e "Abraçado ao meu rancor" (1986).Sobre o autor: Texto extraído do livro "Dama do Encantado", Editora Nova Alexandria - São Paulo, 1996, pág. 51.

Características e comentários O autor pode ser considerado herdeiro manifesto de João do Rio e de Lima Barreto, a quem dedica uma biografia e os contos de Leão de Chácara; entre outros escritores que misturam sua vida à de jogadores de sinuca, prostitutas, traficantes, alcagüetes, gigolôs, artistas decadentes, leões-de-chácara... melhor dizendo, que misturam sua vida à obra que realizam com o próprio corpo — das palavras. É por isso que o autor acaba se destacando na criação de termos e palavras, como o famoso “merduncho”, que ele usa para caracterizar as pessoas “sem eira nem beira” que vivem à margem da sociedade, sobrevivendo com a graça – ou a des – de Deus e a ajuda dos governos (quando ela vem). Essas características o fazem ser o intérprete - por excelência - do submundo e da marginalidade urbana.

“Fui percebendo que só se pode fazer arte se for com pele, vísceras, arrebatando o interior. Percebi também que eu tinha um tema – a malandragem (...) O homem precisa ter alguma grandeza, tem de ter um momento de Homem pelo menos. Meu único medo é passar pelas coisas e não vê-las.”(João Antonio)

“Mais que um anti-retórico, João Antônio encarna e atualiza essa inclinação severina, ou fabiana, para os nossos eternos descamisados. A gente que povoa um morro, um beco, um cinema paulistanos; a feira, o bairro, a praça cariocas; e ladeiras, e poeiras, e pulgueiros baianos. Entrelaçados, vivamente, nas suas vibrações.”(Ricardo Ramos)

“Sobre todos recai a sátira cura do nosso Autor, que não poupa seu desdém nobremente plebeu por toda essa fauna agarrada aos meios de comunicação de massa, vampiros de idéias alheias, onanistas de frases de efeito, demagogos cujo verbo venal é quase uma fatalidade. O mercado do leitor consumista se entrega baboso a quem grita mais forte, aparece mais vezes e chega mais rápido. Estende-se de novo sobre os passos de João Antônio a sombra irada de Lima Barreto lançando palavras de escárnio contra os "periodistas" fátuos e cínicos de sua “belle époque” carioca”. (Alfredo Bosi)

“Daí vem uma outra observação importante para a leitura deste livro: tudo é e não é literatura, quer dizer, não há hierarquia estabelecida entre os objetos que constituem a matéria literária de João Antônio, mas, ao mesmo tempo, ou por isso mesmo, tudo pode servir como matéria para a expressão literária. Reparando-se melhor verifica-se que mesmo aquilo que é pensado como literário, isto é, alguns autores e suas obras que são resgatados pelo escritor, é percebido por um ângulo de identificação com aqueles temas não-literários de outras crônicas. É o ângulo de João Antônio: a voz narrativa que organiza, interpreta e dá coerência às passagens entre autores, obras e temas.” (João Alexandre Barbosa”

“As personagens, que às vezes se confundem com o autor, são em sua maioria do submundo: jogadores de sinuca, prostitutas, traficantes, alcagüetes; há também gente do futebol, da música popular e da publicidade - todas visceralmente identificados com o seu meio de vida e de morte, que lhes modula os sentimentos e a fala, em perpétua revolta contra a sociedade, cuja pressão os esmaga, sejam eles marginais ou não. Com sua fala nervosa, explosiva, brutal, elas nos agridem, e nos forçam a darmos um mergulho, queiramos ou não, sem seu ambiente. Tal um novo "Boca do Inferno", o autor cataloga seus rancores, vomita a sua indignação, resmungando pragas e palavrões.” (Paulo Ronái)

Leão de Chácara Transcorridos, aproximadamente, doze anos da primeira edição de Malagueta, Perus e Bacanaço, surge mais um título na carreira literária do escritor João Antônio Ferreira Filho (ele alegou várias coisas para tão grande distância: a difícil situação editorial brasileira para o jovem escritor, a sua mudança para o Rio de Janeiro – responsável por um grande impacto na vida do autor – além do trabalho e de uma internação em um sanatório). Leão-de-chácara, publicado em 1975 (Ganhou o prêmio Paraná de 1974), quase que simultaneamente chega às livrarias com a reedição da obra predecessora e, como esta, apresenta aos leitores, atraídos pelo universo narrativo do autor, o ambiente da malandragem e as figuras humildes e marginalizadas que habitam nesse meio. Um mundo ficcional composto por boêmios, prostitutas, gigolôs, jogadores, punguistas, engraxates, picaretas e traficantes, enfim, a escória do sistema de organização social brasileiro ou,

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como acrescenta Antônio Candido (1982), “os seus contos exploram quase sempre o chamado submundo, o outro lado que pagamos para não ver, ou para ver do palanque armado pelos distanciamentos estéticos”. O segundo trabalho do escritor ganha uma especial atenção da crítica no momento de seu lançamento, sendo destacado em vários veículos de imprensa. Ao divulgarem a obra, os críticos, destacam a expectativa do público leitor pela volta do estilo de narrar particular do escritor, ou seja, a linguagem que, conforme Hélio Pólvora, é um “aspecto dos mais deleitosos” e “que exprime sempre a psicologia individual e de grupo” e; sobretudo, pelas peculiares personagens, elaboradas não para o divertimento, mas a fim de transpor para a literatura sua condição de miséria. Leão- de- Chácara torna-se, assim, um livro importantíssimo para o autor, pois constitui o amadurecimento de sua escrita e aponta a permanência e consolidação de temas, linguagem e construção de personagens que marcarão a trajetória de seu trabalho artístico. Segundo o próprio autor, em entrevista seu sucesso se dá pela preocupação com os leitores. Segundo ele: “Um homem de quase quarenta anos que escreve e não tenha, em nosso país, preocupação com o que os homens de vinte anos pensam, certamente estará mal.” Em entrevista publicada na Revista Crítica em setembro de 1975 o autor explica o processo de criação de sua obra, vale a pena ler – na íntegra – a reportagem. “...para fazer Leão de Chácara eu analisei muito, conversei muito, principalmente com um garçom que já é morto – e sirva então esse papo como uma homenagem a ele. Era o Garotinho. Garotinho era um velho garçom de 62 anos, que trabalhou sempre ali na Prado Júnior, depois foi pro Cantinho do Leme, trabalhava sempre à noite. E ele tinha esse apelido Garotinho porque começava ou finalizava ou colocava no meio da frase esse termo “garotinho”. Muito bem. E você sabe que os garçons são criaturas maravilhosamente informadas sobre a cidade, são capazes de fazer um mapa objetivo da cidade, rua por rua, conhecem até os bueiros da cidade, conhecem às vezes mais do que precisavam conhecer, são muito observadores. A profissão, que é servir a todos, dá ao sujeito uma sabedoria muito grande, ele aprende, ele procura saber onde ta pisando, com quem ta lidando. Então, a humildade do garçom, do bom garçom, aprendi através da conversa, e acompanhando muitas vezes o Garotinho depois do expediente dele ali no Cantinho de Leme, acompanhado ele pela noite, quatro cinco horas da manhã. Uma vez eu fui até Austin, veja bem, ele morava em Austin. Pegamos um ônibus até a estrada de ferro, depois um trem até Austin, e fui até a casa dele. Amanhecemos lá nove dez horas da manhã. Então foi conversando com ele, observando outros leões-de-chácara, vendo aquela figura aparentemente pitoresca, engraçada, que não tem nada disso, é um pingente urbano, é um massacrado – e é um inconsciente também. Então foi assim que eu comecei. A figura do leão começou a sair da aparência pra mim, começou a se aproximar da realidade, da essência. Tenho amigos que são leões-de-chácara, encontro-os na praia, na porta da boate. Eu entro em boate e inferninho uma vez ou outra, entro também levado por uma aspiração qualquer de observação. Então foi assim, vivenciando, sentindo os caras, conversando muito com eles.”

A Obra Em Leão-de-Chácara, vemos que João Antônio deixa de lado a marca predominantemente paulistana de sua ficção – quesito que levava a crítica a aproximá-lo de Antônio de Alcântara Machado (escritor da primeira fase modernista) – mudando o foco para a cidade que seria a mais privilegiada em sua obra, o Rio de Janeiro. No entanto é possível perceber um sentido universalista em sua obra, explorando significados das vivências urbanas, ressaltando a falta de vínculos reais e a extrema violência que permeiam a vida nas urbes modernas. E por isso seus personagens são seres condenados à solidão e ao isolamento, ainda que busquem desesperadamente o contato e alguma solidariedade. Composto por quatro histórias, o autor agrupa em “Três Contos do Rio” os textos “Leão-de-chácara”, “Três Cunhadas – Natal 1960” e “Joãozinho da Babilônia”. A primeira narrativa foi também publicada em algumas antologias nacionais e a última, além das coletâneas brasileiras, destaca-se igualmente nos Estados Unidos, Alemanha e Polônia. Ocupando boa parte do livro, temos em “Um Conto da Boca do Lixo” (referindo-se à zona do baixo meretrício na capital paulista do início da década de 50) o clássico “Paulinho Perna Torta”, aclamado pela crítica como um dos melhores textos do escritor e editado também em antologias nacionais e estrangeiras. Quanto à construção das personagens de Leão-de-chácara, podemos adiantar que a maioria delas possui como marcas a aversão ao sistema de organização social, traduzida numa visível aversão à ordem social que lhe é negada, o desejo de modificar e racionalizar a realidade como ela se apresenta e, somado a tais dados, o intento de possuir aquilo que, certamente, não pode adquirir por meios lícitos, são algumas das características dos seres encontrados neste livro de João Antônio. Todavia, Leão-de-Chácara traz uma novidade, uma nova categoria que devemos acrescentar à galeria de tipos que compõem o seu universo narrativo. Ao contrário do livro de estréia Malagueta, Perus e Bacanaço, repleto de malandros e otários, agora, ampliamos o conhecimento sobre as personagens do submundo, destacando a elevação da figura de um marginal ou bandido como personagem protagonista. Paulinho Perna Torta, do texto homônimo, pode ser considerado como um perigoso delinqüente, na medida em que ultrapassa a malícia, astúcia e pequenos golpes, típicos dos malandros Malagueta, Perus, Bacanaço, Vitorino e Paraná, para se transformar numa figura amarga, fria e, sobretudo, criminosa, capaz de atos violentos (entre eles, homicídios) contra os que ousam cruzar seu caminho.

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Na literatura, especialmente na do escritor João Antônio, o fenômeno do banditismo, representado em alguns de seus personagens, adquire uma nova dimensão. Uma particularidade digna de registro, já que podemos apreciar as ações e pensamentos do protagonista a partir de seu próprio ponto de vista, da sua visão de mundo, evitando, assim, um olhar piedoso ou de menosprezo dos leitores a essa figura.

Estilo Uma das marcas consagradoras do autor é justamente o seu estilo. Percebemos em João Antonio a utilização de frases custas em estilo direto, objetivo, desprovidas de sentimentalismo e adjetivação, quase telegráficas. O universo exíguo de palavras das personagens é transportado para as páginas de suas obras por intermédio de narradores-tipo, embrutecidos por um universo marginalizado. É a voz do “lumpen”, do excluído, do abandonado, da prostituta e do cafetão, seres que habitam a noite e como que num passe de mágica, desaparecem ao amanhecer. Essa linguagem seca, dura e cortante como uma lâmina ao dissecar problemas humanos e sociais encontra eco em Machado de Assis, o “grande analista da alma humana”; é depurada na pena de Lima Barreto (talvez nosso primeiro escritor práxis); passa por um engajamento regionalista no Vidas Secas de Graciliano Ramos e pela abordagem existencialista do “gauche”, encontra a poesia cortante e mineral de outro João, o Cabral; para finalmente desembocar com força e inventividade nas ruas das zonas do meretrício, dos cassinos ilegais, dos bares imundos e dos hotéis de vinte minutos na obra deste João, o Antonio. Cada um seu tempo, observando as suas realidades, as suas paisagens e os seus tipos. Como diz a personagem Paulinho Perna Torta: “... cada um, cada um!” Um outro detalhe marcante é a variação lingüística, a utilização de gírias e do universo vocabular dessas personagens. Na mesma entrevista estão as seguintes pergunta e resposta: P) “Mas ainda tem muita gente que não vai entender, nem encontrar a palavra no dicionário. É claro que este é um problema que nem passou pela cabeça de Guimarães Rosa...”R) “- Claro, porque se você esta fazendo um perfil na primeira pessoa de um leão-de-chácara, como fugir da essência de sua linguagem? Como fugir do espírito de sua linguagem? E se alguém não entender bulhufas nenhuma das palavras, entenderá tudinho do sentido, porque é porrada do começo ao fim, e só não vai entender quem não quiser ler, porque, entende, é porrada do começo ao fim, então o sujeito vai entender até por ouvido.”

ContosLeão-de-Chácara (1ª pessoa)(Ambientado no Rio de Janeiro) A perspectiva de quem lê aquele mundo é a do personagem-narrador, um tal de Jaime (Pirraça, apelido ganho quando –no passado – ele não agüentava desaforo), Leão-de-chácara (segurança/porteiro de zona do meretrício) de 48 anos de idade, “...dois bacuris no colégio, uma mulher honesta. Na minha casa em Inhaúma, tem uma horta e um papagaio que veio do Pará.” Inicia com um “abrir de cortinas”, como um início de espetáculo. Uma luz que se acende e uma porta que se abre desvendando um novo mundo ao leitor: “O luminoso se acende e, num golpe, fixa as oito letras do nome francês e isto aqui, a que os otários e os espertinhos chamam de buate, está aberto na noite (...) Abro a porta de madeira falsamente antiga, trabalhada e de dourado. Com uma mesura, estendo o braço e ponho para casa o primeiro otário da noite.” É dessa maneira que o leitor é levado a conhecer os meandros da noite e suas atividades. O protagonista prefere ser visto como porteiro do que como leão-de-chácara, pois assim pode “enganar os trouxas”. Utilizando-se de um estilo cheio de picardia que vai e volta no tempo (como o estilo “ébrio” de Machado em Memórias Póstumas), Jaime vangloria-se de pouco ter errado na carreira. O protagonista/narrador mostra o direito e o avesso da malandragem e os mandamentos de um bom leão-de-chácara: a picardia, a manha, e a esperteza de não “bobear e meter a mão numa cumbuca”, isto é, apaixonar-se e ter ciúmes de alguma prostituta que trabalhe na noite. como trabalha e quem faz parte do seu mundo. Chega a se referir a outros leões que se apaixonaram e se deram mal (“pisaram na bola”): Miguelito, que matou um cliente em uma crise de ciúme por uma prostituta e Miçanga, amigo de Jaime que puxou briga com um cliente armado. Resultado: o cliente atirou e acertou o baterista da banda da casa. A linguagem, a multiplicidade de gírias utilizadas por João Antônio e os “chavões”(ou frases feitas) presentes , são o jargão do malandro, como pode ser observado nas frases: “No mundo tem dois tipos de gente: os que aturam e os que faturam”, “O falador se dá mal na vida e o come-quieto só come porque não fala”, “...quem tem ciúme de marafona é coronel”, “Quer moleza? Vá morder água”e “Onde há tutu, os piranhudos vêm morder”. Três cunhadas (3ª pessoa)(Ambientado no Rio de Janeiro) Narrado em terceira pessoa, trata-se da história de um “merduncho”, um trabalhador (contínuo) endividado ecom pouquíssimo dinheiro para comprar um presente de natal para as três cunhadas (que moram no Flamengo), coisa que ele gostaria que tivesse sido feita pela esposa, já que não sabe dos gostos das mulheres. “Necessário se espremer como um sabido, não gastar mais de vinte mil com o presente das cunhadas. Também, a mulher não o devia aporrinhar com aquelas ocupações domésticas. Diacho. A mulher bem poderia ter comprado os presentes para as irmãs, dado logo um

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tiro naquilo. Ele não. Não entendia dessa coisa de presentes. E o pior seria quando começasse o mês, no comecinho do novo ano, a mensalidade da geladeira e do liquidificador.” A narrativa começa com uma frase que caracteriza esses “merdunchos”: “Isso não é vida!”. Vida de quem vive sempre “pendurado”, ganhando menos que o suficiente para sua família sobreviver, tirando um pouco de dinheiro nas corridas de cavalos, Uma “Vidinha chuê, uma mão na frente, outra atrás”, barata, do rés do chão, de pouquíssima satisfação, sem perspectiva de melhora. Morador de Niterói, todos os dias atravessa a barca em direção ao Rio para trabalhar, mas agora está pensando em como resolver esta pendenga, pois não quer começar o ano com mais dívidas que já tem, enfim, um anônimo como tantos outros. A rua está cheia de gente. É natal. “O que a rua mais sabe fazer é misturar gente. “A rua geme, chia, chora, pede, esperneia, dissimula, engambela, contrabandeia. Espirra gente.” Compra o presente: “... jogo de copos, as louças e os guardanapos coloridos, alcança a rua. O pacote de Natal é colorido e vai debaixo do braço” e vai levar ao apartamento das cunhadas. Vai pela rua enquanto ouve tocar nas lojas as músicas de natal que funcionam como uma ironia. No apartamento das cunhadas, a música que está tocando na vitrola (como um prolongamento do que ocorria no mundo lá fora e precisa existir, já que é natal e todos deveriam estar incorporando o espírito natalino), quando entra em cena no conto, enfoca o sofrimento e o abandono das personagens, tornando a cena muito mais triste: “Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel. O que você quer? Papai Noel Vê se tem felicidade Pra você me dar...

Com certeza já morreu Ou então, felicidade É brinquedo que não tem Já faz tempo que eu pedi Papai Noel”

Na barca, ao voltar para casa, ele começa a lembrar das cunhadas e da vida que elas levam. Uma vida tão idiota quanto a que ele leva, apesar de morarem no Rio. A mais nova, “...estava num vestido preto, bem caído, pintada e dizendo que o ano passado tinha enfiado a mesma roupa, o tutu andava curto. Mas ele sabe, ela anda é dando dinheiro para o amante. Outra vez. O pinta é mordedor e lhe suga um aluguel de apartamento em Botafogo, as gratificações, as horas extras e o décimo terceiro mês. Não adianta a gente falar, nem xingar de fuleira. Briga dizendo que gosta do gajo e aquilo, segundo ela, é amor. Vai não vai, aparece de olho pisado. Claro, foi o gajo.” Também não poupa a do meio, que chegou “... desenxabida, rabo entre as pernas, já que o português não havia aparecido ao encontro. A última vez que se viram, aprontaram um espetáculo no meio da rua e ela bateu nele. Uma cunhada apanha, a outra planta a mão. Essa cunhada do meio não encontrou homem que a entenda e a meta nos trilhos. Tem, aí pelo mundo, sabe Deus metido em que buraco, um filho de quase dez anos. Diz uma palavra, arremata com cinco palavrões. Andarilhou todo o sul e zanzou no nordeste. Mas não encontrou homem. Seu vestido fora de moda, largo; cabelo escorrido de quem saiu do banho, um salto alto exagerado. Chegou e nem falou boa tarde. Ficou olhando os três, bem desconfiada. Sentou-se, pernas abertas, a bolsa no meio delas, como um lavrador.” E nem a mais velha, para quem: “...homem é bicho canalha, ainda que dê dinheiro a mulher. Que o jeito é não depender de homem, principalmente quando se está ficando velha e se continua de fogo aceso. Sem juízo ninguém se arruma na vida. Jogou na cara das irmãs. Umas erradas, deveriam se dar ao respeito. A primeira, funcionária pública, explorada pelo amante que lhe suga o sangue; a segunda, vivendo de lavagem de roupa e ardendo por um homem. Duas tontas na vida. Ela, não. Só atura o seu, porque Homerinho não é dessas coisas. Disse que a ligação lá deles é espiritual.” Enfim, três desgraçadas infelizes que tentam sustentar situações complicadas, o que também faz delas: “merdunchos”. Termina o conto com o protagonista vendo as luzes de Niterói ao voltar para casa e a última frase do conto pode ser um pensamento do homem, ou uma reflexão do próprio narrador: “Aquilo não era vida.”

Joãozinho da Babilônia (1ª pessoa)(Ambientado no Rio de Janeiro)

“Se os meus suspiros pudessem,Aos teus ouvidos chegar.

Verias que uma paixão, Tem poder de assassinar.”

(Modinha do tempo de Dom João VI no Brasil, registrada em Memórias de um Sargento de Milícias e cantada por Vidinha.)

Parece ser o contraponto do primeiro conto. Joãozinho faz uma espécie de desabafo que não segue uma cronologia linear, vai e volta de acordo com as lembranças do narrador, como no primeiro conto do livro. Joãozinho da Babilônia não consegue dormir após as noites de trabalho (também é leão-de-chácara) e fica a vagar pelas praias do Rio de Janeiro até amanhecer. No final do conto entenderemos os motivos desta angústia – Guiomar foi morta pelo homem que a “mantinha”, um tal coronel Batistão.

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O texto começa num monólogo interior, no espaço da praia do Leme, em que o personagem, num fim de noite, encontra-se falando de sua solidão, de si, da perda de Guiomar. Ficamos sabendo que o narrador está sofrendo por esta mulher e não sabemos do assassinato: “Uma criança, um quindim desta vida. Matreira na zanguinha para dobrar os otários exigentes e metidos a mandões. E toma-lhes tudo a mulata Guiomar, dezessete anos. Só.” Dentro da “lógica da malandragem” Joãozinho cometeu um erro primário no exercício de sua profissão: apaixonou-se por uma prostituta, Guiomar, que já tinha “dono”, o Coronel Batistão. Porém, naquele mundo errado, é justamente essa paixão que humaniza o coisificado Joãozinho da Babilônia. Por isso este é o conto mais lírico do livro, permitindo ao autor/narrador, inclusive inserir trechos poéticos na narrativa: “Assim de repente, num susto, penso em Guiomar, no caído bonito de cabeça para trás e para os lados. Olho o mar, onde meus olhos afundam e dou uma porção de coisas doces, menos pesadas, nenhum medo, limpas, boas, nenhuma sacanagem, claras.” O Coronel Batistão e seus hábitos são descritos de forma a que o leitor tenha nojo de um ser que beira a animalização, uma forma de crítica joãoantoniana às pessoas que, através do dinheiro e do poder, procuram se impor aos mais fracos e menos favorecidos pela sorte. Perceba nestes dois trechos (de momentos distintos do conto) a descrição grotesca do homem: “Grandalhudo, balofo, um desengonçado. O velhão Batista, de dentadura postiça, papadas e cabelos tingidos de caju, era uma peça. Tinha mania de bravo, charuto no bico e uma máuser que não tirava do cinto nem para ir ao banheiro – coisa dos graúdos lá do Estado do Rio. Um molóide saído a mandão. Aquilo, numa briga, não prestava nem para correr ou recolher as cadeiras quebradas. Divertido, palhaço quando bebia, vermelho do pescoço enrugado onde a mulatinha se pendurava, com fingimento. (...) ...Batistão era um endinheirado das salinas do Estado do Rio, em São Pedro D’Aldeia. Um forte da grana, esbagaçador, havia sido homem da lei, na mocidade; agora, vereador e outras palas. Desses importantes, manda tudo que viaja para Brasília e resolve.” Ou este outro trecho: “Estando no Rio, Batistão pula cedo da cama e se manda a vagabundear. Às nove, vai de velho na rua. Desce no centro e começa a bebericagem ali pelas dez da manhã no Bar Carioca, faz lá o primeiro expediente com chope ou cerveja gelada. Pausa para o almoço. É de se ver. Batistão toca para um restaurante antigo na Buenos Aires, quase Primeiro de Março, desses que ainda têm mesas de mármore e cadeirinhas austríacas. Pede filé malpassado. Zangado com a demora, bebe uísque com água, coloca os óculos e olha o jormal na coluna do “Estado do Rio”. Põe cara importante; compenetrado e entendido, torce o nariz, reprova tudo. Vem o filé, quase cru, dispensado de arroz ou acompanhamento. Mas o velho não come. Masca, masca, mastiga. Chupa a carne malpassada e devolve com a boca ao prato, como gomos esmagados de laranja. Come feito um gato velho, agachado, não usa garfo ou faca, só a boca. Até os garções se viram para não assistir. Depois da carne mascada, vai à rua do Ouvidor, na Casa Pará compra três holandeses da marca Duc George. Inaugura o primeiro charuto do dia e segue, lerdo e atento, sondando pernas que passam até a porta da Colombo, onde se empertiga, importante, piadista e gaiteiro, bulindo com as mulheres, jogando galanteios à antiga para as menininhas comerciarias da Gonçalves Dias. Ali arrasta a tarde, se insinuando para as mulheres da rua ou financiando algum lanche caro no interior da confeitaria, onde os lustres e os espelhos laterais mostram empregados de libré e certa classe antiga. Numa mesa, ao lado de uma garotinha que come e toma ‘frappé’ de côco. Batistão já meio bêbado, vermelho, gordalhudo, suado no pescoço enrugado e na testa, entornando cerveja gelada, falando alto e grosso aos garções solícitos, quietos e aporrinhados.” Depois disso Batistão descansa para sair à noite com/ou sem Guiomar. Foi em uma dessas noitadas que o leão de chácara conheceu a amante do coronel. Ela se insinuou e continuou a procurar Joãozinho, pois Batistão não a respeitava, nem satisfazia: “Bandidete de rua, malhada na vida, traquejada na muamba, como sempre meio corrida da polícia, vivendo com um olho nos trouxas e outro no camburão. Não falava a língua dos bacanas, quanto mais um abonado, um refestelado que anda até de avião. Diacho. Carne é carne, peixe é peixe. Ela quem me buliu, dando nó nas cadeiras, sacaneando, na cara do velho. Tenho, relando, relando, quase dois metros; uma destas mãos, duas de Guiomar. No aperto de mão, esfregou um dedo na minha palma. E se mandaram os dois. Ele, capiongo de bebida; Guiomar, lá ia Guiomar requebrando para eu ver. Tem um código na noite – mulher ofereceu, malandro não comeu, pau nele. Mulher oferecida é comida.” O envolvimento vai causar problemas aos dois, pois Joãozinho é casado (“...um homem com mulher honesta, uma filha, onde é que Guiomar vai entrar.”) e o coronel Batistão ameaça matar a mulata por ciúmes. Mesmo assim ele “fica”com ela; e nos conta após lembrar de uma “travessura” que fazia quando era pequeno, no morro da Babilônia, uma comparação brutal ao que está acontecendo com o narrador: pode ficar com ela, mas ela não lhe “pertence”. “...a gente brincava com os cachorros, jogava-lhes pedaços de carne amarrados a uma linha forte, branca; o bicho engolia e a gente puxava. A carne voltava do estômago. Bicho estúpido, queixo duro. A gente jogava de novo, eles vinham abocanhar. Aquilo devia doer. Ela tira a roupa e seus pêlos ficam mais pretos. Dezessete anos, uma parada; e me dando algum na mão, para o paizinho, chamando de machucho na cama, agrado; apesar dos cabelos brancos, diz que sei dar o recado. Batistão gosta dela?”

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Joãozinho se apaixonou, chega a pensar em tirar Guiomar de Batistão e assumi-la: “Fosse um cabra sarado, um boiquira, tirava essa mulata da vida. Encarava Batistão, enfrentava. E daí? A mulher é minha, qu’eu tomei. Tem mais: em vida de marido e mulher, ninguém mete a colher. Quer guerra? A sua é máuser, o meu é 38. Ao final, ficamos sabendo que o protagonista vai para um último bar, comer alguma coisa antes de se encontrar com Guiomar. Marcou de dormir com ela após o serviço, mas já está amanhecendo o dia e ele não parou de pensar em uma solução para o caso: uma casa no subúrbio, colocá-la da vida e explorá-la... É neste bar que ele compra um jornal e tem a revelação de desfecho infeliz. São seis horas da manhã. “Um criolinho sustenta um peso no braço esquerdo, de encontro aos rins e vem que vem curvado. Mas anda rápido, arisco varando a manhã. Com os seus jornais, entra no Capela e grita o nome de primeiro matutino da cidade. Compro e esfrio na primeira página. Um frio na nuca, um afogo na barriga. Depois, amargo na boca. Acima das letras pretas, enormes, a cara de Guiomar tirada do retratinho do documento. E eu que nunca botei fé no ciúme do Batista. A vontade me bateu quente, no começo, num sufoco. Levantava, saía de mesa em mesa no Capela, gritava para a cambada que foi ele, o velho, o cavalo se metendo a macho. Soquei a mesa e o conhaque voou. Mas fico sem fazer nada, numa ponta da rua de Resende. Os ônibus comem a manhã e os rádios de pilha tocam músicas caipiras. Tinha um caído bonito de cabeça para trás e para os lados, me ficava pequena, menina que não chegava à altura dos ombros. Encho as bochechas, sopro, o bolo do peito diminuindo. Procuro cigarro. Estou ligado – fosse ao hotel, daria uma pista aos ratos da polícia. Aparecesse no Instituto Médico – Legal, ali pertinho, os homens me iriam prensar. Contasse direitinho o meu interesse pelo presunto.”

UM CONTO DA BOCA DO LIXOPaulinho Perna Torta (1ª pessoa)(Ambientado em São Paulo) Longo conto em “flash-back”, com final aberto sobre a trajetória de próprio Paulinho, de moleque engraxate de rua ao posto de “cáften” protegido do grande Laércio Arrudão e, depois, a dono da maioria das boates, inferninhos e prostíbulos da boca do lixo em São Paulo. O autor/narrador funciona como uma espécie de “fotógrafo/cinegrafista/cronista” da cidade de São Paulo e de suas transformações. Uma câmera cuja perspectiva deixa que o leitor perceba coisas que normalmente não vê, pois nossos olhos não estão acostumados a essas nuances e tonalidades do submundo. Neste “filme” é possível ver este mundo paralelo que só começa a existir quando o sol se põe e saem à “caça” os malandros, prostitutas, michês, polícia... seres que se entendem através de sutis códigos visuais e lingüísticos. O verdadeiro “andar de baixo” da sociedade. É dividido em três partes:

1ª parte: Moleque de rua Enfoca os primeiros anos. Nesta parte ele começa explicando que o seu apelido (Paulinho duma Perna Torta) está sendo encurtado e ele não gosta disso, pois acredita que vai acabar sendo somente “Perna Torta”. Conta que sofreu muito como engraxate; dormia em uma pensão vagabunda (Pensão Triunfo), fazia ponto em estações de trem para engraxar os sapatos dos trabalhadores, tinha que pagar aluguel da caixa de engraxate e ainda era roubado por outros malandros de vez em quando. Um dia tentou roubar o dinheiro de um cliente e foi apanhado por ele. Teve que fugir e se esconder para que a polícia não o encontrasse nos lugares que costumava freqüentar. “Agüentava frio nas pernas, andava de tênis furado, olhava muito doce que não comia e os safanões que levei no meio das ventas, quando me atrevia a vontades, me ensinaram que o meu negócio era ver e desejar. Parasse aí. Agüentei muito xingo, fui escorraçado, batido e dormi de pêlo no chão. Levei nome de vagabundo desde cedo. Lá na rua do Triunfo, na Pensão Triunfo, seu Hilário e dona Catarina. Aquilo, àquele tempo, já era o casarão descorado dos dias de hoje, já pensão de mulheres. Mas abrigava também, à noite, magros, encardidos, esmoleiros, engraxates, sebosos, aleijados, viradores, cambistas, camelôs, gente de crime miúdo, mas corrida da polícia; safados da barra pesada, que mal e mal amanhecia, seu Hilário mandava andar. Cada um para a sua viração. A gente caía para a rua. Catava que catava um jeito de se arrumar. Vender pente, vender jornal, lavar carro, ajudar camelôs, passar retrato de santo, gilete, calçadeira... Qualquer bagulho é esperança de grana, quando o sofredor tem a fome. Vontade e jeito? A fome ensina. A gente nas ruas parecia cachorro enfiando a fuá atrás de comida.” Aos 15 anos, na rua Paranapiacaba, conheceu Laércio Arrudão, malandro renomado. Laércio Arrudão (sempre chamado pelo nome inteiro) chamou-o para trabalhar em seu bar, a “Boca do Arrudão”. “Uma criança que não conhecia o resto do balangolé – cadeia, maconha, furto, jogo e mulher.” Ainda na primeira temos a descrição de Laércio Arrudão, que vai apadrinhar Paulinho: “ ...eu conheci, bem ajambrado e já senhor, no terno claro de brilhante inglês, que fazia a gente olhar, mão luzindo um chuveiro, e dentes brancos muito direitinhos, um mulato muito falado nas rodas da malandragem, professor de picardias, dono de suas posses e ô simpatia, ô imponência, ô batida de lorde num macio rebolado! Laércio Arrudão.

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Que foi pelos meus olhos acesos e verdes ou pela minha cara de esperto muito acordado; que foi pela mão de Deus ou por uma trampolinagem do capeta. Mas foi a minha maior colher de chá, o meu bem-bom, a minha virada nesta vida andeja. Laércio Arrudão me topou e me deu uma luz, me carregando para empregado lá na zona, no boteco da alameda Nothmann. Ali, no Bom Retiro. Pegado aos trilhos do bonde, na esquina da rua Itaboca, defronte à rua dos Italianos; ali, naquele muquifo escuro, onde minha vida virou, é que os vadios das curriolas, os trouxas das ruas, os tiras das rondas, as minas, as caftinas, os invertidos, as empregadas da zona e os malandros encostavam o umbigo no balcão pedindo coisas, balangando os seus corpos e queimando o pé nas bebibas.”

2ª parte: Zona A segunda parte começa com o narrador ainda jovem. Ganhou uma bicicleta de uma prostituta com quem mantém um relacionamento (Ivete) e sai andando pela cidade. Sua rotina é: abrir a “Boca do Arrudão” e trabalhar até umas três, quatro horas da manhã; ir para o quarto de Ivete após o trabalho dela; acordar lá pelo meio dia e andar de bicicleta até começar tudo de novo. Ivete é muito ciumenta e um dia faz um escândalo, batendo nele. Laércio diz que é o homem que deve bater e ele segue as instruções; Ivete se torna mansa e passa a dar mais dinheiro para o “seu homem”, agora mais respeitado por todos. Paulinho virou cafetão. É nesta parte que ele explica o apelido. Um dia Ivete estava saindo do quarto com um cliente e viu Paulinho sendo assediado por um invertido (travesti). Ela inicia uma briga e o cliente o chama de “cafetãozinho”. Ele parte para cima do homem, mas leva uma cadeirada na perna. O narrador explica que está experiente nas coisas do mundo, ganha dinheiro no carteado, faz todo o tipo de falcatruas e mumunhas e tem várias mulheres a seu serviço na zona e espalhadas pela cidade: “Sou de Valquíria também. Lá numa das poucas e caras casas da Ribeiro da Silva. Mulata, novinha, me dá tudo o que ganha. Era doméstica e foi comigo que caiu pela primeira vez. Charlei, abusei. Saquei a mina do emprego. Deflorei. Dormimos uma semana num hotel na Alameda Glete. Preparei aquela criança, ensinei a lidar com homem na cama. E meti na vida.” Porém a situação se complica, pois o governo quer fechar a zona. Os outros malandros fogem para outras cidades e Paulinho se une a dois malandros renomados: Bola Preta e Diabo Loiro. A idéia é dar dinheiro para que a polícia os deixe em paz. Um dia, quando estava dormindo com Ivete, a zona é invadida por cerca de 200 policiais que arrombam tudo. Ele se esconde na caixa d’água e Ivete corre para o meio da rua, onde ateia fogo ao próprio corpo na frente dos cavalos. Os policiais lacram tudo e a zona é fechada. O fim da segunda parte.

3ª parte: De 53 pra cá. O protagonista conta que foi preso em 1954: “A Casa de Detenção é a maior escola que um malandro tem. Na Detenção malandro fica malandro dos malandros. (...) Caí na Detenção. Não faço conflito durante três anos. Neles, aprendo atenção. (...) Sou juiz da cela de terceiro pavilhão – o lugar especial dos perigosos. Aqui corre maconha, tóxico, cachaça e carteado.” .Tem dinheiro, bota banca e tem também um advogado (Doutor Aniz Issara). Conhece todos os “grandes” bandidos de São Paulo, com quem irá se unir mais tarde. Saindo da cadeia, fica sócio de Frangão e de Laércio Arrudão em uma boca de jogo no Bom Retiro, frequantada até pela polícia. Após controlar o jogo, Paulinho passa a controlar também a prostituição e a distribuição de drogas: “Lido com tóxico. Desço à zona de Sorocaba e ao Retiro de Jundiaí. Compro o Pervitin a cem mangos e passo por oitocentos. Passadores de fumo vêm comigo. Nota encorpada. Só se trabalha com a melhor maconha, a pura. Cabeça-de-nego, vinda de Alagoas.” O malandro é denunciado à polícia por um “funcionário” (Valdão), mata o delator, indica o enterro para a polícia, que lá captura vários malandros...e foge para Curitiba, enquanto o advogado trabalha para mantê-lo solto. Paulinho está de volta a São Paulo, tem trinta anos e está se sentindo “vazio”. Começa a beber e se drogar muito. Tem medo de sair à rua e não vê mais ‘glamour’ em sua vida no crime. O dinheiro – que era muito, ainda existe, mas - está acabando e ele não tem mais amigos. Destaquei uma parte do conto que convida o leitor a participar das reflexões do autor/narrador sobre a sua importância no mundo e no mundo da malandragem: “Meu nome é ninguém. Paulinho duma Perna Torta, de quem andam encurtando o nome por aí é uma mentira. Como foram Saracura, Marrom, Diabo Loiro, Bola Preta... e como são esses de hoje em dia, donos disso e daquilo, da putaria, do jogo, das virações... A gente não é ninguém,a gente nunca foi. A gente some, apagado, qualquer hora dessas em que polícia ou outro mais malandro nos acerte.” No final do conto, aos trinta e um anos, Paulinho de uma Perna Torta desabafa: “Mas não vou parar. Atucho-me de tóxico e me agüento. Para final, tenho ainda a grana e Maria Princesa é uma boneca. Eu só posso continuar. Até que um dia desses, na crocodilagem, a polícia me dê mancada, me embosque como fez a tantos outros. E me apague. E, nesse dia, os jornais digam que o crime perdeu um rei.

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Para saber mais, leia este artigo publicado na Revista Ciências e Letras, Porto Alegre, n.34, p.143-150, jul/dez. 2003.

João Antônio, esteta do popularAna Maria Domingues de Oliveira - Departamento de Literatura . UNESP . Assis.

Jane Christina Pereira - Doutoranda em letras . UNESP . Assis.

“Uma letra bruxuleiana noite xadrez.”

(Otoniel Santos Pereira)ResumoO texto constitui uma introdução ao universo ficcional de João Antônio através do levantamento dos aspectos fundamentais de sua obra, acompanhado de exemplos retirados dos livros Malagueta, Perus e Bacanaço, Leão-de-chácara e Malhação do Judas carioca.Palavras-chave: João Antônio, conto brasileiro, engajamento.

“Literatura de dentro para fora. Isso é pouco. Realismo crítico. É pouco. Romance . reportagem . depoimento. Ainda pouco. Pode ser tudo isso trançado, misturado, dosado, conluiado, argamassado uma coisa da outra.” Assim João Antônio definiu seu projeto literário, ou seja, uma obra que obriga o desapego às classificações literárias convencionais. Numa tradição como a brasileira, em que o acesso às letras costuma ser privilégio da classe dominante, João Antônio cede a palavra à arraia miúda que encontra, na obra deste, sua representação mais forte. Escreve, sem enfeites, sobre a vida marginal. Aborda o submundo do Rio de Janeiro e de São Paulo, revelando-nos, muitas vezes, o lado da sociedade que pagamos para não ver. O escritor nasceu na Grande São Paulo, mas viveu boa parte de sua vida adulta no Rio de Janeiro. Publicou cerca de catorze livros: Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), Leão-de-Chácara (1975), Malhação do Judas Carioca (1975), Casa de loucos (1976), Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto (1977), Lambões de caçarola (1977), Ô Copacabana (1978), Dedo-duro (1982), Meninão do caixote (1983), Abraçado ao meu rancor (1986), Zicartola (1991),Guardador (1992), Patuléia (1996) e A Dama do Encantado (1996). Além de escritor, trabalhou como jornalista, primeiramente, na revista Realidade, depois, no Jornal do Brasil, Última Hora, O Globo, Folha de São Paulo, Pasquim e em diversos jornais e revistas da chamada .Imprensa alternativa., para a qual ele cunhou a expressão “imprensa nanica”. João Antônio pode ser considerado um dos nomes de maior prestígio da nova literatura brasileira. Malagueta, Perus e Bacanaço foi uma verdadeira consagração. Ganhou com ele os prêmios literários Fábio Prado de Contos, Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, para melhor livro do ano, além do Prêmio Jabuti de Revelação de Autor, correspondente ao mesmo ano. Com esse livro ele se projetou dentro e fora do país, diversos contos do autor foram traduzidos na Venezuela, na Argentina, na Espanha, na Alemanha e na Tchecoslováquia. Em Madri publicou-se um estudo de Pilar Gomes Bedato sobre o livro. De acordo com a crítica, com o conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”,que dá nome ao livro, João Antônio firma-se entre o que de melhor existe na ficção urbana brasileira, na linha de um Manuel Antônio de Almeida, de um Lima Barreto, de um Alcântara Machado, de um Mário de Andrade, de um Marques Rebelo, nomes muito diferentes, mas que são marcados por preocupações semelhantes: os caminhos de existência que podem oferecer as cidades com seu tumulto de lugares e gentes, embora vistos sob diversas perspectivas. Na literatura joãoantoniana, o realismo urbano paulistano ganha extraordinária vivência pela recuperação de tipos autênticos, pela dramática concepção, valorizada por profundos traços de lirismo da condição humana, que captam em profundidade o sentimento, o viver do homem da cidade. Seus predecessores podem ser vistos em muitos escritores, mas os méritos lítero-estilísticos de João Antônio não são encontrados em nenhum outro, pois este surge só, rodeado de seus muitos malandros, convivendo mais intensamente com as prostitutas e seus ambientes, de tal maneira que ninguém retratou com tanta veracidade de sentimento e linguagem esta marginália. É notável a preferência do escritor por personagens representativos do mundo menos favorecido, o mundo do oprimido, onde se sobrevive, literalmente. Assim, a luta dramática dos desfavorecidos é narrada da perspectiva deste, ou seja, o mundo, nas histórias de João Antônio, é visto do ponto de vista de quem está em posição social inferior. É o mundo visto pelo operário do subúrbio, pelo menino engraxate, pelo jogador de sinuca, pelo morador do conjunto habitacional construído pelo governo, pela prostituta, pelo soldado, enfim, pelos chamados malandros.

“Pequeno, feio, preto, magrelo. Mas Paraná havia-lhe mostrado todas as virações de um moleque. Por isso ele o adorava. Pena que não saísse da sinuca e da casa daquela Nora, lá na Barra funda. Tirante o que, Paraná era branco, ensinara-lhe engraxar, tomar conta de carro, se virar vendendo canudo e coisas dentro da cesta de taquara. E até ver horas. (...) Compravam ‘pizza’ e ficavam os dois. Paraná bebia muita cerveja e falava, falava. No quarto. Falava. O menino se ajeitava no caixãozinho de sabão e gostava de ouvir. Coisas saíam da boca do homem: perdi tanto, meu pai era assim, eu tinha um irmão, bote fé, hoje na sinuca eu sou um cobra”. (Frio, 1987, 62)

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Essa visão “de fora do mundo” expressa-se numa linguagem também “de fora”, a gíria. O malandro fala uma linguagem que tudo rebatiza: o sentido do mundo muda para quem vê de baixo para cima, exigindo um vocabulário novo, uma linguagem nova. É a forma que assume a linguagem como expressão de uma visão enraivecida do mundo: agressão e defesa.

“O pai, ferroviário, bêbado, lhe dava safanões. E apenas. Comia mal e mal. Catava restos de comida do lixo das residências lá no asfalto e entregava lavagem a uma dona que criava porcos no morro. Valia um prato de comida por dia. (...) Se Mariazinha Tiro a Esmo perceber que está causando pena, baixa os olhos. Mas tem um repente. Repele, incisiva. Encara: - Que que é bicho? Ainda não viu gente assim, não é? (...) Aos nove fez seu primeiro crime: meteu giletes no escorregador de uns meninos que a surraram(...) Aos doze foi seduzida pelo pai alcoólatra e saiu de casa para sempre(...) Tem conhecido dias de fartura e tem dormido em soleiras de portas. (...) Os iniciados em malandragem costumam chamá-la de pivete, carro novo, bandidinha. (...) Mariazinha Tiro a Esmo não se dá por ofendida: - Sou piranha, e daí? Eu tenho culpa? Acho que não gostaria de ser. Seria bom ter um homem só com um carro só. Parece que seria legal. Mas está aí uma coisa que eu acho que os homens não querem.” (Mariazinha Tiro a Esmo, 1987, p. 167)

Por outro lado, o texto de seus contos reveste a linguagem dos malandros de efeitos rítmicos poucas vezes encontrados na prosa. As aliterações, as assonâncias, os acentos tônicos cuidadosamente manejados compõem um texto que muitas vezes, lido em voz alta, revela um estrato sonoro próprio do texto poético:

“Taco velho quando piora, se entreva duma vez. Tropicava nas tacadas, deu-lhe uma onda de azar, deu para jogar em cavalos. Não deu sorte, só perdeu, decaiu, se estrepou. Deu também para a maconha, mas a erva deu cadeia. Pegava xadrez, saía, voltava...” (Meninão do caixote, 1987, p. 81)

É nessa tensão que o texto de João Antônio ganha: vem com a melodia, com a aparente voz do povo transformada em canto de sereia, concedendo ao coloquial estatuto estético. Ao utilizar a linguagem do malandro, jeitos, códigos, o escritor chega a uma sintaxe malandra. Nesse sentido, os “erros sintáticos”, os enunciados quebrados, as frases curtas, a sonoridade reproduzindo a linguagem oral (o autor procura abreviar o máximo possível as diferenças entre linguagem oral e linguagem escrita), as gírias, os estereótipos, os ditos populares, as tragédias cotidianas etc, não devem ser entendidos superficial e preconceituosamente. Constituem partes integrantes de um tipo específico de criação literária, realizada através do trabalho de montagem, que com suas características, não encontra similar na Literatura Brasileira, a não ser, é claro, e de maneira apenas aproximativa no caso de Lima Barreto, “pai adotivo” do autor João Antônio. O estilo de João Antônio é adequado à forma catastrófica do conto, que conta sem contar, revela pelo que oculta, até o momento final, quando o desenho se completa e o segredo se revela. O escritor recria em suas obras um mundo real, que estimula a estética “das coisas como elas são”. Os contos são escritos numa prosa dura, reduzida às frases mínimas, rejeitando qualquer “elegância” e, por isso mesmo, adequada para representar a força da vida.

“Aqueles viviam. Malagueta, Perus e Bacanaço, ali desencontrados. O movimento e o rumor os machucava, os tocava dali. Não pertenciam àquela gente banhada e distraída, ali se embaraçavam. Eram três vagabundos, virados, sem eira, nem beira. Sofredores. (...) Aqueles tinham a vida ganha. E seus meninos não precisariam engraxar sapatos nas praças e nas esquinas, lavar carro, vender flores, vender amendoim, vender jornal, pente, o diabo... depender da graça do povo na rua passando. (...) Um sentimento comum unia os três, os empurrava. Não eram dali. Deviam andar. Tocassem.” (Malagueta, Perus e Bacanaço, 1987, 122)

A tensão entre burgueses e marginalizados chega ao leitor de forma pungente, deslocando-o da passividade para uma assimilação mais ativa do embate de diferentes classes sociais. No que se refere à população marginal tratada pelo escritor, esta não se configura em mendigos, mulheres abandonadas, velhos em asilos, menores pedintes, negros subservientes, homossexuais com profissões definidas. Percebemos que este não é o exército de João Antônio. Num processo que desmistifica o malandro (visto pela burguesia), o escritor trabalha com a marginália ativa, que luta, que cria um universo outro, transformando as leis maiores em outros códigos, regidos por uma estética marginal cuja ausênciade máscaras e moralismos revela o poder implacável do dinheiro que submete, oprime, humilha, sem culpabilidade nem perdão.

“A Júlio Prestes dava movimento e éramos explorados por um só. O jornaleiro. Dono da banca dos jornais e das caixas de engraxar, do lugar e do dinheiro, ele só agarrava a grana. (...) Descidos dos trens, marmiteiros ou trabalhadores do comércio, das lojas, gente do escritório da estrada de ferro, todo esse povo de gravata que ganha mal. Mas que largava o carvão, o mocó, a gordura, o maldito, o tutu, o pororó, o mango, o vento, a granuncha. A seda, a gaita, a grana, a gaitolina, o capim, o concreto, o abre-caminho, o cobre, a nota, a manteiga, o agrião, o pinhão. O positivo, o algum, o dinheiro. Aquele que eu precisava para me agüentar nas pernas sujas, almoçando banana, pastéis sanduíches. E com que pagava para dormir a um canto com os vagabundos lá nos escuros da Pensão do Triunfo. Onde muita vez eu curti dor-de-dente sozinho, quieto no meu canto, abafando o som na boca...” (Paulinho Perna Torta, 1976, 63-4)

Nesse contexto histórico-social João Antônio, revela, a partir da literatura, que no mundo da malandragem, assim como na sociedade burguesa, há também competição e exploração. Com esse procedimento estético, ao caracterizar o chamado submundo sem menosprezo nem complacência, o escritor tenciona criar uma normalidade do socialmente anormal. Sob tal perspectiva, não se pode dizer que a literatura de João Antônio seja pessimis ta, nem mesmo amarga. Ele procura deseducar o leitor para a apreciação de uma literatura que seja o adorno, ou sorriso da sociedade. Nesse sentido ele

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grita:

“Não é possível produzir uma literatura de heróis taludos ou de grandiosidade imponente, nem horizontal, nem vertical, na vida de um país cujo homem está por exemplo, comendo rapadura e mandioca em beira de estrada e esperando carona em algum pau-de-arara para o sul, já que deve e precisa sobreviver. Logo, tais grandezas quiquiriquis, salve-salves e loas apologéticas tropeçam nas próprias pernas. E têm pernas curtas como a mentira.” (1976)

Num salto a frente do conceito de realismo como mimesis, o autor não constrói suas descrições como referência pacífica, representativa e neutra do mundo. A voz nervosa do narrador, quase agressiva, recusa a neutralidade. João Antônio escreve dentro dos padrões tocados pelo realismo contempor âneo:

“Quando escrevo, sou mais dirigido que diretor, as palavras puxando palavras que, se não extraviam expressam, provocam o seu oposto, isto é, ‘chamuscam’ a figuração com impressão da realidade.” (1976 . a)

Ao ficcionalizar o real, o escritor e/ou o autor submergem nas malhas de um texto, que flui no limiar entre o concreto e o abstrato, a definição e a sensação.

“Frio. Quando terminou a Duque de Caxias na Avenida São João. O pedaço de jornal com que Paraná fizera a palmilha não impedia a friagem do asfalto. Compreendeu que os prédios, agora, não iriam tapar o vento batendo-lhe na cara e nas pernas. Andou um pouco mais depressa. Olhava para as luzes do centro da Avenida, bem em cima dos trilhos dos bondes, e pareceu-lhe que elas não iriam acabar- se mais. Gostoso olhá-las. Que bom tomasse um copo de leite quente! Leite quente, como era bom! Lá na Rua João Teodoro podia tomar leite todas as tardes. E quente. Mas precisava agora era andar, não perder a atenção.” (Frio, 1987, 64)

Frio e quente configuram um jogo de opostos que aguçam o sensorial para ressaltar o real e o ideal; os suportes de uma sociedade violentamente dicotômica. Ao evidenciar esse contexto que estimula conflitos (internos também), desune, destrói, que faz do homem o inimigo do homem, João Antônio revela uma das facetas das capitais paulista e carioca na sua emocionante realidade, na sua dolorosa e agitada poesia. Um lirismo que acaba por valorizar o aspecto humano até dos seres que parecem desumanos, em função da marginalidade em que vivem. Trabalha com o lixo da vida e com ele constrói beleza e poesia:

“O choro já serenando, baixo, sem os soluços. Mas era preciso limpar os olhos para ver as coisas direito. Pensei, um infinito de coisas batucaram na cabeça. As grandes paradas, dois anos de taco, Taquara, Narciso, Zé da Lua, Piauí, Tiririca... Tacos, tacos. Todos batidos por mim. E agora, mamãe me trazendo almoço... Eu ganhava aquilo? Um braço me puxou. - Me deixa. Falei baixo, mais para mim do que para eles. Não ia mais pegar no taco. Tivessem paciência. Mas agora estava jurando por Deus. Larguei as coisas e fui saindo. Passei a cortina, num passo arrastado. Depois a rua. Mamãe ia lá em cima. Ninguém precisava dizer que aquilo era um domingo... Havia namoros, havia vozes e havia brinquedos na rua, mas eu não olhava. Apertei meu passo, apertei, apertando, chispei. Ia quase chegando. Nossas mãos se acharam. Nós nos olhamos, não dissemos nada. E fomos subindo a rua.” (Meninão do caixote, 1987, 98)

João Antônio fuzila a vida em pleno vôo: nos seus contos dispensa as coordenadas explícitas de espaço e tempo, o ambiente emerge delineado por uma eleição de fragmentos vários, ângulos de uma realidade fisgada por uma atenção minuciosa e precisa às coisas. João Antônio produz um trabalho com flagrantes que eternizam momentos decisivos, um trabalho universal que dá permanência ao instantâneo.

“Dias desses, no lotação. A tal estava ao meu lado querendo prosa. (...) Perguntou o que eu fazia da vida. (...) Quase respondi... - Olhe: sou um cara que trabalha muito mal. Assobia sambas de Noel com alguma bossa. Agora, minha especialidade, meu gosto, meu jeito mesmo, é chutar tampinhas da rua. Não conheço chutador mais fino. Mas não sei. A voz mulata no disco me fala de coisas sutis e corriqueiras. De vez em quando um amor que morre sem recado, sem bilhete. Ciúme, queixa. Sutis e corriqueiras. Ou a cadência dos versos que exaltam um céu cinzento, uma luva, um carro de praça... se ouço um samba de Noel... Muito difícil dizer, por exemplo, o que é mais bonito o “Feitio de Oração” ou as minhas tampinhas.” (A afinação da arte de chutar tampinhas, 1987, 28)

Nessa construção, como em toda a obra literária joãoantoniana, conteúdo e forma se harmonizam inexoravelmente. Desvela-se aqui um narrador que fala da música que o encanta, num texto que canta. Todos os recursos empreendidos pelo escritor convergem para um lirismo que embala palavras, para uma surpresa estética causada pela narração de uma vivência prosaica que se dilui em poesia. A partir de Malhação do Judas Carioca, João Antônio, incendiado pela sua filosofia do “corpo-a-corpo com a vida”, torna-se um jornalista-escritor, criando uma técnica pouco encontrada e abordando em suas obras o que se convencionou chamar de realidade brasileira. Sob tal perspectiva, o escritor desvela a impossibilidade em se dissociar vida e obra, realidade e literatura. Encontramos este conceito aplicado na produção das suas duas primeiras obras e, definitivamente, reafirmado e intensificado a partir de Malhação do Judas Carioca. Sua proposta de fundir vida e ficção aparece no texto que encerra o volume, intitulado “Corpo-a-corpo com a vida”, que constitui uma espécie de justificativa da sua nova postura literária. João Antônio concebe a literatura como uma decorrência da estratificação da vida de um povo, nutre a filosofia de que o homem tem de ser o epicentro do mundo e acredita que escrever é passar a limpo certas diferenças: “os nosso intestinos, enfim, onde estão em nossa literatura?” (.Corpo-a-corpo com a vida., 1987, p. 318) Por tudo isso, acredita que o que deve determinar a forma é o conteúdo:

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“O escritor não pode partir com uma forma pronta. Ela será dada, exigida, imposta pelo próprio tema e com esse elemento de certa novidade, é possível admitir também que cada novo tema tratado jamais deixará de surpreender o escritor. O tema passa a flagar o desconhecimento do escritor, uma vez que o intérprete aceita um corpo-a-corpo a ser travado com a coisa a ser interpretada.” (Corpo-acorpo com a vida, 1987, p. 322)

O seu estilo que, em Malagueta, Perus e Bacanaço e Leão-de-chácara, ficcionaliza o real, a partir de Malhação do Judas Carioca vai unir jornalismo e literatura, para dar conta de retratar a realidade brasileira no nível da tragédia do nosso país. Este passa a ser seu projeto estético. Passam a habitar seus livros, cada vez com mais intensidade, personagens reais da vida brasileira, nomes como Cartola, Aracy de Almeida, Lima Barreto, Noel Rosa, entre outros, todos devidamente “ficcionalizados” por João Antônio. Essa guinada em sua postura literária, contudo, não fragmenta, em nenhum aspecto, seu projeto de uma literatura empenhada, na qual localismo e nacionalidade imperam; de uma literatura que, sobretudo, “rale nos fatos e não que rele neles”. Enfim, é um escritor que se destaca em meio a muitos desvarios metafísicos que preenchem muitas páginas da ficção moderna, não dá um passo nesse sentido, mantendo sempre a vista as circunstâncias históricas específicas. Promove uma escritura que traz um “corpo-a-corpo com a vida” e vai além dos “ismos”; uma literatura que não tenciona apenas compreender a realidade da marginália, mas que a encara e briga para modificá-la; uma literatura que une inexoravelmente grandeza estética a um profundo sentimento popular e democrático. Sem ser sentimentalista, a obra joãoantoniana revela um profundo sentimento solidário ao homem. Especialmente para os seus leitores, sua produção literária constitui um melhor conhecimento da face e dos valores do Brasil.BibliografiaANTÔNIO, J. Leão-de-chácara. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.ANTÔNIO, J. Malagueta, Perus e Bacanaço incluindo Malhação do Judas Carioca. São Paulo: Clube do Livro, 1987.ENTREVISTA com João Antônio, o novo fenômeno da literatura brasileira. Suplemento Cultural, Goiânia, 12/18 abr. 1976 (a).HOHLFELDT, A. João Antônio, um pingente da literatura. Correio do Brasil, 12 set 1976.Remate de Males . João Antônio. Departamento de Teoria Literária. IEL/UNICAMP, No 19, Campinas,1999.