LECOQ, Jacques - O Corpo Poético Uma Pedagogia Da Criação Teatral

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teatro.

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  • os animais, conduzida paralelamente s identificaes. O s m o-

    vimentos suscitados pela improvisao so retomados de ma-

    neira tcnica, tentando ressaltar as diferentes partes do corpo

    a engajadas.

    Os quatro elementos (a gua, o fogo, o ar e a terra) so

    abordados em suas diferentes manifestaes. Para a gua, va-

    mos descobrir o tanque, o lago, o rio, o mar. Observamos ,

    por exemplo, os movimentos de um corpo n o m ar: alado

    pela gua, repuxado pela correnteza, numa luta lateral para

    penetr-lo. A gua uma resistncia m vel contra a qual

    preciso lutar para reconhec-la. s a partir do quadril que

    essa sensao global pode ser transmitida ao conjunto do cor-

    p o. Insistimos no comprometimento do quadril, para evi tar

    os gestos dos braos e das mos que tenderiam a significar o

    mar sem jamais senti-lo.

    O fogo nasce do interior. Sua fonte brota da respirao e

    do diafragma. No fogo, dois movimentos se distinguem: de

    um lado, a combusto; de outro, a chama. Comeamos pela

    combusto, no nvel do diafragma, para descobrir progres-

    sivamente os ritmos do fogo e, rapidamente, constatar que

    a justificativa dramtica se encontra na raiva. As chamas s

    chegam em um segundo momento e, depois disso, podemos

    trabalhar outras imagens interessantes, por exemplo, a gua

    fervendo.

    Descobre-se o ar pelo voo. Correndo pela sala de ensaio,

    com os braos estendidos em forma de planador, sentimos a

    possibilidade de nos apoiarmos no ar, que no vazio, mas um

    elemento de sustentao. Todo o corpo solicitado. Em sua di -

    menso extrema, o ar, tornando-se "grandes ventos ': age sobre

    132

    It

    o homem, empurra-o, puxa-o. Mas, inversam ente, o hom em

    pode agir sobre o ar, faz-lo m over-se, com um leque.

    Por fim, trabalhamos a terra com o uma massa a ser m o-

    delada, que podemos comprimir, aplain ar, estirar. Aqui, a

    sensao parte das mos e da m anipulao, para estender-se

    ao corpo todo. Se fcil sentir sen saes a partir das mos ,

    tambm importante empenhar o resto do corpo, o quadril,

    o plexo, nu m a con fron tao com u m a terra argilosa imagin-

    ria. D a terra, que eu manipulo, torno-me, p aulatinamente, a

    argila manipulada.

    A principal caracterstica das matrias serem passivas

    e manifestarem-se por suas reaes. S se podem analisar

    seus movimentos quando elas so agredidas. preciso atirar,

    amassar, rasgar, quebrar uma matria para poder observar sua

    reao. Portanto, nesse processo, presta-se ateno para no

    confundir a matria com o objeto que ela constitui. Quando

    se joga uma bola de madeira n o cho, no a madeira que

    rola, a bola. Se a b ola for de chumbo, ela rolar diferen-

    temente, m as sempre rolar. Mas a madeira ou o prprio

    chumbo que interessa. Para abordar tecnicamente sua anlise,

    reuni diferentes tipos de matrias.

    Primeiro, as que, ao agir-se sobre elas, podem ser com-

    primidas: o chumbo atirado ao cho, a terra que se esmaga,

    um fio de arame que entortamos. Tantas matrias que, uma

    vez agredidas, no se modificam mais. A analogia dramtica

    poderia ser: "O que foi dito, est dito!"

    As matrias elsticas, ao contrrio, uma vez esticadas, tm

    uma espcie de nostalgia da forma inicial, ainda que no vol-

    133

  • tem to talm en te a ser o que eram. H numerosas variantes: as

    gomas, as borrachas, algumas fib r as. Q u anto mais puxamos,

    m ais elas se cansam e m en o s voltaro forma inicial. Drama-

    ticamente, muito in teressan te essa d inmica d a nostalgia e

    da fadiga.

    Em seguida, vm as m arcas , as man chas, as d o b radu r as, as

    rugas que obse rvamos nos p ap is que amassamos, q ue tam-

    bm tentam voltar su a forma anterior, m as co m muito mais

    dificuldade que as m atrias elsticas. Surge, ento , a d imenso

    p u r am en te trgica, diferente, dependendo da natureza e d a

    qualidade do papel utilizado. A tragd ia do p ap el jornal no

    a mesma do papel de seda; o drama d o p apel p ar a em brulhar

    carne diferente d aquele do p apel de car tas reci clad o . As cica-

    trizes so n um erosas, na n ostalgia d o p ara so p er d ido !

    Enfim chegam as quebras, as fissuras, os v id ros trin cados,

    os v idros rachados, as exp loses. Aq ui, t alvez m ais do q ue em

    outro lugar, esto em jogo n ossas q u ebras, n ossas diversas fis-

    su ras.

    A chu va, no ptio em que a olho cair, desce em anda-mentos muito diversos. No centro, uma fina cortina

    (ou rede) descontnua, uma queda implacvel m as rela-

    tivamente lenta de gotas provavelmente bastante leves,um a precipita o sempiterna sem vigor, um a frao in-

    tensa do meteoro puro . A pouca distncia da s paredes dadireit a e da esquerda caem com mais rudo gotas maispesadas, individuadas. Aqui parecem do tamanho de um

    gro de trigo, l de uma ervilha, ad iante quase de uma

    bola de gude. Sobre o reb ord o, sobre o parapeito da ja -nela a chuva corre horizontalmente ao passo que na faceinferior dos mesmos obst culos ela se suspende em ba -las convexas. Seguindo toda a sup erfcie de um p equeno

    134

    f

    I

    teto de zinco abarcado pelo olhar, ela corre em camadamuito fina, ondeada por causa de correntes muito varia-das devido a imperceptveis ondula es e bossas da co-bertura. Da calha contgua onde escoa com a contenode um riacho fundo sem grande declive, cai de repenteem um filete perfeitamente vertical, grosseiramente en-tranad o, at o solo, onde se rompe e espirra em agulhe-tas brilhantes.

    Cada uma de suas formas tem um andamento particu-lar; a cada uma corresponde um rudo particular. O to dovive com intensidade, como um mecanismo complica-do, to preciso quanto casual, como uma relojoaria cujamola o peso de uma dada massa de vapor em precipi-tao.O repique no solo dos filetes verticais, o gluglu das ca-lhas, as minsculas batidas de gongo se multiplicam eressoam ao mesrno tempo em um con certo sem mono-tonia, no sem delicadeza.Q uando a mola se distende, certas engrenagens por al-gum tempo continuam a funcionar, cada vez mais len-tamente, de pois toda a maquinaria para. En to, se o solreaparece, tudo logo se desfaz, o brilhante aparelho eva-pora: choveu.1

    Par a al m d a agress o fsi ca, as matrias tm cap acidade

    de ser t r ansformad as pelo fr io e p elo calor. As fuses , as eva-

    p oraes, as solidifica es so r icas em analogias d r am ticas,

    q u e se enco n tram, al is, n a linguagem corrente: "eu m e d erre-

    to p o r voc", "esse h o m em um bloco d e gelo", "a im agem est

    congelada", "eles q u eb r ar am a promessa", "sua agressividade

    Fran cis Ponge, "P lu ie", em Le parti des choses (Paris: Galimard, 1948).["Ch uva", Textos, trad. Jlio Castarlon Guimares, em www. usp.b r/revistausp/Ol/08-francis.pdf. (N. T.) ]

    135

    --- I

  • Cme esmagou . . . aptamos essas expresses ao p d a letra, nocorpo das palavras.

    Graas ao cozimento, a cozinha tam bm oferece grandes

    possibilidades de anlise e de representao. Ao quebrar um

    ovo e jog-lo na frigideira, qual ch ega primeiro, a clara ou a

    gema? Cada um dos alunos vai fritar, por exemplo, um ovo,

    para con statar, antes de representar, que a gema chega depois

    da clara, mais rpida. Depois disso, observam-se na frigideira

    os diferen tes estgios da fritura: o tremor gelatinoso da clara

    a vibrao dos primeiros calores, a sol idificao progressiva:

    as bordas que comeam a dourar, at a fritura total. Seguimos

    an alit icamente a Paixo do ovo, desde a postura at o omelete!

    A anlise tcnica das matrias passa, enfim, da manipu-

    lao da matria interpretao da matria em si. Quando

    tratamos dos leos, os alunos comeam sendo a embalagem

    do leo, no interior da qual, graas aos movimentos do qua-

    dril, eles podem sentir a dinmica do leo contido, antes de

    vert-lo ao ch o e de tornar-se, naquele momento, o prprio

    leo . Observamos, ento, a q ueda do leo que sai da lata l

    garrafa, com fora e precipitao, e depois quando se espalha

    pelo solo, n o term in an do nunca. Tudo uma questo de rit-

    mo e de fluidez, difcil de atingir quando cotovelos e joelhos,

    ren tes ao solo, vm nos lembrar q ue tem os um esq ueleto. Tec-

    nicamente, importante reter o movimento, no se espalhar

    muito rapidam en te, para poder ir o mais longe possvel, n otempo e no espao.

    O corpo do outro pode ser utilizado igualm en te como se

    fosse uma matria: torcer um corp o como uma b arra de fer -

    136

    ro, am ass -lo com o um papel. Um ator apropria -se do outro,

    am assa-o e joga-o n o ch o, depois o segun do p rossegu e sozi-

    nho a reao do "p apel" que se desdobra. Esse tipo de exerccio

    implica uma certa p reciso da p arte dos at ores, tanto daquele

    que age quanto do que reage, para assegurar uma verdadeira

    continuidade da resistncia, do comeo ao fim do movimen-

    to. Uma experincia semelhante feita com uma bexiga: um

    aluno "infla" o outro, progressivamen te e var ian do os r itmos

    do sopro, depois solt a-o brutalmente no ar ou, ao con trrio ,

    fura-o para que estou re . Ainda a, a rep resentao feita a

    dois numa relaco de escuta e de reao preparatria para, ,qualquer interpretao do at or.

    Ao trmino dessas exper incias, os alu n os tero sentido

    todas as nuances p ossveis ent re as m atrias e o interior de

    cada uma delas, as qualidades d os leos, das fumaas, dos pa-

    pis, dos metais, das madeiras, etc. A dinmica das matr ias

    torna-se uma linguagem que lhes servir ao longo de seus tra-

    balhos artsticos. Podero dizer-se: "Voc l eo demais; voc

    no chumbo o suficiente; sej a diamante!". Essa linguagem

    analgica , ao mesmo tempo, rica e precisa, e est alm de

    qualquer abordagem psicolgica. Se algum entrasse na sala

    no momento em que estamos representando as matrias, sem

    saber do que se trata, sem dvida pensaria que estamos num

    exerccio trgico. Um papel amassado, um tablete de caldo de

    galinha que se dissolve num lquido, todos so movimentos

    de extrem a densidade trgica. A tragdia da matria provm

    de seu carter passivo. Ela vtima!

    137

  • ESTUDAR OS ANIMAIS

    A anlise dos movimentos dos animais vai conduzir-nos

    mais diretamente ao corpo do homem, a servio da criao do

    personagem. Em geral, os animais se parecem com a gente, com

    seus corpos, suas patas, sua cabea. mais fcil, ento, tratar

    deles do que dos elementos ou das matrias. A busca do corpo

    animal comea pelos pontos de apoio: como se sustentam no

    solo? Como so constitudos seus apoios? Em que diferem dos

    nossos? Descobrimos os ps que "tamancam", que ficam muito

    pouco tempo em contato com o solo (como as mulheres de

    salto alto ); os ps chatos dos plantgrados; os ps espalmados

    dos patos que se "desenrolam" (como no andar de Carlitos);

    as patas das moscas que, "ventosam" e colam no cho ... Por

    isso, convido os alunos a imaginar que o piso da sala de ensaio

    est queimando, como uma praia sob o sol do meio-dia, o que

    os obriga a encontrar a dinmica particular dessa caminhada.

    Passamos a, diretamente, da anlise representao.

    Buscamos, depois, as atitudes dos animais. Quais so as

    atitudes possveis de um co? De quatro, fazendo graa, deita-

    do, em guarda .. . Cada um apresenta algumas posturas, per-

    mitindo ao grupo que, a partir da, determine umas quinze.

    Alguns animais oferecem ritmos lentos excepcionais, entre

    eles, o camaleo. Ele se desloca sem que sua cabea nunca re -

    ceba o mnimo choque vindo das patas. Situao ideal para

    espionagem! Tambm a passagem da descontrao ao alerta

    um elemento particular da dinmica animal. O co passa

    imediatamente da defesa ao ataque, do sono vigilncia. So

    muitas as dinmicas analisadas que vm a enriquecer forte-

    mente a representao dos personagens.

    138

    o trabalho com os animais permitiu-me definir, progres-sivamente, uma gin stica animalesca. A flexibilidade vertebral

    buscada por analogia nos movimentos do gato; o trabalho

    das omoplatas vem do tigre; o alongamento da coluna ver-

    tebral vem do suricato, ereto no deserto em pleno estado de

    vigia. Nessa ginstica, no se trata de representar suas capa-

    cidades excepcionais, mas de reencontrar os movimentos

    elementares e orgnicos dos animais. Para trabalhar os m o-

    vimentos do pescoo e da cabea, a referncia ao cachorro

    particularmente apropriada.

    Um homem brinca com seuco. comuma bolinha.

    Tal proposio, interpretada por dois alunos, desenvolve

    um trabalho com a vivacidade de resposta, que se concentra

    principalmente na cabea e em seu conjunto. Com efeito, um

    co no move os olhos, ele move a cabea, o que nos con-

    duz diretamente ao jogo da mscara. Os alunos j esto no

    movimento da representao com mscara, mas ainda no o

    sabem.

    As locomoes fazem parte das pesquisas mais marcantes

    da abordagem animal. Tratamos a principalmente do qua-

    drpede (o andar de quatro) e tambm dos rpteis (a ondu-

    laco de base), do voo dos pssaros, do nado dos peixes. Uma

    vez mais: a terra, o ar, o mar! Andamos de quatro, galopamos,

    trotamos, saltitamos ... tantos movimentos particularmente

    difceis de realizar para os humanos.No comeo, alguns alunos recusam o cho, evitam levar o

    peso do corp o sobre os braos, andando apenas com a ponta

    dos dedos. Agindo assim, tentam conservar uma segurana

    139

  • nas pern as, mas n o fazem nada alm de um simulacro do

    andar de qu atro. S qu an d o aceitam realmen te con fron tar-se

    com o ch o e dele se servir que p o dem progredir.

    Aqui essencial a observao real do s animais. Vejo muito

    ra p idamente os que t m gatos e os que no tm, os que obser-

    vam os insetos e os qu e os imaginam . O s prim eiros interpre-

    tam, os outros "sign ificam". p reciso mand-los ao zo olgico

    para que vejam, analisem, ain d a que s vezes isso sej a d ifci l:

    o andar da girafa ou o do urso so de grande com p lexid ad e e

    deixam dvid as.

    As LEIS DO MOVIMENTO, COM M MAISCULO

    A an lise dos movimentos evidencia, en fim, algumas leis

    genricas que vou resumir d o segu inte m odo :

    1. no h a o sem reao;

    2. o movimento contnuo, ele avana sem parar;

    3. o m ovimento sempre provm de um desequ ilb r io, em

    busca do equilbrio;

    4. o prprio equilbrio est em m ovimento;

    5. no h movimento sem ponto fixo;

    6. o m ovimento eviden cia o ponto fixo ;

    7. o ponto fixo tambm est em movimento.

    Esses princpios podem ser complementados pelas resul-

    tantes do jogo permanente entre equilbrio e desequilbri o

    de foras, que so as oposies (para ficar d e p, o homem

    ope-se gravidade .. . ), as alternncias (o dia se alterna com

    a noite, como o riso com o choro ... ) , e as compensaes (le-

    var uma mala com o brao esquerdo obriga a compensao,

    140

    levantando-se o brao oposto . . .). Essas noes podem pare-

    cer abstratas, no entanto num palco elas so muito concretas,

    e importantes na minha pedagogia. Servem particularmente

    na direo da cena: saber posicionar-se em relao a um pon-

    to fixo, numa dada situao. Se todos se movimentarem ao

    mesmo tempo no palco, o movimento desaparece, devido

    falta de ponto fixo. Tudo se torna incompreensvel e ilegvel.

    importante que o prprio ator possa situar-se em relao ao

    outro, numa relao clara de escuta e de resposta.

    Paradoxalmente, esse trabalho sobre o movimento, que

    parece aplicar-se na interpretao e na direo, deveria servir

    sobretudo escrita. Sejam quais forem os temas abordados,

    as ideias expressas, as fbulas ou as formas utilizadas, in d is-

    pensvel que uma escrita teatral seja estruturada do ponto de

    vista dinmico. preciso, tambm, um comeo e um fim, pois

    todo movimento que no termina nunca comeou. Saber ter-

    minar essencial.

    14 1

  • I1

    I

    1

    3. oteatro dos alunos

    Os autocursos e as enquetes

    Chamamos autocursos s sees de uma hora e meia por d ia ,

    em que os alunos trabalham em pequenos grupos, sem a aju-

    da dos professores, numa realizao a partir de um tema que

    proponho e que eles apresentam no fim de semana para toda

    a escola reunida. o teatro deles. Os autocursos esto ligados

    temtica de improvisao abordada n os cu rsos. Quando

    trabalhamos a interpretao psicolgica silenciosa, os auto-

    cursos tratam desse aspecto do trabalho; e o mesmo acontece

    quando abordamos a mscara neutra, as mscaras expressi-

    vas, etc.

    O primeiro tema proposto de grande simplicidade. Pe -

    o -lhes que se dividam em grupos de cinco ou sete e interpre -

    tem o seguinte tema:

    Um local. umacontecimento!

    143

  • Diante de tal simplicidade, s vezes se sentem perdidos.

    "O que pra fazer?", me perguntam. E eu l sei?! "Quanto

    tempo?" O tempo de algo interessante! A nica instruo que

    vale a de faz er silncio e que aco ntea algo. Como n o teatro!

    Um segundo tema significativo engloba, n a mesma inter-

    pretao, o todo da classe.

    Representar a vidana praa deumvilarejo na Frana, ou de uma tlde -

    dezinha. desde manh, ao despertar. at a noite alta.

    Os alunos devem sentir, e fazer-n os sentir, a p rogresso

    rtmica da vida ao longo de um dia completo, realizando to-

    das as aes reais que podem existir: a limpeza, os encontros,

    as compras, as refeies, a missa, a feira . .. Essa experincia

    coletiva, no mbito da reinterpretao, particularmente in -

    teressante pois rene, em menos de vinte minutos (mais que

    isso sempre longo demais), o conjunto das d inmicas pro-

    fundas de um dia de vida. Constatamos, ento, evidenciados,

    os grandes tempos fortes da vida coletiva: o momento em que

    a Frana para, ao comer, a retomada progressiva do trabalho,

    o crepsculo, a vida noturna, as so lides da noite ... O tra-

    balho realizado em quinze dias, com um primeiro esboo

    depois da primeira semana.

    Um terceiro tem a, o do xodo, muito sensvel no p ero-

    do do ps-guerra, atualmente encontra um novo eco. Pro-

    ponho esse tema paralelamente ao trabalho da in terp r ta o

    com mscara. Os alunos o constroem e repetem-no sem ms-

    cara, depois o apresentam com mscara. Todas as form as de

    xodo aparecem: as migraes do campo para as cidades, as

    144

    "

    Co mentrios sobre as apresentaes.

  • m ultides que fogem da guerra e dos bombardeios . .. Eles

    projetam, assim, suas preocupaes atuais e inserem-nas

    num imaginrio que lhes diz respeito. Meu comentrio trata

    sempre ap en as d a estrutura da interpretao e do m ovimen-

    to dramtico da improvisao. Tudo deve estar legvel para o

    pblico. Da a pesquisa de uma escrita e de uma linguagem.

    No fim do ano, os autocursos transformam-se em enquetes.

    Os alunos escolhem um local o u um meio que no conhecem,

    na vida cotidiana, para observ- lo e nele integrar-se durante

    quatro semanas. No se trata de uma enquete no sentido jor-

    nalstico do termo, que se satisfaria com uma simples obser-

    vao e com algumas conversas com as pessoas, mas de uma

    verdadeir a integrao num meio de vida, a fim de sentir, de

    dentro, o que acontece. Alguns alunos ficaram vrias semanas

    no hospital do Htel-Dieu, em Paris, alimentaram os doentes

    e ajudaram os mdicos. Outros se in tegraram vida de um

    quartel de bombeiros . . . A partir dessa vivncia, constroem

    um espetculo curto, utilizando as formas teatrais que lhes

    paream mais bem adaptadas para transmitir o que sentiram.

    Os resultados desses trabalhos so apresentados por ocasio

    das noites abertas ao pblico.

    Diferentemente da improvisao, que se baseia principal-

    mente na interpretao, os autocursos enfatizam a direo, a

    escrita de uma cena, e tambm o indispensvel trabalho cole-

    tivo do teatro. No comeo do primeiro ano, os alunos no se

    conhecem, so muito gentis, muito bem-educados uns com

    os outros. Ao longo do tempo, quando o comprometimen-

    to se torna mais vivo, as relaes se transformam e todos os

    146 I

    co n flitos possveis aparecem. Diferentemente do "estgio", em

    que todos se ab raam e choram ao seu trmino, com a espe-

    rana de se reverem um dia, a Escola um local de lutas, de

    tenses e d e crises que se expressam e, s vezes, estimulam a

    criativ id ade. Alguns alu n os algu mas vezes me procuram e se

    queixam: "Eles no qu erem trabalhar com igo!". Ento s te-

    nho uma resposta para dar: "Trab alh e com eles!". Pondo -se a

    servio dos outros, eles descobrem uma dimenso importan-

    te do trab alho teatral. Por meio dessas tenses e crises, viven-

    ciam a experincia de uma companhia. A terceira etapa mais

    calm a. Depois de um certo tempo, os alunos se conhecem, es-

    colhem-se e as te nses se acalmam. Eu lhes sugiro, n o entanto,

    que no trabalhem sempre com os mesmos companheiros,

    para que se deixem p rovocar por outras personalidades.

    En fim, os autocursos fazem surgir, relativamente rpido,

    as fu nes de u n s e de outros: o direto r, o autor, o ator . . .

    todos surgem co m fora. Aquele q ue quer absolutamente o

    pod er n o necessariamente o que o obtm; uma cert a p er-

    so n alidade di screta po de revelar-se m uito presente e ser elei-

    ta, de fat o, po r seus ca m aradas. Nesse trabalho autnomo,

    man ifestam -se todos esses m ovi m entos in tern os na vida de

    um grupo. u m a boa coisa que futuros at o res os descub r am

    ao longo da Escola.

    147

  • 111. Os caminhos da criao

  • Espetculo dos alunos.

    I

    Geodramtica

    Ao fim do primeiro ano, cerc a de u m tero dos alunos se-

    lecionado para continuar o segundo ano. Ess a seleo p od e

    ser difcil, s vezes dolorosa e nunca estamos livres de um

    erro. N o entanto , tentamos ser o m ais justos p ossve l, consi-

    derar o ator sem ferir a pessoa, e n ossa escolha no preju lga

    o que os alunos podero fazer em outro lugar, ou mais tar-

    de. O p rincipal cr itrio de seleo d iz respeito capacidade

    de interpretao do ator. Isso no significa que, n o fu turo,

    todos vo escolher ser atores. Alguns seguem o ut ros cami-

    nhos, para a escrita ou para a direo, mas os territrios dra-

    mticos abordados no segundo ano s podem ser realmente

    explorados por meio da interpretao, tratada em se u mais

    alto n vel. p reciso, ento, que os alunos deem prova de

    grandes qualidades nesse mbito. Um verdadeiro conheci-

    mento do teatro passa inevitavelmente pela forte experin-

    cia da interpretao.

    15 1

  • Ao longo do prim eiro ano, te remos plantado as ra zes,

    adubado o terren o, revolvido a terra. Teremos cumprido trs

    viagens: de uma parte, a observao e a redescoberta da vida

    tal qual ela , p or meio da reinterpreta o, graas disponibi-

    lidade da mscara neutra; teremos, de outra parte, elevado os

    nveis de in terp retao, de jogo, com as mscaras expressivas;

    e, de ainda out ra, enfim, teremos explorado as profundezas

    da poesia, das palavras, das cores, dos sons. O primeiro ano

    constituiu um trabalho extremamente preciso, que vai ficar

    co m o refe rncia: uma rvore, qualquer que seja, ser "a rvo-

    re ". E vai ser p reciso continuar a observ-la sem parar.

    O segundo ano muito diferente. No se trata de uma se-

    q uncia lgica do primeiro, mas de um salto qualitativo para

    uma outra dimenso, para a explorao geodramtica de vas-

    to s territrios, com apenas um objetivo: a criao dramtica.

    Primeiramente, abordamos as linguagens do corpo e as do

    gesto. Em seguida, entramos nos grandes sentimentos do me-

    lodrama; depois, na comdia humana da commedia dell'arte.

    O segundo trimestre dedicado aos bufes, depois tragdia

    e ao coro, e, por fim, ao mistrio e sua loucura. O clown e as

    variedades cmicas (burlescos, excntricos, absurdos ... ) ocu-

    pam o terceiro trimestre. O ano comea chorando, passa pelo

    coletivo do coro e termina na solido, no riso!

    Um tal percurso explora as diferentes facetas da nature-

    za humana: o melodrama nos leva aos grandes sentimentos,

    ao esprito de justia. Na commedia dell'arte, descobrimos a

    comdia humana, as pequenas intrigas, a trapaa, a fome, o

    desejo, a urgncia de viver. Os bufes caricaturam o mundo

    tal como ele , enfatizam a dimenso grotesca do poder, das

    152

    h ierarquias. A t ragdia evoca o grande can to do p ovo, o desti-

    n o do heri. O mistrio n os question a sobre tudo aquilo que

    permanece in co mpreen svel , do nascimento m orte, o antes

    e o de p oi s, o d iabo provocado r dos de uses e do imaginrio.

    Enfim, o clown te m a liberdade de fazer rir, mostrando-se

    como , em sua so lido.

    Mas um perigo maior nos espia: as referncias culturais

    que acomp anham esses territrios dram ticos. Cada um traz

    o seu im agin rio do p assado, suas imagens, su as lei tu ras, e

    tambm seus clichs. Todo m undo pretende saber o que o

    m elodram a, a commedia d ell' arte ou a tragd ia eram, mas

    quem pode dizer com o realmente se encenavam as t rag-

    dias na Grcia? Ou, na It lia, a comdia italia n a? Nen h uma

    referncia pode substituir a verdadeira cri ao, reinventada

    a cada dia na Escola. Para alm dos estilos o u dos gneros,

    buscamos descobrir os motores da interpreta o, em obra em

    cada territrio, para que inspirem a criao. Essa, sempre,

    deve continuar sendo de nosso tempo.

    Meu processo visa a favorecer a emergncia de um teatro

    em que o ator est em ao, um teatro do movimento, mas,

    sobretudo, um teatro do imaginrio. Ao longo do segundo

    ano, no se trata mais apenas de ver e de (re)conhecer a rea-

    lidade, mas de imagin-la e dar-lhe forma. Abordamos esses

    territrios como se o teatro fosse para ser reinventado.

    A nfase dada viso potica, para desenvolver o imagi-

    nrio criativo d os alunos. A dificuldade no perder o essen-

    cial, e saber as dinmicas da natureza e das relaes humanas

    que constituem os motores da interpretao, pois o pblico as

    reconhece. Essas dinmicas so referncias comuns, indispen-

    153

  • sveis tanto p ara ator quanto para espectado r. Esto em ao

    em todas as formas de teatro, inclusive nos mais abstratos. O

    real tambm est na abstrao! Devemos permanentemente

    observar essas leis dinmicas do teatro. por isso que o se -

    gundo ano p rincipalmente voltado para a escrita, no se nti-

    do de estrutura da in terp retao. Um ator s pode realmente

    interpretar quando a estrutura motora da in terpretao lh e

    permite faz -lo .

    No ab ordamos o teatro em sua dimenso simblica, tal

    qual se man ifesta em certos gran d es teatros orientais. O teatro

    simblico um teatro acabado, com o seria um cristal. Quan-

    do uma matria est saturada, cr istaliza- se n um a geometria

    estrita, imutvel. Essa permanncia caracteriza o n jap on s

    ou o kathakali. Eles atingiram fo rmas completas, perfeitas, as

    mais apropriadas a seu grau de exigncia. Se os atores desses

    teatros devem, claro, entrar n essas formas e aliment-las,

    eles no tm de invent-las. Eu prefiro tr ab alh ar com teatros

    cujas formas esto por vir.

    Trs sries de questes orientam nossa explorao geo-

    dramtica. A p rimeira diz resp eito s apostas no jogo da in-

    terpretao. O que, da natureza humana, representado no

    melodrama, na com m edia dell 'arte, na tragd ia . . .? Quais

    elementos do comportamento h um an o e qual co rpo se en-

    contram, a , postos em movimento? Quais so os motores

    dramticos desses territrios?

    A segunda pergunta refere-se s linguagens. Quais so as

    linguagens mais apropriadas para exp ressar essas apostas? A

    154

    m eia-mscara, os objetos, o coro ? Como funcionam as lin-

    gu agens, e com o m istur-las?

    Enfim, a terceira pergu nta trata dos tex tos. Quais textos

    dram tico s podem vir a enriquecer a explor ao de cada ter-

    ritri o?

    O segundo ano construdo com base nessas t rs qu es -

    tes, subentend idas p o r uma solic itao simples ao s alu n os:

    "Contem -nos u ma h istria! ".

    155

  • 1. As linguagensdo gesto

    Da pantomima aos quadros mmicos

    Antes de abordar a explorao dos territrios dramti-

    cos, comeamos o segundo ano por um trabalho com as lin-

    guagens do gesto, com a expresso do corpo em diferentes

    direes. Essa abordagem destina-se a enriquecer todas as ex -

    ploraes que, em seguida, sero propostas aos alunos e v o

    lhes oferecer uma base comum de linguagens.

    Na pantomima - t cnica-limite - os gestos substituem as

    palavras. Nela, onde no discurso utilizaramos uma palavra,

    preciso utilizar um gesto para lhe dar significado. Essa lin-

    guagem tem origem no teatro das feiras, em que era preciso

    fazer-se com p reen der num ambiente muito barulhento, mas

    sobretudo devido interdio de falar, imposta sociedade

    dos atores italianos, para no entrar em concorrncia com a

    Comdie-Franaise. A pantomima nasceu de uma restrio,

    157

  • com o a existen te nas prises, onde os detentos se com un icam

    p o r meio de gestos; ou, ainda, como se faz n a Bolsa de Valo res

    n os di as atuais. Essa t cnica, em parte tradi cion al- pensamos

    em Deburau - um "beco sem sada" do teatro, n a m edida

    em que dela s se pode sair pelo virtuosismo. preciso sa-

    ber desenhar objetos e imagens n o espao, encontrar atitudes

    simblicas (algumas delas existente s no teatro oriental) ...

    Cham ei pantomima branca - termo emprestado das pan-

    tomimas de poca, em que se representava um Pierr - pan-

    tomima que se limita a fazer gestos p ara traduzir palavras.

    Essa t cn ica u tiliza p r incipalmente gestos de mos, levados

    por at itudes d o corpo. Impe, inevitavelm ente, uma sintaxe

    difere nte daquela da linguagem falada. "Voc b o nita, venha

    comigo, vamos n adar" passar a ser: "Voc e eu . .. vo c boni-

    ta ... ir juntos . . . nadar .. . ali". Na construo d a frase, estamos

    n um a lgica diversa, q u e obriga a um esclarecimento, uma

    economia e u m a preciso daquilo que se quer dizer.

    Frequentemente, os alunos tendem a refazer gestos da vida

    cotidiana, que parasitam a linguagem da pantomima. Mas

    esta so licita gestos-limites, que vo alm d o cotidiano, inse-

    rindo-se num tempo diferente do da linguagem falada. Outra

    armadilha est na careta, utilizada para substituir cada pala-

    vra. p reciso t rab alh arm os para retornar ao rosto-mscara,

    que pode mudar de expresso ao longo da frase, segundo os

    sentimentos que so expressos, mas no a cada palavra.

    A figurao mmica, segunda linguagem estudada, desta

    vez consiste em rep resentar pelo corpo, no mais palavras,

    mas objetos, arquiteturas, elementos decorativos de cena. So

    oferecidas duas possibilidades principais: por exemplo, com

    158

    seu corpo, um ator representa a porta, que outro ator vai abrir

    e fechar (o corpo de um torna-se, ento, o cen r io do outro) ;

    ou um ator desenha virtualmente um a casa no espao: o teto,

    as paredes, as janelas, a porta, para ela tomar forma para o p-

    bl ico e para um personagem poder entrar ou sai r dela. Ainda

    q ue limitada, essa linguagem facilita uma abordagem tcni-

    ca da art iculao dos gestos, que, na sequ ncia, vai se revelar

    particularmente til.

    Os quadros mmicos, lin gu agem muito prxima do cin e-

    ma, em sua sequncia, restituem, pelo gesto, a dinmica con-

    t ida n o interior das imagens. No se trat a aqui de representar,

    sozin h o, palavras ou objetos, mas de exp res sar co let ivamen te

    imagens. Imaginemos u m p ersonagem que desce a sub te r r-

    neos escu ros u tilizan do apen as uma vela. Os atores podero

    re presentar a cham a, a fu m aa, as sombras nas p are des, os

    d egraus da escada . . . Todas as im agens podero ser sugeridas

    pelos atores em movim ento, num jogo silencioso . Um d os

    primeiros exerccios consiste em encadear imagens, corno as

    que fizem os, um dia, do m onte Saint-Michel, p or exemplo.

    Os alunos comeavam a dar forma ao monte. visto de longe. primeira

    pelas mos.depois pelo corpo. sozinhos oujuntos. Em seguida. eles nos

    faziam entrar progressivamente na imagem. Oespao se ampliava SGb

    nossos olhos. avanvamos pela estreita faixa ligando o continente

    ilha. deixando o marbater deumlado e deoutro. Entrvamos no trio da

    cidade fortificada. caminhvamos na ruaestreita. Assim que estvamos

    diantedorestaurante LaMerePoulard.entrvamos.por meiodesuas ima-

    gens.norestaurante.chegvamos aoprato.uma omelete.paraacabarmos

    sendo devoradosjuntamente comela.

    159

  • Um tal travell ing, em co n tinuidade, impe a utilizao de

    um repertrio particularmente variado de gestos. Notemos

    que certas imagens virtuais realizadas hoje em dia por um

    computador utilizam o mesmo mecanismo.

    Nos autocursos, peo a um grupo de alunos que reconsti -

    tua um filme inteiro, sem palavras, unicamente com gestos.

    Os quadros mmicos podem fazer referncia a todas as tcnicas

    do cinema: primeiros planos, p lanos gerais, flash -back. . . en-

    fim, tudo o que constitui a linguagem moderna das imagens,

    com seus ritmos, seus flashes metericos, suas elipses, trans-

    postas aqui numa dimenso teatral.

    Aprofundando essa pesquisa, viemos a explorar os gestos

    escondidos, as emoes, os estados profundos dos persona-

    gens, que expressamos pelas mmicas. So, de algum modo,

    "doses" sobre o estado dramtico interno do personagem.

    Sem nunca representar os sentimentos, nem explic-los, o

    ator prope gestos instantneos que, numa outra lgica, ex-

    pressam o estado do personagem num dado momento (tipo

    de aparte corporal numa fase da representao).

    Algum tem de ir ao seu superior hierrquico para pedir-lhe alguma

    coisa. Chegando diante daporta. v-se invadido poruma sensao de

    inquietao. "O que vou lhedizer?" Neste momento preciso. gestos vm

    darimagema esse sentimento. No gestos explicativos. descritivos do

    estado. mas movimentos mais abstratos que permitem exteriorizar

    elementos naturalmente escondidos no comportamento cotidiano. Ele

    bate naporta. entra. sente medo. Aqui o atorainda norepresenta o

    medo tremendo ou balbuciando; esse medo que o habita posto em

    gesto. por eie mesmo oupor umouvriosoutros atores. Esses gestos

    160

    metericos fazem o pblico ver um "eco" do medo que o personagem

    sente e que. evidentemente. os outros protagonistasnoveem.

    O s contadores-mmicos aplicam essas diferentes lingua -

    gens s narrativas falad as. A proposta consiste em contar

    uma histria , alternando (s vezes associando) essas diferen-

    tes linguagen s com uma narrativa. Isto p ode ser feito indi-

    vid u almente (o mesmo ator , ao mesmo temp o, n arrador

    e mmico ) ou em grupo, quando um co ntad or ass ociado

    a vrios mmicos. Exploramos ess a relao em todas as suas

    dimenses, d a m ais ntima (o contad o r-mmico d e mesa, que

    representa com as mos) at utilizao d o maior espao (os

    contado res -mmicos de tablado, acompanhados de msicos,

    de um coro, d e u m heri ... ) . Esse t rabalho se insere na gran-

    de tradio d os co n tadores, que existe em numerosos p ases ,

    na China ou n a Africa, onde a n arrativa ac ompanhada de

    sugesto de imagens.

    Em todas essas propostas, o s alun os descobrem diferentes

    formas de linguagens mmicas: a linguagem de situao (es-

    tou sentado lendo um livro, algum arranha a porta, eu me

    viro. Arranha mais ainda, sinto medo. A porta se abre . .. um

    gato entra! ); a linguagem de ao (ca rrego um saco de batatas,

    levo-o nas costas. Eu o ponho no carro, entro no carro, dou

    a partida e vou embora); a linguagem de sugesto (olho Paris

    a partir da colina de Montmartre, e sugiro tudo o que vejo: a

    leveza d o ar, os tetos d o s prdios, a to rre Eiffel. Fao com que

    as imagens existam fora de mim, de modo impressionista); a

    mmica profunda (encontrar gestos para dizer o que no tem

    imagem, de um espao in ter io r ). Ao longo do ano todo, es-

    161

  • sas linguagens serviro para os " teatros curtos" desenvolvid os

    na Escola. Alguns vo co nservar esses tipos de linguagem em

    suas experincias teatrais futuras.

    No plano pedaggico, tal trabalho no comeo do ano faz

    com que o grupo todo entre no jogo de modo progressivo e

    tcnico. uma espcie de aquecimento, antes de mergulhar

    nos territrios dramticos. O importante no ficar na d i-

    menso tcnica das linguagens, mas de sustent-la, sem ces-

    sar, com estados dramticos. De nada serve saber interpretar

    um sol, se a dinmica solar estiver ausente do gesto! De nada

    serve sugerir a lua, se a p alidez no aparecer no ritmo do m o -

    vimento!

    162

    2. Os grandes territrios dramticos

    omelodramaOS G R ANDES SE NTIMENTOS

    Na Esco la , o melodrama nasceu por volta de 1974, em respos-

    ta a uma questo que na poca me preocupava muito: "Por

    que, quando algum diz uma coisa em que acredita, alguns

    aceitam o que dito, enquanto outros caoam?". Diante dessa

    questo, decidi explorar as duas vias possveis. De um lado,

    "crer em tudo", no amor, na famlia, na honra. Pedi aos atores

    que debatessem para impor essa convico ao pblico, o que

    fez aparecer o melodrama. Por outro lado, eles "caoaram de

    tudo", de Deus, da Guerra do Vietn, da aids, e isso fez com

    que nascessem os bufes.

    No melodrama, todos os grandes sentimentos esto em

    jogo: o bem e o mal; a moral com a inocncia, o sacrifcio, a

    163

  • traio .. . O objetivo chegar a uma in terp retao suficien-

    temente forte p ara que, a partir da exp resso desses grandes

    sentimentos, os espectadores sejam levados s lgrim as. Re-

    almente buscamos fazer ch orar. Mas tal dim enso s p ode

    ser atingida se os personagens acreditarem efetivamen te em

    tudo, com muita fora, at o sacrifcio . o b em con t ra o mal,

    a coragem diante da covard ia, a moral con tra a corrupo.

    Com o tem po, cada vez mais, os alu nos aderiram a esse ter-

    ri trio melodramtico e a seus temas de moral e de justia.

    O melodrama traz baila o arrependimento, o remorso,

    o rancor, a vergonha, a vingana. H sempre um a refern-

    cia ao tempo, e por isso que, no territrio melodramtico,

    impem-se dois gran des temas principais: O Retorno e A Par-

    tida. Comeamos por trabalhar O retorno do soldado, tema

    muito antigo do teat ro p op ular.

    Aps vrios anos naguerra. umsoldado reencontra sua casa isolada na

    plancie. numa noitedeinverno emqueneva muito... Ele batenaporta.

    Algum abre. Perto da lareira. eleencontra sua mulher. dois filhos... e

    um novo marido. Ela o havia dado como morto. mas o reconhece. Ele

    tambm. mas nada dizem. Ele pede abrigopara aquela noite.acolhido.

    reconfortado. aquecido... Por ocasio de cenas em que o soldado es-

    tar sozinho com diferentes personagens. descobriremos. ao longo da

    improvisao. que uma das crianas sua. a outra no... Finalmente.

    como amulher parece feliz. o soldadoparte.

    Nesse trab alho, dois elemen tos ch amam a aten o do pe-

    dago go . Por um lado, a sutileza do jogo t ti co, que permite

    dirigir o foco surpresa, ao ritmo, s rea es. Tu do aqu i

    represen tado n o olhar, nos siln cios, de m odo muito ern o-

    164

    I4

    I

    cionante. Quem vai abrir a porta? Como se dar o reconh eci-

    mento do soldado e de sua mulher? Como encontrar o tempo

    justo da descoberta, da surpresa? Os alunos tm uma situa-

    o para ser construda e um timing muito especfico para

    ser controlado. Por outro lado, eu me in teresso pelo jogo

    dos atores. Eu lh es peo que acreditem fortemente naquilo

    que in terpretam , para que o pblico tambm possa acreditar

    nisso. No se trata, nunca, de enfatizar o aspecto dramtico,

    para cair no clich melodramtico, mas sim de pr em cena

    uma situao de todos os tempos, que encontramos, alis, no

    teatro de Ruzzante, ou no de Brecht.

    Para aprofundar essa pesquisa, o tema dividido em sub-

    te mas. Batem na porta, h uma reao! O soldado entra, sua

    mulher o reconhece! Cada sequncia analisada de modo

    preciso, com os alunos se alternando nas diferentes fases da

    interp retao.

    A partida para a Amrica, que proponho em seguida, cor-

    responde ao gran d e tem a do exlio. Um siciliano deixa sua

    ilha, levando uma velha mala amarrada com b arbantes. D e-

    p oi s dos adeuses dilacerantes, no p o rto de Palerma, ele par te

    para a Amrica p ar a fazer fortuna. (H nos Estados Unidos ci-

    dades que se ch am am Fo rtuna, Eureka, gr itos qu e ess es exila-

    dos deram quando ali chegar am !) Encon t ram os esse te m a em

    situa es m ais atuais, p or exemplo: a do trabalhad or africano

    que deixa seu vi larejo para vir Fran a ganh ar o po qu e vai

    alimen tar sua fam lia, d eixan do-a atrs de si p ara isso. N esse

    tema "rnult ip istas", deixo que os alun os escolham as situaes

    que desejam explorar. Eles podem tanto trat ar d a partida em

    si, da chegada nu m local novo, das dificuldades encontradas,

    165

  • quanto da familia que ficou no pais de origem, da carta que

    chega. Podem passar de um tema a outro, em contraponto ou

    em paralelo, como bem entenderem. Com os temas do me-

    lodrama, tocamos a tragdia do povo, dos homens diante de

    suas dificuldades para sobreviver, muito diferente do que ser

    a grande tragdia, na qual vo confrontar-se com os deuses!

    Uma das principais dificuldades que persegue o aluno o

    medo de assumir, realmente, os grandes sentimentos diante

    de um pblico que, s vezes, pode rir disso. O trabalho do

    melodrama obriga o ator a impor suas convices em pbli-

    co. Ele no pode duvidar daquilo que vai dizer. O que para ele

    verdade tambm o ser para o pblico. muito importante

    que os alunos sejam treinados para assumir essa dimenso.

    Evidentemente, se devem pr em cena uma pardia, porque

    o autor assim o pediu (Alfred Iarry, por exemplo), eles no

    devem, de jeito nenhum, instalar-se numa interpretao que

    seja a pardia da pardia.

    preciso evitar, enfim, as armadilhas preparadas pelos cli-

    chs. Falar do melodrama em nenhum caso quer dizer fazer

    referncia a um estilo de interpretao, mas, sim, descobrir e

    ressaltar aspectos especficos da natureza humana. O melo-

    drama no uma forma antiga; ele est, hoje em dia, ao nosso

    redor, na casa daquele que espera que o telefone toque para

    um novo trabalho, numa famlia atingida pela guerra, na casa

    de um homem que deixa seu pas ...

    Para enriquecer esse territrio , trazemos textos dramti-

    cos que lh e correspondem. Pode ser uma cena de O jardim das

    cerejeiras, de Chekhov.

    166

    -[1

    1

    f

    I1

    lj!

    LIUBOV ANDREIEVNA - Dentro de dez minutos j noestaremos aqui... (Com o olhar acaricia a sala.) Adeus,meu velho e querido lar! Passar o inverno e quandochegar de novo a primavera voc desaparecer da face daterra... ser demolido! Quanta coisa viram estas pare-des! (Beija a filha com carinho.) Minha querida filhinha,meu tesouro! Como voc resplandece ... Os olhos socomo dois diamantes . .. Voc est feliz, no ? Sim?

    NIA - Oh, muito, mezinha, muito! Pois uma nova vidacomea agora! 1

    Encontramos, nessa passagem, a dinmica dos adeuses,

    que havamos estudado na mscara neutra. Na cena, os per-

    sonagens deixam a casa onde viveram, seja com arrependi-

    mento, seja com esperana. Para descobrir a diversidade dos

    pontos de vista possveis, estudamos todas as maneiras de

    faz -lo: rindo, sem voltar-se para trs, rompendo com o pas-

    sado, com um grande olhar nostlgico ...

    A forma de linguagem que melhor corresponde ao ter-

    ritrio melodramtico inspira-se nos quadros mimicos. Ela

    acentua os atalhos indispensveis e utiliza uma linguagem

    emflash, constituda de imagens metericas - que diminuem

    tem p o e espao - que o pblico hoje em dia est habitua-

    do a reconhecer im ed iatam ente. Associa, ento, a imagtica

    melodramtica - as crianas abandonadas nas escadarias das

    igrejas - e as formas modernas do cinema. Chamo isto de me-

    lomimica.

    Anton Chekhov, "La Cerisaie", acte V, trad. Gnia Cannac et Georges Perros(Paris: L'Arche, 1961). ["O jardim das cerejeiras", V Ato, em Teatro Il, trad.Gabar Aranyi (So Paulo: Veredas, 2003). (N. T.)]

    167

  • Acommedia deU'arte

    COMDIA HUMANA

    A commedia dell 'arte e suas mscaras foram introduzidas

    na minha pedagogia desde o comeo da Escola. Infelizmen-

    te, ao longo do tempo, surgiram clichs, uma maneira dita "

    italiana" de representar comeou a se expandir. Jovens atores

    fizeram estgios de commedia dell'arte aqui e acol, e a in-

    terpretao empobreceu-se. O prprio termo comeou a me

    incomodar. Fui levado, portanto, a virar do avesso esse fen-

    meno, para da descobrir o que havia por trs dele, ou seja, a

    comdia humana. Desde ento, tomando um caminho muito

    mais amplo , encontramos uma grande liberdade de inveno.

    Nesse territrio, esto em jogo as grandes trapaas da na-

    tureza humana: fazer acreditar, iludir, aproveitar de tudo; os

    desejos so urgentes; os personagens, em estado de "sobre-

    vivncia". Na commedia dell'arte, todo mundo ingnuo e

    esperto; a fome, o amor, o dinheiro animam os personagens.

    O tema de base preparar uma armadilha, por qualquer mo-

    tivo: para ter uma garota, dinheiro ou comida. Rapidamen-

    te, os personagens, levados por suas bobagens, encontram-se

    presos em suas prprias intrigas. O fenmeno, levado ao

    extremo, caracteriza a com dia humana e evidencia o fun-

    do trgico que traz dentro de si. Longe do clich saltitante,

    Arlequim realmente tenta compreender o que est acontecen-

    do com ele, sem conseguir. Surge, ento, o limite da natureza

    humana: por que no somos mais inteligentes para compre-

    ender melhor? Todos os personagens tm medo de tudo: de

    ser apanhados, de errar, de morrer ... esse medo profundo

    168

    ff

    i!,

    . !

    Itit

    1i

    I!

    Pantalone, ms cara utilizada por [acqu es Lecoq.

  • q u e faz nascer a avareza de Pantalon e: ele guarda tudo! Este

    fundo trgico um elemento essencial, que M oliere usa em

    suas peas.

    Inicialmente, peo aos alunos que fabriquem suas pr-

    prias meias-mscaras. A primeira instruo a de realizar a

    meia-mscara de um personagem que gostariam de interpre-

    tar, sem nenhuma referncia commedia dell'arte. A partir

    de mscaras muito simples, progressivamente eles adicionam

    um nariz, uma cor, um bigode. .. Descobrimos juntos o pos-

    svel jogo dessas mscaras, suas caractersticas, as ligaes que

    elas podem te r umas co m as outras. apenas num segundo

    m omento que trago as mscaras tradicionais da commedia

    dell'arte: Arlequim e Pantalone, e tambm Brighella, Capito,

    D outor, Tartlia . ..

    Da tradio, ficaram dois personagens principais: Arle-

    quim, o servidor, e Pantalone, seu patro. Pouco a pouco, o

    Arlequim primitivo, conhecido como zanni, ingnuo e ma-

    roto, oriundo dos campos de Brgamo, tornou-se travesso,

    inteligente, intrigante. Em Moliere, ele se ch am a Scapino, de-

    pois de uma evoluo, durante mais de dois sculos, do perso-

    nagem. Pantalone, mercador de Veneza, homem de negcios,

    traficante de riquezas vindas do Oriente Mdio, muito in-

    teligente. Ele ro ub ad o "por amor", achando, ingenuamente,

    que sempre amado por belas moas. Da a piedade que se

    pode ter por ele. Essa d im en so trgica no cmico faz o p-

    blico rir, jamais os personagens.

    Se os roteiros so a estrada a ser seguida, a qual pouco a

    pou co foi detalhada com o pblico, e se esta estrada se afir-

    mou com a tradio transmitida de pai para filho, preciso

    170

    desconfiar da mecnica e voltar, sempre, s situaes em que a

    com p lexa humanidade dos personagens pode aparecer.

    A commedia dell'arte uma arte da infncia. Passa-se

    muito rapidamente de uma situao a outra, de um estado a

    outro. Arlequim pode ch orar a morte de Pantalone e, rap id a-

    mente, alegrar-se com a sopa que est pron ta! N isto, a com -

    media constitui um territrio muito cruel, mas sob retudo um

    territr io fabuloso para o jogo. Os tem as propostos so parti-

    cularmente simples: Arlequim se coa ou A rlequim come espa -

    guete, Pantalone conta seu dinheiro. Algum chamando algum

    pode tornar-se um grande tema, com a condio, eviden te-

    mente, de que o que chamado no venha! Entre o ch amado

    de um e a ch egada do outro, pode existir muito teatro.

    Nem tod os os temas pod em ser trabalh ados em im p rovi-

    sao . Alguns implicam uma preparao que os alu n os reali -

    zam nos au tocursos. O p edagogo est atento a dois elementos

    complemen tares: de um lado, o ro tei ro , a h ist ria , os pon-

    tos de p assagem obrigatrios dos atores quando improvisam

    juntos; de outro, e isto m ais importante, ele tem de insistir

    n o m o tor d a interpretao. O m otor, no o qu e interpretar,

    mas como p reciso interpretar. Quais so as foras que esto

    em jogo? Quem puxa? Quem empurra? Quem se puxa, quem

    se empurra? Quem puxado, quem empurrado? Responder

    a essas perguntas simples dar uma dinmica ao percurso. Se

    o roteiro for linear, de um ponto a outro, o motor ser din-

    mico e b uscar o relevo indispensvel para a interpretao.

    Essa d inmica sobe ou desce, nunca permanece horizontal e,

    na commedia dell'arte, ela ultrapassa os comportamentos co -

    17 1

  • tidianos, para atin gir uma dimenso imaginria . No rimos,

    morremos de rir !

    Na com media d ell ' ar te / com dia humana, o est ilo de in-

    terp reta o levad o ao m xi m o, as situaes levadas a seus

    extremos. O ator atinge um nvel m u ito alto de interpreta o,

    e o pblico pode observar as co nsequn cias de um com p orta-

    mento ... at a morte. Neste caso, fals a!

    Pantalone est emcasa. contando seu dinheiro. avisado de que al-

    gum chegou e quer v-lo. Ele pergunta quem . No se sabe! "Ele

    altor Sim! "Velho?" Sim! ~Ela anda assim?" Sim! Ento elesabe quem :

    seu amigo Brigante quevem lhepedir devolta o dinheiro emprestado.

    "No quero v-lo" , elediz. Tarde demais. Brigante j entrou. Abraos...

    "Caro amigo. que prazer..:' Representa-se a comdia da amizade.

    Depois disso, chegam os lazzi. Trazem uma cadeira: ~Que linda!". dir

    Brigante,j calculandoquanto elacustou. "uma cadeira muito velha".

    responder Pantalone...

    Aqui, o m otor principal d a interpreta o ser "aprecia r/

    dep reci ar". Um far questo de depreciar o que possui, en-

    quanto o o utro tentar apreciar tudo aquilo que poderia lhe

    pertencer. Em seguida, Brigante tentar falar da razo pela

    qual veio: o pagamento da d vida, enquanto Pantalone evitar

    o assunto, falar de o utra coisa , desviar a co nversa. Este ser

    o grande motor do rodeio, at o momento fatdico em que

    Brigante chega e diz: "Me d o meu dinheiro!". E Pantalone

    morre de infarte! Para depois ressuscitar, claro, assim que

    Brigante sai em busca de um mdico, pois a m orte, aqui, no

    passa de um estratagema.

    Os alunos podem interpretar esse tipo de tema tanto com

    as mscaras tradicionais quanto com as que eles mesmos

    172

    fazem, mas co nstatei que, com suas p rp r ias mscaras, eles

    ficam mais livres para adaptar os princpios de tal interp reta-

    o. Assim q u e se fala de Arlequim ou de Pantalone, a preten-

    sa t rad io ch eg a e os p ertu rba.

    ROTEIROS E TTICAS DE INTERPRETAO

    Prioritariamente, meu olhar repousa na capacidade dos

    alunos em desenvolver um senso ttico de in terp retao.

    Como chegam a su bir ou descer uma situao? Como condu-

    zem uma inverso de situao (o ladro roubado . .. )? Como

    trabalham numa troca ritm ada da palavra? A lngua italiana

    mais adequada para isso do que a francesa, mais ent recortad a,

    menos fluida.

    Uma das dificuldades encontradas com as meias-mscaras

    a ligao com a voz. No primeiro ano, os alunos p o uco fa-

    laram e, de rep en te, surge uma grande lib erdad e da palavra.

    Agora tendem a uti lizar suas prpr ias vozes, o que im p oss-

    vel com a m scara. O trabalho co nsist e, po rtanto, em en con -

    trar a voz do personagem, uma vo z pblica, n a d imenso d a

    interpretao com mscaras. Assim com o, com uma m scara,

    impos svel movim en tar-se como fazemos n a vida cotidiana,

    co m um a meia- m scara, n o se pode dizer um texto sem que

    ele sej a essencializado. Com ela, o prp rio texto est mascara-

    do! No h nenhuma p ossibilidade de interpre tao psicol-

    gica. O dilogo tende ao botte e risposte (gol p e e resposta), q u e

    os aman tes represen tam sem mscara.

    Os personagen s da comdia italiana navegam permanen-

    temente entre dois p olos contraditrios. Arlequim , ao mes-

    173

  • m o tempo, ingnu o e malicioso, o Capito fo r te e m edroso ,

    o Doutor sabe tu d o e no conhece n ada, Pan talone , ao m es -

    m o tempo, chefe da empresa, senho r de si e totalmente louco

    n o amor. Levada ao mximo, essa dualidade extremamente

    nca.

    Na commedia d ell 'arte, morre-se d e tudo: d e inveja , de

    fome, de amor, d e cime. Nesse sentido, esse territ rio dra-

    mtico prolonga o que a vid a traz. O nvel da interpretao

    se r, portanto, levad o ao m ximo, at acro bacia. No entan-

    to, como impossvel manter-se sempre n o estado extremo

    d o sentimento - no se pode morrer ou ter fome permanen-

    temente -, o personagem sempre brutalmente levado de um

    sentimento a outro. Aquele que ri demais ac aba chorando: as -

    sim, podemos constatar que, ent re e o riso e o choro, os gestos

    so os mesmos. Arlequim que ri ou que chora rola pelo cho

    d o mesmo jeito!

    Os lazzi constituem o principal espao da interpretao da

    commedia dell'arte. Num liv ro de commedia dell 'arte, o mo-

    mento mais interessante aquele em que no h nada escrito,

    o que significa lazzi . Apenas o ator, por meio de seu jogo e de

    sua presena cmica, pode fazer com que exista essa parte d o

    texto. A precariedade aparente do roteiro deve-se dificul-

    dade de pr no papel o que se deve fazer para ser engraado,

    tocante, convincen te . Falt a o ator em ao. A grande diferena

    entre as gags e os lazzi que estes sempre tm uma referncia

    humana. A gag pode ser puramente mecnica ou absurda, sair

    de uma lgica para propor uma outra, o lazzo sempre enfatiza

    um elemento da humanidade dos personagens.

    174

    I

    A MULHER: A razo. . .o H O MEM : O dever. . .A MULHER: Salvou-a.o H O MEM: Liberou-o.A MULH ER: Brbaro!O H O MEM: Miservel!A M ULHER: O que voc disse?o H O M EM : O que voc m urmurou ?A M U LHE R : Eu disse que te odeio.o H O MEM: Eu disse que te detesto.A MULHER: Que no posso mais te ver.o H O MEM : Que n o posso mais te suportar.A MULHER: Voc rejeita esses laos.. .o H O MEM: Voc rejeita esses grilhes . . .A MULHER: Que voc considerava de ouro.O H O MEM : Que voc considerava de diamante.A M U LHER: Eles se revelaram falsos.o H O MEM: Na verdade eram de vidro.A M U LHER: Ferro dourado!o H OMEM: Diamantes falsos!A M U LH ER : Foi por isso que os despedacei.o H OMEM: Foi por isso que os quebrei.A MULHER: Agora estou contente!o H OMEM : Agora estou livre !A M U LHER : Vai, joga fora esses laos!o HOMEM: Vai, acaba com esses grilhes!A MULH ER: Estou livre!o H OMEM: SOU independente!A MULHER: Fora da escravido!o H O MEM: Por cima de qualquer obstculo!A MULHER: O n est desfeito!o H O MEM : OS laos, destrudos! 2

    Constant Mi e, " Le mpris contre le m pris",em La com m edia dell 'ar te (Paris:La Pleiade, 1927). [Tra d u o livre par a o portugus.]

    175

  • Arlequim e Eriguela estoencarregados depreparar a refeio para os

    convidados. Eles pem a mesa e comeam indicando o lugar de cada

    convidado, depois pem-se a imaginar. progressivamente. todoo menu

    queser servido. Do pequenoprazer das entradas maisextrema gu-

    lodice. para terminar totalmente saciados... imaginaro um imenso

    festim. do qual. logicamente, nunca participaro.

    Na commedia dell'arte, principalmente realista, igu al-

    mente os objetos esto em jogo de modo fabular. O b asto

    de Arlequim p ode servir-Ih~ de rab o, pode sub st ituir sua mo

    quando ele quiser saudar algum .. . sem toc-lo . A bolsa de

    Panta lone pode ficar pend urada entre as pern as. O objeto,

    aqui, nunca um simples acessrio, ele permite o desenvol-

    vimento de um imaginrio muito forte . po r isso que n unca

    fazemos mmica dos objetos, ns os utilizamos, re almente.

    Da commedia dell'arte real, ficaram p oucos textos, sal -

    vo os roteiros e os botte e risposte. Ab ordam os, assim, p ar a-

    lel amente os autores que se serviram desse terreno: Moliere,

    Ruzzante, Gozzi, Goldoni, e tambm Shakespea re ou Goethe.

    impressionante ver quantos autores, em suas obras poticas,

    foram influ enciados pelos comediantes italianos que percor-

    riam a Europa. Minha prefern cia pedaggica vai ao comeo

    da commedia dell 'arte, com Ruzzante. Chegamos tambm

    ao M oliere das p rimeiras peas, o das farsas, e no o M oliere

    mais psicolgico, de Dom [uan ou O Misantropo.

    Associa-se com demasiada frequncia a commedia

    dell'arte noo de improvisao. Mas ali nada havia de

    improvisado. Ainda que inventassem variaes, a prtica da

    176

    interpretao se dava de pai para filh o , de m odo muito es -

    truturado. Os comediantes italianos tinham um repertrio de

    interpretao que utilizavam nos bons momentos. Quando

    o Piccolo Teatro apresentou, em Pa ris, Arlequim servidor de

    doi s amos, de Goldoni, Giorgio Strelher era extramemente es-

    trito em su a d ir eo e intencionava respeitar tudo o que fora

    escrito. Um dia, quando ele estava ausente da sala, os come-

    diantes alongaram o espetculo em vinte minutos. O diretor

    encolerizou-se ao descobrir essa permissividade!

    A tcnica do corpo que aplicamos a de todos os teatros

    de mscaras, em tod o o mundo. Nessa forma de teatro, para

    que o corpo fale ao pblico, afirmamos, ele tem de ser per-

    feitamente articulado. Criei, portanto, uma ginstica para o

    Arlequim. A dimenso acrobtica est igualmente presente,

    justificada, com o sempre, pelo drama. Quando Pantalone,

    raivoso, d um salto m or tal para trs, o pblico n o deve d i-

    zer: "Que belo salto mor tal!", mas "Q ue raiva!". Para chegar a

    um tal n vel de comprometim en to fsico e just ificar tal gesto,

    p reci so uma carga emotiva extraord inr ia e, ao mesm o tem-

    po, u m perfeito savoir-fa ire tcnico de salto mortal.

    O s exageros m ais correntes so os gritos , as gesti cu la-

    es, a super in terpreta o in ti l. Quando os alu nos n o so

    su ficien te m en te fortes para atin gir o n vel de interpreta o

    exigido, em vo eles tentam compensar iss o pelo grito. Por

    isso, dificilmente atores muito jovens ac eitam a commedia

    dell'arte. Aos 20 an os , os alunos ain da no tm a viv n cia

    necessria, falta-lhes especialmente a d imenso trgica, ele-

    mento constitutivo im por tante desse territ ri o. Se, apesar de

    tudo, fazemos esse trabalho n a Escola , no para uma utiliz a-

    177

  • o imediata, mas para que guardem a lembrana desse n vel

    de interpretao em seus corpos e mentes, para que possam

    servi r-se disso mais tarde.

    Pesquisar uma commedia dell'arte contempornea foi ,

    muitas vezes, o sonho de pessoas de teatro. Alguns desejariam

    renovar os arqutipos para inseri-los na atualidade social

    ou poltica. Esse procedimento sempre me pareceu discut-

    vel, pois, historicamente, na commedia dell'arte, as relaes

    so ciais so imutveis. H os senhores e os servid ores, m as o

    propsito no mudar a sociedade. Trata-se de mostrar a na-

    tureza humana em sua comdia feita de trapaas e de compro-

    metimentos, indispensveis sobrevivncia dos personagens.

    Arlequim no faz greve: ele d um jeito! Pantalone nunca de-

    creta falncia, ainda que o simule! A commedia dell'arte est

    em todos os lugares, em todos os tempos, enquanto houver

    patres e servidores indispensveis a seu jogo. Esses elemen-

    tos permanentes da comdia humana me interessam, para que

    os alunos - que, evidentemente, so "contemporneos" - pos-

    sam inventar o teatro de seu tempo.

    Os bufes

    o MISTRIO, o GROTESCO, O FANTSTICO

    Respondendo minha in terro gao sobre o comportamen-

    to daqueles "que no acreditam em nada e zombam de tudo':

    os bufes passaram, ao longo desses anos, por uma evoluo

    m uito grande. Sua abordagem diversificou-se, dando acesso a

    um territrio muito vasto que era preciso descobrirmos.

    178

    Os bufes do mistrio.

  • A primeira etap a foi a da pardia. Consistia em simples-

    mente zombar do outro, imitando-o. Quando algum anda

    na rua, basta imitar seu jeito para que aparea a zombar ia e a

    pardia. Acontece o mesm o com a voz, com o comportam en-

    to . A imitao constitu iu um primeiro nvel, relativamente

    gentil, do sarcasmo bufo.A segunda etapa fo i zo m bar no apen as d o qu e o outro

    fazia, mas, sobretudo, de su as convi ces mais p rofundas.

    Eu pedia a algum , p o r exemplo , que fizesse ao p blico u m

    discurso sensato, uma apresen tao cien tfica o u m atem ti-

    ca, e, durante esse tem p o, um o utro personagem se encar-

    re gava de fazer o pblico rir, imitando o orador. Fazend o

    isso, observei que, quando um perso nagem em t rajes urb a-

    nos zombava de outra pesso a vestida d o mesmo modo, isso

    se torn ava insuportvel. Esse p rocedimento atingiu m u ito

    rapidamente uma forma d e maldade, difcil de ass u m ir, e

    pareceu-me indispensvel difere n ci ar quem zomb a: ele n o

    podia ser idntico quele que era mot ivo de zombar ia. Ele

    tin ha de ser o u t ro.Pro cu rei, ento, fabr icar u m outro co rpo, um corpo de

    bufo . .. inflado . . . gordo! Pedi aos alunos que se transformas-

    sem , aumentan do ndegas, barrigas . A partir da surgiram

    formas m uito interessantes: algumas m oas muito m ag ras,

    desconfo rtveis com seus corpos, comearam a dar vida a

    enormes figuras, com peitos grandes, ndegas go rdas. Inver-

    samente, destacamos os corpos longilneos, compridos, de

    o utros alunos. Por meio dessa transformao corporal, nesse

    co rpo reinven tado e artificial, de repente eles se sentiam m ais

    livres. Ousavam fazer coisas que jamais teriam feito com seus

    prprio s corpos. Nesse sentido, o corpo inteiro tornava-se

    180

    mscara. Diante desses corpos bufonescos, os personagens pa-

    rodiados aceitavam mais facilmente que "loucos" zombassem

    deles; era mais inconsequente. No havia conflito algum entre

    o b u fo e aquele de quem ele zombava. Retomamos a o tra-

    d icion al "bobo da corte", qu e, longe de estar realmente imerso

    na lo u cura, pode expressar todas as verdades. Num corpo de

    b ufo, aquele qu e zom b a pode tomar a palavra e dizer coi-

    sas inacreditveis, at cao ar do "incao vel": da guerra, da

    fome no m undo, de Deus. Os bufes nos fizeram co nh ecer a

    aids, antes de que todos tomassem conscincia dessa doena.

    Puderam representar a procisso da "morte do amor" e, na

    transposio bufonesca, fazer-nos aceitar o inaceitvel.

    Observei que aqueles que zombam assim de tudo, inclu-

    sive dos valores mais fortes, abriam espao para o mistrio

    das co isas. Eles atingiam o grande terr it rio da tragdia. Seu

    sarcasmo migrava para o trgico, um pouco como a violn-

    cia do texto de Steven Berkoff at inge, no fim das con tas, a

    beleza. Esse fen m en o fo i para mim uma grande descoberta.

    En to m e perguntei: de onde vinham esses bufes? Eles no

    podiam vir d e um espao real ista , da rua, do metr. Eles vm,

    ento, de o u tros lugares: do mistrio, da noite, do cu e da

    terra! Sua funo no co n sist ia em zombar de um in d ivd uo

    em particular, porm, de m odo m ais geral, de todos n s, da

    sociedade em geral. Bufes se d iver tem, poi s se divertem o

    tempo todo, imitando a vida dos homens. Fazer uma guer-

    ra, lu tar, estripar-se os deixa felizes. No entanto, eles nunca

    representam a guerra na cronologia lgica de u m a histria

    que se desenrola. Eles trazem um texto particular: aquele que

    mata o outro se d iverte tanto, que ele pede para fazer de novo.

    181

  • E eis que se m at am , mutuamen te, rep etidam en te, apenas pelo

    p razer. Para interpretar!

    Apareceram, ento, os atalh os, as elipses especficas da

    interpretao dos bufes: aquele que estava ferido era ra-

    pidamente tratado, levado ao h ospital. Para que o h ospital

    existisse, era preciso mortos. Para que houvesse mortos, era

    preciso que se matassem. Para que se matassem, era preciso

    que fizessem uma guerra .. . Esse tipo de situao mostrava

    o carter absurdo da organizao da vida dos homens. Os

    bufes falam essencialmente da dimenso social das re laes

    humanas, para denunciar o ab su rdo disso. Eles falam tambm

    do poder, de sua hierarquia, inve rtendo-lhes os valores. Cada

    bufo tem algum acima dele e algum abaixo. Ele admira um

    e admirado por outro. Apenas aquele que estiver n o limite

    mais baixo dessa hierarquia no admirado por ningum.

    ele quem vai pixar "Abaixo as armas" nas paredes dos banhei-

    ros, nico meio de expressar o ridculo. Aquele que detm

    o poder - o prncipe, o diretor, o presidente, o rei - decide,

    quando quer e por simples capricho, que aqui a guerra j du-

    rou o suficiente e que agora preciso faz -la em outro lugar.

    E todos o seguem! Na verdade, os bufes funcionam na inver-

    so dos poderes: o mais dbil dirige.

    A partir dos bufes solitrios, pesquisamos como eles po-

    diam reunir-se, para descobrir que viviam em bandos. Um

    bando de bufes, idealmente, constitudo por um grupo de

    cinco pessoas, e nele pode haver uma verdadeira conivncia.

    Mais do que cinco, j o coro que surge, mas voltaremos a fa-

    lar disso. Um bando de bufes dirigido por um chefe. Todo

    o bando est a para ajud-lo a formular o que ele vai dizer.

    182

    Vimos bandos de pequenos bufes trazer at n s a enorme

    cabea de um profeta, j sem corpo, qu e, antes de desabar to-

    talmente, vin ha anunciar o m ist ri o . .. Nos bandos, tambm

    descobrimos a figura do inocente, que pode passear n o meio

    dos o utros, sem nunca alterar a ordem das co isas. Estranha

    figura. Um erro necessrio!

    Ao longo do tempo, os bufes fizeram surgir algumas

    grandes famlias: a do m istrio, depoi s a do poder e, p o r fim,

    a mais louca e manifesta, a da cincia. Essas t rs famlias nos

    levam a determinar, hoje em dia, trs territrios diferencia-

    dos, quase autnomos: o mistrio, o grotesco e o f antstico.

    o m ist rio gira em torno da crena, q uase religiosa. O sb ufes do mistrio so ad ivin hos. Eles conhecem o futu ro.

    Sabem quando o fim do mundo vir e podem anunci-lo.

    Conhecem o mistrio qu e vem antes do nascimento e o que

    est depo is da m orte. So os p rofetas.

    Os bufes do mistrio chegam noite. em procisso, danam ao som

    de percusses, aquecendo. assim, o espao. Trazem consigo a Palavra

    adormecida. Os diabinhos despertam seu profeta que, como iluminado,

    se ergue para anunciar o fim do mundo. Os bufes fazem mimica das

    imagens doApocalipse e se divertem fazendo pardia. Aps ter visto

    o futuro, a Palavra desmorona. Ela levada noite adentro ao som de

    tambores. Neste momento, grandes textos do mistrioe de sua beleza

    so ditospelos bufesdo diabo.

    Eles falam como I, que interroga o cu; como Dante, em

    A divina comdia. Os bufes ingleses residem em Shakespe-

    are. Fizemos os bufes dizerem os maiores textos dos maio-

    res poetas. Quem, melhor do que um bufo, pode dizer um

    183

    ~~~~"""""""'~l

    1

  • texto de Antonin Artaud? Paradoxalmente, ele ser mais bem

    com preen d ido nessa forma do que em todas as outras, ditas

    "poticas". O maiores lo u cos so os poetas!

    Os grotescos esto prximos da caricatura. Eles se aproxi-

    mam dos p ersonagens de nossa vida cotidian a, como alguns

    desenhos humorsticos podem represent-los. Jam ais ques-

    tionam os sentimentos ou a psico logia , m as sempre a funo

    social. Os desenhos de Daumier, nas sries sobre as profisses,

    tm essa dimenso. No repertrio tea t ral, um personagem

    como Ubu, de Iarry, pertence a esse mundo.

    Hoje em dia, surgem com fo r a os f antsticos. Apoiam-se

    especialmente no mundo eletrnico, cien t fico , mas tambm

    n a imaginao mais alucinada. Vimos p ersonagens com v -

    rias cab eas, h om en s- an imais, bu fes com a cab ea n a bar-

    riga. Aqui so possveis todas as loucuras: elas cons ti tu em a

    liberdade do ator e sua b eleza .

    O te rmo buf o cobre, portan to, agora, um te rritrio ex -

    tremamen te vasto, cujos contornos n o podemos delimitar

    de m odo definitivo. p or isso que peo aos alunos a m ais

    ampla explo rao desse terreno, a fim de que se aventurem

    sucessivamente nessas trs grandes direes. Ass im so obr i-

    gados a no ficar na primeira imagem, mas comprometer-se

    verdad eiram en te com a cr ia o. Vamos deixar claro que um

    bufo no pode pertencer, ao mesmo tempo, a trs registros,

    m as n os bandos, n o entanto, algumas m isturas so possveis.

    O fantstico pode ladear o mistrio ou, ainda, um bufo do

    mistrio pode metamorfosear-se num grotesco, e passar do

    primeiro ao segundo sem que se saiba muito bem qual dos

    184

    Ah, d-nos crnios de brasas

    Crnios queimados pelos raios do cuCrnios lcidos, cr n ios reais

    E t raspassados pela tua presena

    Faz-nos nascer nos cus de dentro

    Cobertos de precipcios em torren tesE que uma vertigem nos atravesseCom uma unha in candescente

    Sacia-nos, tem os fome

    De comoes intersiderais

    Ah, derrama em ns lavas astraisNo lugar de nosso sangue

    Desamarra-nos. Divide-nos

    Com tuas mos de brasas co rtantesAbre-nos essas vias ch amejan tes

    O nde se morre mais longe qu e a morte

    Faz n osso crebro vacilar

    No cerne de sua prpria cinciaE arranca- nos a intelignciaCom as garras de um novo t fon?

    ~ton~ Artaud, "P riere" [O raoJ, em Obras comp letas: Tric-Trac du ciel, 1 (Pa-n s: Gallmard, 1970). [Traduo livre par a o portugus.]

    185

  • d ois re presenta o o utro. Um ban do de bufes fan tsti cos entra

    em cena. . . de repente se transforma num bando de pequenos

    grotescos. Situao incmoda, em que o pblico perde a segu-

    r ana de sua lgica, para atingir uma outra dimenso!

    o OUTRO CORPOA linguagem especfica dos bufes apareceu com a pesqui-

    sa dos gestos e das aes que este "ou tro corpo" podia faze r.

    Alguns se aproximaram do corpo humano, no esprito do bo-

    neco da Michelin, tipo de bola h umana desmesurada; outros

    se distanciaram disso consideravelmente. Uma de minhas

    grandes descobertas foi constatar como a dimenso interna-

    cional da Escola aparecia com fora, pelo fundo bufonesco

    que cada cultura traz. A Amrica do Sul expressou seu carter

    fantstico, com seus animais voadores, seus homens-animais.

    Os franceses reencontraram seu fundo rabelaisiano de cozi-

    nheiros bons vivants. Os bufes ingleses esto prximos das

    figuras de Hogarth. Os espanhis vivem a tragdia da festa.

    Os italianos esto na dana, no canto e na msica. Os nr-

    dicos so mais misteriosos, entre o dia e a noite, na loucura

    do crepsculo. A Alemanha trouxe seus grandes mitos fan-

    tsticos. Os asiticos fizeram renascer os drages e os diabos.

    Esse territr io dramtico, certamente mais do que os outros,

    evidencia as profundas diferenas culturais dos alunos.

    Do ponto de vista pedaggico, o territrio dos bufes

    particularmente difcil de conduzir, principalmente por es-

    tarmos permanentemente em busca de procedimentos de

    criao. preciso, portanto, pr os alunos em movimento,

    186

    para que por si ss descubram os elementos que acabo d e

    evo car e, eventualmente, t ragam outros.

    Comeo, com o sempre, pelo co rp o. A primeira abord a-

    gem m uito simples: peo a cada um que desenhe um b ufo

    num a folha de papel. Neste momento do trabalh o, os alunos

    no sabem absolutamente nada do que far em os, nem o que

    esse te rritrio significa. Ca da um desenha seu bufo como

    imagina, e, em seguida, o rga nizo um a leitura com en tada

    dos desenhos. Identifico rap idam en te os qu e tm um a viso

    "cultural" da co isa: p equenos guizos nas pontas dos ch apu s

    cnicos, lem br anas carnavalescas . . . H, ainda, os q ue se en-

    caminham para a loucura, com cabelos eriados... Embora

    conservados, esses de senhos no so u tilizados. Eu os devolvo

    aos alun os no fim do percurso, como um elemento de refle-

    xo pessoal. Sem comentrio .

    Em seguida, eles tm de criar, corporalmente, seu bufo. Tra-

    zemos tecidos, enchimentos, ro upas, objetos, faixas, cordes, e

    cada um tenta livremente inventar seu corpo de bufo. Juntos,

    procuramos os m ovimentos que os animam. O s que tm as n-

    degas gordas dive rtem-se fazendo-as balanar, outro s brincam

    com seus longos rabos, ou se coam com suas unhas desmesura-

    das. Nessa fase do trabalho, in sisto para que os figurinos n unca

    sejam definitivos, nem muito elaborados. im p ortante que se-

    jam provisrios, relativamente sumrios, descartveis, e que pos-

    sam evoluir na pesquisa antes de, eventualmente, cumprir seu

    objetivo e chegar a uma forma mais definitiva.

    Ningum mais criana do que um bufo, nem mais

    bufo do que uma criana. por isso que, paralelamente

    187

  • ao trabalho com o corpo de cada um , encaminhamos, pela

    improvisao, uma fase preparatria dimenso bufonesca,

    com o tema A Infncia. Tentamos reencontrar a infncia por

    diferentes abordagens.

    Um primeiro tema proposto o da praa onde as crianas

    brincam, numa caixa de areia, de polcia e ladro, de pega-

    -p ega .. . Buscamos todos os comportamentos possveis nessa

    situao: a brincadeira, a maldade, a te rnura, a briga, a p osse,

    o riso. No se trata de representar exteriormente personagens

    infantis, n em de mergulhar na infantilidade, mas de reencon-

    trar o estado de infncia, sua solido, suas exigncias, suas

    pulses, sua busca de regras, todos elementos que, na obra,

    vo est ar na dimenso bufonesca.

    Em seguida, proponho que as crianas representem os

    adultos. Eles brincam de papai e mame, brincam de avio,

    mas podem tambm brincar de gu erra, um pouco como fa-

    ziam as crianas do Lbano, com as metralhadoras de madei-

    ra. Depois disto, inverto a proposta, sugerindo que os adultos

    brinquem como as crianas. Os guardas de fronteira: cada um

    de um lado de uma corda posta no cho - quem pisar na cor-

    da tem de arrum-la, etc. Muito rapidamente, descobrimos

    que essa brincadeira denuncia muito fortemente o gosto da

    posse e do poder sobre o Outro.

    Em seus rituais, os bufes no invocam o cu , cospem

    nele! Eles chamam as foras da terra. Esto do lado do diabo,

    no nadir. Saindo da terra, assumem forma humana. Inven-

    tam ritos que lhes pertencem, totalmente incompreensveis

    para os profanos que somos. Cumprem estranhas procisses,

    cerimnias particulares, desfiles com tambores. Um bando de

    bufes pode comear a bater com o p, a danar, a cantar, a

    188

    ,proferir elucubraes, sempre de modo r itual, muito organ i-

    zado. Ne sse caso, os prprios at ores no sabem o que fazem,

    mas o fazem! Esses ri tos no p rovocam n enhum conflito, pois

    n o exist e rivalidade entre bufes. Nunca u m entre eles ficar

    com raiva d o outro. Esto n um a hierarquia muito organ izada

    e ace ita. H os que batem e os que apanham. E est tudo bem .

    O s que devem apanhar pedem mais, gostam disso. Cada um

    sus ten ta e aceita sua posio na sociedade dos bufes, que ,

    para eles , a so ciedade ideal. Logicam ente, essa so ciedade an ossa!

    Os bufes sempre vm dian te do p blico para representar

    a so ciedade. A partir da, todos os temas so p oss veis: a guer-

    ra, a televi so, o Conselh o de Min istros o u qualquer outro

    evento d a atualidade, fontes inesgotveis de inspirao e de

    interpreta o. s vezes, fantasiam -se d e personagens de nossa

    sociedade: p em um quepe, uma roupa religiosa e se aventu -

    ram a representar esses personagens. Mas o fazem sua ma-

    neira, volt an do sempre ao bufo inicial, que sempre se diverte

    com o personagem que representa. Se decidem representar o

    sindicalismo, nunca entraro na ps icologia de tal ou tal per-

    sonagem conhecido, como o fariam os cmicos da televiso,

    mas representaro de modo provocativo. Faro uma mani-

    festao, com eles mesmos passando, alternadamente, ora do

    lado dos manifestantes, ora do lado dos policiais, apenas porprazer.

    O trabalho dos bufes est ligado a um esprito de brin-

    cadeira, adaptvel a diferentes situaes. Tudo aqui est na

    maneira de fazer, n o texto proposto, n o nvel da in terp reta -

    o. O s alunos escrevem seus textos numa outra lgica. Se

    189

  • ab ordam uma situao, os bufes vo deform-la, torc-la,

    coloc-la em jogo de modo no habitual. Num texto, apenas

    pelo prazer, podero repetir dez vezes a mesma palavra, avan-

    ar, recuar. Eles vo bufonizar a situao. Estamos no puro

    reino da loucura organizada!

    Como ocorre no segundo ano todo, esse trabalho explora

    um territrio completamente desconhecido. As referncias,

    quando existem, vm depois. Se s vezes pudemos dizer "Tal

    interpretao fa z pensar em Jernimo Bosch, nos mistrios

    da Idade M d ia, no carnaval. .. ': essas referncias nunca es-

    tiveram em mente no comeo dessa aventura. O que hoje sei

    dos bufes descobri na prtica do corpo em movimento, na

    improvisao, e no nos livros nem em uma tradio que nos

    di taria no sei que tipo de savoir-faire. Os bufes, por nature-

    za, impem urna pedagogia da criao.

    Ao fim dessa explorao, algumas questes ficam, ainda

    hoje, sem resposta. Os bufes podem ser autossuficientes?

    Podem, sozinhos, constituir um espetculo? Ou funcionam

    paralelamente tragdia? Podem intervir na tragdia? E, inver-

    samente, at que ponto a tragdia pode intervir no territrio

    dos bufes? Para tentar responder a essas questes proponho

    abordar sucessivamente os bufes e dep o is a tragdia, antes

    de tentar todas as misturas possveis. Tenho a lembrana, ex -

    traordinria, de um b an do de bufes qu e, como servidores,

    traziam em seus ombros um coro trgico, punham-no diante

    de um pblico e depois desapareciam. O coro, ento, entabu-

    lava um texto de tragdia grega. Viso sublime!

    190

    Atragdia

    O CORO E O HER I

    A tragdia o maior territrio dramtico e o m aior teatro

    que est para ser feito. Na Escola, n s a abordamos a partir

    de descobertas que eu havia feito sobre o co ro, em Siracusa, e

    que aplicamos principalmente numa perspectiva pedaggica.

    Lo nge de uma abordagem histrica da tragdia antiga, de seus

    supostos cdigos, procuramos reinventar o que pode ser uma

    tragdia nos dias de hoje.

    O territrio trgico permance uma grande inte rrogao

    acerca da relao com os deuses, com o destin o, com a trans-

    cendncia. Algo bem diverso de uma questo de seita ou de

    rel igio! Hoje, quando se encontram maravilhados diante

    do cosmos, os homens de cincia esto bem mais prximo s

    dessas questes. Esto diante de um mistrio que leva o ho-

    mem para alm de si mesmo. Fundamentalmente, a mesma

    pesquisa est na origem do territrio da tragdia e de sua

    aproximao com os bufes. Como os deuses nos dias de hoje

    desapareceram, os bufes ocuparam seus lugares e os substi-

    turam. Esperamos que eles queiram ir embora um dia, para

    dar lugar a uma outra coisa: a insero do homem, ao mesmo

    tempo, na sociedade e no cosm os, sem conflito . . . Artistas e

    cientistas esto a para levar adiante essa misso!

    Para os alunos, a grande experincia da tragdia a desco-

    berta dos laos. Eles descobrem o que verdadeiramente signi-

    fica "estarem ligados", ao mesmo tempo juntos e num espao.

    Falar por meio da boca do outro, na voz comum do coro,

    estar totalmente e ao mesmo tempo ancorado na realidade

    19 1

  • o coro trgico.

    de um personagem vivo e experimentar um a dimenso que

    tran scen d e o ser humano. Todo o trab alh o do ato r co nsiste

    em estabelecer uma ligao entre esses do is polos, aparente-

    m ente contraditrios, entre os quais ele pode ficar dividido.

    D oi s elementos principais estruturam o territrio d a tra-

    gdia: o coro e o heri.

    Um coro entraem cena. aosom depercusses que do ritmoaocoleti-

    vo. Ele ocupa todo o espao. depois sepostdone numa parte dopalco.

    fazendo isso. elelibera umnovo espao e cria uma espcie dechamado

    ao heri. Mas quem pode vir a ocupar esse espao?Qual equilbrio se

    pode encontrar. hojeem dia. entreumcoro e umheri?

    A fim de nos prepararmos para a experincia do coro e

    do heri, conduzimos u m trabalho preliminar com as multi-

    des e os oradores. A multido tratada por meio de impro-

    visao. O primeiro tema proposto con siste em representar o

    Hyde Park, o parque londrino onde, todo domingo, pessoas

    sobem num estrado e tentam ch am ar a ateno dos transeun-

    tes e apresentar-lhes um discurso.

    Imaginamos uma grande praa onde todo mundo passeia e pedimos

    a um aluno que chame a ateno dos outros. de todas as maneiras

    possveis. Quando ele consegue. tem de convencer da importncia do

    assunto polmicosobre o qualeledefende umponto devistaem que

    acredita: favorvel ou no. ao aborto. imigrao. energia nuclear! A

    natureza do discurso importa menos do que a capacidade do ator de

    captar seu pblico.

    193

  • Insisto para que os alunos verdadeiramente interpretem,

    conscientes de que defendem um ponto de vista no neces-

    sariamente seu. Essa distncia me parece essencial: vale mais,

    na interpretao, ser favorvel pena de morte quando se

    pessoalmente contra, ou vice-versa! Notemos que, s vezes,

    essa improvisao tambm um momento de verdade para o

    prprio ator: assim que o pblico se entedia, ele vai embora.

    Num segundo momento, esse exerccio complementado

    pela entrada de um segundo personagem, que vem se opor ao

    primeiro, proferindo argumentos contrrios. Constituem-se,

    ento, dois grupos, cada um escuta de um dos oradores:

    eles comeam a form ar as premissas do coro. Determino, fi-

    nalmente, um "m aest ro", um diretor improvisado, exterior

    interpretao, que ajuste o todo da improvisao e ponha or-

    dem nessa grande confuso, d a palavra alternativamente a

    um e outro orador, tambm multido, e assegure, assim, a

    organizao rtimica da interpretao.

    o texto trgico no se improvisa. Ele pede uma escrita.Para dar voz aos oradores, abandonamos, ento, a improvisa-

    o e chamamos os grandes textos da vida pblica: o discurso

    de Angela Davis; os textos de Andr Malraux por ocasio da

    mudana das cin zas de Jean Moulin ao Panteo; ou Charles

    de Gaulle proferindo "Viva o Qubec livre!", em Montreal; o

    de Martin Luther King . . . enfim, todos os grandes discursos

    que carregaram multides. O ator que vai dizer o texto re -

    con st itui com os outros alunos o local e o ambiente onde ele

    foi pronunciado. Organiza a encen a o n o espao da Escola,

    e interpreta a situ ao. Tivemos, com essa proposta, alguns

    momentos memorveis: o discurso de Hitler aos SS, numa

    194

    noite de Natal, interpretado por um ator alemo diante de

    uma multido em continncia, com susticas nos braos. In-

    terpretao um pouco difcil de suportar. Outra lembrana:

    "Catalunha livre!", sermo pela independncia da Catalunha

    lanado a partir do terrao da Escola, com os transeuntes

    ajuntando-se para compor a multido que escuta .. .

    Por meio dessas experincias, os alunos experimentaram

    o nvel emocional que rene multido, orador e texto. O

    orador anuncia o heri; e a massa, a humanidade do coro. A

    passagem da multido ao coro significa um salto no nvel de

    interpretao, o mesmo salto se opera entre a interpretao

    psicolgica e a interpretao com mscara. O coro trgico

    uma multido levada ao nvel da mscara.

    Como o coro est sempre reagindo a um evento ou a uma

    palavra, fazemos um trabalho preparatrio, que trata do coro

    reativo. Um grupo de alunos recebe a instruo de fazer o

    pblico entender o que ele est vendo, unicamente por suas

    reaes a um evento: um jogo de futebol, um filme, uma tou-

    rada . ..

    Um grupo deespectadores, dos camarotes deum teatro depalco italia-

    no. assiste a uma encenao. Acortina se levanta. opalco se ilumina, o

    espetculo comea. Chega a grande cena deamor entre Romeu e Julie-

    ta.As reaes dos espectadores so suficientes para nos fazer imaginar

    o que est acontecendo em cena: um olhar mais atento no levantar da

    cortina, uma aproximao sensivel de dois atores ao reencontro dos

    amantes, um leve movimento derosto...

    Vrios personagens e situaes devem ch egar at ns por

    meio do coro reat ivo . Um procedimento d ifc il e deli cado, pois

    195

  • no basta apenas ver a co isa e, menos ainda, "pantorn im -Ia",

    mas preciso, tambm, encontrar a linguagem para que o p-

    blico perceba a dinmica e a emoo do que est acontecendo.

    Para que isso convena, todos os meios so vlidos, especial-

    mente a linguagem analgica, que chamamos de dupla ima-

    gem. Nesse caso, uma imagem aparece paralelamente a uma

    outra: um leno cai no palco . . . o programa de um espectador

    tambm! O que acontece n os camarotes anlogo situao

    no palco, com uma grande sutileza.

    O coro o elemento essencial que, sozinho, permite o sur-

    gimento de um verdadeiro espao trgico. Um coro no geo-

    mtrico; ele orgnico. Como um corpo coletivo, possui um

    centro de gravidad