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LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

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LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENALuís Donisete Benzi Grupioni

Darci Secchi

Vilmar Guarani

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O direito à educaçãodiferenciada nas leisbrasileirasPassados mais de dez anos da promulgação

da atual Constituição brasileira, é possível afir-mar que o direito dos povos indígenas no Brasila uma educação diferenciada e de qualidade, aliinscrito pela primeira vez, encontrou amplo res-paldo e detalhamento na legislação subseqüen-te. É isso que percebemos quando reunimos alegislação brasileira que trata da Educação Es-colar Indígena em âmbito nacional.

Com a Constituição de 1988, assegurou-seaos índios no Brasil o direito de permaneceremíndios, isto é, de permanecerem eles mesmoscom suas línguas, culturas e tradições. Ao reco-nhecer que os índios poderiam utilizar as suaslínguas maternas e os seus processos de apren-dizagem na educação escolar, instituiu-se a pos-sibilidade de a escola indígena contribuir para oprocesso de afirmação étnica e cultural dessespovos e ser um dos principais veículos de assi-milação e integração.

Depois disso, as leis subseqüentes à Consti-tuição que tratam da Educação, como a Lei deDiretrizes e Bases da Educação Nacional e o Pla-no Nacional de Educação, têm abordado o direi-to dos povos indígenas a uma educação diferen-ciada, pautada pelo uso das línguas indígenas,pela valorização dos conhecimentos e saberesmilenares desses povos e pela formação dos pró-prios índios para atuarem como docentes emsuas comunidades. Comparativamente a algu-mas décadas atrás, trata-se de uma verdadeira

* Antropólogo, pesquisador do Mari (Grupo de Educação Indígena da Universidade de São Paulo) e consultor do Ministério da Educação paraa política de Educação Escolar Indígena.

Do nacional ao local,do federal ao estadual: as leise a Educação Escolar Indígena

Luís Donisete Benzi Grupioni*

SEF/MEC

transformação em curso, que tem gerado novaspráticas a partir do desenho de uma nova fun-ção social para a escola em terras indígenas.

Nesse processo, a Educação Indígena saiu dogueto, seja porque ela se tornou tema que estána ordem do dia do movimento indígena, sejaporque há de se construírem respostas qualifi-cadas a essa nova demanda por parte daqueles aquem cabe gerir os processos de educação noâmbito do Estado. Com isso, ganham os índios eganha também a educação brasileira, na medi-da em que será preciso encontrar novas ediversificadas soluções, exercitando acriatividade e o respeito diante daqueles que pre-cisam de respostas diferentes.

Esse novo ordenamento jurídico, gerado emâmbito federal, tem encontrado detalhamento enormatização nas esferas estaduais, por meio delegislações específicas, que adequam preceitosnacionais às suas particularidades locais. Esse éo caminho para uma legislação que tem tratadode princípios e cuja realização depende de cadacontexto específico.

Já se acusou essa legislação de ser excessiva-mente genérica. Mas como contemplar a extremaheterogeneidade de situações e de vivências his-tóricas dos mais de 200 povos indígenas no Brasilcontemporâneo? Essa questão já encontrou umaresposta no Referencial Curricular Nacional paraas Escolas Indígenas, lançado pelo MEC em 1998:

Os princípios contidos nas leis dão abertura para

a construção de uma nova escola, que respeite o

desejo dos povos indígenas de uma educação que

valorize suas práticas culturais e lhes dê acesso a

conhecimentos e práticas de outros grupos e so-

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ciedades. Uma normatização excessiva ou muito

detalhada pode, ao invés de abrir caminhos, ini-

bir o surgimento de novas e importantes práticas

pedagógicas e falhar no atendimento a demandas

particulares colocadas por esses povos. A propos-

ta da escola indígena diferenciada representa, sem

dúvida alguma, uma grande novidade no sistema

educacional do país, exigindo das instituições e

órgãos responsáveis a definição de novas dinâmi-

cas, concepções e mecanismos, tanto para que

essas escolas sejam de fato incorporadas e bene-

ficiadas por sua inclusão no sistema, quanto res-

peitadas em suas particularidades (RCNEI: 34).

Conhecer a legislação, formulada em âmbitofederal, sobre a Educação Escolar Indígena é oúnico caminho para superar o velho e persistenteimpasse que marca a relação dos povos indíge-nas com o direito, qual seja, o da larga distânciaentre o que está estabelecido na lei e o que ocor-re na prática. Na medida em que os professoresindígenas e suas comunidades conhecerem osdireitos que a legislação lhes assegura, estaremoscaminhando para que eles se tornem realidade.Por sua vez, o conhecimento da legislação geradana esfera federal é condição primeira para o esta-belecimento da legislação estadual, que devenormatizar o funcionamento das escolas indíge-nas e dar efetividade ao direito a uma educaçãodiferenciada para os povos indígenas.

Direitos indígenas naConstituição Federal de 1988A atual Constituição da República Federati-

va do Brasil entrou em vigor em outubro de 1988,quando foi promulgada, depois de mais de umano e meio de trabalho da Assembléia NacionalConstituinte. A Constituição, também conheci-da como Carta Magna, é a lei maior do país. Nãoexiste nenhuma outra lei tão importante quantoela e nenhuma outra lei pode ir contra o que nelaestá estabelecido.

A Constituição estabelece direitos, deveres eprocedimentos dos indivíduos e do Estado, doscidadãos e das instituições. Ela substituiu aConstituição promulgada em 1947 e reflete asmodificações ocorridas no tempo e na socieda-de. Este é o sentido de elaborar uma nova Cons-

tituição: atualizar os direitos e deveres nela ins-critos, de forma que ela seja útil para regular orelacionamento dos cidadãos entre si e destescom o Estado e com a sociedade como um todo.

Dividida em nove títulos, a Constituição tra-ta dos princípios, direitos e garantias fundamen-tais, da organização do Estado, dos poderesLegislativo, Executivo e Judiciário, da defesa doEstado e das instituições democráticas, da tri-butação e do orçamento, da ordem econômica,financeira e social.

A Constituição de 1988 remeteu para a le-gislação complementar e ordinária algumas de-finições, bem como o detalhamento de direitosapresentados de forma ampla ou genérica, nãoauto-aplicáveis, que precisam de detalhamentopor meio de lei complementar. Alguns dessesdispositivos ficaram para a legislação comple-mentar, porque não cabia seu detalhamento naConstituição; outros, porque não foi possívelchegar a um consenso entre os parlamentaresque elaboraram o novo texto. É o caso, por exem-plo, da exploração mineral em terras indígenas,que está prevista na Constituição, mas dependede regulamentação do Congresso Nacional pormeio de legislação complementar.

O maior saldo da Constituição de 1988, querompeu com uma tradição da legislação brasi-leira, diz respeito ao abandono da posturaintegracionista, que sempre procurou incorpo-rar os índios à “comunidade nacional”, vendo-os como uma categoria étnica e social transitó-ria fadada ao desaparecimento. Com a aprova-ção do novo texto constitucional, os índios nãosó deixaram de ser considerados uma espécie emvia de extinção, como passaram a ter assegura-do o direito à diferença cultural, isto é, o direitode serem índios e de permanecerem como tal.

Não cabe mais à União a tarefa de incorporá-los à comunhão nacional, como estabeleciam asconstituições anteriores, mas é de sua responsabi-lidade legislar sobre as populações indígenas no in-tuito de protegê-las. A Constituição reconhece aosíndios “os direitos originários sobre as terras que tra-dicionalmente ocupam”, definindo essa ocupaçãonão só em termos de habitação, mas também emrelação ao processo produtivo, à preservação domeio ambiente e à reprodução física e cultural dosíndios. Embora a propriedade das terras ocupadas

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pelos índios seja da União, a posse permanente édos índios, aos quais se reserva a exclusividade dousufruto das riquezas aí existentes.

Outra inovação importante da atual Consti-tuição foi garantir aos índios, às suas comunida-des e organizações a capacidade processual paraentrar na Justiça em defesa de seus direitos e in-teresses. O Ministério Público é chamado a par-ticipar desse processo, mas não é condição paraa sua instauração. Ao Ministério Público cabe adefesa dos interesses indígenas e a Justiça Fede-ral é o fórum para resolver pendências judiciaisenvolvendo os povos indígenas.

Além do reconhecimento do direito dos índi-os de manterem a sua identidade cultural, a Cons-tituição de 1988 lhes garante, no artigo 210, o usode suas línguas maternas e processos próprios deaprendizagem, cabendo ao Estado proteger asmanifestações das culturas indígenas. Esses dis-positivos abriram a possibilidade para que a es-cola indígena constitua-se em instrumento devalorização das línguas, dos saberes e das tradi-ções indígenas e deixe de ser instrumento de im-posição dos valores culturais da sociedadeenvolvente. Nesse processo, a cultura indígena,devidamente valorizada, deve ser a base para oconhecimento dos valores e das normas de ou-tras culturas. A escola indígena poderá, então,desempenhar importante e necessário papel noprocesso de autodeterminação desses povos.

Esse direito ao uso da língua materna e dosprocessos próprios de aprendizagem ensejoumudanças na Lei de Diretrizes e Bases da Edu-cação Nacional.

Educação Indígena na Lei deDiretrizes e Bases da EducaçãoNacional (Lei nº 9.394)A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio-

nal foi aprovada pelo Congresso Nacional no dia17 de dezembro de 1996 e promulgada no dia 20de dezembro daquele ano. Ela estabelece normaspara todo o sistema educacional brasileiro, fixan-do diretrizes e bases da educação nacional desdea Educação Infantil até a Educação Superior. Tam-bém conhecida como LDB, LDBEN ou Lei DarcyRibeiro, essa lei está abaixo da Constituição e é

de importância fundamental porque trata, demodo amplo, de toda a educação do país.

A atual LDB substitui a Lei nº 4.024, de 1961,que tratava da educação nacional. No que se re-fere à Educação Escolar Indígena, a antiga LDBnada dizia. A nova LDB menciona, de forma ex-plícita, a educação escolar para os povos indíge-nas em dois momentos. Um deles aparece naparte do Ensino Fundamental, no artigo 32, es-tabelecendo que seu ensino será ministrado emLíngua Portuguesa, mas assegura às comunida-des indígenas a utilização de suas línguas ma-ternas e processos próprios de aprendizagem. Ouseja, reproduz-se aqui o direito inscrito no arti-go 210 da Constituição Federal.

A outra menção à Educação Escolar Indígenaestá nos artigos 78 e 79 do Ato das DisposiçõesGerais e Transitórias da Constituição de 1988. Alise preconiza como dever do Estado o oferecimen-to de uma educação escolar bilíngüe e interculturalque fortaleça as práticas socioculturais e a línguamaterna de cada comunidade indígena e propor-cione a oportunidade de recuperar suas memóriashistóricas e reafirmar suas identidades, dando-lhes, também, acesso aos conhecimentos técnico-científicos da sociedade nacional. Para que issopossa ocorrer, a LDB determina a articulação dossistemas de ensino para a elaboração de progra-mas integrados de ensino e pesquisa, que contemcom a participação das comunidades indígenas emsua formulação e tenham como objetivo desenvol-ver currículos específicos, neles incluindo os con-teúdos culturais correspondentes às respectivas co-munidades. A LDB ainda prevê a formação de pes-soal especializado para atuar nessa área e a elabo-ração e publicação de materiais didáticos especí-ficos e diferenciados.

Com tais determinações, a LDB deixa claroque a Educação Escolar Indígena deverá ter umtratamento diferenciado do das demais escolasdos sistemas de ensino, o que é enfatizado pelaprática do bilingüismo e da interculturalidade.

Outros dispositivos da LDB possibilitam co-locar em prática esses direitos, dando liberdadepara cada escola indígena definir, de acordo comsuas particularidades, seu respectivo projetopolítico-pedagógico. Assim, por exemplo, o ar-tigo 23 da LDB trata da diversidade de possibili-dades na organização escolar, permitindo o uso

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de séries anuais, períodos semestrais, ciclos,alternância regular de períodos de estudo, gru-pos não-seriados ou por critério de idade, com-petência ou outros critérios. No artigo 26, paradarmos mais um exemplo, fala-se da importân-cia de considerar as características regionais elocais da sociedade e da cultura, da economia eda clientela de cada escola, para que se consigaatingir os objetivos do Ensino Fundamental. Ouseja, outros dispositivos presentes na LDB evi-denciam a abertura de muitas possibilidadespara que, de fato, a escola possa responder à de-manda da comunidade e oferecer aos educandoso melhor processo de aprendizagem.

Educação indígena noPlano Nacional de Educação(Lei nº 10.172)A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-

cional instituiu, no artigo 87, a “Década da Edu-cação”, que teve início um ano após a sua publi-cação. Ali também se estabeleceu que a Uniãodeveria encaminhar ao Congresso Nacional umPlano Nacional de Educação, com diretrizes emetas para os dez anos seguintes.

Em 9 de janeiro de 2001, foi promulgado o Pla-no Nacional de Educação, também conhecido pelasigla PNE, que apresenta um capítulo sobre a Edu-cação Escolar Indígena, dividido em três partes. Naprimeira parte, faz-se um rápido diagnóstico decomo tem ocorrido a oferta da educação escolaraos povos indígenas. Na segunda, apresentam-seas diretrizes para a Educação Escolar Indígena. Ena terceira, estão os objetivos e metas que deve-rão ser atingidos a curto e a longo prazos.

Entre os objetivos e as metas previstos noPlano Nacional de Educação, destaca-se auniversalização da oferta de programas educa-cionais aos povos indígenas para todas as sériesdo Ensino Fundamental, assegurando autono-mia para as escolas indígenas tanto no que serefere ao projeto pedagógico, quanto ao uso dosrecursos financeiros, e garantindo a participaçãodas comunidades indígenas nas decisões relati-vas ao funcionamento dessas escolas. Para queisso se realize, o plano estabelece a necessidadede criação da categoria “escola indígena” para

assegurar a especificidade do modelo de educa-ção intercultural e bilíngüe e sua regularizaçãonos sistemas de ensino.

O Plano Nacional de Educação prevê, ainda,a criação de programas específicos para atenderàs escolas indígenas, bem como a criação de li-nhas de financiamento para a implementação dosprogramas de educação em áreas indígenas. Es-tabelece-se que a União, em colaboração com osestados, deve equipar as escolas indígenas comrecursos didático-pedagógicos básicos, incluindobibliotecas, videotecas e outros materiais deapoio, bem como adaptar os programas já exis-tentes hoje no Ministério da Educação em termosde auxílio ao desenvolvimento da educação.

Atribuindo aos sistemas estaduais de ensinoa responsabilidade legal pela Educação Indíge-na, o PNE assume como uma das metas a seratingida nessa esfera de atuação a profis-sionalização e o reconhecimento público domagistério indígena, com a criação da categoriade professores indígenas como carreira especí-fica do magistério e com a implementação deprogramas contínuos de formação sistemáticado professorado indígena.

Ao ser promulgado, o PNE estabeleceu que aUnião, em articulação com os demais sistemasde ensino e com a sociedade civil, deve proce-der a avaliações periódicas da implementação doplano e que tanto os estados quanto os municí-pios deverão, com base no plano, elaborar seusplanos decenais correspondentes.

Parecer nº 14/99 doConselho Nacional de EducaçãoO Conselho Nacional de Educação foi insta-

lado em 26 de fevereiro de 1996. É composto porduas câmaras: a Câmara de Educação Superior ea Câmara de Educação Básica, cada qual com 12membros nomeados pelo Presidente da Repú-blica. Entre as competências do CNE, está a deemitir pareceres sobre assuntos da área educa-cional e sobre questões relativas à aplicação dalegislação educacional. Após a promulgação daLDB, ambas as câmaras do CNE trataram de pre-parar as normas necessárias à implantação danova estrutura da educação nacional instituídapor aquela lei. A Câmara de Educação Básica pre-

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parou diretrizes curriculares para os diferentesníveis e modalidades de ensino, entre as quaisas de Educação Indígena.

As diretrizes para a Educação Indígena cons-tituem o resultado das discussões que ocorreramna Câmara de Educação Básica do CNE, quandoessa se lançou na análise de dois documentos en-caminhados pelo Ministério da Educação (a ver-são preliminar do Referencial Curricular Nacio-nal para as Escolas Indígenas e um documentoespecialmente preparado pelo Comitê de Edu-cação Escolar Indígena sobre a necessidade deregulamentação da Educação Indígena), bemcomo de uma consulta feita pelo Ministério Pú-blico Federal do Rio Grande do Sul, para cujarelatoria foi indicado o Pe. Kuno Paulo Rhoden.

As Diretrizes Curriculares Nacionais da Edu-cação Escolar Indígena foram aprovadas em 14de setembro de 1999, por meio do Parecer nº 14/99 da Câmara Básica do Conselho Nacional deEducação. Dividido em capítulos, o parecer apre-senta a fundamentação da Educação Indígena,determina a estrutura e funcionamento da es-cola indígena e propõe ações concretas em prolda Educação Escolar Indígena.

Merecem destaque, no parecer que instituias diretrizes, a proposição da categoria “escolaindígena”, a definição de competências para aoferta da Educação Escolar Indígena, a forma-ção do professor indígena, o currículo da escolae sua flexibilização. Essas questões encontraramnormatização na Resolução nº 3/99, gerada noâmbito das mesmas discussões que ensejarameste parecer.

Resolução nº 3/99 doConselho Nacional de EducaçãoNo Diário Oficial da União, de 17/11/1999, foi

publicada a Resolução nº 3/99, preparada pelaCâmara Básica do Conselho Nacional de Educa-ção. Essa resolução fixa diretrizes nacionais para ofuncionamento das escolas indígenas. Importan-tes definições foram aí inscritas e regulamentadas,no sentido de serem criados mecanismos efetivospara a garantia do direito dos povos indígenas auma educação diferenciada e de qualidade. Algu-mas dessas definições merecem ser destacadas.

A primeira é relativa à criação da categoria“escola indígena”, reconhecendo-lhe “a condiçãode escolas com normas e ordenamento jurídicopróprios” e garantindo-lhe autonomia pedagó-gica e curricular. Disso resulta a necessidade deregulamentação dessas escolas nos ConselhosEstaduais de Educação, bem como a necessida-de de instituir mecanismos de consulta e envol-vimento da comunidade indígena na discussãosobre a escola indígena.

Outro ponto importante da Resolução nº 3/99é a garantia de uma formação específica para osprofessores indígenas, podendo essa ocorrer emserviço e, quando for o caso, concomitantementecom a sua própria escolarização. A resolução es-tabelece que os estados deverão instituir progra-mas diferenciados de formação para seus pro-fessores indígenas, bem como regularizar a situ-ação profissional desses professores, criandouma carreira própria para o magistério indígenae realizando concurso público diferenciado paraingresso nessa carreira.

Ao interpretar a LDB, o Conselho Nacionalde Educação, por meio dessa resolução, definiuas esferas de competência e responsabilidadepela oferta da educação escolar aos povos indí-genas. Estabelecido o regime de colaboraçãoentre União, estados e municípios, o CNE defi-niu que cabe à União legislar, definir diretrizes epolíticas nacionais, apoiar técnica e financeira-mente os sistemas de ensino para o provimentode programas de educação intercultural e de for-mação de professores indígenas, além de criarprogramas específicos de auxílio ao desenvolvi-mento da educação. Aos estados, caberá a res-ponsabilidade “pela oferta e execução da Edu-cação Escolar Indígena, diretamente ou por re-gime de colaboração com seus municípios”, in-tegrando as escolas indígenas como “unidadespróprias, autônomas e específicas no sistemaestadual” e provendo-as com recursos humanos,materiais e financeiros, além de instituir e regu-lamentar o magistério indígena.

Dessas disposições, decorre, entre outras, anecessidade de cada Secretaria de Estado da Edu-cação criar uma instância interinstitucional, coma participação dos professores e das comunida-des indígenas, para planejar e executar a educa-ção escolar diferenciada nas escolas indígenas.

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Do nacional ao local:o lugar da legislação estadualO conjunto da legislação nacional a respeito

do direito dos povos indígenas a uma educaçãodiferenciada, como visto anteriormente, estáestruturado a partir de duas vertentes, que ne-cessariamente precisam convergir, para que essedireito se materialize: de um lado, trata-se depropiciar acesso aos conhecimentos ditos uni-versais e, de outro, de ensejar práticas escolaresque permitam o respeito e a sistematização desaberes e conhecimentos tradicionais. É da jun-ção dessas duas vertentes que deve emergir a tãopropagada escola indígena.

O que a legislação nacional estabelece é umconjunto de princípios que, de modo geral, aten-de à extrema heterogeneidade de situações vivi-das hoje pelos mais de 210 povos indígenas con-temporâneos no Brasil. Essa legislação permite aexpressão do direito a uma educação diferencia-da, a ser pautada localmente, em respeito às dife-rentes situações socioculturais e sociolingüísticasde cada povo indígena, bem como em relação aosseus diferentes projetos de futuro.

Todavia, esses princípios precisam encon-trar respaldo e acolhimento nas normatizaçõesestaduais que vão disciplinar o funcionamentodas escolas indígenas, como unidades integran-tes dos sistemas estaduais de ensino, bem comoregularizar a situação dos professores indígenascomo profissionais contratados pelo estado oupelo município. É aqui, portanto, no âmbito es-tadual, que os princípios federais precisam ga-nhar efetividade, gerando normas e procedi-mentos que lhes possam dar vazão. É nesseâmbito que se consolida o direito a uma edu-cação diferenciada, na medida em que seimplementa e se realiza o direito a uma escolaprópria e diferenciada.

Esse é o momento em que diferentes esta-dos da Federação se lançam a disciplinar a ma-téria, seja por meio da inclusão da Educação Es-colar Indígena nas leis orgânicas de educação,por parte das Assembléias Legislativas, seja pormeio de resoluções estaduais, geradas no âmbi-to dos Conselhos Estaduais de Educação. Esse é,portanto, o momento de refletir sobre como osavanços alcançados na esfera federal poderão

encontrar detalhamento nas esferas estaduais,de forma a se potencializar as oportunidades deos povos indígenas terem uma escola e uma edu-cação que atenda aos seus interesses e às suasaspirações de futuro.

Feito o itinerário do detalhamento do direitodos índios a uma educação diferenciada, algumasquestões colocam-se para o debate, no momentoem que se caminha para novas formulações legaise administrativas, agora nas esferas estaduais.

A primeira questão já foi anunciada: a dapersistente lacuna entre a lei e a realidade, en-tre o direito explicitado e a prática vivida. Quealternativas se colocam a esse direito? Será quea busca de novas leis e normatizações seria umcaminho para que aquilo que já foi inscrito ga-nhasse efetividade? Ou será que os povos indí-genas contam com outros mecanismos que po-deriam ser acionados para que o direito jáexplicitado seja cumprido? Quais são os impas-ses e as dificuldades que impedem o direito dese realizar? São exclusivos do campo educacio-nal ou dizem respeito à relação dos povos indí-genas com o Estado brasileiro?

Outra ordem de questões diz respeito à esfe-ra de normatização estadual. Se cabe aos siste-mas estaduais de ensino a responsabilidade pelaoferta da Educação Indígena e pela formação eregularização profissional dos professores indí-genas, a eles cabe também definir, em plano es-tadual, a matéria esboçada no plano federal. Oque caberia definir aos estados? Qual o espaçode sua atuação? A qual nível de detalhamento aosestados caberia chegar, na definição das açõeseducacionais para os povos indígenas? Comogarantir que a legislação estadual não se restrin-ja a princípios federais? Como garantir que a es-cola indígena não sucumba diante das demaisescolas do sistema estadual?

Por fim, uma terceira ordem de questiona-mentos nos deve conduzir a cada sociedade in-dígena em particular, a cada projeto de futuroe de escola, pois é aí que o direito a uma edu-cação diferenciada se realiza. E a perguntadeve inverter a ordem estabelecida: em quemedida o que já está inscrito no plano legal nãolimita as aspirações e os desejos dos povos in-dígenas relativamente à escolarização formalde seus membros? E para que rumo segue a

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Educação Indígena? Haverá espaço para aque-les grupos que almejam simplesmente ummaior conhecimento do Português e das regrasde comércio com a sociedade envolvente? To-das as escolas indígenas deverão formalizarseu ensino, garantindo continuidade de estu-dos dentro e fora das terras indígenas? Haverácondições e espaços para que os índios dêemum sentido próprio para a escola indígena, foradas amarras administrativas e legais já con-quistadas? Enfim, para onde caminha todoesse processo?

Enfrentar essas questões está na ordem do dia.

BibliografiaGRUPIONI, Luís Donisete Benzi. A Educação Escolar Indí-

gena no Brasil: a passos lentos. In: RICARDO, Carlos

Alberto (Org.). Povos indígenas no Brasil – 1996/2000.

São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000.

. Os índios e a cidadania. In: Cadernos da TV

Escola – Índios no Brasil, Brasília, v. 3, p. 25-46, 1999.

MELIÀ, Bartomeu. Educação indígena e alfabetização. São

Paulo: Loyola, 1979.

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Referencial

Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília:

SEF/MEC, 1998.

. O governo brasileiro e a Educação Escolar

Indígena 1995/1998. Brasília: SEF/MEC, 1998.

Apontamentos acerca daregularização das escolas indígenas

Darci Secchi*

Unemat

ResumoOs povos ameríndios convivem com algum

tipo de escola há quase 500 anos. Nos últimos anos,

porém, a escola colonial recebeu novas adjeti-

vações (específica, diferenciada, intercultural, bi-

língüe), e a educação escolar passou a ser tratada

como política pública, como um direito de cida-

dania. Entretanto, o antigo paradigma colonial

não foi totalmente superado, uma vez que a le-

gislação atual apenas admitiu a alteridade e tole-

rou a diferença, isto é, manteve resguardado o

direito de outorgar direitos. O presente paper pre-

tende discutir o processo de regularização das

escolas indígenas no Brasil, destacando a neces-

sidade de conciliar os interesses de todos os su-

jeitos detentores de direitos, em especial, os das

sociedades indígenas.

Um breve sobrevôosobre o campoDiversas sociedades indígenas brasileiras con-

vivem, há séculos, com a instituição escolar, e nós,colonizadores, convivemos com a inquietaçãoquanto ao lugar que ela deve ocupar nos processosde colonização e/ou de autonomia desses povos.

Na era dos descobrimentos, os debates acer-ca da Educação Indígena tiveram como cenárioo confronto visual dos colonizadores com os ha-bitantes das terras recém-conhecidas. Discuti-am-se o estatuto desses seres naturais e o lugarque lhes caberia no projeto de exploração. Aquestão que se colocava era se eles seriam con-siderados seres humanos e, tendo alma, se seria

* Professor da UFMT e doutorando em Ciências Sociais pela PUC/SP.

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possível educá-los na fé cristã, ou se deveriamser simplesmente escravizados. A controvérsia1

acerca da natureza humana dos índios perduroupor dois séculos e, a partir dela, estabeleceram-se os contornos do projeto colonizador em todaa América e em outros continentes.

Nos últimos anos, porém, verificaram-sesignificativas mudanças no tratamento datemática educacional indígena. Os próprios ín-dios entraram em cena para debater a políticade escolarização e para exigir uma educaçãoescolar voltada ao atendimento dos seus inte-resses. A educação escolar passou a ser vistacomo uma política pública, como um direito decidadania. Hoje já não se discute se os índiostêm ou não têm alma, se devem ou não ser civi-lizados, mas trata-se de considerá-los cidadãosdetentores de direitos específicos.

Ainda assim, a secular matriz colonial não foitotalmente superada. As atuais leis e regulamen-tos foram produzidos apenas com a audiência dosíndios, ou contaram com a participação das co-munidades. Ou, dito de outra forma, a legislaçãoadmitiu a alteridade e tolerou a diferença, masmanteve resguardado o direito discricionário deconceder direitos. Nela, o reconhecimento à di-versidade cultural, aos direitos específicos, àliturgia diferenciada para as suas escolas etc. se-riam como marcos ou garantias de um porvir decidadania, de respeito e de valorização das socie-dades indígenas. Ao tempo em que se consolida-va a tendência de considerar assuntos indígenas2

apenas os de cunho jurídico e administrativo, viu-se frutificar inúmeras parcerias e cooperaçõesentre o poder público, a militância indigenista eacadêmica e as próprias organizações indígenasna busca de novos horizontes para a “causa indí-gena”. Nesse processo, surgiu também um novodiscurso oficial, que substituiu o antigo “refrãointegracionista” por enunciados mais palatáveis

ao atual momento econômico, político eepistemológico brasileiro.3 O discurso que haviainsuflado as “bandeiras de luta da sociedade ci-vil” passou a ser apropriado pelo poder público.Seria o prelúdio de novos tempos?

Um pouco de históriaO modelo integracionista de educação esco-

lar para o índio no Brasil está associado histori-camente ao binômio proselitismo doutrinário(religioso ou não) e preparação para o trabalho.Com esse intuito, atuaram as missões católicas,as escolas pombalinas, a educação positivista e,mais recentemente, os missionários e lingüistasde diferentes confissões.

A partir da década de 1950, insuflados pelosares da modernidade e das novas relações inter-nacionais do trabalho, passaram a ser incorpora-dos, nos países do chamado Terceiro Mundo, no-vos instrumentos jurídicos e novos objetivos paraa educação escolar das “populações tribais esemitribais”. A Convenção 107 da OrganizaçãoInternacional do Trabalho (OIT/1957) preconizou,entre outros dispositivos, a garantia de educaçãoem todos os níveis (art. 21); a realização de estu-dos antropológicos prévios à elaboração de pro-gramas escolares (art. 22); a alfabetização em lín-gua materna seguida de educação bilíngüe (art.23); e uma campanha de combate ao preconceito(art. 25). Porém os artigos 24 e 26 não esconde-ram o antigo paradigma integracionista. Vejamos:

Art. 24. O ensino primário deverá ter por objetivo

dar às crianças pertencentes às populações inte-

ressadas conhecimentos gerais e aptidões que as

auxiliem a se integrar na comunidade nacional.

[...]

Art. 26 -1. Os governos deverão tomar medidas [...]

com o objetivo de lhes fazer conhecer seus direitos e

1 Para Clastres (1995), a controvérsia residia em afirmar que os índios eram como “criaturas de Deus” e, ao mesmo tempo, promover a suacaptura e escravização. A saída legal para esse dilema seria encontrada na declaração (unilateral) de “antropofagia”.

2 Ribeiro (1978) e Oliveira (1976) utilizam as expressões “problema” ou “problemática indígena”; Lopes da Silva (1981) e outros preferem“questão indígena”. Tomo-as aqui como sinônimos.

3 Para Brand (1988: 7), o avanço no arcabouço legal fez-se acompanhar de um crescente “confinamento geográfico e social”. Para ele, oesgotamento do modelo integracionista está diretamente ligado ao atual estágio da globalização e do neoliberalismo, que encontrou, comofórmula para solucionar o problema dos supérfluos, o seu confinamento em favelas, acampamentos e reservas. Integrar o índio em quê? –pergunta. Como mão-de-obra, já não é mais necessário. Só se for como consumidores marginais, conclui.

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obrigações especialmente no que diz respeito ao tra-

balho e os serviços sociais.4 [Grifos meus.]

No Brasil, esses dispositivos ingressaram nomundo jurídico somente uma década mais tar-de e se materializaram de fato na ConstituiçãoFederal de 1988. Mesmo assim, careciam demaiores explicitações, o que seria formalizado,em meados da década de 1990, com a publica-ção da Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional (Lei nº 9.394/96).

Ao longo desses 30 anos de maturação jurí-dica e política, muitos atores compuseram o ce-nário da Educação Escolar Indígena.

A década de 1970 foi marcada pela emergên-cia do chamado “indigenismo alternativo” e porensaios dos primeiros movimentos indígenas, ti-dos como estratégias de oposição e superação doparadigma integracionista. Nesse período, as es-colas oficiais foram vistas com cautela, quandonão com desconfiança. Propunha-se, em seu lu-gar, a criação de escolas alternativas, mormentede acepção freireana, desatreladas do espaço doEstado e das instituições que o representavam.

Na década de 1980, a escola indígena anco-rou-se no tripé organização indígena, reflexãoacadêmica e militância indigenista, parceria queproduziu uma vasta documentação, participoudo processo constitucional e ostentou a chan-cela de ver as suas bandeiras contempladas nanova Carta. As articulações surgidas nesse con-texto resultaram na organização de “Núcleos deEducação” ou “Núcleos de Estudos Indígenas”em diversos estados. Em alguns casos – como ode Mato Grosso –, esses núcleos deram origemaos atuais Conselhos de Educação Escolar Indí-gena, fóruns multiinstitucionais e de composi-ção paritária, que definem a política de Educa-ção Escolar Indígena nos respectivos estados.

Na década de 1980, realizaram-se tambémdiversos cursos de capacitação de professores eencontros de Educação Indígena, eventos quederam suporte à organização dos atuais Progra-mas de Formação de Professores Indígenas, de-

senvolvidos em Mato Grosso, no Acre e em ou-tros estados.

Os direitos conquistados nesse períodorecolocaram em novas bases o antigo conflitoentre o oficial e o paralelo, e as “relações perigo-sas” entre escola e Estado passaram a ser vistascomo “relações possíveis”.

Os anos 1990 caracterizaram-se como umperíodo de implementação do ideário gestadona década anterior. As novas palavras de ordem– “educação bilíngüe e intercultural”, “currícu-los específicos e diferenciados”, “processos pró-prios de aprendizagem” – precisavam ser ma-terializadas no cotidiano das escolas. No entan-to, nem o poder público estava preparado téc-nica e administrativamente para assumir essatarefa, nem havia legislação específica que ori-entasse tal procedimento. No contexto desse“vazio normativo” e das pressões advindas dascomunidades indígenas, dos grupos de apoio,de setores da academia e do próprio poder pú-blico, o Governo Federal e o MEC passaram acoordenar uma série de iniciativas que resulta-ram na atual arquitetura jurídica e administra-tiva para as escolas indígenas.

Dentre as principais medidas, destacaram-se:• a publicação do Decreto nº 26/91 que trans-

feriu da Funai para o MEC a responsabilida-de pela coordenação e aos estados e municí-pios a responsabilidade pela execução dasações de Educação Escolar Indígena;

• a publicação da Portaria Interministerial nos

559/91 e das Portarias/MEC nº 60/92 e 490/93, instituindo e normatizando o ComitêNacional de Educação Indígena, fórum queviria subsidiar a elaboração dos planosoperacionais e as ações educacionais nos es-tados e municípios;

• a elaboração pelo Comitê Assessor e a publi-cação pelo MEC, em 1994, do documento“Diretrizes para a Política Nacional de Edu-cação Escolar Indígena”, a partir do qual de-finiram-se os principais contornos do aten-dimento escolar indígena;

4 Posteriormente, a Convenção 169, adotada pela 76ª Conferência Internacional do Trabalho (Genebra, junho de 1989), revisou essas propo-sições e acrescentou ao texto outras diretrizes, tais como “el derecho a la autoidentificación, a la consulta y a la participación, y el derechoa decidir sus proprias prioridades [...].

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Legislação escolar indígena

PAINEL 5

• a sanção da Lei de Diretrizes e Bases da Educa-ção Nacional (Lei nº 9.394/96), em que se esta-beleceram as normas específicas para a ofertade educação escolar para os povos indígenas;

• a aprovação, na Comissão de Constituição eJustiça do Senado Federal, em 6 de dezem-bro de 2000, após oito anos de tramitação,da Disposição 169 da Organização Interna-cional do Trabalho, estabelecendo os direi-tos dos povos indígenas e tribais (PIT), entreeles o da Educação Escolar Indígena em to-dos os níveis e nas mesmas condições que orestante da comunidade nacional.

Como vemos, nesta última década, multipli-caram-se e aperfeiçoaram-se os instrumentos ju-rídicos e administrativos concernentes à criação,à implementação e ao reconhecimento das esco-las indígenas. No entanto, as mudanças tiveram umalcance maior apenas nos aspectos operacionais emetodológicos e não parecem ter rompido total-mente com o modelo conceitual anterior.

O paradigma da atual escola específica, dife-renciada, bilíngüe e intercultural, isto é, da es-cola adaptada formalmente à clientela, não se-ria a antiga escola colonial, agora fantasiada denovos atributos? Ou seria de fato uma escola do“outro”, isto é, dirigida às populações indígenas?E, nesse caso, qual será a matriz conceitual quea inspira? Onde se funda essa nova instituição?

Admitindo a alteridade etolerando a diferençaComo vimos, o projeto hegemônico das atuais

escolas indígenas teve a sua origem associada àConvenção 107 da OIT, que, há cinqüenta anos,redefiniu as relações internacionais do trabalho eensejou incorporar as populações do TerceiroMundo ao projeto de desenvolvimento liberal.

Naquele movimento, a escola e os seus pro-gramas educacionais foram definidos anterior eexteriormente à participação das sociedades in-dígenas. A mesma perspectiva foi explicitada naatual LDB, ao propor que os programas escola-

res “serão planejados com a audiência das comu-nidades indígenas” (art. 79, § 1º – grifo meu). Istoé, coube às agências externas – governos, acade-mias, conselhos – o planejamento dos programasdas escolas com a audiência indígena, e não oinverso: “as comunidades indígenas planejarãoseus programas com a audiência do poder pú-blico, dos conselhos e da academia”.

Dessa forma, a atual legislação deixou decontemplar duas premissas fundamentais paraa superação do modelo escolar integracionista,quais sejam, a da iniciativa e a do controle dassociedades indígenas sobre o processo de con-ceber, planejar, executar e gerir os seus progra-mas educacionais. Os índios permaneceram naqualidade de ouvintes, e não de propositores desuas próprias políticas. Continuaram sendoexpectadores, “atores coadjuvantes”, sem direi-to de propor, sem direito de vetar, sem direitode outorgar os seus próprios direitos.

Um segundo aspecto problemático dessemodelo de escola diz respeito à sua adjetivaçãocomo “escola bilíngüe”.

A primeira versão da escola bilíngüe propu-nha assegurar “a transição progressiva da línguamaterna ou vernacular para a língua nacional oupara uma das línguas oficiais do país” (OIT, art.23, inciso 2). Essa empreitada seria atribuída, noBrasil, aos missionários lingüistas do SummerInstitute of Linguistics (SIL), por meio de umaportaria da Funai (nº 75/72), que conferiu a essaagência norte-americana o status, o privilégio eo foro “oficial” no que se tratasse de assuntoslingüísticos. Segundo o antropólogo Márcio Sil-va, a parceria entre o Estado e o SIL foi tamanha“que até mesmo as ferramentas analíticas desen-volvidas pelos lingüistas do SIL passaram a figu-rar nos documentos oficiais”.5

As críticas ao “bilingüismo de transição” – enão a utilização regular de ambas as línguas –não tardaram, afinal tratava-se da mais “repulsi-va forma de etnocídio”. Mesmo assim, esse mo-delo perdurou por três décadas até que foisubstituído por sua abordagem antagônica, aquidenominada de “bilingüismo compulsório”.

5 Cf. Silva, 1999: 10. Uma análise crítica acerca da atuação do SIL pode ser encontrada também em Barros (1993) e em outros trabalhos da autora.

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Se antes o aprendizado dos alunos dirigia-seno sentido de transitarem de uma situaçãomonolíngüe em língua indígena para uma situ-ação de falantes do Português, agora a situaçãose inverteria. Propunha-se que o bilingüismofosse uma característica inerente às escolas in-dígenas, isto é, que essas fossem compulsoria-mente bilíngües.

O documento Diretrizes para a Política Na-cional de Educação Escolar Indígena, produzidopelo Comitê de Educação Escolar Indígena doMEC e lançado em 1994, não deixou dúvidas:

A escola indígena tem que ser parte do sistema

de educação de cada povo, na qual, ao mesmo

tempo em que assegura e fortalece a tradição e o

modo de ser indígena, fortalecem-se os elemen-

tos para uma relação positiva com outras socie-

dades [...]. Como decorrência da visão exposta, a

Educação Escolar Indígena tem que ser necessa-

riamente específica e diferenciada, intercultural

e bilíngüe [grifos meus].

Parece óbvio que essa formulação generalistacarece de sustentabilidade, embora não se ques-tione a adoção do bilingüismo em situaçõessociolingüísticas diglóssicas. O seu ponto críti-co reside na formulação como modelo tipológicoobrigatório e único para as escolas indígenas.

Como se daria o tratamento bilíngüe em es-colas cujos alunos indígenas se definem comomonolíngües? Ou, inversamente, como se faria aopção por apenas duas línguas em situações demultilingüismo? São inúmeros os casos em que“coexiste, em um mesmo contexto, mais de umalíngua indígena e os casos em que a língua indí-gena é a própria língua nacional” (Silva, op. cit.:13). Portanto, a escola verdadeiramente indígenanão é necessariamente bilíngüe, embora obilingüismo possa ser atualmente recorrente emmuitas escolas. Ora, mais do que uma “adjetivaçãoemblemática” para as escolas indígenas, o ensinobilíngüe deveria constituir-se numa opção dascomunidades e, como tal, poderia compor ou nãoo currículo e o cotidiano de suas escolas. Essaopção, porém, é mais uma vez subtraída das co-munidades e impingida como um “direito obri-gatório”. Mais uma vez, admite-se a diversidade edomestica-se a diferença, sem, contudo, abrirmão do direito de conceder direitos.

O mesmo ocorre com os dois adjetivos res-tantes: as escolas indígenas devem ser específi-cas e diferenciadas. Mais do que garantir novosavanços, esses “direitos compulsórios” ratificama histórica perspectiva discriminatória dedesqualificação das minorias étnicas e culturais.As escolas indígenas – como também as escolasrurais, ribeirinhas e das favelas – devem ser es-pecíficas e diferenciadas para “reproduzir os co-nhecimentos próprios”, isto é, para reproduzir anegação cultural, a negação identitária e a nega-ção da cidadania, elementos que compõem aessência do cotidiano de quem se sabe e se re-conhece historicamente discriminado.

Talvez resida aí a razão da dificuldade de osíndios perceberem as escolas diferenciadascomo algo positivo para os seus projetos socie-tários. Como disse o líder xinguano MarawêKayabi, “Até agora só sabemos o que é diferencia-do para pior e nunca para melhor”.

Será possível “regularizar”o específico e o diferenciado?Todos nós que atuamos no campo da Edu-

cação Escolar Indígena, por certo, já nos depa-ramos com questionamentos para os quais nãoobtivemos uma resposta satisfatória.

Relaciono a seguir alguns dos que ainda po-voam os meus pensamentos, na expectativa decompartilhá-los com meus pares e, assim, qui-çá, construirmos um caminho mais seguro nes-se terreno pantanoso.

O primeiro provém de uma indagação for-mulada por um professor Guarani por ocasiãode uma etapa do curso de formação de profes-sores em Amambaí/MS. Na ocasião, perguntou-me o professor: “Você poderia me dizer como agente faz para regularizar uma escola, respeitan-do o específico e o diferenciado?” Pensando terentendido a sua pergunta, passei a expor os pro-cedimentos recomendados pela legislação etc.,mas logo fui interrompido com uma observação:“Eu sei, eu sei, mas não é isso que eu preciso sa-ber. Eu preciso saber se uma escola indígena es-pecífica e diferenciada deve ter tudo o que estáescrito nas Diretrizes, nos Referenciais, nos Pa-râmetros, na Resolução nº 3. Se for preciso tudoaquilo, acho que nunca teremos uma escola es-

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Legislação escolar indígena

PAINEL 5

pecífica e diferenciada”. O professor Guarani co-loca-nos o seguinte problema: como regularizaras escolas sem “disciplinar” a diferença? Seriapelo caminho dos adjetivos formalizantes?

A segunda indagação tem por nascedourouma pergunta formulada por um professorParintintim quando se debatia a Resolução nº 3da CEB/CNE, no curso de formação de professo-res do Alto Rio Madeira. Depois de superar a difi-culdade de entender a diferença entre “ano civil”e “ano letivo”, um professor perguntou aos cole-gas: “Mas se a minha comunidade resolver que onosso ano letivo deva durar cinco anos, será quepode?”. Após algum debate, quase todos profes-sores concordaram que poderia. Então o profes-sor perguntou: “Mas o meu pagamento vai serpelo ano letivo ou pelo ano civil?” Ninguém sou-be formular uma resposta que convencesse o pre-feito ou o secretário de Educação a pagar o mes-mo salário ao professor indígena cujo calendárioescolar coincide com o ano civil e ao outro que“demora” cinco anos para concluir um ano letivo.

A última indagação veio do curso de formaçãodos professores Xinguano após a conclusão dosestudos sobre o tema “Legislação”, em que nos de-bruçamos – literalmente – sobre textos da legisla-ção estadual de Mato Grosso, que tratavam da car-reira do Magistério, de concurso público, do siste-ma único, dos sistemas próprios, essas coisas. Apósuma semana de estudos, os professores chegarama algumas dúvidas, que pretendo compartilhartambém com vocês. A primeira diz respeito à legi-timidade de se “exonerar” um professor indígenaquando não há consenso entre o poder público e acomunidade escolar: o poder público pode exone-rar um professor indígena à revelia da comunida-de? Ou a comunidade pode “exonerar” um profes-sor concursado à revelia do poder público?

A segunda questão trata das condições de osmunicípios cooperarem com os estados na ofer-ta de educação escolar, especialmente na exigên-cia de constituírem sistemas próprios. Em MatoGrosso, por exemplo, apenas três municípiosestão constituídos em sistemas próprios, aindaque a maioria das escolas indígenas esteja vin-

culada aos municípios. A administração estadu-al não tem intenção de assumir diretamente asescolas indígenas e está propondo a consolida-ção do Sistema Único de Educação Básica pre-conizado pela LDB, mas não previsto na Resolu-ção nº 3. Nesse contexto, perguntou-se comoproceder para que as escolas indígenas não se-jam prejudicadas em termos de recursos, acom-panhamento, concursos, carreira, serviços etc.6

Por essa breve amostra, percebe-se que ain-da perdura – se não se amplia – a necessidade de“normatização” das escolas indígenas, nãoobstante as diretrizes, parâmetros, referencial,resoluções etc. Grande parte dessa normatizaçãoseria desnecessária, creio, se mudássemos o es-pectro de nosso olhar e desistíssemos de ideali-zar um único protótipo de escola diferenciada.

Creio que uma política pública de EducaçãoEscolar Indígena deva apoiar-se em outras ba-ses que não a normatização da diferença e a su-pressão da alteridade. Elas materializam o dis-curso e a prática de um direito concedido e deuma cidadania conferida e, portanto, tornam-seveículos de dominação e de imposição.

Uma política pública de educação deve nas-cer dos professores, das lideranças e das comu-nidades indígenas e por elas ser controlada. Masisso não significa que o poder público, as insti-tuições acadêmicas e a sociedade civil em geraldevem ignorá-la ou eximir-se de sua responsa-bilidade. Ao contrário, cabe-lhes, conjuntamen-te, discuti-la, consolidá-la, viabilizá-la, e nãoapenas implementá-la enquanto tal, o que su-põe uma estratégia de ação, que pode expressar-se pelos seguintes princípios fundantes:

• a garantia da participação indígena em to-das as etapas de elaboração, execução e ava-liação dos programas;

• o reconhecimento da legitimidade de insti-tuição parceira por meio da avaliação e daavalização dos povos ou comunidades indí-genas com as quais cada instituição atua;

• a apresentação e a aprovação dos programaseducacionais pelo Conselho de EducaçãoEscolar Indígena do Estado de Mato Grosso

6 Até esta data, não obtivemos resposta à consulta formulada ao Conselho Nacional de Educação sobre a aplicação da Resolução nº 3 emestados que constituírem o Sistema Único de Educação Básica.

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(CEI/MT), fórum interinstitucional e pari-tário composto por instituições e represen-tantes indígenas;

• a manutenção de vínculo permanente entreas atividades escolares e as demais iniciati-vas do campo da saúde, da regularizaçãofundiária e da economia indígena;

• a compatibilização dos programas escolarescom o calendário sociocultural das socieda-des indígenas;

• o compromisso da continuidade e termina-lidade dos trabalhos e da manutenção deequipes técnicas aptas a acompanhar asações de Educação Escolar Indígena desen-volvidas no estado sob a coordenação da Se-cretaria de Educação;

• a escolha do Conselho de Educação EscolarIndígena do Estado de Mato Grosso (CEI/MT) como foro privilegiado para dirimir dú-vidas e controvérsias relativas à educaçãoescolar.

Para concluir, estendo essa reflexão paraalém da temática da Educação Escolar Indígenae me atenho especificamente aos contornos dasatuais políticas públicas no Brasil.

Como nos ensina Octavio Ianni, as políti-cas públicas equacionam-se pela conjugaçãode três elementos fundamentais, que ordenamas relações entre o Estado e os cidadãos: a na-tureza, o alcance e o conteúdo das ações pro-postas; as formas de decisão e de atuação po-lítica; e a disposição e a capacidade de com-posição com as organizações da sociedade ci-vil, sejam elas propositivas, reivindicatórias oude contestação.

Portanto, uma política de educação esco-lar que se pretenda convergente com os inte-resses de sua clientela não poderá descon-siderar essa conjugação. No caso específico daEducação Escolar Indígena, implica, entre ou-tras iniciativas, um permanente exercício denegociações, cooperações, parcerias etc. Semesses exercícios, não acredito ser possível oexercício do controle indígena sobre as suasescolas. E, como já foi dito antes, normatizaçãonão é sinônimo de adequação. Para ser umaboa escola indígena, é preciso antes que elaseja indígena.

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143

Legislação escolar indígena

PAINEL 5

Legislação em EducaçãoEscolar Indígena

Vilmar Guarani

Funai

ResumoEste resumo apresenta alguns enfoques da le-

gislação em Educação Escolar Indígena:

Enfoque histórico. Visa a demonstrar a reali-

dade da Educação Escolar Indígena em sua primei-

ra fase na história do Brasil, bem como no passado

recente, nos moldes da legislação então vigente,

com as suas características integracionista e

assimilacionista.

Enfoque atual. Desenvolvemos um relato so-

bre a legislação, observando principalmente a Lei

nº 6.001/73, o Estatuto do Índio, a Constituição Fe-

deral, decretos, portaria interministerial, a Lei de

Diretrizes e Bases e o Plano Nacional de Educação,

entre outras. Veremos, ainda, os instrumentos in-

ternacionais de defesa e interesses dos povos indí-

genas elaborados com a participação ativa dos in-

dígenas e de suas organizações para que o Estado

brasileiro passasse a adotar uma posição mais aber-

ta em prol dos direitos indígenas. Ainda, no aspec-

to da atualidade, buscar-se-á compreender a ques-

tão da coexistência entre o Estado brasileiro e as

culturas diversas representadas nos mais de 200

povos indígenas, com seus usos, costumes, línguas,

crenças e tradições, e a importância da Educação

Escolar Indígena como um dos direitos coletivos

dos povos indígenas.

Enfoque da perspectiva. Discute a questão

da Educação Escolar Indígena no Projeto de Lei

nº 2.057/91 e a da aplicabilidade da legislação em

vigor e outras possibilidades.

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PPPPPAINEL AINEL AINEL AINEL AINEL 66666

OS ETNOCONHECIMENTOSNA ESCOLA INDÍGENA

Carlos Alfredo Argüello

José Augusto Laranjeiras Sampaio

Roseli de Alvarenga Corrêa

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ResumoO etnoconhecimento é peça fundamental na

nossa proposta de construção de uma escola indíge-

na que seja algo mais que uma escola de brancos pen-

sada para índios. Propomos uma escola que incor-

pore o saber dos anciãos, as características da educa-

ção indígena ancestral, integrada à comunidade, e

que resgate da escola do branco os saberes necessá-

rios a seu empowerment e à prática da educação

libertadora.

O dicionário Aurélio traz como primeiraacepção da palavra “escola”: “estabelecimentopúblico ou privado no qual se ministra, sistema-ticamente, ensino coletivo”.

“Estabelecimento de ensino coletivo” pressu-põe alguns professores, muitos alunos, em localdeterminado. A escola indígena tem o direito le-gal de ser uma escola diferenciada. Isso lhe con-fere um grau de liberdade para organizar os seuscurrículos, administrar os seus horários e a pos-sibilidade de organização bilíngüe com direito aalfabetização na primeira língua etc.

A escola indígena é responsabilidade últimadas prefeituras e dos estados e tem que se enqua-drar nas diretrizes de orientações básicas educa-cionais da Federação.

A tendência geral hoje é de que os professo-res das escolas indígenas sejam índios e, priorita-riamente, pertençam à mesma etnia dos alunos.Mesmo assim, a escola indígena é a escola dobranco para o índio. É a mesma escola que o bran-co pensou para ele, mas a serviço do índio. Essaescola possuirá, então, muitos dos defeitos quepossui a escola do branco, a que está ligada gene-ticamente, com alguns deles apenas suavizadospelo direito à diferenciação.

A escola do branco prestigia o pensamento

cartesiano, o reducionismo mecanicista, adisciplinaridade, traz implícita a idéia ou princí-pios do progresso, a escrita, o cálculo, a teoria, oacúmulo, o consumismo, a competição e, apesarde propiciar a utilização dos meios globais de in-formação, ignora o seu entorno imediato, ignorao conteúdo cultural dos seus alunos e familiarese tende a uma padronização estéril.

As correções de rumo, necessárias, foram re-alizadas dentro do marco da pulverização disci-plinar e do apelo a tendências para as quais nemos professores nem as escolas estão preparados:transdisciplinaridade e visões estreitas deambientalismo.

Escola indígenaA escola como uma estrutura humana,

conceitual, onde se aprende, sempre esteve pre-sente na Educação Indígena, mas não propicia umensino coletivo, e sim uma educação artesanal,preceptoral, individualizada, contextualizada e naqual se fomenta o fazer. Professores são a família,e a família estendida.

Essa escola, baseada na oralidade e na práti-ca exaustiva, não pressupõe competitividade, nãoé dividida em disciplinas e predispõe oafloramento do pensamento complexo.

No momento, essa escola está em perigo deextinção. O recente aparecimento da figura do jo-vem professor índio assalariado cria outras instân-cias de poder, saber, comunicação e liderança queperturbam a estrutura ancestral (Bandeira, 1997).Os anciões, os sábios, os antigos mestres sentem-se ignorantes diante dos avanços da “Nova Educa-ção” propiciada pela “Escola para Índios”.

Passo a relatar duas experiências, duas situa-ções vividas em locais completamente diferentese distantes.

Etnoconhecimento na Escola IndígenaCarlos Alfredo Argüello*

Unicamp – Unemat

* Coordenador da Área de Ciências Matemáticas e da Natureza das licenciaturas para professores indígenas da Unemat.

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Os etnoconhecimentos na escola indígenaPAINEL 6

Uma, na escola das etnias Baníwa-Coripaco,às margens do rio Içana, afluente do rio Negro,nas terras indígenas do Alto Rio Negro, estado doAmazonas, perto da fronteira com a Colômbia, emmeados do ano 2000.

A outra, na etapa de preparação das ativi-dades dos cursos de licenciatura para profes-sores indígenas, no campus de Barra do Bugresda Universidade Estadual de Mato Grosso, emmaio de 2001.

Em ambas as ocasiões, antigas lideranças in-dígenas, sábios anciões fizeram discursos pareci-dos, solicitando publicamente que instruíssemosos jovens professores das suas etnias, para que es-tes não fossem tão ignorantes como eles. Mas nãosão esses anciões os detentores do conhecimentoindígena que nenhum deles, enquanto tal, deveignorar? Não são eles os detentores do que a aca-demia chama de etnoconhecimentos? Não são elesos que conhecem os segredos da mata, dos rios,dos animais, os que curam as doenças, os que co-nhecem os segredos do céu, conhecem o calendá-rio astronômico que rege, na Terra, as chuvas, asmigrações das aves, as piracemas, as enchentes, otempo certo de plantar? Não são eles os que co-nhecem os rituais, as danças, as cerimônias, os quefalam com os deuses? Não são eles que conhecemo segredo da caça e são os melhores artesãos?

Quem destruiu a sua auto-estima, quem mo-dificou os seus valores de julgamento? Não será aescola evangelizadora que os queria cristãos? Nãoserá a escola integracionista que os queria inte-grados, indiferenciados? Não serão as diferentesescolas que os queriam tratoristas, cortadores decana, engrenagens microscópicas na grande má-quina da economia branca? Não estará tambéma escola indígena, na sua versão “Escola para Ín-dios”, prestigiando em demasia os conhecimen-tos e a cultura do branco em detrimento das pró-prias culturas?

Quero citar uma experiência que está no co-meço e irá frutificar somente dentro de cincoanos. Espero então, daqui a cinco anos, poder tera oportunidade de informar e prestar contas.

É nosso trabalho formar professores indíge-nas no 3o grau, licenciados em várias áreas do co-nhecimento. Coube-me a delicada tarefa de co-ordenar a área de Ciências dessas licenciaturas di-ferenciadas.

Os cursos são ministrados em etapas intensi-vas, no campus de Barra do Bugres, MT, para 200professores índios de 35 etnias diferentes.

Nas etapas intermediárias, o professor índio,enquanto leciona na sua escola, realiza tarefas,trabalhos e pesquisas ligadas ao seu curso univer-sitário. Também recebe em sua aldeia, na sua es-cola, a visita e a orientação da equipe de profes-sores do curso (docentes), que, desse modo, tam-bém interagem com a comunidade.

O trabalho, nessa etapa intermediária, visa aresgatar, para a escola, os conhecimentos ances-trais indígenas, valorizar os detentores dos dife-rentes saberes, diminuir a separação entre escolae comunidade, permitir a docentes e professoresindígenas um conhecimento melhor da realida-de nas aldeias e escolas e o diálogo direto com acomunidade.

Nesses momentos, o olho atento e treinadodo docente poderá detectar, na comunidade, sa-beres, valores, práticas que poderão ser objeto deestudo sistematizado com a finalidade de sua in-corporação escolar. Por exemplo, junto com asprofessoras Marta Azevedo e Judite Albuquerque,realizamos na Escola Paanhali, no rio Içana, noAmazonas, da etnia Baníwa, um trabalho de res-gate, com os professores da escola, do calendárioastronômico Baníwa. Trouxemos para as discus-sões vários “anciões”, que deram sua importantecontribuição.

Em etapa posterior, reunimo-nos em SãoGabriel da Cachoeira, AM, com alguns desses pro-fessores indígenas e mais cinco anciões. Trabalha-mos durante vários dias, até estabelecermos, emforma definitiva, um calendário natural circulare um calendário astronômico explicados emBaníwa e em Português.

Da riqueza do calendário natural, surgirammuitos importantes ensinamentos, como, porexemplo, o equilíbrio ecológico presa/predadorna sua versão indígena, as constelações Baníwaforam “traduzidas” para as constelações acadêmi-cas e vice-versa, possibilitando o diálogo intelec-tual e a motivação para seguir estudando o céu,os fenômenos astronômicos, climáticos etc., si-multaneamente, a partir dos diversos olhares.

É interessante comentar que a introdução docomputador e um programa de simulação do céuencantaram os mais velhos, que, em pouco tem-

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po, foram capazes de utilizar esse novo instru-mento sem constrangimento nenhum. Cito essapassagem como um exemplo de saberes comple-mentares.

Nossa proposta é incorporar, nas atividades daescola, a comunidade, os velhos mestres, seus sa-beres e ensinamentos, os conhecimentos tribais,enfim, derrubar os muros1 que a escola do brancopossui e que a separam da comunidade e da reali-dade que a rodeia, o que a escola para índios, comocitei anteriormente, herdou em algum grau.

Em contrapartida vejo a escola para índioscomo uma forma de “potencialização” ao estilofreiriano. Segundo Paulo Freire, potencialização,ou empowerment, é um processo que “permite aoestudante interrogar e, seletivamente, se apropri-ar daqueles aspectos da cultura dominante, quevão lhe prover as bases para novas definições etransformações, em vez de meramente servir àampla ordem social estabelecida”.

Continuando com Paulo Freire, nosso grandemestre, gostaria de citar, da Pedagogia do opri-mido, a seguinte afirmação: “Ninguém educa nin-guém. Ninguém educa a si mesmo. Os homens seeducam entre si mediatizados pelo mundo!”

Comentar essa sentença inspiradora ocupariahoras, mas vamos nos perguntar tão-somente:Qual é esse mundo mediatizador? Intermediador?

Existem tantos mundos como pessoas há. Aexperiência de vida da pessoa constrói o seu mun-do, e as comunidades étnicas mais ou menos iso-ladas, culturalmente definidas, produzem mun-dos individuais com alto grau de semelhanças.Poderíamos, simplificando, então idealizar ummundo “padrão” étnico ou tribal.

Mas o mundo do professor indígena é aber-to a outras experiências e visões de mundo? E omundo do professor de professores indígenas?Como se pode conceber ou construir um mun-do mediatizador?

Na nossa tradição educacional, a escola desco-nhece e ignora o processo de mediatização pormundos que nem sequer ensinam a ler. Será neces-sário que, entre os mundos a dialogar, exista umainterseção que gere o mundo comum, que será omediatizador. Então, o diálogo de características

interculturais servirá para ampliar o mundo comuma ambos, num processo cuja meta ideal, mas im-possível, seja a união desses mundos individuais.

É nossa intenção que a escola seja o espaçodialógico para a ação mediatizadora. Note-se queessa iniciativa transborda os limites da educaçãoem geral, que irá se beneficiar, sem dúvida, daexperiência indígena na educação. Parafrasean-do Bartomeu Melià (1998), “Não há um proble-ma de Educação Indígena, há soluções indígenasao problema da educação”.

A abertura de 200 vagas para os cursos de li-cenciaturas, reservadas aos professores indígenas,equivaleriam, na população brasileira, à abertu-ra de aproximadamente 100 mil vagas, resguar-dando as proporções populacionais.

A necessidade de construir o seu próprio ma-terial didático, os textos, os equipamentos, emconstante diálogo com a realidade em volta, in-cluindo a pobreza, é um desafio que, uma vez ven-cido, como tudo leva a pensar que o será, consti-tuir-se-á em modelo a ser seguido por outras ins-tâncias fora da Educação Indígena.

A revalorização da escola, de uma escola cul-turalmente comprometida, mas aceitando a pers-pectiva de Educação Libertadora, poderá servir demodelo a outras minorias, movimentos sociais e,basicamente, à escola tradicional, qualquer queseja o nível econômico dos seus alunos, para que,engajada social, crítica e construtivamente, torne-se uma solução e deixe de ser um problema.

BibliografiaBANDEIRA, Maria de Lourdes. Formação de professores

índios: limites e possibilidades. In: CONSELHO DE

EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DE MATO GROS-

SO. Urucum, jenipapo e giz: Educação Escolar Indíge-

na em debate. Cuiabá/MT: Seduc, 1997.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz

e Terra, 2002.

FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura

do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra,

1990.

MELIÀ, Bartomeu. Ameríndia. Cuiabá/MT, 1998.

1 Ver Ciranda das Ciências – A Ciência na Escola: Palestra “A escola sem muros”.

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Os etnoconhecimentos na escola indígenaPAINEL 6

Tomo como ponto de partida para essas re-flexões a idéia de que a Educação Escolar In-dígena, concebida como “específica” e “dife-renciada”, como a pretendemos e a buscamosconstruir, não deixa de inscrever-se em umcampo intersocietário de diálogos e de dispu-tas políticas e simbólicas.

Nesse campo, as próprias idéias de “dife-rença”, de “especificidade” e outras do gêneroaparecem como valores, como objetivos a se-rem alcançados e garantidos e, também, exi-bidos e realçados.

Aqui, a “cultura indígena” aparece como odomínio social por excelência, por meio doqual tais valores se expressam, e a “escola in-dígena”, como a via institucional para a suaformalização e reprodução.

Mas, sendo o campo da Educação EscolarIndígena necessariamente intersocietário e,mais que isso, definido pela presença, por umlado, de um pólo dominante, o da sociedadenacional, “doador” e “prestador” de bens eserviços – formação de professores, infra-es-trutura, material didático, salários, alimentosetc. –, e, por outro, de um pólo “receptor”, odas sociedades indígenas, não se deve suporque os valores e conceitos caros ao campo,como “diferença”, “especificidade” e “cultura”,produzam-se e legitimem-se à margem dosdiálogos e disputas políticos e simbólicos ine-rentes ao campo, sem que, sobre eles, impri-mam-se as marcas ideológicas do pólo domi-nante, ainda que tais diálogos e disputas re-queiram, formal e necessariamente, expres-

sões de “autenticação” dos ditos valores porparte do pólo dominado.

Assim, em uma palavra, cabe indagarcomo, nesses diálogos e nessas disputas,sabidamente desiguais, e por meio de que ca-nais de poder e de que recursos simbólicos seproduzem e se legitimam, para todo o campoda Educação Escolar Indígena – e mesmo paramais além dele –, as definições do que sejamespecificidade e diversidade culturais indíge-nas e do que podem essas, enfim, estar a sig-nificar para cada um dos pólos e no contextoda relação entre esses.

Pretendo aqui demonstrar, com base emminha própria experiência em programas deformação de professores indígenas, como a so-ciedade nacional imprime, por meio sobretu-do de seus agentes diretamente engajados nocampo da Educação Escolar Indígena (profes-sores formadores, agentes administrativosetc.), as suas próprias concepções de “culturaindígena”, “especificidade cultural” etc. e comoo pólo indígena tende a dialogar com tais con-cepções, a reproduzi-las ou a contrapô-las.

Ao ser convidado para participar, como an-tropólogo “especialista” em povo Pataxó, doPrograma de Implantação de Escolas Indíge-nas em Minas Gerais, descobri que uma das de-mandas, talvez a mais importante delas,dirigida a mim e a alguns outros colegas – enão infreqüente em circunstâncias semelhan-tes que eu próprio teria oportunidade de vir anovamente vivenciar – por parte tanto de pro-fessores indígenas em formação, quanto de

O “resgate cultural” como valor:reflexões sobre experiências de umantropólogo militante emprogramas de formação deprofessores indígenas no Nordestee em Minas Gerais

José Augusto Laranjeiras Sampaio

Associação Nacional de Ação Indigenista (Anai) – Universidade do Estado da Bahia (Uneb)

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muitos dos responsáveis por essa formação,dizia respeito à minha possível contribuiçãoem um processo percebido como necessário àsditas formação de professores e implantaçãode escolas diferenciadas, claramente definidopor todas as personagens presentes no campocomo “resgate cultural”.

Em que consistiria, então, o “resgate cul-tural” sobre o qual se esperava que pudésse-mos, eu e outros antropólogos, percebidoscomo “especialistas” em “culturas indígenas”,intervir favoravelmente?

Antes de tentar responder a essa questão,cabem aqui duas digressões: uma, relativa acomo a sociedade brasileira vem reproduzin-do suas concepções a respeito de idéias como“diferença e especificidade culturais” indíge-nas, de larga aplicação e de eficácia simbólicabastante perceptível, hoje, no campo da Edu-cação Escolar Indígena; e a segunda, relativa acomo essa mesma sociedade e seus agentesdiretos, no dito campo, tendem a perceber aconfiguração histórica e social tida como típi-ca da maioria das sociedades indígenas con-temporâneas em áreas como aquelas em quetenho trabalhado, em estados do Nordeste eem Minas Gerais.

No que diz respeito à primeira considera-ção, sabe-se que não é difícil à maioria dosagentes da sociedade nacional ora engajadosna implantação e na garantia de sistemas di-ferenciados de Educação Escolar Indígena per-ceber, de modo crítico, as clássicas visõesetnocêntricas que negativizam a cultura do in-dígena em relação à de ego, por meio de opo-sições, como “preguiçoso” x “trabalhador”, “pri-mitivo” x “civilizado”, “atrasado” x “desenvol-vido”, “fetichista” ou “infiel” x “temente aDeus”, e muitas outras, que tendem mesmo aaproximar a condição indígena à bestialidadee a das sociedades civilizadas ou ocidentais àprópria plenitude da condição humana.

Por outro lado, ao abandonar tais visõespara transpor-se a outras tendentes a valorarpositivamente “culturas indígenas” e sua “di-versidade”, a consciência crítica de agentes dasociedade nacional dificilmente percebe estarcom freqüência, ainda assim, arraigada a vi-sões de “cultura” e de “diferença” muito pró-

prias às autopercepções de sua própria socie-dade, permanecendo, pois, etnocêntrica e dis-tante da produção de um real diálogo culturalcom as posições indígenas.

Na modalidade “positivada” das concep-ções etnocêntricas de “culturas indígenas”, asoposições anteriormente referidas dão lugara outras nas quais tais “culturas” assumem,em relação à cultura de ego, o pólo “favorá-vel”, como em autenticidade cultural x dege-neração da cultura por colonialismo cultural,cultura de massa ou globalização; harmoniacom a natureza x exploração predatória doambiente; igualitarismo, amor ao próximo ealtruísmo x desigualdade social, individualis-mo e competitividade desumana; sabedoriamilenar x futilidades e modismos; vida sau-dável em ambiente “natural”, “mata” x vidainsalubre em ambiente citadino, poluído; vidaespiritual rica x pragmatismo materialista;etnoconhecimentos x cientificismo estéril etc.

Ao produzir tais oposições, o pensamentodos agentes do pólo dominante, longe de ha-bilitar-se à compreensão e ao diálogo com opólo dominado, apenas projeta sobre este,idealizando-o, a própria “má consciência” desi mesmo.

Nessa modalidade, o pólo “autêntico” épercebido como idealmente vivido em umacondição de quase “encantamento”, à qual todaaproximação do pólo “degenerado” é percebi-da como “contaminação”, “deturpação”,“corrupção” e “ameaça cultural”.

Aqui, os índices de maior ou menor “auten-ticidade”, vale dizer, de maiores ou menores“taxas” de “diversidade cultural”, medem-sesempre por graus de afastamento do que sepercebe como sendo os domínios culturais dopólo “corruptor”.

É evidente que os sinais diacríticos da “di-versidade” ou da “autenticidade” – poder-se-ia dizer mesmo da “pureza” – culturais são se-lecionados de acordo com os próprios critéri-os de “diferença” e de “cultura” próprios aopólo dominante.

Assim se reproduz a clássica imagem de ín-dio – nu, forte, emplumado e cercado de vege-tação luxuriante – tão cara à nossa consciên-cia nacional, desde, pelo menos, o Peri, de José

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de Alencar, continuamente atualizado, inclu-sive em personagens “reais” de nossa mídiacontemporânea, ao cacique Metuktire Raoni.

Em suma, são nos sinais diacríticos de “di-ferença cultural” cuidadosa e interessa-damente selecionados pela consciência naci-onal e por grupos organizados de seus agentesque os projetam, em função de suas própriasnecessidades ideológicas de distinção internaou externa, positiva ou negativamente, sobreas sociedades indígenas, em que parecem, emprincípio, residir as ditas concepções de “es-pecificidade” e de “cultura” indígenas domi-nantemente presentes no campo da EducaçãoEscolar Indígena.

Quanto à segunda digressão, quero assina-lar que é justamente no contexto ideológico re-ferido que se deve buscar a inscrição da per-cepção que tem a consciência de tais gruposde agentes da sociedade nacional a respeito desociedades indígenas imersas em segmentossociais regionais com longo tempo de consti-tuição histórica por processos de colonizaçãode origem européia e capitalista.

Em que pese o que poderia ser percebidocomo inestimáveis signos de “especificidadecultural” dessas sociedades, em seus ricos enão raros intensos processos de produção e re-produção, invenção ou reinvenção de suas pró-prias identidades e de seus ordenamentos so-ciais internos com relação à sociedade envol-vente, a dita consciência nacional tende, emfunção da imersão ou interpelação mais estrei-ta dessas sociedades com segmentos sociaisregionais, a percebê-las apenas como resulta-dos de processos de “corrupção” sociocultural,ou como “vítimas” do que costumam definircomo “aculturação”.

Em síntese, em um modelo ideológico queconcebe “as verdadeiras culturas indígenas”como estados de “encantamento”, de “pureza”,resultantes de isolamento, devendo ser, pois,idealmente, imutáveis, e no qual a “especifici-dade” e a “diversidade” são funções desse mes-mo distanciamento do “contágio” com outrossistemas culturais, ou do que se costuma defi-nir como “preservação da cultura”, não podemesmo haver lugar para que se percebam cul-turas como resultantes de processos históricos,

muito menos “especificidades” e “diferenças”como algo factível de se produzir em proces-sos sociais de intensa inter-relação cultural esimbólica entre os grupos “diferenciados”, enão necessariamente o contrário.

Assim, um tal modelo não consegue pro-duzir a respeito de tais sociedades indígenasnada mais do que o que se poderia chamar deuma “visão lacunar”, por meio da qual essas sãopercebidas apenas como “sociedades da au-sência” ou “sociedades da perda”. Aqui, vê-senelas não o que elas “são” ou o que elas “têm”,mas sempre o que elas teriam “deixado de ser”ou “deixado de ter”, o que teriam “perdido”, queé, invariável e genericamente, qualificadocomo tendo sido “a cultura”.

Não é preciso enfatizar muito que, aqui,“culturas” não são percebidas como conjun-tos semânticos resultantes de processos so-ciais históricos, vale dizer necessariamentedinâmicos, mutáveis, mas como algo dotadode certa “substância original”, perceptível em“traços” ou “elementos” culturais bastante“palpáveis”, como “a língua”, “os rituais”, “osconhecimentos tradicionais”, consubstan-ciados em visões próprias ou “etnoconheci-mentos”, costumeiramente associados às nos-sas próprias ciências, em especial às “da na-tureza”, da Botânica à Astronomia.

Ora, se sociedades indígenas, como a mai-oria das do Nordeste e de Minas Gerais, sãopercebidas como “sociedades da falta”, e se osprocessos históricos que, de fato, constituí-ram-nas são, inversamente, tratados apenascomo “processos de perda”, de “perda da cul-tura”, não será difícil deduzir qual seja a idéiade “resgate cultural” presente em um tal mo-delo ideológico, bem como nas concepções deEducação Escolar Indígena dele derivadas.

Também não é difícil imaginar o que, emtais circunstâncias, supõe-se que se possa es-perar do antropólogo, ou seja, daquele que éentendido como o especialista no conheci-mento de “culturas” e, portanto, como alguémpossivelmente apto a, por seus estudos, desen-volver artes capazes de trazer de volta à “cul-tura indígena” a sua “substância” perdida.

Penso que, no âmbito da concepção de cul-tura inerente ao modelo ideológico tratado, a

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idéia de “resgate cultural” pode ser percebidacomo uma espécie de proposição de anulaçãoda história, um procedimento pelo qual se po-deria, ao menos em parte, “devolver” às socie-dades indígenas a sua “essência” perdida e, nolimite, fazê-las “retornar” ou “reviver” o seu es-tado “original” de “encantamento” e de “ver-dadeira” “diversidade”.

Não posso deixar de assinalar também,aqui, a presença de uma não infreqüente vi-são, a um só tempo “piedosa” e “culpada”, daconsciência nacional com relação às socieda-des indígenas. Ao dispormo-nos a apoiá-las emsua busca do “resgate cultural”, estaríamostambém, a um só tempo, contribuindo para oseu retorno a um estado perdido de autentici-dade, solucionando, por um lado, o que ten-demos a identificar como a causa de sua su-posta inadaptação ou, mesmo, infelicidade e,por outro, expiando a nossa própria culpa se-cular pelas “perdas” que lhes causamos.

De fato, espero que possa estar claro quenão percebo aqui mais que a eloqüente expres-são de formas bastante perversas e etnocên-tricas de dominação simbólica – vale dizer“cultural” –, em que das sociedades indígenassão expropriadas suas imagens, ou auto-ima-gens, e sua historicidade, e transmutadas, con-forme dito, em “sociedades da falta”, em fun-ção da manutenção e da reprodução, no âm-bito da ideologia dominante, das concepçõesde “cultura” e de “diferença cultural” preva-lentes na sociedade nacional – e potencialmen-te abaláveis por uma compreensão históricamais adequada sobre muitas das sociedadesindígenas contemporâneas – ou mesmo deimagens críticas dessa mesma sociedade, ca-ras a alguns de seus segmentos.

Para as sociedades indígenas em questão,o “resgate cultural” tende, com freqüência, aser percebido, como seria de se esperar emcaso de segmentos sociais subalternos às con-cepções ideológicas dominantes, nos mesmostermos dessas concepções, ou seja, como algoa ser perseguido dentro dos parâmetros deuma idéia reificada de “cultura” e em funçãode sua própria incorporação da “visão lacunar”que delas tem a consciência nacional.

Em especial, para muitos dos professores

indígenas que conheci, ainda comoingressantes em programas de formação “es-pecífica” e “diferenciada”, a empreitada do “res-gate cultural” parecia impor-se-lhes como umdesafio e uma missão inquestionavelmente ne-cessários. Egressos, em sua imensa maioria, deescolas regionais “indiferenciadas” ou daque-las até recentemente mantidas pelo regime tu-telar do indigenismo oficial e, enquanto tal, jápercebidas por eles como agências de “destrui-ção” de suas culturas, tinham incorporada umaaguda consciência de seu papel como agentestransformadores do sistema escolar até entãovigente, mas sem disporem de uma perspecti-va crítica da idéia do “resgate cultural” que, aocontrário, lhes era apresentada, ainda que mui-tas vezes sob formas bastante indiretas, comorequisito indispensável à própria implementa-ção de uma Educação Indígena de fato “espe-cífica” e “diferenciada”.

Vê-se, então, assim, como curiosamente asidéias de “especificidade” e de “diversidade”podem, de fato, vir a servir justamente ao seuoposto, uma vez que o que se impõe pela de-manda por “resgate cultural” é, na realidade, aadequação de sociedades indígenas de fato di-ferenciadas a um padrão, a um estereótipo de“cultura indígena” imposto pelo sistema ideo-lógico dominante.

Se já não se concebe a educação escolaroferecida às sociedades indígenas como ins-trumento para a sua “necessária e inevitável”dissolução sociocultural na sociedade envol-vente, ao se lhes autorizar, ao contrário, umaeducação “específica” e “diferenciada”, não sedeixa de se lhes impor, muitas vezes, até mes-mo sem que se o perceba, a sua redução a umideal “cultural” “indígena” produzido e impos-to pela sociedade nacional, cujo imagináriotende a identificá-lo e aproximá-lo de algumassociedades indígenas “reais”, como algumas daAmazônia.

Opera aqui, então, um processo de domi-nação cultural no qual os índios são levados ase tornarem, a um só tempo, vítimas e cúm-plices de seu “seqüestro simbólico”, ou, diriamelhor, a se tornarem verdadeiros “reféns”nesse “seqüestro”, no qual o “resgate” é de fatopercebido como um necessário “preço a pagar”

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Os etnoconhecimentos na escola indígenaPAINEL 6

pela obtenção de reconhecimentos à legitimi-dade de seus pleitos, sobretudo pleitos por di-reitos “diferenciados”.

Não saberia relatar com precisão como re-agi, de início, às diversas formas sob as quaisse me apresentavam demandas por contribui-ções em processos de “resgate cultural”. Diriaque tentava tratar “criticamente” tais deman-das sem, contudo, dispor de argumentos ou deoutros meios capazes de eliminá-las ou, mui-to menos, de atendê-las.

É evidente também que não poderia, porforça apenas de minha própria “consciênciacrítica”, intervir significativamente no quadroideológico que se me apresentava. Assim, foide fundamental importância todo um proces-so de discussão com muitos outros professo-res formadores e, sobretudo, com os própriosprofessores indígenas.

Apesar da “consciência crítica”, não me fur-tava a colaborar com o “resgate cultural”, apre-sentando aos professores indígenas coisas,como vocabulários de línguas de seus supostos“antepassados”, relatos dos “seus” costumes,feitos por viajantes, e a parca iconografia dis-ponível sobre a maioria dos grupos da regiãonos períodos colonial e imperial etc. Com isso,o interesse inicial, totalmente dirigido à recu-peração de “perdas culturais”, foi se complexi-ficando em um interesse por conhecer melhoros próprios processos históricos de tais “per-das”, o que se me afigurou como uma tendên-cia interessante no sentido da produção deperspectivas mais críticas acerca da idéia de“resgate”, ou melhor, de uma complexificaçãodessa idéia, capaz, por exemplo, de pensar o“resgate” de suas historicidades ou de pensar o

“resgate da cultura” como o resgate de informa-ções necessariamente históricas e, portanto, di-nâmicas, deixando, assim, de ser percebidascomo referentes a uma suposta “cultura de ori-gem”, descontaminada de influências e livre de“perdas”.

De modo geral, um maior interesse de-monstrado no conhecimento de suas históri-as não é, por si só, suficiente para pôr em ques-tão algumas concepções dominantes, como,por exemplo, a de uma inquestionável conti-nuidade histórica das atuais unidades sociais,ou etnias, desde um período pré-colonial. Aconsideração de que a própria constituição detais unidades sociais e étnicas possa ser algoresultante dos próprios processos coloniaistende, quase sempre, a ser rejeitada como umdado incômodo e ameaçador.

Seja como for, penso que a Educação Es-colar Indígena específica e diferenciada pode,sim, caminhar no sentido da produção de umconhecimento próprio das sociedades indíge-nas sobre si mesmas. Um conhecimento, a umsó tempo, informado das concepções teóricasde nossa História e de nossa Antropologia e,assim, capaz de livrar-se das perversas tutelassimbólicas de ideologias dominantes da soci-edade nacional, mas capaz também de engen-drar formas próprias de autopercepção de suaspróprias historicidades e culturas.

Se assim for, essa será, certamente, a pe-dra angular para o tratamento de quaisquer“etnoconhecimentos” na escola indígena, ouuma espécie de “metaetnoconhecimento”; semdúvida, uma expressão transformada e inova-dora, e não tolamente revivalista, da velhaidéia de “resgate cultural”.

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O tema proposto “O etnoconhecimento e aEducação Matemática na escola indígena”pode sugerir, num primeiro momento, umaabordagem sobre o modo como os educado-res se utilizam do etnoconhecimento de umpovo no exercício de sua prática pedagógica naEducação Escolar Indígena. Esse, naturalmen-te, é um dos focos para tal abordagem. No en-tanto, penso que, antes de enfocar como a Edu-cação Escolar Indígena pode estar se utilizan-do do etnoconhecimento específico de umpovo, de aspectos de sua cultura, de seus mi-tos e crenças, de seu saber e fazer, devo abor-dar primeiramente a escola indígena, uma ins-tituição garantida legal e constitucionalmen-te nos dias atuais e pleiteada pela maioria dospovos indígenas. Nessa perspectiva, a aborda-gem ao tema proposto pede, antes de tudo, quese pense e se pergunte e que se levantem al-guns pontos de vista sobre a Escola Indígena.

A abordagem que farei assenta-se sobre aminha própria vivência como educadora não-indígena, que atua em cursos de formação deprofessores indígenas na área de Matemáticae Educação Matemática. Dúvidas, reflexões,críticas, questionamentos estavam e estãosempre presentes no exercício dessa prática,mas também há espaço para o sonho e o pos-sível, e, se hoje já temos algumas respostas,elas não se colocam como verdades absolutas,universais, mas como verdades relativizadasem cada cultura, espaço e tempo.

Nesse contexto, portanto, em que a críticae a possibilidade podem estar presentes, vejoque uma das direções a ser trilhada para a Edu-cação Indígena aponta para modos de apren-dizagem abertos – para as experiências e os co-nhecimentos das diversas culturas –,investigativos e, sobretudo, críticos.

“Por que aprender Matemática na escolaindígena?”, “Que Matemática deve ser ensina-

da e aprendida?”, “Como trabalhar Matemá-tica na escola indígena?” são perguntas feitascom freqüência no âmbito mais restrito daEducação Matemática. As respostas, temos ci-ência disso, alojam-se em terreno mais am-plo e delineiam-se à medida que as idéias sevoltam para a compreensão da educação eescola indígenas na sua historicidade e com-plexidade.

Quando se coloca a possibilidade de criare desenvolver situações pedagógicas, em cur-sos de formação de professores indígenas, quevalorizem as experiências de vida dos alunos,o conhecimento de seu povo, sua história e cul-tura, e que levem em conta suas aspirações,impõe-se a necessidade de conhecer tais aspi-rações e escolhas do povo indígena para a suaeducação específica e como, historicamente,eles se constituíram. Significa, por um lado, co-nhecer melhor o indígena que se fez professorem sua comunidade: no seu trabalho na aldeiae na escola, na sua relação com as lideranças,com os pais dos alunos, com o calendário es-colar, com os materiais didáticos que selecio-na, cria e constrói para a sua prática pedagó-gica e, também, nas suas aspirações como pro-fissional da educação e sujeito ativo de sua co-munidade. Por outro lado, significa conhecero contexto histórico por meio do qual vem sedesenvolvendo a Educação Indígena no Brasile no qual se insere o modo de ser da escola edo professor indígenas e dos cursos de forma-ção de professores indígenas.

A construção dessa trajetória investigativa,por sua vez, estrutura-se e articula-se tambéma partir das visões e das concepções dos dife-rentes segmentos − além daquelas das comu-nidades indígenas − atuantes na Educação In-dígena e, particularmente, das do educadornão-indígena. As representações e práticasdesse educador não-indígena – seu modo de

O etnoconhecimento e a EducaçãoMatemática na escola indígena

Roseli de Alvarenga Corrêa

Ufop/MG

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Os etnoconhecimentos na escola indígenaPAINEL 6

ver e entender a Educação Indígena – são con-cebidas como influenciadas e influenciandooutras representações e práticas. Na sua tota-lidade, esses modos de ver e conceber a Edu-cação Indígena e a Educação Matemática naescola indígena dos diferentes segmentos quedela se ocupam são também vertentes do ma-nancial histórico das concepções educacionaisbrasileiras e universais.

No momento atual, essa história se fazpor meio das idéias de educadores influen-ciados pelos novos ares e rumos que toma-ram, no século XX, algumas áreas de conhe-cimento, como a Antropologia, a Sociologia,a Psicologia, a Lingüística e outras. Esse mo-vimento, que eu diria em espiral, chamando-nos à reflexão sobre a escolarização formalpara as comunidades indígenas, remete-nosa uma nova interrogação, qual seja: “É neces-sária a escolarização formal para as popula-ções indígenas?”.

Uma pequena incursão na história da Edu-cação Indígena no Brasil assegura-nos que asmudanças significativas iniciadas a partir dadécada de 1970, época em que começaram asurgir neste país os movimentos propriamenteindígenas e aqueles que resultaram na criaçãode entidades civis de apoio à causa indígena,começam a produzir seus frutos. No final dosanos 1980, as várias experiências de implanta-ção de escolas indígenas com currículos e pe-dagogias próprias já aconteciam juntamentecom a produção de materiais didáticos especí-ficos e produzidos pelos próprios índios.

A partir dos anos 1990, além da intensifi-cação da pesquisa acadêmica na área, parti-cularmente entre lingüistas, antropólogos esociólogos, essa pesquisa torna-se mais re-flexiva e crítica de seu próprio trabalho. Osdias atuais têm sido marcados por uma ava-liação crítica das experiências educacionaisdiferenciadas construídas nas décadas ante-riores. Os debates, temas e problemas tor-nam-se mais específicos, sofrem uma espé-

cie de detalhamento e sofisticação e têmcomo fundo a diversidade de situações, decultura e de propostas oferecidas pelas co-munidades indígenas.

No entanto, embora se considere o peso detais constatações, a questão que ainda se co-loca, segundo o indigenista e lingüista Wilmarda Rocha D’Angelis, é: “Para que uma comuni-dade indígena quer escola? Que função a es-cola tem ou a comunidade está disposta a lheconferir?” (D’Angelis, 1999: 20).

Essas perguntas, aliadas à nossa sobre a ne-cessidade da escolarização formal para as po-pulações indígenas, não tinham como ser for-muladas no contexto e pensamento sobre Edu-cação Indígena até a primeira metade do sécu-lo passado. Antes da década de 1970, mais pro-priamente, a escola indígena foi usada como umdos principais instrumentos para a descarac-terização e destruição das culturas indígenas nahistória do contato com outras culturas, pois,“definida e gerida desde fora, imposta e estra-nha aos índios” (Lopes da Silva, 1995: 10), asescolas e programas oficiais de “educação parao índio” tinham como objetivo reforçar os pro-jetos integracionistas gerados pelo pensamen-to assimilacionista que dominava na relaçãoentre estado e povos indígenas.

Se a escola, desde o início da colonizaçãoaté poucas décadas passadas, foi imposta defora para dentro das comunidades indígenas,hoje a escola torna-se, para essas mesmas co-munidades, “uma espécie de necessidade ‘pós-contato’, que tem sido assumida pelos índios,mesmo com todos os riscos e resultados con-traditórios já registrados ao longo da história”(Dias da Silva, 1999: 64-66). Segundo a autora,a escola pode vir a ser, “hoje”,1 um instrumen-to decisivo na reconstrução e na afirmação dasidentidades, apoiada que está pelo texto legalque superou a perspectiva integracionista e re-conheceu a pluralidade cultural.

E é nas idéias que se originaram nesse pe-ríodo, pós-década de 1970 e, principalmen-

1 Esse “hoje” significa que, após a Constituição de 1988, se inaugurou no Brasil a possibilidade de uma nova fase nas relações entre os povosindígenas, o Estado e a sociedade civil. A educação formal indígena está apenas começando a ser pensada e exercida de forma diferencia-da, de modo a assegurar “às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”,segundo o que diz a Constituição de 1988, Cap. III, § I.

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156

te, pós-Constituição de 1988, que buscamosestruturar as respostas para a pergunta quefizemos sobre a necessidade da escolariza-ção formal para as populações indígenas noBrasil.

A pesquisa realizada nos vários segmen-tos envolvidos com a Educação Indígena –em particular nessa fase de mudanças e ne-gociações que, segundo Lopes da Si lva ,constituiu-se em “processo intenso, rápido,polít ica e cr iativamente inovador, [que]transformou a escola indígena característi-ca dos anos anteriores [...] em espaço de ar-ticulação de informações, práticas pedagó-gicas e reflexões dos próprios índios sobreseu passado e seu futuro, sobre seus conhe-cimentos, seus projetos e a definição de seulugar em um mundo globalizado” (1995: 10)– apontou-nos uma variedade de motivosfavoráveis à presença da escola nas comu-nidades indígenas, os quais procuramosagrupar em categorias mais abrangentes.Assim, com base na diversidade de pontosde vista e no modo como procuramos sinte-tizá-los, direi que a escola é necessária paraas comunidades indígenas, porque consti-tui-se em:

• espaço de reafirmação/revitalização de suaidentidade cultural;

• espaço de articulação de informações;

• local de reflexão sobre o destino dos povosindígenas/a escola como parte do projetode futuro dos povos indígenas;

• espaço que possibilita estruturar as rela-ções com outras sociedades;

• local de pesquisa de suas próprias neces-sidades e métodos.

A conquista de tais espaços, como já vi-mos, não se deu casualmente. Nos debatesocorridos no 1º Encontro Nacional sobre Edu-cação Indígena, em 1979, começaram a sedelinear as questões norteadoras de debatesfuturos. Nesse encontro, ficou claro o caráterisolado das experiências realizadas até então.Questionando as políticas da Funai e do Go-verno Federal, “firmava-se a postura de fazerda escola indígena um meio de fortalecimen-

to dos próprios índios, livre da opressão e au-tônoma” (Capacla, 1995: 21). A partir daí, for-taleceu-se a idéia – ainda não consensual – deque as próprias comunidades indígenas sele-cionassem e preparassem seus professoresbilíngües. Algumas comunidades ainda relu-tavam em querer “uma escola como a dosbrancos” e reivindicavam o aprendizado maisrápido do Português pela urgência da situa-ção de contato.

Foi nas universidades e nas organizaçõesindigenistas não-governamentais que as idéi-as de “fortalecimento cultural” dos povos in-dígenas encontraram campo favorável.Aprofundaram-se os debates em torno dasquestões indígenas e fortaleceu-se, entre os vá-rios segmentos da sociedade civil brasileira,em seu processo de reorganização, a consci-ência cultural e étnica indígena.

Assim, pelo menos no meio acadêmico e,digamos, ainda na teoria, era unânime a idéiade que:

De instrumento de dominação a escola indíge-

na passa a ser um instrumento de reafirmação

cultural e étnica, de informação sobre a socie-

dade envolvente e as relações internacionais,

como base para um diálogo em que os índios

são sujeitos que buscam construir seu destino

através da reflexão, escolhas e autodetermina-

ção (Capacla, 1995: 18).

Reconhecida, nos meios acadêmicos, anecessidade de uma escola indígena apoia-da em uma base de reafirmação e fortaleci-mento cultural, a questão passa também aser considerada e expressa pelos própriosíndios, particularmente após a Constituiçãode 1988. Como diz Jucineide Maria S. Freire,professora Xukuru, de Pernambuco: “A esco-la indígena tem que ser parte do sistema deeducação de cada povo, no qual se assegurae fortalece a tradição indígena” (RCNEI,1998: 58).

As palavras da professora MarineusaGazzetta vêm reforçar, justificar e esclare-cer a idéia, até então obscura, de como e apartir de quando os índios e professores in-dígenas se mostraram prontos a assumir,

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Os etnoconhecimentos na escola indígenaPAINEL 6

diante da sociedade, a sua real identidadeindígena.

Diz Gazzetta que:

[...] é muito for te a cultura da identidade,

é muito for te! Depois, as outras coisas. [...]desde que os por tugueses chegaram aqui, ospovos indígenas estavam condenados a se-

rem extintos, isso até 1988, quando aparecea primeira Constituição brasileira, que diz al-guma coisa, que garante alguma coisa. Claro

que não é de graça; todo o movimento, prin-cipalmente das organizações indígenas lá doNorte, dos povos indígenas lá do Norte, é toda

uma mobilização; eles não ganham isso degraça, mas você vê que é a primeira vez queaparecem numa Carta oficial alguns direitos.

Então, o que acontece? De repente, com es-ses direitos, eles começam a ver uma luz nofim do túnel, eles se fortalecem. [...] E quan-

do eles começam a pensar no projeto de fu-turo deles, a escola hoje faz par te desse pro-jeto; é um elemento estranho, mas já incor-

porado e ressignificado pela maioria dos po-vos indígenas [...]. E esse projeto de futuro éa reafirmação identitária, é a questão da ter-

ra, é a questão dos marcadores todos, da or-ganização social e tudo; então, a escola nãopode ser igual à escola do branco, tem que

ser uma escola coerente com esse projeto.Isso parece muito claro para eles. [...] O pro-blema esbarra no “como fazer isso”. Por cau-

sa dessa nossa escola, essa tradição, nósnão temos uma educação brasileira, não con-seguimos criar isso (Gazzetta, entrevista gra-

vada em 2/9/1999).

É dentro dessa problemática do “como fa-zer”, apontada por Gazzetta, que evidenciarei,neste trabalho, ações pedagógicas estruturadasem idéias geradas pela experiência e conheci-mentos incorporados no exercício de uma prá-tica voltada para cursos de formação de pro-fessores indígenas e, em particular, para o Cur-so de Formação de Professores Ticuna da re-gião do Alto Solimões, Amazonas – promovidopela Organização Geral dos Professores TicunaBilíngües (OGPTB).

Algumas das ações pedagógicas propos-tas na área de Matemática, durante as eta-pas do curso, e que estiveram assentadas no

etnoconhecimento do povo, expresso pormeio das suas receitas de comida da roça,dos ornamentos, dos desenhos nos tururis,do trançado das redes, dos pacarás, das al-deias, da localização e medida de suas ter-ras, da venda de produtos da roça e artesa-nato etc., constituíram-se em elementosvivificadores e significativos, por um lado,para o “desvendar e despertar” do pensa-mento matemático Ticuna e, por outro, pordemonstrarem as características de um pen-sar e fazer educação que pudessem permitirà escola indígena, como específica e diferen-ciada, ocupar os espaços aos quais realmen-te tinha e tem direito.

Com o objetivo de discutir as possibili-dades desse “como fazer” na escola indíge-na, mostro, nas linhas a seguir, um breve mo-mento de um trabalho desenvolvido no Cur-so de Formação de Professores Ticuna, ex-pondo idéias de como o etnoconhecimento,a Educação Matemática e a escola indígenapodem, juntos, numa situação de transcen-dência, oferecer condições para a promoçãodas diversas categorias que expressamos,quando se perguntou da necessidade e im-portância da escola indígena para os povosindígenas. E é principalmente no enfoqueque damos à escola indígena como espaço dereafirmação/revitalização de sua cultura quea questão do etnoconhecimento na escola in-dígena mais se fortalece.

Essa proposta que apresentamos tambémpretendeu oferecer ao professor Ticuna mo-mentos de reflexão sobre o seu trabalho comoprofessor, como criador de estratégias peda-gógicas com base em seu saber, em elemen-tos de sua cultura, expressos segundo sua pró-pria visão de mundo, sua sensibilidade ecriatividade.

O trabalho foi desenvolvido com base notexto “História do buriti”, um pequeno livro es-crito e ilustrado pela aluna Hermelinda AhuêCoelho, em 1996, satisfazendo a uma das dis-ciplinas do curso. Contando a história doburiti, a autora traz para o leitor aspectos dahistória do mundo Ticuna em sua relação coma natureza e em suas relações sociais.

Eis o texto de Hermelinda:

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História do buriti

Hermelinda Ahuê Coelho,2 aldeia Canimarú, 1996

O buriti serve para o homem comer e fazer

vinho.

Serve também para alimentar os animais.

Tem buriti no buritizal, na terra firme e nas

restingas.

As pessoas plantam o buriti perto da casa.

Os animais que comem o buriti são: anta,

veado,

jabuti, paca, quati, porco-do-mato, arara.

O buriti quando está na água não morre.

As frutas, quando amolecem na árvore, caem.

Aí os animais comem, debaixo do buriti.

O tempo de buriti é quando as frutas estão

pretas. Aí as pessoas vão buscar.

Quando o buriti está muito alto, as pessoas

derrubam para tirar os frutos.

Aí as pessoas vão buscar o buriti e dividem

entre elas.

Juntam no aturá e levam para casa. E aí deixam

quatro dias para ficar preto.

Quando já está preto o buriti, deixa em uma

vasilha com água para amolecer.

Duas horas e ele já amolece bem.

Aí as pessoas comem e fazem o vinho para

beber e tomar com farinha.

Com base nesse texto e em suas ilustrações,preparei um material para ser lido e discutidoem sala de aula com os alunos. Em sua primei-ra parte, e tendo em vista os objetivos que pre-tendia, faço as seguintes considerações:

A leitura do texto de Hermelinda nos dámuitas informações sobre essa espécie de pal-meira chamada buriti.

A autora diz para que serve o buriti, ondeele é encontrado nativo na mata e, também,que as pessoas o plantam perto de suas casas.Fala dos animais que comem seu fruto e daépoca em que as frutas estão boas para seremcolhidas pelas pessoas. As frutas são divididasentre as pessoas e levadas para a aldeia. De-pois de alguns dias, quando já amolecidas, asfrutas servem para comer e fazer vinho.

Com a intenção de escrever a “História doburiti”, a autora conta também um pouco dahistória de seu povo, fala da relação do homeme dos animais com a floresta e com essa espé-cie de palmeira, muito resistente às inunda-ções. Por meio do texto, o leitor percebe quederrubar um buriti muito alto para retirar seusfrutos ainda é uma prática, embora discutívelnos dias atuais, e salienta também, inclusivepor meio das ilustrações, alguns aspectos dasrelações sociais da aldeia, quando diz da divi-são dos frutos, de como lidar com eles e, porfim, de tomar o vinho.

Para nós, leitores, o texto de Hermelindanos faz mais conhecedores do povo Ticuna, daregião onde vive e de uma espécie nativa dafloresta, quando traz algumas respostas paraquestões do tipo:

– Para que serve o buriti?

– Onde existe buriti? Onde o homem plantaa palmeira?

– Quem come de seus frutos?

– Quando é tempo de o homem colher osfrutos?

– Como as pessoas fazem para colhê-los elevá-los para a aldeia?

– O que as pessoas fazem de seus frutos?

Além das questões sociais e culturais en-volvendo a relação entre as pessoas da aldeiae a sua vida na floresta, o texto aponta tam-bém para questões espaciais, temporais equantitativas presentes nessa relação.

Onde existe? Quando é tempo? Quantosaturás? Quantos dias? São estas as perguntasque podem ser feitas quando a intenção é co-lher o fruto e aproveitá-lo como alimento.

Podemos fazer muitas outras perguntas.Tudo depende do que já conhecemos sobre oassunto e também de nossa vontade e neces-sidade de conhecer mais, de pesquisar mais afundo e de ampliar nossos conhecimentos.

Assim, também, os inúmeros textos produ-zidos pelos professores Ticuna e seus alunos,contando a história de seu povo, a sua relação

2 Hermelinda Ahuê Coelho é professora de escola indígena e aluna do Curso de Formação de Professores Ticuna. Neste texto, deixo deapresentar as ilustrações feitas pela autora.

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Os etnoconhecimentos na escola indígenaPAINEL 6

com a floresta e os animais, seus mitos e lendas,relatando suas festas, seu artesanato, a culiná-ria, a fabricação de utensílios etc., constituem,para o leitor indígena e não-indígena, fontesinesgotáveis de conhecimento, de aprendizado,de indagações, juntamente com outros textosque trazem o conhecimento de outras culturas.Aí entram os livros, os jornais, as revistas etc.

Com esse texto da professora Hermelinda,entre muitos outros que poderiam ser coloca-dos para nosso estudo, nossas considerações enossos questionamentos – e trabalhados em si-tuação didática –, pretendemos expressar asidéias que vêm orientando nosso jeito de ser eagir durante as etapas do curso de formação deprofessores, as quais visam ao aprendizado daMatemática e, neste momento, estruturam tam-bém a criação e a organização deste trabalho(Corrêa, 1999).

Em sua segunda parte, denominada “O tex-to na sala de aula”, aponto para o uso interdis-ciplinar de “História do buriti”, pelos própriosquestionamentos suscitados nas mais diversasáreas de conhecimento, incentivando o que-rer saber mais e a pesquisa em novas fontes etextos. No caso específico da Matemática, re-fletimos com os alunos que:

A partir de agora, estaremos dando a este texto

um direcionamento para as questões matemá-

ticas presentes nas diversas situações descritas,

sem, no entanto, nos afastarmos do pensamen-

to de que as idéias matemáticas que se origina-

rão de nossos questionamentos estão imersas,

envoltas, relacionando-se com idéias que

estruturam conhecimentos e culturas diversas

que, na sua totalidade, podem nos oferecer con-

dições dignas de vida no mundo (Corrêa, 1999).

Sem dúvida, considero que tal encaminha-mento dado ao trabalho abre possibilidades paratornar a escola indígena um espaço para areafirmação e revitalização da identidade cultu-ral do povo indígena, assim como para outras ca-tegorias mencionadas. No caso do professorTicuna, a leitura, análise e discussão conjunta dotexto proporcionaram-lhe novas perspectivas so-bre o que é a Matemática – em particular, nasquestões relacionadas com grandeza, posição,

direção e sentido – e que o estudo das “matemá-ticas” pode ser realizado com seus alunos, emsala de aula, apoiado no etnoconhecimento deseu povo, retomando, rediscutindo, revitalizandoaspectos de sua cultura e redimensionando-ospara o momento presente. Os trabalhos criadospelos professores nas etapas posteriores do cur-so para as séries iniciais do Ensino Fundamen-tal atestam essas afirmações.

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dígena no Brasil (1975-1995). Resenhas de teses e

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DIAS DA SILVA, Rosa H. A autonomia como valor e articu-

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161

PPPPPAINEL AINEL AINEL AINEL AINEL 77777

EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃODE PROFESSORES INDÍGENAS

Jussara Gomes Gruber

Maria Cristina Troncarelli

Zélia Maria Rezende

Marlene de Oliveira

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162

O Curso de Formaçãode Professores Ticuna

Jussara Gomes Gruber

Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngües (OGPTB)

ResumoEm 1993, os professores membros da Organi-

zação Geral dos Professores Ticuna Bilíngües

(OGPTB) reuniram-se para iniciar um curso que

lhes possibilitasse concluir o segundo grau com

habilitação para o exercício do Magistério. O curso

deveria ser desenvolvido em módulos, no período

das férias escolares, de modo que todos os profes-

sores pudessem freqüentá-lo sem prejuízo de suas

atividades docentes.

O Curso de Formação de Professores Ticuna é,

portanto, promovido pela OGPTB e conta com a par-

ticipação de 250 professores. Já concluíram o Ensi-

no Fundamental 225 professores Ticuna, dos quais

170 completaram o Ensino Médio em agosto de

2001. Em julho de 2002, mais 35 docentes conclui-

rão o Ensino Médio. O curso desenvolveu-se em 15

etapas, durante oito anos, totalizando 4.120 horas.

O curso de formação faz parte do Projeto Edu-

cação Ticuna, que envolve um conjunto de ativida-

des organizadas em programas especiais voltados

para as questões de saúde, terra, meio ambiente,

direitos indígenas, arte e cultura. No âmbito desse

projeto, desenvolvem-se também atividades de

capacitação de supervisores índios e a organização

do projeto político-pedagógico das escolas Ticuna.

Trata-se, portanto, de uma experiência bas-

tante abrangente, que traz como parte da forma-

ção do professor todos os aspectos que devem

constar de uma escola diferenciada, como a pro-

dução de materiais didáticos específicos, calen-

dário, programa curricular, planejamento, estudo

da legislação, entre outros, com a finalidade de

possibilitar a autonomia pedagógica e administra-

tiva das escolas Ticuna.

A formação de educadoresindígenas para as escolas xinguanas

Maria Cristina Troncarelli, Estela Würker e Jackeline Rodrigues Mendes

Instituto Socioambiental (ISA)/Xingu/MS

IntroduçãoO Parque Indígena do Xingu, localizado no

estado do Mato Grosso, na região do Rio Xingu eseus formadores, tem uma extensão de 2.642.003hectares. Nele vivem 14 etnias: Kuikuro,Kalapalo, Matipu, Nahukuá, Mehinaku, Waurá,Aweti, Kamaiurá, Trumai, Ikpeng, Yawalapiti,Suyá, Kaiabi e Yudjá. A população está estimada

em 3.800 pessoas distribuídas em 32 aldeias, trêspostos indígenas e dez postos de vigilância.

A partir de 1994, foi iniciada a formação deprofessores indígenas no parque, o que resultouna criação de trinta escolas nas aldeias e nospostos. Também participam desse processo pro-fessores Panara, que atualmente residem na Ter-ra Indígena Panara, vizinha ao parque, e dois

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163

Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 7

professores da Terra Indígena Kaiabi. Este textotem como objetivo mostrar o desenvolvimentodesse trabalho, enfatizando as práticas pedagó-gicas da equipe de formadores e dos professoresindígenas.

HistóricoA primeira referência do processo de esco-

larização no Parque Indígena do Xingu foi a es-cola do Posto Indígena (PIN) Leonardo, que, em1976, começou a funcionar com a presença deuma professora não-índia. Os alunos eram, emsua maioria, filhos de lideranças das aldeias vin-culadas a esse posto indígena. Nos outros pos-tos, esse modelo se repetiu durante a década de1980, sempre de forma intermitente, pois de-pendiam de pessoas contratadas pela Funai.Algumas dessas professoras elaboraram mate-riais didáticos na Língua Portuguesa, usando oPortuguês regional. Os alunos, predominante-mente monolíngües em Língua Indígena, eramalfabetizados em Português.

No fim da década de 1980, todas as escolasestavam desativadas por falta de professores. Ex-alunos da escola do Posto Diauarum, das etniasKaiabi, Suyá e Yudjá, começaram a ensinar emsuas próprias comunidades o que aprenderam,sem nenhuma orientação pedagógica. Eles reivin-dicaram um curso para aprender a serem profes-sores. Em função dessa demanda, a FundaçãoMata Virgem organizou reuniões com as lideran-ças do parque, a fim de consultá-las sobre o inte-resse no desenvolvimento de um projeto de for-mação de professores indígenas. Em 1994, deu-se início à primeira etapa do curso de Formaçãode Professores para o Magistério nos PINDiauarum e Pavuru, contando com a participa-ção de pessoas enviadas por todas as etnias doparque, com exceção da Yawalapiti, cuja comu-nidade deseja ter um professor não-índio. Esseprojeto, em 1995, ficou sob responsabilidade daAssociação Vida e Ambiente e, em 1996, passou aser desenvolvido pelo Instituto Socioambiental.

A equipe do projeto é composta por educa-dores, antropólogos, lingüistas, agrônomos, bi-óloga, médicos, muitas dessas pessoas já envol-vidas há vários anos com algum tipo de trabalhona área. Além da equipe do ISA, há consultores

ligados à CPI-AC e à Unicamp, UFRJ, PUC-SP,Universidade de Londrina, UniversidadeMetodista de Piracicaba, Museu Goeldi eUnifesp.

Desenvolvimentodo curso de formaçãoO curso de Magistério desenvolve-se por

meio de duas etapas intensivas anuais de trintadias, sendo uma por semestre. Além das etapasintensivas, é realizado o acompanhamento pe-dagógico dos professores nas escolas das aldei-as. Participam do curso 61 professores indígenasde todos os povos do parque e os Panara, quelecionam para 1.150 alunos entre crianças e ado-lescentes, totalizando trinta escolas em funcio-namento.

O princípio norteador do projeto é a gestãoterritorial, por meio da conscientização sobre asquestões ambientais, da valorização das diver-sas culturas existentes no parque e do desenvol-vimento da autonomia dessas comunidades paralidar com as relações de contato. A abordagemde questões relativas ao meio ambiente tem oobjetivo de contribuir para a conscientização dapopulação xinguana para a importância da pre-servação e do uso racional dos recursos naturais.Essa iniciativa está sintonizada com a política devigilância da área e das fronteiras do parque ecom a mobilização em relação à proteção dasnascentes dos rios formadores do Xingu, pormeio de um projeto desenvolvido pela Associa-ção Terra Indígena Xingu (Atix) e pelo InstitutoSocioambiental (ISA).

O projeto de educação está voltado à reali-zação de um intercâmbio entre as várias cultu-ras e à valorização das línguas indígenas, dessemodo reavivando o interesse dos jovens pelaspróprias histórias, danças, artesanato, língua,pela vida social e cultural da comunidade.

Uma das formas de valorização das línguasindígenas vem sendo o processo de construçãoda sua escrita. Na década de 1980, havia, porparte dos povos do PIX, resistência ao desenvol-vimento da escrita em suas próprias línguas. Oreferencial de escola para as comunidadesxinguanas era baseado nas experiências ante-

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riores, em que professores não-índios ensinavamPortuguês e Matemática, por isso a escrita faziasentido apenas na Língua Portuguesa. Além dis-so, o argumento das comunidades era de queninguém esqueceria a própria língua. O deslo-camento da Língua Trumai pela Língua Portu-guesa e da Língua Yawalapiti pela Língua Kuikurovem servindo de exemplo para enfatizar a neces-sidade de valorizar o ensino da Língua Indígenatambém nas escolas. Em assembléias de lideran-ças de todo o parque, vários chefes têm reafir-mado a necessidade de se aprender Português eMatemática; entretanto, começam também aapontar a necessidade de fortalecimento da Lín-gua Indígena. Esse discurso tem sido maisenfatizado por lideranças e comunidades da re-gião do Médio e Baixo Xingu. O uso da escritanas línguas indígenas ainda é bastanteincipiente, restringindo-se ao âmbito escolar, ea maioria das comunidades ainda não valorizaessa prática, concentrando sua expectativa emque a escola ensine a falar e escrever a LínguaPortuguesa.

Na avaliação dos professores indígenas, éimportante criar materiais didáticos na línguamaterna, a fim de facilitar a compreensão devários conceitos pelos alunos (transmissão dedoenças, alguma operação matemática, porexemplo).

O projeto de formação também tem traba-lhado no sentido de preparar os professores paraa participação na sociedade nacional como ci-dadãos, para que possam gerir seu território,defender seus interesses e direitos. Essa prepa-ração tem envolvido o aprendizado de diversashabilidades necessárias para as relações de con-tato e de gerenciamento do território (aprendi-zado do uso da Língua Portuguesa – oral e escri-ta – em diversas situações interacionais, o usodo dinheiro nas situações de compra e venda,conhecimento e compreensão de leis etc.).

MetodologiaNo início do projeto, poucos eram os parti-

cipantes que tinham vivenciado algum proces-so de escolarização, muitos aprenderam Portu-guês e foram alfabetizados durante as etapas docurso. A expectativa da maioria dos participan-

tes centrava-se apenas no seu aprendizado in-dividual, mas aos poucos começaram a atuarcomo professores em suas aldeias.

Passamos a observar, então, que os temas tra-balhados durante as etapas do curso eram refe-rência para os professores atuarem em sala deaula. Em função disso, priorizamos a questãometodológica de ensino no desenvolvimento dosconteúdos em todas as disciplinas. Buscamos darênfase à reflexão pedagógica, ao planejamentode aulas, ao registro destas no diário de classe eà produção de materiais didáticos.

Um caminho interessante que vem sendodesenvolvido na abordagem de temas e conteú-dos novos, relacionado à elaboração de materi-ais didáticos em Língua Portuguesa, é a criaçãode textos pelos professores sobre esses assuntos.A equipe do ISA organiza apostilas, tratando deconteúdos novos, para serem estudadas nos cur-sos. Essas apostilas vão sendo reconstruídas pe-los professores, com textos produzidos por eles,tornando esses conteúdos mais acessíveis aosalunos, uma vez que esses educadores conse-guem imprimir em seus textos uma visão e ummodo próprio de se expressar sobre os temas.

Um exemplo desse trabalho foi a realizaçãodo Livro de história – volume 1 (publicado peloMEC em 1997), que aborda reflexões sobre a im-portância da história, o ensino, na escola, dashistórias tradicionais de início do mundo, as his-tórias do contato de cada povo xinguano conta-das pelos professores e pelos não-índios(Orlando Villas-Bôas, Karl von den Steinen) e ahistória da chegada dos europeus ao Brasil. Osegundo livro, Brasil e África – uma visãoxinguana, traz informações sobre a escravidãoindígena e africana no Brasil, as religiões afro-brasileiras, o intercâmbio entre culturas e a for-mação da sociedade brasileira, procurando mos-trar a sua diversidade cultural, com o objetivode oferecer uma visão mais ampla do que a usu-al dicotomia “mundo índio” e “mundo branco”.Um dos professores do curso escreveu sobre aformação do povo brasileiro, tema de redação deuma das etapas do curso:

[...] Os primeiros moradores do Brasil são os po-

vos indígenas de várias etnias e idiomas diferen-

tes. Depois apareceram outros moradores de ou-

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Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 7

tro país, que foram os portugueses. Através dos

portugueses também vieram muitos estrangeiros

de vários países para se instalar no Brasil. Atual-

mente a população brasileira é formada por mui-

tas nações, línguas, costumes, tradições, conhe-

cimento e religiões diferentes [...] (Matari Kaiabi)

Em muitos desses livros, além dos textos dosprofessores indígenas, temos mantido textos daequipe do ISA ou de outras pessoas (escritores,especialistas, historiadores, viajantes, pesquisa-dores etc.) que possam trazer contribuição àcompreensão e à ampliação do tema tratado.

Outro exemplo de reelaboração de conceitosfoi observado no diário de classe do professorJeika Kalapalo. Em seu diário encontramos regis-trada uma reelaboração do conceito de lixo orgâ-nico e inorgânico, estudado nas aulas de saúde:

Há três tipos de lixo: lixo seco, lixo molhado e lixo

perigoso. O lixo seco é papel, plástico, vidro e lata.

O lixo molhado é resto de comida. O lixo perigoso

é pilha velha, remédio vencido, agulha e seringa

usada, espinha de peixe e veneno de formiga.

Por meio desses exemplos, pode-se observarque a formação desenvolvida não é homoge-neizadora. Cada professor adapta à sua realida-de o que aprendeu durante os cursos.

Aturi Kaiabi, em seu diário de classe, relatauma aula sobre a Constituição brasileira e os di-reitos da criança. Usou nessa aula um texto reti-rado de um livro didático da cidade. Em segui-da, ele desenvolveu com os alunos uma reflexãosobre os direitos da criança indígena, não se res-tringindo ao livro didático. Ele usou também ocapítulo “Dos índios” da Constituição, texto es-tudado durante uma das etapas do curso.

No processo de formação, há duas maneirasde acompanhar e de compreender o desenvol-vimento do trabalho do professor nas escolas: oacompanhamento pedagógico das escolas reali-zado por educadores da equipe e a leitura dosdiários de classe dos professores indígenas.

O acompanhamento pedagógico é uma ati-vidade fundamental, pois é a oportunidade deavaliar o resultado da formação desenvolvida pormeio da prática pedagógica do professor índionas escolas de suas respectivas aldeias. Durante

o acompanhamento, o assessor da equipe cola-bora com orientações sobre planejamento deaula, resolução das dificuldades do professor eavaliação do aprendizado dos alunos, como tam-bém procura ouvir a avaliação da comunidadesobre a escola. Esses assessores elaboram rela-tórios que fornecem subsídios importantes paraa avaliação do desenvolvimento do professor.

Como orientação pedagógica nos cursos deformação, solicitamos aos professores que regis-trassem suas aulas de maneira detalhada e nar-rativa. Inicialmente, somente alguns deles fazi-am esses registros de forma sintética. Aos pou-cos, esse trabalho foi-se solidificando e, atual-mente, todos os professores fazem registros desuas aulas, trazendo os diários aos cursos de for-mação. Esses diários estão servindo de base paraa discussão e a elaboração do projeto político-pedagógico das escolas xinguanas pelos profes-sores e também estão fornecendo elementospara que, a partir do próprio trabalho, os profes-sores exerçam na prática a reflexão pedagógica.

Por meio do acompanhamento pedagógico,tem sido possível observar as diferentes estraté-gias de aula usadas pelos professores. As aulassão realizadas sempre num ritmo bastante lentoe tranqüilo. Os professores propõem atividadescoletivas, mas se preocupam em dar atenção es-pecial a cada aluno por meio de um atendimen-to individual. Muitas vezes, o professor propõeaos alunos que façam atividades na lousa, ouentão o professor se senta com cada aluno paraler e corrigir as atividades que ele realizou. Cadaaluno espera tranqüilamente que os outros co-legas terminem a atividade proposta, prestandomuita atenção ao desempenho de cada um doscolegas da classe. Isso acontece sem que hajanenhum problema de indisciplina ou desatençãopor parte dos alunos. Sob o ponto de vista dosnão-índios, a dinâmica da aula pode parecermuito lenta, mas acreditamos que ela é própriada pedagogia diferenciada do professor índio,processo que ocorre dentro da concepção detempo vivenciada no cotidiano das pessoas nasaldeias.

Com relação ao ritmo de desenvolvimentodas aulas, existe uma diferença marcada entreos povos do Alto e os do Baixo Xingu. No Alto, osconteúdos são trabalhados num ritmo mais rá-

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pido em comparação com as aulas dos profes-sores da região do Baixo Xingu. Em contra-partida, os diários de classe demonstram que, naregião do Baixo, o número de dias letivos é mai-or que na região do Alto. Tal situação tem levadoa equipe a refletir sobre o fato de que os conteú-dos dentro do currículo das escolas não podemestar atrelados ao tempo e que o ano letivo nasescolas do PIX vem sendo cumprido no períodode um ano e meio a dois anos, pois as escolasparam de funcionar no período de festas e ativi-dades na roça.

O acompanhamento pedagógico e a leiturados diários de classe são instrumentos privilegia-dos para compreender como o professor escolheos temas/conteúdos para trabalhar na escola, asatividades que vai utilizar para ensinar esses te-mas e a seqüência que pretende dar no desenvol-vimento das aulas. Ambos servem de subsídiospara o planejamento dos cursos de formação.

Os cursos de formação e o acompanhamentopedagógico às escolas vêm incentivando o desen-volvimento de pesquisas pelos professores indí-genas em suas comunidades. Alguns professoresdos povos Kuikuro, Matipu, Ikpeng, Kaiabi e Suyácomeçaram a gravar e transcrever histórias nar-radas pelos velhos. Um professor Kaiabi realizouuma pesquisa sobre tatuagem a partir da grava-ção da história sobre as guerras dos Kaiabi contraos Apiaká. Ele levantou nomes e desenhos de qua-renta tipos de tatuagem e registrou a história deorigem. Professores Kaiabi também estão desen-volvendo uma pesquisa sobre trançado, assimcomo os Kuikuro, os Kalapalo, os Matipu e osNahukuá, sobre a marcação do tempo pelos anti-gos (calendário indígena) a partir das estrelas ede fenômenos da natureza, como o desabrochardas flores e os períodos de seca e chuva associa-dos com os recursos naturais.

A maioria dos professores vem trabalhandocom temas relacionados à saúde e ao meio am-biente, além de, nas disciplinas de Língua Por-tuguesa e Matemática, direcionarem o trabalhoda escola na preparação dos alunos para as situ-ações diversas de contato. Há uma preocupaçãodos professores de contextualizar o conteúdoensinado no processo de alfabetização e de de-senvolvimento da escrita dos alunos. Os acon-tecimentos do cotidiano da aldeia também vêm

sendo abordados na escola como temas para aleitura, a produção de textos e as dramatizações.

Os professores vêm desempenhando um pa-pel importante no contexto da educação para asaúde. Durante as aulas vêm trabalhando com acompreensão das causas, sintomas e medidas deprevenção de doenças como a cárie, as diarréi-as, as DST, a malária, a hipertensão e a obesida-de. Os agentes de saúde chegaram a participarde algumas etapas do curso, num trabalho inte-grado, e são convidados pelos professores a par-ticipar das aulas sobre saúde nas escolas. Essetrabalho articula-se com o da formação de agen-tes de saúde e auxiliares indígenas de enferma-gem, desenvolvido pela Unidade de Saúde eMeio Ambiente da Universidade Federal de SãoPaulo (antiga EPM).

Outro tema que tem merecido destaque noscursos é a relação entre recursos naturais, cultu-ra e economia, abordada de maneira interdisci-plinar na Geografia, Antropologia, Ecologia, Saú-de e História. Os professores indígenas começama refletir sobre as mudanças na economia dospovos no PIX e a influência do dinheiro nas rela-ções sociais, econômicas e políticas. Esse traba-lho tem caminhado no sentido de desenvolveruma análise comparativa das diferenças entre aeconomia tradicional das comunidades e a eco-nomia de mercado e de que maneira a interfe-rência da economia de mercado pode ocasionara desestabilização da economia tradicional.

Mudanças na economia do meu povoAntes de entrar em contato com os não-ín-

dios, usávamos ou destruíamos os recursos na-turais de acordo com as necessidades da co-

munidade. Fazíamos artesanato para o uso dafamília, pescávamos, caçávamos para o consu-mo da família, fazíamos os enfeites para nos

enfeitar, plantávamos para consumo da famíliae também fazíamos canoa para o seu uso.

Quando a pessoa precisava de alguma coisa,

a gente dava, trocava, pagava ao pajé só com ar-tesanato e comida.

Depois do contato com os não-índios, a vida

mudou muito, o povo começou a pensar em pro-duzir mais pensando na venda, para poder ganhardinheiro para comprar anzol, linha, arma etc.

Depoimento de Aturi Kaiabi

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Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 7

Essa reflexão tem estimulado a pesquisa so-bre as formas tradicionais de manejo dos recur-sos naturais e caminhado em conjunto com o iní-cio de novas experiências de manejo, como as fle-chas e a taquara usada nas peneiras Kaiabi, ou aapicultura, promovidas pela Equipe de Alternati-vas Econômicas do ISA em parceria com a Atix.

O cuidado que o meu povo tem com a naturezaNa comunidade eu vejo a preocupação em rela-

ção à natureza, como não queimar em volta da aldeia,para não queimar remédios que ficam perto do pátio.

Outra preocupação que apareceu agora parao povo Kaiabi: cada um que tem semente da plan-ta da roça é para cuidar e distribuir por família para

plantar. Assim, as sementes nunca acabarão.Na época de roçado, eles perguntam uns aos

outros: “Quem vai precisar da palha para cobrir a

casa?” Aí eles vão e cortam a palha que está den-tro da roça. Então alguma parte eles aproveitam,mas de todo jeito queima.

Outra preocupação que eles têm: não derru-bar mais o pé da palha quando estiver precisan-do. Cortar só a palha e deixar um pouco da sua

palha para ser renovada. Isso eu já vi dentro daminha aldeia que eu estou morando.

Depoimento de Jemy Kaiabi

O meu povo cuida para não queimar o pé depequi, para não acabar a fruta.

Cada ano o chefe pede para as pessoas não

tocarem o fogo.Também o sapezal que tem em volta da aldeia,

se queimar o sapezal, vai faltar para cobrir casa.

Depoimento de Sepé Kuikuro

O meu povo tem cuidado com os pés deburitizeiros. Eles não cortam os pés de buritizeiros,

somente eles estão cortando a palha de buritizeiroquando eles estão fazendo construção de casa.Também eles não queimam os buritizeiros, por-

que são muito importantes os buritizeiros para uti-lizar nos artesanatos, como cesto e abanador. Porisso, o meu povo Aweti tem cuidado com os pés

de buritizeiros.Depoimento de Awayatu Aweti

O que é manejoManejo é o jeito de usar os recursos naturais.

Usar pode ser tirar, cuidar, respeitar, queimar,transformar, plantar, guardar, colher, caçar, pes-

car. O manejo de antigamente era melhor do queo de agora.

O manejo dos recursos mudou aqui no Par-

que do Xingu. Com a demarcação, a região decada povo ficou menor. A entrada do dinheiro in-tensificou a exploração dos recursos naturais. Os

recursos naturais, que antes eram feitos só parauso, agora estão sendo vendidos.

Hoje em dia está havendo mudança de inte-

resses dos adultos e dos jovens. A cultura não-indígena está ficando mais forte do que a indíge-na. Isso está contribuindo para que o conhecimen-

to das formas de manejar os recursos naturaisesteja sendo esquecido.

Criação coletiva dos professores indígenasno 13º Curso

Ao mesmo tempo, vêm sendo estudados aocupação do entorno do PIX e os impactosambientais causados pelas atividades econômi-cas (agropecuária, garimpo, hotéis de pesca, ci-dades que jogam esgoto nos rios etc.), que colo-cam em risco a vida da população xinguana, bemcomo a mobilização de lideranças, professores ecomunidades na defesa das nascentes dos riosformadores do Xingu que se encontram fora doterritório demarcado.

Ocupação do espaço geográficoOs povos indígenas do Brasil ocuparam ou

ocupam espaço desde o início do primeiro mundo.Nós, índios, temos 100% de sabedoria de so-

brevivência com a natureza, sabemos aproveitar

a riqueza sem destruir. Da natureza tiramos o re-curso para alimentar, remédio para curar doenças,recursos para a construção de casas, terra para

plantar, materiais para fazer artesanato, frutos paracomer e caças do mato também.

Nós, índios, sabemos usar a riqueza, os re-

cursos naturais, sem poluir os rios, ou ar, ani-mais, peixes e pessoas.

A ocupação do espaço geográfico dos não-

índios é muito diferente. Eles já vêm com um pen-samento planejado para destruir a natureza, parafazer pastos, plantar capim, plantar soja, arroz,

cana-de-açúcar, trigo etc.Os não-índios destroem a natureza para

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construir as grandes cidades e com eles trazem

muitos tipos de equipamentos que produzem pe-tróleo, agrotóxicos. Isso traz muitos problemaspara os moradores do Brasil, que são a poluição

do ar, água, terra, a contaminação de pessoas,animais, peixes. Esses equipamentos causamgrandes assoreamentos nas bacias dos rios e

principalmente os incêndios nas matas.Isso está cada vez mais trazendo doenças

diferentes para o povo brasileiro.

Depoimento de Aturi Kaiabi

Espera-se que a escola seja um espaço po-lítico de reflexão e de informação que instru-mentalize a população xinguana para a mobi-lização política que permita amenizar os im-pactos ambientais causados pela ocupação doentorno do PIX e possibilite a defesa das nas-centes dos rios formadores do Xingu que se en-contram fora do território demarcado. Um dosobjetivos da formação de professores é que es-tes se tornem multiplicadores de conhecimen-tos que fortaleçam a participação dos povos in-dígenas na sociedade brasileira como cida-dãos, com melhores condições de gerir e de-fender seu território, seus interesses e direitos,venda e aquisição de bens, uso adequado econservação dos recursos naturais, busca dealternativas econômicas auto-sustentáveis emelhoria da qualidade de vida.

Histórico da regularização docurso e das escolasA Proposta Curricular do Curso de Forma-

ção de Professores do PIX para o Magistério foiaprovada pelo Conselho Estadual de Educaçãode Mato Grosso em abril de 1998. Inicialmen-te previsto com seis anos de duração, consta-tamos a necessidade de seu prolongamento,pois identificamos três grupos distintos deprofessores: um grupo com dificuldade decompreensão da Língua Portuguesa ou dificul-dade de aprendizado; um grupo intermediá-rio, que consegue entender e se expressar emPortuguês; e outro grupo com um desempenhomelhor, tanto na compreensão da escrita daLíngua Indígena quanto da Língua Portuguesae nas operações aritméticas. Para atender a

essa necessidade, procuramos trabalhar comesses professores o mesmo tema, mas de ma-neira que o ritmo de aprendizado seja respei-tado, com um planejamento de trabalho espe-cífico para cada grupo. Assim, em virtude dosdiferentes ritmos de aprendizagem dos parti-cipantes do curso, vinte professores foram for-mados até 2000, outros dezesseis concluirão ocurso em 2001 e outros 25 deverão ser avalia-dos ao longo dos próximos dois ou três anos.Dos vinte professores formados, 19 ingressa-ram no Curso de Licenciatura promovido pelaUnemat, que deverá habilitá-los no prazo decinco anos para lecionar de 5ª a 8ª séries e noEnsino Médio.

Com relação à regularização das escolas,em 1996 a política estadual apontava como al-ternativa o processo de municipalização. Emrazão da especificidade da situação jurídica doparque, retalhado por dez municípios, o ISAnão acreditava ser a municipalização o melhorcaminho para as escolas, pois comprometia aunidade política interna dos povos xinguanos.Entretanto, o projeto seguiu essa orientação,organizando, em conjunto com a Seduc, umareunião com os prefeitos e os secretários deEducação dos municípios envolvidos, na qualfoi apresentado o Projeto de Formação e foramfeitas as reivindicações de criação das escolas,contratação dos professores e manutenção dainfra-estrutura (materiais escolares, equipa-mentos, construção de escolas etc.). Com ex-ceção de um município, todos os outros cria-ram as escolas por meio de decretos. No en-tanto, somente alguns municípios atenderamàs solicitações de contratação e de envio demateriais. A maioria deles é de difícil acessopara o deslocamento dos professores.

Lideranças e professores da maioria das al-deias avaliaram como problemático o proces-so de municipalização das escolas. Assim, en-viaram representantes a Cuiabá, que reivindi-caram ao governador e ao secretário de Edu-cação a estadualização das escolas do parque.Essa proposta foi aceita pela Seduc/MT, quepropôs a criação de três escolas centrais; asdemais escolas ficaram anexadas a estas.

Em maio de 1998, os professores participa-ram da 3ª Assembléia da Atix, na qual esteve

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Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 7

presente a maioria das lideranças do parque.Esse encontro do grupo de professores e lide-ranças propiciou a discussão sobre a vincu-lação das escolas ao estado ou aos municípi-os. Foi um processo difícil de discussão entrea equipe do ISA, professores e lideranças. Paraa equipe de formação, foi um processo per-meado de inquietações, tais como: como ex-plicar da melhor maneira o funcionamento dosórgãos governamentais em suas diversas ins-tâncias? Como optar por um atendimento me-lhor, sabendo-se que inexiste ainda uma polí-tica adequada para as escolas indígenas? Aomesmo tempo, se o processo de regularizaçãodas escolas não se iniciasse, a demanda porescolarização levaria a um número maior decrianças e jovens fora do PIX.

Nessa assembléia, foi decidida a estadua-lização de 21 escolas e nove continuarammunicipalizadas, ligadas a três municípios(Gaúcha do Norte, Feliz Natal e Querência). Aintenção das lideranças e dos professores foiexperimentar os dois tipos de vínculo. Para asescolas estadualizadas, foram escolhidos trêsdiretores entre os professores índios. Eles têmse responsabilizado pela compra de materiaiscom recursos da Seduc/MT e pela prestação decontas, além de terem redigido o pedido de au-torização de funcionamento das escolas aoCEE/MT, um dos passos burocráticos necessá-rios. Uma das conquistas dos professores in-dígenas do PIX foi o direito de adquirir meren-da escolar nas próprias comunidades, evitan-do a introdução de alimentos industrializadospor intermédio da escola. Para isso, foi flexibi-lizada e adaptada a burocracia na prestação decontas desses recursos. A Secretaria de Estadode Educação de Mato Grosso tem-se mostra-do disposta a incentivar a participação de li-deranças e professores indígenas na gestão dasescolas, apoiando reuniões para discutir oatendimento. Desde 1997 a Seduc/MT mantémuma educadora que se integrou à equipe doprojeto e que participa dos cursos e do acom-panhamento pedagógico às escolas e contribuipara o aprimoramento do trabalho.

A relação com os municípios tem sido di-fícil: os secretários municipais não participamdas reuniões com professores e lideranças in-dígenas no PIX; há diferenças salariais entreos municípios; algumas prefeituras continu-am enviando merenda escolar inadequada aocontexto do parque (sal, açúcar, biscoitos,carnes enlatadas etc.); não há critérios defi-nidos para a contratação de índios ou não-índios como professores, sendo contratadosaté missionários; interferências do ponto devista pedagógico (não-aceitação dos diáriosdos professores da forma como vêm sendoelaborados, impressão de livros didáticos ina-dequados, por exemplo), envio insuficiente demateriais escolares; falta de clareza na apli-cação de recursos governamentais no atendi-mento das escolas.

À medida que as escolas se configuramcomo entidades regularizadas no sistema deensino público, maiores contradições são en-contradas no respeito à sua especificidade.Apesar do avanço da legislação que legitimao direito à especificidade, as contradições semultiplicam, pois o modelo de atendimentoé o mesmo das escolas não-indígenas. Parasuplantar essas dificuldades, é necessária aarticulação entre órgãos governamentais einstituições não-governamentais que atuamna Educação Escolar Indígena e com lideran-ças e professores indígenas, concretizando aparticipação destes no processo de gestãodas escolas.

Um fator positivo de todo esse processo dediscussão sobre a escola no PIX vem sendo aoportunidade de articulação entre professorese lideranças. É importante que haja continui-dade desse fórum de discussões, porque tempossibilitado aos professores do PIX a percep-ção de que seu trabalho está inserido num con-texto maior da política dos povos que vivemno PIX, de gerenciamento e defesa do territó-rio, e que o seu vínculo profissional deve sercom a sua comunidade, evitando que sua atu-ação fique reduzida a um vínculo contratualcom os órgãos governamentais.

Page 42: LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

O estado de Minas Gerais, constituído pordiversos grupos socioculturais, abriga uma plu-ralidade cultural e lingüística, compondo umrico mosaico de diferentes tradições, conheci-mentos, valores e línguas que pode ser sinteti-zado na expressão “Minas são várias”.

As sociedades indígenas destacam-se nessequadro de diversidade e riqueza cultural.

Em 1995, nascia o Programa de Implantaçãode Escolas Indígenas em Minas Gerais, fruto deuma parceria entre os Krenak, os Maxakali, osPataxó e os Xacriabá, a Secretaria de Estado daEducação, a Universidade Federal de Minas Ge-rais, a Fundação Nacional do Índio e o InstitutoEstadual de Florestas. Voltado para o objetivomaior de apoiar a autodeterminação dos povosindígenas mineiros, esse programa tinha comoproposta criar e colocar em funcionamento es-colas indígenas vinculadas à rede estadual deensino nas quatro áreas do estado, procurandoconstruir democraticamente propostas experi-mentais, diferenciadas, multilíngües e inter-culturais para a formação específica do profes-sor e para as escolas de cada povo indígena.

No escopo do programa, o projeto de formaçãode professores indígenas ocupou e ocupa o espaçocentral, tendo por princípio básico a construção te-órica e conceitual conjunta entre formadores,formandos e respectivas comunidades, a partir daexperimentação e da pesquisa, sempre com um sen-tido de processo em direção à criação coletiva dachamada Educação Escolar Indígena mineira.

O Curso de Magistério de Ensino Fundamen-tal para Professores Indígenas, realizado de 1996a 1999, teve como pressupostos e intençõeseducativas:

• a aprendizagem como um processo contínuo eglobal que avança em função das experiênciasvivenciadas pelos sujeitos em seu contexto his-tórico e social, sendo o etnoconhecimento opressuposto metodológico que retrata essa con-cepção de aprendizagem;

• a experiência escolar como um tempo de vivênciacultural e espaço de produção coletiva;

• a ampliação da compreensão crítica da rea-lidade e da capacidade de atuação sobre ela;

• a apropriação crítica de instrumentos cultu-rais e recursos tecnológicos nos diversosâmbitos da vida sociocultural;

• a formação profissional de educadores capa-zes de pensar e criar instrumentos e processospróprios e adequados de conhecimento e detransformação da realidade em suas aldeias.

Considerando as intenções educativas, cons-tituíram objetivos específicos do curso:

• construir coletivamente a proposta curri-cular do curso, substituindo, acrescentandoou complementando as proposições do Pro-jeto UHITUP (“alegria”, na Língua Maxakali),desenho inicial desse currículo;

• habilitar o professor cursista indígena ao exer-cício do Magistério, mediante conclusão doCurso de Magistério de Ensino Fundamentalpara Professores Indígenas, em nível médio;

• viabilizar o ingresso do professor indígena nacarreira do Magistério e sua integração no pla-no de cargos e salários do órgão contratante;

• construir propostas específicas para as es-colas indígenas, por meio da elaboração depropostas curriculares, materiais didáticos,

* Licenciada em História pela UFMG. Coordenadora-Geral do Programa de Implantação de Escolas Indígenas em Minas Gerais. Consultora daCoordenadoria de Apoio às Escolas Indígenas/SEF/MEC.

Curso de Magistério de EnsinoFundamental para professoresindígenas de Minas Gerais

Zélia Maria Rezende*

Seduc/MG

170

Page 43: LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

sistemas de avaliação e calendários esco-lares adequados às necessidades, aos inte-resses e aos projetos de futuro de cadapovo;

• fortalecer os processos interativos nos calen-dários naturais, sociais e rituais dos espaçosem que as escolas estão situadas.

A autonomia e a independência diante de seuprocesso de formação são dimensões semprebuscadas durante o curso de formação e para issofoi de fundamental importância o exercício do es-tudo autônomo, da pesquisa independente, doregistro individual e sistematizado, seja com apresença e a coordenação dos formadores, seja

Múltiplaslinguagens

• Línguas indígenas• Língua Portuguesa

• Literatura• Artes

• Educação Física

Estudo da culturae da natureza

• Culturas indígenas• Geografia• História

• Ciências Químicas,Físicas e Biológicas

• Uso do territórioindígena

Pedagogiaindígena

• Fundamentosda Educação

• Iniciação à pesquisa• Prática pedagógica

• Estrutura e funciona-mento da escola

TERRITÓRIO

ÁGUA

CULTURA

nos momentos de intervalos entre as etapas in-tensivas do curso, viabilizando o que chamamosde ensino não-presencial.

Tanto a gente tá ensinando como tá aprenden-do. Então eu acho isso muito importante.

Antonio Aragão da Silva,professor Pataxó em formação

O processo de avaliação do curso foi desen-volvido a partir de três vertentes:

• a avaliação processual, mediante fichas deauto-avaliação construídas coletivamente epreenchidas tanto pelos cursistas como pelosformadores, avaliando diferentes aspectos;

• a avaliação feita pela comunidade e conduzidapela coordenação por etnia, por meio de reu-niões registradas em fitas de áudio e/ou vídeo;

• a avaliação pelo Conselho de Formadores,baseada em um memorial e em um trabalhofinal. O memorial consiste na descrição, pelocursista, de sua história de vida inserida nocontexto de sua formação como professor.

Tendo como base osprincipais problemas vivi-dos pelos povos indígenasde Minas Gerais, trêsquestões foram eleitaspara nortear todo o traba-lho, em uma perspectivatransdisciplinar, abran-gendo três áreas de co-nhecimento indicadaspelo diagnóstico e nos de-bates entre os povos indí-genas, os formadores e osórgãos envolvidos no pro-grama, conforme a repre-sentação a seguir.

Achei boa a idéia des-se currículo, porque há mis-tura das matérias, acho que

uma matéria puxa a outra mesmo, acho que é issomesmo. E a gente precisa, porque a gente tem que

aprender, sabendo pra que aquilo que a gente táaprendendo vai servir.

Creuza Nunes Lopes,professora Xacriabá em formação

O diálogo, a negociação de significados e ainteração entre os múltiplos olhares sobre a rea-lidade são alguns dos elementos presentes numapostura metodológica coerente com a propostaaqui desenvolvida.

Os projetos de trabalho, as oficinas e outrasatividades significativas foram algumas dasações que possibilitam um enfoque globalizadordo conhecimento, em que, em um só processo,atitudes, valores, conceitos e habilidades sãoconstruídos no exercício de resolver questões ouvivenciar situações. A investigação e a observa-ção, os debates e os registros em múltiplas lin-guagens, as vivências culturais, os jogos, as brin-cadeiras e a criação de instrumentos foram pro-cessos incentivados e muito valorizados.

Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 7

Page 44: LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

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Conclusões transcritas de dois memoriaisdão uma idéia de como os cursistas estão vendoseu processo de formação, em sua etapa formal-mente final:

Durante todo este curso aprendi muitas coi-

sas boas, uma delas foi trabalhar com meus alu-nos. Na minha escola o aluno aprende a viver emcomunidade, aprende os ensinamentos do nosso

povo, aprende a resgatar a consciência do cida-dão brasileiro Pataxó e aprende a analisar a his-tória de outros grupos sociais. [...] Hoje ainda te-

nho algumas dificuldades, mas estou conscientedo que é bom para mim e meu povo. E, além domais, já tenho uma consciência de qual cidadão

que quero formar. [...] Mas ainda não aprendi tudo,pois a escola que eu considero é aquela em que,cada dia, a gente aprende um pouco mais. Uma

escola renovadora, de portas abertas, semprebuscando novos horizontes.

Kanátyo, professor Pataxó em formação

O curso foi acontecendo e os nossos conheci-mentos foram aumentando, cada módulo que acon-tecia, cada visita que em área o projeto fazia, cada

disciplina que a gente estudava, cada pesquisa quecom os nossos mais velhos da aldeia se fazia, cadapessoa que no projeto entrava, com o estágio na

escola da aldeia que a gente fazia, com os traba-lhos de jornal e rádio que a gente produzia, com aspeças de teatro que a gente apresentava, com a

escrita de livros, com a briga com os políticos paradar apoio ao nosso trabalho, com os congressosque a gente participava, com o apoio dos nossos

aliados que nos incentivaram, com a tradicional rodaembaixo da árvore, que no decorrer dos módulostodo dia a gente fazia, cada avanço e obstáculo

que via, muita coisa aprendia. [...] Me sinto muitoforte. A cada dia que passa, eu aprendo mais umpouco e tenho o apoio da comunidade no

gerenciamento e na organização da escola. Eupenso em estudar mais, me especializar na áreade Educação, como Pedagogia, e talvez me formar

em mestrado e doutorado. Eu sonho com isso, por-que a necessidade do povo Xacriabá é muito gran-de em expandir a educação dentro do seu territó-

rio. Nossos alunos precisam de terminar o EnsinoFundamental e prosseguir os estudos até a univer-sidade. Vamos lutar para isso acontecer.

José Nunes de Oliveira,professor Xacriabá em formação

O trabalho final, desenvolvido em grupo,consistiu em escolher um tema para desenvol-ver com os alunos, planejar e executar o plane-jado na sua sala de aula, registrando as diversasetapas; recolher e anexar os trabalhos e as avalia-ções dos alunos; avaliar, em grupo, a aplicação eos resultados obtidos individualmente, prepa-rando um único relatório crítico de todo o tra-balho. O formato desse trabalho final para osMaxakali foi diferente – gravação em vídeo so-bre sua cultura.

O Curso de Magistério de Ensino Fundamen-tal para Professores Indígenas foi concebidocomo um ciclo único e estruturado em:

• etapas intensivas: ensino presencial no Par-que Estadual do Rio Doce;

• etapas intermediárias: ensino presencial emárea indígena e ensino não-presencial;

• estágios supervisionados.

As etapas intensivas foram organizadas emoito módulos, concebidos como um processoglobal de formação em que, partindo de situa-ções-problema reais, os cursistas têm contatocom atividades e conteúdos disciplinares diver-sificados, não havendo uma fragmentação entreo que tradicionalmente a teoria curricular cha-ma de objetivos, conteúdos e métodos. Efetiva-mente, não há como falar em conteúdo, isto é,de “o quê” se ensina sem se discutir intençãoeducativa e metodologia, ou seja, o “porquê” e o“como” se ensina.

A preparação de cada módulo envolvetoda a equipe docente que, partindo da ava-liação do processo de ensino-aprendizagemdo módulo anterior e das demandas propos-tas pelos cursistas, participa de um movimen-to interdisciplinar e transdisciplinar, na pre-paração e no desenvolvimento das açõeseducativas propostas.

Durante as etapas intermediárias, realiza-ram-se módulos de ensino presencial, envolven-do disciplinas que ganham mais sentido e signi-ficado dentro do cotidiano das aldeias: CulturaIndígena, Língua Indígena e Uso do TerritórioIndígena. Apesar de essas disciplinas serem de-senvolvidas fora das etapas intensivas, elas nãose tornaram “apêndices” dentro do processo deformação dos cursistas.

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Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 7

Durante as etapas intermediárias, acontece-ram também atividades de ensino não-pre-sencial. Orientados pelos formadores nas etapasintensivas, os cursistas desenvolveram ativida-des de pesquisa, literatura e escrita, coleta e pre-paração de material didático, entre outras.

O estágio supervisionado constituiu-se emum instrumento de formação em serviço. Apóso quarto módulo intensivo de ensino presencial,a Secretaria de Estado da Educação criou esco-las indígenas e designou os cursistas como do-centes dessas escolas.

O estágio teve como foco central a reflexãoda prática pedagógica incidindo sobre todos osaspectos da vida cotidiana da escola e possibili-tando a construção gradativa de uma pedagogiaindígena, com características próprias e adequa-das à Educação Escolar de cada povo.

O caminho do trabalho por povo indígenafoi ficando cada vez mais evidente, especial-mente quando os cursistas começaram a atuarcomo professores em suas escolas indígenas.Sua prática escolar assim como suas deman-das, interesses e objetivos diferenciados fo-ram delineando a proposta de trabalho espe-cífica por etnia. Os diferentes processos deimplantação das escolas nas quatro áreas pro-vocaram intensa reflexão coletiva no sentidode trabalhar com as especificidades dos qua-tro grupos étnicos de maneira maisaprofundada e levaram à criação das coorde-nações por etnia, quando começam a se con-figurar quatro cursos de formação distintos eespecíficos e geradores de processos distin-tos de escolas indígenas, refletindo o que oprojeto vem chamando de “Pedagogia Indíge-na”. No entanto, não foi perdida a visão dotodo, a unidade do processo, evidenciada nosmomentos de vivências conjuntas:

É muito bom saber que existem muitos grupos

indígenas junto de nós: Xacriabá, Krenak, Pataxó,Maxakali, Kaxinawá, Kaingang, Bakairi, Guarani,Tupinikim, povos da Bolívia etc. Foi uma alegria

muito grande conhecer todo esse povão. Aprendimuitas coisas com as trocas de experiências.

Maria Aparecida Lopes dos Passos,professora Xacriabá em formação

Troca de experiências e convívio com outras

culturas. Conheci muita gente diferente e elas,de certa forma, colaboraram para que eu ocu-passe um espaço que nunca havia ocupado an-

tes, dentro e fora da comunidadeValmores Conceição da Silva,

professor Pataxó em formação

O trabalho específico por etnia no cursode formação mostrou resultados positivosimediatos no rendimento acadêmico, naracionalidade de organização dos cursos, naafirmação étnica e na valorização pessoal.

O Conselho Estadual de Educação de Mi-nas Gerais, no Parecer nº 1.109/98, de apro-vação do Curso de Magistério de EnsinoFundamental para Professores Indígenas,considera que “essa escola torna-se real-mente tempo de vivência e produção cole-tiva transformando-se em espaço educati-vo para todos que dela participam: os pro-fessores não-índios, os professores indíge-nas, os órgãos envolvidos e as comunidadesindígenas”.

O curso teve a duração de quatro anos,com cargas horárias presenciais e não-presen-ciais, abrangendo um total de 3.216 horas.Recebeu autorização de funcionamento doConselho Estadual de Educação em novem-bro de 1998 e certificou os 66 professores in-dígenas em dezembro de 1999.

A partir de 2000, vem sendo desenvolvidaa formação continuada desses professores nasquatro áreas indígenas, por equipes específi-cas por etnia, durante 44 horas a cada mês.Essa formação tem sido centrada em ações deplanejamento mensal das atividades dos pro-fessores indígenas, produção de material di-dático, observação das aulas e reflexão cole-tiva da prática pedagógica.

O processo contínuo de reflexão e de com-promisso com a realidade da execução neces-sariamente propõe mudanças, desafios, maisperguntas que respostas, o que não deixa deser um bom sinal. Enfim, as questões não apa-recem, a menos que se comece a caminhar.E, ao nos colocarem o espelho da perplexida-de, ajudam-nos a crescer.

Page 46: LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

174

Formação de Professores de sériesiniciais do Ensino Fundamental parao contexto indígena Xokleng eKaingang: igualando oportunidades,fortalecendo identidades,consolidando o direito à diferença

Marlene de Oliveira

Seduc/SC

ResumoO Curso de Formação e Habilitação de Professo-

res de Séries Iniciais do Ensino Fundamental para o

Contexto Indígena Xokleng e Kaingang vem sendo

desenvolvido pela SED/SC como experiência peda-

gógica em regime especial desde 1999, em cumpri-

mento ao que dispõe a LDB nº 9.394/96, no seu artigo

79, e concretizando as proposições do Plano Nacional

de Educação, no que diz respeito à Educação Escolar

Indígena, bem como atendendo às determinações do

Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental

e Valorização do Magistério que extingue, no prazo de

cinco anos, a categoria de professor leigo.

Foi aprovado pelo Parecer nº 248/98 do Conselho

Estadual de Educação/SC e destina-se a professores

indígenas leigos que já atuam nas escolas indígenas,

além de outros índios interessados, indicados por suas

comunidades de origem. Tem a duração de 2.590 ho-

ras/aula, sendo que 20% da carga horária de cada disci-

plina é realizada na modalidade de ensino a distância.

O trabalho é desenvolvido com base nos pressu-

postos que orientam o Referencial Curricular Nacional

para as Escolas Indígenas, no que se refere à elabora-

ção e à implementação de um programa de educação

que atenda aos anseios e aos interesses da comunida-

de indígena, bem como à formação de educadores ca-

pazes de assumir essas tarefas e de técnicos capacita-

dos a assessorá-las e viabilizá-las. Além disso, está pau-

tado no documento “Educação Escolar Indígena”, que

integra a Proposta Curricular de Santa Catarina – Edu-

cação Infantil, Ensino Fundamental e Médio: Temas

multidisciplinares, elaborado com a colaboração de

professores índios.

Considerando os preceitos constitucionaise as diretrizes do MEC, que apontam para a ela-boração de um currículo intercultural, bilíngüe,específico e diferenciado, a Secretaria da Edu-cação e do Desporto do Estado de SantaCatarina, por intermédio do Núcleo de Educa-ção Indígena (NEI), tem buscado efetuar umaproposta de educação que contemple o siste-ma educacional da sociedade envolvente, va-lorizando as culturas e as tradições das comu-nidades indígenas.

Diante do quadro que se produz nas comu-nidades indígenas, em que a maioria de seusmembros não possui sequer a escolarização

básica, e sabendo-se que a construção de umasociedade democrática envolve, também, o re-conhecimento da diversidade étnica e a garan-tia do direito de manifestação dos costumes etradições das diferentes culturas, faz-se neces-sária a ampliação de oportunidades de educa-ção a essas comunidades, fortalecendo o pro-cesso educativo de cada etnia, pois sem a esco-la esses povos estão excluídos do processo his-tórico global e atual da sociedade na qual seinserem.

É com base nesse entendimento e nas dis-cussões promovidas pelo NEI com as comuni-dades, desde 1994, que vimos propondo pro-

Page 47: LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

175

Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 7

gramas específicos visando à formação de re-cursos humanos para o exercício da docênciaentre os próprios indígenas, considerando suastradições socioculturais e estimulando a emer-gência de métodos de ensino que garantam aprodução de uma literatura nas línguas nativas.

O estado de Santa Catarina abriga trêsetnias – Kaingang, Xokleng e Guarani – quesomam 8 mil índios.

Os Guarani não possuem áreas demarcadas,o que faz com que ocupem terras de outros gru-pos indígenas. Em virtude da sua grande mobi-lidade social, não é possível proceder a ummapeamento preciso e definitivo desse grupo.Entretanto, em 1990, registra-se sua presençaem pelo menos 22 municípios, áreas de ocupa-ção tradicional.

Os Kaingang, um dos maiores grupos quesobrevivem no Brasil, somam 4.400 indivíduos,aproximadamente, e ocupam as áreas de Xape-có (Municípios de Ipuaçu e Entre Rios), ToldoChimbangue e Kondá (Chapecó), Toldo Pinhal(Seara), Ibirama e Palmas (Abelardo Luz).

Os Xokleng somam aproximadamente 1.800índios e constituem o único grupo Xokleng doBrasil. Ocupam a área indígena de Ibirama ePalmas.

Para viabilizar o atendimento educacionala essas comunidades, a Secretaria de Estado daEducação e do Desporto mantém 26 escolasindígenas, que atendem a 722 alunos de 1ª a4ª séries do Ensino Fundamental, e uma esco-la que oferece toda a educação básica a apro-ximadamente 505 alunos, totalizando 1.227alunos. As ações voltadas para essas escolas sãopropostas pelo Núcleo de Educação EscolarIndígena (NEI), diretamente vinculado à Dire-toria de Ensino Fundamental, constituído em1996, no qual estão representadas as lideran-ças indígenas, coordenadorias regionais deEducação, escolas indígenas, universidades eoutras instituições comprometidas com a cau-sa indígena.

O trabalho é realizado com base nos pres-supostos que orientam o Referencial CurricularNacional para as Escolas Indígenas, no que serefere à elaboração e à implementação de umprograma de educação que atenda aos anseiose aos interesses da comunidade indígena, bem

como à formação de educadores capazes de as-sumir essas tarefas e de técnicos capacitados aassessorá-las e viabilizá-las. Além disso, estápautado no documento “Educação Escolar In-dígena”, que integra a Proposta Curricular deSanta Catarina – Educação Infantil, Ensino Fun-damental e Médio: Temas Multidisciplinares,que considera fundamental a formação de re-cursos humanos para o exercício da docênciaentre os profissionais indígenas, considerandosuas tradições e estimulando a emergência demétodos de ensino que garantam a produçãode uma literatura na língua nativa.

Entre os vários aspectos apontados pela Pro-posta Curricular de Santa Catarina, destaca-sea discussão sobre o caráter diferenciado da Edu-cação Escolar Indígena, passando pela questãoda cultura como elemento determinante nasrelações educacionais estabelecidas entre a es-cola e a comunidade indígena.

Propõe que o currículo, entendido comotoda a organização da escola − seus conteúdos,a forma como são distribuídos os períodos leti-vos, o material didático, entre outros aspectos−, seja discutido e elaborado em parceria coma comunidade indígena. Para tanto, trabalha-se na perspectiva de construção desse currícu-lo diferenciado com os professores que atuamnas escolas indígenas, a partir da prática desen-volvida nessas unidades escolares e da contri-buição da comunidade indígena.

O Curso de Formação e Habilitação de Pro-fessores de Séries Iniciais do Ensino Funda-mental para o Contexto Indígena Xokleng eKaingang vem sendo desenvolvido pela SED/SC como experiência pedagógica em regimeespecial desde 1999, em cumprimento ao quedispõe a LDB 9.394/96, no seu artigo 79, e con-cretizando as proposições do Plano Nacionalde Educação, no que diz respeito à EducaçãoEscolar Indígena, bem como atendendo às de-terminações do Fundo de Desenvolvimento doEnsino Fundamental e Valorização do Magis-tério que extingue, no prazo de cinco anos, acategoria de professor leigo. Foi aprovado peloParecer nº 248/98 do Conselho Estadual deEducação/SC e destina-se a professores indí-genas leigos que já atuam nas escolas indíge-nas, além de outros índios interessados, indi-

Page 48: LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

cados por suas comunidades de origem.Tem a duração de 2.590 horas/aula, e 20%

da carga horária de cada disciplina é realizadana modalidade de ensino a distância. Entreuma etapa presencial e outra, os alunos desen-volvem trabalhos, tais como: estudos orienta-dos; coleta de dados nas suas comunidades,buscando responder ou elucidar questõessurgidas no período presencial e estágios quecontemplem observação, participação e regên-cia de sala de aula com o respectivo registrodessas práticas.

Ocorre em etapas concentradas, durante orecesso escolar – 26 dias em janeiro e 15 diasem julho –, no Colégio Estadual Agrícola Cae-tano Costa, e em etapas intermediárias nosmeses de maio e setembro – seis dias, perfazen-do um total de 636 horas aula/ano.

A opção por etapas concentradas deve-se aofato de os alunos, em sua maioria, atuaremcomo professores leigos, não alterando, assim,o andamento dos seus trabalhos e, também,para que não fiquem tempo demasiado sem ocontato com suas aldeias.

Todas as disciplinas de base comum, den-tro do possível, procuram se adequar à óticadas culturas Kaingang e Xokleng, estabelecen-do relações com o já conhecido e fornecendoinstrumental para que o professor-aluno inda-gue-se e busque conhecer mais sobre a suaprópria realidade.

Além dessas disciplinas de base comum, ocurso inclui as disciplinas de Sociologia Cultu-ral, Língua Kaingang/Xokleng, História e Orga-nização Social Kaingang/Xokleng, Metodologiade Pesquisa, Saúde Pública, Metodologia doEnsino da Língua Kaingang/Xokleng e Metodo-logia do Ensino Bilíngüe.

Ocorreram miniestágios distribuídos aolongo do curso, computados nas horas de en-sino a distância, realizados em Língua Portu-guesa e Língua Kaingang ou Xokleng, com aprodução de relatórios e a participação em se-minários para apresentação e problematizaçãodessa atividade.

Os cursistas também participam de proje-tos especiais de pesquisa e fomento culturalem suas comunidades, além de oficinas paraprodução de material de apoio e recursos pe-

dagógicos e oficinas de produção literáriaKaingang e Xokleng.

Os docentes do curso integram o NEI comodocentes e consultores, contam com reconhe-cida experiência na área de Educação Indígenae constituem uma equipe interdisciplinar paraa elaboração de proposta teórico-metodológicapara cada etapa de ensino, com o acompanha-mento de dois auxiliares de ensino bilíngüe,responsáveis por atividades extraclasse comLíngua Kaingang e Xokleng.

A avaliação perpassa todas as etapas pre-senciais e não presenciais e é realizada peloconjunto dos participantes (cursistas, docen-tes, coordenação) e pelas instituições envolvi-das, tendo a função de redimensionar o pro-cesso educativo, detectando dificuldades, en-traves e redimensionando atividades e práti-cas pedagógicas.

Todas as disciplinas e atividades desenvol-vidas no curso propõem-se a capacitar o pro-fessor-aluno a construir coletivamente umaproposta curricular das séries iniciais especí-fica e diferenciada, intercultural e bilíngüe, ouseja, uma proposta com organização curri-cular, conteúdos, metodologia, calendário es-colar, avaliação e material didático que expres-sem a visão de mundo e o modo de serKaingang e Xokleng.

O curso integra o Programa de FormaçãoContinuada para Educadores que Atuam noContexto Indígena, em que se inserem: 96 ho-ras/ano de capacitação a todos os educadoresque atuam na Educação Indígena e o Curso Su-pletivo de 5ª a 8ª séries com Qualificação parao Magistério Indígena, em módulos, que aten-de à especificidade do contexto escolar indí-gena, visando à qualificação, em nível de En-sino Fundamental, dos profissionais que atu-am nesse contexto. Inclui no quadro curricularas disciplinas Língua Indígena Materna e Cul-tura Indígena (Kaingang, Xokleng e Guarani, deacordo com a comunidade à qual se destina) eMetodologia de Ensino. Esse curso foi autori-zado pelo CEE/SC, por meio do Parecer nº 217/98, e inclui a capacitação das equipes vincula-das aos Centros de Educação de Adultos(Ceas), assim como a produção de materialespecífico.

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177

PPPPPAINEL AINEL AINEL AINEL AINEL 88888

EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃODE PROFESSORES INDÍGENAS

Eunice Dias de Paula

Terezinha Furtado de Mendonça

Page 50: LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

178

As reivindicações por uma escola indígenacom um ensino que atenda às expectativas dosdiferentes povos têm na figura do professor in-dígena um dos seus eixos basilares. De fato, aopensarmos na longa trajetória desses quinhen-tos anos, em que as políticas públicas destina-das a essas populações, via de regra, forampautadas por ações que visavam à assimilaçãoe ao apagamento da diversidade étnica presen-te neste país, constatamos que os diversosagentes educacionais utilizados pelos coloni-zadores cumpriram com eficácia seu papel,implementando modelos educacionais favorá-veis ao intento maior do projeto colonial.Quando uma nova história começou a sertraçada, há cerca de trinta anos, com os povosindígenas exigindo escolas que estivessem aserviço de seus projetos de vida, nada maiscoerente que pessoas das diversas etnias as-sumissem essa função, considerando o domí-nio lingüístico e cultural próprio a um mem-bro interno ao grupo, sem dúvida, superior aode qualquer não-índio, que, mesmo dotado deboas intenções e preparo técnico, não pode sercomparado a quem nasceu e foi criado em ou-tro chão cultural, passando por experiênciasformativas únicas, como os rituais de inicia-ção, os ensinamentos necessários à sobrevi-vência, os conhecimentos mitológicos etc.

Entretanto, de modo bastante paradoxal,constatamos que, se a figura do professor indí-gena parece consensualmente aceita no discur-so e na prática dos detentores do poder, encai-xada nos programas de Educação Escolar Indí-gena que se multiplicaram no país, o mesmonão se pode dizer a respeito dos processos

formativos vivenciados por esse professor nosanos que antecederam a sua prática pedagógi-ca em sala de aula. Há uma concepção de for-mação fortemente marcada pela depreciaçãoem relação ao professor que não passou porprocessos de escolarização seriados, estabele-cidos por nossa sociedade, em escolas fora dasaldeias, e que, portanto, estaria menos apto acursar um segundo grau com habilitação parao Magistério em escolas indígenas. Como o quese privilegia é a formação dada nos cursos or-ganizados por não-índios, esse professor é, qua-se sempre, considerado não-escolarizado oucom escolaridade insuficiente. Queremos res-saltar o contra-senso embutido nessa concep-ção, pois se o que se espera é que ele seja umbom professor indígena, o processo formativoproporcionado pelas comunidades é que deve-ria ser considerado relevante.

Concordamos que o exercício do Magisté-rio acarreta responsabilidades variadas, quetêm que ser contempladas dentro do que ascomunidades expressam em relação às expec-tativas do trabalho do professor, responsabili-dades bastante diferentes das que ele pode en-contrar entre os especialistas de Educação In-dígena, como “entender a vida dos brancos”, porexemplo. Sobretudo se considerarmos que aescola é uma instituição que está sendo apro-priada pelos povos indígenas, mas que, nessemovimento de apropriação, carrega consigouma organização de conhecimentos em tempose espaços muito diferentes dos sistemas edu-cativos tradicionais. A par dessas considerações,ousamos afirmar que a formação dos profissio-nais de Educação Escolar Indígena não pode ser

* Pedagoga, mestre em Estudos Lingüísticos pela UFG, assessora pedagógica da Escola Tapirapé, em Mato Grosso.

Professores indígenas:processos formativos e algumasindagações

Eunice Dias de Paula*

Cimi/MT

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Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 8

pensada de um modo desconectado do proces-so formativo vivenciado pelos professores emsuas comunidades, sob risco de continuarmosa agir do mesmo modo que os primeiros colo-nizadores. Ou a escola se insere nos sistemaseducacionais indígenas, como algo necessáriona realidade de contato com nossa sociedade,ou ela não será uma escola indígena, como aler-ta Melià.1

Queremos aqui destacar três experiênciasformativas em que vimos atuando como asses-soria e que têm buscado superar essa contradi-ção, por meio de vários caminhos. Entre osTapirapé, povo com o qual convivemos há umlongo tempo, a escolha inicial de pessoas con-sideradas aptas a serem professores aconteceuapós longas discussões com a comunidade e adecisão se encaixou num padrão cultural típi-co: os primeiros professores pertenciam a fa-mílias tradicionais das quais podiam ser esco-lhidas as lideranças. Após alguns anos, quandonecessitaram de novos professores, o critério deescolha utilizado foi o fato de dois rapazes te-rem ficado órfãos de pai. Queremos ressaltar,nesses dois casos, o fato de que os critérios se-letivos discutidos pela comunidade podem sercompletamente diferentes do que a simplespassagem por bancos escolares durante algunsanos. A preparação deles foi sendo feita pormeio de um acompanhamento cotidiano,permeado por um processo de reflexão e avali-ação em reuniões com a comunidade. A habili-tação para o Magistério aconteceu pela partici-pação no Projeto Inajá (I e II), organizado pelasprefeituras da região do Médio Araguaia emMato Grosso. Esse curso destinava-se tambéma professores leigos das zonas rurais dos muni-cípios envolvidos, portanto não tinha a carac-terística de ser voltado exclusivamente a pro-fessores indígenas. Um trabalho de “tradução”do curso fez-se necessário e, assim, o elo com avida da aldeia foi se mantendo. Como haviauma lacuna no tocante à formação lingüística,

organizamos, a pedido deles, cursos de LínguaTapirapé, assessorados pela Profª Dra. YonneLeite, do Museu Nacional, UFRJ. No primeirodesses cursos, realizado em 1997, os professo-res desejavam tomar decisões ortográficas, masse sentiam inseguros a respeito de determina-das palavras. Na avaliação, solicitaram que ospróximos cursos fossem realizados na aldeia, afim de facilitar a pesquisa com os mais velhos.Esse fato é bastante significativo, pois demons-tra a articulação que pode existir entre novosconhecimentos, no caso, a aquisição de um ins-trumental de análise lingüística, e o profundoconhecimento da Língua Tapirapé, exercidopelas pessoas idosas.

Os professores Kayabi, Apiaká e Mundu-ruku, da região do rio dos Peixes, município deJuara, em Mato Grosso, participaram do Proje-to Tucum – Formação para Professores Indíge-nas – desenvolvido pelo estado do Mato Gros-so. Entretanto, queriam elaborar a propostacurricular de suas escolas, uma vez que preten-dem oficializá-las como escolas indígenas. Paraisso, solicitaram assessoria ao Conselho Indige-nista Missionário (Cimi), Regional MT. O traba-lho está sendo desenvolvido há dois anos emencontros periódicos, dos quais participam nãosó os professores, mas toda a comunidade.2 Sãomomentos muito ricos, pois todas as pessoasestão envolvidas na discussão a respeito decomo querem a escola para seus filhos, definin-do todo o planejamento escolar, desde o calen-dário até os conteúdos considerados importan-tes no processo de aprendizagem concebidocomo necessário para a realidade atual.

Os professores Guarani e Kaiowá, organiza-dos no Movimento dos Professores IndígenasGuarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul desdea década de 1980, vinham lutando há muitotempo para ter um curso de Magistério especí-fico. O Projeto Ára Verá (“tempo iluminado”),assumido pela Secretaria de Educação do Esta-do em 1999, em parceria com vários municí-

1 Bartomeu Melià, em palestra proferida no I Congresso Latino-Americano de Educação Escolar Indígena, promovido pela UFMS, em Doura-dos, MS, em maio de 1998.

2 Esse trabalho é desenvolvido em conjunto com Maria Regina Rodrigues e Maristela Sousa Torres, ambas da equipe de coordenação do Cimi,Regional MT.

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180

pios, passou por uma longa gestação, envolven-do professores indígenas, lideranças e aliadosdos Guarani e dos Kaiowá e, com certeza, deve-se a esse processo amadurecido a possibilida-de de avanços significativos em relação ao queconhecemos em termos de cursos para profes-sores indígenas.

Segundo seus autores, o Projeto Ára Verá“constitui-se num processo integrado às práti-cas vivenciadas pelos Guarani/Kaiowá, as quaisse baseiam em três grandes fontes – teko (cul-tura), tekoha (território) e ñe’e (língua) – que sãotambém os eixos fundamentais pelos quais vãose articular os conteúdos e a metodologia docurso”.3 Essa proposta não ficou só no papel,concretizando-se de várias formas: os alunos sesentem absolutamente à vontade para se ex-pressar em sua própria língua, durante as eta-pas presenciais do curso; às vezes, temos a sen-sação de estar participando de um grandefórum de debates sobre a situação da língua, osvalores culturais, ou sobre os sistemas educa-cionais próprios e o que representa a presençada escola; a “aula”, não raras vezes, transforma-se em assembléia, e ao professor “ministrante”cabe aprender com verdadeiros mestres dopovo Guarani/Kaiowá.

A estreita ligação do projeto com a vidaGuarani está assegurada também pela possibi-lidade da participação constante de caciquesrezadores durante as etapas presenciais do cur-so, conforme afirmado num dos princípios me-todológicos:

[...] da produção do conhecimento, que implica

criar condições favoráveis para desenvolver o

processo de descoberta, pesquisa, criação e apro-

priação dos conhecimentos. Para suprir essa ne-

cessidade, será assegurada, também, durante o

curso, a participação efetiva de caciques Guarani/

Kaiowá, os quais garantem a orientação de ques-

tões próprias da cultura tradicional, sob o seu

ponto de vista (idem, ibidem: 15).

Durante a etapa de Fundamentos da Edu-cação, por mim ministrada em janeiro de 2000,

a presença de D. Júlia, rezadora de Amambaí,foi incrível, pois, além de ela trabalhar na prá-tica os Fundamentos da Educação Tradicional,realizando diferentes tipos de danças e de ce-rimoniais, alternava momentos de exposiçãoteórica para os cursistas, usando cartazes commitos desenhados. Em todas as etapas, temacontecido a presença desses caciquesrezadores, que realizam todas as manhãs umritual conhecido como jehovasa, uma bênçãomatinal para que tudo corra bem durante o dia.Além disso, são consultados sobre assuntosque os professores, jovens em sua maioria, nãodominam. Durante a 5ª Etapa, quando discor-ria sobre as relações entre grafismo e escrita,exemplificando com motivos trançados em ar-cos e cestos, o Sr. Jofre, cacique rezador dePanambi, explicou em Guarani os nomes dosmotivos decorativos. Foi uma surpresa paramuitos, que não sabiam que havia denomina-ções diferentes para identificar os desenhosgeométricos. Ainda nessa etapa, houve o lan-çamento do livro de contos Ñe’ë Poty Kuemi(Palavras floridas tradicionais), produzido pe-los professores a partir de pesquisas nas comu-nidades. O livro foi batizado pelos caciquesrezadores e rezadoras de várias aldeias, numacerimônia comovente chamada ñe’ë mongarai.A dimensão desse ato excede qualquer plane-jamento curricular que possa ser feito pelostécnicos das Secretarias de Educação, pois sig-nifica, de fato, algo produzido pela EducaçãoEscolar sendo introduzido no sistema simbó-lico-religioso do povo, como ressaltado porMelià (op. cit.).

Acreditamos que o breve relato dessas trêsexperiências de processos formativos de pro-fessores indígenas mostra outros caminhospossíveis de trilhar. Resta saber se os respon-sáveis pelas políticas públicas em Educaçãoestarão dispostos a assumir realmente o quepreconiza a Constituição Federal, que garanteaos povos indígenas e, claro, aos seus profes-sores o direito aos processos próprios de apren-dizagem.

3 Projeto Ára Verá – Curso Normal em Nível Médio – Formação de Professores Guarani/Kaiowá, Campo Grande, MS, 1999, p. 13.

Page 53: LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

181

Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 8

ResumoO presente artigo retrata a experiência de for-

mação de professores indígenas para o Magisté-

rio – Projeto Tucum. Esse projeto foi desenvolvi-

do de 1996 a 2000, em quatro pólos regionais do

estado de Mato Grosso: Tangará da Serra, Água

Boa, Rondonópolis e Paranatinga, para 11 etnias

diferentes: Paresi, Rikbaktsa, Irantxe, Kayabi,

Munduruku, Apiaká, Nambikwara, Umutina,

Xavante, Bakairi e Bororo. Dos duzentos cursistas

que iniciaram o Projeto Tucum, 176 se formaram

em nível médio e, destes, 70% ingressaram nos

cursos do terceiro grau indígena na Unemat.

A política brasileira, por muitos anos, igno-rou as demandas apresentadas nas questões in-dígenas, quando colocadas nas discussões; oque prevalecia era um discurso integracionistadessas populações, ignorando as diversidadesde sociedades aqui existentes.

Com a promulgação da Constituição Fede-ral de 1988, foram assegurados os direitos in-dígenas em um capítulo específico (Dos Ín-dios). Passou-se a reconhecer o direito à dife-rença, isto é, à alteridade cultural, estabelecen-do-se a partir daí um novo paradigma rela-cional. A União passa a ter a incumbência delegislar sobre as populações indígenas, comuma nova concepção que não aquela de incor-poração à sociedade nacional.

No ano de 1991, a Educação Escolar Indí-gena sai da esfera da Fundação Nacional doÍndio (Funai) e passa a ser de atribuição do Mi-nistério da Educação (MEC), tendo as Secreta-

Projeto TucumRelato de uma experiência de formaçãode professores indígenas em Magistério

Terezinha Furtado de Mendonça*

Seduc/MT

rias de Educação dos estados e municípios aincumbência de sua aplicação, em consonân-cia com a Secretaria Nacional de Educação doMEC. Tal mediação foi resultado do Decreto nº26/91, de 4 de fevereiro de 1991.

Também no mesmo ano, foram publicadasa Portaria Interministerial nº 559/91 e as Porta-rias nº 60/92 e 490/93, instituindo no Ministé-rio da Educação o Comitê de Educação EscolarIndígena, cuja finalidade é subsidiar as açõeseducacionais indígenas, servindo de referênciaaos planos operacionais dos estados e municí-pios. A partir de então, foi elaborado pelo co-mitê o documento Diretrizes para a PolíticaNacional de Educação Escolar Indígena, nor-teando as ações a serem implementadas nasesferas federal, estadual e municipal.

No estado de Mato Grosso, o enfrenta-mento da questão da Educação Indígena é an-terior ao Decreto nº 27/91. A Secretaria Esta-dual de Educação (Seduc), ainda que sem com-petência legal, já atuava junto às populaçõesindígenas, atendendo a algumas de suas neces-sidades no campo educacional.

Em setembro de 1987, em função das difi-culdades e da multiplicidade de instituições eentidades que vinham atuando nessa questão,buscou-se uma articulação dos diferentes tra-balhos pela criação do Núcleo de Educação In-dígena de Mato Grosso (NEI/MT). Sem ter umcaráter oficial, o NEI/MT caracterizou-se comoum fórum de discussão de ações entre as di-versas instituições.

* Assessora pedagógica na Equipe de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Estado de Educação, MT. Atuou na Coordenação-Geral doProjeto Tucum.

Page 54: LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

182

A partir de 1989, a Secretaria de Estado deEducação cria a Divisão de Educação Indíge-na e Ambiental, extinta na reestruturação daSecretaria, no ano de 1992. Essa divisão, emsua curta história, procurou desenvolver suaação em consonância com o NEI, buscandoresponder às reivindicações das sociedades in-dígenas, encaminhadas por intermédio das li-deranças de suas comunidades e por entida-des de apoio ao índio. Esse trabalho foi desar-ticulado e o grupo esfacelado, sob o argumen-to da “modernização do Estado” e da gestão daqualidade total.

Com o atual governo, a questão indígena éretomada, discutida e analisada sob um novoenfoque, constatando-se a inexistência de umapolítica indigenista estadual. O tema passa aser incluído no Plano de Meta. Nesse docu-mento, algumas propostas são delineadas, ser-vindo como diretrizes para a implantação depolíticas.

A Coordenadoria de Assuntos Indígenas doEstado de Mato Grosso (CAIEMT), órgão liga-do à Casa Civil, é reativada e orientada peloPrograma de Governo, passando a articularforças para a implementação da políticaindigenista.

O estado de Mato Grosso congrega 38 soci-edades indígenas, perfazendo uma populaçãoaproximada de 28 mil pessoas, distribuídas em41 municípios do estado. No que se refere à re-alidade escolar, essa população dispõe de 150escolas, entre estaduais e municipais, atenden-do aproximadamente a 6.500 alunos.

Com o objetivo de assessorar as escolas in-dígenas, prestar atendimento técnico aos do-centes indígenas e às agências que trabalhamcom a Educação Escolar Indígena, a fim de de-liberar sobre a política indigenista estadual naárea da educação, foi criado o Conselho deEducação Escolar Indígena de Mato Grosso(CEI/MT), pelo Decreto no 265/95, de 20 dejulho de 1995.

Com a elaboração do Diagnóstico da Edu-cação Escolar Indígena em Mato Grosso(Secchi, 1995), Seduc e CAIEMT avaliam a ur-gência da implantação de um Programa deFormação de Professores Indígenas que con-temple uma continuidade das ações educacio-

nais, bem como para agregar forças e habilitarprofessores, levando em conta a diversidadeétnica e suas especificidades culturais, respei-tando, dessa forma, o projeto educacional dascomunidades e sua necessidade de diferencia-mento.

Em 1995, com o objetivo de reunir todas asagências envolvidas com a Educação EscolarIndígena, realizaram-se quatro seminários re-gionais, a fim de pensar uma proposta comumde formação de professores indígenas.

Criou-se o Projeto Tucum – Programa deFormação de Professores Índios para o Magis-tério. Tucum é o nome atribuído ao projeto porse tratar de uma palmeira resistente, cujo fru-to faz parte da matéria-prima na confecção dosadornos, em todas as etnias do estado, e é na-tiva tanto no cerrado quanto na mata.

A escolha do nome não foi por acaso. Háuma associação do fazer criativo e cuidadosodo artesanato com a formação de professoresindígenas que aponta para a significação daeducação como técnica, como prática sociale cultural. É uma relação metafórica entre cul-tura e educação como técnica que deve ins-trumentalizar o índio para a ação social docontato.

Esse nome envolve sentidos, significaçõesque se aderem ao projeto, vir tualizandoobjetivações. Entretanto, no curso do proces-so de construção do Projeto Tucum, esses sen-tidos foram um desafio contínuo.

Colocando-se como resposta, como enca-minhamento de reivindicações de direitos es-pecíficos das populações indígenas no campoeducacional, o projeto foi pensado como or-ganização coletiva da prática pedagógica, emregime de co-responsabilidade dos diversosatores em torno do processo de formação di-ferenciada de professores da Educação Esco-lar Indígena.

Coordenação-geral, coordenação regional,docência, assessoria pedagógica, assessoria deárea de conhecimento, consultoria e monitoriaeram instâncias de gestão e execução da pro-posta pedagógica funcionalmente articuladas,numa dinâmica de cooperação, interação eintercomplementaridade. O nexo de ligaçãoentre elas foi construído pela consciência da

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Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 8

importância do papel e do desempenho naação conjunta. Procurou-se superar o nexo deligação tradicional, construído segundo umaconcepção funcionalista de organização, pormeio de funções hierarquizadas.

O projeto teve como objetivos a capaci-tação e a habilitação de professores índios, oacesso e o desenvolvimento escolar por meiodo diálogo intercultural, condições de desen-volvimento do processo educativo fundado nasculturas e formas de pensamento indígena,condições de produção do conhecimento deprocessos interativos escola/comunidade efortalecimento desse processo, valorização doprofissional de educação das escolas indíge-nas, elaboração de proposta curricular diferen-ciada, bilíngüe e intercultural para as escolasindígenas em que os cursistas atuam.

A proposta pedagógica do projeto visouromper com a concepção dicotômica entreeducação e prática social, constituindo-se emprocesso de conhecimento integrado às práti-cas vividas. Os eixos fundamentais do desen-volvimento das comunidades indígenas esta-vam baseados em seu território, sua língua esua cultura, portanto estes foram os eixos quenortearam o currículo do projeto (Governo doEstado do Mato Grosso, Projeto Tucum, p. 30-35).

Em se tratando do currículo, pretendeu-seabordar conteúdos das culturas indígenas e deoutras, assim como os conhecimentos univer-sais que interessavam às necessidades de con-tinuidade e transformação daqueles grupos.Para isso, usaram-se, durante todo o processoeducativo, as Línguas Indígenas e a Língua Por-tuguesa, como instrumento de comunicação eobjeto de estudo, em busca da manutenção eda dinamização dessas línguas e culturas. Por-tanto, o Projeto Tucum teve por base um cur-rículo diferenciado, específico, intercultural ebilíngüe.

Entendendo a educação como um direito,no projeto não coube avaliar para classificar,excluir ou sentenciar, aprovar ou reprovar. Por-tanto, a avaliação incidiu sobre aspectos glo-bais do processo, inserindo tanto as questõesligadas ao processo ensino-aprendizagemcomo as que se referem à intervenção do pro-

fessor, ao currículo do projeto, à organizaçãodo trabalho, à função socializadora e cultural,à afirmação das identidades e dos valores e aotrabalho docente do professor cursista. Assim,o professor cursista e seu desempenhocognitivo não foram os únicos aspectos a se-rem avaliados.

O projeto buscou romper com a lógica daavaliação somativa, pela qual o aluno precisater número “x” de pontos para ser aprovado.Dessa forma, não se pensou na prova comoúnico instrumento de avaliação. Outros meiosprecisaram ser construídos, sempre a partir decritérios não mais ligados aos números de pon-tos alcançados em si, mas aos objetivos defi-nidos (idem, ibidem – ver Avaliação).

O curso foi desenvolvido de forma parce-lada, para atender à realidade das comunida-des, que não permitem ao professor índio au-sentar-se de seu lugar de trabalho para fre-qüentar um curso regular sem, com isso, cau-sar-lhe sério prejuízo. Assim, o curso foiestruturado em três etapas:

Etapa intensiva. Realizada no período deférias e recessos escolares, com duração dequatro a cinco semanas; foram trabalhadasas disciplinas de ensino, sob a orientaçãode docentes e o acompanhamento demonitores. Antes de cada Etapa intensivaforam realizados encontros preparatóriosde formação e planejamento da etapa paradocentes, monitores e coordenação, con-tando com assessoria específica de cadaárea disciplinar.

Etapa intermediária. Compreendeu todasas atividades realizadas pelo cursista entreuma Etapa intensiva e outra. Obedeceu auma carga horária prevista na gradecurricular e a um cronograma de ativida-des, atendendo às necessidades específicasdo cursista e de cada comunidade. As ati-vidades foram desenvolvidas na aldeia, soba coordenação do monitor.

Estágio supervisionado. Foi a atividade re-alizada na aldeia, que contou com a pre-sença do monitor que observou, discutiu eanalisou com os cursistas a sua atuação emsala de aula, debateu os problemas encon-trados no dia-a-dia do trabalho e na rela-ção escola/comunidade.

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184

O projeto foi organizado em quatro pólosregionais, tendo por clientela 200 professoresindígenas, atingindo indiretamente um públi-co aproximado de 4.500 alunos. O primeiropólo, situado no Município de Tangará da Ser-ra, abrangia um total de seis municípios, en-volvendo oito etnias. O segundo, situado noMunicípio de Água Boa, abrangeu quatro mu-nicípios e uma etnia. O terceiro pólo, no Mu-nicípio de General Carneiro, abrangeu quatromunicípios e uma etnia. Por fim, o quarto pólosituou-se no Município de Paranatinga, abran-gendo três municípios e duas etnias.

As etapas tiveram início em 1996, sendoesse trabalho coordenado pelo estado, pormeio da Seduc e da CAIEMT, com a consultoriaPNUD/Prodeagro, contando ainda com a par-ticipação da Funai, das prefeituras municipaise das seguintes ONGs: Conselho IndigenistaMissionário (Cimi), Operação Amazônia Nati-va (Opan), Sociedade Internacional de Lingüís-tica (SIL), Congregação das MissionáriasLauritas, Missão Salesiana, Junta MissionáriaNacional ( JMN), Congregação das IrmãsCatequistas Franciscanas (Cicaf ).

As assessorias do projeto estavam vincula-das às seguintes instituições: Universidade Fe-deral de Mato Grosso (UFMT), UniversidadeEstadual de Mato Grosso (Unemat), Universi-dade de Campinas (Unicamp) e UniversidadeFederal de Santa Catarina (UFSC).

O projeto contou com financiamento doBanco Mundial, por meio do Programa de De-senvolvimento Agroambiental (Prodeagro) ecom apoio do Programa das Nações Unidaspara o Desenvolvimento (PNUD).

Posteriormente, já no ano de 1998, a polí-tica de formação de professores indígenas es-tendeu-se para o atendimento da demanda doscatorze povos da Terra Indígena do Xingu.

A experiência da Secretaria de Estado deEducação e da Coordenadoria de Assuntos In-dígenas, em parceria com outros agentes e comlideranças indígenas, em objetivar a proposi-ção de formação de professores indígenas parao Magistério, envolve o enfrentamento de de-safios imensos. Sendo a primeira ação sistemá-tica de Educação Indígena, em conformidadecom as diretrizes gerais definidoras de princí-

pios básicos da escola indígena do Ministérioda Educação, o curso de formação de profes-sores indígenas para o Magistério assume, ne-cessariamente, uma qualidade constituinte depolítica pública em nível de estado e de muni-cípio. O grande desafio a enfrentar, nesse ter-reno, tem sido o do envolvimento das prefei-turas de municípios com populações indíge-nas. A sensibilização das prefeituras, no senti-do de aprender a Educação Indígena comodever, conseqüentemente como compromissopúblico, tem exigido disposição constante.

A invisibilidade dos índios como cidadãosmediatiza interesses e motivações de profes-sores, repercutindo, por exemplo, na questãoda monitoria. O monitor deveria desempenharum papel estratégico no processo pedagógicodo projeto, com permissão de observar, acom-panhar e avaliar o desempenho do professoríndio, como cursista e como profissional daeducação em atividade em sala de aula, forne-cendo dados e indicações aos docentes acercadas dificuldades, insuficiências e necessidadesespecíficas, enfim, colaborando com ajustes depercurso. No desenvolvimento do projeto, con-tudo, a monitoria se configurou como proble-ma. Enfrentou-se, ao longo do processo, umarotatividade reiterada de monitores, com con-seqüências pedagógicas críticas no âmbito deensino-aprendizagem, acompanhamento eavaliação proposta. Essa flutuação teve duplaface: de um lado, a precariedade e a indefiniçãoda situação funcional dos monitores nas pre-feituras, a baixa remuneração, as dificuldadesde deslocamento para as aldeias e, de outro, abaixa motivação de professores em trabalharcom Educação Indígena.

A cada desistência ou afastamento de ummonitor, enfrentou-se o desafio de encontrarum substituto, de resolver a situação funcio-nal e de capacitação na metodologia do proje-to. Essas dificuldades configuravam uma ten-dência de acumulação de papéis, até que seequacionasse a contratação de um novomonitor. A acumulação da função de monitordo projeto com a de assessor pedagógico oude docente na sede do município, ou em al-guns de seus distritos, limitou, restringiu ecomprometeu o papel pedagógico de monitor.

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Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 8

A dedicação exclusiva à monitoria seria umrequisito fundamental, quer fosse sob oenfoque das implicações pedagógicas, quersob o enfoque da dispersão geográfica das áre-as indígenas e das aldeias no interior dessasáreas, necessitando de deslocamentos perió-dicos ao longo de cada mês.

Cada município deveria oferecer seu qua-dro de monitores para atuar no projeto. Hou-ve casos em que prefeituras “importavam”monitores, por não disporem de profissionaisno município. Essa solução foi inadequadapara preencher a vacância de monitoria. Eraimprescindível que o monitor fosse um profis-sional local, com conhecimento da realidadee experiência no Magistério. Alguns pólosvivenciaram essa dificuldade de forma dramá-tica, havendo monitor que atendia a cursistasde três povos indígenas diferentes.

Outro grande desafio foi desenvolver o pro-jeto em parceria com diversas organizaçõesnão-governamentais de apoio aos índios. Es-sas organizações possuíam orientações e agen-das diferenciadas, exigindo, a cada fase do pro-cesso, um trabalho intenso de construção deconsensos. Essas organizações, como já regis-tramos anteriormente, participaram da cons-trução do projeto, da sua proposta pedagógi-ca e da sua execução.

Essa participação mais direta no processopedagógico deu-se por intermédio de asses-sor ias e monitorias. No que concerne àmonitoria, ainda que por motivos plenamen-te justificáveis, registrou-se também a ocor-rência de rotatividade, embora com implica-ções menos dramáticas, uma vez que a ques-tão da invisibilidade do índio não se colocou.Mas, ainda assim, a flutuação desses moni-tores implicou descontinuidade na sua açãoeducativa.

Assim como os monitores, nem sempre osrepresentantes dessas organizações nas etapasde planejamento foram os mesmos, implican-do idas e vindas na discussão de aspectos maissensíveis, como a questão lingüística. Essasidas e vindas permitiram ver diferentes dimen-sões problemáticas da rica experiência de umprojeto em parceria. Permitiram ver, no con-junto das organizações em si, que a flutuação

de representantes dificulta a consolidação deposicionamentos em patamares de atualidadedas discussões e decisões. Permitiram ver, noâmbito dialógico dessas organizações entre sie com as outras, que a flutuação de represen-tantes dificultou o avanço das discussões, li-mitando a ampliação e o aprofundamento dainterlocução. Permitiram ver que a experiên-cia do trabalho coletivo envolveu uma fase doprocesso, um patamar específico de relaçãopedagógica no interior do Projeto Tucum.

Esses desafios instigaram a capacidade deresolução de dificuldades entre todos os envol-vidos, permitindo rever passos, lidar com con-flitos, perceber erros, reconhecer fragilidadese contradições.

A avaliação de um projeto como o que oraestamos apresentando supõe o tratamento dediferentes enfoques que dão forma a essa com-plexa realidade.

Para efeitos do presente trabalho, destaca-rei alguns desses aspectos que tiveram maiorconsenso e visibilidade quando da realizaçãoda avaliação pelos diversos segmentos que par-ticiparam do projeto (monitores, docentes,cursistas, coordenação, consultores etc.).

Para melhor abordá-los, irei agrupá-los emquatro núcleos temáticos, a fim de enfatizar assuas diferentes naturezas – aspectos pedagó-gicos, operacionais, políticos e financeiros. Ve-jamos um pouco de cada um desses núcleos.

Pedagógicos. A avaliação de todos os seg-mentos expressou enfaticamente a impor-tância da adoção de uma metodologia deestudos centrada na pesquisa e nos conhe-cimentos culturais de cada povo. Esses doiselementos constituíram as âncoras do pro-grama e conferiram-lhe unidade e se-qüenciação, não obstante as interrupçõessofridas ao longo do período, quer pelaalternação das etapas de realização, querpor problemas de ordem administrativa efinanceira.

Operacionais. Talvez estes aspectos te-nham sido os que trouxeram maiores pro-blemas e que, portanto, exigiram maior es-forço e cooperação interinstitucional parasuperá-los. Embora o trabalho em parce-ria tenha sido um grande avanço nesse pro-jeto, a sua concretização no cotidiano não

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tem sido uma das tarefas mais fáceis. Cadainstituição tem o seu próprio tempo insti-tucional, seu ritmo, suas prioridades, en-fim, o seu modo próprio de tratar as ques-tões que lhe são apresentadas. Isso exigeum permanente esforço de todos os parcei-ros para valorizar os pontos de consenso ebuscar superar os atritos e os dissensos.

Políticos. A implementação de políticas pú-blicas envolvendo diferentes atores exige aconsolidação de um relacionamento querespeite a diversidade e que transite por di-ferentes administrações, partidos políticos,interesses locais e regionais etc. Nesse sen-tido, a realização do Projeto Tucum podeser considerada uma iniciativa que conse-guiu angariar apoiadores e aliados de dife-rentes espaços políticos, da mídia e de todaa sociedade civil. A construção coletiva deprojetos nos quais todos podem obter re-sultados mostrou-se um caminho viávelpara atender a tantas demandas acumula-das ao longo de cinco séculos de domina-ção e de desrespeito para com os assuntosindígenas.

Financeiros. Quando da elaboração do Pro-jeto Tucum, optou-se por agregá-lo aoProdeagro1 e por utilizar essa fonte de re-cursos para custear os seus gastos. Mais tar-de, porém, percebeu-se que a dependênciaexclusiva de recursos externos traria umasérie de dificuldades operacionais (incom-patibilidade da liberação dos recursos coma programação dos gastos, inadimplências,cortes, reduções, conjuntura econômicamundial etc.), além de reforçar o já consa-grado descompromentimento de recursospróprios para o financiamento dos assun-tos indígenas. Esse aprendizado fez com quetodos os projetos subseqüentes fossem fi-nanciados por um leque de diversos apoia-dores e com diferentes fontes de recursos.Nesse sentido, o Projeto Tucum teve umgrande êxito ao apontar a necessidade defazer incluir nos orçamentos públicos recur-sos específicos para os assuntos indígenas.

As reflexões e as ações que aconteceram ao

longo do percurso do Projeto Tucum desper-taram para a necessidade de se elaborar polí-ticas públicas específicas para a Educação Es-colar Indígena no Estado de Mato Grosso.

Os Cursos de Licenciaturas Específicospara Professores Indígenas, que tiveram iní-cio em julho de 2001, são exemplos disso. Vi-sam à formação e à habilitação de professo-res indígenas para o exercício docente no En-sino Fundamental e Médio. Abrangem trêsáreas diferentes – Ciências Matemáticas e daNatureza; Ciências Sociais; Línguas, Artes eLiteratura – e estão vinculados à Universida-de do Estado de Mato Grosso em parceria comoutras instituições. Um dos objetivos do pro-jeto é possibilitar o acesso dos povos indíge-nas a esse nível de ensino e contribuir para ofortalecimento dos projetos de vida e de fu-turo de cada povo.

A implementação de uma política de Edu-cação Escolar Indígena construída coletiva-mente, que contempla os programas de Ade-quação Institucional, Fortalecimento das Es-colas e Formação de Professores, tem sido umnovo desafio na continuidade do processodeflagrado a partir do Projeto Tucum.

BibliografiaGOVERNO DO ESTADO DO MATO GROSSO. Plano de

Meta, 1995/2006 – plano estratégico. Estudos prelimi-

nares. Cuiabá, 1994.

. Projeto Tucum: a construção coletiva do tra-

balho pedagógico. Cuiabá: SEE/MT, 1996. p. 30-35.

. Conselho de Educação Escolar Indígena

de Mato Grosso (CEI/MT). Urucum, jenipapo e giz: a

Educação Escolar Indígena em debate. Cuiabá: Entre-

linhas, 1997.

. A construção coletiva de uma política de

Educação Escolar Indígena para Mato Grosso. Cuiabá:

SEE/MT, 2000a.

. Relatórios de avaliação final do Projeto

Tucum: monitores, docentes, consultores, cursistas e

coordenadores. Cuiabá: SEE/MT, 2000b.

SECCHI, Darci. Diagnóstico da Educação Escolar Indíge-

na em Mato Grosso. Cuiabá: PNUD/Prodeagro, 1995.

1 Trata-se de um programa de desenvolvimento agroambiental implementado em Mato Grosso, com recursos do Banco Mundial.

Page 59: LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

187

PPPPPAINEL AINEL AINEL AINEL AINEL 99999

EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃODE PROFESSORES INDÍGENAS

Bruno Kaingang

Arlene Bonfim

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188

ResumoEste trabalho quer enfocar a situação pela

qual a Educação Indígena passou com a chegada

dos europeus às Américas, quando houve uma

grande desestruturação na educação. Marcado por

grandes conquistas de terra, esse momento fez

com que ocorressem drásticas transformações na

vida política, social e cultural dos povos indíge-

nas. Sendo assim, os povos indígenas foram sub-

metidos a uma nova visão de sociedade, seguin-

do o modelo europeu.

Essa nova visão de sociedade imposta obrigou

os povos indígenas a se organizar para fazer frente

aos novos desafios propostos pela sociedade oci-

dental. Nesse sentido, foram organizados vários

encontros e cursos de formação de professores

Kaingang, para garantir uma reflexão em face dos

desafios impostos aos povos indígenas do Brasil.

A Educação Indígena passou por um proces-so de desestruturação desde a chegada da co-lonização européia nas Américas, há quinhen-tos anos. Esse momento de conquista das ter-ras e extermínio dos povos e suas culturas fezcom que o mundo indígena passasse por umadura transformação política, econômica, sociale cultural. Assim, a educação tradicional dospovos passou a ter uma nova visão, européia,uma educação que não respeita as diferençasexistentes entre as sociedades, dessa maneiracriando conflitos de identidade cultural e denação. Se pensarmos no Brasil, veremos que nãoexiste uma educação que busque a formação docidadão e sim uma formação voltada para omercado de trabalho.

Quando se trata de Educação Indígena, ve-remos que, passado o século XX, ainda não te-mos uma Educação Indígena estruturada comsuas especificidades e cujos educadores possu-am a devida formação que garanta um ensino

de qualidade para as mais variadas culturas erealidades existentes no Brasil. Falando nisso,ainda recentemente muitas escolas localizadasem terras indígenas encontravam-se fora dossistemas de ensino dos estados, sendo, portan-to, “clandestinas”. Nessas escolas, a maioria dosprofessores tem formação de Magistério, emnível de Ensino Médio, mas parte desses docen-tes não concluiu o Ensino Fundamental. Issodificulta o ensino e a aprendizagem dos alunosindígenas e a prática da língua materna com aalfabetização, como está garantida na Consti-tuição de 1988. Isso sem contar que o professorindígena não conta com estímulos para a suaprática pedagógica.

A Constituição brasileira garante que a es-cola indígena tem que ter tratamento diferen-ciado, respeitando-se a especificidade de cadasociedade indígena. No artigo 210, estabeleceque o Ensino Fundamental deve ser ministra-do na Língua Portuguesa, respeitando e asse-gurando às sociedades indígenas a utilização desuas línguas maternas. Essa garantia é assegu-rada e regulamentada na Lei de Diretrizes eBases da Educação Nacional, de 1996, que ain-da estabelece a articulação dos sistemas de edu-cação para a oferta da Educação Escolar Indí-gena em forma bilíngüe e intercultural, demodo que garanta a recuperação de sua cultu-ra e sua história étnica.

Diante da situação que a Educação Indíge-na estava vivendo no final do século XX, as co-munidades indígenas, representadas por suaslideranças, tomaram a iniciativa de buscar al-ternativas para a situação educacional dosKaingang do sul do Brasil. As lideranças e osprofessores Kaingang começaram uma longadiscussão com entidades interessadas na Edu-cação Indígena. As alianças com universidades,

Experiência em formaçãode professores

Bruno Kaingang

Associação dos Professores Bilíngües Kaingang e Guarani (APBKG)/PR

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Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 9

professores e organizações não-governamentaispossibilitaram que a educação Kaingang tomas-se rumos mais consistentes, surgindo então oprimeiro curso de Magistério de Ensino Médio.

Essa necessidade é visualizada pela histó-ria de luta dos Kaingang, pois a população es-tava crescendo; hoje, são cerca de 30 mil pes-soas e com índice de crescimento constante.Situando-se em mais de trinta comunidadesKaingang no sul do país, eles se encontram en-tre os cinco povos indígenas mais populososdo Brasil.

Além disso, o número de professores não-indígenas era superior ao de professores indí-genas. Grande parte destes professores não temnenhuma formação específica para trabalharcom Educação Indígena, possuindo somente oMagistério. Isso sem contar que a maioria de-les vê o indígena com a mesma carga de estere-ótipo que a população regional, o que seria su-ficiente para prejudicar o desenrolar do proces-so escolar sob sua orientação. Para piorar essasituação, as escolas das comunidades indígenastinham a mesma organização curricular e omaterial didático das demais escolas da redepública. Além disso, muitas escolas ainda con-tinuam adotando orientação das Secretarias deEducação sem nenhuma especificidade.

Diante disso, e apoiados na Constituição de1988, os professores criam a sua própria orga-nização jurídica, a Associação dos ProfessoresBilíngües Kaingang e Guarani (APBKG), e come-çam uma discussão mais acirrada sobre a im-plantação do ensino específico diferenciado.Dessa luta, surge então o primeiro curso deMagistério específico para os professoresKaingang, já citado, que começa em 1993, gra-ças às alianças feitas pela Universidade de Ijuí,o Conselho de Missão entre Índios (Comin), oConselho Indigenista Missionário, a Secretariada Educação do Estado do Rio Grande do Sul ea APBKG, com apoio financeiro do Ministérioda Educação, formando então ou diplomando,em 1996, 22 professores, com habilitação espe-cífica para trabalhar educação bilíngüe eintercultural nas escolas Kaingang.

Esses professores Kaingang passam a atuarem suas comunidades e a ter uma ligação maisafetiva com as pessoas da comunidade escolar,

criando, então, a necessidade de ampliar o qua-dro de professores mais críticos no que se refe-re às questões indígenas e não só à educação,pois para os índios a educação não estádesvinculada da vida e de todas as relações exis-tentes no seu mundo. Dessa maneira, formam-se as novas lideranças em suas comunidades,chamando para si a responsabilidade da cons-trução das mais diversas demandas existentesnas terras indígenas. Com o objetivo de fazeruma educação de qualidade e uma formação decidadãos críticos na busca de melhoria para to-dos, esses professores nunca perdem de vistaas alianças formadas em torno da educação.

Com uma clareza maior da Educação Indí-gena, surge a necessidade de aperfeiçoamentodesses professores Kaingang e de ampliação doquadro de professores; reiniciam-se as lutas porformação continuada e formação inicial. Sur-gem vários encontros de formação promovidospela Secretaria da Educação do Estado e outrosrealizados pelos próprios professores Kaingang.Nesses encontros, a participação das lideranças(caciques) é muito importante, pois são elas quevão garantir e dar suporte político para os pro-fessores atuarem e pensarem novas alternativaspara as comunidades Kaingang.

Por outro lado, o número de professores ain-da era insignificante, e o de professores não-in-dígenas continuava sendo maior, como é atéhoje. A tão esperada educação de qualidade es-tava – e permanece – distante, pois a desquali-ficação dos professores para trabalhar com in-dígenas ainda não tinha sido superada; parapiorar isso, possuem em suas mãos as direçõesdessas escolas nas terras indígenas.

Com isso, surge a discussão sobre a auto-nomia nas escolas indígenas, pois as escolas emterras indígenas adotavam todo o sistema dasescolas tradicionais. Assim, a necessidade deformação ainda é maior, pensando então emgarantir um controle da administração da es-cola, seja pedagógico ou administrativo. Issogarantiria uma aproximação maior às es-pecificidades de cada comunidade Kaingang,com maior qualidade do ensino e com a práti-ca do bilingüismo em todas as escolas situadasnas comunidades.

Pensando na ampliação, na conquista da

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190

autonomia e na garantia da recuperação do es-paço perdido ao longo do tempo na formaçãodos professores Kaingang, surgiu no ano 2000 adiscussão sobre a formação de novos professo-res Kaingang. Desse modo, a Funai, a Universi-dade de Passo Fundo, a Universidade de Ijuí, aslideranças indígenas e a APBKG, com o apoioda Prefeitura Municipal de Benjamin Constantdo Sul, começam o processo de discussão, vi-sando atingir a garantia da especificidade daEducação Kaingang e a conquista da autonomiaeducacional nas terras indígenas.

Essa idéia de formação de uma nova turmade professores concretiza-se em janeiro de2001, sendo iniciada, então, a formação de maisuma turma de professores com um número decem professores Kaingang, divididos em doisnúcleos estratégicos no Rio Grande do Sul: um

na terra indígena de Guarita, Município de Re-dentora, e outro no Município de BenjaminConstant do Sul, RS.

Mais uma vez, as lideranças dessas comu-nidades estão presentes com seu apoio aos pro-fessores, acompanhando todas as discussões noque diz respeito à educação e às questões queenvolvem suas comunidades, pois a situaçãohoje enfrentada pelos indígenas não é diferen-te daquela que todos nós estamos acostumadosa ver ao longo dos quinhentos anos de nossopaís. Certamente, não será essa luta por forma-ção que irá garantir a existência das comunida-des indígenas, mas também a insistência nabusca por uma sociedade mais justa em quecada professor seja mais um instrumento deluta por melhoria em todos os setores da socie-dade.

A Educação Escolar Indígenano Estado do Amazonas:Projeto Pira-Yawara

Arlene Bonfim

Seduc/AM

IntroduçãoIntegrando-se aos dispositivos legais da

Constituição de 1988 e à LDB/96, que asseguramo uso e a manutenção das línguas maternas e orespeito aos processos próprios de aprendiza-gem das sociedades indígenas no processo es-colar, é que o estado do Amazonas, por meio daSecretaria de Estado da Educação e Qualidadedo Ensino (Seduc/AM), vem garantindo os direi-tos indígenas, ao coordenar e executar a políticade Educação Escolar Indígena, com prioridadeatribuída à formação de professores.

Considerando não somente os preceitos le-gais estabelecidos, o estado do Amazonas vematendendo, fundamentalmente, aos interesses e

às necessidades demonstradas pelas comunida-des indígenas, que passam a gerir seus proces-sos próprios de aprendizagem e a ocupar seusespaços diante da sociedade majoritária, aomesmo tempo que lhes garante o direito a umaescola com características específicas, que bus-que a valorização de seu conhecimento tradici-onal, fornecendo-lhes, ainda, instrumentos paraenfrentar o contato com outras sociedades.

Para atender a esse grande desafio, elaborou-se o Projeto Pira-Yawara, que tem como objeti-vo assegurar condições de acesso e de perma-nência na escola à população escolarizável naeducação básica nas terras indígenas, garantin-do uma educação diferenciada, específica,

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191

Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 9

Estrutura organizacional do programa

Ensino Fundamental

Ensino Médio/Normal

Total geral

Modalidade No de etapasEtapa letiva

intensiva Atividadecomplementar

Total (h/a)

Etapa letiva intermediária

Estágiosuperior

Estágionão-

superior

5

4

9

2.300

1.710

4.010

900

250

300–

140440

3.200

2.400

5.600

intercultural, bilíngüe, comunitária e de quali-dade que responda aos anseios desses povos.

Ações do Projeto Pira-Yawara• Formação inicial de professores indígenas.

• Formação continuada de professores indí-genas.

• Formação continuada de técnicos das Se-cretarias Municipais de Educação.

• Assessoria técnico-pedagógica e adminis-trativa às Secretarias Municipais de Educa-ção (Semeds).

• Formação continuada de técnicos da Secre-taria de Estado da Educação e Qualidade doEnsino (Seduc/AM).

• Diagnóstico lingüístico e antropológico darealidade indígena no estado do Amazonas.

• Desenvolvimento e fomento do uso das lín-guas indígenas no estado do Amazonas.

• Produção, editoração, publicação e distri-buição de material didático específico e di-ferenciado.

• Publicações didático-pedagógicas.

• Distribuição de material escolar e didático-pedagógico.

Formação inicial de professoresindígenas

Concepção• Formulação de uma política cultural que

atribua lugar e função à escola indígena pormeio da participação efetiva dos professo-res, em conjunto com suas comunidades.

• Programa de formação como espaço insti-

tucional, que sirva de fórum de discussão ede debate, para que as comunidades indíge-nas possam determinar a formulação de umapolítica lingüística a serviço da qual a escolaestará atuando.

• A escola indígena deve ser diferenciada, es-pecífica, intercultural, bi/multilíngüe, comu-nitária e de qualidade.

• Aprendizado via pesquisa como forma decompreensão da realidade, no qual osetnoconhecimentos se aliem às diferentes in-formações e aos conhecimentos técnico-cien-tíficos. Nesse enfoque, a produção do conhe-cimento é mais importante do que sua repro-dução. Por meio da pesquisa, os componen-tes curriculares passam a ter por função pos-sibilitar a reflexão, a compreensão crítica darealidade e a capacidade de atuação sobre asituação sociocultural do povo em questão.

ObjetivoFormar os professores indígenas que estão

em sala de aula nas comunidades indígenas,como professores pesquisadores de seu própriouniverso cultural, possibilitando-lhes condiçõespara gerir seus processos próprios de aprendi-zagem e fortalecendo a identidade étnica de seusmembros.

Forma de execuçãoEtapas letivas intensivas. Ensino presencial,num posto indígena ou numa aldeia, sob aorientação de docentes das diferentes áre-as do conhecimento.

Etapas letivas intermediárias. Atividades de-senvolvidas pelo professor na comunidade.

1.150

Page 64: LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

192

Formação continuada de professoresindígenas

Ao reconhecer a necessidade de formaçãoinicial e continuada dos próprios índios paraatuarem como professores de suas comunida-des, a Secretaria de Estado da Educação e Qua-lidade do Ensino (Seduc/AM) vem implementara Política Estadual de Educação Escolar Indíge-na, assegurando a autonomia das escolas indí-genas tanto no que se refere à construção de seuprojeto político-pedagógico, quanto à partici-pação plena de cada comunidade nas decisõesrelativas ao funcionamento dessas escolas.

Adequado às peculiaridades culturais dosdiferentes grupos, o Programa de FormaçãoContinuada de Professores Indígenas temcomo objetivo capacitar os professores indíge-nas para a elaboração de currículos específi-cos para suas escolas, respeitando os modosde vida dos índios, suas visões de mundo e assituações sociolingüísticas específicas por elesvivenciadas.

Os cursos têm duração de 120 horas/aula esão realizados nas sedes dos municípios, ou emalguma aldeia indígena, conforme decisões to-madas pelas lideranças e pelos professores in-dígenas, em conjunto com os representantesdas Secretarias Municipais de Educação, sob aorientação da Gerência de Educação EscolarIndígena – Seduc/AM.

Os processos de discussão e de reflexão crí-tica da realidade ocorridos no contexto do cur-so, no qual questões relevantes vão surgindo apartir dessas discussões e da própria atuaçãodocente, são gerados com base nos pressupos-tos históricos e legais da educação em geral eda Educação Escolar Indígena em particular, osquais auxiliarão os professores indígenas naconstrução dos projetos político-pedagógicosde suas escolas antes mesmo de sua formaçãoinicial.

Temáticas desencadeadoras do processode discussão do grupo

• Base legal e conceitual da Educação Esco-lar Indígena

• Referencial Curricular Nacional para as Es-colas Indígenas (RCNEI)

Formação continuada de técnicos dasSecretarias Municipais de Educação

A Portaria Interministerial nº 559/91, de 16de abril de 1991, determina no seu artigo 7º:

[...] que os profissionais responsáveis pelaEducação Indígena, em todos os níveis, sejampreparados e capacitados para atuar junto às po-

pulações étnicas e culturalmente diferenciadas

sejam eles da Funai, das Secretarias Estadu-ais ou Municipais de Educação e ONG, a fim de

[...] garantir às comunidades indígenas umaeducação escolar básica de qualidade, laica e

diferenciada, que respeite e fortaleça seus cos-tumes, tradições, línguas, processos próprios deaprendizagem e reconheça suas organizações

sociais (artigo 1).

As Secretarias Municipais de Educação do Es-tado, na sua maioria, às quais grande parte das es-colas das terras indígenas está subordinada, aindaapresentam sérias dificuldades quanto à compre-ensão e à aceitação da existência dessas escolas ecriam resistências quanto à implementação denovos modelos de educação, como também à ofer-ta da Educação Escolar Indígena municipal.

Além do mais, os recursos humanos quecompõem o quadro técnico dessas Secretariassão reduzidos e não possuem formação adequa-da para atendimento às peculiaridades culturaisdos diferentes grupos indígenas, de modo quepossam garantir o apoio e o acompanhamentopedagógico às escolas indígenas.

Com base nos preceitos legais estabelecidos enos direitos fundamentais conquistados pelos po-vos indígenas, a Seduc/AM, por meio da Gerênciade Educação Escolar Indígena, vem garantindo eassegurando a qualidade do Programa de Forma-ção Continuada de Técnicos das Secretarias Mu-nicipais de Educação, capacitando-os no domínioda metodologia e das bases legais e conceituais queregem a política de Educação Escolar Indígena noestado e no país para o trato com essas popula-ções e apoio às escolas indígenas na formulaçãode seus projetos político-pedagógicos.

O Programa de Formação Continuada deTécnicos das Secretarias Municipais de Educa-

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Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 9

ção tem como proposta a discussão de temas quepossam contribuir para a reflexão e a implemen-tação de novas políticas e de práticas pedagógi-cas e curriculares em áreas indígenas.

É executado nas sedes municipais, em cursosde 120 horas/aula, e conta, geralmente, com a par-ticipação de diretores e professores de escolasmunicipais e professores indígenas, bem como derepresentantes de instituições locais ligadas à pro-blemática indígena, sejam governamentais ounão-governamentais, sob a orientação da Gerên-cia de Educação Escolar Indígena (Seduc/AM).

Temáticas básicas do programa• Projeto Pira-Yawara, fundamentação e

operacionalização.

• Base legal da Educação Escolar Indígena,cumprimento e legalidade constitucional.

• Base conceitual da Educação Intercultural,com ênfase nos conceitos básicos de cultu-ra, diversidade cultural, cultura lingüística,etnocentrismo e relativismo cultural.

• Referencial Curricular Nacional para as Es-colas Indígenas (RCNEI), como instrumentoformativo e de reflexão das novas intençõeseducativas que devem orientar as políticaspúblicas educacionais para as escolas indí-genas brasileiras.

• Proposições para o desenvolvimento da Polí-tica de Educação Escolar Indígena Municipal.

Também durante o Programa de FormaçãoInicial e Continuada de Professores Indígenas,são capacitados em serviço técnicos e coorde-nadores pedagógicos das Secretarias Municipaisde Educação, de modo que possam participardas discussões e, dessa forma, acompanhar asatividades relativas ao processo de EducaçãoEscolar Indígena nas escolas indígenas.

Assessoria técnico-pedagógica eadministrativa às SecretariasMunicipais de Educação

Com o compromisso legal de instrumentalizar-se, definindo metas e ações de Educação EscolarIndígena que atendam às demandas das comuni-dades indígenas e às diretrizes estabelecidas peloMinistério da Educação, a Secretaria de Estado da

Educação e Qualidade do Ensino (Seduc/AM) vemdesenvolvendo uma política de articulação e decooperação técnico-administrativa e financeiracom os municípios do estado, apoiando e fortale-cendo, na estrutura organizacional das SecretariasMunicipais de Educação, o desenvolvimento deuma política municipal de Educação Escolar Indí-gena, em consonância com a política estadual ecom as diretrizes nacionais, política essa que con-sidere a diversidade étnica do estado do Amazo-nas, os diferentes níveis de contato dessas etniascom a sociedade local e nacional e as peculiarida-des regionais.

Para atender a essa finalidade, a Secretariade Estado de Educação e Qualidade do Ensino(Seduc/AM), por meio da Gerência de EducaçãoEscolar Indígena, vem desencadeando nos mu-nicípios envolvidos no processo de escolariza-ção dos povos indígenas uma série de ativida-des que, direta ou indiretamente, servem de in-centivo e promoção da melhoria da EducaçãoEscolar Indígena, fortalecendo e valorizando alíngua materna, as expressões culturais e artísti-cas, a história, o exercício pleno da cidadania eda interculturalidade e demais conhecimentosdesses grupos étnicos que habitam o Amazonas,bem como apoiando outras atividades que tam-bém participam do processo educacional, comoas de saúde, educação ambiental, cidadania edireitos humanos.

Diante desse quadro, o Programa de Asses-soria Técnico-Pedagógica e Administrativa àsSemeds tem como proposta o desenvolvimentode ações que possam contribuir para o incenti-vo, a promoção, a implantação e/ou a implemen-tação de políticas e de práticas pedagógicas ecurriculares para as escolas indígenas.

Principais ações• Assessoramento à elaboração e apoio aos

projetos de Educação Escolar Indígena emandamento que tenham o reconhecimentodas comunidades indígenas.

• Incentivo à implantação de projetos que vi-sem à melhoria da Educação Escolar Indíge-na, bem como a realização de cursos de for-mação de professores indígenas nas regiõesonde os grupos étnicos ainda não dispõemde iniciativas dessa ordem.

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194

• Incentivo a uma política de articulação en-tre os vários segmentos locais à problemáti-ca indígena, sejam governamentais ou não-governamentais, bem como o estabeleci-mento de parcerias, para que juntos possamapoiar e garantir o desenvolvimento dasações relativas à Educação Escolar Indígena.

• Incentivo e apoio à criação de uma coorde-nação ou setor responsável pela implemen-tação de programas de Educação Escolar In-dígena na estrutura organizacional das Se-cretarias Municipais de Educação.

• Orientações quanto à política indigenistabrasileira e à legislação de ensino atual quetrata da Educação Escolar Indígena, desta-cando a importância de seu cumprimento elegalidade constitucional.

• Orientações quanto aos princípios gerais aserem observados no desenvolvimento deprojetos e programas municipais de Educa-ção Escolar Indígena, conforme estabelecemas Diretrizes para a Política Estadual e Nacio-nal de Educação Escolar Indígena.

• Promoção de estudos e discussão sobre asbases conceituais da educação intercultural.

• Orientações quanto ao reconhecimento ofi-cial e à regularização legal de todos os esta-belecimentos de ensino localizados no inte-rior das terras indígenas, no que se refere aocalendário escolar, metodologia e avaliaçãoadequados à realidade sociocultural das co-munidades indígenas.

• Orientações quanto à utilização do Referen-cial Curricular Nacional para as Escolas In-dígenas (RCNEI) como instrumento de dis-cussão e implementação de políticas e prá-ticas pedagógicas e curriculares em terrasindígenas.

• Proposições para o desenvolvimento da Po-lítica Pública de Educação Escolar Indígenapara o município, entre outras.

Formação continuada de técnicosda Secretaria de Estado da Educaçãoe Qualidade do Ensino (Seduc/AM)

O documento O Governo Brasileiro e EducaçãoEscolar Indígena (1995-1998), elaborado pela Secre-taria de Educação Fundamental (SEF/MEC) afirma:

A proposta de uma escola indígena diferenciada

representa uma grande novidade no sistema edu-

cacional do País e exige das instituições e órgãos

responsáveis a definição de novas dinâmicas,

concepções e mecanismos, tanto para que essas

escolas sejam de fato incorporadas e beneficia-

das por sua inclusão no sistema oficial quanto

respeitadas suas peculiaridades.

Cabe lembrar, então, que a Educação Indíge-na, por seu caráter diferenciado, requer um qua-dro de técnicos devidamente preparados para atu-ar nas comunidades indígenas. Dessa forma, é fun-damental que o estado disponha de um programade formação para a sua equipe técnica, que sirvade incentivo e apoio à implantação das novas po-líticas públicas de Educação Escolar Indígena.

Daí a necessidade de a Secretaria de Estadoda Educação e Qualidade do Ensino (Seduc/AM)manter e preparar uma equipe de técnicos es-pecialistas das diferentes áreas do conhecimen-to para atuar, no âmbito das Secretarias Munici-pais de Educação, no assessoramento de seusquadros técnicos para a oferta de educação es-colar bilíngüe e intercultural aos povos indíge-nas, produção de material de informação eacompanhamento e avaliação da qualidade dasações relativas à Educação Escolar Indígena.

O Programa de Formação Continuada deTécnicos da equipe central tem como propostaa construção e o desenvolvimento de habilida-des e competências para que os técnicos bus-quem e aprofundem seus conhecimentos, am-pliando seu quadro de referência, de modo quesirvam de incentivo e apoio à implementaçãodas novas Políticas Públicas de Educação Esco-lar Indígena nas esferas estadual e municipal.

Sem a composição e a manutenção de equi-pes de técnicos e consultores, não seria possívelexecutar as linhas de ações estabelecidas pelaSecretaria de Estado da Educação e Qualidadedo Ensino (Seduc/AM) para o desenvolvimentoda Política Pública de Educação Escolar Indíge-na no Estado do Amazonas, dada a diversidadede povos que habitam nossa região.

Para isso, vem contando com uma consultoriaespecializada, integrada por profissionais com ex-periência reconhecida e comprovada no campoda Educação Escolar Indígena, composta por

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Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 9

sociolingüista, antropólogo, especialista emetnoconhecimentos e Educação Escolar Indíge-na, os quais realizam atividades temporárias decapacitação da equipe técnica central e de acom-panhamento e avaliação das ações de EducaçãoEscolar Indígena desenvolvidas pela Gerência, oumesmo executam trabalhos mais pontuais desti-nados à estruturação e ao desenvolvimento daprópria Gerência de Educação Escolar Indígena –Seduc/AM.

A formação continuadae o aperfeiçoamento dos técnicos daequipe central dão-se por meio de diversasprovidências, de modo que possam:

• assessorar os professores indígenas na pro-dução de materiais didático-pedagógicos, naconstrução de currículos, metodologias e sis-temas de avaliação, no contexto dos progra-mas de formação;

• atuar como docentes em curso de formaçãoinicial e/ou continuada de professores indí-genas;

• assessorar as Secretarias Municipais de Edu-cação;

• colaborar com idéias criativas e buscar solu-ções inovadoras que sirvam de base para im-plantar e desenvolver uma educação transfor-madora;

• participar de cursos e eventos relacionadoscom Educação Indígena (seminários, congres-sos, reuniões, encontros pedagógicos de pro-fessores indígenas, debates etc.) ou com ou-tras áreas afins ou de interesse da Gerência,como lingüística, antropologia, ecologia, pe-dagogia, saúde e outras;

• estagiar em instituições governamentais ounão-governamentais com projetos em reali-zação na área de Educação Escolar Indígena;

• realizar estudos e pesquisas para atualizaçãode informações, e outras.

Durante a realização dos cursos de capacitaçãode equipe técnica central, também são convocadosos técnicos das Secretarias Municipais de Educaçãoque atuam nas escolas indígenas, bem como os pro-fissionais representantes de instituições envolvidasna questão da Educação Escolar Indígena.

Diagnóstico lingüísticoe antropológico da realidade indígenano estado do Amazonas

O Governo do Amazonas, por meio da Secre-taria de Estado da Educação e Qualidade do En-sino (Seduc/AM), considera necessário realizarum diagnóstico da situação da Educação Esco-lar Indígena. A intenção é realizar um quadro deexpectativas para referenciar os procedimentosda Gerência de Educação Escolar Indígena e,conseqüentemente, levar a bom termo as açõesdo governo do estado.

O diagnóstico tem como propósito não simples-mente gerar dados, mas inserir a discussão e a ela-boração das informações no contexto da formaçãodos professores. Assim, é possível colocar os pro-fessores indígenas em conexão com outras realida-des – a aldeia, o povo, a região –, além de estabele-cer um processo pedagógico por meio da coleta dedados. Tal iniciativa corresponde ao método de tra-balho que vem sendo desenvolvido na formação deprofessores indígenas, qual seja, a ênfase na pesqui-sa durante o processo de aprendizagem.

Para que o tratamento dado pelas políticas pú-

blicas à educação escolar esteja em consonância

com o que as comunidades indígenas, de fato,

querem e necessitam, é preciso que os sistemas

educacionais estaduais e municipais considerem

a grande diversidade cultural e étnica dos povos

indígenas no Brasil e revejam seus instrumentos

jurídicos e burocráticos, uma vez que tais instru-

mentos foram instituídos para uma sociedade

que sempre se representou como homogênea

(Referencial Curricular Nacional para as Escolas

Indígenas, p. 12).

O planejamento da Educação Escolar Indígena,

em cada sistema de ensino, deve contar com a

participação de representantes de professores

indígenas, de organizações indígenas e de apoio

aos índios, de universidades e órgãos governa-

mentais. (Resolução CEB nº 3, de 10/11/1999)

Principais ações• Realizar um levantamento e estabelecer con-

tato com todos os projetos de Educação Es-colar Indígena em curso no Amazonas.

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• Estabelecer prioridades junto às populaçõesque reivindicam Educação Escolar Indígena,mas que não contam com nenhum apoioinstitucional.

• A discussão da forma como deve se desen-volver cada levantamento deve contar coma participação de representantes indígenas,que serão colaboradores em todos os senti-dos: poderão dizer qual a melhor época paraa realização dos trabalhos (questões climá-ticas e atividades econômicas, por exemplo,podem influenciar) e poderão ajudar a defi-nir quais as informações importantes paraconstar no levantamento.

• Realizar um amplo diagnóstico da situaçãoda população indígena que habita zonas ur-banas de todo o estado.

Desenvolvimento e fomentodo uso das línguas indígenas noestado do Amazonas

Do Projeto Pira-Yawara decorre uma preocu-pação com o uso efetivo das línguas indígenasdo povo em questão, normalmente a única lín-gua conhecida pela criança que chega à escola,o que implica dizer estímulo a que os professo-res indígenas preparem seus materiais didáticose de leitura na Língua Indígena e não (somente)em Português. Exemplos disso são os livros pu-blicados até o momento pelo projeto.

No entanto, as línguas indígenas, que são lín-guas de minorias muito pequenas diante dogrande número de falantes de Português, neces-sitam de uma política de desenvolvimento e fo-mento do uso para que possam ser utilizadascom plenitude também em áreas outras que nãoa da cultura tradicional, que se fazem necessá-rias para a vida dos índios na e com a sociedadecontemporânea. Assim, como ocorreu em tan-tos outros países, as línguas indígenas podem serinstrumentalizadas para que expressem aspec-tos da tecnologia e da sociedade brasileira e/ouocidental, o que permite que continuem sendoutilizadas nas novas condições que vão se colo-cando para os povos indígenas. O trabalho dedesenvolvimento lingüístico visa justamenteampliar o campo de uso das línguas minoritáriaspara que não deixem de ser utilizadas por insu-

ficiência expressiva (por exemplo: no ensino deMatemática na escola em uma Língua Indígena,ou para elaborar um projeto de piscicultura, pro-jeto de informática etc.).

Tem sido demanda dos povos indígenas noAmazonas, por exemplo, dos Munduruku deBorba, ou dos Desano de São Gabriel da Cacho-eira, bem como dos Mura de Autazes, que o Es-tado colabore nos seus projetos político-lingüís-ticos de recuperar, salvaguardar ou fomentar ouso das suas línguas, de modo que elas possamefetivamente ser utilizadas no processo educa-tivo e em todas as outras situações.

Principais ações• Responder às demandas dos povos indíge-

nas para apoiar o processo de recuperação,desenvolvimento e fomento do uso das lín-guas indígenas no estado do Amazonas.

• Elaborar e executar projetos na área de de-senvolvimento das línguas indígenas, para-lelamente ou não aos cursos de formação deprofessores do Projeto Pira-Yawara, em par-ceria com organizações indígenas e com en-tidades especializadas na área.

• Manter um programa editorial próprio naslínguas indígenas no estado do Amazonas.

Produção, editoração, publicaçãoe distribuição de material didáticoespecífico e diferenciado

Esse programa tem como proposta instituir,entre os professores, a formação de índios comopesquisadores de seu próprio universo culturale, igualmente, como escritores e redatores dematerial didático-pedagógico em suas LínguasMaternas e/ou Portuguesa, referentes aosetnoconhecimentos de suas sociedades.

Encaminhadas pelos vários componentes queintegram a estrutura curricular do Programa deFormação de Professores, as atividades de pesqui-sa, como princípio metodológico do programa,desencadeiam a interpretação, a construção e areelaboração de conhecimentos gerados a partirda reflexão sobre a realidade socioeconômica,cultural e lingüística de cada povo indígena en-volvido no processo, em que os etnoconhecimen-

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Experiências de formação de professores indígenasPAINEL 9

tos, aliados às diferentes informações oriundasdos conhecimentos técnico-científicos, expres-sam claramente a importância da produção des-ses materiais, ao instituir entre os professores nãosomente a autoria de cada um dos materiais poreles próprios escritos, mas, principalmente, aoeliminar a grande distância entre quem pensa equem executa a prática educativa.

A ênfase dada ao processo de pesquisa per-mite a produção diversificada de materiais, oraescritos na Língua Materna, ora escritos na Lín-gua Portuguesa, por decisão dos próprios pro-fessores, constituindo-se, assim, em instrumen-tos de construção curricular desenvolvidos apartir da realidade, prática social e cultural decada professor indígena e integrados à sua prá-tica docente, para permitir a reflexão sobre seuefeito pedagógico em sala de aula.

A política de apoio à produção, à editoraçãoe à publicação de literatura indígena realiza-secom a distribuição e o acompanhamento dessesmateriais nas escolas das aldeias.

Publicações didático-pedagógicasA coleção Seres vivos é composta de três volu-

mes enriquecidos visualmente. Constituindo a pri-meira produção escrita, a coleção apresenta, na suamaioria, textos na Língua Portuguesa, por decisãodos próprios professores indígenas. A variedade deseus temas aborda a fauna e a flora da área indíge-na Sateré-Mawé, que hoje fazem parte do quadronatural das regiões compreendidas entre os riosMarau e Urupadi e levam, por seu valor, conteúdoe forma, à compreensão das inter-relações dessepovo com a natureza e com a cultura.

Huhu’e Hap é um jornal indígena no qual osconhecimentos lingüísticos dos professores sãoampliados a partir de textos produzidos na lín-gua materna. É um instrumento pedagógico-educativo que veicula a divulgação de notícias,como atividades culturais realizadas nas váriasaldeias encontradas ao longo dos rios Marau eUrupadi, assembléias indígenas ocorridas na re-gião, questões ligadas às atividades educativas eo trabalho realizado pela escola, fatos sociaiscotidianos, entre outras. É seu objetivo servircomo instrumento de uso e aperfeiçoamento dalíngua escrita.

Tupana Ewowi Urutuwepy é uma obra lite-rária produzida inteiramente na língua Sateré-Mawé. Apresenta cantos religiosos, cantos deatividades recreativas, de valores que regem aconduta humana, como a importância da soli-dariedade, da união, da vida, da necessidade dosaber, da felicidade e do trabalho exercido peloprofessor em sala de aula.

O livro Poesia Sateré-Mawé apresenta umaliteratura em que a sensibilidade, aliada às ques-tões étnicas e culturais desse povo, é retratada apartir de cada uma das palavras e mensagensproduzidas. Esse livro reflete a longa trajetóriapercorrida pelos professores durante o processode produção textual, considerando o desenvol-vimento das modalidades da fala e escrita.

Sateré-Mawé Mawé Mowe’eg Hap é todo pro-duzido na língua Sateré-Mawé. É um livro de lei-turas acompanhadas de atividades escolares, nasquais os alunos indígenas irão expressar de for-ma escrita e oral suas idéias e experiências, bemcomo reconhecer e aplicar os fatos da língua, de-senvolvendo temas ligados aos textos.

Produzido na Língua Materna, Sateré-MawéNemahara Hap Ko’i é um livro rico em cores edetalhes ilustrativos, nos quais os autores apre-sentam tipos de recreações e de lazer hoje prati-cados pelas crianças, pelos jovens e pelos adul-tos das várias aldeias da região.

Os Sateré-Mawé e a arte de construir é umaobra que relata o poder da criança e o conheci-mento do povo no domínio e na utilização dosrecursos oferecidos pela natureza, na construçãoe na manifestação de sua cultura. Por meio detextos informativos, que se harmonizam com asricas ilustrações, apresenta os mais variados ti-pos de artesanato ainda hoje confeccionados eutilizados por esse povo.

O poder curativo das ervas medicinais é na-turalmente apresentado a partir das diferentesplantas utilizadas pelos Sateré-Mawé na cura desuas doenças. Os meios de tratamento, preparoe uso dos remédios são orientados por meio dedois livros produzidos, sendo um na Língua Por-tuguesa, As plantas que curam, e outro na Lín-gua Materna, Mikoi Mohag Wuat Waku RakariaSet Ko’i. O conjunto dessas obras contém ricasilustrações sobre as plantas medicinais usadaspelos índios Sateré-Mawé da região.

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A obra Histórias, lendas e mitos Sateré-Mawéretrata de forma descritiva a riqueza mítica e atradição do povo Sateré-Mawé sintetizadas emsuas crenças, objetos sagrados e conhecimentosacumulados. Os textos são produzidos na Lín-gua Portuguesa, acompanhados de ilustrações.

Produzida na Língua Portuguesa, a obra Cul-tura, ambiente e sociedade Sateré-Mawé apresen-ta os valores da cultura tradicional Sateré-Mawérelacionados aos modos de vida na aldeia, hábi-tos, costumes, território habitado e explorado.Apresenta ainda uma visão crítica do processode dominação ao qual os índios foram submeti-dos ao longo de sua história.

Histórias de vida é uma obra ilustrada produ-zida na Língua Portuguesa. Apresenta textos quefalam das experiências e dos fatos marcantes ocor-ridos com os professores ao longo de suas vidas.

O livro Terras das línguas, ricamente ilustrado,é uma produção recentemente publicada pelaSeduc/AM, produzido no contexto do Programa deFormação de Professores Indígenas de São Gabrielda Cachoeira. Apresenta textos escritos em onzelínguas: Baniwa, Desano, Hupd, Kubeo, Kuripako,Nheengatu, Piratapuia, Tariano, Tukano, Tuyuka eWanano, possibilitando práticas pedagógicasdiversificadas e plurilíngües. Os textos abordamassuntos diferentes, conforme a opção de cadaetnia, que vão desde receitas de remédios caseirosà mitologia da região.

Aldeias Munduruku é uma obra didática queretrata a situação atual das aldeias Munduruku,localizadas ao longo dos rios Canumã e Mari-Mari,da Terra Indígena Coatá-Laranjal, no Município deBorba. Rico em cores e detalhes, apresenta umconjunto de textos descritivos sobre a história e ageografia das aldeias, formas de organização, mo-dos de vida, crenças e costumes práticos do povo.

Concebendo a terra como fonte que gera epermite a vida, como também sagradas e pro-fundas as relações que com elas estabelecem, osprofessores Munduruku, da Terra IndígenaCoatá-Laranjal, decidiram produzir o livroKwata-Laranjal, história e reconquista da terra.É uma publicação que sintetiza a intenção dosautores de relatar o processo de demarcação desuas terras, como também as lutas e os massa-cres praticados contra eles e por eles contra osinvasores brancos em defesa do território, da

cultura e da própria existência, ao mesmo tem-po em que demonstram sentimentos de digni-dade ao partilharem com alegria a reconquistade suas terras. A obra apresenta textos diversifi-cados, ricos em detalhes e ilustrações, de valorcultural e histórico para esse povo.

Sateré-Mawé E´Ko Nimuaria Ko´i,Koity´iwuaria E´ko, foi escrito na Língua Indíge-na pelos professores Sateré-Mawé da aldeia VilaBatista, Rio Mari-Mari. Foi produzido com a in-tenção de gerar junto aos alunos e à comunidadeprocessos de discussão e reflexão acerca dos há-bitos e costumes praticados nos dias de hoje pe-los habitantes da aldeia, em comparação com osda cultura tradicional dos antigos.

O livro Chegada dos Sateré-Mawé no Rio Mari-Mari e organização da Aldeia Vila Batista, escritona Língua Portuguesa, inicia-se com um relato so-bre os acontecimentos que levaram um grupo fa-miliar Sateré-Mawé a deixar a região do Rio Andirá,aldeia Ponta Alegre, e a se instalar na Terra Indíge-na Coatá-Laranjal, do povo Munduruku, Rio Mari-Mari. Além disso, há uma descrição do caminhopercorrido durante a viagem, falando das dificul-dades enfrentadas e da organização da nova aldeia,além dos hábitos e costumes praticados. É umaobra baseada em fatos reais, que retrata a realida-de vivida pelos índios no Brasil e que permite umareflexão mais ampla sobre os conflitos que emer-gem entre as culturas branca e indígena.

Distribuição de material escolare didático-pedágógico

A Secretaria do Estado da Educação e Quali-dade do Ensino (Seduc/AM) vem implementandoações no sentido de prover as escolas indígenas derecursos materiais e didáticos, tanto no que se re-fere ao material de apoio ao trabalho do professor,quanto às necessidades dos alunos em sala de aula.

Para isso, são disponibilizados kits escolarespara professores e alunos indígenas:

• Kit do aluno: apontador, borracha, cadernovertical e de desenho, caneta, cola plástica,lápis preto, lápis de cor, papel sulfite, régua,entre outros.

• Kit do professor: caderno universitário, car-tolina, caneta, fita gomada, papel madeira,pincel atômico e régua de 30 centímetros,entre outros.

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PPPPPAINEL AINEL AINEL AINEL AINEL 1010101010

PRÁTICA DE SALA DE AULA NAESCOLA INDÍGENA

Yolanda dos Santos Mendonça

Alzenira Felipe Marques

Page 72: LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

200

ResumoConstruir uma escola a serviço dos interesses

dos povos indígenas e gerenciada por índios, as-

sumindo um papel fundamental na medida em

que se cristaliza como um novo ator social, dinâ-

mico e atuante, em processo construtivo e infor-

mativo, voltado para uma educação específica, di-

ferenciada e de qualidade, visando à orientação e

à formação de cidadãos índios com espírito críti-

co e tomadas de decisões rápidas e eficazes no

convívio social; estimular e desenvolver compe-

tências que contribuam para a educação do povo

indígena Potiguara.

O professor índio tem papel desafiante e

articulador para tornar a Educação Escolar Indí-

gena indispensável ao progresso de seu povo, em

direção aos mais nobres ideais, transformando a

escola num espaço privilegiado para análise, dis-

cussão e reflexão da realidade, garantindo o ple-

no desenvolvimento do potencial dos alunos.

Graças à mobilização e à união dos profes-sores indígenas junto aos Poderes Públicos éque hoje já avançamos para a continuidade davida do planeta. A publicação RCNEI me fezver, a partir da análise feita nessa obra, queseria um ponto de partida para minha profis-são, na qual tomei como educação transforma-dora aquela que permite que as informaçõesadquiridas no decorrer do processo de apren-dizagem se tornem possibilidades de açõespara a recriação de uma realidade dramáticaque nos interpela quotidianamente. Cada povoindígena que vive no Brasil é dono de univer-sos culturais próprios e memória de percursose experiências históricas diversas. Esse é umprocesso sem fim.

Os momentos e as atividades do ensino-

aprendizagem combinam espaços e momen-tos formais e informais com concepções pró-prias sobre o que deve ser aprendido. A comu-nidade é muito importante nesse processo,pois possui sua sabedoria para ser transmiti-da e distribuída por seus membros e mostravalores procedentes próprios de sociedadesoriginalmente orais, noções próprias cultural-mente formuladas e variáveis de uma socieda-de indígena a outra, da pessoa humana e dosseus atributos, capacidades e qualidades. Háinúmeras particularidades, mas há caracterís-ticas comuns. Cada experiência cognitiva eafetiva carrega múltiplos significados econô-micos, sociais, técnicos, rituais, cosmológicos.Admite diversos seres e forças da natureza comas quais estabelecem relação de cooperação eintercâmbio, a fim de adquirir e assegurar de-terminadas qualidades.

Temos que ter autodeterminação para essemovimento de articulação, pois quem faz aEducação Escolar Indígena ser específica, di-ferenciada e de qualidade somos nós, e essa sóserá concretizada com a participação diretados interessados para garantir a sua realização.

Devem ser oferecidas as condições necessá-rias para que a comunidade gerencie sua escola,demonstrando a vitalidade e o desejo de forta-lecer sua identidade. Os direitos dos povos indí-genas são coletivos. Temos o direito de decidirsobre nossa história, nossa identidade, pensan-do em nossas crianças como parte do presentepara não destruirmos nosso futuro. Temos queter a escola como projeto próprio, e dela nosapropriarmos como instrumento de luta pelaautonomia. Para isso, temos um enorme desafiodiante de inúmeras tensões que podem surgir

* Professora na Paraíba.

Prática de sala de aulana escola indígena

Yolanda dos Santos Mendonça*

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Prática de sala de aula na escola indígenaPAINEL 10

com a introdução do ensino escolar. Temos queter postura e um trabalho adequado e responsá-vel de comprometimento como articuladores,facilitadores, intervindo, orientando, problema-tizando, sem desconsiderar a atitude de curiosi-dade dos alunos para com os novos conhecimen-tos. Temos que formar uma escola da experiên-cia, da convivência e da clareza.

É importante que nossas crianças apren-dam sobre a vida de nossos antepassados e ahistória mais nova, de mudanças nas aldeias edos chefes que lideram nosso povo. É impor-tante preparar os alunos para que, no futuro,eles possam continuar nosso trabalho. E a es-cola pode ajudar a manter nossa cultura, paraque nós possamos manter nosso território. Épreciso abrirmos os olhos e vermos que nesseterritório estão plantadas nossas raízes, quehoje nasceram e se enramaram com uma for-ça enorme, que cada vez mais desabrochampara fortalecer a nossa sagrada identidade. Sãoinúmeras as falsas informações que distorcema realidade e impedem as pessoas de melhorconhecer os índios. Grande parte do nossopovo desconhece ou pouco sabe sobre os ver-dadeiros donos desta terra. Devemos rompercom essas informações enganosas, acabar comesse preconceito que foi e continua sendo res-ponsável por mortes e doenças no mundo in-teiro. A terra é nossa subsistência. Ela é supor-te da vida social e está diretamente ligada àscrenças e aos conhecimentos. A terra somosnós. Temos que ser dinâmicos e práticos paraque os alunos desenvolvam suas capacidadese aprendam os conteúdos necessários, paraconstruírem instrumentos de compreensão darealidade, com participação, e para assumir avalorização da cultura de sua própria comuni-dade, respeitando direitos e diferenças dosoutros povos indígenas.

Por meio de experiências da minha vida co-tidiana e de contatos com diversas pessoas deoutras etnias, percebi que meu povo cada diamais estava sendo enganado e que nossas cri-anças cada dia mais desconheciam quem eramna verdade. Foi daí que fiz uma análise e to-mei a iniciativa de ajudar meu povo, pois as-sim estarei ajudando a mim mesma. Conver-sei bastante, mostrei os perigos que estávamos

correndo e fui aos poucos me entrosando comas lideranças e as comunidades.

Lembrei-me das músicas de Toré, já que ascrianças gostavam de cantar outras músicas erepresentar outras danças. Então, a música foio meu suporte. Mas músicas que nos fizessemtocar no coração à vontade e o pulsar do peito,por uma versão nova. O Toré é uma cultura sa-grada de cada povo. Tive que me desdobrar parafazer com que as crianças entendessem que elasvivem e viverão nossa cultura, até mesmo por-que muitos não queriam nem saber, pois já es-tavam muito influenciados pelo outro modeloeducacional. Foi aí que tive que introduzir pro-cedimentos didático-pedagógicos para que elesentendessem que somos um todo e, por meiode leituras e escritas relatadas por eles mesmos,juntos buscamos informações na nossa própriafamília. Fomos montando e descobrindo novi-dades que serviram de experiências e motiva-ções para uma realidade da própria criança. Nomomento em que trabalhamos cada estrofe damúsica do Toré, as crianças ficam curiosas, esempre vem o porquê. Quando vamos cantan-do e apresentando a história do passado donosso povo com clareza e confiança, fazemosum trabalho para desenvolver o que elas ouvi-ram e visualizaram. Aí começa o interesse parasaber mais: sempre perguntam o que fazer deagora em diante para não passar pelo que nos-sos antepassados passaram.

Temos que ter cuidado para não causar im-pacto, pois muitas crianças se revoltam. O quetemos que fazer é conscientizá-las, para cuidardo pouco que nos resta. Se assim o fizermos,vamos conquistar mais, porque o que temosnão é o suficiente para o muito que nos leva-ram, e só vamos conseguir se juntos lutarmos,sem medo de conhecer e buscar nossos direi-tos. Só temos esses direitos se antes cumprir-mos os nossos deveres. O Toré não é uma dan-ça qualquer, foi-nos deixada pelos nossos an-cestrais. Deus deu essa sabedoria a eles e tam-bém aos velhos e até às pessoas mais novas,para invocarem os encantados e resolveremalgo. Isso é prova de que nunca estamos sozi-nhos, sempre temos alguém do nosso lado.Mostramos às crianças que a mata é a cobertu-ra da terra. O vento é o respirar dos que já se

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foram. A água e o rio são o sangue derramadodo nosso povo. A terra é o pó da carne e dos os-sos dos nossos parentes que já foram plantados.

Gradativamente, fazemos com que as cri-anças sintam amor pelo que é seu. Mas é pre-ciso um trabalho árduo e longo, fazer compa-rações entre o que ouviram e o que são no pre-sente. Essa é a base, e só será feita se quiser-

* Educadora indígena Tupinikim, Aldeia Caeira Velha, ES.

mos, pois ela interfere na política envolventee encaracolada, porque, no momento em queas crianças e as comunidades descobrem suaverdadeira história e como ainda estão sendotratadas, passam a ter consciência e interfe-rem nas tomadas de decisões, como tambémvão sentir curiosidade em se conhecer melhore conhecer seu próprio território.

A Pedagogia do Texto naprática da sala de aula na EscolaIndígena Tupinikim

Alzenira Felipe Marques*

Preocupados com o resgate da cultura denosso povo, estamos procurando enfocar, nasescolas das aldeias, problemáticas que afetamnossa vida cotidiana. O relato a seguir centra-se num exemplo dessas práticas diárias reali-zadas na comunidade indígena de Caeira Ve-lha, composta de índios Tupinikim.

Durante um mês, desenvolvemos o tema“Ecossistema Manguezal”, com o objetivo desensibilizar a comunidade indígena para a pre-servação do mangue que circunda nossa aldeiae que vem sendo usado como nosso meio desobrevivência e reprodução cultural. Nas inú-meras atividades que foram realizadas, procu-ramos envolver escola e comunidade.

A problemática levantada ao desenvolveresse tema foi a seguinte: estudar e compreen-der de que forma nós, moradores da aldeia,podemos nos organizar para a preservação des-se ecossistema, tendo como pano de fundo ofato de que todo saber corre o risco de se per-

der com o tempo, caso não seja sistematizadoe passado de uma geração à outra.

Descrevendo o manguezalCom o passar dos anos e com o crescente

número de diversas culturas invadindo nossoterritório, o nosso mangue sofreu várias in-fluências negativas. Buscando conhecer e pre-servar uma parte de nossa cultura, nós nos pro-pusemos a desenvolver um projeto em que cadaaluno e seus pais pudessem expor seus conhe-cimentos e adquirir outros num anseio de pre-servação da natureza e de sua riqueza cultural.

O manguezal a que estamos nos referindoé o Piraqueaçu, situado entre Santa Cruz e oCórrego Fundo, em Aracruz, no Espírito Santo.Esse manguezal é conhecido por ser um dosmaiores da América Latina.

O manguezal é área preservada, conforme aConstituição Federal (1988), a Resolução

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Conama nº 004/85, a Lei nº 6.938/81, a Lei nº4.771/65 e, no Espírito Santo, a Lei Estadual nº4.119, de 23/7/1988. Mas acreditamos que essa“mina de tesouro” não deve ser preservada sóporque a lei assim reza, mas porque é um peda-ço de nós, pois aqui aprendemos e descobrimosque a vida está nas coisas simples e ao mesmotempo grandes.

Cada espécie encontrada nesse manguezaltem sua beleza e importância. Nesse espaço, en-contramos moluscos e crustáceos variados: os-tra, sururu, ameixa (amêijoa), caramujo, buso,papa-fumo, unha-de-velho, craca, chama-maré,siri, sapateiro, caranguejo, goiamum etc. Essesseres vivos podem ser encontrados ao longo detoda a extensão do Mangue Piraqueaçu.

A maior parte da fauna do manguezal vemdo ambiente marinho, o que não exclui o ter-restre, pois nele vivem aves, répteis, anfíbios,mamíferos e insetos. A flora do manguezal éconstituída pela espécie denominada mangue,a qual possui característica própria e é procu-rada pelos mariscos para sua proteção. Apesarde sua beleza e encanto, o manguezal possuitambém perigos, o que não intimida aquelesque dele dependem para o seu sustento.

A Pedagogia do Textono estudo do manguezal

Para que os alunos compreendessem omanguezal do ponto de vista cultural e ao mes-mo tempo científico, lançamos mão dos prin-cípios da Pedagogia do Texto, na medida em queesta valoriza o conhecimento local, cultural eaté mesmo individual do sujeito numa dimen-são de crescimento.

Orientando-nos por esses princípios, emum primeiro momento, tentamos descobrir oconhecimento empírico que os alunos deti-nham acerca do mangue. Esses conhecimentosforam primeiro sistematizados em textos indi-viduais e depois em textos coletivos. Buscamosrelacionar cada saber com o tempo, chegando

ao conhecimento coletivo, tudo isso respeitan-do a faixa etária de nossos alunos.

Durante a sistematização desses conheci-mentos, nossa fonte primeira foi a memóriaoral dos alunos, dos pais e dos mais velhos daaldeia, usando para isso entrevistas e pales-tras. Fizemos também algumas visitas aomanguezal, onde foram recolhidos diversostipos de recursos.

Num segundo momento, selecionamos,agrupamos e desenvolvemos aulas contextua-lizadas e interdisciplinares nas quais não haviafragmentação dos conhecimentos, mas um sósaber. Nessa segunda fase, outro princípio daPedagogia do Texto que nos orientou foi o deconfrontar o saber empírico dos alunos e dacomunidade com outros saberes sistematizadosem livros (saberes considerados científicos).Estudamos flora e fauna, clima, espaço geográ-fico e outros conteúdos a partir de atividadesvariadas, tais como a produção de diferentesgêneros de textos (argumentativo, explicativo,dissertativo etc.), teatro de varas, problemasenvolvendo medidas, compra, venda, sistemamonetário, jogos, quebra-cabeças, artesanatocom argila e sementes, desenhos variados.

Finalizamos o nosso estudo com um gosto-so almoço em que foi servida uma saborosamoqueca. Tudo isso foi realizado num clima deseriedade e de busca de conhecimento.

ConclusãoEstivemos diante do desafio que foi para

nós, educadores e educandos, tentar compre-ender o mangue a partir de diferentes perspec-tivas. Podemos dizer que atingimos nosso ob-jetivo e aprendemos, sobretudo, que a preser-vação do manguezal será de fato uma conquis-ta quando todos se conscientizarem da sua im-portância.

Em suma, trabalhar o manguezal não foi ta-refa árdua e penosa, mas prazerosa tanto paranós, educadores, quanto para os alunos.