Leonid Andreiev Judas Iscariotes A4

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LEONID ANDREIEVTradução de HENRIQUE L. ALVES Nota explicativa de ARISTIDES ÁVILAHÁ MANEIRAS DE LER QUE SÃO MANEIRAS DE SER.MensanapressPublicações para Ler e Pensar Janeiro, 2012NOTA EXPLICATIVAARISTIDES ÁVILA *A ESTRANHA E INDECIFRADA FIGURA DE JUDASAquele vulto sombrio, que manchou a página mais triste da história dos homens, percorreu vinte séculos a desafiar quem o compreendesse, como Esfinge pejada de mistérios. Mal conhecida a sua origem, mal definida a sua personalidade, mal

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LEONID ANDREIEV

Traduo de HENRIQUE L. ALVES Nota explicativa de ARISTIDES VILAH MANEIRAS DE LER QUE SO MANEIRAS DE SER.

MensanapressPublicaes para Ler e Pensar Janeiro, 2012

NOTA EXPLICATIVAARISTIDES VILA *

A ESTRANHA E INDECIFRADA FIGURA DE JUDASAquele vulto sombrio, que manchou a pgina mais triste da histria dos homens, percorreu vinte sculos a desafiar quem o compreendesse, como Esfinge pejada de mistrios. Mal conhecida a sua origem, mal definida a sua personalidade, mal justificada a sua existncia, continuou, depois do suicdio, como antes dele, a suscitar dvidas e viver de hipteses. Os que puderam ser testemunhas da sua participao no drama apenas lhe concederam referncias de passagem, como que tomados de instintivo horror ante a sua espantosa atuao. S se sabe, por isso, que a tenebrosa personagem de Keriot foi um dos doze companheiros do Mestre, a quem traiu por trinta moedas e, depois, tocado de remorso, foi buscar na morte ilusria a soluo para o seu desespero sem remdio. Dos quatro evangelistas, somente um, Mateus, objetiva de modo insofismvel o suicdio, por enforcamento, do arrependido traidor (cf. Mt 27,3-5). Nenhum outro se refere ao desfecho violento, na seqncia dos sucessos em que culminou a paixo do Filho do Homem. Alguns anos mais tarde, Lucas, embora no tendo sido apstolo, nem testemunha ocular dos acontecimentos, escreveria os Atos dos Apstolos, mencionando o suicdio de Judas. Mesmo assim, diverge daqueles que, segundo ele prprio diz, haviam empreendido fazer uma narrao coordenada dos fatos, como os transmitiram as testemunhas oculares desde o princpio. Para Lucas, a morte de Judas ocorrera em circunstncias diferentes: o traidor adquiriu um campo com o preo da sua iniqidade e, num precipcio ali existente, se atirou de cabea para baixo, rebentando-a pelo meio e esvaindo-se-lhe as entranhas. Por esse motivo, o terreno foi chamado Akeldama e havido por maldito (cf. At 1,16-19). Bem ponderadas as coisas, entretanto, pouco significa a discordncia, nem grande a diferena entre o Campo do Oleiro citado por Mateus e o Akeldama referido nos Atos dos Apstolos de Lucas. Se alguma dvida pairou sobre a morte de Judas, que pde ser afastada por um consenso de hermenutica, no houve, contudo, jurisprudncia que dirimisse os conflitos de opinio, quanto vida do funesto homem de Keriot. Esse indivduo sinuoso no foi compreendido sequer pelos seus contemporneos, nem mesmo unanimemente pelos onze companheiros de Cristo, que compuseram o primeiro apostolado. A exigidade de informaes positivas, diretas e coerentes acerca da existncia e da conduta do discpulo traidor, teve por isso o efeito inevitvel de abrir largos umbrais fantasia dos ficcionistas. Estes, por pretenso ou por simples nsia de originalidade, exorbitaram dos textos evanglicos e desprezaram as fontes dos eruditos, para inventar biografias, estudos crticos e at ensaios de psicanlise do deicida, nem sempre cabveis na realidade daquela poca. Mas no s nos ilimitados horizontes da criao literria frutificou o tema. Tambm na esfera da mstica e da religio se viu medrar a viciosa flor do gnosticismo, na singular teoria dos cainitas, que, sem levar em conta o livre arbtrio, fizeram pura e simplesmente a reabilitao moral do traidor. Inocentado por esta seita, que se diz altamente inspirada, tornou-se ele digno at de venerao, como um predestinado indispensvel redeno da

humanidade, a quem a Providncia deu a misso de reencarnar e concorrer com a traio para a tragdia necessria. Insustentvel no domnio da filosofia, tal julgamento no deixa de ser arriscado, como tudo, alis, que tem apoio exclusivo no determinismo absoluto. Mas tudo isto j matria assente e fora de qualquer cogitao. O que sobrou, de fato, foi uma fonte inesgotvel de motivos, de que os escritores de fico tm usado e abusado, procura de uma biografia, se no real, pelos menos verossmil da odiosa personagem da Paixo. Alguns deles, sem que nada os autorizasse, aventuraram narrativas de forma to irreverente e destituda de verossimilhana, que no mereceriam sequer ser jamais lembrados. Cuidaram acertar, preenchendo as entrelinhas da Escritura com frases, conceitos e episdios sem propriedade nem beleza, com total ausncia do respeito devido s coisas srias. Descambaram, s vezes, para o gnero anedtico, e quase sempre agravaram a confuso. Tais escritores certo no serviram nem Arte nem F; limitaram-se a plantar urtigas entre as vinhas do Senhor. Para escrever sobre Judas Iscariotes foroso conhecer pelo menos uma parte da verdade evanglica, e remontar um pouco ao panorama do ltimo sculo que precedeu o Advento e o comeo de nossa era. Naquele ltimo quartel, as doze tribos de Israel estavam colhendo o fruto mau da desunio, que era no s herana trazida do Egito, na bagagem do xodo, como prenncio da fatalidade histrica da disperso. Incapazes que foram de lutar pela unificao do reino ideal, os filhos de Israel estabeleceram-se na Palestina, onde viveram separadamente, nutrindo rancores e explorando rivalidades. Para uns ou para outros, eram imbecis os galileus, hipcritas os samaritanos, falsos os idumeus, como prepotentes os herdeiros de Jud e luxuriosos os descendentes de Zabulon. Debatia-se, ento, a Palestina toda em meio de seus problemas internos, que eram tantos e to vrios quanto era heterognea a sua populao, composta de povos que no se amavam e no se entendiam. Por sobre esta desordem, pairava a casta do Templo, que exercia o poder espiritual, escravizava as conscincias e vivia parasitariamente. E no bastasse isso, estava onipresente o rei Herodes Antipas como dono da terra, sucessor de Herodes o Grande, com seu poderio material, sua luxria, sua violncia e sua ambio de restaurar o reino da Judia, ora fragmentado em tetrarquias. Para completar o ambiente e inquietao, desde Pompeu, a guia de Roma espalmara as asas sobre o Oriente, e ali mantinha um procurador estrangeiro, que no governava, mas oprimia grandes e pequenos em nome do Imprio, e funcionava como suprema instncia. Foi neste quadro que surgiu o Santo de Deus. De comeo, pouca impresso causou com suas falas ao mesmo pblico habituado a ouvir nas praas e sinagogas intrpretes da Lei, que apregoavam sem cessar a vinda iminente de um salvador para a redeno do povo eleito. Mas a prtica de curas miraculosas e prodgios extraordinrios imps s multides o rabino de Nazar como verdadeiro filho do Criador. A tal ponto, que, Joo, o Batista, aquele que viera a fim de endireitar as veredas para o Senhor, despachou emissrios ao encontro do Mestre, a indagarem se era ele, em verdade, o messias prometido. Cristo no se dignou de responder diretamente indagao; mandou, apenas, que os emissrios voltassem e dissessem a Joo o que tinham visto: enxergavam os que foram cegos, ouviam os surdos, caminhavam os entrevados, ficavam limpos os leprosos, ressuscitavam os mortos. Ento, crescia a onda dos fiis em torno do Nazareno, proporo que diminuam o respeito aos Prncipes dos Sacerdotes, a raiva contra os Herodianos e a repugnncia pelo Procurador de Roma.

J ento seguia o Senhor, passo a passo, como apstolo, numa assiduidade que teria durado desde Can at a ltima noite de Betnia, o esquisito indivduo chamado Judas Ben Simo, de Keriot. Vadio sem passado, nem futuro, como tantos outros de veia potica, esprito leviano e folgazo, possvel que tivesse buscado a companhia do Profeta de Nazar, impelido por mera curiosidade, fora de tanto escutar o que se alardeava em toda a Palestina acerca da Boa Nova. E por que teria Jesus Cristo, filho de Deus onisciente, acolhido no seio de seus mais ntimos discpulos precisamente aquele que reconhecia trazer em si o germe da traio? Com certeza, porque o Mestre possua o dom de pressentir quem maior afinidade abrigava no ntimo com a sua doutrina, como o coletor Levi e o publicano Zaqueu, ou quem mais necessitava dele como tbua de salvao, pois no foi aos sos que viera oferecer remdio, seno aos verdadeiramente enfermos. Certo que o fantasma de Keriot se fundiu na suavidade dos onze companheiros, e trs anos levou palmilhando com o Salvador todas as estradas, das costas da Fencia aos desfiladeiros de Efraim, comendo com ele o po comum e saciando a sede nas mesmas cisternas. Conta o evangelista Lucas que, nas proximidades da festa da Pscoa e isto sucedeu nos ltimos dias do ministrio Satans entrou no corpo de Judas, que logo foi negociar com os Sacerdotes e os Oficiais a entrega do Filho de Deus. Mas, ento, s a teria nascido, e a partir dessa hora teria assumido forma a idia de trair o Salvador? pouco provvel, como tambm menos provvel que a traio se inspirasse em outros motivos inconsistentes, como um despeito injustificvel, numa inveja inconseqente, um dio gratuito contra o Bom Pastor, ou mera cupidez por uma poro de dinheiro to mesquinha. Mais vivel que a ovelha negra se inclinasse para o crime, instigada por zelo de outra espcie. Judeu de nascimento, originrio das fronteiras entre a Judia e a Idumia, no podia escapar ao choque de sentimentos que ferira os legtimos filhos de Israel. Quantas vezes, antes da presena do Nazareno, teria participado ou, pelo menos, testemunhado os movimentos populares de rebelio contra as autoridades? E como teriam padecido o seu orgulho de judeu e a sua sensibilidade de homem do povo, com o fracasso dessas tentativas? Depois, aderindo companhia de Jesus Cristo, era impossvel que no tivesse recebido influncia de sua divina sombra, nem tampouco negar a evidncia dos milagres que assistia. Mas o conflito que sacudia a sociedade estava tambm dentro de seu corao. Para ele, o Nazareno devia ter sido, s vezes, o prprio Deus vivo, quando operava milagres e maravilhas, outras vezes, nada mais que humano, quando o gentio o levava de vencida. Conhecedor do panorama poltico da sua terra, vislumbrou que era imperioso arregimentar o povo eleito contra os opressores, visto a libertao no partir do Filho de Deus, cujos atos e prdicas afastavam cada vez mais essa hiptese no plano da realidade material. Evidentemente, o supremo Deus no cumpria a promessa de dar para sempre ao povo eleito a terra de Cana. Todos ali, judeus, gentios, estrangeiros e peregrinos eram mais proprietrios da gleba que os prprios descendentes de Israel. E Judas continuava, no confiando, nem descrendo. Ao se aproximar a festa dos pes zimos, outra sedio explodiu, e foi abafada com a

costumeira inundao de sangue, sobrando, apenas, como detrito do estertor popular, o sedicioso Bar-abba. A brutalidade da reao do Procurador teve efeito decisivo no esprito do homem de Keriot. Compreendeu que a revolta mais uma vez falhara porque fora mal encaminhada. Era preciso destruir primeiro a mstica do cu, que, pela palavra mansa do Mestre, estava gerando uma passividade intil, para depois enfrentar o Templo, em seguida o Edomita, e, finalmente, Roma. Foi, ento, que enegreceu de todo a conscincia do Iscariotes. E ele vendeu o Messias por trinta moedas. Mas a no parou o drama daquele carter dbio. Acabou prevalecendo no fundo daquela alma de pntano a convico de que a sua vtima era inocente. E to furioso lhe trovejou o terremoto nas entranhas, que, ao mesmo tempo em que dera morte o corpo do Cordeiro de Deus, correu a tirar a vida ao prprio corpo. * ARISTIDES VILA, eminente escritor brasileiro, autor de uma consagrada obra Judas sobre este mesmo tema. Esta Nota Explicativa foi escrita como prembulo edio do livro Judas Iscariotes e outras histrias, de Leonid Andreiev, publicado em maro de 1960, pelo ento Clube do Livro. (Ver nota do editor no final).

* * *Depois dessas notas explicativas, os leitores e as leitoras tm diante dos olhos, mais uma verso da histria de Judas, devida pena ilustre de Leonid Andreiev. Este consagrado escritor russo nasceu no Governo de Crel, em 1871, numa poca em que constituam vanguarda no pensamento, pelo esplendor da sua produo intelectual, figuras que se projetaram alm do sculo e das fronteiras, como Tolstoi, Gorki e Dostoievski. Acusado, a princpio, de subordinar-se influncia dos mestres de ento, teve, afinal, um julgamento, que lhe reconheceu independncia da personalidade, pelo seu estilo preciso e sbrio, embora imaginoso e tocando as raias do simbolismo, a servio de uma viso realista das misrias humanas. Judas Iscariotes um livro em que o romancista vaza a sua grande habilidade de escritor, compondo uma histria limpa, de fundo e de forma, o que lhe vale sem dvida elevado merecimento. No tem a preocupao filosfica de um analista ou exegeta, no se arvora em historiador, mas revive com graa e propriedade o panorama dos primeiros dias desta era, naquele Oriente conturbado, onde se destaca a pessoa excelsa do Messias, colocando em evidncia, pelo flagrante contraste, a gravidade do crime vivido e consumado pelo desgraado apstolo traidor. Andreiev focaliza o seu Judas apenas no plano horizontal, no cuidando seno de exibir o homem de Keriot objetivamente, com as palavras e maneiras que lhe adivinhou, dentro da moldura aparentemente exgua da sua passagem na Terra ao lado do Nazareno. Mas o fez com arte, mantendo-se discreto e tanto quanto possvel exato nas suas narrativas, e contribuindo pela imaginao criadora com elementos, que no atentam contra a verdade conhecida atravs dos textos evanglicos. (LEC)

JUDAS ISCARIOTESCAPTULO IVrias vezes tinham advertido Jesus Cristo de que Judas Iscariotes era um indivduo de m reputao e de quem era preciso desconfiar. Seus discpulos, que haviam estado na Judia, conheciam-no bem; os demais ouviram falar dele muitas vezes, sem que pessoa alguma o elogiasse. Os bons exprobravam-lhe a cobia, a perfdia, a propenso mentira e simulao; os maus, quando se lhes interrogavam sobre Judas, expandiam-se em injrias e afrontas contra ele. Por onde passa semeia a discrdia afirmavam uns. Est cheio de segundas intenes; vive como um escorpio, a provocar escndalos. Mesmo os ladres tm amigos acrescentavam outros at os salteadores possuem camaradas, e os mentirosos uma mulher a quem, por vezes, confiam uma verdade; mas Judas supera a todos eles e a todos ridiculariza, s pessoas de bem e aos larpios, ainda que ele mesmo seja o mais sagaz e hbil ladro. o mais feio de quantos nasceram na Judia declaravam os que o conheciam de vista. No, Judas Iscariotes, o ruivo, no dos nossos! protestavam os vagabundos, com estupefao das pessoas honradas, que no viam muita diferena entre eles e os demais velhacos do pas. Diziam que Judas tinha de h muito abandonado a mulher, a qual levava existncia miservel, esforando-se em vo para ganhar o sustento com o cultivo de dois palmos de terra que constituam a herana de seu marido, que h longos anos no possua residncia fixa; vagueava daqui para ali, vagabundeava por povoados e vilarejos, entre gente de toda classe, atingindo em suas caminhadas a orla do mar e, ainda mais longe, at as praias de outro mar desconhecido e remoto. Mentia em toda parte, intrigava, espreitava com seu olho trapaceiro, fugindo dos lugares furtivamente e sem deixar atrs dele mais do que o rudo de querelas e fermentos de discrdia. As pessoas ficavam atnitas, escandalizadas com sua maldade, com sua curiosidade malvola, com sua perfdia. Um verdadeiro demnio! diziam. No tinha filhos e isto confirmava aos olhos da populao sua fama maldita, a quem Deus negava descendncia. Nenhum dos discpulos podia precisar o dia em que aquele torvo judeu, de pelos ruivos, abordou pela primeira vez Jesus. De h muito, Judas seguia-lhes o mesmo caminho, mesclando-se em suas prticas, prestando-lhes servios, sorrindo sem cessar, mostrando um servilismo abjeto. Eles se sentiam familiarizados com a sua presena. E sofriam de certo mal-estar diante daquela figura feia, abominvel e monstruosamente perversa, que lhes torturava os olhos e os ouvidos. Ento, expulsavam-no de seu lado, e ele desaparecia numa curva do caminho. Logo mais reaparecia momentaneamente; trazia suas eternas hipocrisias, suas astcias e artimanhas. Algo mal-intencionado devia existir naquele af de chegar at Jesus pensavam alguns dos discpulos. Talvez um desgnio hostil, um clculo prfido e cuidadosamente disfarado. Repetidas vezes disseram isso a Jesus; porm, suas vozes profticas ressoaram inutilmente. Com esse esprito de serena contradio, que o levava irresistivelmente at os

rprobos e os malditos, no titubeou Jesus em acolher Judas e p-lo entre os eleitos. Os apstolos, ao v-lo entre eles, sentiam-se conturbados, e humildemente lamentavam, enquanto Jesus, sentado, pensativo, o rosto voltado para o horizonte, talvez escutasse os discpulos ou aquela voz que s Ele podia ouvir. H dez dias que o vento no soprava e as nuvens de ar, no renovadas, pareciam prestes a vibrar, como se estivessem a espreita de alguma coisa desconhecida e perigosa que viesse da distncia. Havia-se dito que se guardavam os gritos e os cantos de todos os homens, dos animais e dos pssaros, seus risos e suas lgrimas, seus gemidos e suas vozes de alegria, suas pragas e suas maldies. E justamente por isso, porque tantas e tantas coisas estavam adormecidas, era o ar to grave, to prenhe de ansiedade, to saturado de vida invisvel. Outro crepsculo caa. Tal como uma esfera acesa, ia rodando at o ocaso, abrasando o firmamento e tudo quanto o sol alumiava. O rosto de Jesus, os muros das casas, as folhas das rvores, tudo refletia com doura aquela claridade distante e pensativa. A parede j no era alva e a alva cidade, tambm, parecia avermelhada sobre uma montanha cheia de fogo.

CAPTULO IIEnto, surgiu Judas. Acercou-se numa atitude rasteira, dobrando o espinhao, com a cara feia e inclinada para a frente, medroso e circunspecto, tal como era descrito por aqueles que o conheciam. Era melhor aprumado, de uma estatura elevada, quase como a de Jesus, o qual, no obstante o costume que havia adquirido de meditar enquanto andava, tinha as espduas algo encurvadas e dava a impresso de que era mais baixo do que parecia ser na realidade. Observava-se que, sem dvida, no faltava fora muscular a Judas; no se sabia, porm, porque afetava sempre um aspecto de homem dbil e enfermio. Sua voz mudava constantemente; ora, ressoava como se sasse de peito valente e vigoroso; ora, tornava-se acre e guinchada como a de uma velha harpa que range. Os que o ouviam experimentavam o vago prurido de arrancar de seus ouvidos as palavras de Judas, mortificadas e desgarradas como espinhos. Seu plo, curto e vermelho, apenas dissimulado; o crnio disforme, dividido desde a nuca em quatro partes, como por um duplo corte de sabre. Dentro daquela cabea diziam no pode haver harmonia, nem paz; dentro dela, deve retumbar incessantemente o fragor de ferozes e sangrentas batalhas! Seu rosto, tambm, era irregular; numa das faces tinha um olho negro e penetrante; viva, agitava-se sem cessar, franzia-se em mil diminutas rugas; a outra, lisa e imvel, parecia morta, sendo de idntico tamanho; o olho cego, que se arqueava desmesurado abaixo da plpebra, dava a impresso de enormidade. Coberto por uma catarata esbranquiada, dia e noite sempre igual, insensvel luz e s trevas. Mas, junto dele estava o outro, vivo e malicioso, e ningum o tomava por morto. Quando um acesso de emoo ou de humildade entortava-lhe o olho so e inclinava a cabea, o olho cego ia seguindo os movimentos do rosto num mirar silencioso. Naqueles momentos, at as pessoas menos atiladas compreendiam bem que nada de bom podiam esperar de um homem como aquele. Jesus chamou-o para o seu lado, dando-lhe um lugar entre os eleitos. Nesse dia, Joo, discpulo predileto, teve um gesto de desgosto; os outros, que amavam o Mestre, ensombraram-se, mas Judas no fez caso; sentou-se balanando a cabea, com pena dele prprio. Segundo ele, sofria muito de noite, acossado pela enfermidade; faltavalhe o flego, quando subia uma colina, e, quando assomava beira de um abismo, custavalhe grande sacrifcio no ceder ao estpido desejo de se atirar ao fundo. Descaradamente, inventava uma srie de histrias deste gnero, esfregando o peito com a sua manpula e, em meio do silncio geral, esforava-se em tossir para persuadir todos de que a doena era real. Todos, com olhares fixos ao solo, ouviam-no. Repentinamente e sem olhar o Mestre, Joo perguntou, em voz baixa, a Simo Pedro: No te cansas de tantas mentiras? Eu no posso agentar mais. Retiro-me. Pedro ps os olhos em Jesus. Seu olhar cruzou com o do Mestre. Espera! disse, levantando-se. E, caminhando para Judas com a rapidez do seixo, que se desprendesse pela encosta da montanha, Pedro disse-lhe solcito, carinhoso. Eis-te conosco, Judas! E, dizendo isso, deu-lhe uma palmadinha amistosa no ombro. Depois, sem olhar o

Mestre, cujos olhos sentia fixos nele, acrescentou, resoluto, numa voz clara e segura, que afastava toda replica: No importa que teu aspecto seja desagradvel e antiptico; s vezes, prendem-se nas redes dos pescadores peixes de aspecto repelente que, sem dvida, so os mais saborosos... No a ns, pobres pescadores de Nosso Senhor, que cabe repelir o peixe capturado, por ser repugnante vista e esteja eriado de espinhos. Uma vez, em Tiro, vi um enorme polvo, que acabavam de pescar; assustei-me tanto que estive a ponto de sair correndo. Mas os pescadores riram de mim e me fizeram comer aquele pescado. To bom era seu gosto, que pedi mais. Recordas, Mestre? O relato daquele acontecimento te fez rir... Tu, Judas, te assemelhas quele polvo... Mas to- somente em parte... E, Pedro, regozijando-se com a comparao, soltou uma gargalhada. Quando Pedro falava, sua voz tinha uma vibrao metlica, como se rebitasse com um martelo as palavras sobre uma bigorna; e quando caminhava ou trabalhava, tudo era movimento e estrondo ao seu redor; o solo lajeado rangia sob seus passos, as portas batiam e estalavam e at o ar parecia estremecer medrosamente. Nas montanhas, sua voz despertava sonoridades brutais e, pela manh, quando descia ao lago, ela corria sobre as guas sonolentas e cintilantes, como uma pelota no piso, fazendo sorrir os primeiros raios tmidos da aurora. Dir-se-ia que a natureza amava, com predileo, Pedro, por causa de sua voz. A alvorada, quando os semblantes dos companheiros permaneciam sumidos na penumbra e como que envoltos no vu da noite, ele, a cabea grande e o peito largo e desnudo, resplandecia de luz. As palavras, que ele havia dirigido a Judas e que o Mestre visivelmente aprovara, desvaneceram o mal-estar que pesava sobre os presentes; mas os que haviam tido ocasio de estar no mar, e, como ele, visto polvos, ficaram aflitos pela semelhana indicada entre os monstros marinhos e o novo discpulo. Vinham-lhes memria aqueles olhos enormes, aqueles tentculos, aquela fingida calma do monstro ao lanar-se sobre a presa, e envolvla, apert-la, estrangul-la e chup-la, sem que nada perturbasse a espantosa imobilidade de seus olhos. Essa semelhana sugeria-lhes os mais sombrios pensamentos. O Mestre calava e sorria, observando, com um olhar irnico e benvolo, Pedro que, com grande veemncia, continuava a sua pilhria. Ento, ligeiramente coibidos, os discpulos foram, uns atrs dos outros, acercando-se de Judas; falaram como amigos; e logo, mortificados, afastaram-se dele. Joo, filho de Zebedeu, calava desconfiado, o mesmo fazia Tom, que tampouco se decidia a falar, absorto em suas reflexes sobre o que acabava de suceder. Observando com ateno Judas, sentado junto do Mestre, e aquele estranho grupo de beleza divina e de monstruosa fealdade, do homem de olhar suavssimo ao do elegante de olhos fixos e rapaces, torturava-lhes a mente um enigma insolvel, que lhes enrugava a fronte larga, franzindo-lhes as sobrancelhas, entortando-lhes os olhos. Eles procuravam observar e uma viso fantstica se lhes apoderava do esprito: parecia que Judas tinha, na realidade, como o polvo, uns tentculos, que se moviam sem cessar. Mas, logo voltaram a si, pondo-se a observar friamente o recm-chegado. Este, cada vez mais se sentia cheio de convico prpria; os braos, encolhidos, alargavam-se, estendia os msculos dos maxilares e erguia a cabea disforme. Pouco a pouco, como se sasse de um abismo, os discpulos viram iluminar-se seus cabelos, depois os olhos e por fim o rosto. Pedro tinha sado, ignorando-se para onde; e o Mestre continuava sentado com a fronte

apoiada na palma da mo, pensativo, balanando suavemente seu p tostado pelo sol. Os discpulos conversavam entre si; apenas Tom, impassvel e mudo, o olhar fixo em Judas, analisava-o, grave, semelhante a um alfaiate consciencioso que toma as medidas de um fregus. Judas sorriu e Tom, sem corresponder a esse sorriso, continuou seu exame. Algo desagradvel inquietava a face esquerda de Judas, que, ao virar-se, lhe dirigia os raios lmpidos e frios das pupilas. Joo, o belo discpulo imaculado, de conscincia virginal e branca como a neve, permanecia silencioso. Judas acercou-se dele com o passo temeroso de um cachorro sarnento. Por que ests calado, Joo? perguntou-lhe. Tuas palavras assemelham-se a frutos de ouro servidos em clices de prata; d-lhe um a Judas, que to pobre. Joo no respondeu e Judas caminhou, com passos lentos, desaparecendo no vo da porta, aberta de par em par. Era plenilnio e quase todos os apstolos passeavam; Jesus havia sado, tambm; Judas tinha-se deitado no leito de um estreito cubculo, do qual podia ver os demais que iam e vinham. luz da lua, as silhuetas apareciam tnues e vagas, deslizando, seguidas por sombras opacas. s vezes, desvaneciam-se na obscuridade e ouvia-se uma voz, a do Mestre, mas, ao regressarem claridade, reinava novamente o silncio e tudo ficava mudo: as silhuetas brancas, as sombras negras nas paredes e a noite a um tempo escura e transparente. Quase todos eles dormiam, quando Judas ouviu a voz baixa do Mestre; e tudo se calou na casa e nos arredores. Um galo cantou; um asno relinchou estrepitosamente, como se a aurora fosse despontar. Judas continuava velando, vigilante, o ouvido aguado. A lua iluminava-lhe metade do rosto, refletindo-se de modo singular em seu olho imvel, como num lago coberto de gelo. Recordando-se do papel que lhe tocava representar, procurou tossir e, com a manpula, tocou no peito largo e peludo; podia acontecer que algum estivesse ali, atrs dele, espreita de seus secretos pensamentos.

CAPTULO IIIPouco a pouco, todos se foram habituando a Judas e no lhe notaram mais a fealdade. Jesus havia-lhe confiado o cofre do dinheiro e a ele ficaram atribudos os misteres da comunidade. Comprava alimentos e roupas necessrias, distribua esmolas e, nas viagens, cuidava de procurar albergues para pernoitarem. Cumpria, com esmero, o seu encargo; demonstrava zelo e habilidade em suas funes, e no tardou em granjear a benevolncia dos companheiros. Judas mentia em todas as ocasies, mas no faziam caso, porque seus embustes no ocultavam atos reprovveis; davam, ao contrrio, certo relevo a suas historias e sua conversao, e isto tirava, em grande parte, a monotonia da vida que levavam. A julgar pelos seus ditos, Judas conhecia todo mundo e cada um de quem falava havia cometido uma ao m ou mesmo um crime. Segundo ele, no havia pessoas bondosas, mas homens que sabiam ocultar manhosamente seus atos e intenes; adulavam, lisonjeavam, usavam de astcia, de mentiras, de vilanias e a abominao emanava deles como o pus de uma chaga. s vezes, concedia de bom grado ser um mentiroso, mas jurava e perjurava que os outros mentiam mais e que se havia no mundo algum a quem houvesse enganado era a ele prprio, Judas. No raro dizia havia logrado arrancar a confisso de pensamentos criminosos de pessoas tidas em grande estima. Assim, o guardio de um ricao fez-lhe, um dia, a confidncia de que carregava h dez anos o desejo de roubar do amo, mas no se atrevia a isso por temor conscincia e ao seu senhor. Judas deu crdito s palavras do guardio e este o enganou, roubando o tesouro que lhe confiaram. Ento, Judas persuadiu-se de que o furto estava consumado, porm, tambm dessa vez, foi enganado em sua boa f; o guardio havia-lhe devolvido todo o dinheiro. Dizia que todos o enganavam, inclusive os animais. Quando se aventurava a acariciar um cachorro, este o mordia, e quando lhe descia o pau, o bicho lambia-lhe os ps e o olhava com submisso. Um dia, matou um desses animais, enterrando-o em abismo profundo, sobre o qual colocou uma pedra. E, coisa estpida, o cachorro saltou da cova, saiu correndo alegremente em direo aos donos! Todos riam, ouvindo Judas; ele, tambm, sorria, piscava o olho e no tardou em reconhecer, com o mesmo sorriso irnico, que havia mentido um pouco. No, no havia matado o cachorro, mas podia assegurar que, se o encontrasse no caminho, o mataria, para no ser enganado. E essas palavras excitavam ainda mais a hilaridade dos companheiros. Outras vezes, contava-lhes coisas fantsticas e inverossmeis, atribuindo aos homens sentimentos que nem os prprios animais possuem, acusando-os de crimes impossveis, de monstruosidades inexistentes. E, como um dia invocasse o nome de um personagem muito respeitvel, os ouvintes, protestando contra a calnia, perguntaram-lhe, rindo: E teus pais, Judas, eram boas pessoas? Judas sorriu e meneou a cabea. De meus pais, falais... E quem foi meu pai? Qui o homem que me interpela, qui o demnio ou um cabrito, ou mesmo um galo. Porventura Judas pde conhecer a todos que compartilharam do seu nascimento? Judas no conheceu seus pais... De qual deles falais? Um leve murmrio fez-se ouvir. Essas palavras sacrlegas foram acolhidas por um vozerio, porque todos eles veneravam

os pais. Mateus, que conhecia muito bem as Santas Escrituras, citou com voz severa as palavras de Salomo: Se algum maldiz de seu pai e de sua me, a sua luz se apagar nas trevas.... Joo, filho de Zebedeu, perguntou numa voz altiva: E de ns? Que tens de mau a dizer, Judas Iscariotes? Judas simulou grande terror, lanando gemidos lacrimosos, tal como um mendigo que pede esmolas aos transeuntes. Ah! Por que tentar Judas? Por que ridicularizam Judas? Por que o acham to crdulo? Uma face contraia-se em mil grotescas caretas e a outra permanecia grave, severa, e o olho mergulhava no vcuo. Simo Pedro era o que mais se regozijava com as mentiras de Judas; mas um dia, ps-se taciturno, pensativo e, puxando Judas pela manga, levou-o para o lado: E Jesus? Que pensas tu de Jesus? perguntou-lhe, inclinando-se ao ouvido. Mas nada de mentiras, o que te peo! Judas olhou-o cheio de clera: E tu, que pensas dEle? Assustado, Pedro murmurou: Eu creio que o Filho de Deus. E por que me vens com essas perguntas? Que poder responder-te o filho de um bode bravo? Quero saber se O amas; porque, segundo parece, no amas ningum, Judas! Com a mesma clera estranha, Iscariotes pronunciou em tom breve e cortante: Amo-O. Aps os dois dias que se seguiram quela conversao, Pedro chamou Judas de meu amigo polvo e este, com manifesto mau humor, procurou ocultar-se dele, metendo-se num canto, onde permaneceu, durante longo tempo, cabisbaixo e sombrio. Judas ouvia com sinceridade unicamente Tom. No entendia este de pilhrias, mentiras e hipocrisias e a cada palavra que ouvia buscava um sentido claro e categrico, interrompendo constantemente, com seus meticulosos reparos, os malignos relatos de Judas: Tens de provar o que dizes a respeito desse homem. Que tens ouvido? Quem estava contigo? Judas enfurecia-se; chiava, explicando que tudo o que havia visto fora com os prprios olhos e tudo o que ouvira fora com os prprios ouvidos. Mas Tom continuava obstinadamente irredutvel, dirigindo-lhe perguntas aps perguntas, at obrig-lo a confessar o embuste. s vezes, para fugir ao interrogatrio, passava a outra histria mais verossmil, sobre a qual Tom logo meditava em silncio e, encontrando nela algum ponto fraco, reiniciava, com voz calma, o seu inqurito, finalizando por faz-lo declarar que havia mentido novamente. Judas excitava a curiosidade de Tom, criando, entre os dois homens, uma espcie de amizade cheia de gritos, de invectivas e risadinhas, de um lado, e de perguntas tranqilas e ininterruptas do outro. Quase freqentemente, Judas sentia insuportvel averso pelo amigo e, atravessando-o com o olhar, perguntava: Que mais queres? No te disse tudo?! Quero que demonstres de que modo um bode pode ser teu pai! replicava Tom impassvel e obstinado. Judas opunha um silncio e cravava um olhar de assombro no corpo rgido, nos olhos francos e claros, na fronte vincada, na barba hirsuta do amigo:

Que tonto, s! debatia. Hs de querer saber o que vs nos sonhos, se uma parede, uma rvore ou um asno? Tom no insistia. No entanto, ao anoitecer, quando Judas se deitava junto dele no cubculo e cerrava seu olho vivo para dormir, exclamava em voz alta: Tu te enganas, Judas; tenho maus sonhos. Ter o homem de responder tambm pelos seus sonhos? Que que tu pensas? Outra pessoa v aqui o que sonhas? Tom suspirava e punha-se a refletir. Judas sorria, com desprezo, fechava taciturno o olho e entregava-se ao descanso; descanso povoado de monstruosos pesadelos, de quimeras insensatas, de vises espantosas, que bailavam e se lhe confundiam no crebro.

CAPTULO IVDurante as peregrinaes de Jesus e de seus discpulos, atravs da Judia, quando se aproximavam de algum povoado, Judas antecipava-se a preveni-los contra os seus moradores, falando que eram maus e predizendo que iam ser recebidos com hostilidade. Entretanto, ocorria, quase sempre, que os habitantes acolhiam com prazer Jesus e os apstolos, devotando-lhes afeio e amor e adotando com entusiasmo os seus ensinamentos. O cofre, onde Judas guardava o dinheiro, tornava-se muito pesado e, com dificuldade, conseguia transport-lo. Todos lhe ridicularizavam os receios e ele respondia gesticulando com ar submisso: Sim, sim! Judas acreditava que fossem maus e so bons. Converteram-se e deram-nos dinheiro. Enganaram, pois, o crdulo Judas, o pobre Judas Iscariotes! Mas, certa vez, quando se achavam distantes de um povoado, onde foram bem recebidos, entabulou-se entre Tom e Judas violentssima discusso e, a fim de encerr-la, ambos regressaram ao lugarejo. No dia seguinte, alcanaram Jesus e os demais discpulos. Tom vinha triste e perplexo, enquanto Judas se mostrava orgulhoso como se esperasse felicitaes e agradecimentos. Tom acercou-se de Jesus e declarou resolutamente: Senhor, Judas tinha razo! As pessoas do lugarejo so estpidas e malvadas. A semente de Tuas palavras caiu em terreno pedregoso. E ps-se a narrar o que havia acontecido no povoado. Enquanto Jesus e os discpulos caminhavam, uma velha comeou a gritar que lhe haviam roubado um cabrito branco e acusava de furto o Nazareno e seus discpulos. No inicio, queriam contradiz-la; porm, ela se obstinava em culpar Jesus como autor do furto e as pessoas crdulas queriam ir no encalo dos ladres. Mas, momentos aps, reapareceu o cabrito que causara a Jesus a suspeita de impostor e ladro. Miserveis! exclamou Pedro. Queres, Senhor, que eu v... Jesus no havia despregado os lbios durante os acontecimentos; lanou um olhar severo a Pedro, o qual, sem terminar a frase, se retirou, indo esconder-se entre os demais. Ningum falou do que acontecera, como se, na realidade, o mesmo no houvesse existido. Ter-se-ia dito que Judas no tinha razo. Inutilmente, procurava mostrar uma face ingnua e modesta no semblante monstruoso, onde se destacava o nariz de ave de rapina; ningum lhe dava a menor importncia e se algum, de vez em quando, lhe dirigia um olhar, fazia-o com visvel animosidade e desdm. Desde aquele dia, Jesus manifestou mudana de proceder para com Judas. O Mestre raramente havia falado com Judas, que jamais se dirigira a ele diretamente. Jesus limitava-se a olh-lo com os olhos carinhosos e sorridentes e, quando tardava demasiado em v-lo, perguntava aos outros: Onde esta Judas? Ultimamente, parecia no fazer caso dele e o seguia com o olhar cada vez que falava ao povo ou prodigalizava ensinamentos aos discpulos. Na maioria das vezes, Jesus volvia as costas a Judas e lanava as palavras por cima dos ombros do judeu ou ento simulava no sentir a sua presena. Mas sempre se tinha a impresso de que as frases do Mestre iam ao encontro do Iscariotes, parecendo mesmo, nessas ocasies, que elas eram dirigidas diretamente contra ele. Jesus simbolizava para todos uma flor suave e bela, como uma fragrante rosa do

Lbano; em troca, Judas era s espinhos, como se no tivesse corao, como se estivesse desprovido de olhos e ouvidos, como se fosse diferente dos companheiros, incapaz de apreciar o esplendor das ptalas frgeis e imaculadas. Certa ocasio, Judas perguntou ao amigo Tom: Agrada-te a rosa amarela do Lbano, de rosto tostado e olhos como os da gazela? Sim, agrada-me o seu perfume respondeu o outro com indiferena. Jamais ouvi falar, porm, que as rosas tivessem rostos tostados e olhos de gazela. verdade? E acaso no sabes que o cacto que rasgou as tuas vestes novas tem uma flor encarnada e um olho? Tome ignorava ainda que, na vspera, um cacto lhe rasgara as roupas. O cndido Tom nada sabia, apesar da insacivel curiosidade e de suas perguntas constantes. Os seus olhos tinham uma expresso franca e sincera e suas pupilas eram difanas, e tudo era visvel atravs delas como atravs de um cristal fencio. Passados alguns dias, aconteceu que Judas teve de novo razo. Foi no povoado de Judia, para onde decidiram rumar, apesar das admoestaes e conselhos de Judas. A populao acolheu Jesus e os apstolos com mostras de desagrado e ao finalizar a prtica, na qual o Senhor censurava os hipcritas, a multido enfureceu-se e quis decapitar Jesus e os discpulos. Aqueles energmenos formavam uma coorte e se no fosse a interveno de Judas teriam realizado o projeto criminoso. Judas, tomado de terror, como se visse a tnica imaculada de Jesus banhada de sangue, comeou a gritar, suplicar e mentir, ameaando-os para que o Mestre e os discpulos pudessem salvar-se. Poder-se-ia afirmar que tinha dez ps; grotesco e espantoso em suas suplicas e imprecaes, agitava-se como um possesso diante da multido que se imobilizou como por fora de estranho e desconhecido poder. Judas afirmava que Jesus no era instrumento de Satans e sim um impostor, um homem apaixonado pelo dinheiro alheio, bem como todos os que O acompanhavam e ele prprio. E ao falar, sacudia, com estrondo, o cofre, arrastando-o pelo solo e esforando-se em demonstrar ntida humilhao. O povo, pouco a pouco, trocava a ira pelo asco; comearam a chover os escrnios; as pedras que tinham nas mos caram inertes. No, no so dignas essas pessoas de morrer em nossas mos honradas! declaravam os habitantes, seguindo, com o olhar, Judas que se distanciava a passos largos. Judas Iscariotes, mais uma vez, esperava receber as felicitaes e as palavras de gratido dos apstolos, mostrando as vestes rotas e assegurando-lhes que o haviam espancado em demasia; mas todos o acolheram com um silncio glacial. Jesus, entristecido, caminhava a passos lentos, na frente, sem despregar os lbios. Nem Joo nem Pedro ousavam acercar-se dEle. E aqueles que de vez em quando lanavam um olhar furtivo a Judas, observando-lhe as roupas rasgadas, o rosto satisfeito e animado, onde persistiam ainda vestgios de terror, manifestavam repulsa com gestos irritados. Ningum disse que fora ele quem salvara com o escndalo a vida do Mestre e dos companheiros. Viste como so imbecis? disse Judas a Tom, que caminhava mergulhado em suas reflexes. Olha-os, vo pelo caminho como um rebanho de cordeiros, levantando o p com os ps. Tom, tu que es inteligente e eu, o formoso e nobre Judas, vamos separados, como escravos, indignos da companhia do Mestre! Por que dizes que s formoso? perguntou Tom, estupefato. Porque o sou! afirmou Judas com convico. E ps-se a narrar, com floreios de simplicidade, como havia conseguido burlar os

inimigos de Jesus e mofar de suas ameaas. Mas tu mentiste! observou Tom. Pois bem, menti acrescentou com tranqilidade. Eu lhes dei o que pediam e me devolveram aquilo de que eu necessitava. Que a mentira, meu inteligente Tom? A morte de Jesus no haveria de ser uma mentira mais funesta? No, Judas. Falaste mal. Agora me convenci de que o demnio foi teu pai. Foi ele quem te inspirou, Judas! Iscariotes suspirou aliviado e quedou-se ante Tom, olhou-o fixamente nas pupilas, atraiu-o para si, enlaando-o com fora, dizendo: Ento, foi o demnio que me inspirou?... Bem, muito bem, Tom. Dize-me, salvei ou no o Mestre? Sim, verdade. O demnio tem interesse em salvar o Cristo. Logo, Jesus e a Verdade so necessrios ao diabo. Muito bem... Mas hs de saber, Tom, que o diabo no foi meu pai; foi um bode. Quem sabe se este tambm interessa a Jesus, eh? E vs todos no precisais dele? No precisais da verdade? Responde, anda, responde... Tom, indignado, desprendeu-se dos braos de Judas, comeando a andar com passadas rpidas; depois, moderou os passos e ps-se a caminhar lentamente, procurando compreender tudo quanto havia ouvido. Judas caminhava apressado e o grupo compacto dos apstolos seguia, na distncia, sem poder distinguir-se a figura de Jesus. Tom no era mais do que um ponto escuro na sombra e de repente todos desapareceram numa curva da estrada. Judas lanou um olhar ao redor, afastou-se do caminho e, dando enormes saltos, aproximou-se de um barranco profundo e pedregoso. medida que descia, as roupas enfunavam-se e os braos agitavam-se por cima da cabea como se quisessem voar. Numa encosta, resvalou e foi rodando como uma bola, machucando-se nas pedras. Quando se deteve, levantou-se e, com o punho erguido para a montanha, gritou, spero e colrico: Tambm tu, maldita? Aps moderar a descida, chegou ao fundo do abismo, escolheu uma gruta e ocultou-se como um cachorro. Permaneceu ali uma, duas horas, confundido com os calhaus, enganando os pssaros com a sua imobilidade. Erguiam-se diante dele os flancos abruptos do barranco, cuja linha quebrada se desenhava no cu azul-escuro; levantavam-se por todos os lados enormes blocos de granito, cravados na terra; parecia que, em tempos remotos, desabara uma chuva de pedras em pesadas gotas, imobilizadas para a eternidade. Aquele bloco grantico, desrtico e selvagem, semelhante a um crnio colossal, separado do tronco, erguia arestas de rochas como tantos pensamentos petrificados no sonho obstinado e eterno. Um escorpio deslizou diante de Judas, que o viu olhar fixamente para um ponto invisvel com seus olhos imveis, cobertos por um vu esbranquiado. Aqueles olhos pareciam cegos e, por vezes, videntes. Da terra, dos pedregulhos, das gretas comearam a subir as trevas aprazveis da noite; logo, envolveram Judas e flutuaram cleres at o cu luminoso, que empalidecia. Chegava a sombra com suas fantasmagorias e seus sonhos. Naquela noite, Judas no dormiu no pouso e os apstolos, obrigados a interromper a meditao para atender aos cuidados domsticos, murmuraram contra a negligncia do ausente.

CAPTULO VCerto dia, Jesus e os apstolos subiam por um carreiro escarpado e, como havia cinco horas que andavam, o Mestre queixou-se de cansao. Os discpulos detiveram-se. Pedro e Joo estenderam suas mantas por terra e, com outras, penduradas entre a ramagem, fizeram uma espcie de tenda. Debaixo da sombra das rvores, o Senhor ficou descansando, enquanto os demais conversavam alegremente, trocando frases de bom humor e ditos inocentes. Percebendo que as conversas molestavam o Mestre, afastaram-se e entregaram-se a diversos exerccios, insensveis como eram ao calor e fadiga. Um deles ps-se a cortar razes comestveis, levando-as ao Mestre; outro subiu numa elevao para melhor apreciar o azulado panorama. Entre as pedras, Joo encontrou um lagarto e, com certas precaues, levou-o junto do Senhor para que o admirasse. O lagarto cravou o olhar enigmtico nos olhos do Nazareno. Pedro, que no apreciava divertimentos pacficos, entretinha-se em companhia de Filipe, arrancando do monte grossos seixos e lanando-os pela encosta. Alardeavam as respectivas foras, estabelecendo-se entre os dois dissimulada disputa. Os demais, atrados pelos risos de ambos, foram-se aproximando, pouco a pouco, tomando parte na divertida brincadeira. Arrancavam, sem dificuldade, grandes pedras, levantando-as alto e, estirando os braos, arrojavam-nas ao longe. Quando elas caam, ouvia-se um estrondo curto e surdo; dava-se uma pausa, como se elas refletissem por instantes; depois, saltavam vacilantes e, a cada contato com a terra, redobravam de fora e velocidade, tornando- se mais ligeiras e mais destruidoras. No paravam. Pareciam voar rasgando os ares, silvando, at se precipitarem no fundo do abismo invisvel. Vamos, mais uma! gritava Simo, os dentes brancos a reluzirem no meio da barba negra; o peito hercleo e os braos desnudos. Dir-se-ia que as prprias pedras ficavam assombradas daquela fora com que eram lanadas uma aps outra, obedientes ao desconhecido. Joo atirava pedras menores devido mesmo a sua delicadeza. Jesus admirava, com olhar benvolo e doce, o divertimento dos discpulos. E tu, Judas, por que no vens atirar pedras? perguntou-lhe o amigo Tom, vendo-o a distncia sentado num penhasco. Di-me o peito. Alm disso, ningum me convidou. Pois, se isso o que desejas, eu te convido. Vem e olha as pedras que Simo Pedro atira. Judas olhou-o de soslaio e foi quando Tom admitiu, vagamente, que aquele homenzinho tinha duas caras. Mas antes que o confirmasse, o outro, com seu tom habitual e alegando dor, dizia ironicamente: Ser que existe algum mais forte que Simo Pedro? Quando grita, todos os asnos de Jerusalm crem ser o Messias que chega e se pem a relinchar. Tom, tu nunca ouviste? Com sorriso afvel e cruzando pudicamente a parte da vestimenta sobre o peito coberto de pelos dourados, Judas entrou para o crculo dos jogadores. Todos estavam de bom humor e o acolheram jubilosos. Joo esboou um gesto de indulgncia, quando Judas, suspirando e queixando-se, como um verdadeiro doente, se apoderou de enorme pedra, levantou-a e, sem o menor cansao, lanou-a a distncia; seu olho cego e enrugado sob uma vaga vacilao cravou-se em Pedro enquanto a outra pupila se enchia de astcia e prazer. Atira outra! disse Pedro, despeitado.

E os dois, alternadamente, tiraram e arremessaram projteis enormes, prendendo a ateno de todos os apstolos. Pedro levantava um calhau rijo e macio; mas Judas escolhia outro maior. Pedro, furioso, lograva arrancar um fragmento de rocha, projetando-o, com visveis esforos, ao longe. Judas sorria sempre, procurando, com a vista, um bloco mais pesado; aprisionava-o nos dedos frreos e compridos, vacilava e o arrancava, empalidecendo. Uma vez arrojada a pedra, Pedro acompanhava-a com o olhar, enquanto Judas, ao contrrio, se inclinava para a frente e estendia os braos como se intentasse seguila. Pedro e Judas dirigiram-se a um bloco de pedra bem maior; nenhum dos dois conseguiu levant-lo. Pedro, o rosto incendiado, acercou-se resolutamente de Jesus e disse numa voz tonante: Senhor, no quero que Judas seja aqui o mais forte! Ajuda-me a levantar esta pedra! Jesus respondeu, em voz baixa, enquanto Pedro, encolhendo os ombros, mal-humorado, foi reunir-se aos demais: E quem ajudaria o Iscariotes? Judas persistiu em mover o bloco, forcejando com os dentes apertados e o rosto suado. E Pedro comeou a rir: Olhai o nosso doente! exclamou. Vede o que faz o nosso pobre Judas! O prprio Judas comeou a rir ante aquela prova evidente de sua hipocrisia e todos se regozijaram; at mesmo o grave Tom, cujos lbios se entreabriram um pouco e o bigode gris se moveu ligeiramente. E assim, rindo e brincando, puseram-se a caminhar. Pedro, reconciliado com o adversrio, dava-lhe, de vez em quando, palmadinhas nas costas: s um traste! Todos felicitaram Judas, reconhecendo-lhe a fora e a destreza; mas Jesus no se associou aos elogios. Seguia na frente, sozinho, mordiscando um fiapo de erva. Pouco a pouco, os discpulos cessaram de rir e, um aps outro, acercaram-se d'Ele. Novamente, formaram um grupo compacto ao redor do Mestre, enquanto Judas, o vencedor, Judas o forte, ficara atrasado, respirando o p que os outros levantavam. Os caminhantes pararam. Jesus ps uma das mos no ombro de Pedro e com a outra assinalou Jerusalm, que se vislumbrava no horizonte. E as espduas de Pedro, largas e robustas, estremeceram sob o peso daquela mo fina, delicada.

CAPTULO VIEles passaram a noite na casa de Lzaro, na Betnia. Quando todos estavam reunidos, Judas acercou-se do grupo, supondo que falavam de suas vitrias da manh, porm os discpulos estavam silenciosos e pensativos. As cenas do caminho percorrido, o sol, os penhascos, os prados, o Senhor repousando na tenda improvisada, flutuavam-lhes nos crebros, suscitando-lhes doces recordaes e um desejo de vagar eternamente sob o sol. Os corpos exaustos repousavam e ningum se lembrava de Judas. Este saiu e voltou. Jesus falava aos apstolos e, sentada aos seus ps, imvel como uma esttua, estava Maria; a cabea erguida, contemplava o Mestre. Perto de Jesus, encontravase Joo, que alisava ternamente, com os dedos, as vstias do Nazareno, enquanto Pedro respirava ruidosamente, acompanhando, com o ritmo do seu alento, as palavras do Mestre. Sem fazer caso dos presentes, Judas deteve-se no umbral e observou o Senhor, num olhar ardente. medida que olhava, as coisas obscureciam-se ao redor; apagavam-se, povoando-se de silncios e de mistrios. Apenas Judas tinha a impresso de que o Mestre se esfumava, elevando-se s alturas, semelhante neblina, que flutua sobre os lagos, atravessada pela luz da lua. Parecia-lhe que Suas palavras, impregnadas de ternura, vinham da distncia, quem sabe de onde. E ao contemplar aquela silhueta vacilante, ao ouvir a harmoniosa melodia de Suas palavras, Judas apertou os dentes e fechou a boca como se quisesse conter a prpria alma; e, envolto nas trevas, ps-se a imaginar uma obra gigantesca. No se sabe por que, na escurido de seu isolamento, levantava massas enormes como montanhas e as amontoava, sem esforo, umas sobre as outras; aproximou outras e as juntou s primeiras. E aquilo crescia, sem rudos, estendendo-se como um campo, no qual se perdem os limites; Judas sentia que seu crebro era como a cpula de uma construo misteriosa, que se cimentava nas trevas insondveis. E a mole colossal foi subindo, subindo cada vez mais alto, apesar dos lbios divinos continuarem emanando ternas palavras provindas da distncia. Judas permaneceu no umbral enorme e negro, impedindo a passagem; Jesus falava acompanhado do alento de Simo Pedro. O Mestre calou-se repentinamente. Pedro, como se despertasse, exclamou com entusiasmo: Senhor, Tu conheces a verdade da vida eterna! Jesus, com os olhos imveis, no respondeu. Os que Lhe seguiram o olhar viram no umbral Judas, que abria a boca e arqueava as sobrancelhas. Sem compreender do que se tratava, riram. O sbio Mateus tocou no ombro de Iscariotes, recitando-lhe as palavras de Salomo: Ter-se- misericrdia do que for humilde, mas o que fica nas portas mortifica os outros. Judas estremeceu, lanando um grito de espanto. Dir-se-ia que todo o corpo, os olhos, as mos e os ps lhe fugiam. Parecia que, naquele instante, o animal fora surpreendido de sbito pela presena do homem. Jesus levantou-se e caminhou para ele. Levava uma palavra nos lbios, porm nada pronunciou e o outro lhe franqueou o umbral... meia-noite, Tom, inquieto, abeirou-se do leito de Judas, agachou-se, perguntandolhe: Judas, ests chorando?

No, Tom. Vai-te! Por que gemes e ranges os dentes? Ests sentindo dor? Judas silenciou por instantes; logo, uma aps outra, fluram-lhe dos lbios palavras rudes, cheias de dor e de clera: Por que no me ama? Ele? Por que ama os outros? Eu no sou por acaso o mais forte e o mais formoso? Quem, se no eu, lhe salvou a vida, enquanto os outros fugiam como ces poltres? No tens razo, amigo, tu no s to formoso assim e tua lngua to prfida como repulsivo o teu rosto. Mentes, calunias, sem cessar. Como queres que Ele te ame? Judas parecia no ouvi-lo e continuava movendo-se nas trevas. Por que no est Ele com Judas e sim com os que no O amam? Joo ofereceu-lhe um lagarto; eu lhe levaria uma serpente venenosa. Pedro lanou enormes pedras; eu, para agradar-lhe, removeria montanhas. Que , afinal, uma serpente peonhenta? Se lhe arrancam os dentes envenenados, enrola-se ao pescoo como um colar. Que , afinal, uma montanha? No se pode, por acaso, esvazi-la com as mos e calc-la com os ps? Algo melhor eu Lhe houvera dado; o formoso Judas, o valente Judas! Mas, agora, perecer e Judas perecer com Ele... Meu amigo, que coisas esquisitas ests dizendo. Uma figueira seca deve ser derrubada com um machado! Eis o que se tem dito! Por que Ele no me derruba? Por que no se atreve, Tom? Eu sei; tem medo de Judas, o elegante, o forte, o valente Judas! E prefere os demais, os imbecis, os traidores e os mentirosos. Tu, tambm, s um mentiroso, Tom! Ouviste? Tom, estupefato, ia responder, mas, pensando que Judas o injuriaria ainda mais, como costumava, limitou-se a mover significativamente a cabea. Judas indignou-se; rangia os dentes e agitava-se sem cessar, gemendo, dizendo para si mesmo: Que te causa tamanha dor, Judas? Quem te incendiou o corpo? Suponhamos que hajas dado o filho aos cachorros, a filha aos bandidos e a mulher prostituio! Mas, Judas no teria um pouco o corao sensvel e terno? E dirigindo-se a Tom, exclamava: Deixa-me, Tom, vai-te, imbecil! O formoso, o forte, o valente Judas quer ficar sozinho!

CAPTULO VIIJudas apoderara-se de algum dinheiro; descobriu-se o furto graas a Tom que, por casualidade, havia contado as moedas oferecidas pelo povo. Era de se supor que aque1e roubo no fora o primeiro; a indignao foi geral, Pedro, enfurecido e colrico, pegou o ladro pelo pescoo e levou-o presena de Jesus, sem que o culpado, espantado e lvido, pensasse em resistir. Ei-lo, Mestre! Aqui est o ladro! Depositaste confiana e ele nos roubou! Ladro! Canalha! Com tua permisso, Senhor!... Jesus calou-se. Pedro fitou-o atento e enrubesceu, abrindo a mo que tinha agarrado Judas. Este, sufocado e confuso, ajeitou as roupas e, seguindo Pedro com o olhar, tomou uma atitude contrariada de arrependimento. Ah! Est bem resmungou Pedro irritado e saiu, dando um empurro. Todos eles demonstravam certo descontentamento e afirmavam no desejar conviver com Judas; mas Joo refletiu um instante e entrou na sala contgua, onde se ouvia a terna e melodiosa voz do Mestre. Aps minutos, voltou, tinha o rosto plido e os olhos avermelhados como se houvesse chorado. O Mestre disse que Judas podia retirar quanto dinheiro quisesse... Pedro teve um sorriso malvolo e irritado. Joo olhou-o com reprovao: suas lgrimas mesclaram-se com a sua clera e, num acento entrecortado, explicou: O Mestre disse: Ningum deve contar o dinheiro que Judas coleta. Judas nosso irmo e o dinheiro da caixa pertence a ele e a ns. Se necessitar dele, que o tome quanto lhe for necessrio, sem que a ningum o pea. Judas nosso irmo e o haveis ofendido gravemente. Eis o que disse o Mestre. Envergonhemo-nos do nosso procedimento. Judas, plido, um sorriso de desgosto, estava no umbral. Joo avizinhou-se dele e beijou-o trs vezes. Tiago, Filipe e os demais, confusos, seguiram-lhe o exemplo. Depois de cada beijo, Judas limpava a boca, mas beijava ruidosamente os companheiros com veemncia, como se lhe agradasse o estalido dos lbios. Pedro foi o ltimo a se aproximar e disse: Somos todos imbecis, todos cegos, Judas. S Ele v, s Ele sbio. Permites que eu te beije? Por que no? respondeu Judas. Pedro deu-lhe um sonoro beijo, murmurando-lhe ao ouvido: Quase te esganei h pouco. Os outros te enfrentaram s com palavras; eu te agarrei pelo pescoo. Machuquei-te? Um pouco. Irei ver o Mestre e contarei tudo, Porque tambm me encolerizei contra Ele... S Tom permanecia distante e sem beijar Judas. E tu, Tom? perguntou-lhe severamente Joo. No sei o que devo fazer; preciso pensar. E, pensativo, vagueou durante o dia. Os apstolos, ocupados, iam e vinham em seu afazeres; ouvia-se aqui e ali a voz ruidosa de Pedro; Tom continuava pensando. J havia decidido, mas arrependeu-se dada atitude de Judas, que o perseguia tenaz com o seu olhar irnico e, gravemente, de vez em quando lhe perguntava: Tom, como vais?

Judas, ento, fingindo ignorar a presena do amigo, foi buscar o cofre e ps-se a contar o dinheiro, somando uma a uma as moedas. Vinte e um, vinte e dois, vinte e trs... Tom, olha uma moeda falsa! Canalhas! Donos moedas falsas!... Vinte e quatro... Logo, diro que Judas roubou! Vinte e cinco, vinte e seis... A tarde caia quando Tom, com ar resoluto, se acercou de Judas, dizendo: Judas, o Mestre tinha razo, deixa que te beije. Verdade? Vinte e nove, trinta... E intil... Roubarei outra vez... Trinta e um... Roubaras como, se no tudo teu, nem tudo meu? Irmo, tomars o que te faas falta. E para repetir as palavras do Mestre necessitaste me- ditar toda a jornada? No sabes o valor do tempo, Tom. Tenho a impresso de que ests mofando de mim, irmo. Pensa bem, Tom. Crs, realmente, que fazes bem em repetir as Suas palavras? Porque foi Ele quem disse: Nem tudo teu, nem tudo meu e no tu. Foi Ele quem me beijou; os outros no fizeram seno encostar os lbios. Ainda sinto vestgios de Seus lbios em meu rosto... Trinta e oito, trinta e nove, quarenta. Quarenta dinheiros, Tom. Queres cont-los? nosso Mestre. Por que no repetir as Suas palavras? Sim, mas Judas tem idias e sabe de onde tir-las. E se, na ausncia do Mestre, for oferecido a Judas roubar mais trs dinheiros no tornareis novamente a peg-lo pela garganta? No, agora j o compreendemos. Sim, mas os discpulos possuem pssima memria. Todos os mestres no tm sido enganados pelos seus discpulos? Quando o Mestre levanta o seu indicador, todos clamam: Sabemos a lio; mas, basta o Mestre cochilar um instante para que tudo fique esquecido. Hoje cedo me chamaste de ladro e esta noite me chamas de irmo! Como me chamars amanha? Judas ria. Levantou com uma das mos o cofre e prosseguiu: Quando o vento sopra furioso, esparge as imundcies. Os imbecis exclamam: Que vento! No , sem dvida, uma vassoura, porque o vento vai muito mais distante, meu caro Tom. Entendes? E riu novamente. Contenta-me v-lo to feliz disse Tom. Mas di-me que haja tanta maldade em tua alegria. natural que eu me sinta alegre. No vs que sou um homem extremamente til? Se no houvesse roubado trs dinheiros, Joo no teria oportunidade de sentir-se to cheio de entusiasmo. Sou um prego onde Joo firma a sua virtude e Tom a sua inteligncia ambas rodas pela ferrugem para arejar uma e outra! Creio ser melhor que eu me v. Tudo brincadeira, meu caro Tom. Queria somente saber se eram reais os teus desejos de beijar Judas, este vil ladro que furtou trs dinheiros para d-los a uma mendiga. Como? A uma mendiga? Falaste a Jesus? Meu amigo, tens dvidas. Sim, a uma mendiga; mas se tu soubesses como estava a desgraada! Dois dias sem comer... Ests certo? Creio! Estive com ela esses dois dias e vi que nada comeu; s bebia vinho tinto, quando lhe davam, e caa em desfalecimento...

Tom levantou-se e, aps distanciar-se alguns passos, exclamou: Na realidade, acredito, Judas, que Satans o que te inspira!... E quando as trevas da noite desapareciam, ouviu-se um rudo de moedas, as quais ressoavam movidas pelas mos de Judas. Tinha-se a impresso de que aquela sonoridade se mesclava aos risos de Judas Iscariotes.

CAPTULO VIIINo dia seguinte, Tom reconheceu que se enganara; Judas mostrou-se sensvel, bondoso e srio. No tinha expresses, no se entregava a malignas faccias, no ofendia ningum, cumprindo os deveres de ecnomo sigilosamente e com zelo. Hbil e destro, como nunca, dava a impresso de no possuir duas pernas, mas uma dzia. Ia e vinha, com ligeireza, sem rudos, sem gritos, sem lamentos, sem aqueles esgares que lhe acompanhavam as atitudes. Quando Jesus iniciava uma prtica, Judas sentava-se num canto, cruzando as mos, mirando com olhos doces e limpos. Cessou com as calnias; passava horas seguidas sem despregar os lbios, de tal sorte que Mateus, to severo, julgou imprescindvel dirigir estas palavras de Salomo: "O insensato mostra ao vizinho seu desprezo, enquanto o homem judicioso cala, prudentemente. Todos se mostraram satisfeitos ao notar que Judas se transformara. Apenas Jesus o seguia com ar distante, como se se encontrasse afastado dele, mas sem demonstrar hostilidade. O prprio Joo, a quem Judas respeitava por ser ele o predileto do Senhor e tambm porque interviera no assunto das moedas furtadas, mostrava-lhe alguma indulgncia e, por vezes, dirigia-lhe a palavra. Certo dia, perguntou condescendente: Dize-me, Judas, qual a tua opinio: quem ser o primeiro, ao lado de Jesus, no reino dos Cus, Pedro ou eu? Judas refletiu um instante e logo respondeu: Creio que sers tu. Pedro imagina que seja ele disse Joo, sorrindo. No ser Pedro, porque, ao ouvir-lhe gritar, os anjos fugiro. Ouve como berra! Claro que far uma polmica sobre quem h de ser aquele que ocupar o primeiro lugar, porque tambm ele assegura que ama a Jesus; ele j muito velho, tu s jovem; ele, rude e pesado, e tu ligeiro. Por isso, tu voars mais alto e entrars primeiro com Cristo no Cu. No verdade? Sim, sim. Jamais abandonarei Jesus. Naquele mesmo dia, Pedro formulou a mesma pergunta a Judas; mas, receoso de que algum lhe ouvisse a voz, levou-o a um lugar afastado, atrs da casa. Que pensas, Judas? perguntou-lhe com ansiedade. Tu s inteligente; o prprio Mestre confia em ti. Dize-me a verdade. Sers o primeiro, no duvido respondeu-lhe Judas sem vacilar. Pedro, satisfeito, exclamou: Bem eu dizia!... Mas tens por obrigao fazer tudo o que estiver ao teu alcance para merecer o lugar. J o sei. Ningum h de te lograr, j que tu ests ali instalado. Porque tu no abandonars Jesus, no verdade? No toa que Ele te apelidou de Pedro, isto , pedra! O iniciado ps a mo sobre o ombro de Judas com ardor: Judas, digo-te que s o mais inteligente de todos ns! Mas, por que te mostras to sarcstico e to mau? Se quiseres, poders chegar a ser o discpulo predileto de Cristo, assim como Joo. Mas a ti no cederei o meu lugar ao lado de Jesus, nem aqui na Terra ou

no Cu. Ouviste? E Pedro levantou o brao em atitude de ameaa. Judas procurava agradar a uns e outros; sem dvida, a ningum confiava seus secretos pensamentos. Mantinha-se sempre afastado dos demais, discreto e reservado, buscando sempre palavras que agradassem a todos. Dizia a Tom: Os covardes confiam em todo o mundo, mas o judicioso olha bem por onde caminha. A Mateus, que gostava de comer muito e manifestava certa vergonha por isto, dizia-lhe: O justo come segundo o corpo exige, enquanto o mau jamais se sente saciado. Como raras vezes pronunciava frases carinhosas, estas tinham inestimvel valor. Calavam-se, ouviam atentamente e refletiam. Contudo, quando meditava, tinha um ar estrambtico e antiptico, que inspirava averso e medo ao mesmo tempo. Se movia o olho so e sagaz parecia sensvel e bondoso; mas, enquanto seu olhar se imobilizava e a pele da fronte se contraa, formando sulcos extravagantes, adivinhava-se facilmente que, naquele crebro, se agitavam pensamentos turvos e se sentia certo mal-estar ao contempl-lo. Aqueles misteriosos pensamentos no podiam formular-se e rodeavam de enigmtico silncio a figura de Judas; preferia- se, a esta atitude, frases, gestos e at mentiras, porque a mentira em linguagem humana se assemelha verdade e luz em comparao com aquele mutismo profundo, surdo e sem eco. Sumiste em tuas reflexes gritava-lhe, s vezes, Pedro; e a voz clara e sonora que saa de sua boca desgarrava as nvoas taciturnas dos pensamentos de Judas, lanando-os no se sabe em que rinces sombrios. Em que ests pensando? Em muitas coisas! respondia Judas, num sorriso. O seu silncio melanclico causava malfico efeito aos companheiros; fugia cada vez mais do crculo dos iniciados; procurava dar longos passeios solitrios ou sentava-se na sotia da casa, sem rudo. Constantemente, Tom chocava-se com um objeto grisalho; era Judas. Somente uma vez, demonstrou ser o que era antes, ao discutir sobre quem iria ter o primeiro lugar no reino dos Cus. Falavam, na presena do Mestre, Joo e Pedro, defendendo cada um os seus direitos, enumerando seus predicados, ponderando a grandeza de seu amor a Jesus. Por fim, olvidados do Senhor, chegaram at a injuriar-se. Pedro arroxeara de clera e sua voz troava; Joo, plido e mais dono de si, tinha as mos trmulas e as palavras acres e mordazes. A discusso tomava propores ameaadoras e o Mestre franzia as sobrancelhas, quando Pedro lanou um olhar penetrante a Judas, pondo-se a rir, calmo e satisfeito. Joo olhou tambm na mesma direo e sorriu por sua vez; lembravam-se ambos do que Judas havia dito de antemo da vitria e apressaram-se em tom-lo por juiz: Dize, Judas! exclamou Pedro! Dize quem de ns ser o primeiro ao lado de Jesus! Judas no respondeu. Respirava com fadiga e os seus olhos interrogaram apaixonadamente os olhos azuis e serenos de Jesus. Sim acrescentou Joo em tom de complacncia. Dize quem ser o primeiro ao lado de Jesus. Sem tirar o olhar dos olhos do Salvador, Judas levantou-se lentamente e respondeu com uma voz surda e grave: Eu! Jesus baixou as plpebras e Judas, batendo com o dedo ossudo no peito, repetiu sereno e triunfante:

Eu! Eu serei o primeiro ao lado de Jesus! E saiu. Os apstolos silenciaram diante de tamanha insolncia. Rpido, como se uma idia lhe assaltasse a memria esquecida, Pedro inclinou-se ao ouvido de Tom, dizendo: Ah, isso o que eu pensava... Entendes?

CAPTULO IXNaquele momento, Judas deu o primeiro passo decisivo para a traio. s escondidas, sem ser visto por ningum, encaminhou-se casa de Ans, o sumo sacerdote. Receberam-no friamente; entretanto, sem se perturbar por essa acolhida, pediu uma audincia que lhe foi dada. S e na presena do sumo sacerdote, que era um ancio seco a observ-lo com desdm, narrou que ele, Judas, era um piedoso israelita que se tornara discpulo do Nazareno, com o nico objetivo de confundir o impostor e p-lo nas mos das autoridades. Quem esse Nazareno? perguntou Ans, desdenhoso, como se ouvisse pela primeira vez aquele nome. Judas fingiu acreditar na suposta ignorncia do sacerdote e, com vrios pormenores, descreveu as predicaes do Mestre e seus milagres. O dio que o Nazareno nutria contra os fariseus e o templo, as suas constantes violaes da lei e, concluindo, as intenes que abrigava Jesus: arrancar o poder dos sacerdotes e criar um novo reino. Judas soube de tal modo mesclar com destreza a verdade com a mentira, que Ans comeou a consider-lo com maior ateno e lhe disse em tom indolente: H muitos impostores e insensatos na Judia! No como Ele! um homem perigoso! afirmou Judas com veemncia. Viola a lei! prefervel que um nico homem perea a sucumbir todo um povo! Ans acrescentou com um gesto vago: Parece ter muitos discpulos... Muitos. E O amam? Sim; pelo menos afirmam todos que O amam mais que a si mesmos. Ento, se intentarmos apoderar-nos dele, defend-Lo-o? No provocariam uma revolta? Judas riu maliciosamente. Oh, no! So uns medrosos que correm, quando algum se abaixa para apanhar uma pedra. Verdade? perguntou, friamente, o sumo sacerdote. So to vis assim? No que sejam vis; ao contrrio, mas os bons so os que correm para escapar dos maus. So homens de boa ndole, e por isso fugiro e no voltaro at que hajam enterrado Jesus, Eles prprios O enterraro; tu tens s que decretar a Sua morte. Mas O amam; tu mesmo o disseste. Os discpulos amam sempre o seu Mestre, mas amaro mais o Mestre morto do que o Mestre vivo. Se vivo, pode perguntar-lhes a lio e castig-los se no a sabem; enquanto que, morto, eles mesmos se elegem novos Mestres e castigam os demais. Ans cravou-lhe o olhar penetrante e os lbios secos se contraram num sorriso malvolo: Pelo que vejo te encontras ofendido. Nada se pode ocultar de ti, sbio pontfice! Ls no corao de Judas! Sim, ofenderam o pobre Judas; acusaram-no de haver roubado trs dinheiros. Como se Judas no fosse o homem mais honrado de Israel! Durante longo perodo falou de Jesus e de seus iniciados e de sua nefasta influncia

sobre o povo. Entretanto, Ans, prudente e astuto, nada prometia. H muito tempo vigiava o Nazareno e os apstolos e a sorte de Jesus j estava selada nos concilibulos secretos celebrados na casa de Ans com seus partidrios. O grande sacerdote no depositava confiana em Judas, a quem conhecia pela fama de embusteiro e depravado. Por outro lado, no compartilhava da mesma f na covardia dos iniciados e receava que o povo se sublevasse em defesa de Jesus. Ans estava seguro do seu poder, mas queria evitar qualquer derramamento de sangue. Sabia que os habitantes de Jerusalm eram indceis, sujeitos a cleras; temia, por fim, a interveno brutal das autoridades romanas. As perseguies no serviam seno para aumentar o nmero de adeptos da nova seita e o sangue derramado para regar e fertilizar o terreno da nova dou- trina. Quem sabe se com o tempo acabaria por afogar, de um s golpe, o prprio sumo sacerdote e os seus fiis? Quando Judas compareceu casa de Ans pela segunda vez, este titubeou e optou por no receb-lo. Judas insistiu e vo1tou pela terceira, pela quarta vez, constante e tenaz, como o vento que dia e noite investe contra a porta cerrada e sopra pelas frestas. Finalmente, ao ser recebido pelo sumo sacerdote, Judas disse-lhe: Percebo que tens medo de algo, sbio pontfice! Sou muito poderoso para temer algo! replicou Ans com altivez. Judas curvou as espduas e estendeu as mos. Vejamos. Que queres? Quero livrar-te do Nazareno. No necessitamos disso. Judas inclinou-se outra vez a olhar fixamente e com submisso para o orgulhoso interlocutor, que lhe ordenou severo: Vai-te. Mas voltarei, nobre senhor... No te deixaro entrar. Vai-te! Inmeras vezes, o Iscariotes voltou a bater a porta e o velho sacerdote consentiu novamente que entrasse. J em sua presena, Ans examinava-o atentamente, em silncio, num olhar irnico; dir-se-ia que contava os cabelos da cabea disforme do traidor, que permanecia calado como se tambm contasse os pelos da barba grisalha e rara do sumo sacerdote. Ainda tu? grunhiu num tom irritado e desdenhoso Ans. Quero entregar-te o Nazareno. Os dois calaram-se e examinaram-se reciprocamente, minuciosamente. Enquanto Judas se mostrava tranqilo, o sacerdote parecia agitado, dominado por uma clera calada, seca e fria, como a glida manh de inverno. E quanto queres pelo teu Jesus? Quanto me darias? Todos so uns bisbilhoteiros! replicou Ans num tom insultante, recalcando as suas palavras com um prazer cruel. Trinta moedas de prata. Eis o que podemos dar. E riu ao ver Judas agitar-se, mover-se com rapidez em seu assento, como se tivesse uma dezena de pernas. Por Jesus! Trinta moedas de prata! exclamou estupefato o traidor. Por Jesus de Nazar? Queres comprar Jesus de Nazar por trinta moedas de prata? E acreditas seriamente que se pode vender Jesus por trinta moedas de prata? O traidor voltou-se vivamente, pondo-se a rir, estendendo os braos at a superfcie branca e lisa da parede.

Sim, trinta moedas repetiu secamente Ans. Trinta dinheiros por Jesus de Nazar!... Com a mesma alegria secreta, acrescentou demonstrando indiferena: Se no te bastam, vai-te. Encontraremos outro que nos vender por mais barato! E como trapeiros, que em meio de uma praa cheia de lodo disputam um trapo velho e gritando se insultam, assim os dois se puseram a discutir com aspereza, brutais. Judas, alucinado pelo entusiasmo, corria, dava voltas, chiava, enumerava, com os dedos, os mritos dAquele a quem atraioava. E Sua bondade? E Seu dom de curar os enfermos? Isto no nada? Responde-me com franqueza! No vale nada? O sumo sacerdote queria responder, mas Judas no o deixava pronunciar um monosslabo sequer. Ans irritava-se, as faces tomavam cores. E Sua juventude? E Sua beleza7 Porque belo como o narciso de Saron, como o lriodo-vale. Tudo isso no vale nada? Dize. Dize... Imaginas, talvez, que seja velho e no sirva mais para nada, que Judas te vende um galo velho! Vejamos! Sim, sim... A voz de Ans era arrebatada pelos gritos de Judas como uma pena ao vento. Trinta dinheiros! Mas, isso nem sequer da um bolo por uma gota de sangue! Nem sequer chega a meio bolo por lgrima! Nem a um quarto de bolo por gemido! E os gritos que lanar? E Sua agonia? E quando o corao cessar de bater e os olhos se cerrarem. No tm valor? Judas enfurecido, avanou para o sumo sacerdote que parecia envolto num torvelinho de gestos e de frases. Sim, trinta dinheiros ao todo! concluiu Ans. Sem dvida, obtns um polpudo lucro! Ah, que queres explorar o pobre Judas e roubar o po de seus filhos. No e no! No consentirei! Irei praa pblica e gritarei com todas as minhas foras: Socorro! Ans quer roubar o pobre Judas! Socorro! Vai-te! Vai-te!... Mas logo Judas se deixou abater e os braos caram desanimados. Bem! No necessrio incomodar-se com o pobre Judas, que quer somente o po para os filhos. Tu tambm tens filhos... Vai-te! Outro nos servir. Que isso? Eu no disse que no cederia! Sei que outro poder trazer-te Jesus por quinze dinheiros, por dois bolos, por um bolo... E inclinava-se cada vez mais obsequioso e vil, acrescentando que, finalmente, aceitava a suma proposta. Com mo trmula e seca, Ans contou e deu-lhe os trinta dinheiros. Imediatamente, afastou-se sem dizer palavra, enquanto Judas inspecionava as moedas, uma aps outra, mordiscando-as para ver se eram boas. De vez em quando o sacerdote, de longe, lanavalhe um olhar carregado de ira. Fabricam-se agora moedas falsas! observou Judas. Esses dinheiros foram doados ao templo por mos piedosas replicou Ans, virandose e oferecendo aos olhos de Judas a sua nuca calva e rosada. Sabem, porventura, as almas piedosas distinguir a moeda falsa da boa? S os velhacos entendem disso! Judas no levou para casa o dinheiro, que acabava de receber; saiu da cidade e escondeu-o sob uma pedra. Feito isso, voltou com um passo lento tal como um bicho que

torna aps combate mortal, arrastando-se penosamente at a cova obscura. Mas Judas no tinha cova; tinha uma casa e naquela casa vivia tambm Jesus, Jesus cansado, enfraquecido, extenuado pela luta incessante contra os fariseus, cujas frontes brancas e lisas de homens instrudos O cercavam no templo como muralhas. Jesus estava sentado, o rosto encostado parede, e parecia dormir profundamente. Pela janela aberta, chegavam os rumores confusos da cidade. Pedro, martelando na construo de uma mesa, cantava uma cano da Galilia. Jesus nada ouvia, continuando adormecido num sono repousante. Era Ele que haviam comprado por trinta dinheiros! Judas avanou sem rudo, com a terna solicitude de uma me que teme despertar o filho enfermo; e com o susto de uma fera sada da luta a quem uma flor branca e delicada toca de repente, roou os sedosos cabelos do Mestre, retirando depressa a mo. Depois, apalpou-os de novo e saiu de mansinho, nas pontas dos ps. Senhor! murmurou. Senhor! Encaminhou-se privada, onde desatou a chorar longamente, arranhando o peito com as mos. Acariciava cabelos imaginrios e murmurava palavras ternas e suaves. Depois, calou-se e ficou sufocado por dolorosa meditao. Com a cabea pendente, tinha o aspecto de um desgraado que teme ouvir os passos do inimigo. Permaneceu assim durante longo tempo, indiferente ao prprio destino.

CAPTULO XNos derradeiros momentos de sua existncia, Jesus recebeu de Judas constantes provas de afeto delicado, de doce ternura, de amor silencioso. Adivinhava-lhe os mais ntimos desejos e tal como uma jovem que ama pela primeira vez, tmida e pudica, penetrava nos mais profundos sentimentos do Mestre, em seus acessos de tristeza, desfalecimentos e fadiga. Jesus deitava-se e mergulhava num sono suave; seu olhar podia errar por toda parte; s encontrava regalo para seus olhos. Judas no sentia amizade por Maria Madalena, nem pelas mulheres, que rodeavam Jesus. Constantemente, procurava ofend-las, perseguindoas com brincadeiras grosseiras e impertinentes. Agora, tornara-se amigo delicado, divertido e fiel. Cheio de interesse, falava com elas das comovedoras atitudes do Mestre, fazendolhes incessantemente mil perguntas. Com aspecto de mistrio, dava-lhes dinheiro para a compra de mbar e mirra de elevado preo; e perfumes de que Jesus gostava e com os quais Lhe ungiam os ps. Comprava vinho carssimo, que se destinava ao Mestre e, quando via Pedro beb-lo com a indiferena de um homem a quem o que importa a quantidade, encolerizava-se. Em Jerusalm, pedregosa, onde quase no existiam plantas e flores, Judas buscava, no se sabe como, folhinhas primaveris, finas gramneas, que mandava s mos do Mestre atravs das mulheres. Pela primeira vez em sua vida, tomava nos braos as criancinhas, que se encontravam no ptio ou nas ruas, e as beijava, embora contra a vontade, para que no chorassem, levando-as para Jesus. Sucedia, por vezes, que um menino, de nariz sujo e cabelos arrepiados, subia ao colo do Mestre pensativo, pedindo-Lhe beijos e carcias. Ento, enquanto os dois permaneciam juntos, Judas, um pouco afastado, passeava com ares de um carcereiro severo que, na primavera, houvesse deixado entrar uma borboleta na cela de um preso e fingia grunhir contra a intrusa. noite, quando com as sombras vinha a inquietude de montar guarda sob as janelas, Judas fazia recair a conversao sobre a Galilia, com seus rios aprazveis e seus prados esverdeados, os quais no conhecia, mas eram gratos ao corao de Jesus. E revivia o passado, fazendo despertar em Pedro recordaes adormecidas, conduzindo-o a evocar os quadros familiares e pitorescos da doce existncia na Galilia. Jesus ouvia as palavras alegres, impetuosas e sonoras de Pedro com apaixonada ateno, entreabrindo a boca, como um menino. Seus olhos sorriam, obrigando o narrador a parar por um instante. Joo falava melhor do que Pedro; no dizia nada divertido, nem inesperado; nele, tudo era sugestivo e extraordinrio e to maravilhoso, que assomavam lagrimas aos olhos de Jesus. Judas acotovelava Maria Madalena, murmurando: Como sabe falar! Ouves? Sim. Ouo-o. Escuta melhor! As mulheres no sabem ouvir... Depois, todos iam dormir. Jesus beijava Joo com terno agradecimento e pousava a mo no ombro de Pedro. Judas assistia a tais cenas sem sentir cimes; estava cheio de um indulgente desdm. Aquelas histrias, aqueles beijos e aqueles suspiros no tinham nada de importante em comparao com o que sabia ele, Judas Iscariotes, o horrvel Judas de pelos ruivos, crescidos como uma erva daninha entre as pedras.

CAPTULO XISe, por um lado, Judas entregava Jesus, por outro tentava fazer malograr os seus prprios planos. No intentou, como as mulheres, persuadir o Mestre a empreender a sua ltima e perigosa peregrinao a Jerusalm, porque os parentes de Jesus e os discpulos julgavam indispensvel a conquista da capital para o completo triunfo da causa. Mas insistia tenazmente sobre os perigos que se deparavam ao Mestre, pintava de cores vivas o dio dos fariseus pelo Senhor, dio que lhes sugeria, provavelmente, a idia de mat-lo em pblico ou secretamente. Todos os dias e a todas as horas falava dEle aos discpulos e, ameaando com o dedo, em tom spero, dizia: Temos de velar por Jesus! Temos de velar por Jesus! Quando chegar a hora, teremos de defend-lo! Os discpulos, confiando demasiadamente no poder maravilhoso do Mestre, ou por terem absoluta f no triunfo final da causa, ou simplesmente por inocncia, certo que ouviam as advertncias de Judas com um sorriso incrdulo e aqueles conselhos incessantes acabaram por provocar murmrios de desagrado entre eles. Quando Judas surgiu, trazendo duas espadas, que havia encontrado no se sabe onde, s Pedro se desfez em pilhria. Os demais exclamaram, desgostosos: No somos guerreiros para carregar armas! Jesus no chefe de nenhum exrcito, mas um profeta! E se tentarem mat-Lo? No se atrevero, quando virem que o povo O segue. E se se atreverem? Que poder ocorrer? Joo replicou num tom de desdm: No me parece que s tu amas o Mestre! Judas, sem se mostrar ofendido, perguntou com viveza, teimoso e desconfiado: Mas vos O amais, no verdade? E a cada adepto que chegava para ver Jesus, fazia-lhe obstinada e idntica pergunta: Tu O amas? Tu O adoras de todo corao? E todos afirmavam com veemncia seu amor. Judas conversava constantemente com Tom e, levantando seu dedo seco e ossudo, de unhas enegrecidas e longas, advertia-o misteriosamente: Tem cuidado, Tom. Vo chegar as horas dolorosas! Ests disposto? Por que no tomaste a espada que te trouxe? O apstolo dava explicaes judiciosas: No estamos habituados a manejar armas. Se nos batssemos com os soldados romanos, seramos derrotados: alm disso, no nos trouxeste mais do que duas espadas. Que se pode fazer com duas espadas? Poderamos encontrar outras. Poderamos tirar dos soldados respondeu Judas, colrico. E o grave Tom sorriu por sua vez: Ah! Judas! As que trouxeste naturalmente foram roubadas dos soldados romanos. Sim, roubei-as. Poderia ter roubado outras; mas algum gritou e tive de correr. Tom refletiu e exclamou num acento triste:

Ests em mau caminho, Judas! Por que roubas? Porque no existe teu, nem meu... Sim. Mas se amanh perguntarem aos soldados onde esto suas armas, eles sero punidos. Mais adiante, depois da morte de Jesus, os discpulos recordaram as palavras de Judas e acreditaram que abrigava o plano de atir-los ao combate desigual para que perecessem. E maldisseram o nome de Judas Iscariotes, o traidor. Aps cada uma dessas conversaes, Judas, irritado, ia lamentar-se com as mulheres, que o ouviam prazerosamente. O que havia de terno e feminino no amor de Judas por Jesus, fazia-o compreensvel e mesmo simptico aos olhos delas. Iscariotes permanecia ao lado de todas, desdenhoso e reservado. No so homens! gemia com amargura ao falar dos discpulos e o olho cego e imvel pousava confiante em Maria Madalena. No so homens! No possuem sangue nas veias, nem sequer o valor de um bolo! Ests sempre falando mal! disse Maria Madalena. Eu? replicou Judas com estranheza. Quando, j falei mal de algum? E ainda que haja falado... E que no meream. Oh! Maria, Maria, lastimo que tu no sejas um homem e no possas empunhar a espada. Pesa muito, seria impossvel levant-la objetou Maria, sorrindo. Pois levant-la-s j que os homens so to covardes... Dize. Entregaste a Jesus o lrio que encontrei na montanha? Levantei-me cedo para apanh-lo e hoje o sol queimava muito. Ficou satisfeito? Sorriu? Sim, ficou satisfeito. Disse que aquele lrio lhe recordava os perfumes de sua Galilia. Mas no disseste que era Judas, Judas Iscariotes quem o havia trazido! Suplicaste-me que no revelasse quem mandou. Fizeste bem. No, no era para diz-lo suspirou Judas. Contudo, poderias descuidar-te e diz-lo; as mulheres, s vezes, so muito faladoras... verdade que nada transpirou? Bem, Maria, s uma boa mulher. J sabes que eu tambm tenho uma mulher! Gostaria de v-la agora; qui ela no seja mulher m. No sei. Sempre dizia que eu era ruim e falso. Por isso, deixei-a. Mas, talvez, ela seja uma boa criatura, Que dizes? Que posso dizer? Jamais a vi. Bem, bem, Maria... Dize-me: trinta dinheiros muito pouco? No uma grande soma. Assim o creio. Por quanto te vendias, quando eras rameira? Cinco dinheiros? Dez? Maria Madalena enrubesceu, baixou a cabea e seu formoso cabelo cobriu-lhe o rosto, deixando descoberto apenas o queixo branco, graciosamente oval. Judas, s perverso! Eu quero esquecer o passado e tu o recordas constantemente! No, Maria Madalena, no deves esquecer o que foste. Para qu? Que os outros esqueam o que foste est bem, mas tu deves record-lo sempre. Aos outros, incumbe esquecer, a ti no. Para qu? Fui uma pecadora! Aquele que no cometeu o crime quem deve ter medo. Mas o que j o perpetrou, que tem a temer? o morto que receia a morte ou o vivo? Os mortos mofam dos vivos e de seu terror. Assim passavam amigavelmente horas seguidas. Judas, seco e repugnante, a cabea disforme, o rosto horrvel, e Maria Madalena, jovem. tmida, suave e terna, enfeitiada pela vida, como por um belo sonho, por um conto de fadas...

CAPTULO XIIO tempo transcorria impassvel. Os trinta dinheiros estavam escondidos sob uma pedra e a hora da traio aproximava-se, implacvel. Jesus j havia entrado em Jerusalm, montado num jumento e o povo o recebeu com gritos de alegria e de jbilo. Hosana! Hosana! Bem-vindo o que chega em nome do Senhor! O entusiasmo e o amor foram to elevados que Jesus chorou e os discpulos diziam, orgulhosos: No filho de Deus aquele que no estiver conosco! E, exaltados, clamavam: Hosana! Hosana! Bem-vindo o que chega em nome do Senhor!. Naquela noite separaram-se muito tarde; cada qual comentava de modo alegre e solene a acolhida que Jerusalm dispensara ao Mestre. Pedro agitava-se como um louco: parecia possudo pelo demnio do contentamento e do orgulho, e seus rugidos de leo abafavam as vozes alheias; ria e seu riso caa sobre as cabeas dos demais, como grossos pingos de chuva. Abraava Joo, Tiago e mesmo Judas; confessava com franqueza o seu receio por Jesus, mas agora j nada temia, porque havia visto o amor que o povo professava pelo Mestre. Judas estava estupefato. Seu olho vivo revirava sem cessar; ele ora ouvia e ora mergulhava em profundas reflexes. Chamou Tom de lado e, cravando na parede o olhar agudo, perguntou-lhe com voz rouca de perplexidade, de medo e de vaga esperana: Ouve, Tom, e se Ele tivesse razo? E se na realidade Ele tivesse sob seus ps uma rocha firme e eu areia, somente areia sob os meus? Que sucederia? Que queres dizer com isso? Pergunto-lhe, que seria ento de Judas Iscariotes? E para que a verdade triunfasse eu seria obrigado a me afogar. Quem enganou Judas? Quem enganou Judas? Quem? No estou entendendo nada, Judas. to misterioso o que me dizes! Quem engana Judas? Quem tem razo? E, Judas, inclinando a cabea, repetiu como se fosse um eco: Quem engana Judas? Quem tem razo? No dia seguinte, as mesmas perguntas: Quem engana Judas? Quem tem razo? E, ao pronunciar isso, levantava a mo, dobrando para trs o dedo polegar, segundo seu costume. Tom pesquisava o olhar de Judas e lia nele as mesmas perguntas enigmticas. Mas o seu assombro redobrou, quando, de repente, ouviu em plena noite a voz forte de Judas, que dizia: Ento, Judas Iscariotes j no existir! Tampouco Jesus existir! Ficara s... Tom, estpido Tom! Nunca tiveste o desejo de tomar a terra, levant-la e depois atir-la? Quanto absurdo ests dizendo! Isso impossvel! No impossvel afirmou o outro, convictamente. E no dia menos esperado, quando tu, nscio Tom, estiveres dormindo, ns a levantaremos. No tenhas medo, Tom. uma pilhria. Dorme. divertido v-lo dormir; o nariz funga como uma flauta galilia. Mas os crentes, dispersos pelo corao de Jerusalm, haviam-se ocultado em suas casas,

por trs das paredes e os rostos dos transeuntes apagavam-se. Vagos rumores de incerteza surgiam, flutuavam, insinuando-se. Pedro, entristecido, exercitava- se no manejo da espada, que Judas lhe oferecera. E o rosto do Mestre tomava um aspecto cada vez mais triste, cada vez mais severo. O tempo voava e o dia da traio surgia, implacvel. A hora da ltima ceia soou; a atmosfera estava carregada de tristeza e de vago terror. J se ouviam as palavras indecisas que Jesus pronunciara sobre aquele que ia atraio-Lo. Sabes quem O trair? perguntou Tom, dirigindo- se a Judas, com seus olhos francos e claros, quase transparentes. Claro que sei respondeu Judas, resoluto e rude. Tu, Tom. Sers tu aquele que O entregar. Mas nem Ele prprio cr no que diz. Todavia, tempo. Por que no chama Jesus para o Seu lado o forte e formoso Judas? Faltavam, apenas, algumas horas, que corriam cleres e implacveis. A calma descia sobre a Terra; longas sombras estendiam-se pelo cho, anunciando a noite iminente, na qual devia desenrolar-se a grande tragdia. De repente, ouviu-se uma voz triste e rude: Sabes aonde vou, Senhor? Vou entregar-Te nas mos de Teus inimigos! Um silncio profundo envolveu a paz do anoitecer e o mistrio das sombras fixas como lgrimas negras. No respondes, Senhor? Ordenas que v? Como resposta, fez-se um silncio ainda mais profundo. Permite que eu fique! Acaso no podes? Ou no Te atreves? Ou que no queres? E o silncio continuou, um silncio vasto e profundo como o olhar da eternidade. E, sem dvida, sabes que Te amo. Tu sabes tudo. Por que olhas Judas desse modo? Grande e o mistrio de Teus olhos; mas, o meu menos profundo? Dize-me para que fique. Por que silencias sempre, Senhor? Procurei-Te na angstia e na dor. Procurei-Te e acheiTe. Salva-me! Livra-me de mim mesmo! Tira-me este encargo, mais pesado do que uma montanha. No ouves como ruge o peito de Judas Iscariotes sob esse peso? E um derradeiro silncio foi feito, imenso, como o ltimo olhar da eternidade. Vou entregar-Te. A paz do anoitecer no se turvou com essa mancha, o vento no gemeu entre a folhagem, as fontes no soluaram, nem a terra fria gemeu, to dbil e atenuado era o rumor daqueles passos que se distanciavam. Desvaneceram-se e tudo silenciou. E o crepsculo pareceu sumir-se em profundo sono, tragado pelas sombras. Nisto, a terra suspirou com o rumor desolado das folhas agitadas; suspirou mais uma vez e imobilizou-se a espera da noite. Outras vozes soaram e entrechocaram-se; dir-se-ia que acabava de abrir-se um saco cheio de vozes e que estas, como pedras, caam sobre o solo, uma a uma, duas a duas, e por fim, aos montes. Eram os discpulos que falavam. E a voz poderosa de Pedro tragava as palavras dos outros, chocando-se contra as rvores, contra as paredes, para cair novamente na terra. Pedro jurava que nunca abandonaria o Mestre. Senhor dizia com angstia Senhor, estou disposto a ir priso contigo e at sofrer a pena de morte ao Teu lado. E a resposta implacvel chegou, surda como um eco debilitado dos passos, que se distanciavam. Em verdade te digo, Pedro, que antes do galo cantar esta noite Me negars trs vezes.

CAPTULO XIIIA lua surgia, quando Jesus resolveu ir ao Monte das Oliveiras onde passaria as suas ltimas noites. Como tardasse, sem que se soubesse por que, os discpulos, prontos, apressaram-no; ento, de repente, Ele lhes disse: Aquele que tem uma bolsa a tome, aquele que tem um saco o tome, tambm; aquele que no tem espada venda seu hbito e a compre... Porque eu vos digo, preciso que em Mim se cumpra a palavra que est escrita: Ele faz parte do nmero dos malfeitores! Os apstolos p