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LETRAMENTO E ESCOLARIZAÇÃO Por Raimundo Nonato S. Damasceno Júnior 1 1. LETRAMENTO O termo letramento ainda é recente no Brasil. Surgiu na década de 80 e uma das primeiras ocorrências foi no livro “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística” de Mary Kato. Traduzido da expressão em inglês litteracy – cuja origem etimológica é da palavra latina littera (letra) e quando adicionada do sufixo –cy, qual em linhas gerais denota condição ou estado, significa ter a capacidade de escrever. Em português, o sufixo –mento indica o resultado de uma ação, neste caso o de aprender a ler e escrever. Até pouco tempo, a palavra letramento não estava dicionarizada. De fato, são poucos os dicionários que a trazem. Segundo Houaiss Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa 2 , letramento é Substantivo masculino: 1. Diacronismo: antigo Representação da língua falada por meio de sinais; escrita 2. Rubrica: pedagogia m. q. alfabetização (‘processo’) 3. (déc. 1980) Rubrica: pedagogia Conjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes tipos de material escrito. (grifos meus) 1 Formado em Letras, Especialista em Leitura e Produção de Textos e professor do curso de Letras da Faculdade Evangélica de Brasília, atualmente, na disciplina de Língua Portuguesa IV – Introdução à Semântica. 2 Extraído de http://intra/houaiss/cgi-bin/houaissnetb.dll/frame

LETRAMENTO E ESCOLARIZAÇÃO

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LETRAMENTO E ESCOLARIZAÇÃOPor Raimundo Nonato S. Damasceno Júnior1

1. LETRAMENTO

O termo letramento ainda é recente no Brasil. Surgiu na década de 80 e uma das

primeiras ocorrências foi no livro “No mundo da escrita: uma perspectiva

psicolingüística” de Mary Kato. Traduzido da expressão em inglês litteracy – cuja

origem etimológica é da palavra latina littera (letra) e quando adicionada do sufixo –cy,

qual em linhas gerais denota condição ou estado, significa ter a capacidade de escrever.

Em português, o sufixo –mento indica o resultado de uma ação, neste caso o de

aprender a ler e escrever.

Até pouco tempo, a palavra letramento não estava dicionarizada. De fato, são

poucos os dicionários que a trazem. Segundo Houaiss Dicionário Eletrônico da Língua

Portuguesa2, letramento é

Substantivo masculino:1. Diacronismo: antigoRepresentação da língua falada por meio de sinais; escrita2. Rubrica: pedagogiam. q. alfabetização (‘processo’)3. (déc. 1980) Rubrica: pedagogiaConjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes tipos de material escrito. (grifos meus)

Kleiman (2008) atribuiu a não dicionarização do termo a própria complexidade

do seu conceito e pelos variados cursos que ali se enquadram. A autora cita duas

situações para ilustrar: se um pesquisador faz um trabalho sobre letramento examinando

a capacidade que um sujeito analfabeto versus alfabetizado têm de refletir sobre a

própria linguagem então para esse pesquisador “ser letrado significa ter desenvolvido e

usar uma capacidade metalingüística em relação à própria linguagem.” (p. 17). No

entanto, se um pesquisador examina como um indivíduo de determinado grupo social

versus outro grupo social discutem sobre um livro, com a finalidade de se caracterizar

essa prática, então para ele “o letramento significa uma prática discursiva de

determinado grupo, que está relacionada ao papel da escrita para tornar significativa

1 Formado em Letras, Especialista em Leitura e Produção de Textos e professor do curso de Letras da Faculdade Evangélica de Brasília, atualmente, na disciplina de Língua Portuguesa IV – Introdução à Semântica.2 Extraído de http://intra/houaiss/cgi-bin/houaissnetb.dll/frame

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essa interação oral, mas que não envolve, necessariamente, as atividades específicas de

ler e escrever” (p. 18)

A expressão letramento surgiu da necessidade de acompanhar mudanças que a

sociedade vem enfrentando no decorrer dos últimos anos, essas em que apenas saber ler

e escrever não é suficiente, é sim fazer o uso da leitura e escrita. Apareceu entre os

acadêmicos para distinguir o impacto social do aprendizado mecânico, escolarizado, da

escrita.

Soares (2010) define, ainda, letramento como “[...] estado ou condição de quem

não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a

escrita” (p. 47)

Contudo, letramento não está só diretamente ligada à leitura/escrita. Elementos

da oralidade também são levados em consideração. Determinadas estratégias orais

podem ser utilizadas no processo de letramento antes mesmo de o indivíduo se tornar

alfabetizado, ou até mesmo entre aqueles que não sejam alfabetizados.

Kleiman (2008) afirma que:

Uma criança que compreende quando o adulto lhe diz ‘Olha o que a fada madrinha trouxe hoje!’ está fazendo uma relação com o texto escrito, o conto de fadas. Assim, ela está participando de um evento de letramento [...]; também está aprendendo uma prática discursiva letrada, e portanto essa criança pode ser considerada letrada, mesmo que ainda não saiba ler e escrever. (p. 18)

A autora conclui ainda que outras práticas não escritas estão diretamente

ligadas às tecnologias gráficas, como o uso de aspas no ar, expressões como “deixa eu

fazer um parênteses”, etc. Tais ações indicam que quem as usam, mesmo não sendo

alfabetizadas, têm familiaridade com a escrita e, portanto, são letradas.

Fatos como esse reforçam a ideia de que o cidadão mesmo que não seja

alfabetizado, já que ele vive em uma sociedade na qual leitura e escrita têm presença

forte, é letrado. O processo de letramento vai além do processo de aquisição da leitura e

escrita e não se limita ao campo escolar.

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Contudo, a similaridade dos conceitos faz com que ambos sejam confundidos.

O próximo item consiste em esclarecer a diferença entre os dois.

1.2. ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: DIFERENÇAS

O processo de desenvolvimento da língua, seja oral ou escrito, é permanente,

uma vez que a aquisição do alfabeto ou o ensino do código da língua escrita não são

ações permanentes. A permanência está no uso e, consequentemente, no

desenvolvimento de tais ações.

Percebe-se a partir disso o quão aquém fica o conceito de alfabetização, tanto

etimologica quanto pedagogicamente: quanto à etimologia, é possível afirmar que

alfabetização, de acordo com Soares (2003), significa “(...) ‘levar à aquisição do

alfabeto’, ou seja, ensinar o código da língua escrita, ensinar as habilidades de ler e

escrever”. (p. 15). Quanto à pedagogia, a autora afirma que:

(...) atribuir um significado muito amplo ao processo de alfabetização seria negar-lhe a especificidade, com reflexos indesejáveis na caracterização de sua natureza, na configuração das habilidades básicas de leitura e escrita, na definição da competência em alfabetizar. (idem)

Atualmente, é possível afirmar que a alfabetização consiste em um processo de

representação de fonemas em grafemas e vice-versa, escrita e leitura, respectivamente.

Além disso, é também um processo de compreensão de significados.

Todavia, Soares também explica que:

A língua escrita não é uma mera representação da língua oral;

Os problemas da compreensão/expressão da língua escrita são diferentes

da oral.

Essencialmente, a alfabetização deve ter como foco tanto a estruturação do já

iniciado processo internalizado, isto é, a maioria dos alunos ao chegarem à escola já tem

a competência da fala, quanto à aliança das traduções (fonema/grafema) à

compreensão/expressão da língua.

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Existe, ainda, uma terceira vertente. É importante considerar, também, a

influência do aspecto social – as características socioculturais e tecnológicas – durante

toda a ação.

No Brasil, por exemplo, dados do Índice Nacional de Analfabetismo Funcional

(INAF) 2009 apresentam que 20% da população que recebe até um salário mínimo é

analfabeta enquanto que essa porcentagem é nula entre os que recebem mais de cinco

salários mínimos. Entre os plenamente alfabetizados a diferença é ainda maior: no

primeiro grupo apenas 8% são alfabetizados, enquanto que no segundo o valor chega a

54%.

É perceptível que desde os primórdios as autoridades em educação, sejam de

todas as esferas governamentais sejam acadêmicos, não conseguem traçar estratégias

eficazes para combater o alto nível de analfabetismo no país.

Diversas áreas da academia – como Psicologia, Linguística e Pedagogia –

estudam as causas e consequências das elevadas taxas. Entretanto, cada uma trata da

questão de forma individual, isolada. Além disso, conforme Soares (2003) as

explicações são buscadas no aluno, no contexto cultural, no professor e metodologia ou

no material didático.

Ora, sabe-se que o processo de alfabetização não é simples, tampouco singular.

São necessárias diversas partes do conhecimento para que tal complexidade alcance o

patamar mais próximo, senão o próprio patamar, do sucesso. Todavia, tal feito só será

atingido se todas essas áreas do saber trabalharem em conjunto, com a perspectiva de

alcançar um conceito único para alfabetização, “[...] resultante da colaboração de

diversas áreas de conhecimento, e de uma pluralidade de enfoques, exigida pela

natureza do fenômeno, que envolve atores [...] e seus contextos culturais, métodos,

material e meios” (SOARES, 2003, p. 14)

Por falar em contextos culturais, é válido ressaltar a importância da

sociolinguística nessa discussão, isto é, a relação entre o processo de alfabetização e o

uso social da língua.

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Em linhas anteriores, foi citado que aluno ao chegar à escola já tem certas

habilidades, como a fala, que contribuem para a alfabetização. Esse dialeto, o qual ela já

domina, pode estar, ou não, próximo da língua escrita convencional. Em outras

palavras, tal faculdade pode não seguir à norma padrão que está diretamente associada à

escrita. Daí a importância de levar em consideração, durante o processo, fatores sociais

e determinados materiais já que esses são condicionantes na aprendizagem da leitura e

da escrita, seja escolar ou não.

Com relação à alfabetização escolar é valido perguntar se a escola está

devidamente preparada para alfabetizar, no sentido de levar em consideração todo o

conhecimento prévio que o aluno traz consigo ao ingressar no meio acadêmico?

Culturalmente, a escola é uma instituição cercada por preconceitos. Ali se

entende que o processo de alfabetização é apenas o aprender a ler/escrever. Toda a ação

é como uma base mecânica para a aquisição de conhecimentos futuros, sem levar em

consideração todo conhecimento de mundo já conquistado pelo discente.

Além do preconceito linguístico, há também o preconceito social propriamente

dito: um aluno de uma camada social mais popular, ou até mesmo um que migrou da

zona rural para urbana, algumas vezes é ridicularizado pela sua forma de falar ou

pensar. Esse fator contribui negativamente para todo o processo.

Soluções políticas são fundamentais para que haja uma significativa melhora nos

resultados, entretanto sabe-se que há necessidade de reformular o processo de formação

dos professores. Soares (2003) afirma que:

A natureza complexa e multifacetada do processo de alfabetização e seus condicionantes sociais, culturais e políticos têm importantes repercussões no problema dos métodos de alfabetização, do material didático para a alfabetização, particularmente a cartilha, da definição de pré-requisitos e da preparação para a alfabetização, da formação do alfabetizador. (p.23)

Consoante à reformulação no processo de formação docente tem de existir a

mudança nas metodologias empregadas, as quais possivelmente só poderão acontecer

caso as estratégias não sejam traçadas de forma extremista e/ou polarizada. Além disso,

a formação do alfabetizador, no Brasil, não é feita de forma sistemática. A disciplina

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exige uma preparação específica, pois é importante que o formando tenha a

compreensão de diversas áreas como linguística, sociolinguística e psicolinguística e

todos os condicionantes citados anteriormente, já que assim ele poderá adquirir

competência para organizar/operacionalizar estratégias na “elaboração e uso adequados

de materiais didáticos, e, sobretudo, que o leve a assumir uma postura política diante

das implicações ideológicas do significado e do papel atribuído à alfabetização”

(SOARES, 2003, p. 25).

Com relação a tudo que fora expresso em linhas anteriores é possível perceber a

diferença entre letramento e alfabetização: em resumo, enquanto o segundo trabalha

com a aquisição da leitura e da escrita, o primeiro vai adiante, trabalhando com a

perspectiva do envolvimento de tais tecnologias nas práticas sociais, pois ambas têm

“[...]consequências sobre o indivíduo, e altera seu estado ou condição em aspectos

sociais, psíquicos, culturais, políticos, cognitivos, linguísticos e até mesmo econômicos

[...]” (SOARES, 2010, p. 18).

Ao contrário do senso comum, seus antagônicos analfabetismo e iletrado

também são distintos: de acordo com Soares (idem), analfabeto é o ser que fora privado

do alfabeto, ou ainda que lhe falta alfabeto, isto é que não sabe ler ou escrever. Já o

iletrado é aquele que, por mais que seja alfabetizado, não consegue fazer o uso social da

leitura e escrita.

Pode parecer contraditório, mas é fundamental ressaltar que o processo de

alfabetização, seja escolar ou não, é extremamente relevante para o processo de

letramento. Isso porque ambas se complementam – o indivíduo já alfabetizado tem mais

facilidade para por em prática o uso da leitura e escrita. Contudo, existe uma diferença

entre saber ler e escrever e estar na condição de quem saber ler e escrever.

Quem aprende tais tecnologias e faz uso delas torna-se diferente social e

culturalmente. Lembrando que isso não está diretamente ligado à mudança no nível

social e sim na forma de pensar e de agir. Existem também consequencias linguísticas –

a pessoa fala diferente, passa a ter interpretações diferentes do material que é lido e há a

interferência da língua escrita sobre a falada, causando mudanças no vocabulário.

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Transcrevendo aqui o que diversos teóricos afirmam, um indivíduo

alfabetizado não é de fato um letrado; o primeiro é aquele que sabe ler e escrever e o

segundo e o que vive em estado/condição de letramento, isto é, usa socialmente a

tecnologia da leitura e escrita.

Atualmente, é essa expressão “usar socialmente a escrita” que está

distanciando o letramento do processo de alfabetização. A forma mecânica que as

escolas utilizam para alfabetizar não desperta em seus alunos a necessidade de por em

prática o que lhes é ensinado durante o curso. Não basta somente ler e decodificar – é

importante aliar o que está sendo lido aos conhecimentos de mundo já adquiridos

mesmo antes de ingressar ao ensino regular. E é exatamente isso que o letramento

propõe.

A chave para isso está no que Soares (2010) chama de “alfabetizar letrando” –

fazer uma aliança entre alfabetização e letramento, e parar de pensar que os dois

processos estão em extremos distintos.

1.3 – OS MODELOS DE LETRAMENTO

Street (1984 apud Kleiman 1995) apresenta dois modelos de letramento:

autônomo e ideológico.

No primeiro supõe-se que existe apenas uma maneira de o letramento a ser

desenvolvido, associando-o com o progresso, a civilização e a mobilidade social. Essa é,

justamente, a ideia que prevalece na sociedade atual – a qual a primeira impressão soa

contraditória ao nome, autônomo.

A autonomia reside no fato de que o processo de letramento não está

diretamente ligado ao contexto de sua produção, afetando inclusive a maneira como

seria interpretado. A interpretação estaria determinada pela lógica do texto, sem levar

em consideração as “reformulações estratégicas que caracterizam a oralidade, pois, nela

[...] utilizam-se outros princípios que os regidos pela lógica, a racionalidade, ou

consistência interna, que acabam influenciando a forma da mensagem” (STREET, 1984

apud KLEIMAN, 1995, p. 22). A polarização da oralidade e da escrita é uma das

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características desse modelo – podendo inclusive levar em consideração os textos que

mais se aproximam da fala.

Para Street (idem):

Os anunciados conversacionais tendem a ser pouco planejados, informalmente empregados, e expressam conteúdos informais. Os textos escritos, por outro lado, tendem a ser cuidadosamente planejados, utilizados seletivamente, e expressam conjuntos formais de conhecimento. (apud Kleiman, 1995, p. 28)

Inúmeros são os estudos que se contrapõem as afirmações do autor: nem todos

os textos escritos são formais, há vários gêneros que comprovam isso – tais como cartas

e bilhetes – assim como nem todos os eventos de fala são informais – tal como a

apresentação de um seminário e até mesmo uma aula.

Alguns autores trabalham com a perspectiva do paralelismo ao invés da

dicotomia entre fala e escrita. Isto é, os eventos de fala e escrita são complementares. O

que vai definir a formalização é o contexto em que estão inseridos.

Tal paralelismo se aproxima do outro modelo de letramento que contrapõe o

autônomo, chamado de ideológico. Aqui, as práticas são determinadas por

características culturais e sociais do meio, mudam segundo o contexto.

Por consequência, ao contrário do proposto no modelo anterior, o ideológico

investiga os fatos de letramento ocorridos em esferas sociais, nas quais os

funcionamentos comunicativos unirão oralidade e escrita, e esses não sendo vistos de

maneira dicotômica.

Neste modelo, o autor afirma que

qualquer estudo etnográfico do letramento atestará, por implicação, sua significância para diferenciações que são feitas com base no poder, na autoridade, na classe social, a partir da interpretação desses conceitos pelo pesquisador. Assim, já que todos os enfoques sobre o letramento terão um viés desse tipo, faz mais sentido, do ponto de vista acadêmica, admitir e revelar, de início, o sistema ideológico utilizado, pois assim ele pode ser abertamente estudado, contestado e refinado. (1993 apud Kleiman, 1995, 38).

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Para ilustrar, Kleiman (1995) cita um estudo etnográfico realizado em pequenas

comunidades no Sul dos Estados Unidos. A intenção é demonstrar que o modelo

prevalente nas escolas, de orientação tradicionalmente letrada, é visto como uma

continuidade no desenvolvimento linguístico de crianças socializadas em grupos

majoritários, escolarizados – contudo, representa uma ruptura dentre aqueles que estão

fora desse grupo. Serão analisados, portanto, os eventos de letramento.

Na análise fora possível constatar que existe uma valorização acerca dos eventos

de letramento, quaisquer que fossem, já que “qualquer iniciativa da criança de começar

um evento de letramento faz com que uma interrupção de uma conversação entre os

adultos [...] sejam aceitáveis e bem-vindas”

Naturalmente desenvolvido, pode-se afirmar hoje que letramento não foca

somente a construção da escrita como fenômeno universal, sócio-culturalmente

indeterminado. O processo é determinado como um conjunto de práticas sociais, de

alguma forma e não necessariamente, ligadas à escrita, em contextos e para finalidades

específicos. As práticas escolares não devem ser diferentes, apesar da insistência no

prevalecimento do modelo autônomo. Conforme citado, tradicionalmente considera-se

que a aquisição da tecnologia da escrita está aliada e é responsabilidade da escola e do

processo que por ela se dá, a escolarização.

Não obstante a isso, surgiu o processo de letramento que na intenção de

aprimorar a alfabetização escolar acabou por tornar talvez simplório a ouvidos de

muitos o processo de aquisição mecânica da escrita. Soares3, na tentativa de apresentar

que ambos são essenciais para o processo de desenvolvimento linguístico do indivíduo

afirma que:

[...] a inserção no mundo da escrita se dá por meio da aquisição de uma tecnologia – a isso, chama-se alfabetização – e por meio do desenvolvimento de competências (habilidades, conhecimentos, atitudes) de uso efetivo dessa tecnologia em práticas sociais que envolvem a língua escrita – a isso, chama-se letramento

Daí a importância de se considerar um modelo ideológico de letramento. Ambos

os processos são distintos, porém, por mais contraditório que pareça, interligados. A

alfabetização não precede e tampouco é pré-requisito para o letramento. Soares (idem)

3 Extraído de http://www.construirnoticias.com.br/asp/imprimir.asp?id=1247. Disponível em 20/10/2011

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coloca ainda que “Analfabetos podem ter certo nível de letramento: não tendo adquirido

a tecnologia da escrita, utilizam-se de quem a tem para fazer uso da leitura e da escrita”.

Essa colocação fica clara quando no cotidiano é possível perceber pessoas

analfabetas, ou alfabetizadas funcionalmente, isto é, aquelas que mesmo sabendo

ler/escrever não têm a habilidade de interpretar/elaborar textos mais longos, que

conseguem lidar com práticas simples como pegar um ônibus, utilizar caixas

eletrônicos, reconhecer placas de sinalização – e até mesmo práticas mais específicas,

relacionadas ao seu trabalho.

1.4 – TEORIA SOCIAL: EVENTOS E PRÁTICAS

Evoluindo as discussões acerca da utilização da escrita como prática social,

Barton e Hamilton (1998) e Barton, Hamilton e Ivanic (2000) desenvolveram a Teoria

Social do Letramento, a qual defende que as práticas de leitura e escrita estão

diretamente relacionadas ao setor da sociedade em que se encontra e às relações de

poder ali impostas – contribuindo efetivamente para os processos de mudança social do

individuo.

Segundo Carvalho (2006) os autores adotam dois conceitos fundamentais para a

compreensão dessa teoria: práticas e eventos de letramento. No primeiro, são levados

em consideração elementos cotidianos que envolvem a escrita, moldados por regras que

regulam o seu uso; “[...] são maneiras culturais de utilização da linguagem escrita, que

envolvem valores, atitudes, sentimentos e relações sociais, ou seja, são processos sociais

nos quais as pessoas são envolvidas e partilham ideologias e identidades sociais” (p.

25).

Além disso, o conceito de prática “[...] oferece uma maneira de conceitualizar a

ligação entre as atividades de leitura e escrita e as estruturas sociais nas quais elas estão

envolvidas e as quais elas ajudam a moldar” (BARTON, HAMILTON e IVANIC, 2000,

apud CARVALHO, 2006, p. 25).

O segundo conceito, eventos de letramento, é muito próximo do primeiro. Neste,

considera-se todos os eventos que envolvem leitura e escrita, ou apenas a escrita de

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forma isolada. Nessas atividades o letramento tem uma função importante para sua

realização, estando diretamente ligados ao ambiente social em que estão inseridos.

Segundo Street (apud Carvalho 2006) a prática de letramento é uma seleção de

eventos de atividades escritas ligadas aos contextos sócio-culturais. As práticas, ainda,

“[...] estão situadas em diferentes domínios da vida social e são moldadas de acordo

com as instituições, as relações sociais e de poder, o tempo, o lugar, e podem sofrer

mudanças” (p. 27)

2. ESCOLARIZAÇÃO

Existe um vínculo perceptível entre alfabetização e escolarização, partindo do

pressuposto comum de que a aquisição de leitura e escrita é feita pelo processo escolar.

Contudo, não existe essa percepção na relação letramento e escolarização, já que a

sociedade, inclusive a escolar, não compreende – e às vezes até resistente à

compreensão – que o ambiente pedagógico é cercado por práticas sociais que são

importantes para o desenvolvimento linguístico do aluno.

Ocorre que nessa resistência, o discente é induzido a levar consigo o preconceito

que lá persiste em existir. Em contraponto, o ato, também, prejudica o processo de

alfabetização. Atualmente, é indiscutível que com o advento do Letramento Digital e

com o amplo acesso a rede de acesso à internet, a escrita não-padrão sofreu alterações.

O problema reside no fato de que a escola, por sua natureza tradicional, não

aceita tais variações, afastando o aluno cada vez mais do espaço pedagógico e

dificultando o entendimento das regras que cercam tanto o ensino de Língua Portuguesa

quanto o das outras ciências.

Talvez, a solução estaria no aproveitamento dos textos produzidos

informalmente pelo aluno e na apresentação do conceito de adaptação da fala e da

escrita, em que momento o formal e o informal devem ser usados.

Quando o assunto é Educação de Jovens e Adultos (EJA) o tema ainda é mais

delicado. Insistindo na escola como um espaço conservador, o aluno da EJA tende a

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seguir o mesmo caminho. Em sua visão, o processo de aquisição da leitura e escrita, a

alfabetização, precede às práticas de letramento – ou ainda, para ele tais práticas não

devem ser levadas em consideração no ambiente escolar.

No entanto, é nesse ponto que se pode reforçar a ideia de que, por mais clara que

seja, aos olhos de muitos não é óbvia a relação entre letramento e escolarização: no

modelo de alfabetização introduzido por Paulo Freire, o círculo de cultura, o processo

de aquisição da leitura e escrita acontece por intermédio de atividades que são ligadas

ao meio social em que os alunos estão inseridos.

Talvez a relação letramento/escolarização não seja tão óbvia porque não

proporciona um resultado visível. O letramento acontece a partir de práticas, sejam elas

escolares ou sociais, que demandam, direta4 ou indiretamente, o uso da escrita. À luz da

escolarização, a alfabetização pressupõe um resultado final, atestando ou não a

eficiência do método de aquisição da leitura/escrita. O letramento, mesmo que seja sob

o mesmo ponto de vista, é um processo permanente e, consequentemente, se torna

impossível determinar quando o iletrado se torna letrado.

O que deve ser ressaltado é que os dois processos, letramento e alfabetização,

não devem ser isolados, apesar de suas particularidades, essas que a partir do momento

que são juntadas passam a ser superadas.

As superações acontecem a partir do momento em que a escola permita “o

acesso externo”, no sentido de autorizar a inserção de aprendizados ora trazido pelos

alunos, como aqueles adquiridos em espaços não acadêmicos, isto é, na família, igreja,

grupos sociais, etc.

A escolarização das práticas de leitura e escrita faz com que as instâncias do

processo de letramento escolar sobrepõem as do processo de letramento social. Todavia,

a culpa não pode recair somente para a instituição: o prestígio sobre a norma culta

imposta pela sociedade no geral e ainda a própria resistência dos pais e alunos em

aceitar que a escola desenvolva um novo papel perante o ensino de Língua Portuguesa –

4 Entende-se aqui que as práticas diretas que envolvem a escrita são aquelas realizadas pelo próprio indivíduo, seja ele plenamente alfabetizado ou alfabetizado funcionalmente. As indiretas são aquelas realizadas por terceiros, no auxílio ao indivíduo analfabeto.

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seja durante o processo de alfabetização seja durante o processo de aquisição de normas

mais complexas – faz com haja esse atraso no processo de ensino/aprendizagem.

Soares5 afirma que:

[...] o conceito escolar de letramento contamina os eventos e as práticas no contexto extra-escolar, impondo comportamentos escolares de letramento e marginalizando outras variedades de letramento próprias desse contexto. [...] é como se o letramento social, passando pelo crivo da escolarização, retornasse à sociedade “corrompido” pelo letramento escolar. Ocorre aqui algo semelhante ao que ocorre com o vínculo entre alfabetização e escolarização, mencionado anteriormente, em que a alfabetização escolar se torna padrão e parâmetro para as modalidades de alfabetização não-escolar.

Na verdade, é possível concluir que tanto o letramento escolar quanto o social,

mesmo que se parta do pressuposto de que ambos ocorrem em espaços distintos, são

partes de um processo social que tem um alcance maior do que o da alfabetização e que

o contexto no qual o evento de letramento ocorre é que vai definir a prática a ser

utilizada.

5 Extraído de http://www.construirnoticias.com.br/asp/imprimir.asp?id=1247