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KENEDY, E. Léxico e computações lexicais. IN: FERRARI- NETO, J. & SILVA, C. Programa minimalista em foco: princípios e debates. Curitiba, CRV. 2012. pp. 41-69. [1] 3 Léxico e Computações Lexicais Eduardo Kenedy 1. Introdução As línguas humanas são um fenômeno que comporta necessariamente duas dimensões: uma dimensão individual e cognitiva e uma dimensão coletiva e sociocultural. Sempre que os fatos da linguagem acontecem, temos, de um lado, um indivíduo específico que possui a capacidade mental de produzir e compreender expressões linguísticas e, ao mesmo tempo temos, de outro lado, a sociedade em que esse indivíduo se insere, da qual ele herdou os fonemas, os morfemas, as palavras e os contextos comunicativos necessários para a interação verbal. À dimensão individual e cognitiva da linguagem referimo-nos com o conceito de Língua-I, em que “I” significa “interna” e “individual”, e à dimensão coletiva e sociocultural referimo-nos com o conceito de Língua-E, em que “E” quer dizer “externa” e “extensional”. A distinção entre Língua-I e Língua-E é essencial para a perfeita compreensão dos propósitos do presente livro, afinal, quando aqui fazemos referência aos fenômenos das línguas naturais, interessam-nos fundamentalmente aqueles que devem ter lugar na mente dos falantes e dos ouvintes, ou seja, interessa-nos a Língua-I, a dimensão cognitiva da linguagem, o conhecimento linguístico.

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Léxico e Computações Lexicais

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  • KENEDY, E. Lxico e computaes lexicais. IN: FERRARI-

    NETO, J. & SILVA, C. Programa minimalista em foco:

    princpios e debates. Curitiba, CRV. 2012. pp. 41-69.

    [1]

    3

    Lxico e Computaes Lexicais

    Eduardo Kenedy

    1. Introduo

    As lnguas humanas so um fenmeno que comporta

    necessariamente duas dimenses: uma dimenso individual e

    cognitiva e uma dimenso coletiva e sociocultural. Sempre que

    os fatos da linguagem acontecem, temos, de um lado, um

    indivduo especfico que possui a capacidade mental de produzir

    e compreender expresses lingusticas e, ao mesmo tempo

    temos, de outro lado, a sociedade em que esse indivduo se

    insere, da qual ele herdou os fonemas, os morfemas, as palavras

    e os contextos comunicativos necessrios para a interao

    verbal. dimenso individual e cognitiva da linguagem

    referimo-nos com o conceito de Lngua-I, em que I significa interna e individual, e dimenso coletiva e sociocultural referimo-nos com o conceito de Lngua-E, em que E quer dizer externa e extensional. A distino entre Lngua-I e Lngua-E essencial para a perfeita compreenso dos propsitos

    do presente livro, afinal, quando aqui fazemos referncia aos

    fenmenos das lnguas naturais, interessam-nos

    fundamentalmente aqueles que devem ter lugar na mente dos

    falantes e dos ouvintes, ou seja, interessa-nos a Lngua-I, a

    dimenso cognitiva da linguagem, o conhecimento lingustico.

  • KENEDY, E. Lxico e computaes lexicais. IN: FERRARI-

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    princpios e debates. Curitiba, CRV. 2012. pp. 41-69.

    [2]

    Na teoria lingustica contempornea (cf. Chomsky,

    1995 e posteriores), entende-se que o conhecimento de uma

    lngua, isto , o estado da Lngua-I na mente dos indivduos,

    constitui-se por dois componentes fundamentais: um lxico e

    um sistema computacional. A dinmica da interao entre esses

    dois componentes a seguinte. O lxico alimenta o sistema

    computacional com informaes que orientam a formao de

    estruturas sintticas e essas, uma vez constitudas, devem

    alimentar os sistemas de desempenho lingustico (a saber, os

    sistemas articulatrio-perceptual e conceitual-intencional) por

    intermdio dos subsistemas de interface a forma fontica (PF) e a forma lgica (LF), conforme se ilustra a seguir:

    Lxico

    Sistema Computacional

    PF LF

    Figura 1: arquitetura da linguagem:

    lxico, sistema computacional, PF, LF e os sistemas de interface.

    No presente captulo, analisaremos como se do, na

    Lngua-I, as relaes entre lxico e sistema computacional, isto

    , apresentaremos a maneira pela qual a teoria lingustica

    SISTEMA

    ARTICULATRIO-PERCEPTUAL

    SISTEMA

    CONCEITUAL-INTENCIONAL

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    contempornea vem compreendendo (i) a natureza das

    informaes que so representadas no lxico de uma lngua e (ii)

    como tais informaes tornam-se visveis, so acessadas e

    processadas pelo sistema computacional. Restringiremos nosso

    foco s informaes de natureza lexical das lnguas orais.

    Assim, reservaremos ao captulo 5 a abordagem acerca dos da

    dimenso funcional da interao entre lxico e sintaxe, bem

    como deixaremos de lado as especificidades das lnguas de

    sinais e os problemas particulares da linguagem escrita.

    O captulo est organizado em onze sees, para alm

    desta introduo. Nas sees dois, trs e quatro, abordaremos o

    conceito de trao lexical e sua tipologia, bem como descrevemos de que maneira traos so codificados no

    conhecimento lexical dos indivduos. Nas sees cinco, seis e

    sete, apresentaremos as noes de estrutura argumental.

    Caracterizaremos predicadores e argumentos, com ateno s distines entre argumentos foneticamente plenos vs. nulos e

    argumentos externos vs. internos. Observaes acerca da

    diferena conceitual e emprica entre argumentos e adjuntos

    sero feitas na seo oito, qual se seguem anlises sobre as

    restries semnticas e formais e sobre as interpretaes

    conceituais que predicadores impem a seus argumentos,

    apresentadas nas sees nove e dez. As diferentes tipologias dos

    predicadores verbais so objeto da seo onze, enquanto

    consideraes a respeito do papel do lxico na cognio humana

    e nos estudos da linguagem finalizam o captulo.

    2. Traos do Lxico

    Desde, pelo menos, as lies de Saussure no incio do

    sculo XX, o lxico de uma lngua vem sendo interpretado pelos

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    linguistas como o repositrio das irregularidades e das

    idiossincrasias da linguagem. Essa interpretao assume que o

    lxico ope-se gramtica de uma lngua porque,

    diferentemente dessa, no um sistema gerativo, ou seja, no

    criado ou dedutvel por meio de princpios e/ou regras. De fato,

    como ensinou o mestre de Genebra, os falantes de uma lngua

    natural devem memorizar, sem recurso a qualquer tipo de

    algoritmo, a conveno sociocultural que determina a associao

    entre dado conjunto de sons e certo significado. Por exemplo,

    consideremos o item lexical casa. Os falantes do portugus sabem que o som ['ka.za] deve ser associado ao significado [tipo

    de moradia] e sabem disso em funo de ser essa uma

    conveno arbitrria tacitamente assumida entre eles, algo que

    simplesmente acontece e no pode ser adquirido ou descrito por

    meio de regras. Entretanto, assumir que o lxico um

    componente idiossincrtico das lnguas no significa dizer que o

    seu contedo um caos, sobre o qual nada se pode dizer num

    estudo cientfico. Muito pelo contrrio, os valores presentes no

    lxico, ainda que arbitrariamente selecionados, encontram-se

    dispostos de maneira sistemtica e coerente, permitindo, por um

    lado, a sua aquisio pelos indivduos e, por outro, o seu acesso

    e uso pelo sistema computacional da linguagem humana. Assim,

    ao estudarmos o lxico como componente de uma Lngua-I,

    queremos entender de que maneira suas informaes esto

    organizadas e como elas so acessadas e usadas pelo sistema

    computacional.

    Os valores e as informaes que se encontram

    codificadas no lxico de uma lngua so chamados de traos

    (features, em ingls). Dessa forma, dizemos que cada item do

    lxico , na verdade, um composto de traos. So trs os tipos de

    traos lexicais: traos semnticos, traos fonolgicos e traos

    formais. Na dinmica da cognio humana, os traos

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    semnticos estabelecem relaes entre a lngua e o sistema

    conceitual-intencional, j que a partir deles que as expresses

    lingusticas tornam-se interpretveis, assumindo certo

    significado e dado valor referencial no discurso. Por sua vez, os

    traos fonolgicos estabelecem relaes entre a lngua e o

    sistema articulatrio-perceptual, tornando possvel que os itens

    do lxico sejam manipulados pelo aparato sensrio-motor

    humano, assumindo, assim, certa articulao e certa percepo

    fsica. Quando dissemos acima que o som ['ka.za] veicula, em

    portugus, o valor de [tipo de moradia], fazamos aluso

    exatamente aos traos do item lexical casa: seus traos fonolgicos e seus traos semnticos, os quais so associados

    entre si de maneira arbitrria.

    Por fim, e para alm do que aprendemos no Curso de

    Lingustica Geral, o lxico composto tambm por traos

    formais. No funcionamento da cognio, tais traos codificam

    informaes a serem acessadas e usadas pelo sistema

    computacional da linguagem humana, em sua funo de prover

    as interfaces lingusticas com sintagmas e sentenas. Os traos

    formais orientam o sistema computacional a respeito das

    relaes sintticas que um dado item lexical deve estabelecer

    com outros itens no interior da sentena em que venha a ser

    inserido. Por exemplo, so os traos formais que instruem o

    sistema computacional a (i) atribuir uma posio linear na

    sentena a certo item do lxico, (ii) estabelecer um conjunto de

    relaes sintticas e semnticas entre esse item e outros com os

    quais ele tenha necessariamente de ser vinculado numa

    expresso lingustica e (iii) associar marcas morfossintticas

    como gnero, nmero, tempo, modo, aspecto, Caso etc. aos itens

    em que tais marcas so forosamente preenchidas na forma de

    afixos ou auxiliares existentes na lngua em questo. Dizendo de

    uma maneira menos abstrata, os traos formais de um item

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    lexical como, por exemplo, ver so aqueles que especificam (i) tratar-se de um verbo, que, como tal, deve ocupar a posio

    de ncleo do predicado numa orao, (ii) tratar-se de item ao

    qual devero ser associadas duas outras expresses lingusticas

    (uma relativa a quem experiencia o ver e outra ao tema do ver) e (iii) tratar-se de item ao qual devero ser associadas marcas de tempo, modo, aspecto, nmero e pessoa.

    Quando um indivduo falante da lngua portuguesa e

    domina, em sua Lngua-I, o item lexical ver, ele sabe1 que os traos fonolgicos presentes no conjunto de sons [ver] devem

    ser arbitrariamente associados aos traos semnticos de

    [perceber pela viso]. Sabe tambm que, numa dada sentena, o

    item ver ser o ncleo de um predicado e dever ser associado a uma entidade que v e outra que vista, bem como dever

    figurar numa forma de palavra especfica, com uma das flexes

    disponveis na lngua, tal como acontece no enunciado: Joo viu Maria. As informaes que permitem esses conhecimentos esto codificadas no conjunto de traos que compe o item

    ver. Naturalmente, o mesmo acontece com os demais itens do lxico: todos possuem traos fonolgicos, semnticos e formais.

    Vejamos a seguir quais so os principais traos formais

    existentes no lxico de uma lngua e de que maneira o sistema

    computacional da linguagem humana acessa e usa essas

    informaes na derivao de sentenas.

    1 Vale ressaltar que, quando dizemos o individuo sabe, o falante

    conhece, sabemos etc., estamos fazendo referncia aos conhecimentos tcitos, implcitos na cognio dos indivduos. No se deve confundir esse

    tipo de conhecimento com o conhecimento declarativo e consciente tpico da

    metalinguagem que se ensina/aprende explicitamente em aulas de gramtica

    na escola.

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    3. Traos Formais: Categoria

    Um trao formal bastante evidente nas unidades

    lexicais a sua categoria gramatical. Um item do lxico

    apresenta necessariamente informaes sobre sua classe dentre

    aquelas existentes na lngua, isto , quando conhecemos um item

    lexical, sabemos se se trata de um verbo, ou de um nome, ou de

    um pronome etc. Essa informao relevante para o sistema

    computacional porque o trao categorial de um item determina,

    dentre outras coisas, a sua posio distribucional na sentena.

    Para compreender melhor isso, comparemos as construes a

    seguir.

    (1) [SUJEITO Joo [PREDICADO viu Maria]].

    (2) * [SUJEITO Joo [PREDICADO viso Maria]].

    Por que (1) uma sentena gramatical e (2) no ? A

    resposta simples. O sistema computacional deve alocar itens

    lexicais em posies lineares da sentena que so compatveis

    com o trao categorial desses itens. Assim, o item ver presente em (1) informa ao sistema que ele um verbo, com o trao categorial V. Isso faz com que o sistema posicione esse item como ncleo do predicado, entendido como o ncleo de flexo

    numa sentena, posio que s pode ser ocupada por itens que

    carreiem o trao V. Como o sistema computacional observou o

    trao V do item e, assim, posicionou-o numa posio compatvel

    com esse trao, o resultado uma construo licenciada

    (gramatical) pela lngua.2 J em (2) o que acontece o

    2 O que determina a gramaticalidade de uma expresso lingustica a

    possibilidade de ela ser acessada e usada pelos sistemas de desempenho,

    tanto pelo sistema conceitual-intencional, quanto pelo articulatrio-

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    seguinte. O item viso est inscrito no lxico com o trao categorial N, por se tratar de um nome. Dessa forma, ele no pode ser alocado numa posio disponvel somente para

    itens com o trao V, como a de ncleo do predicado. A

    agramaticalidade de (2) ocorre justamente porque o sistema

    viola essa restrio ao inserir um item com o trao N onde

    somente itens da categoria V podem ser alocados.

    Esse rpido exemplo ilustra que, nos traos formais do

    lxico, devem ser codificadas as noes lingusticas que

    conhecemos como classes de palavras existentes numa dada lngua. Na competncia lingustica de um falante, cada item

    lexical deve ser especificado quanto sua categoria, de tal forma

    que o sistema computacional da linguagem seja capaz de acessar

    essa informao para poder us-la em sua tarefa de construir

    sintagmas e sentenas.

    Vejamos uma ilustrao do que dissemos.

    Item lexical Traos formais

    perceptual. Quando uma construo legvel nas duas interfaces, diz-se que ela licenciada, legtima, convergente ou gramatical. Quando no

    legvel numa ou em ambas as interfaces, ento no licenciada, isto , torna-se ilegtima, no-convergente ou agramatical. O princpio de plena interpretabilidade (Full Interpretation (FI), em ingls), formulado por Chomsky (1995: 220), sintetiza a mxima de que os objetos gerados pelo

    sistema computacional devem ser interpretveis em suas duas interfaces,

    algo que corresponde, ainda que imprecisamente, ao clssico conceito de

    gramaticalidade.

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    ver Categoria V

    viso Categoria N

    Figura 2: traos categoriais do lxico

    Evidentemente, as classes lexicais no so

    uniformemente as mesmas em todas as lnguas do planeta.

    Certas categorias existem numas lnguas, mas no em outras e essa variabilidade no nos deve surpreender, afinal, como j

    afirmamos, os traos que figuram no lxico de uma lngua no

    foram parar l de maneira natural e inevitvel, mas so, antes,

    arbitrrios, posto que fruto das contingncias de Lngua-E.

    Devemos entender, portanto, que existe um ncleo comum entre

    os traos categoriais existentes nas lnguas, como, por exemplo,

    a oposio entre os traos V e N, mas h tambm um conjunto

    limitado de variaes, a exemplo da distino entre

    modificadores nominais (adjetivos com trao A) e verbais (advrbios com trao ADV), que ocorre, por exemplo, em portugus, muito embora A e ADV comportem-se como uma

    nica categoria morfossinttica em diversas lnguas naturais.

    Com efeito, tudo o que comum ou varivel na estrutura do

    lxico das lnguas humanas deve ser, em ltima instncia,

    fenmeno derivado da cognio humana. O essencial num

    estudo como o que aqui se prope, entretanto, no elencar

    todos os traos categoriais j registrados nas lnguas naturais ou

    descrever como eles so derivados de fenmenos cognitivos

    superiores, mas, sim, compreender que os traos formais

    existem, esto visveis no lxico e so acessados pelo sistema

    computacional a fim de determinar, dentre outras coisas, a

    posio distribucional de um item na estrutura da sentena.

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    Para o estudo dos traos formais presentes no lxico da

    lngua portuguesa, o nmero mnimo de categorias que devemos

    considerar quatro, a saber: V, N, A e P (respectivamente,

    Verbo, Nome, Adjetivo e Preposio).3

    Notemos, tambm, que a especificao dos traos

    formais de palavras que podem pertencera mais de uma

    categoria, como o caso do item alto, que em portugus ambguo quanto ao trao A ou ADV (confronte-se Ele um homem muito alto vs. Ele fala muito alto), no deve ser interpretado como um problema para o sistema computacional.

    Na teoria lingustica, tais itens ou so considerados dois itens

    diferentes que, acidentalmente, possuem os mesmos traos

    fonolgicos (homonmia), ou so tratados como o mesmo item

    inespecificados quanto sua classe (polissemia). Nesse ltimo

    caso, a especificao categorial do item ocorre no no lxico,

    mas em certo contexto sinttico a numerao que alimentar a derivao de uma sentena.

    4 De qualquer modo, sabemos que

    um item lexical, ao entrar no sistema computacional, ter de

    informar ao sistema o seu trao categorial e, nesse momento,

    irrelevante que a especificao desse trao tenha ocorrido no

    lxico (homonmia) ou na numerao (polissemia).

    4. Traos Formais: Seleo

    3 Se usarmos um sistema binrio (com as marcas + ou -) para a classificao

    dos traos categoriais do lxico, V e N figurariam como os traos bsicos,

    dos quais seriam derivadas as quatro categorias citadas: V [+V, -N]; N [-V,

    +N], A [+V, +N] e P [-V, -N]. Ver Mioto, Silva e Lopes (2005: 53-56) para uma boa e sucinta descrio acessvel em lngua portuguesa.

    4 Para detalhes sobre os conceitos de numerao, merge e demais

    operaes do sistema computacional da linguagem humana, ver captulos 2

    e 4 neste volume.

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    [11]

    Outro trao formal existente no lxico diz respeito s

    propriedades de seleo de determinado item. Por tal

    propriedade, compreende-se a capacidade de certos itens

    lexicais recrutarem outro(s) item(s) com os quais vo

    obrigatoriamente compor a estrutura de uma sentena. Ou seja, o

    trao de seleo confere a um item a propriedade de selecionar

    outros itens que comele coocorrero, de maneira compulsria,

    numa estrutura sinttica.

    Aos descrevermos os traos de seleo dos itens

    lexicais, devemos notar que, diferentemente do trao categorial,

    nem todos os itens do lxico possuem propriedades selecionais na verdade, grande parte deles no possui. O item casa, citado mais acima, um exemplo disso: ele no tem traos de seleo,

    isto , no nos fornece nenhuma especificao sobre outros itens

    que compulsoriamente devem, junto dele, estruturar uma

    expresso lingustica. Dizendo de outra forma, quando enviamos

    para o sistema computacional um item lexical como casa, o sistema no capaz de fazer nada mais do que identificar sua

    categoria e aloc-lo numa posio linear adequada. Se

    opusermos ao item casa um item como ver, entenderemos com clareza o que um trao de seleo. Entre as diversas

    informaes codificadas em ver, encontram-se aquelas que especificam que tal item deve ser associado, na estrutura de uma

    sentena, a dois outros itens (ou conjunto de itens): aquele que

    experiencia o ato de ver e aquele que o tema/objeto de ver. Em suma, ver seleciona duas entidades na composio de uma sentena e, por conseguinte, possui traos de seleo.

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    [12]

    Quando um item do lxico possui traos de seleo,

    dizemos que ele um predicador.5Por seu turno, os itens que

    so obrigatoriamente selecionados por um predicador so

    chamados argumentos. Assim, um falante do portugus sabe

    que, dentre os traos formais do item casa, no consta a especificao de tratar-se de um predicador, ao passo que, no

    item ver, a especificao clara: trata-se de um predicador que possui dois argumentos.

    A especificao dos traos de seleo de um item do

    lxico fundamental para o funcionamento do sistema

    computacional da linguagem humana. Ao selecionar um item do

    lxico, o sistema deve acessar os seus traos de seleo, que

    funcionam como instrues a respeito de como o item deve ser

    computado na sentena. Por exemplo, ao acessar o item ver, o sistema computacional no apenas reconhece o seu trao

    categorial V, como tambm reconhece que esse item um

    predicador que seleciona dois argumentos.Vejamos uma

    ilustrao de como o sistema computacional acessa os traos de

    seleo de um item como ver e computa essa informao associando-lhe seus respectivos argumentos.

    5 Tradicionalmente, a teoria lingustica utiliza o termo predicado para a

    noo aqui denominada como predicador. Acreditamos que seja mais adequado reservar o termo predicado para descrever a funo sinttica que, na sentena, se ope funo de sujeito, utilizando predicador como referncia ao item que possui propriedades de seleo especificadas no

    lxico.

    Item lexical Traos formais

    ver

    Categoria V

    . + Predicador

    . 2 argumentos

    Sistema Computacional

    ver

    ver argumento

    ver argumento

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    [13]

    Figura 3: os traos de seleo do item lexical ver so acessados pelo

    sistema computacional.

    So as informaes presentes nos traos de seleo de

    ver que faro com quem o sistema computacional busque, dentre os elementos presentes na numerao que alimenta uma

    derivao,os itens que satisfazem a seleo de dois argumentos

    requerida por ver.6 Ao fim de uma derivao, a legitimidade de uma sentena como Joo viu Maria evidencia que os traos

    6 Na figura 3, a representao do sistema computacional indica que, da

    relao sinttica entre ver e seu argumento direita, resulta outro ver, o qual, por sua vez, relaciona-se sintaticamente com o argumento esquerda,

    dando origem ao terceiro ver que encabea todas as relaes sintticas. Cumpre dizer que, na verdade, representaes como essas simplificam

    outras mais precisas, nas quais o resultado da combinao entre um

    elemento [X] com outro [Y] representado pelo composto [X+Y]. Dessa

    forma, a representao mais correta do exemplo deve ser:

    [argumento + [ver + argumento]]

    [argumento] [ver + argumento]

    [ver] [argumento].

    Por questes de economia de espao, utilizamos, na ilustrao da figura 3 e

    nas demais do presente captulo, representaes mais simples, em que, no

    lugar do composto entre o predicador e seu(s) argumento(s), representamos apenas o predicador. Somente nos casos em que uma representao

    completa se fizer imprescindvel, recorreremos a ela. No o obstante, o

    leitor deve sempre ter em mente que o objeto que resulta de uma operao

    de combinao sinttica (merge) o conjunto de suas partes constitutivas, e

    no apenas uma ou algumas delas.

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    [14]

    de seleo de ver foram saturados, afinal Joo o argumento selecionado como o experienciador de ver e Maria o argumento selecionado como tema de ver.

    De uma maneira abrangente, podemos afirmar que os

    traos de seleo devem especificar num item lexical: (1) se se

    trata de um predicador, (2) se predicador, quantos so os seus

    argumentos, (3) qual o status dos argumentos (se complemento

    ou especificador), (4) quais as restries semnticas e formais a

    que se submetem os seus argumentos e (5) que interpretaes

    semnticas (ou papis temticos) devem ser associadas a seus

    argumentos. As especificaes de 1 a 4 compem aquilo que se

    chama estrutura argumental de um item do lxico. J as

    especificaes em 5 do conta do que se conhece como grade

    temtica.

    5. Estrutura Argumental

    As informaes relativas estrutura argumental de um

    item do lxico dizem respeito, primeiramente, ao nmero de

    argumentos que um predicador possui. Vimos, como exemplo,

    que o item do portugus ver possui dois argumentos. O item viso, cuja categoria N, outro exemplo de um predicador. No caso, viso possui apenas um argumento, afinal, a viso, como nome derivado de um verbo, a viso de alguma coisa, tal como se verifica na sentena A viso de sua casa pronta emocionou Joo.

    Vejamos como a estrutura argumental desses itens est

    representada no lxico.

    Item do lxico Traos formais

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    NETO, J. & SILVA, C. Programa minimalista em foco:

    princpios e debates. Curitiba, CRV. 2012. pp. 41-69.

    [15]

    ver . Categoria: V

    . + Predicador

    Estrutura argumental: { ___ , ___ }

    viso . Categoria: N

    . + Predicador

    Estrutura argumental: { ___ }

    Figura 4: estrutura argumental bsica dos itens ver e viso7.

    Na figura 4, as linhas presentes entre colchetes indicam

    o nmero de argumentos que um predicador necessariamente

    seleciona dois, no caso de ver, e somente um no caso de viso. Usar uma palavra que carreia o trao categorial N para exemplificar a estrutura argumental dos itens lexicais til para

    evitar a impresso equivocada de que somente itens com o trao

    V podem ser predicadores. Com efeito, tanto V, como N, P ou A

    podem figurar, no lxico, como predicadores, possuindo,

    7 Notemos que viso, por ser uma categoria N derivada de V, preserva sua

    interpretao verbal como [ato de ver alguma coisa], selecionando, assim,

    um argumento. No obstante, tal item est naturalmente sujeito ao

    fenmeno da polissemia e, assim, poder assumir interpretaes puramente

    nominais. Nesses casos, viso no manifestar propriedades de seleo. Isso o que acontece em sentenas como Joo um homem de viso, Eu no tenho problemas de viso etc., nas quais o item possui valor diferente de [ato de ver alguma coisa] e, por conseguinte, especifica traos formais prprios, como um novo item lexical. Veremos, ao final da seo 6

    deste captulo, que cada significado de um item polissmico assume seus

    prprios traos de seleo (quando os tm), equivalendo, portanto, a um

    item lexical independente. O que dissemos sobre viso estende-se a todas as categorias N derivadas de V ou de A.

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    [16]

    portanto, a capacidade de selecionar argumentos. Vejamos

    alguns exemplos disso.

    Na sentena Os polticos brasileiros esto conscientes de suas responsabilidades, o predicador o item consciente(s). Trata-se de um predicador com dois argumentos, afinal os falantes do portugus sabem que o item

    lexical consciente envolve necessariamente algum que tem (ou no) conscincia de algo. esse adjetivo que, em sua estrutura argumental, seleciona tanto o argumento relativo a

    quem experiencia a conscincia (os polticos), como o argumento relativo ao tema sobre o qual se tm conscincia (de suas responsabilidades). A percepo de que adjetivos podem ser predicadores no escapou s gramticas escolares.

    Lembremos que, na tradicional anlise das funes sintticas da

    orao, classificaramos esto conscientes de suas responsabilidades como predicado no-verbal (ou nominal, na nomenclatura oficial das gramticas brasileiras). Essa

    classificao captura o fato de que o predicador da sentena no

    um verbo, com o trao V, mas sim um adjetivo, com o trao A.

    muito importante ressaltar que o verbo estar no possui propriedades de seleo, tratando-se de uma partcula funcional

    (um verbo de ligao, na nomenclatura escolar). No sistema

    computacional da linguagem humana, verbos funcionais

    desempenham a funo gramatical de atribuir alguma flexo

    morfossinttica s construes lingusticas, conferindo-lhes,

    dessa forma, status de sentena. Assim, entendemos que,

    diferentemente de verbos lexicais (como, por exemplo, ver), verbos funcionais (como os de ligao e auxiliares) no possuem

    estrutura argumental.

    Agora pensemos: qual o predicador da sentena A Baa de Guanabara est entre Niteri e o Rio de Janeiro? A resposta : a preposio entre, a categoria P. Entre um

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    [17]

    item lexical cujos traos semnticos especificam uma relao

    espacial entre trs entidades. Podemos sumarizar o significado

    de entre como se segue: [localizao espacial de uma entidade X com relao a outras duas, Y e Z]. Assim, entre que seleciona o argumento A Baa de Guanabara, ao qual relaciona outros dois argumentos, Niteri e o Rio de Janeiro, sendo, portanto, um predicador com trs argumentos. Mais uma vez, o verbo estar no o predicador da sentena, pois no ele quem determina a espcie de relao espacial

    veiculada na frase. Tambm aqui, o verbo estar comporta-se como uma partcula funcional, responsvel pela flexo da

    sentena. Trata-se, novamente, de um predicado no-verbal.8

    6. Argumentos Foneticamente Nulos

    Nos traos do lxico, o nmero de argumentos de um

    predicador deve ser fixo e previsvel, de tal forma que torne

    possvel o funcionamento do sistema computacional da

    linguagem humana. Como vimos, esse sistema deve acessar os

    traos de seleo de um predicador para, com base nessas

    informaes, selecionar os argumentos que lhe saturam a

    estrutura argumental. Dizer isso significa assumir que a estrutura

    argumental de um item no pode mudar de uma hora para a

    outra. Um item no pode, por exemplo, selecionar dois

    8 Com esse exemplo, demonstramos que seria mais apropriado que, nas aulas

    de gramtica, os predicados das oraes fossem classificados somente em verbal ou no-verbal (ou, ainda, verbal e no-verbal, nos casos em que ambos coocorrem). Um predicado no-verbal pode apresentar tanto um

    item A, quanto N ou P como seu respectivo predicador. Para uma discusso

    a respeito das possveis contribuies da lingustica formal ao ensino de

    metalinguagem gramatical na escola, ver Kenedy (2010).

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    [18]

    argumentos numa sentena e, noutra, selecionar apenas um ou

    nenhum. Afinal de contas, se os itens do lxico variassem

    caprichosamente suas propriedades selecionais, como o sistema

    computacional seria capaz de reconhecer esses traos de modo a

    satisfaz-los? A codificao dos traos lexicais relativos

    estrutura argumental de um predicador deve ser, portanto,

    invarivel. Com efeito, violar os traos de seleo de um item

    provoca necessariamente a agramaticalidade da construo.

    Seno, vejamos. Consideremos as seguintes sentenas.

    (3) Joo viu Maria? (4) Quem Joo viu? (5) Quem viu Maria? (6) * Joo viu? (7) * Quem Joo viu Maria?

    (3), (4) e (5) so construes licenciadas em portugus

    porque a estrutura argumental do predicador ver foi corretamente saturada nessas sentenas. Como j dissemos,

    ver possui dois argumentos, e ambos so visveis em (3), (4) e (5) o fato de quem ser um pronome interrogativo e ocorrer no incio da sentena no modifica sua percepo como o

    argumento-tema do verbo ver em (4) e, em (5), no impede sua interpretao como o experienciador do ato de ver. J (6) uma construo agramatical devido ao fato de representar

    somente um argumento quando a estrutura argumental do

    predicador da sentena determina a ocorrncia de dois

    argumentos. Por sua vez, (7) agramatical tambm em funo

    de violar as propriedades de seleo do verbo ver. No caso, foram representados trs argumentos, mas o predicador

    seleciona somente dois.

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    [19]

    Dito isso, podemos pensar no seguinte caso. Como

    interpretar o nmero de argumentos presentes na fala do locutor

    B abaixo?

    Locutor A: Maria, voc viu o Joo? Locutor B: Vi.

    Na fala do locutor A, os dois argumentos do verbo

    ver so visveis, isto , possuem substncia fontica (voc e Joo), mas na fala de B, no h nenhum argumento pronunciado. Inicialmente, poderamos indagar se esse no seria

    o caso de, como dizem alguns gramticos, um uso intransitivo

    de um verbo que outrora era transitivo. Ora, dizer isso implica

    assumir que os itens do lxico possuem estrutura argumental

    varivel, o que j consideramos ser incorreto. Na verdade, a

    estrutura argumental de ver na fala do locutor B rigorosamente a mesma da fala de A ou de qualquer uso possvel

    desse verbo. O que h de especial na fala de B o seguinte. No

    caso especfico de lnguas com a tipologia do portugus do

    Brasil, argumentos podem no assumir uma realizao fontica

    visvel na sentena, isto , eles podem ser foneticamente nulos ou elpticos, ocultos, implcitos, nos termos ensinados pela

    gramtica escolar. No caso do argumento experienciador do ato

    de ver (o seu sujeito), a morfologia do verbo em portugus permite a identificao de seus traos de pessoa e nmero

    atravs da chamada desinncia nmero-pessoal. Assim, a

    expresso vi corresponde inequivocamente forma de um sujeito na primeira pessoa do singular (eu). Trata-se do famoso caso do sujeito oculto, que aprendemos na escola, e do parmetro [+ pro-drop], o sujeito nulo clssico na literatura

    gerativista. Logo, incorreto dizer que na sentena no ocorre o

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    [20]

    argumento-experienciador selecionado pelo verbo. O correto

    dizer que, sim, ele ocorre na sentena do contrrio, a estrutura argumental de ver seria violada e, por consequncia, a construo seria agramatical , mas realizado na forma de um pronome foneticamente nulo. Esse tipo de pronome sem

    substncia fontica representado na teoria lingustica pela

    abreviatura pro (l-se prozinho), que uma das categorias vazias existentes no lxico das lnguas naturais.

    9 Portanto, numa

    fala como a do locutor B, o sistema computacional instanciar

    procomo argumento-sujeito do predicador ver, do que resultar a estrutura sinttica pro vi ....

    Seria possvel sustentar que, na posio do tema do

    verbo ver (o seu objeto) usado pelo locutor B, tambm ocorre um argumento foneticamente nulo? A resposta afirmativa,

    afinal, se tal argumento no estivesse presente na construo,

    teramos a violao das propriedades de seleo do verbo e a

    consequente agramaticalidade da sentena. Como isso no

    ocorre, devemos, portanto, assumir que a estrutura argumental

    do item foi satisfeita com um pronome nulo tambm na posio

    do objeto. Temos o caso de um objeto nulo. Qual natureza

    desse argumento nulo? Trata-se novamente de pro?

    9 a propriedade de selecionar pro sistematicamente como argumento

    sujeito de um predicador que parametriza a lngua como [+ pro-drop], uma

    lngua de sujeito nulo. Essa propriedade est, como dissemos,

    correlacionada morfologia verbal da lngua, mas devemos esclarecer que

    correlao no causao. H, com efeito, lnguas com morfologia verbal

    semelhante do portugus cujo parmetro caracteriza-se como [- pro-drop] e, inversamente, h lnguas com um nmero nulo ou reduzido de afixos

    verbais que se parametrizam como [+ pro-drop]. Fatos como esses indicam

    haver mais variveis imbricadas no licenciamento de pro como argumento sujeito do que simplesmente a morfologia do verbo. Para uma

    introduo ao assunto, ver Graffi (2001).

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    [21]

    H, na teoria lingustica, discusses a respeito do status

    gramatical da categoria vazia que usada como argumento-

    objeto em portugus. A hiptese mais simples seguinte. Na

    posio de objeto, um argumento nulo tambm um pro. Trata-se de um item lexical, foneticamente nulo e inespecificado

    quanto ao gnero, nmero e Caso, que pode ser usado pelo

    sistema computacional como qualquer outro pronome existente

    no lxico do portugus. Naturalmente, pro como argumento-objeto no licenciado pela morfologia do verbo, mas, sim, pela

    existncia de contexto discursivo (no caso, um referente nominal

    ativo) que permita a sua interpretao como elemento anafrico.

    justamente isso o que acontece na sentena pro vi pro. Enquanto o primeiro pro licenciado, pela desinncia nmero-pessoal do verbo, como pronome da primeira pessoa do

    singular (eu), o segundo pro licenciado como terceira pessoa do singular e masculino (ele) em virtude da existncia, no discurso, de um item nominal foneticamente pleno que

    possui exatamente esses traos: Joo. Dizendo de outra forma, o segundo pro um pronome anafrico e o argumento-objeto da sentena anterior o seu referente. Compreendemos, assim,

    que o sistema computacional, ao ter acesso a um item lexical

    como pro, capaz de processar seus traos de categoria (pronome), gnero, nmero e Caso (inespecificados) e, assim,

    comput-lo como elemento ditico (argumento-sujeito) ou

    anafrico (argumento-objeto), tal como o faz naturalmente com

    todos os pronomes foneticamente plenos.10

    10 No podemos deixar de indicar que muitos linguistas no consideram que o

    objeto nulo no portugus do Brasil seja um pro. Para eles, o licenciamento do objeto foneticamente nulo no apenas uma questo

    lexical, mas envolve fenmenos sintticos mais complexos. Para uma boa

    reviso sobre o tema, ver Cyrino (1997 e 2001).

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    [22]

    Essa exposio sobre o objeto nulo relevante porque

    se trata de uma categoria notvel do portugus do Brasil. Muitas

    lnguas naturais, e em particular as lnguas neolatinas, como o

    espanhol, o francs, o italiano e, mesmo, o portugus de

    Portugal, dispem de pronomes foneticamente plenos para

    satisfazer a seleo do argumento-objeto de terceira pessoa. O

    uso de pro como objeto , nessas lnguas, bastante restrito. Ora, o vernculo do portugus do Brasil passou por uma

    mudana histrica na qual os pronomes-objeto de terceira

    pessoa (como os oblquos o, os, a, as e suas variaes

    fonolgicas) simplesmente deixaram de existir no lxico. Esse

    desaparecimento precipitou a generalizao de pro como pronome-objeto de terceira pessoa, retirando-o dos contextos

    restritos em que outrora ocorria. Ou seja, o licenciamento de um

    item lexical foneticamente nulo (pro) como argumento-objeto de um predicador um ganho da competncia lingustica dos

    falantes brasileiros, que decorre da perda dos pronomes-objeto

    de terceira pessoa foneticamente plenos um episdio no drama de perdas-e-ganhos da histria de uma lngua, conforme apontou

    o mestre Tarallo (1990). A seleo de argumentos foneticamente

    plenos ou nulos para satisfazer a seleo de ver exemplificada na figura abaixo.

    Figura 5: em (A), argumentos foneticamente plenos e,

    em (B), argumentos foneticamente nulos do predicador ver.

    (A) ver

    Voc ver

    ver Joo

    (B) ver

    pro ver

    ver pro

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    [23]

    Outra questo que no podemos deixar de abordar ao

    falarmos da estabilidade da estrutura argumental de um

    predicador o fenmeno da homonmia e da polissemia.

    correto afirmarmos que a especificao da estrutura argumental

    de itens homnimos completamente independente para cada

    um desses itens, tanto quanto o no caso de uma dupla ou um

    conjunto de palavras tomadas aleatoriamente no lxico. Isto ,

    quando os indivduos dominam os traos lexicais de uma lngua,

    eles conhecem um grande nmero de itens individuais e o

    conhecimento dos traos de cada um desses itens

    particularizado e idiossincrtico. Itens homnimos no so

    exceo. Para cada um deles, existem propriedades selecionais

    especficas. O mesmo vlido para os casos de polissemia.

    Cada um dos significados de um item polissmico especifica

    seus prprios traos de seleo, comportando-se semelhana

    de um item isolado do lxico. Esclareamos isso num exemplo.

    Podemos interpretar que a segunda fala do locutor A,

    no dilogo abaixo, normal e coerente. Imagine que o contexto

    das falas uma festa realizada num clube.

    Locutor A: O senhor aceita uma cerveja?

    Locutor B: No, obrigado. Eu no bebo.

    Locutor: A: Aceita, ento, um refrigerante?

    O mesmo no pode ser dito do dilogo que se segue, no

    qual a segunda fala do locutor A deve ser considerada anmala e

    incoerente.

    Locutor A: O senhor aceita uma cerveja?

    Locutor B: No, obrigado. Eu no bebo.

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    [24]

    Locutor: A: Aceita, ento, uma vodca?

    Por que a anomalia ocorre aqui? No caso, o item

    beber na fala do locutor B deve ser interpretado com traos semnticos equivalentes a [consumo de bebida alcolica]. Nessa

    acepo, beber possui somente um argumento: o ser que pratica o ato de beber. exatamente em funo desse significado que o locutor A, no primeiro dilogo, oferece a seu

    interlocutor uma alternativa, isto , uma bebida no-alcolica.

    No segundo dilogo, o estranhamento acontece porque o locutor

    A oferece um segundo tipo de bebida alcolica a algum que

    acabou de afirmar que no consome lcool.

    Vejamos agora o que se passa nesse terceiro dilogo.

    Locutor A: O senhor aceita uma cerveja?

    Locutor B: No, obrigado. Eu no bebo cerveja.

    Locutor: A: Aceita, ento, uma vodca?

    Nesse caso, a rplica do locutor A normal e coerente.

    Isso acontece porque, agora, o item beber assume os traos semnticos [ingerir lquido]. Logo, nessa acepo, beber um predicador com dois argumentos: aquele que pratica o ato de

    beber e o tipo de lquido que ingerido. por isso que o locutor A pode oferecer ao locutor B outro tipo de bebida

    alcolica, diferentemente do que sucede no dilogo anterior.

    Vemos, assim, que beber um item polissmico que comporta, pelo menos, dois significados. Cada um deles possui

    sua prpria estrutura argumental, que codificada nos traos do

    lxico de maneira independente, como se se tratasse de dois

    itens isolados.

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    [25]

    7. Argumento Interno e Argumento Externo

    Quando fizemos a representao das relaes entre um

    dado predicador e seus argumentos, conforme a figura 5,

    indicamos visualmente que h assimetrias na maneira pela qual

    os diferentes argumentos relacionam-se sintaticamente com o

    seu predicador. Vejamos isso com um pouco mais de detalhe.

    Os predicadores das lnguas humanas possuem severas

    limitaes quanto ao nmero de argumentos que,

    individualmente, podem vir a selecionar. O nmero mnimo de

    argumentos que um predicador seleciona , obviamente, um

    (no selecionar qualquer argumento implicaria no se tratar de

    predicador). O nmero mximo trs. O nmero intermedirio

    dois. Seja qual for a quantidade de argumentos selecionados, h

    somente duas maneiras por meio das quais o sistema

    computacional pode estabelecer elo sinttico entre um

    predicador e seu(s) argumento(s). So elas: [predicador complemento] e [especificador predicador]. Ilustramos a seguir tais relaes, considerando um caso de um predicador

    com dois argumentos.

    Figura 6: o predicador, seu complemento e seu especificador no sistema

    computacional.

    Um argumento sempre assume, portanto, um status em

    relao a seu predicador: complemento ou especificador. O

    complemento aquele selecionado imediatamente pelo

    Predicador

    especificador predicador

    predicador complemento

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    [26]

    predicador e corresponde primeira vinculao sinttica (a

    operao merge) estabelecida pelo sistema computacional. Em

    termos semnticos, o complemento de um predicador

    tipicamente seu tema/objeto, o item sobre o qual incide o evento

    descrito pelo item lexical que o predicador. J o especificador

    aquele selecionado pelo predicador de maneira menos

    imediata, aps a seleo do complemento (se houver algum), na

    segunda aplicao de merge. Semanticamente, o especificador

    de um predicador tipicamente seu agente/sujeito, o item que

    desencadeia ou experiencia o evento descrito pelo predicador.

    Se prosseguirmos com anlise do verbo ver, identificaremos facilmente que, em Joo viu Maria, Maria o complemento e Joo o especificador do predicador.

    Na literatura lingustica, o complemento de um

    predicador tambm referido como argumento interno,

    enquanto seu especificador pode ser denominado argumento

    externo. Essa nomenclatura reflete a maior imediaticidade

    (relao interna) do elo sinttico entre predicador e argumento,

    por contraste menor imediaticidade (relao externa)

    estabelecida entre especificador e predicador.11

    No exemplo

    anterior, compreendemos que Maria o argumento interno de ver, ao passo que seu argumento externo Joo.

    Vemos, assim, que, para saturar a estrutura argumental

    de um predicador, o sistema computacional precisa ser instrudo

    quanto ao status dos argumentos, ou seja, ele precisa acessar a

    11 importante ressaltar que, embora um argumento interno seja sempre um

    complemento e um argumento externo seja sempre um especificador de um predicador, complementos e especificadores no so necessariamente

    argumentos. Isso fica claro quando falarmos de complementos e

    especificadores fora da camada lexical de uma derivao sinttica, ao

    descrevermos fenmenos que se do nos sintagmas flexional e

    complementizador de uma sentena, conforme o captulo 4 deste livro.

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    [27]

    informao interno vs. externo especificada para os argumentos de modo a associ-los corretamente como

    complemento ou especificador ao ncleo predicador. Isso quer

    dizer que, nos traos de seleo do lxico, um predicador deve

    deixar visveis as especificaes do status de seu(s)

    argumento(s), de tal forma que o sistema computacional possa

    acess-las.Vejamos como isso acontece no caso de um

    predicador com trs argumentos.

    Suponhamos que o predicador colocar seja trazido ao sistema computacional. O sistema imediatamente acessar os

    traos formais desse item. No caso, processar que se trata de

    um item V, que possui trs argumentos: dois argumentos

    internos e um externo. Com essas informaes, o sistema ir,

    ento, saturar as selees de colocar buscando na numerao seus respectivos argumentos. Suponhamos que o primeiro

    argumento interno seja o livro,12 teremos ento a saturao desse argumento quando o sistema compuser (via merge)

    colocar o livro. Suponhamos, agora, que o segundo argumento interno seja na estante. Esse ser saturado quando o sistema construir colocar o livro na estante. Por fim, suponhamos que o especificador seja o aluno, argumento externo cuja saturao nos dar o composto o aluno colocar o livro na estante.

    Com esse conjunto de operaes, o sistema

    computacional ter saturado a estrutura argumental do verbo,

    permitindo que a derivao prossiga at o ponto em que ser

    12 Note-se que o livro j , em si, um objeto sinttico complexo que, como

    tal, deve ter sido constitudo pela operao merge, de maneira independente

    sua articulao como o primeiro argumento interno do predicador

    colocar. Para simplificar a exposio didtica deste captulo, a constituio sinttica interna dos argumentos ser ignorada.

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    [28]

    levada s interfaces como um objeto legvel.13

    Na figura 7, a

    seguir, apresentamos uma ilustrao visual de como o sistema

    computacional deve acessar e computar os traos de seleo do

    predicador colocar.

    Figura 7: saturao da estrutura argumental do predicador colocar.

    13 Para que a sentena seja legvel nas interfaces, o sistema computacional

    dever licenciar ainda os elementos nominais nela presentes com

    identificaes quanto ao Caso, bem como dever licenciar a sentena com

    uma flexo verbal, dentre outros fenmenos. Sobre essas etapas funcionais

    de uma derivao, ver os captulos 2, 4 e 5 neste volume.

    Item lexical Traos formais

    colocar . Categoria V

    . + Predicador

    . 2 argumentos internos

    . 1 argumento externo

    [O aluno colocar o livro na estante]

    [O aluno] [colocar o livro na estante]

    [colocar o livro] [na estante]

    [colocar] [o livro]

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    [29]

    8. Argumentos versus Adjuntos

    Argumentos so entidades sintticas cuja ocorrncia na

    sentena encontra-se prevista nos traos formais que fazem de

    certo item lexical um predicador. Como dissemos, uma

    construo que deixe de realizar sintaticamente um ou mais

    argumentos selecionados por um predicador redundar em

    agramaticalidade. O mesmo ocorre com construes que

    realizem mais argumentos do que aqueles selecionados pelo

    predicador essas tambm resultaro agramaticais. O nmero de argumentos inscritos na estrutura argumental de um

    predicador deve ser representado, numa sentena, exatamente da

    maneira como se encontra previsto nos traos do lxico, nada a

    mais e nada a menos. Noes como essas so suficientes para

    distinguirmos argumentos e adjuntos.

    Diferentemente dos argumentos, os adjuntos sintticos

    no so previsveis a partir dos traos formais de dado

    predicador. Enquanto a ocorrncia de argumentos numa

    sentena inteiramente determinada pela seleo de certo item

    lexical, a ocorrncia de adjuntos em nada est relacionada aos

    traos do lxico. Os adjuntos de uma sentena so selecionados

    de acordo com o planejamento de fala dos indivduos, fenmeno

    mental isolado do sistema computacional, que determina, de

    maneira idiossincrtica, os itens que devem compor uma

    numerao. Nesse sentido, possvel que uma sentena

    simplesmente no tenha nenhum adjunto, se assim for o plano

    de fala. Inversamente, da mesma forma plausvel que numa

    sentena ocorra um nmero indeterminado, s vezes muito

    grande, de adjuntos. Isso quer dizer que a presena ou a ausncia

    de adjuntos no tem relao com a gramaticalidade da sentena.

    Analisemos isso nos seguintes exemplos.

  • KENEDY, E. Lxico e computaes lexicais. IN: FERRARI-

    NETO, J. & SILVA, C. Programa minimalista em foco:

    princpios e debates. Curitiba, CRV. 2012. pp. 41-69.

    [30]

    (8) Joo viu Maria. (9) Joo viu Maria na festa, no sbado, s 19 horas,

    quando saiu do trabalho.

    (10) * Joo viu na festa, no sbado, s 19 horas, quando saiu do trabalho.

    (11) * viu Maria na festa, no sbado, s 19 horas, quando saiu do trabalho.

    A gramaticalidade de (8), oposta agramaticalidade de

    (10) e (11), indica que Joo e Maria so argumentos.14 Como vimos, se a presena de um item garante a legitimidade

    da construo e a sua ausncia provoca agramaticalidade, ento

    esse item um argumento. Se isso no ocorre, ou seja, se a

    presena ou a ausncia de um item indiferente para a

    gramaticalidade da sentena, ento esse item um adjunto. Ora,

    isso o que se nota no cotejo entre (8) e (9). Em (9), os

    sintagmas na festa, no sbado, s 19 horas e a clusula quando saiu do trabalho ocorrem e a sentena gramatical, mas eles no ocorrem em (8) e a gramaticalidade da sentena

    permanece inalterada. Trata-se, portanto, de quatro adjuntos.

    A constatao emprica da diferena entre o

    comportamento de argumentos e adjuntos, tal como acima

    demonstrada, til para evitarmos certos equvocos na descrio

    dos traos de um item lexical. Por exemplo, nas gramticas

    tradicionais e nos dicionrios do portugus, verbos que,

    semanticamente, descrevem movimentos no espao so, muitas

    vezes, interpretados como monoargumentais, selecionando

    somente o argumento externo (sujeito). Os elementos

    circunstanciadores que sucedem esses verbos so normalmente

    14 Note-se que, no caso, estamos assumindo que no ocorre o licenciamento

    de pro em (10) e (11), do contrrio, as sentenas seriam gramaticais.

  • KENEDY, E. Lxico e computaes lexicais. IN: FERRARI-

    NETO, J. & SILVA, C. Programa minimalista em foco:

    princpios e debates. Curitiba, CRV. 2012. pp. 41-69.

    [31]

    descritos como adjuntos. No entanto, verificaremos que essa

    descrio incorreta se analisarmos sentenas como as que se

    seguem.

    (12) Joo foi ao Maracan. (13) * Joo foi.

    Considerando que no h um referente no discurso que

    licencie a elipse do [lugar para onde se foi] em (13), a ausncia

    dessa informao provoca a agramaticalidade da sentena, fato

    que nos demonstra que tal informao selecionada pelo verbo

    ir, sendo, assim, seu argumento interno e no seu adjunto. Ir inscreve-se no lxico, portanto, como um predicador com dois argumentos. Vejamos agora o que se passa com as

    sentenas (14) (16).

    (14) O manobrista colocou o carro na vaga. (15) * O manobrista colocou o carro. (16) O manobrista estacionou o carro na vaga. (17) O manobrista estacionou o carro.

    Notamos que o valor discursivo e informacional de (14)

    e (16) muito semelhante, porm o status do constituinte na vaga diferente nas duas sentenas. Em (14), ele argumento interno do predicador colocar, enquanto, em (16), adjunto de estacionar o carro. Evidncia disso a agramaticalidade provocada pela ausncia do constituinte em (15), oposta

    indiferena de sua inocorrncia em (17). O cotejo entre essas

    quatro sentenas mantm o foco de nossa anlise no lxico: a

    diferena entre argumentos e adjuntos sintticos dedutvel

    pelos traos de um item tal como esto inscritos no lxico e

    independe das propriedades de uma sentena em particular.

  • KENEDY, E. Lxico e computaes lexicais. IN: FERRARI-

    NETO, J. & SILVA, C. Programa minimalista em foco:

    princpios e debates. Curitiba, CRV. 2012. pp. 41-69.

    [32]

    9. S-Seleo e C-Seleo

    Comparemos a legibilidade das seguintes sentenas.

    (18) O menino tossiu. (19) * A observao tossiu.

    Os traos de seleo de tossir parecem estar satisfeitos nas duas construes: trata-se de predicador com um

    argumento externo, o qual visvel em ambos os casos. Ora, se,

    nas duas sentenas, o argumento externo foi selecionado, por

    que (19) no legvel nas interfaces? A resposta a seguinte.

    Apenas selecionar argumentos, sejam eles de qualquer natureza,

    no o suficiente para satisfazer os traos selecionais de um

    item. Os predicadores tambm impem restries ao tipo

    semntico de seus argumentos. No exemplo, o verbo tossir no apenas seleciona um argumento externo, mas tambm

    especifica que tal argumento deve carrear o trao semntico [+

    animado], isto , deve ser uma entidade compatvel com os

    traos semnticos de tossir, algo que possa expulsar o ar subitamente pela boca. Ora, o constituinte o menino apresenta traos compatveis com tal restrio semntica e, dessa forma,

    pode ser selecionado com o argumento desse predicador. J a observao viola a restrio, j que no possui traos semnticos compatveis, fato que provoca a agramaticalidade de

    (19). As restries semnticas que os predicadores impem a

    seus argumentos so denominadas traos de seleo semntica

    ou s-seleo.

    A s-seleo um trao do lxico e, por conseguinte,

    integra a competncia lingustica de um falante de uma lngua

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    [33]

    natural. Esse falante capaz no somente de satisfazer esse tipo

    de trao quando fala, bem como capaz de reconhecer a

    satisfao ou a violao do trao no uso da linguagem que fazem

    os seus interlocutores. Mais do que isso, o falante tambm

    capaz de modificar e perceber a modificao dos traos

    semnticos de certos itens que licencia a linguagem metafrica.

    Isto , quando um falante, ouve ou l uma frase como (20), ele

    certamente perceber que se trata de uma construo gramatical.

    (20) A soluo do problema estava tossindo na minha frente.

    No caso, o predicador tossir seleciona a soluo do problema como seu argumento externo e, na interface conceitual da linguagem, o trao [+ animado] foi conferido a

    esse item, de modo a licenciar o uso metafrico. Com efeito, a

    metfora consiste exatamente na transferncia de propriedades

    semnticas entre itens e domnios. Trata-se de uma fantstica

    habilidade cognitiva humana com forte impacto sobre a natureza

    e o funcionamento da linguagem. No obstante, as

    transferncias metafricas dizem respeito interface entre a

    linguagem e o sistema conceitual-intencional, sendo irrelevantes

    para o funcionamento do sistema computacional em sua funo

    puramente sinttica. De fato, a atribuio de, por exemplo,

    caractersticas animadas a entidades no-animadas no algo

    visvel para o sistema, tampouco parece ser algo codificado no

    lxico. Dessa forma, a violao da s-seleo em (19) e a sua

    satisfao denotacional em (18) e metafrica em (20) so um

    fenmeno que tem lugar na interface conceitual da linguagem e no nas relaes entre lxico e sistema computacional. , a

    propsito, plausvel que haja condies em que (19) possa ser

    licenciado com algum valor de metfora.

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    NETO, J. & SILVA, C. Programa minimalista em foco:

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    [34]

    Diferentemente da s-seleo, a seleo categorial, ou

    c-seleo, visvel e computvel pelo sistema. A c-seleo diz

    respeito categoria sinttica do argumento, isto , ela especifica

    se o argumento deve ser selecionado como um sintagma

    nominal (DP), um sintagma adjetivo (AP), um sintagma

    preposicionado (PP), uma pequena orao (SC) ou uma clusula

    (CP/IP).15

    Por exemplo, no caso do verbo ver, sabemos que tanto seu argumento interno quanto seu argumento externo so

    sintagmas nominais: [DP Joo [VP ver [DP Maria ]]]. Com relao

    ao predicador colocar, vimos que seu argumento externo um DP, seu primeiro argumento interno tambm um DP,

    enquanto seu segundo argumento interno um PP: [DP O aluno

    [VP colocar [DP o livro [PP na estante]]]].

    No satisfazer a c-seleo de um item provoca a

    agramaticalidade da construo, conforme se v a seguir.

    (21) * Joo viu de Maria. (22) * O aluno colocou o livro a estante.

    Essas sentenas so ilegveis nas interfaces porque,

    nelas, a c-seleo dos respectivos predicadores foi violada, posto

    que o argumento interno de ver foi selecionado como PP, e o segundo argumento interno de colocar, como DP. No so estes

    15 As abreviaturas respeitam a tradio da lingustica formal brasileira de

    manter os termos tcnicos da anlise sinttica no seu original em ingls: DP

    = determiner phrase; VP = verbal phrase; AP = adjectival phrase; PP = prepositional phrase; SC = small clause; CP = complementizer phrase, IP =

    inflectional phrase. Faremos referncia ao sintagma nominal (NP = noun

    phrase) citando o DP que o licencia, tanto para os casos em que h um

    determinante visvel, como em [DP o [NP Joo]], quanto nos casos em que

    no h: [DP [NP Joo]].

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    [35]

    os traos de c-seleo inscritos em tais predicadores, tal como se

    ilustra a seguir.

    Item do

    lxico

    Traos formais

    ver . Categoria: V

    . + Predicador

    Estrutura argumental: {DP; DP}

    colocar . Categoria: V

    . + Predicador

    . Estrutura argumental: {DP; DP, PP}

    Figura 8: estrutura argumental dos itens ver e colocar.

    Um predicador define, portanto, a categoria precisa de

    seus argumentos. No deixemos de perceber, porm, que os

    predicadores podem selecionar clusulas inteiras como

    argumentos. Tal possibilidade uma consequncia da

    propriedade da recursividade. Uma vez constituda pelo

    sistema computacional, uma clusula pode ser selecionada como

    argumento de um predicador. o que ocorre na sentena (23).

    (23) Joo viu que o quadro estava torto na parede.

    Aqui, o argumento interno de ver toda a clusula que o quadro estava torto na parede. Logo, na especificao lexical da c-seleo de ver, deve constar como argumento interno tambm a seleo de CP, ao lado de DP.

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    [36]

    A especificao da categoria do(s) argumento(s) de um

    dado predicador idiossincrtica, isto , arbitrria e

    imprevisvel de item a item. Isto quer dizer que os falantes de

    uma lngua conhecem os traos de c-seleo dos itens lexicais

    tomados individualmente. Por exemplo, vimos que um indivduo

    precisa especificar no seu lxico mental que o item ver seleciona DP/CP como argumento interno, mas ele precisa de

    outra especificao separada para o item beijar, que seleciona somente DPs como complemento.

    (24) Joo beijou Maria. (25) * Joo beijou que Maria estava em casa.

    Vemos, ento, que a recursividade da linguagem torna

    possvel que clusulas inteiras sejam selecionadas como

    argumento (interno e/ou externo) de certos predicadores. Isso

    verdade tambm para a adjuno. Os adjuntos podem figurar ora

    como sintagmas simples, ora como clusulas. O que diferencia

    argumentos ou adjuntos em forma de clusulas de argumentos

    ou adjuntos em forma de sintagmas simples , to somente, a

    complexidade da constituio interna desses elementos. Essa a

    diferena entre os chamados perodo simples e perodo

    composto da gramtica escolar. No perodo simples, argumentos

    e adjuntos so sintagmas no-oracionais (DP, AP, PP, SC). No

    perodo composto, argumentos e/ou adjuntos so clusulas (CP).

    10. Papis Temticos

    Uma propriedade notvel dos predicadores sua

    capacidade de atribuir valores semnticos a seus argumentos.

    Quando ouvimos uma sentena como Joo viu Maria, temos a

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    [37]

    habilidade de interpretar que, nessa frase, Joo a entidade que experiencia a viso, enquanto Maria o tema visto, o objeto da viso. Esses significados atribudos aos argumentos

    so denominados papis temticos, s vezes referidos como

    papis , com a letra grega theta. Notemos que a interpretao de experienciador no imanente ao nome Joo, bem como Maria no carreia em si necessariamente a interpretao de tema. Tais significados so associados a esses argumentos por

    intermdio de seu predicador, levando-se em conta o status do

    argumento como interno ou externo. Caso o item Maria seja selecionado como argumento externo, ento seu papel temtico

    ser experienciador (e no tema). Caso Joo seja selecionado como argumento interno, ento seu papel temtico ser tema (e

    no experienciador).

    Os papis temticos so traos inscritos nas

    propriedades de seleo de um item lexical predicador. Tais

    traos so relevantes para a interface conceitual da linguagem

    humana. Na figura 9, apontamos como as informaes relativas

    ao papel temtico de seus argumentos esto codificadas nos

    traos do item lexical ver.Na teoria lingustica, a expresso grade temtica refere-se justamente ao conjunto de

    especificaes dos papis temticos dos argumentos de um

    predicador.

    Item do lxico Traos formais

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    [38]

    ver . Categoria: V

    . + Predicador

    . Estrutura argumental: {DP; DP}

    . Grade temtica: {DP = experienciador; DP = tema}

    Figura 9: estrutura argumental e grade temtica do item ver.

    Uma caracterstica interessante dos papis temticos

    que eles so marcados nos argumentos de maneira

    composicional, isto , de acordo com a sequncia das operaes

    sintticas que unem, via merge, o predicador e seus argumentos.

    Como j dissemos, predicador e argumento interno estabelecem

    relao sinttica imediata. nesse merge que o papel temtico

    de tal argumento definido, conforme preveem as informaes

    do lxico. A partir desse momento, o predicador no far

    sozinho o merge com o seu argumento interno ou o seu

    argumento externo. Antes, o merge ser feito entre o composto

    do [predicador + argumento interno] e o segundo argumento do

    predicador. Nesse sentido, os traos semnticos do argumento

    interno so concatenados aos traos semnticos do predicador e

    ambos, juntos, associam uma interpretao semntica (papel

    temtico) ao argumento externo. essa composicionalidade

    que explica a diferena de interpretao temtica do argumento

    externo nas seguintes sentenas (assumindo-se que o predicador

    o mesmo nos dois casos).16

    16 Expresses como Joo cortou a rvore vs. Joo cortou o cabelo,

    semelhana das sentenas A roupa est lavando e O feijo ainda no cozinhou, evidenciam a alternncia de causatividade e/ou a manifestao da voz mdia nos verbos. Tais fenmenos so derivados da grade temtica

    dos respectivos predicadores e da tipologia sinttica da lngua portuguesa,

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    [39]

    (26) Joo tem muitos filhos. (27) Joo tem muitas dores.

    Quais papis so atribudos aos argumentos na interface

    conceitual-intencional da linguagem humana? H um grande

    nmero deles, afinal de contas tais papis refletem os diversos

    tipos de relaes semnticas que podem ser estabelecidas entre

    unidades conceituais. Vejamos a seguir uma lista com alguns

    papis temticos bastante recursivos entre as lnguas naturais.

    Papel temtico Interpretao semntica

    Agente Entidade que causa um evento.

    [Joo] chutou a bola.

    Experienciador Entidade que experiencia um evento.

    [Joo] ouviu um barulho.

    Tema Entidade objeto de um evento.

    Joo viu [Maria].

    Paciente Entidade que sofre um evento.

    [O marido] apanhou da mulher.

    mas no resultam imediatamente das informaes presentes nos traos

    lexicais, de modo que no podem ser descritos somente com base no acesso

    aos traos do lxico pelo sistema computacional conforme se descreve na

    exposio didtica que aqui se faz.

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    [40]

    Benefactivo Entidade beneficiada por um evento.

    Joo deu um presente para [Maria]

    Locativo Entidade em que se situa um evento.

    O aluno colocou o livro na [estante].

    Alvo Entidade em cuja direo ocorre um

    evento.

    Joo jogou as chaves para [Maria]

    Origem Entidade da qual parte um evento.

    O Joo veio de [casa].

    Instrumento Entidade com a qual se realiza um

    evento.

    Joo abriu a porta com [a chave].17

    Figura 10: estrutura lista de alguns papis temticos.

    Uma generalizao descritiva importante, j bastante

    explorada na teoria lingustica, diz respeito frequncia de

    distribuio entre o papel temtico dos argumentos e o status

    desses como complemento ou especificador de um predicador.

    17 O exemplo til para termos em mente que, no interior dos constituintes

    que so adjungidos a uma sentena, as relaes de seleo ocorrem naturalmente. O merge entre o sintagma [com a chave] e o construto [Joo

    abrir a porta] confere a [a chave] a interpretao de instrumento. O que se deve notar aqui que esse papel temtico no se inscreve nos traos de

    abrir, que s possui dois argumentos, mas, sim, inscreve-se nos traos de com, que adjungido ao composto do predicador e seus argumentos.

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    [41]

    Tal generalizao conhecida como hierarquia temtica. Esse

    conceito captura o fato de que, nas lnguas naturais, argumentos

    externos so tipicamente interpretados como

    agentes/experienciadores, enquanto o primeiro argumento

    interno normalmente tema/paciente do evento, ao passo que o

    valor semntico do segundo argumento interno quase sempre

    benefactivo/locativo. Assim, a hierarquia temtica indica-nos o

    fato emprico de que h uma forte correlao entre a posio

    sinttica de um argumento e o seu respectivo papel temtico.

    Argumento externo

    Agente/Experienciador

    P R E D I C A D O R

    Argumento Interno (1)

    Tema/Paciente Argumento Interno (2)

    Benefactivo/Locativo

    Figura 11: a hierarquia temtica.

    Tal correlao, como j sabemos, no deve ser tomada

    como causao. A depender da natureza semntica de um

    predicador, a hierarquia temtica pode no ser aplicada. Por

    exemplo, se um verbo em particular selecionar apenas um

    argumento externo e, em razo de seu significado especfico, tal

    argumento for interpretado como tema, teremos ento esse papel temtico sendo atribudo a um especificador, algo que

    violaria a hierarquia. A generalizao descreve, portanto, uma regularidade e, assim, no deve ser interpretada como um

    princpio ou uma lei, afinal, estamos descrevendo aspectos

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    [42]

    conceituais relacionados ao lxico, que j sabemos ser

    arbitrrio.18

    11. Subcategorias de V

    Deixando de lado, por um momento, a descrio dos

    traos do lxico conforme assumimos que estejam representados

    no conhecimento lingustico dos seres humanos e focalizando o

    instrumental descritivo da lingustica terica, apresentaremos

    agora o que se compreende como as subcategorias dos

    predicadores verbais.

    Elementos predicadores que possuem a categoria V

    podem ser agrupados, para efeitos descritivos, em trs

    subcategorias: verbos transitivos, verbos inergativos e verbos

    inacusativos. A subclasse dos transitivos compreende os

    predicadores verbais que selecionam argumento interno e

    argumento externo, enquanto os inergativos selecionam apenas

    argumento externo e os inacusativos, apenas argumento interno.

    Os verbos transitivos caracterizam-se como

    predicadores multiargumentais, j que selecionam um nmero

    mnimo de dois e mximo de trs argumentos. O clssico termo

    transitivo motivado pela interpretao semntica de que, tipicamente, o evento descrito pelos verbos dessa subcategoria

    trespassa do sujeito ao objeto e, tambm, pela propriedade de o

    argumento-tema desses verbos transitar entre a funo de objeto

    e de sujeito conforme a voz verbal (ativa, passiva ou mdia)

    18 Cabe indicar que alguns autores no interpretam a hierarquia temtica

    como uma regularidade dentre as idiossincrasias do lxico e assumem que

    ela decorre de operaes levadas a cabo pelo sistema computacional. Para

    uma introduo ao assunto, ver Canado (2003).

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    [43]

    configurada numa sentena.Vejamos exemplos de verbos

    transitivos.

    (28) [DP Joo] viu [DP Maria]. (29) [CP Correr pela manh] espanta [a preguia]. (30) [DP Joo] viu [CP que o quadro estava torto na

    parede].

    (31) [DP Joo] precisa [PP de Maria]. (32) [DP Joo] precisa de [CP que lhe deem ateno]. (33) [DP O aluno] colocou [DP o livro] [PP na estante]. (34) [DP Joo] considera [SC Maria inteligente].

    Em (28), o item ver seleciona um argumento externo DP e um argumento interno tambm DP. Na nomenclatura

    escolar clssica, verbos dessa subcategoria recebem o nome

    transitivo direto. Os transitivos diretos podem selecionar

    tambm CPs como argumento externo ou interno, como

    demonstram respectivamente as sentenas (29) e (30). Quando

    os transitivos selecionam PP como argumento interno, conforme

    se d em (31), so denominados transitivos indiretos, inclusive

    quando a esse PP segue-se um CP, como em (32).19

    O exemplo

    (33) ilustra verbos transitivos que selecionam dois argumentos

    internos, um DP e um argumento PP. Um item dessa subclasse

    chama-se bitransitivo, ou ditransitivo ou, ainda, transitivos

    direto e indireto. Por fim, a seleo de SC como argumento

    interno em (34) inscreve o verbo transitivo dentre os

    denominados transobjetivos.

    Os verbos inergativos e inacusativos assemelham-se

    entre si no fato de selecionarem somente um argumento, sendo,

    19 Verbos que selecionam argumento interno PP com valor semntico de

    circunstanciador, como acontece em Joo foi [ praia], distinguem-se dos transitivos indiretos sob o nome de transitivos circunstanciais.

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    [44]

    portanto, predicadores monoargumentais. A diferena entre eles

    , como j descrevemos, que os inergativos selecionam

    argumento externo, ao tempo que os inacusativos selecionam

    argumento interno. Entenderemos essa distino analisando o

    seguinte par de sentenas.

    (35) [DP Joo] sorriu. (36) [DP Joo] chegou.

    Percebemos que ambos os verbos selecionam somente

    um argumento DP. Tal semelhana, aliada ao fato de que o

    argumento precede o predicador nos dois casos, pode induzir ao

    erro de compreender tais verbos como pertencentes a uma

    mesma tipologia. Tal erro comum e h, a propsito, um nome

    para ele: intransitividade. muito comum que verbos

    inergativos e inacusativos sejam equivocadamente classificados,

    na descrio lingustica, como um tipo nico de verbo, o verbo

    intransitivo. Como evitar esse erro? Uma boa resposta :

    aprimorar nossa adequao observacional. Observemos algumas

    ocorrncias desses verbos.

    (37) [AGENTE Joo] sorriu. (38) [TEMA Joo] chegou. (39) * Sorrido o Joo, a festa comeou. (40) Chegado o Joo, a festa comeou.

    Notamos aqui que o papel temtico atribudo ao DP em

    (37) o de agente, que, de acordo com a hierarquia temtica, prototipicamente papel de argumentos externos. J em (38), o

    papel do DP tema, que a interpretao semntica normal de argumentos internos. Alm disso, reduzidas de particpio do

    tipo feito isso, comeada a aula, lido o captulo etc. s so

  • KENEDY, E. Lxico e computaes lexicais. IN: FERRARI-

    NETO, J. & SILVA, C. Programa minimalista em foco:

    princpios e debates. Curitiba, CRV. 2012. pp. 41-69.

    [45]

    licenciadas se o argumento do predicador na forma participial

    for concatenado, via merge, com o seu argumento interno, e

    nunca com o seu argumento externo. Percebemos isso na anlise

    dos seguintes pares: Joo fez isso: [feito isso] vs. [* feito Joo]; Joo comeou a aula: comeada a aula vs. [* comeado o Joo]; Joo leu o captulo: [lido o captulo] vs. [* lido o Joo]. Isso explica a agramaticalidade de (39), oposta ao

    licenciamento de (40). Ora, esses fatos empricos indicam que o

    argumento de um predicador como chegar assume o status de complemento, levando o verbo a ser caracterizado como

    inacusativo, por contraste ao comportamento do argumento do

    predicador sorrir, que assume as propriedades de especificador, fazendo que o item seja interpretado como

    inergativo. Mas qual a motivao para o uso dos termos

    inergativo e inacusativo? As lnguas humanas possuem essencialmente duas

    tipologias na marcao de Caso na categoria sinttica do sujeito:

    lnguas nominativas/acusativas e lnguas ergativas/absolutivas.

    No primeiro tipo, temos lnguas como o latim e, de forma muito

    reduzida, o portugus. Nessas lnguas, o sujeito recebe uma

    marca, a de nominativo, que se ope marca do objeto, o

    acusativo. Notamos isso na lngua portuguesa quando usamos

    certos pronomes.

    (41) [NOMINATIVO Eu] [ACUSATIVO os] encontrei na festa

    (42) [NOMINATIVO Eles] [ACUSATIVO me] encontraram na festa

    O pronome da primeira pessoa do singular se realiza

    como eu na funo do sujeito, e tal a sua forma nominativa, enquanto, na funo de objeto, assume a forma

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    [46]

    me, que a expresso do Caso acusativo e a mesma anlise descreve a oposio entre as formas eles e os. A marcao do sujeito como nominativo no depende do fato de o verbo selecionar ou no complemento. V-se isso no cotejo

    entre os exemplos acima, em que o predicador transitivo, com

    a sentena (43), em que o verbo monoargumental. Eu a forma do pronome-sujeito quando o seu predicador tem

    complemento e tambm quando no tem.

    (43) Eu sorri.

    Nesse respeito, o comportamento de lnguas com o

    sistema ergativo diferente. Nelas, estabelece-se diferena

    morfossinttica entre o argumento externo de um predicador

    transitivo por oposio ao argumento externo de um predicador

    monoargumental. O basco um exemplo de lngua da tipologia

    ergativa/absolutiva.

    (44) [ABSOLUTIVO Gizona] etorri da. (O homem chegou)

    (45) [ERGATIVO Gizonak] mutila ikusi du. (O homem viu o menino)

    O DP Gizona em (44) recebe o Caso absolutivo (com morfema zero) em virtude de ser o argumento externo de

    um predicador monoargumental (etorri, chegou). J em (45), o DP Gizonak recebe o Caso ergativo (com o morfema k) em razo de ser argumento externo de um predicador transitivo

    (mutila, viu). Quando tais marcaes no acontecem, isto , quando

    no h oposio entre o Caso do sujeito de um verbo transitivo e

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    NETO, J. & SILVA, C. Programa minimalista em foco:

    princpios e debates. Curitiba, CRV. 2012. pp. 41-69.

    [47]

    o de um verbo de um s argumento, dizemos que, no verbo

    monoargumental, no ocorre marcao da ergatividade. Pelo

    contrrio, d-se a inergatividade ou Caso inergativo a ausncia da distino. Vimos que o verbo monoargumental em

    (43) no distingue a forma do seu sujeito daquela verificada em

    (41), em que o verbo transitivo. Dessa forma, devemos

    considerar o predicador em (43) como inergativo.

    bom atentar para o fato de que o predicador em (41) e

    (42) no pode ser considerado inergativo, uma vez que possui

    mais de um argumento. Esse verbo caracteriza-se como

    transitivo e, como tal, ope a forma de seu sujeito (nominativo)

    de seu objeto (acusativo).

    Se, pelo que se exps, devemos interpretar que verbos

    que selecionam apenas argumento externo sejam inergativos,

    por que interpretamos que verbos que selecionam apenas

    argumento interno sejam inacusativos? A resposta a seguinte.

    Esses verbos no fazem a marcao do acusativo nos seus

    argumentos, da serem denominados inacusativos. A incapacidade de marcar o acusativo em seu complemento

    decorre do fato desse tipo de verbos monoargumentais no

    selecionarem especificadores (nominativos) como argumento.

    Trata-se de generalizao descritiva bastante importante. Se o

    verbo transitivo, ento ele ope nominativo a acusativo. J se

    ele s possui o argumento interno, ento a oposio perdida e

    o acusativo que seria marcado nesse complemento no o mais. Tais verbos licenciam o seu argumento interno com o

    Caso nominativo, conforme se v no exemplo abaixo.

    (46) Ele chegou.

    (47) * O chegou.

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    NETO, J. & SILVA, C. Programa minimalista em foco:

    princpios e debates. Curitiba, CRV. 2012. pp. 41-69.

    [48]

    Chegar um predicador monoargumental que seleciona argumento interno. Apesar de seu status de objeto, o

    complemento desse verbo no pode figurar na frase com o Caso

    acusativo, conforme evidencia a agramaticalidade de (47). Ele

    deve, ento, ser licenciado como o nominativo, tal como se d

    em (46). As razes e as computaes que levam ao

    licenciamento do argumento interno de um predicador com o

    Caso nominativo so exploradas em detalhes no captulo 4 deste

    livro. L sero analisadas as computaes da camada funcional

    das derivaes sintticas.

    12. Uma concluso: o Lxico na Teoria Lingustica

    O objetivo deste captulo foi apresentar como o lxico

    interage com o sistema computacional da linguagem na

    dinmica do funcionamento de uma Lngua-I. Analisamos aqui

    tanto os principais tipos de informaes que so codificadas no

    lxico, quanto a maneira pela qual o sistema computacional

    acessa e processa essas informaes no curso da derivao de

    sentenas. Com efeito, devemos finalizar a exposio tornando

    explcitas certas concepes epistemolgicas que, ao mesmo

    tempo, sustentam a concepo do lxico na teoria lingustica

    contempornea e implicam determinadas maneiras de conduzir a

    pesquisa nos estudos na linguagem no sculo XXI.

    Em primeiro lugar, reconhecemos que o lxico

    corresponde a uma grande frao do conhecimento lingustico

    humano. Essa grandeza diz respeito no s ao complexo de

    informaes que so carreadas pelos itens lexicais, mas tambm

    s relaes que o lxico estabelece com os demais componentes

    da linguagem e com o restante da cognio humana. O lxico

    possui instncias de interface com a memria de longo prazo,

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    NETO, J. & SILVA,