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Lições aos Meus Alunos - Vol. 2 - C. H. Spurgeon

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Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 2

LIÇÕES AOS MEUS ALUNOS (Vol. 2) [Clique na palavra ÍNDICE]

HOMILÉTICA E TEOLOGIA PASTORAL

C. H. SPURGEON

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS

Título original: Lectures To My Students

Tradução do original por: Odayr Olivetti

Primeira Edição em Português

1980

Contracapa:

Para muitos ministros do evangelho, mesmo ainda hoje, Charles

Haddon Spurgeon foi um dos maiores pregadores de todos os tempos.

Por que esta avaliação? Se quisermos compreender melhor seu grande

sucesso, então nada melhor que ler esta segunda parte de Lições aos

Meus Alunos – preleções dadas nas sextas-feiras à tarde àqueles que

estudavam em sua Escola Bíblicas (The Pastors' College).

O presente volume contém treze capítulos da obra Lectures To My

Students, talvez a mais conhecida de todas as publicações do "príncipe

dos pregadores". Que Deus abençoe estas "Lições" como o fez quando

originalmente elas foram proferidas é a oração dos que as publicam na

língua portuguesa.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 3

ÍNDICE

1. A Auto-vigilância do Ministro..............................................3

2. O Chamado para o Ministério...........................................25

3. Oração Particular do Pregador.........................................53

4. Oração em Público...........................................................69

5. O Conteúdo do Sermão....................................................93

6. A Escolha do Texto.........................................................109

7. A Arte de Espiritualizar...................................................132

8. A Voz..............................................................................150

9. Atenção...........................................................................175

10. A Capacidade de Falar de Improviso.............................194

11. As Crises de Desânimo do Ministro...............................214

12. A Conversação Comum do Ministro...............................231

13. Aos Obreiros Mal Equipados..........................................244

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 4

A AUTO-VIGILÂNCIA DO MINISTRO

"Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina" 1 Tim. 4:16.

Todo trabalhador sabe que deve manter as suas ferramentas em bom

estado, pois, "se estiver embotado o ferro, e não se afiar o corte, então se

devem pôr mais forças". Se a enxó do operário perder o corte, ele sabe

que terá que despender mais energia, ou então o seu trabalho será mal

feito. Miguel Ângelo, o eleito das betas artes, entendia tão bem a

importância dos seus instrumentos de trabalho, que sempre fazia com as

próprias mãos os seus pincéis, e com isto nos dá uma ilustração do Deus

da graça que, com especial cuidado, modela pessoalmente todos os

verdadeiros ministros da Palavra.

É certo que o Senhor, como Quintín Matsys na história do bom

artífice de coberturas de Antuérpia, pode trabalhar com a mais defeituosa

espécie de instrumentalidade, como acontece quando ocasionalmente faz

com que uma pregação bastante estulta seja útil para a conversão de

pecadores. Ele pode agir até mesmo sem intermediários, como quando

salva pessoas sem usar nenhum pregador, aplicando a Palavra

diretamente por Seu Espírito Santo. Mas não podemos considerar os atos

absolutamente soberanos de Deus como uma regra para a nossa ação. No

caráter absoluto do Seu Ser, Deus pode agir como bem lhe apraz, mas

nós temas que agir conforme as instruções mais claras que Ele nos dá em

Suas dispensações. É um fato bastante evidente este, que geralmente o

Senhor adapta os meios aos fins, o que nos dá a lição de que temos mais

probabilidade de realizar o máximo quando estamos nas melhores

condições espirituais. Ou, em outras palavras, geralmente fazemos

melhor a obra do Senhor quando os nossos dons e graças estão em boa

ordem, e o trabalho sai pior quando aqueles dons e graças estão

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 5

desordenados. Esta é uma verdade prática para nossa orientação. Quando

o Senhor faz exceções, estas apenas confirmam a regra.

Em corto sentido, somos as nossas próprias ferramentas, e,

portanto, precisamos manter-nos em ordem. Se quero pregar o

evangelho, só posso usar a minha própria voz; daí, devo aprimorar as

minhas virtudes vocais. Só posso pensar com o meu cérebro, e sentir

com o meu coração; portanto, devo educar as mInhas faculdades

intelectuais e emocionais. Só posso chorar e agonizar pelas almas com a

minha própria natureza renovada; portanto, devo manter vigilantemente

a ternura que havia em Cristo Jesus. Ser-me-á vão suprir minha

biblioteca, ou organizar sociedades, ou fazer planos, se eu negligenciar o

cultivo de mim mesmo; pois livros, agências e sistemas só remotamente

são instrumentos da minha santa vocação.

Meu espírito, alma e corpo são os meus mecanismos mais à mão

para o serviço sagrado; as minhas faculdades espirituais e a minha vida

interior são o meu machado de combate, as minhas armas de guerra.

McCheyne, escrevendo a um colega de ministério que estava no exterior

com vistas a aperfeiçoar os seus conhecimentos do idioma alemão,

empregou linguagem idêntica à nossa. Escreveu ele: "Sei que você se aplicará arduamente ao alemão, mas não se esqueça

de cultivar o homem interior – quero dizer, o coração. Quão diligentemente o oficial da cavalaria conserva limpo e afiado o seu sabre; qualquer mancha ele a remove com o maior esmero. Lembre-se de que você é a espada de Deus. É Seu instrumento – espero, vaso escolhido para Ele, para levar o Seu nome. Em grande medida, o sucesso será de acordo com a pureza e perfeição do instrumento. Deus abençoa não tanto a talentos, como à semelhança com Jesus. O ministro santo é temível arma na mão de Deus".

Estar o arauto do evangelho espiritualmente fora de ordem em sua

pessoa é, tanto para ele como para o seu trabalho, uma calamidade das

mais graves. Contudo, irmãos, com que facilidade se produz esse mal, e

com que vigilância devemos prevenir-nos contra ele! Um dia, viajando

pelo expresso de Perth a Edimburgo, de repente o trem parou

bruscamente porque um parafusinho de nada de um dos motores se

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quebrara – sendo que toda a locomotiva compõe-se virtualmente de dois

motores. Quando partimos de novo, fomos obrigados a arrastar-nos

lentamente apenas com uma biela de pistão funcionando, em vez de

duas. Somente se perdera um pequeno parafuso. Se ele tivesse ficado em

ordem, o trem teria prosseguido velozmente em seu caminho de ferro,

mas a ausência de uma diminuta peça de ferro desarrumou tudo.

Conta-se que nas ferrovias dos Estados Unidos um trem parou por

causa de insetos que penetraram nas caixas de graxa dos eixos do

comboio. A analogia é perfeita. Uma pessoa em todos os demais

aspectos habilitada para ser útil pode, por algum defeito diminuto, ser

extremamente prejudicada, ou até tornar-se inútil por completo. Um

resultado desses é em extremo ruinoso, uma vez que está associado ao

evangelho que, no sentido supremo, é adequado a produzir os maiores

resultados. É terrível quando um ungüento perde a sua eficácia devido ao

trapalhão que o aplica. Todos vocês sabem dos efeitos nocivos

produzidos muitas vezes na água quando passa por canos ruins; assim

também o próprio evangelho, passando através de homens

espiritualmente doentios, pode ser aviltado a ponto de se tornar nocivo

aos ouvintes. É de temer que a doutrina calvinista se torne um ensino

muito danoso quando exposta por homens de vida ímpia, e apregoada

como se fosse um manto para a licenciosidade. O arminianismo, por

outro lado, com a sua ampla extensão do oferecimento de misericórdia,

poderá causar o mais sério dano às almas, se o tom descuidado do

pregador levar os ouvinte a acreditarem que são capazes de arrepender-

se quando bem quiserem. Com isso, pois, a mensagem do evangelho não

implica em nenhuma urgência. Além disso, quando o pregador é pobre

de graça, qualquer benefício permanente que poderia resultar do seu

ministério em geral será fraco e completamente desproporcional ao que

se poderia esperar.

Muita semeadura seguir-se-á de escassa colheita. O interesse pelos

talentos será inapreciavelmente pequeno. Em duas ou três batalhas em

que fomos derrotados na recente guerra americana, diz-se que o

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resultado deveu-se à má qualidade da pólvora entregue por certos

pseudo-fornecedores contratados pelo exército, de modo que os

canhoneios não produziram efeito. Pode acontecer o mesmo conosco.

Podemos errar o alvo, perder a nossa finalidade, o nosso objetivo, e

desperdiçar o tempo, por não possuirmos dentro de nós a verdadeira

força vital ou por não a possuirmos na medida em que, compativelmente,

levaria Deus a abençoar-nos. Cuidem para não serem pseudo-pregadores.

Um dos nossos primeiros cuidados deve ser que nos mesmos

sejamos homens salvos.

Que um mestre do evangelho seja antes um participante dele é

verdade simples, mas ao mesmo tempo é uma regra da mais ponderável

importância. Não estamos entre os que aceitam a sucessão apostólica de

jovens simplesmente porque a supõem. Se a experiência pedagógica

deles for mais de vivacidade do que de espiritualidade, se as suas honras

se ligam aos exercícios atléticos e não a trabalhos para Cristo, exigimos

prova de natureza diversa das que eles estão capacitados para apresentar-

nos. Nenhuma soma paga a título de honorários a cultos doutores do

saber, e nenhuma soma de conhecimentos clássicos recebidos em troca,

nos parecem evidência da vocação do alto. A verdadeira piedade é

necessária como o primeiro requisito indispensável. Seja qual for a

"vocação" que um homem simule possuir, se não foi vocacionado para a

santidade, certamente não foi vocacionado para o ministério.

"Arruma-te primeiro, e depois enfeita o teu irmão", dizem os

rabinos. "A mão", diz Gregório, "que tenciona limpar a outrem, deve

estar limpa." Se o seu sal for insípido, como pode dar sabor a outros? A

conversão é uma sine qua non em um ministro – uma condição

indispensável. Vós, que aspirais aos nossos púlpitos, "necessário vos é

nascer de novo". Tampouco deve ser presumida a posse desta primeira

qualidade, pois existe grande possibilidade de estarmos enganados sobre

se somos ou não convertidos.

Creiam-me, não é brincadeira infantil "fazer cada vez mais firme a

vossa vocação e eleição". O mundo está repleto de limitações, e está

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apinhado de alcoviteiros do amor-próprio carnal, que cercam o ministro

como abutres em volta de uma carcaça. Nossos corações são enganosos,

de sorte que a verdade não está na superfície, mas tem que ser arrancada

do poço mais profundo. Devemos sondar-nos a nós mesmos com ávido

interesse e de modo completo, para não suceder que, tendo de alguma

forma pregado a outros, não venhamos a ficar reprovados.

Que corsa horrível, ser pregador do evangelho e, todavia, não estar

convertido! Cada qual sussurre consigo mesmo no íntimo de sua alma:

"Que coisa terrível seria para mim, se eu ignorasse o poder da verdade

que me estou preparando para proclamar!" O ministério exercido por um

inconverso envolve relações das mais antinaturais. Um pastor destituído

da graça é semelhante a um cego eleito professor de ótica, que faz

filosofia sobre a luz e a visão, comentando e distinguindo para outros os

belos sombreados e as delicadas combinações das cores prismáticas,

enquanto ele mesmo está absolutamente em trevas! É um mudo elevado

à cátedra de música; um surdo a falar sobre sinfonias e harmonias! Uma

toupeira pretendendo criar filhotes de águias; um molusco eleito

presidente de anjos!

A esse tipo de relação poder-se-iam aplicar as metáforas mais

absurdas e grotescas, se o assunto não fosse tão solene. É uma tremenda

posição para um homem ocupar, pois ao fazê-lo está se comprometendo

com uma obra para a qual está inteiramente, completamente, totalmente

desqualificado, mas de cujas responsabilidades sua falta de habilitação

não o resguarda, porque ele as assumiu voluntariamente. Sejam quais

forem os seus dons naturais, sejam quais forem os seus poderes mentais,

estará completamente fora do páreo para a obra espiritual se não tiver

vida espiritual. E será seu dever interromper o ofício ministerial

enquanto não receber esta qualificação, que é a primeira e a mais básica

de todas.

O ministério exercido por inconversos pode ser igualmente terrível

noutro sentido. Se o homem não for realmente comissionado, que infeliz

é esta posição para ele! Que poderá achar na experiência das pessoas sob

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o seu cuidado pastoral que o possa confortar? Como haverá de sentir-se

quando escutar o clamor dos arrependidos, ou quando ouvir as suas

dúvidas repassadas de ansiedade e os seus graves temores? Ficará

espantado ao pensar que as suas palavras deveriam se adequadas àquela

necessidade aguda! A palavra de um homem não convertido pode ser

abençoada para a conversão de almas, desde que o Senhor, embora

repudie ao homem, continue honrando a Sua verdade. Como há de ficar

perplexo o homem, quando consultado sobre dificuldades de cristãos

amadurecidos! No caminho da experiência, pelo qual são conduzidos os

seus ouvintes regeneradas, ele mesmo só poderá sentir-se um completo

fracasso. Como poderá captar as alegrias dos que estão em seus eleitos

de morte, ou participar da comunhão fervorosa dos crentes à mesa do

Senhor?

Em muitos casos de jovens empregados numa profissão que não

podem agüentar, correm eles a engajar-se na marinha, preferindo isso a

seguir uma ocupação penosa. Mas, para onde fugirá aquele que treinou

para dedicar-se a vida toda a esta santa vocação, e, contudo, é

completamente alheio ao poder da vida piedosa? Como poderá

diariamente exortar que os homens venham a Cristo, enquanto ele

mesmo é estranho ao Seu amor que O levou à morte sacrificial? Ó

senhores, seguramente isto só pode ser uma escravidão perpétua. Tal

homem certamente odiará a simples visão de um púlpito, tanto quanto

um escravo das galés odeia o remo.

E quão imprestável há de ser um homem desses! Cabe-lhe guiar

viajores ao longo de uma estrada que ele nunca percorreu, navegar por

uma costa da qual não conhece nenhuma das balizas orientadoras! É

chamado para instruir a outros, sendo ele mesmo um tolo. Que é que ele

pode ser, senão uma nuvem sem chuva, uma árvore que só tem folhas?

Como quando uma caravana no deserto, com todos sedentos e quase

morrendo assados ao sol, chega à tão desejada fonte e – horror dos

horrores! – encontra-a sem uma gota d'água, assim, quando almas

sedentas de Deus chegam a um ministério carente da graça, ficam prestes

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a perecer porque não acham ali a água da vida. É melhor abolir os

púlpitos do que enchê-los de homens que não têm conhecimento

experimental daquilo que ensinam.

Ah! o pastor não regenerado vem a ser terrivelmente nocivo

também, pois, de todas as causas produtoras de infidelidade, os ministros

carentes de vida piedosa devem ser classificados entre as primeiras. Li

outro dia que nenhum aspecto do mal já apresentou tão extraordinário

poder de destruição como o ministro não convertido de uma paróquia

que contava com um órgão caríssimo, um coro composto de cantores

ímpios, e membros de uma igreja aristocrática. A opinião do escritor era

que não poderia haver maior instrumento de condenação do que isso,

fora do inferno. As pessoas vão para o seu local de culto, sentam-se

comodamente e se acham cristãs, quando o tempo todo, tudo aquilo em

que a sua religião consiste resume-se em ouvir um orador, sentir cócegas

nos ouvidos, feitas pela música, e talvez ter os olhos divertidos por

atitudes graciosas e maneiras elegantes, sendo o conjunto todo nada

melhor do que o que ouvem e vêem na ópera – talvez não tão bom,

quanto à beleza estética, e nem um átomo mais espiritual. Milhares se

congratulam, e até bendizem a Deus por serem Seus devotos adoradores

quando, ao mesmo tempo, vivem numa condição de não regenerados,

sem Cristo, tendo a forma da piedade mas negando o poder dela. Quem

dirige um sistema que não visa a nada mais elevado que o formalismo, é

muito mais servo do diabo do que ministro de Deus.

Um pregador meramente formal já é nocivo enquanto preserva o

seu equilíbrio externo, mas como não possui o equilíbrio da piedade que

poderia preservá-lo, mais cedo ou mais tarde é quase certo que cometerá

um erro em seu caráter moral, e em que posição fica ele neste caso!

Como Deus é blasfemado! E como o evangelho sofre abusos!

É terrível considerar que morte espera tal homem! E qual será a

sua condição posterior! O profeta retrata o reí da Babilônia descendo ao

inferno, e todos os reis e príncipes que ele tinha destruído, e cujas

capitais tinha assolado, erguendo-se dos seus lugares no inferno e

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saudando o tirano caído com o cortante sarcasmo: "Tu também adoeceste

como nós, e foste semelhante a nós" (Is. 14:10). E vocês não podem

imaginar um homem que foi ministro, mas que viveu sem Cristo no

coração, indo para o inferno, e todos os espíritos em prisão que

costumavam ouvi-lo, e todos os ímpios da sua igreja, levantando-se e lhe

dizendo em tom amargo: "Tu também te fizeste como nós? Médico, não

te curaste a ti mesmo? Tu, que te proclamavas ser brilhante luz, lançado

nas trevas para sempre?" Ah! se alguém tem que se perder, que não seja

desse jeito! Perder-se à sombra de um púlpito é terrível, mas quanto mais

terrível é perecer havendo ocupado o púlpito!

No tratado de John Bunyan intitulado "Suspiros do Inferno" (Sighs

from Hell) há uma temível passagem que muitíssimas vezes ressoa em

meus tímpanos: "Quantas almas foram destruídas por causa da ignorância de clérigos

cegos? Pregação que não era melhor para as suas almas do que veneno de rato para o corpo. É de temer que muitos deles tenham que responder por cidades inteiras. Ah! amigo, digo-te, tu que te incumbiste de pregar ao povo, pode ser que não consigas sequer falar aquilo de que te incumbiste. Não te doerá ver toda a tua igreja ir atrás de você para o inferno? – e a clamar: "Isto devemos agradecer-te. Tiveste medo de falar-nos dos nossos pecados, para que acaso não continuássemos metendo comida suficiente na tua boca. Ó ente vil e maldito, que não te contentaste, guia cego como foste, em cair tu mesmo no fosso, mas também nos arrastaste contigo para o mesmo lugar!"

Richard Baxter, em sua obra, Reformed Pastor, em meio a muitas

outras coisas profundas, escreve como se segue: "Tenham cuidado consigo mesmos, para que não estejam vazios

daquela graça salvadora de Deus que oferecem a outros, e não sejam estranhos àquela obra eficaz efetuada por aquele evangelho que pregam; e para não acontecer que, enquanto proclamam ao mundo a necessidade de um Salvador, os seus próprios corações O negligenciem', e lhes falte interesse por Ele e por Seus benefícios salvíficos. Tenham cuidado consigo mesmos, para que você não pereçam enquanto chamam a atenção de outros a que se cuidem para não perecerem, e para que vocês não morram de fome enquanto prepararam alimento para eles. Embora haja uma promessa aos que a muitos converteram à justiça, promessa de que

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refulgirão como as estrelas (Dn. 12:3), é feita com a suposição de que eles mesmos foram guiados primeiro a ela. Promessas desse tipo são feitas coeteris paribus, et suppositis supponendis (com a união dos iguais e com as suposições que se devem fazer). Sua própria sinceridade na fé constituí a condição da sua glória considerada simplesmente, embora os seus grandes labores ministeriais sejam uma condição da promessa de maior glória a eles.

"Muitos que advertiram a outros a fim de que não 'venham para este lugar de tormento', eles próprios se precipitaram para lá. Muito pregador que cem vezes conclamou os seus ouvintes a empregarem o máximo cuidado e diligência para escaparem ao inferno, lá está. Pode alguma pessoa razoável imaginar que Deus salvaria homens por oferecerem a salvação a outros, enquanto eles mesmos a recusaram, e por dizerem a outros as verdades que eles mesmos negligenciaram e das quais abusaram? Muito alfaiate que confecciona custosos trajes para outros, veste-se de andrajos; e muito cozinheiro mal lambe os dedos, apesar de ter preparado para outros os pratos mais caros.

"Acreditem, irmãos, Deus nunca salvou ninguém por ser pregador, nem por ter sido pregador capaz; mas porque foi um homem justificado, santificado e, conseqüentemente, fiel no serviço do seu Mestre e Senhor. Portanto, tenham cuidado consigo mesmos primeiro, para que sejam aquilo que procuram persuadir outros a serem, creiam naquilo em que procuram diariamente persuadir outros a crerem, e tenham acolhido no seu próprio coração aquele Cristo e aquele Espírito Santo que oferecem a outros. Aquele que lhes ordenou que amem o próximo como a si mesmos, ordenou implicitamente que se amem a si próprios e não destruam nem a si mesmos nem aos outros".

Meus irmãos, permitam que estas pesadas considerações produzam

o devido efeito em vocês. Certamente não há necessidade de acrescentar

nada mais. Deixem-me, porém, rogar-lhes que se examinem a si

mesmos, e assim façam bom uso daquilo que lhes foi dirigido.

Estabelecido o primeiro ponto da verdadeira religião, segue-se em

importância para o ministro, em segundo lugar, que a sua piedade seja

vigorosa.

O ministro não deve se contentar em estar no mesmo nível dos

soldados rasos das fileiras cristãs; tem que ser um crente amadurecido e

adiantado, pois o ministério de Cristo tem sido com acerto denominado

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 13

"Sua escolha mais seleta, o eleito da Sua eleição, uma igreja extraída da

Sua igreja". Se o ministro fosse chamado para uma posição comum e

para um trabalho comum, talvez a graça comum pudesse satisfazê-lo,

apesar de que mesmo então seria uma satisfação indolente. Sendo,

porém, eleito para trabalhos extraordinários, e chamado para um lugar

em que há perigos fora do comum, ele deve aspirar avidamente a posse

daquela força superior que é única e adequada ao seu oficio. O pulso da

sua religiosidade vital deve bater forte e com regularidade; os olhos da

sua fé devem ser brilhantes; os pés da sua resolução devém ser firmes; as

mãos da sua atividade devem ser ágeis; todo o seu ser interior deve estar

no mais alto grau de sanidade.

Dizem que os egípcios escolhiam os seus sacerdotes dentre os seus

filósofos mais doutos, e depois os tinham em tão alta estima que dentre

eles escolhiam os seus reis. Exigimos que os ministros de Deus sejam a

nata de todos os que formam nos exércitos de Cristo. Homens tais que,

se a nação quisesse reis, não poderia fazer melhor do que elevá-los ao

trono. Os nossos homens de pequeno poder mental, muito tímidos,

carnais e de personalidade mal equilibrada não prestam como candidatos

ao púlpito. Há alguns trabalhos que jamais devemos confiar a inválidos

ou deformados. Um homem pode não ser qualificado para trepar em

altos edifícios. Seu cérebro pode ser fraco demais, e o trabalho em

lugares altos pode colocá-lo em grande perigo. Faça-se tudo para mantê-

lo no chão e para achar-lhe uma ocupação em que um cérebro estável

seja menos importante.

Há irmãos que têm análogas deficiências espirituais. Não podem ser

chamados para um serviço proeminente e elevado porque têm cabeça

fraca. Se lhes fosse permitido obter um pouco de sucesso, ficariam

intoxicados com a vaidade – vício comum entre os ministros, e, de todas

as coisas, a que menos lhes convém, e a que com maior certeza lhes

assegura a queda. Se como nação fôssemos chamados a defender as

nossas casas e os nossos lares, não enviaríamos nossos meninos e

meninas com espadas e armas de fogo a enfrentar o inimigo, tampouco a

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 14

igreja pode enviar todo noviço verboso ou zelote sem experiência a

batalhar pela fé. O temor do Senhor há de ensinar sabedoria ao jovem,

ou, do contrário, ser-lhe-á vedado o pastorado. A graça de Deus há de

amadurecer o seu espírito, ou seria melhor que esperasse até ser-lhe dado

poder do alto.

O mais elevado caráter moral deve ser mantido com a máxima

diligência. Muitos que são ótimos membros de igreja não são

qualificados para exercer ofício na igreja. Tenho opiniões rígidas quanto

a cristãos que caíram em pecado grosseiro. Regozijo-me de que possam

ter se convertido de verdade, e que, com uma mistura de esperança e

cautela, sejam recebidos à comunhão da igreja. Mas questiono, e

questiono com seriedade, se um homem que pecou escandalosamente

deve ser logo restaurado ao púlpito.

Como observa John Angell James: "Quando um pregoeiro da justiça se detém no caminho dos pecadores,

nunca deverá tornar a abrir os lábios na grande congregação, enquanto o seu arrependimento não for tão notório como o seu pecado".

Que os que foram tosquiados pelos filhos de Amom esperem em

Jericó até que as suas barbas cresçam. Muitas vezes isso tem sido usado

como um insulto a jovens imberbes, a quem evidentemente não se

aplica; é uma metáfora bem precisa referente a homens sem honra e sem

caráter, seja qual for a sua idade. Lastimável! A barba da reputação uma

vez raspada, dificilmente cresce de novo. A imoralidade praticada

abertamente, na maioria dos casos, por mais profundo que seja o

arrependimento, é um sinal fatal de que as graças ministeriais nunca

estiveram no caráter desse homem. A mulher de César deve estar fora de

qualquer suspeita, e é preciso que não corram fetos boatos sobre a

inconsistência ministerial do passado, se não, será débil a esperança de

uma valiosa prestação de serviço. Na igreja esses que caíram devem ser

recebidos como penitentes, e no ministério poderão ser recebidos se

Deus os colocar lá. Minha dúvida não é sobre isso, mas é se Deus

realmente os colocou lá. E minha convicção é que devemos ser muito

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 15

lentos em ajudar a voltarem para o púlpito homens que, tendo sido

provados uma vez, mostraram possuir pouquíssima graça para agüentar o

teste crucial da vida ministerial.

Para alguns serviços não escolhemos ninguém senão os fortes. E

quando Deus nos chama para o labor ministerial, devemos esforçar-nos

para obter graça para que sejamos fortalecidos com vistas a habilitar-nos

para a nossa posição, e não sejamos simples novatos arrastados pelas

tentações de Satanás, para prejuízo da igreja e para a nossa própria ruína.

Temos que manter-nos equipados com toda a armadura de Deus, prontos

para corajosas proezas não esperadas de outros. Para nós, a abnegação, a

renúncia, a paciência, a perseverança, a resignação, têm que ser virtudes

postas em prática todo dia, e quem é suficiente para estas coisas? Temos

necessidade de viver bem perto de Deus, se queremos ser aprovados em

nossa vocação.

Recordem-se, como ministros, de que toda a sua vida,

especialmente toda a sua vida pastoral, será afetada pelo vigor da sua

piedade. Se o seu zelo se amortecer, vocês não orarão bem no púlpito,

orarão pior no seio da família, e pior ainda a sós, no gabinete pastoral.

Quando a sua alma se empobrece, os seus ouvintes, sem que saibam

como e por que, acharão que as suas orações em público têm pouco

sabor para eles. Sentirão a sua aridez possivelmente antes de vocês a

perceberem. Em seguida, os seus discursos denunciarão o seu declínio.

Poderão pronunciar palavras tão bem escolhidas e sentenças tão bem

coordenadas como antes, mas haverá perceptível perda de poder

espiritual.

Poderão sacudir-se como noutros tempos, exatamente como

aconteceu com Sansão, mas verão que a sua grande força ter-se-á

retirado. Em sua comunhão diária com os da sua igreja, não se

demorarão a notar a crescente decadência dos seus dons e graças. Olhos

perspicazes verão antes de vocês os cabelos grisalhos aqui e ali. Basta

que um homem seja atacado de uma enfermidade do coração para que

todos os males o envolvam – o estômago, os pulmões, as entranhas, os

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 16

músculos e os nervos padecerão todos. Assim, basta que um homem

fique com o coração enfraquecido nas coisas espirituais para que bem

depressa a sua vida toda sinta a influência debilitante.

Além disso, como resultado da sua decadência, cada um dos seus

ouvintes sofrerá em maior ou menor grau. Os vigorosos dentre eles

superarão a tendência depressiva, mas os mais fracos serão gravemente

prejudicados. Acontece conosco e com os nossos ouvintes o que

acontece com. os relógios de uso pessoal e com os relógios públicos. Se

o nosso relógio não estiver certo, muito pouca gente, além de nós

mesmos, sofrerá com o engano, mas se o do edifício dos Horse Guards,

de Londres, ou o do Observatório de Greenwich, estiver errado, a metade

de Londres ficará desorientada. Assim com o ministro. Ele é o relógio da

comunidade. Muitos conferem a sua hora com ele e, se ele for incorreto,

todos andarão erradamente, uns mais outros menos, e em grande medida

ele terá que responder por todos os pecados que ocasiona. Não podemos

agüentar sequer pensar nisso, meus irmãos. Não deve nos dar

confortadora consideração nem por um momento, e, contudo, temos que

dar-lhe atenção para proteger-nos contra esse mal.

Devemos lembrar-nos também de que precisamos ter piedade

deveras vigorosa porque o perigo que enfrentamos é muito maior do que

o que os outros enfrentam. De modo geral, nenhuma posição é tão

assaltada pelas tentações como o ministério da Palavra. A despeito da

idéia popular de que a nossa vocação é um refúgio abrigado da tentação,

a verdade é que os perigos que nos cercam são mais numerosos e mais

insidiosos dos que cercam os cristãos em geral. A nossa posição pode ser

um terreno vantajoso quanto à altura, mas essa altura é perigosa, e para

muitos o ministério revelou-se uma rocha tarpeiana.*

Se me perguntarem quais são essas tentações, talvez não dê tempo

para particularizá-las, mas entre elas há as mais grosseiras e as mais

refinadas. As mais grosseiras são tentações como a do desregramento à

* Rochedo de onde eram precipitados os criminosos em Roma. Nota do tradutor.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 17

mesa, a da adulação dos que possuem superabundância de bens no seio

de um povo hospitaleiro, as tentações da carne, incessantes com os

jovens solteiros, que se vêem nas alturas no meio de uma multidão de

jovens admiradoras. Chega disto, porém. Sua observação logo lhes

revelará mil laços, a menos que os seus olhos sejam cegos de fato. Além

desses, há outros laços secretos, dos quais temos menos facilidade de

escapar. E o pior destes é a tentação do ministerialismo – tendência de

ler as nossas Bíblias como ministros, de orar como ministros, de aplicar-

nos a fazer tudo o que constitui a nossa religião, não como sendo nós

mesmos, pessoalmente, mas só relativamente interessados naquilo tudo.

Perder o caráter pessoal do arrependimento e da fé é sofrer uma perda

real. "Homem nenhum", diz John Owen, "prega bem o seu sermão a

outros se o não pregar primeiro ao seu próprio coração."

Irmãos, é eminentemente difícil ater-nos a isso. O nosso oficio, em

vez de ajudar a nossa vida piedosa, como alguns afirmam, torna-se um

dos seus mais sérios empecilhos, devido à maldade da nossa natureza;

pelo menos, eu penso assim. Como a gente esperneia e luta contra o

oficialismo! Todavia, com que facilidade ele nos bloqueia, como uma

vestimenta comprida que se enrosca nos pés do corredor e o impede de

correr. Acautelem-se, caros irmãos, contra isso e contra todas as outras

seduções que assediam a sua carreira; e, se vocês têm agido assim até

agora, continuem vigilantes até á última hora da vida.

Assinalamos apenas um dos perigos, mas, na verdade, são uma

legião. O grande inimigo das almas esmera-se em não deixar pedra sem

revirar no afã de arruinar o pregador. "Cuidem-se", diz Baxter, "porque o tentador fará a sua primeira e mais

mordaz investida contra vocês. Se vocês forem os líderes contra ele, ele não os poupará nem um pouco além da medida da restrição que Deus lhe impõe. Ele sustenta contra vocês o máximo da sua maldade porque estão empenhados em causar-lhe o maior dano. Assim como odeia a Cristo mais que a qualquer de nós, porque Ele é o "comandante-em-chefe" e o "capitão da nossa salvação", e faz muito mais que o mundo inteiro contra o reino das trevas, assim põe mais atenção nos líderes subordinados a Cristo que aos

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 18

soldados rasos, por semelhante motivo, guardadas as devidas proporções. Ele sabe muito bem a derrota que poderá impor aos restantes, se os líderes caírem à vista deles. Por longo tempo ele tem usado esta forma de pelejar, "nem com pequenos, nem com grandes", relativamente falando mas dirige-se especialmente aos grandes, conforme está escrito: 'Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho se dispersarão'. E por este meio tem conseguido tal sucesso, que continuará a usá-lo enquanto puder.

"Tenham cuidado, pois, irmãos, porquanto o inimigo os fita com um olhar especial. Vocês sofrerão as suas insinuações mais sutis, solicitações incessantes e assaltos violentos. Por mais sábios e instruídos que sejam, cuidem-se, para que ele não lhes sobrepuje o engenho. O diabo é mais douto que vocês, e contendor mais esperto; pode transfigurar-se em "anjo de luz" para enganar. Ele dominará vocês e levar-vos-á por onde quiser antes que se dêem conta; bancará ilusionista com vocês, sem ser percebido, e vos logrará, fazendo-vos perder a fé ou a inocência, e vocês nem saberão que a perderam; pelo contrário, fará com que creiam que ela se multiplicou ou cresceu, quando na verdade foi perdida. Vocês não enxergarão nem a vara nem o anzol, e muito menos o pescador sutil, enquanto ele oferece a sua isca. E as suas iscas serão tão adequadas ao temperamento e à disposição de vocês, que terá certeza de colher vantagem no vosso íntimo, fazendo com que os vossos princípios e inclinações vos traiam; e sempre que vos arruinar, fará de vocês instrumentos da vossa própria ruína. Oh, que vitória ele fica rememorando, se consegue tornar um ministro ocioso e infiel; se pode fazer um ministro cair na tentação da cobiça ou de um escândalo! Ele se ufanará contra a igreja. e dirá: 'Estes são os teus santos pregadores; vês qual é a virtude deles, e para onde ela os levará'.

"Ele se ufanará contra o próprio Senhor Jesus Cristo, e dirá: 'São estes os teus campeões! Posso fazer com que os Teus principais servos Te desonrem; posso tornar infiéis os mordomos da Tua casa'. Se ele insultou tanto a Deus baseado numa falsa suspeita, e Lhe disse que podia levar Jó a blasfemar dEle na Sua lace (Jó 1:2), que faria se deveras prevalecesse contra nós? E finalmente insultará o mais que puder, achando que poderá levar vocês a serem falsos para com a sua grande incumbência, a desonrar a sua santa profissão, e a prestar grande serviço àquele que foi seu inimigo. Oh! não gratifiquem tanto a Satanás! Não deixem que faça tanta troça. Não deixem que os use – como os filisteus usaram Sansão – primeiro privando-

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 19

os da sua força; depois, arrancando-lhes os olhos; e fazendo-os, assim, objeto do triunfo e da zombaria dele".

Ainda uma palavra. Temos que cultivar o mais alto grau de

religiosidade autêntica porque o nosso trabalho exige isto

imperiosamente. O labor do ministério cristão é executado na exata

proporção do vigor da nossa natureza renovada. Nosso trabalho só é bem

feito quando nós estamos bem. Como o trabalhador é, assim será o seu

trabalho. Enfrentar os inimigos da verdade, defender os baluartes da fé,

governar bem a casa de Deus, consolar todos os que choram, edificar os

santos, orientar os que andam perplexos, tolerar os insolentes, conquistar

almas e nutri-las – todas estas obras e outras mil não são para um João

Fraco da Mente, nem para um José É Já Que Paro, mas estão reservadas

para o Cristiano Coração Grande, que o Senhor fez forte para Si mesmo.

Procurem, pois, obter forças daquele que é o Forte, e sabedoria daquele

que é o Sábio – sim, busquem tudo do Deus de todos.

Em terceiro lugar, que o ministro cuide para que o seu caráter

pessoal se harmonize em todos os aspectos com o seu ministério.

Já ouvimos todos a historia do homem que pregava tão bem e vivia

tão mal que, quando estava no púlpito, toda gente dizia que ele não devia

sair mais de lá, e quando estava fora dele, todos declaravam que ele não

devia voltar a ocupá-lo. Que o Senhor nos livre da imitação de tal Janes.

Que nunca sejamos sacerdotes de Deus junto ao altar e filhos de Belial

fora das portas do tabernáculo. Ao contrário, como diz Nazianzeno sobre

Basílio, "trovejemos em nossa doutrina e relampagueemos em nossa

conversação". Não confiamos nas pessoas de duas caras e ninguém dará

crédito àqueles cujos testemunhos verbais e práticos são contraditórios.

Segundo o provérbio, as ações falam mais alto do que as palavras, assim

uma vida má efetivamente abata a voz do mais eloqüente ministério.

Afinal de cantas, a nossa mais veraz obra de edificação deve ser

realizada com as nossas mãos; o nosso caráter tem que ser mais

persuasivo do que o nosso falar.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 20

Aqui vos advirto não somente sobre pecados de comissão, mas

também sobre pecados de omissão. Muitos pregadores esquecem-se de

servir a Deus quando estão fora do púlpito, sendo incoerentes em seu

modo de viver. Diletos irmãos, detestem pensar em ser ministros tipo

relógio, não vivendo pela graça presente no seu íntimo, mas agindo pela

corda dada por influências passageiras; homens que somente são

ministros quando têm que ser, quando são pressionados pelas horas de

ministração, mas deixam de ser ministros quando descem a escada do

púlpito. Os verdadeiros ministros são ministros sempre. Muitos

pregadores são como aqueles brinquedos de areia que compramos para

as nossas crianças; viramos a caixa de boca para baixo, e o pequeno

acrobata volve-se e revolve-se até esvair-se a areia toda, e então ele

pende imóvel. Assim há alguns que perseveram nas ministrações da

verdade enquanto há alguma necessidade oficial do seu trabalho, mas,

depois disso, sem pagamento, não há oração: se não há salário, não há

sermão.

É horrível ser ministro incoerente. De nosso Senhor se diz que foi

semelhante a Moisés por esta razão, por que foi "profeta poderoso em

obras e palavras". O homem de Deus deve imitar nisto o seu Mestre e

Senhor. Deve ser poderoso tanto na palavra da sua doutrina como nos

seus atos exemplares, e mais poderoso, se possível, no segundo caso. É

notável que a única história da igreja que temos é esta: "Atos dos

Apóstolos". O Espírito Santo não preservou todos os seus sermões. Eram

muito bons, melhores do que jamais pregaremos, mas, apesar disso, o

Espírito Santo Se interessou mais pelos "atos" dos apóstolos. Não temos

livros de atas com o registro das resoluções dos apostoles. Quando temos

nossas reuniões eclesiásticas, registramos as nossas atas e resoluções,

mas o Espírito Santo faz constar mais os "atos". Os nossos atos devem

ser tais que mereçam registro, pois registrados serão. Devemos viver

como estando sob o mais direto olhar de Deus, e como na luz do grande

dia da revelação de todas as coisas.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 21

No ministro, a santidade é ao mesmo tempo a sua principal

necessidade e o seu mais excelente ornamento. A simples excelência

moral não basta; é preciso haver virtude mais elevada. Tem que haver

um caráter consistente, mas este precisa ser ungido com o óleo santo da

consagração, ou, do contrário, estará faltando aquilo que nos impregna

do melhor aroma para Deus e para os seres humanos. O velho John

Stoughton, em seu tratado intitulado The Preacher's Dignity and Duty (A

Dignidade e o Dever do Pregador), insiste na santidade do ministro com

declarações contundentes. "Se Uzá deve morrer por tocar na arca de

Deus, e isso para segurá-la por estar prestes a cair; se devem morrer os

homens de Bete-Semes porque olharam para dentro dela; se os próprios

animais são ameaçados somente por aproximar-se do monte santo –

então, que espécie de pessoas devem ser os que são aceitos para falar

com Deus familiarmente, para "estar de pé diante dele", como o fazem os

anjos, e "contemplar continuamente a sua face"? "Para levar a arca em

seus ombros"; "para levar o seu nome perante os gentios"; numa palavra

para ser Seus embaixadores? "A santidade convém à Tua casa, Senhor".

E não seria ridículo imaginar que os vasos devem ser santos, as vestes

devem ser santas, tudo deve ser santo, mas somente aquele sobre cujas

vestimentas precisa estar escrito "santidade ao Senhor" pode deixar de

ser santo? Não seria ridículo que as campainhas dos cavalos devem ter

em si uma inscrição de santidade (Zac. 14:20); e as campainhas dos

santos, isto é, as campainhas de Arão, fiquem sem santificar-se?

Não, eles devem ser "lâmpadas que ardem e brilham", ou então a

sua influência projetará alguma qualidade maligna; têm que "ser

ruminantes e ter o casco dividido", ou serão imundos; precisam "manejar

bem a palavra" e andar retamente na vida, juntando assim a vida ao

saber. Se faltar santidade, os embaixadores desonrarão o país do qual

procedem e o príncipe que os enviou. E este Amasa morto, esta doutrina

não vitalizada pela vida genuína, jazendo no caminho, detém o povo de

Deus, impedindo-o de prosseguir com entusiasmo em sua luta

espiritual."

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 22

A vida do pregador deve ser um ímã para atrair homens a Cristo, e é

triste de fato quando os retém longe dEle. A santidade dos ministros é

um sonoro chamamento aos pecadores para que se arrependam, e,

quando aliada à santa alegria, torna-se maravilhosamente atraente.

Jeremy Taylor, em sua linguagem peculiar e rica, diz: "As pombas de

Herodes nunca poderiam ter convidado tantos estranhos para os seus

pombais, se estes não tivessem sido lambuzados com o bálsamo de

Gileade. Mas, dizia Didymus, "faça os seus pombos cheirarem

agradavelmente, e eles atrairão bandos completos"; e se a sua vida for

excelente, se as suas virtudes forem como um ungüento precioso, logo

você fará os que estão a seu cargo correrem "in odorem unguentorum",

atrás das suas precisas fragrâncias". Mas você precisa ser excelente, não

"tanquam unus de populo", mas "tanquam hamo Dei"; você deve ser um

homem de Deus, não segundo a maneira comum dos homens, mas

"segundo o coração de Deus". E os homens se empenharão para ser

semelhantes a você, se você for semelhante a Deus. Mas quando você

fica parado à porta da virtude, apenas para manter fora o pecado, não

introduzirá ninguém no aprisco de Cristo, exceto aqueles impelidos pelo

temor. "Ad majorem Dei gloriam", "Fazer o que mais glorifique a Deus",

esta é a linha pela qual você deve andar. Portanto, não ir além daquilo

que todos os homens fazem por obrigação, é servilismo, não atingindo a

afeição de filhos. Muito menos poderão ser país espirituais os que não

chegam a igualar-se aos filhos de Deus. Pois um farol obscuro,

conquanto haja fraca luz por um lado, mal iluminará a um, e muito

menos conduzirá uma multidão, nem atrairá muitos seguidores com o

brilho da sua chama".

Outro teólogo episcopal igualmente admirável disse com acerto e

com energia: "A estrela que guiou os magos a Cristo, e a coluna de fogo que

conduziu os filhos de Israel a Canaã, não brilharam apenas, mas foram adiante deles (Mt. 2:9; Êx. 13:21). A voz de Jacó fará pouca coisa boa, se as mãos forem de Esaú. Na lei, ninguém que tivesse alguma mancha poderia oferecer as oblações ao Senhor (Lv. 21:17-20); por meio dessas coisas, o

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 23

Senhor nos ensina quais dons e graças devem existir em Seus ministros. O sacerdote devia ter em suas vestes campainhas e romãs, umas figurando doutrina sã, outras simbolizando vida frutífera (Êx. 28:33-34). O Senhor será santificado naqueles que andam junto dEle (Is. 52:111; pois os pecados dos sacerdotes levam o povo a aborrecer as ofertas ao Senhor (1 Sm. 2:17). Suas vidas ímpias lançam vergonha sobre a sua doutrina. Passionem Christi annunciant profitendo, male agendo exhonorant, como diz Agostinho – com a sua doutrina edificam, e com as suas vidas destroem. Concluo este ponto com a salutar passagem de Hierom ad Nepolianum. Não permitas, diz ele, que as tuas obras envergonhem a tua doutrina, para que os que te ouvem na igreja não te respondam tacitamente: Por que não praticas o que ensinas a outros? É bom demais o mestre que persuade outros a jejuarem, estando ele de barriga cheia. Um ladrão pode denunciar a cobiça. Sacerdotis Christi os, mens, manusque concordent. A língua, o coração e a mão do sacerdote de Cristo devem concordar entre si".

Muito apropriada também é a linguagem de Thomas Playfere em

sua obra: "Fale bem, Aja bem". "Havia um ridículo ator na cidade de

Esmirna que, quando pronunciava: Ó coelum! Ó céu! apontava com o

dedo para o chão; o que vendo Polemo, o principal vulto da localidade,

não pôde ficar ali por mais tempo e saiu muito irritado, dizendo: "Este

tolo cometeu solecismo com a mão, e falou falso latim com o dedo".

Assim são os que ensinam bem e agem mal. Esses, apesar de terem o céu

na ponta da língua, têm a terra na ponta do dedo. Os tais não só falam

falso latim com a língua, mas falam falsa teologia com as mãos. Esses

vivem em desacordo com o que pregam. Mas Aquele que tem o Seu

trono no céu rir-se-á deles com desdém, e os varará expulsando-os do

palco, se não corrigirem o seu procedimento. Mesmo nas pequenas

coisas o ministro deve cuidar que sua vida esteja em harmonia com o seu

ministério.

Deve ter especialmente o cuidado de nunca faltar com a palavra.

Isto deve ser levado ao escrúpulo extremo. Não conseguiremos exagerar

nisto. A verdade não somente deve estar em nós; deve também irradiar-

se de nós. Em Londres, um célebre doutor em teologia que agora está no

céu, não tenho dúvida – homem excelente e muito piedoso comunicou

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 24

num domingo que tencionava visitar todos os membros da sua igreja, e

disse que, a fim de poder informá-los e visitá-los e suas famílias uma vez

por ano, deveria seguir a ordem na lista de "bancos cativos".

Uma pessoa que conheço bem, nesse tempo um homem pobre,

apreciou muito a idéia de que o ministro ia à sua casa para vê-lo, e, uma

ou duas semanas antes da ocasião que ele imaginava que seria a sua vez,

sua mulher esmerou-se muito em limpar a lareira e em manter a casa

bem arrumada, e o homem corria logo para casa ao sair do serviço todas

as tardes, esperando encontrar lá o doutor. Isto continuou acontecendo

durante considerável tempo. Ou o teólogo esqueceu a promessa, ou foi-

se cansando de levá-la a efeito, ou por alguma outra razão nunca foi à

casa daquele homem pobre. O resultado foi este: o homem perdeu a

confiança em todos os pregadores, e dizia: "Eles cuidam dos ricos, mas

não cuidam de nós, os pobres".

Por muitos anos aquele homem não se firmou em nenhum local de

culto, até que um dia caiu no Exeter Hall e durante anos foi meu ouvinte,

até que a Providência o removeu. Não foi tarefa pequena fazê-lo crer que

todo ministro podia ser sincero e amar imparcialmente ricos e pobres.

Tratemos de evitar esse mal, dando cuidadosa atenção à nossa palavra

pessoal. Devemos lembrar-nos de que somos muito observados.

Dificilmente os homens têm o descaramento de transgredir a leí à plena

vista dos seus semelhantes; todavia, nós vivemos e nos movemos nessa

publicidade. Milhares de olhos de águias nos vigiam. Procedamos de

modo que nunca precisemos ter preocupação sobre se todo o céu, terra e

inferno alongam a lista de espectadores. A nossa posição pública é

grande ganho, caso sejamos habilitados a mostrar os frutos do Espírito

Santo em nossas vidas. Tenham cuidado, irmãos, para não suceder que

joguem fora a vantagem.

Meus caros irmãos, quando lhes dizemos que cuidem bem da sua

vida, queremos dizer que sejam cuidadosos até com as minudências do

seu caráter. Evitem as pequenas dívidas, a impontualidade, fazer

mexericos, dar apelidos, contendas minúsculas, e todos aqueles pequenos

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 25

males que enchem de moscas o ungüento. As auto-indulgências que têm

rebaixado a reputação de muitos, não podemos tolerar. As familiaridades

que têm lançado suspeita sobre outros, temos que evitar castamente. Da

grosseria que tem tornado alguns odiosos, e das futilidades que tornaram

muitos desprezíveis, temos que nos descartar. Não podemos permitir-nos

correr grandes riscos por causa de pequenas coisas. Tenhamos o cuidado

de conduzir-nos de acordo com a regra: "Não dando nós escândalo em

coisa alguma, para que o nosso ministério não seja censurado".

Com isto não se quer dizer que devemos manter-nos presos a

quaisquer caprichos da sociedade em que nos movemos. Em regra, odeio

as modas da sociedade e detesto os convencionalismos, e se eu achasse

que a melhor atitude seria pisar numa regra de etiqueta, sentir-me-ia

gratificado ao fazê-lo. Não; somos homens, não escravos; e não devemos

renunciar à nossa liberdade varonil para sermos lacaios dos que fingem

gentileza ou alardeiam polidez. Entretanto, irmãos, de tudo que se

aproxima da grosseria que cheira a pecado temos que fugir como

fugiríamos de uma víbora. Para nós as regras de Chesterfield são

ridículas; não, porém, o exemplo de Cristo. Ele nunca foi grosseiro,

baixo, descortês ou indelicado.

Mesmo em vossas recreações, lembrem-se de que são ministros.

Quando estão fora da mira, ainda continuam sendo oficiais do exército

de Cristo, e, como tais, não se rebaixem. Mas, se devemos observar com

cautela as coisas mínimas, quanto cuidado devemos ter nas grandes

questões da moralidade, da honestidade e da integridade! Nestas é

preciso que o ministro não falhe. Sua vida particular deve estar sempre

em harmonia com o seu ministério, ou, do contrário, o seu dia se porá

com ele, e quanto mais cedo se afastar, melhor, pois a sua permanência

nesse ofício servirá somente para desonrar a causa de Deus e ocasionar a

ruína de si mesmo,

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 26

O CHAMADO PARA O MINISTÉRIO

Todo cristão capaz de disseminar o evangelho tem direito de fazê-

lo. Ainda mais, não só tem direito, mas é seu dever fazê-lo enquanto

viver (Ap. 22:17). A propagação do evangelho foi entregue, não a uns

poucos, mas a todos os discípulos do Senhor Jesus Cristo. Segundo a

medida da graça a ele confiada pelo Espírito Santo, cada discípulo tem a

obrigação de ministrar em seu tempo e geração, à igreja e entre os

incrédulos. Na verdade, esta questão vai além dos varões, incluindo

todos os elementos do outro sexo. Sejam os crentes homens ou mulheres,

quando capacitados pela graça divina, estão todos obrigados a esforçar-

se ao máximo para divulgar o conhecimento do Senhor Jesus Cristo.

Todavia, o nosso serviço não assume necessariamente a forma

particular da pregação. Seguramente, em alguns casos é preciso que não,

como por exemplo no caso das mulheres, cujo ensino público é

expressamente proibido: 1 Tm. 2:12; 1 Co. 14:34. Mas, se temos

capacidade para pregar, é mister exercitá-la. Contudo, nesta preleção não

me refiro a prédicas ocasionais, nem a quaisquer outras formas de

ministério comuns a todos os santos, mas ao trabalho e ofício do

episcopado, em que se incluem o ensino e o governo da igreja, exigindo

a dedicação da vida inteira do homem à obra espiritual, e que ele se

separe de todas as carreiras seculares (2 Tm. 2:4). Trabalho e oficio que

autorizam o obreiro a contar totalmente com a igreja de Deus para o

suprimento das suas necessidades temporais, visto que ele dá todo o seu

tempo, energia e esforços para o bem daqueles que estão sob a sua

direção (1 Co. 9:11; 1 Tm. 5:18).

A um homem assim Pedro se dirige com estas palavras:

"Apascentai o rebanho de Deus, que está entre vós, tendo cuidado dele"

(1 Ped. 5:2). Ora, nem todos de uma igreja podem superintender ou

governar; alguns têm que ser dirigidos ou governados. E cremos que o

Espírito Santo designa na igreja de Deus alguns para agirem como

superintendentes, e outros para se submeterem à vigilância de outros,

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 27

para o seu próprio bem. Nem todos são chamados para trabalhar na

palavra e na doutrina, ou para serem presbíteros, ou para exercerem o

cargo de bispo. Tampouco devem todos aspirar a essas obras, uma vez

que em parte nenhuma os dons necessários são prometidos a todos. Mas

aqueles que, como o apóstolo, crêem que receberam "este ministério" (2

Co. 4:1), devem dedicar-se a essas importantes ocupações. Homem

nenhum deve intrometer-se no rebanho como pastor; deve ter os olhos

postos no Sumo Pastor, e esperar Seu sinal e Sua ordem. Antes que um

homem assuma a posição de embaixador de Deus, deve esperar pelo

chamamento do alto. Se não o fizer, mas se se lançar às pressas ao cargo

sagrado, o Senhor dirá dele e de outros semelhantes: "Eu não os enviei,

nem lhes dei ordem; e não trouxeram proveito nenhum a este povo diz o

Senhor" (Jr. 23:32).

Consultando o Velho Testamento, vocês verão os mensageiros de

Deus, da velha dispensação, reivindicando comissionamento da parte de

Jeová. Isaías conta-nos que um dos serafins tocou os seus lábios com

uma brasa viva tirada do altar, e que a voz do Senhor lhe disse: "A quem

enviarei, e quem há de ir por nós?" (Isa. 6:8). Então disse o profeta:

"Eis-me aqui, envia-me a mim". Não se apressou antes de ter sido

visitado dessa maneira tão especial pelo Senhor, e de ser por Ele

qualificado para a sua missão. "Como pregarão, se não forem

enviados?", são palavras que ainda não tinham sido enunciadas, mas o

seu solene significado era bem compreendido.

Jeremias narra em detalhe a sua vocação no primeiro capítulo do

seu livro: "Assim veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Antes que te

formasse no ventre te conheci, e antes que saísses da madre, te santifiquei; às nações te dei por profeta. Então disse eu: Ah Senhor Jeová! Eis que não sei falar; porque sou uma criança. Mas o Senhor me disse: Não digas: eu sou uma criança; porque aonde quer que eu te enviar, irás; e tudo quanto te mandar dirás. Não temas diante deles, porque eu sou contigo para te livrar, diz o Senhor. E estendeu o Senhor a sua mão, e tocou-me na boca; e disse-me o Senhor: Eis que ponho as minhas palavras na tua boca. Olha, ponho-te

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 28

neste dia sobre as nações, e sobre os reinos, para arrancares, e para derribares, e para destruíres, e para arruinares; e também para edificares e para plantares" (Jr. 1:4-10).

Diferindo em sua forma externa, mas com o mesmo propósito, foi a

comissão de Ezequiel. É como se segue, em suas palavras: "E disse-me: Filho do homem, põe-te em pé, e falarei contigo. Então

entrou em mim o Espírito, quando falava comigo, e me pôs em pé, e ouvi o que me falava. E disse-me: Filho do homem, eu te envio aos filhos de Israel, às nações rebeldes que se rebelaram contra mim, até este mesmo dia" (Ez. 2:1.3). "Depois me disse: Filho do homem, come o que achares; come este rolo, e vai, fala à casa de Israel. Então abri a minha boca, e me deu a comer o rolo. E disse-me: Filho do homem, dá de comer ao teu ventre, e enche as tuas entranhas deste rolo que eu te dou. Então o comi, e era na minha boca doce como o mel. E disse-me: Filho do homem, vai, entra na casa de Israel, e dize-lhes as minhas palavras" (Ez. 3:1-4).

A vocação de Daniel para profetizar, conquanto não registrada, é

fartamente atestada pelas visões a ele outorgadas, e pelo grandíssimo

favor que desfrutava da parte do Senhor, quer nas suas meditações

solitárias, quer nos atos públicos.

Não há necessidade de passar em revista todos os outros profetas,

pois todos se arrogavam falar com a autoridade do "assim diz o Senhor".

Na presente dispensação, o sacerdócio é comum a todos os santos. Mas,

profetizar, ou fazer aquilo que se lhe assemelha, a saber, ser movido pelo

Espírito Santo para entregar-se totalmente à proclamação do evangelho,

é, na verdade, dom e vocação de apenas um número relativamente

pequeno. E certamente estes precisam estar tão seguros da veracidade da

sua posição como os profetas estavam da sua. E mais, como podem

justificar o seu ministério, senão por um chamamento semelhante?

Tampouco ninguém imagine que essas vocações são simples ilusão,

e que em nossa época ninguém é separado para a peculiar obra de ensino

e direção da igreja, pois os próprios nomes dados no Novo Testamento

aos ministros implicam em uma prévia vocação para a sua obra. Diz o

apóstolo: "De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como se

Deus por nós rogasse". Não é fato, porém, que a própria alma do oficio

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 29

de embaixador repousa na nomeação feita pelo governo representado?

Um embaixador não enviado seria objeto de riso. Homens que ousam

declarar-se embaixadores de Cristo precisam compreender mais

profundamente que o Senhor lhes "entregou" a palavra da reconciliação

(2 Co. 5:18-19). Se se disser que isto se restringiu aos apóstolos,

respondo que a epístola foi escrita, não só em nome de Paulo, mas

também de Timóteo, e daí incluí outros ministérios além do apostolado.

Na primeira epístola aos Coríntios lemos: "Que os homens nos (nos aqui

significando Paulo e Sóstenes, 1 Co. 1:1) considerem como ministros de

Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus" (1 Co. 4:1). Certamente o

despenseiro deve considerar o seu oficio como da parte do Senhor. Não

pode ser despenseiro simplesmente porque o decide ser, ou porque

outros o consideram tal. Se a nós mesmos nos elegêssemos despenseiros

do Marquês de Westminster e começássemos a tratar da propriedade

daquele nobre, imediatamente o erro ser-nos-ia lançado em rosto da

maneira mais convincente. É evidente que precisa haver autorização

antes de alguém poder tornar-se legítimo bispo, "despenseiro da casa de

Deus" (Tt. 1:7).

O título apocalíptico de anjo (Ap. 2:1) significa mensageiro; e

como os homens hão de ser arautos de Cristo, senão por Sua eleição e

ordenação? Se a referência da palavra anjo ao ministro for contestada,

gostaríamos, que fosse demonstrado que ela se relaciona com qualquer

outra pessoa. A quem da igreja o Espírito escreveria como representante

dela, senão a alguém que ocupava posição análogo à do oficial

presidente? Tito recebeu a incumbência de dar prova cabal do seu

ministério; havia certamente algo que provar. Há quem seja "vaso para

honra, santificado e idôneo para uso do Senhor, e preparado para toda a

boa obra" (2 Tm. 2:21). Não se deve recusar ao Senhor a escolha dos

vasos que usa; Ele sempre dirá de certos homens o que disse de Saulo de

Tarso: "Este é para mim um vaso escolhido, para levar o meu nome

diante dos gentios, e dos reis e dos filhos de Israel" (At. 9:15).

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 30

Quando o nosso Senhor subiu às alturas deu dons aos homens, e é

digno de nota que estes dons foram homens separados para obras

diversas. "E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e

outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores" (Ef. 4:11);

disso fica evidente que certos indivíduos são, como resultado da

ascensão do Senhor, dados às igrejas como pastores; dados por Deus, e,

conseqüentemente, não se elevam a si mesmos a essa posição. Irmãos,

espero em que um dia possam falar do "rebanho sobre que o Espírito

Santo" os constituiu bispos (At. 20:28), e oro no sentido de que cada um

de vocês possa dizer com o apóstolo dos gentios, que o seu ministério

não é da parte dos homens, nem por homem algum, mas o recebeu do

Senhor (Gl. l :1). Oxalá se cumpra em vocês aquela antiga promessa: "E

vos darei pastores segundo o meu coração" (Jr. 3:15). "E levantarei sobre

elas pastores que as apascentem" (Jr. 23:4) Que o Senhor mesmo cumpra

em suas pessoas a Sua declaração: "Ó Jerusalém! sobre os teus muros

pus guardas, que todo o dia e toda a noite de contínuo se não calarão".

Oxalá vocês possam apartar o precioso do vil e assim ser como a boca de

Deus (Jr. 15:19). Oxalá o Senhor manifeste por intermédio de vocês o

aroma do conhecimento de Jesus em todo lugar, e os faça "o bom cheiro

de Cristo, nos que se salvam e nos que se perdem" (2 Co. 2:15). Tendo

um inapreciável tesouro em vasos de barro, que a excelência do poder

divino pouse sobre vocês, e assim, glorifiquem a Deus e também se

livrem do sangue de todos os homens. Como o Senhor Jesus subiu ao

monte e chamou os que quis, e depois os mandou a pregar (Mc. 3:13),

assim também que Ele vos escolha – a vocês chamando-vos para cima,

para a comunhão com Ele, e vos envie como Seus servos escolhidos para

bênção da igreja e do mundo.

Como pode o jovem saber se é vocacionado ou não? É uma

indagação ponderável, e desejo tratá-la mui solenemente. Oh, a divina

orientação para fazê-lo! O fato de que centenas perderam o rumo e

tropeçaram num púlpito, está patenteado tristemente nos ministérios

infrutíferos e nas igrejas decadentes que nos cercam. Errar na vocação é

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 31

terrível calamidade para o homem, e, para a igreja sobre a qual ele se

impõe, seu erro envolve aflição das mais dolorosas. Seria um curioso e

penoso tema para reflexão – a freqüência com que homens dotados de

razão enganam-se quanto à finalidade da sua existência e miram coisas

que nunca deveriam ter buscado, O escritor que redigiu os seguintes

versos por certo estava com os olhos postos em muitos púlpitos

ocupados indevidamente: Mostrai ó sábios, se podeis, entre animais de toda espécie e condição, tamanho e classe, desde elefantes a mosquitos, um ser que tanto erre nos planos, e tantas vezes, como o homem. Cada animal quer o bem próprio – busca prazer, ração, repouso, que a natureza indica e mostra, sem nunca errar na escolha feita. Só o homem falha, embora tenha razão acima dos demais. Descei a exemplos e provai: O boi jamais tenta voar, não deixa os pastos na campina nem com os peixes sonda as águas. Dos animais, só o homem age oposto à sua natureza.

Quando penso no prejuízo, que por pouco não é infinito, que pode

resultar do erro quanto à nossa vocação para o pastorado cristão,

domina-me o temor de que algum de nós tenha sido negligente no exame

de suas credenciais. Preferiria que vivêssemos em dúvida e nos

examinássemos muitíssimas vezes, do que tornarmos empecilhos no

ministério. Não faltam numerosos métodos pelos quais o homem pode

testar sua vocação para o ministério, se ardorosamente o quiser fazer. É-

lhe imperativo que não entre no ministério enquanto não fizer profunda

sondagem e prova de si próprio quanto a este ponto. Estando seguro da

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 32

sua salvação pessoal, deve investigar quanto à questão subseqüente da

sua vocação para o ofício; a primeira é-lhe vital como cristão, e a

segunda lhe é igualmente vital como pastor. Ser pastor sem vocação é

como ser membro professo e batizado sem conversão. Nos dois casos há

um nome, e nada mais.

1. O primeiro sinal da vocação celeste é um desejo intenso e

absorvente de realizar a obra. Para se constatar um verdadeiro

chamamento para o ministério é preciso que haja uma irresistível,

insopitável, ardente e violenta sede de contar aos outros o que Deus fez

por nossas almas. Que tal se eu apelidar isso de uma espécie de ternura,

como a que os pássaros têm pela criação dos seus filhotes quando chega

a estação própria; quando a ave mãe está disposta a morrer, antes de

abandonar o ninho.

Alguém que conheceu Alleine intimamente disse que ele tinha

infinita e insaciável avidez pela conversão de almas". Quando pôde ter

participação societária na universidade em que estava, preferiu uma

capelania, porque "o inspirava uma impaciência por ocupar-se

diretamente na obra ministerial". "Não entre no ministério se puder

passar sem ele", foi o conselho profundamente sábio de um teólogo a

alguém que procurou a sua opinião. Se alguém neste recinto puder ficar

satisfeito sendo redator de jornal, merceeiro, fazendeiro, médico,

advogado, senador ou reí, em nome do céu e da terra, siga o seu

caminho. Não é homem em quem habita o Espírito de Deus em Sua

plenitude, pois o homem assim revestido da plenitude de Deus ficaria

inteiramente enfadado com qualquer carreira que não aquela pela qual o

âmago da sua alma palpita.

Por outro lado, se você puder dizer que nem por toda a riqueza da

Índia poderia ou ousaria esposar qualquer outra carreira, a qual o

apartasse da pregação do evangelho de Jesus Cristo, fique certo então

que se noutras coisas o exame for igualmente satisfatório, você tem os

sinais do apostolado. Devemos estar convictos que a desonra virá sobre

nós se não pregarmos o evangelho. A Palavra de Deus deve ser como

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 33

fogo em nossos ossos, do contrário, se nos aventurarmos no ministério,

seremos infelizes nisso, seremos incapazes de suportar as diversas

formas de abnegação que lhe são próprias, e prestaremos pouco serviço

aqueles aos quais ministramos. Falo de formas de abnegação, e digo

bem, pois o trabalho do verdadeiro pastor está repleto delas, e, se não

amar a sua vocação, logo sucumbirá ou desistirá da luta, ou prosseguirá

descontente, sob o peso de uma monotonia tão fastidiosa como a de um

cavalo cego girando um moinho. "Na força do amor há consolação que torna suportável uma coisa que a qualquer outro rompe o coração."

Cingidos desse amor, vocês serão intrépidos; despidos desse cinto

mais que mágico da vocação irresistível, consumir-se-ão na desventura.

Este desejo deve resultar de reflexão. Não deve ser um impulso

repentino desajudado por uma ponderação ansiosa. Deve ser o resultado

do nosso coração em seus melhores momentos, o objeto de nossas

reverentes aspirações, o assunto de nossas mais ferventes orações. Deve

continuar conosco quando tentadoras ofertas de riqueza e comodidade

entrarem em conflito com ele, e deve permanecer como uma resolução

serena e bem pensada depois de tudo ter sido avaliado em suas

proporções certas, e o preço muito bem calculado.

Quando morava com meu avô no campo, na meninice, vi um grupo

de caçadores, com seus casacos vermelhos, cavalgando pelos campos

atrás de uma raposa. Foi uma delícia para mim! Meu pequeno coração

excitou-se; senti-me disposto a seguir os cães de caça, saltando barreiras

e cruzando valas. Sempre tive gosto natural por essa espécie de

atividade, e, na minha infância, quando me perguntavam o que eu queria

ser, costumava dizer que ia ser caçador. Bela profissão, na verdade!

Muitos jovens têm a mesma idéia de serem clérigos, como eu de ser

caçador – simples noção infantil, de que gostariam do casaco e do toque

das cornetas; da honra, do respeito e da tranqüilidade; e talvez sejam

bastante tolos para pensar – gostariam das riquezas do ministério (só

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 34

podem ser ignorantes, se buscam riqueza com relação ao ministério

evangélico). O fascínio exercido pelo ofício de pregador é muito grande

para as mentes fracas, razão por que energicamente advirto a todos os

jovens a não confundirem fantasia com inspiração, e preferência infantil

com vocação do Espírito Santo.

Notem bem, o desejo de que falei deve ser totalmente

desinteressado. Se um homem perceber, depois do mais severo exame de

si próprio, qualquer outro motivo que a glória de Deus e o bem das almas

em sua busca do episcopado, melhor será que se afaste dele de uma vez,

pois o Senhor aborrece a entrada de compradores e vendedores em Seu

templo. A introdução de qualquer coisa que cheire a mercenário, mesmo

no menor grau, será como um inseto no ungüento, estragando-o de todo.

Esse desejo deve ser tal que permaneça conosco, uma paixão que

agüente o teste da provação, um anelo "do qual nos seja completamente

impossível fugir, ainda que o tentemos; desejo, na verdade, que se torna

cada vez mais intenso conforme os anos passem, até tornar-se um anseio,

uma anelante aspiração, uma consumidora fome de proclamar a Palavra.

Esse desejo intenso é uma coisa tão nobre e tão bela que, toda vez que o

percebo inflamar-se no peito de algum jovem, sempre me contenho, não

me apressando a desanimá-lo, mesmo que tenha dúvidas quanto à sua

capacidade. Talvez seja necessário, por razões que lhes serão dadas mais

adiante, sufocar as chamas, mas isto deve ser feito com relutância e com

sabedoria. Tenho tão profundo respeito por este "fogo nos ossos" que, se

eu mesmo não o sentisse, teria que abandonar de uma vez o ministério.

Se vocês não sentem o calor sagrado, rogo-lhes que voltem para casa e

sirvam a Deus em suas respectivas esferas. Mas se com certeza, as brasas

de zimbro chamejam por dento, não as apaguem, a menos que, de fato,

outras considerações de grande importância lhes provem que o desejo

que têm não é fogo de origem celestial.

2. Em segundo lugar, em combinação com o desejo ardente de ser

pastor, é preciso que haja aptidão para ensinar e certa medida das

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 35

outras qualidades necessárias ao oficio de instrutor público. Para provar

sua vocação o homem precisa testá-la com êxito. Não pretendo que na

primeira vez que um homem se levantar para falar, pregue tão bem como

Robert Hall em seus últimos tempos. Se a sua pregação não for pior do

que o grande homem fez no início da sua careira, não deve ser

condenado.

Vocês sabem que Robert Hall fracassou completamente três vezes,

e clamava: "Se isto não me humilhar, nada mais me humilhará". Alguns

dos mais nobres oradores não foram dos mais fluentes nos seus primeiros

tempos. Mesmo Cícero no início padecia de voz fraca e dificuldade de

elocução. Contudo, ninguém deve considerar-se chamado para pregar

enquanto não provar que pode falar em público. Claro que Deus não

criou o hipopótamo para voar, e se o leviatã tivesse forte desejo de subir

aos ares com a calandra, evidentemente seria uma inspiração insensata,

visto que não é dotado de asas. Se um homem for vocacionado para

pregar, será dotado de capacidade em algum grau para falar, capacidade

que ele cultivará e desenvolverá. Se o dom de elocução não existir no

início em alguma medida, não é provável que venha a desenvolver-se.

Ouvi falar de um cavalheiro que tinha o mais intenso desejo de

pregar, e tanto insistiu com o seu pastor que, depois de múltiplas recusas,

conseguiu licença para pregar um sermão de prova. Essa oportunidade

foi o fim da sua importunação, pois, depois de anunciar o texto, viu-se

privado de todas as idéias menos uma, que ele transmitiu sentidamente, e

em seguida desceu da tribuna: "Meus irmãos", disse ele, "se algum de

vocês pensa que é fácil pregar, aconselho-o a vir até aqui para perder

toda a vaidade."

A prova a que submetem as suas capacidades revelará a sua

deficiência, se vocês não tiverem a aptidão necessária. Não conheço

nada melhor. Devemos dar-nos a nós próprios uma boa prova nesta

questão, ou não poderemos saber com certeza se Deus nos chamou ou

não; e durante a prova, devemos perguntar-nos a nós mesmos muitas

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 36

vezes se, de modo geral, podemos alimentar a esperança de edificar

outros com os nossos discursos.

Contudo, devemos fazer mais do que submeter isso à nossa

consciência e ao nosso julgamento, pois somos juízes ineptos. Certa

classe de irmãos tem grande facilidade para descobrir que tem sido

maravilhosa e divinamente auxiliada em suas declamações. Eu invejaria

a gloriosa liberdade e a confiança própria desses irmãos, se houvesse

algum fundamento para isso. Pois, lastimavelmente, com muita

freqüência tenho que deplorar e lamentar minha falta de sucesso e meus

fiascos como orador. Não devemos confiar muito em nossa própria

opinião, mas se pode aprender muito de pessoas judiciosas e de índole

espiritual. De modo nenhum é isto uma leí que deva obrigar a todas as

pessoas, mas ainda assim é um bom e antigo costume em muitas das

nossas igrejas rurais, o jovem que aspira ao ministério pregar perante a

igreja. Dificilmente é um ensaio agradável ao jovem aspirante, e, em

muitos casos, mal chega a ser um exercício edificante para o povo;

todavia, pode dar provas de que é um recurso disciplinar dos mais

salutares, e poupa a exposição pública da ignorância excessiva. O livro

de atas da igreja de Arnsby contém o seguinte registro: Breve relato do chamamento de Robert Hall Junior para a obra do

ministério, pela Igreja de Arnsby, 13 de agosto de 1780. "O referido Robert Hall nasceu em Arnsby em 2 de maio de 1764;

desde pequeno foi, não somente sério e dado à oração em secreto antes mesmo de poder falar com clareza, mas também foi sempre totalmente inclinado à obra do ministério. Começou a compor hinos antes de completar sete anos de idade e neles revelou sinais de piedade, de pensamento profundo e de gênio. Entre oito e nove anos fez vários hinos, que foram admirados por muitos, um dos quais foi publicado na Revista do Evangelho (Gospel Magazine) aproximadamente na mesma época. Escreveu expondo os seus pensamentos sobre vários assuntos religiosos e sobre porções seletas da Escritura. Tinha também intensa propensão para os estudos, e fez tanto progresso, que o mestre-escola provinciano de quem ele era aluno não pode instruí-lo mais. Então foi enviado à escola-internato de Northampton, ficando aos cuidados do Rev. John Ryland, onde passou

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 37

cerca de um ano e meio, e alcançou grande progresso em latim e grego. Em outubro de 1778, foi para a Academia de Bristol, sob os cuidados do Rev. Evans; e, em 13 de agosto de 1780, foi comissionado ao ministério por esta igreja, estando ele com dezesseis anos e três meses de idade. A maneira pela qual a igreja chegou a ficar satisfeita com a capacidade dele para a grande obra foi por ter ele pregado, quando lhe tocou a vez, nas reuniões de conferências, sobre várias porções da Escritura; nas quais, e na oração, havia participado por quase quatro anos antes; e, quando em casa, tendo pregado a pedido dos irmãos muitas vezes nas manhãs do dia do senhor, para grande satisfação deles. Portanto, eles pediram calorosamente e unânimes que ele fosse solenemente separado para o serviço da comunidade. Com efeito, no dia acima referido, ele foi examinado por seu pai perante a igreja quanto à sua inclinação, seus motivos e seus fins em vista, com referência ao ministério, sendo-lhe mostrado igualmente o desejo de que ele fizesse uma declaração dos seus sentimentos religiosos. Tendo-se feito tudo, para inteira satisfação da igreja, consagraram-no, pois, levantando as mãos direitas e com oração solene. Depois o seu pai fez-lhe um discurso baseado em 2 Tm. 2:1: "Tu, pois meu filho, fortifica-te na graça que há em Cristo Jesus". Sendo-lhe assim confiada a obra ministerial, pregou de tarde sobre 2 Ts. 1:7.8. "Que o Senhor o abençoe e lhe conceda grande sucesso!!"

Considerável importância deve ser dada ao julgamento feito por

homens e mulheres que vivem perto de Deus, e, na maioria dos casos, o

seu veredicto não será errôneo. Contudo, este recurso não é final nem

infalível, e deve ser avaliado somente em proporção à inteligência e à

piedade das pessoas consultadas. Lembro-me bem do empenho com que

uma certa piedosa matrona cristã me dissuadiu de pregar. Esforcei-me

para avaliar a importância da opinião dela com simplicidade e paciência

– opinião essa sobrepujada, porém, pelo julgamento emitido por pessoas

de maior experiência. Os jovens em dúvida devem fazer-se acompanhar

dos seus mais sábios amigos quando vão à igreja rural ou ao salão de

cultos da vila e tentam transmitir a Palavra.

Já notei – e o meu amigo Rogers observou a mesma coisa – que

vocês, cavalheiros, estudantes, como corpo estudantil, no julgamento que

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 38

fazem uns dos outros raramente erram, se é que erram alguma vez.

Raramente houve um caso, tomada a instituição de modo global, em que

a opinião geral da escola toda sobre um irmão foi errada. Os homens não

são tão incapazes de formar opinião uns dos outros, como às vezes se

pensa. Reunindo-se como o fazem em classe, nas reuniões de oração, nas

conversas e nas várias atividades religiosas, vocês se avaliam uns aos

outros; e o prudente não se apressará a desprezar o veredicto da casa.

Este ponto não estará completo se eu não acrescentar que a simples

capacidade para edificar e a aptidão para ensinar não bastam. São

necessários outros talentos para completar a personalidade do pastor.

Critério sadio e sólida experiência devem instruí-lo; maneiras gentis e

qualidades amáveis devem governá-lo; firmeza e coragem devem ser

manifestas; e não devem faltar ternura e simpatia. Os dons

administrativos para governar bem são condições tão necessárias como

os dons instrutivos para ensinar bem. Vocês devem ser aptos para dirigir,

devem estar preparados para agüentar, e devem ser capazes de

perseverar. Quanto à graça, vocês devem estar cabeça e ombros acima do

restante do povo, capazes de ser seu pai e seu conselheiro. Leiam

cuidadosamente as qualificações do bispo, registradas em 1 Tm. 3:2-7 e

Tt. 1:6-9. Se esses dons e graças não estiverem em vocês, e com

abundância, é possível que tenham bom êxito como evangelistas, mas

como pastores não terão nenhum valor.

3. Ainda para provar a vocação de alguém, depois de exercitar um

pouco os seus dons, como já lhes falei, é preciso que o aspirante veja

realizar-se certo número de conversões sob os seus esforços, ou poderá

concluir que cometeu um engano e, daí, poderá retornar pelo melhor

caminho que puder encontrar. Não se espera que no primeiro, e mesmo

no vigésimo esforço em público, sejamos premiados com o sucesso; e

pode ocorrer que um homem tenha uma vida inteira de provação, se se

sentir chamado para tanto, mas a mim me parece que quando alguém for

separado para o ministério, seu comissionamento estará sem selos

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 39

enquanto almas não forem ganhas por sua instrumentalidade para o

conhecimento de Jesus. Como obreiro, deve continuar trabalhando, quer

tenha sucesso ou não, mas como ministro, não pode ter certeza da sua

vocação enquanto não houver resultados patentes.

Como o meu coração pulou de alegria quando ouvi as novas da

primeira conversão que se deu por meu intermédio! Nunca pude ficar

satisfeito com o templo cheio, e com as bondosas expressões dos

amigos; ansiava por ouvir de corações quebrantados, de lágrimas

correndo dos olhos dos penitentes. Muito me regozijei, como alguém que

acha grande presa, devido a uma pobre mulher de operário ter

confessado que sentira a culpa do seu pecado e encontrara o Salvador

com a minha dissertação de domingo à tarde.

Tenho agora na retina a cabana em que ela morava; creiam-me,

sempre me parece pitoresca. Lembro-me bem da sua recepção na igreja,

da sua morte e da sua partida para o lar celestial. Ela foi o primeiro selo

do meu ministério, e, posso garantir-lhes, selo na verdade muito

precioso. Mãe nenhuma jamais ficou mais cheia de felicidade com o

nascimento do seu primogênito. Na ocasião eu poderia ter entoado o

cântico de Maria, pois minha alma engrandeceu o Senhor por ter Se

lembrado de mim em minha baixeza, e ter-me dado a grande honra de

fazer um trabalho pelo qual todas as gerações me chamariam bem-

aventurado, pois assim avaliei a conversão de uma alma.

É preciso que haja certo número de conversões em seus trabalhos

ocasionais antes de poderem acreditar que a pregação deve constituir a

carreira da sua existência toda. Recordem as palavras do Senhor

mediante o profeta Jeremias; são muito pertinentes ao ponto de que

estamos tratando, e deveriam alarmar todos os pregadores infrutíferos.

"Não mandei os profetas, e todavia eles foram correndo: não lhes falei a

eles, e todavia eles profetizaram. Mas se estivessem no meu conselho,

então fariam ouvir as minhas palavras ao meu povo, e os fariam voltar

do seu mau caminho, e da maldade das suas ações" (Jr. 23:21-22). Para

mim é uma maravilha ver como há homens que continuam tranqüilos a

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 40

obra da pregação ano após ano, sem conversões. Não têm eles entranhas

de compaixão pelos outros? Não têm senso de responsabilidade por si

mesmos? Ousam eles, por uma falsa representação da soberania divina,

lançar a culpa sobre o seu Senhor? Ou acreditam eles que Paulo planta,

Apolo rega, e Deus não dá o crescimento? Inúteis são os seus talentos, a

sua filosofia, a sua retórica, e até a sua ortodoxia, sem os sinais que

devem seguir-se.

Como são enviados de Deus os que não trazem homens a Deus?

Profetas cujas palavras são vazias de poder, semeadores cujas sementes

fenecem todas, pescadores que não pescam peixes, soldados que não

ferem – são homens de Deus, estes? Certamente melhor seria trabalhar

como lixeiro ou limpador de chaminé, do que ficar no ministério como

uma árvore completamente estéril. A ocupação mais simples confere

algum beneficio à humanidade, mas o infeliz que ocupa um púlpito e

nunca glorifica o seu Deus com conversões, é um vazio, uma nódoa, uma

feiúra, uma injúria. Não vale o sal que come, muito menos o pão. E se

escreve aos jornais para queixar-se da pequenez do seu salário, sua

consciência, se é que tem alguma, bem poderia replicar: "E o que você

ganha, não merece". Tempos de seca podem ocorrer; sim, e anos de

escassez podem consumir os prévios anos de produtividade. Mas ainda

haverá fruto em geral e fruto para a glória de Deus. Nesse meio tempo, a

esterilidade transitória encherá a alma de indizível angústia.

Irmãos, se o Senhor não lhes de zelo pelas almas, agarrem-se à

pedra de bater sola, ou à colher de pedreiro, mas evitem o púlpito com a

mesma resolução com que valorizam a sua paz de coração e a sua

salvação futura.

4. Contudo, é preciso ir um passo além disso tudo em nossa

pesquisa. A vontade do Senhor referente aos pastores é conhecida

mediante o piedoso julgamento da Sua Igreja. É necessário, como prova

da sua vocação, que a sua pregação seja aceitável ao povo de Deus.

Deus normalmente abre as portas da elocução para aqueles que Ele

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 41

chama para falarem em Seu nome. A impaciência forçaria a abertura da

porta, ou a porta abaixo, mas a fé espera no Senhor, e na ocasião devida

ela recebe o prêmio da oportunidade. Quando esta chega, vem o nosso

julgamento. Levantando-nos para pregar, o nosso espírito será julgado

pela assembléia e, se formos condenados, ou se, como regra geral, a

igreja não for edificada, não se pode contestar a conclusão de que não

fomos enviados por Deus.

Os sinais e marcas do verdadeiro bispo estão registrados na Palavra

para orientação da igreja; e se ao seguir essa orientação os irmãos não

virem em nós as qualidades requeridas, e não nos elegerem para o ofício,

ficará bastante claro que por melhor que possamos evangelizar, o ofício

de pastor não é para nós.

Nem todas as igrejas são sábias, e nem todas julgam no poder do

Espírito Santo, mas muitas julgam segundo a carne. Apesar disso, estaria

mais pronto para aceitar a opinião de um grupo do povo do Senhor do

que a minha própria opinião sobre um assunto tão pessoal como o dos

meus dons e graças.

De qualquer forma, quer valorizem o veredicto da igreja quer não,

uma coisa é certa: nenhum de vocês pode ser pastor sem o amoroso

consentimento do rebanho. Portanto, este lhes servirá de indicador

prático, senão correto. Se o seu chamamento da parte do Senhor for real,

vocês não ficarão quietos por muito tempo. Tão certo como o homem

quer a sua hora, a hora quer o seu homem. A Igreja de Deus está sempre

com urgente necessidade de ministros vigorosos. Para ela, um homem é

sempre mais precioso do que o ouro de Ofir. Oficiais formais passam

fome e necessidade, mas os ungidos do Senhor nunca terão por que ficar

sem um cargo pastoral, pois existem ouvidos aguçados que os

conhecerão, só de ouvi-los, e há corações prontos para dar-lhes boas

vindas ao lugar que lhes for destinado. Mantenham-se em forma para o

seu trabalho, e nunca ficarão fora dele. Não corram por todo lado,

pedindo para pregar aqui e ali. Preocupem-se mais com a sua capacidade

do que com a sua oportunidade, e sejam mais zelosos quanto a andar

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 42

com Deus do que com qualquer outra corsa. As ovelhas conhecerão o

pastor enviado por Deus, o porteiro do aprisco abrirá a porta para ele, e o

rebanho conhecerá a sua voz.

Na época em que transmiti esta preleção pela primeira vez, não

tinha lido a admirável carta que John Newton escreveu a um amigo sobre

este assunto. Corresponde tão de perto aos meus pensamentos que, com

o risco de ser julgado imitador, o que certamente não sou no presente

caso, vou ler a carta para vocês.

"O seu caso lembra o meu próprio; os meus primeiros desejos com

vistas ao ministério foram acompanhados de grandes incertezas e

dificuldades, e a perplexidade da minha mente piorou com os vários e

antagônicos julgamentos dos meus amigos. O conselho que tenho para

oferecer-lhe é resultado de experiência e exames penosos, e, por esta

razão, talvez não lhe seja inaceitável. Rogo a Deus que, por Sua graça,

torne-o útil.

"Fiquei muito tempo angustiado, como você está, sobre a que era ou

não era uma verdadeira vocação para o ministério. Agora me parece ponto fácil de resolver, mas, talvez não o seja para você, até que o senhor lho esclareça em seu caso particular. O tempo não dá para eu dizer tudo que poderia dizer-lhe. Em resumo, creio que a questão inclui principalmente três coisas:

"1. Um ardente e intenso desejo de empregar-se neste serviço. Entendo que o homem que uma vez foi movido pelo Espírito de Deus para este trabalho, irá preferi-lo, se lhe for acessível, a tesouros em ouro e prata. Assim é que, embora às vezes intimidado pelo senso da importância e das dificuldades do trabalho, comparadas com a sua grande insuficiência pessoal (pois é de presumir-se que um chamamento desta natureza, se realmente provém de Deus, será acompanhado de humildade e de auto-humilhação), ele não poderá abandoná-lo. Afirmo que uma boa regra é indagar, neste ponto, se o desejo de pregar é o mais fervente nos centros vitais da estrutura do nosso ser, e quando estamos mais prostrados no pó perante o Senhor. Se é assim, é bom sinal. Mas se, como às vezes se dá, a pessoa está muito ansiosa por ser um pregador para outros, embora não exista em sua própria alma uma fome e uma sede da graça de Deus, então,

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 43

é de temer que o seu zelo promana de um principio egoístico, e não do Espírito de Deus.

2. Além desse apaixonado desejo e prontidão para pregar, é preciso que, no devido tempo, apareça alguma competente aptidão quanto a dons, conhecimento e elocução. Seguramente, se o Senhor envia alguém para ensinar outros, supri-lo-á dos meios necessários. Creio que muitos que se fizeram pregadores, o fizeram com boa intenção; todavia, foram antes de receber ou ultrapassaram a vocação deles ao agirem assim. A principal diferença entre um ministro e um cristão sem vocação especial, parece consistir naqueles dons ministeriais comunicados àquele, não para o seu próprio interesse, mas para a edificação de outros. Mas digo que estes dons devem aparecer no devido tempo. Não se deve esperar que surjam instantaneamente, mas de forma gradual, no uso próprio dos meros. São necessários para desempenhar o ministério, mas não são necessários como requisitos que assegurem os nossos desejos quanto a ele. No seu caso, você é jovem e dispõe de tempo. Daí, penso que não precisa perturbar-se querendo saber se já tem esses dons. Se o seu desejo é firme e se quiser, basta esperar no Senhor por eles, por meio da oração e da diligência, pois você ainda não precisa deles.

"3. O que finalmente evidencia um chamamento genuíno é uma correspondente abertura na providência, mediante uma série gradativa de circunstâncias que apontam para os meios, a ocasião, o lugar de entrar de fato no trabalho. E até que chegue esse ponto de coincidência, não espere estar sempre livre de hesitação em sua mente. Nesta parte do assunto, a principal cautela consiste em não ser apressado em agarrar os primeiros indícios que aparecem. Se for da vontade do Senhor introduzi-lo no Seu ministério, Ele já designou o seu lugar e o seu serviço, e embora não o saiba no presente, sabê-lo-á no devido tempo. Se você tivesse talentos de anjo, não poderia fazer muita corsa boa com eles enquanto não chegasse a hora de Deus e Ele não o levasse às pessoas que determinou a abençoar por seu intermédio. É muito difícil restringir-nos aos limites da prudência neste ponto, quando o nosso zelo é ardoroso. O sentir o amor de Cristo em nossos corações e a terna compaixão pelos pobres pecadores propendem para fazer-nos irromper cedo demais; mas quem crê não se precipita. Fiquei cinco anos sob esta compulsão. Às vezes achava que devia pregar, mesmo que fosse nas ruas. Dava ouvidos a tudo que me parecia plausível, e a muitas coisas que não o eram. Mas o Senhor, misericordiosamente, e como que

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 44

insensivelmente, cobria de espinhos o meu caminho. Da contrário, se eu fosse deixado entregue ao meu próprio espírito, eu teria me colocado fora da possibilidade de ser introduzido numa esfera de serviço proveitoso como esta, à qual aprouve a Deus guiar-me no Seu tempo certo e bom. E agora posso ver claramente que, na época que queria sair a campo pela primeira vez – embora a minha intenção fosse boa, acredito – eu me superestimei, pois não possuía aquele discernimento e experiência espiritual indispensável para tão grande serviço".

O que foi dito acima seria suficiente, mas o mesmo assunto estará

diante de vocês, se eu lhes der em pormenores um pouco da minha

experiência pessoal no trato com aspirantes ao ministério.

Constantemente me cabe cumprir o dever que coube aos juízes de

Cromwell. Tenho que formar minha opinião sobre se é aconselhável

ajudar certos homens em suas tentativas para tornar-se pastores. É um

dever da maior responsabilidade, dever que requer cuidado nada comum.

É claro que não me meto a julgar se um homem vai entrar no ministério

ou não, mas o meu exame visa simplesmente a responder a questão se

esta instituição o ajudará ou o deixará entregue aos seus próprios

recursos. Alguns dos nossos caridosos amigos nos acusam de termos

"uma fábrica de clérigos" aqui, mas a acusação não contém um pingo de

verdade. Jamais tentamos fazer um ministro, e se o tentássemos

fracassaríamos. Não recebemos ninguém nesta escola senão os que já se

declaram ministros. Estariam mais perto da verdade se me chamassem

matador de clérigos, pois bom número de principiantes receberam de

mim o seu despacho final; e sinto a mais completa paz de consciência

quando reflito no que tenho feito neste sentido.

É sempre uma tarefa difícil para mim, desanimar um jovem e

esperançoso irmão que solicita matrícula nesta escola. Meu coração

sempre se inclina para o lado mais bondoso, mas o dever para com as

igrejas impele-me a julgar com severa discriminação. Depois de ouvir o

candidato, após ler as recomendações que traz, e de avaliar as suas

respostas às perguntas feitas, quando me convenço de que o Senhor não

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 45

o chamou, sinto-me obrigado a dizer-lhe isso. Alguns casos tipificam os

demais. Jovens irmãos há que desejam com ardor entrar no ministério,

mas é dolorosamente patente que o seu motivo principal é o ambicioso

desejo de luzir entre os homens. De um ponto de vista comum, estes

homens devem ser recomendados por sua aspiração, mas, então, o

púlpito jamais deve ser a escada pela qual a ambição suba. Se tais

homens entrassem no exército; não ficariam satisfeitos enquanto não

chegassem ao mais elevado grau, pois estão determinados a forçar

caminho para o alto – tudo muito louvável e próprio até aí; mas eles

abraçaram a idéia de que, se entrassem no ministério seriam

grandemente distinguidos. Sentiram irromper os rebentos do gênio, e se

consideraram maiores do que as pessoas comuns. Daí, olharam para o

ministério, vendo-o como uma plataforma onde poderiam exibir as suas

pretensas habilidades. Sempre que isto é visível, sinto-me obrigado a

deixar o aspirante "to gang his ain gate", como dizem os escoceses; ou

seja, sair por onde entrou, certo de que gente com esse espírito sempre dá

em nada, se entra no serviço do Senhor. Vemos que não temos nada do

que nos gloriar, e se tivéssemos, o pior lugar para ostentá-lo seria o

púlpito; país todo dia somos levados a sentir a nossa insignificância e

nulidade.

A homens que desde a conversão têm deixado transparecer grande

fraqueza mental, que são prontamente levados a abraçar doutrinas

estranhas, ou a meter-se em má companhia e cair em pecado grosseiro,

nunca posso encontrar em meu coração nada para encorajá-los a

entrarem no ministério, seja qual for a maneira como professam a sua fé.

Se se arrependerem realmente, que fiquem nas últimas fileiras.

Inconstantes como a água, jamais vencerão.

Assim também os que não suportam dureza, porque pertencem à

ordem dos enluvados de pelica, mando-os para qualquer outra parte.

Queremos soldados. não janotas; trabalhadores zelosos, não vadios

gentis. A homens que nada fizeram até o dia do seu pedido de matricula

na escola, dizemos que tratem de obter as suas esporas, antes de serem

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 46

publicamente armados cavaleiros. Os que têm fervorosa paixão pelas

almas não ficam à espera até que recebam treinamento; servem

imediatamente ao seu Senhor.

Chamam-me a atenção alguns bons homens famosos por sua

enorme veemência e zelo, e por uma notável ausência de cérebro. Irmãos

capazes de falar sem parar sobre coisa nenhuma – capazes de sapatear na

Bíblia e de espancá-la, sem extrair dela nada. Zelosos, terrivelmente

zelosos, exageraram-se em montanhas de trabalhos da mais penosa

espécie; mas nada resulta disso tudo, nem sequer o ridiculus mus

(ridículo rato). Existem por aí zelotes que não são capazes de conceber

ou transmitir cinco pensamentos consecutivos, cuja capacidade é em

extremo estreita e cuja presunção é extremamente larga. Estes podem

martelar, vociferar, bramar, arrebatar-se, enfurecer-se, mas o barulho

todo sai da cavidade oca do tambor. Entendo que esses irmãos terão a

mesma atuação com instrução ou sem ela, razão por que geralmente

declino os seus pedidos de matrícula.

Outra classe demasiadamente numerosa de homens procura o

púlpito sem saber por quê. Incapazes de ensinar, não conseguirão

aprender, todavia, de bom grado serão ministros. Como o homem que

dormiu no Parnaso e depois disso sempre se imaginava poeta, eles

tiveram atrevimento suficiente para jogar uma vez um sermão por cima

de um auditório, e agora não querem fazer mais nada, senão pregar.

Ficam tão ansiosos para pôr de lado o traje operário, que farão uma cisão

na igreja da qual são membros para realizar o seu intento. O balcão

comercial porém é desagradável, a almofada do púlpito é cobiçada.

Estão cansados dos pratos e dos pesos da balança; sentem-se compelidos

a experimentar a balança do santuário. Homens assim, como enfurecidas

ondas do mar, geralmente fazem espumar a sua própria vergonha, e nos

alegramos quando lhes dizemos adeus.

As fraquezas físicas levantam uma questão acerca da vocação de

alguns excelentes homens. Eu não julgaria, como Eustenes, os homens

por suas feições, mas a sua compleição física não é pequeno critério.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 47

Aquele tórax estreito não indica um homem formado para falar em

público. Vocês podem achar ridículo, mas ainda estou bem certo de que

quando um homem tem peito encolhido, sem distância entre os ombros,

o Sapientíssimo não teve a intenção de que ele pregasse habitualmente.

Se fosse este o Seu propósito, ter-lhe-ia dado, em alguma medida,

amplitude de peito suficiente para produzir razoável porção de energia

pulmonar. Quando o Senhor planeja que uma criatura corra, dá-lhe

pernas velozes, e se planeja que outra pessoa pregue, dá-lhe pulmões

adequados. O irmão que tem de fazer uma pausa no meio de uma frase e

acionar a sua bomba de ar, deve perguntar a si mesmo se não há alguma

outra ocupação para a qual esteja mais bem adaptado. O homem que mal

chega ao fim de uma frase sem se afligir, dificilmente pode ser chamado

para cumprir a ordem: "Clama, e não te cales". Talvez haja exceções,

mas a regra geral não tem valor? Irmãos com deformação na boca e com

articulação defeituosa, geralmente não são chamados para pregar o

evangelho. O mesmo se aplica a irmãos destituídos de palato ou com

palato imperfeito.

Recebeu-se há pouco tempo o pedido de admissão de um jovem que

tinha uma espécie de movimento giratório de seu maxilar, movimento do

tipo mais penoso para quem o vê. Seu pastor o recomendou como um

jovem muito santo, que fora instrumento para levar alguns a Cristo, e

expressou a esperança de que eu o receberia, mas não pude ver a

conveniência disso. Eu não poderia olhar para ele, sem rir, enquanto ele

pregasse, ainda que tivesse por prêmio todo o ouro de Társis, e, com toda

a probabilidade, dentre dez dos seus ouvinte, nove seriam mais sensíveis

do que eu. Um homem com língua grande que enchia toda a cavidade

bucal e causava confusão, outro sem dentes, outro que gaguejava, outro

que não conseguia pronunciar todo o alfabeto – a todos, pesarosamente,

tive de rejeitar baseando-me no fato de que Deus não lhes dera aqueles

meios físicos que, nos termos do livro de oração da igreja anglicana, são

"geralmente necessários".

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 48

Encontrei um irmão – eu disse um? Encontrei dez, vinte, cem

irmãos que alegavam estar seguros, completamente seguros de que

foram chamados para o ministério – estavam completamente certos disso

porque tinham falhado em tudo mais. Eis aqui uma espécie de história

modelo:

"Sr. Spurgeon", colocaram-me num escritório de advocacia, mas

nunca pude agüentar a clausura, e não me sentia à vontade estudando

direito; evidentemente a Providência obstruiu o meu caminho, pois perdi

o emprego". "Que é que você fez então?" "Ora, senhor, fui induzido a

abrir uma mercearia." "E você prosperou?" "Bem, senhor, não creio que

eu jamais pretendesse o comércio, e Deus pareceu-me vedar inteiramente

o caminho ali, pois fracassei e me vi em grandes dificuldades. Desde

essa ocasião, tive uma pequena agencia de seguros de vida, e tentei

organizar uma escola, além de vender chá. Mas o meu caminho está

fechado, e algo dentro de mim leva-me a achar que devo ser ministro."

Em geral a minha resposta é: "É, entendo. Você fracassou em tudo

mais, e daí acha que o Senhor o dotou especialmente para o Seu serviço;

mas receio que você se esqueceu de que o ministério precisa dos

melhores homens, e não dos que não conseguem fazer nenhuma outra

coisa". O homem que teria sucesso como pregador, provavelmente se

sairia bem como merceeiro, advogado ou qualquer outra profissão. Um

ministro realmente de valor seria ótimo em qualquer outra ocupação.

Dificilmente haverá alguma coisa impossível para o homem que mantém

unida uma igreja durante anos, e que é capaz de edificá-la através de

centenas de domingos consecutivos. Tem que possuir algumas

habilidades, e de modo nenhum pode ser um tolo ou um imprestável.

Jesus Cristo merece os melhores homens para pregarem a Sua cruz, e

não os cabeças ocas e os desvalidos.

Um jovem cavalheiro com cuja presença fui honrado uma vez,

deixou-me na mente a fotografia do seu extraordinário ser. O seu rosto

mesmo parecia o frontispício de um volume completo sobre presunção e

tapeação. Mandou-me um recado ao gabinete pastoral um domingo de

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 49

manhã dizendo-me que queria ver-me imediatamente. Sua audácia o fez

entrar. Quando se viu diante de mim, disse: "Sr.Spurgeon, quero entrar

em sua escola, e gastaria de entrar imediatamente". "Bem, senhor", disse

eu, "receio que não temos lugar no momento, mas o seu caso será

considerado." "Mas o meu caso é deveras notável, Sr. Spurgeon;

provavelmente o senhor nunca recebeu um pedido de admissão

semelhante ao meu." "Muito bem, veremos isso; o secretário lhe dará o

formulário de inscrição, e o senhor poderá ver-me amanhã."

Na segunda-feira veio ele, trazendo as questões respondidas da

maneira mais extraordinária. Quanto a livros, alegou ter lido toda a

literatura antiga e moderna e, depois de dar uma lista imensa,

acrescentou: "Isto é apenas uma seleção; li extensamente em todas as

áreas". Quanto às suas pregações, ele poderia conseguir as mais altas

recomendações, mas nem o julgou necessário, pois uma entrevista

pessoal me convenceria logo de sua capacidade. Sua surpresa foi grande

quando eu lhe disse: "Meu amigo, sou obrigado a dizer que não posso

admiti-lo". "Por que não, Sr. Spurgeon?" "Falarei com franqueza. O

senhor é tão tremendamente inteligente que não posso insultá-lo

recebendo-o em nossa escola, onde não temos mais que homens comuns;

o diretor, os professores e os estudantes, somos todos homens de

realizações modestas, e o senhor teria que ser muito condescendente,

estando entre nós."

Ele me olhou severamente e disse com dignidade: "O senhor quer

dizer que, porque eu possuo gênio incomum, e engendrei em mim uma

gigantesca mente, raramente vista igual, é-me recusada admissão na sua

escola?" "Sim", respondi tão calmamente como pude, considerando-se o

opressivo temor que o seu gênio inspirava, "exatamente por essa razão."

"Então o senhor devia permitir-me um exame dos meus talentos como

pregador. Escolha o texto que quiser, ou sugira o assunto que lhe

agradar, e, aqui mesmo nesta sala, discorrerei ou pregarei sobre ele, sem

tomar tempo para reflexão, e o senhor ficará surpreso." "Não, obrigado.

Prefiro não ter o dissabor de ouvi-lo." "Dissabor, senhor?! Garanto que

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 50

lhe seria o maior prazer possível." Eu disse que podia ser, mas me

achava indigno do privilégio, e assim lhe disse adeus. O cavalheiro era-

me desconhecido na ocasião, mas daquele tempo em diante tem figurado

na delegacia de polícia como muito inteligente, em parte.

Ocasionalmente recebemos solicitações de matrícula que talvez os

deixassem admirados, pois provém de homens por certo bastante

fluentes, e que respondem muito bem a todas as perguntas, exceto

aquelas que se referem às suas opiniões doutrinárias, para as quais

obtemos repetidamente esta resposta: "O Sr. Fulano de Tal está disposto

a acatar as doutrinas da escola, sejam quais forem"! Em todos esses

casos, não discutimos nem um momento; é dada a negativa

instantaneamente. Menciono o fato porque ilustra a nossa convicção de

que não são chamados para o ministério homens que não têm

conhecimento nem crença definida. Quando pessoas jovens dizem que

ainda não têm opinião teológica formada, devem voltar para a Escola

Dominical até que a tenham. Ora, um homem entrar na escola

procurando dar a impressão de que mantém a mente aberta para qualquer

forma da verdade, e de que é eminentemente receptivo, mas não tem

firmadas em sua mente coisas como, se Deus faz eleição com base na

graça, ou se Ele ama o Seu povo até o fim, parece-me uma perfeita

monstruosidade. "Não neófito", diz o apóstolo. Entretanto, o homem que

não firmou posição sobre pontos como estes é, confessada e

egregiamente, um "neófito", e deve ser relegado à classe de catecúmenos

até aprender as primeiras verdades do evangelho.

Depois de tudo, cavalheiros, teremos que comprovar a nossa

vocação mediante a prova prática do nosso ministério na vida ativa

posterior, e será para nós uma coisa lamentável iniciar o curso sem o

devido exame, pois, em fazendo assim, poderá acontecer que tenhamos

que abandoná-lo com desonra. De modo geral, a experiência é o nosso

melhor teste, e se Deus nos sustenta ano após ano, e nos dá Sua bênção,

não precisamos submeter a nossa vocação a nenhuma outra prova. As

nossas aptidões morais e espirituais, serão provadas pelo labor do nosso

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 51

ministério, e este é o mais fidedigno de todos os testes. Alguém me falou

de um plano adotado por Matthew Wilks para o exame de um jovem que

queria ser missionário; a orientação – se não os pormenores do teste –

recomenda-se ao meu juízo, embora não ao meu gosto.

O moço desejava ir para a Índia como missionário, ligado à

Sociedade Missionária de Londres. O Sr. Wilks foi nomeado para avaliar

a aptidão do rapaz para aquele encargo. Escreveu ao jovem pedindo-lhe

que o visitasse às seis da manhã do dia seguinte. O irmão morava a

muitos quilômetros de distância, mas estava na casa às seis horas em

ponto. Contudo, o Sr. Wilks não apareceu na sala senão horas mais tarde.

O irmão esperou com estranheza, mas com paciência. Afinal o Sr: Wilks

chegou e se dirigiu ao candidato nestes termos, com a sua entonação

nasal de sempre: "Bem, jovem; assim é que você quer ser missionário?"

"Sim, senhor." "Você ama o Senhor Jesus Cristo?" "Sim, senhor; estou

certo que sim." "Você tem alguma instrução?" "Sim, senhor, um pouco."

"Bem, agora vamos testá-lo. Você pode soletrar "gato"?" O moço

pareceu ficar confuso, e nem sabia responder a tão despropositada

pergunta. Sua mente por certo vacilava entre a indignação e a submissão,

mas de pronto respondeu com firmeza: "G, a, t, o, gato". "Muito bem",

disse o Sr. Wilks"; "agora você pode soletrar "cão"?" O nosso jovem

mártir hesitou, mas o Sr. Wilks disse da maneira mais fria: "Ora, não faz

mal; não se acanhe; você soletrou tão bem a outra palavra que eu pensei

que seria capaz de soletrar esta; por alto que seja o feito, não é tão

elevado que não o pudesse fazer sem corar". O jovem Jó replicou: "C, a

com til, o, cão". "Bem, está certo. Vejo que você sabe soletrar; agora,

quanto à sua aritmética, quanto são duas vezes dois?" É de espantar que

o Sr. Wilks não tenha recebido "duas vezes dois" à moda do cristianismo

muscular, mas o paciente jovem deu a resposta correta e foi dispensado.

Na reunião da comissão, Matthew Wilks disse: "Recomendo de

coração aquele moço. Examinei devidamente as recomendações em seu

favor e o caráter dele. Além disso, passei-lhe um estranho exame pessoal

de tal natureza que poucos poderiam suportar. Provei sua abnegação – e

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 52

ele pulou bem cedo da cama; provei seu temperamento e sua humildade;

ele é capaz de soletrar "gato" e "cão", e de dizer que "duas vezes dois são

quatro" – e se sairá muitíssimo bem como missionário".

Ora, o que se diz que o velho cavalheiro fez com tanto mau gosto,

devemos fazer conosco mesmos com muita propriedade. Devemos

provar-nos a nós mesmos para ver se podemos agüentar intimidações,

fadigas, calúnias, zombarias, privações, e se somos capazes de suportar

que façam de nós a escória de todos e que nos tratem como nada por

amor a Cristo. Se podemos suportar todas estas coisas, temos alguns

daqueles pontos que indicam a posse das raras qualidades que se devem

encontrar num verdadeiro serviço do Senhor Jesus Cristo. Questiono

com seriedade se alguns de nós encontraremos os nossos navios, quando

lançados ao mar, tão completamente aptos para navegar como pensamos.

Ah meus irmãos, certifiquem-se laboriosamente disto enquanto

estiverem neste abrigo; e trabalhem diligentemente para habilitar-se para

a sua elevada vocação.

Vocês vão ter inúmeras provações, e ai de vocês, se não partirem

armados dos pés à cabeça com a armadura da experiência. Terão que

correr competindo com cavalheiros; não deixem que a infantaria os

canse enquanto estiverem em seus estudos preliminares. O diabo está ao

largo, e com ele estão muitos. Submetam-se vocês mesmos a provas, e

queira Deus prepará-los para o crisol e o forno que certamente os

esperam. Talvez a sua tribulação não seja tão grave como a de Paulo e

seus companheiros, mas vocês devem estar prontos para provações

semelhantes. Permitam-me ler as memoráveis palavras que o apóstolo

escreveu, e rogar-lhes que orem enquanto as ouvem, suplicando ao

Espírito Santo que os fortaleça para tudo que os aguarda. "Não dando nós nenhum motivo de escândalo em coisa alguma, para

que o ministério não seja censurado. Pelo contrário, em tudo recomendando-nos a nós mesmos como ministros de Deus: na muita paciência, nas aflições, nas privações, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nos tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns, na pureza, no saber, na longanimidade, na bondade, no Espírito Santo, no amor não fingido, na

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 53

palavra da verdade, no poder de Deus, pelas armas da justiça, quer ofensivas, quer defensivas; por honra e por desonra, por infâmia e por boa fama, como enganadores e sendo verdadeiros; como desconhecidos e, entretanto, bem conhecidos; como se estivéssemos morrendo e, contudo, eis que vivemos; como castigados, porém não mortos; entristecidos, mas sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a muitos; nada tendo, mas possuindo tudo." (2 Cor. 6:3-10)

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 54

ORAÇÃO PARTICULAR DO PREGADOR

Naturalmente o pregador se distingue acima de todos os demais

como homem de oração. Ele ora como um cristão comum, ou de outra

forma seria hipócrita. Ora mais que os cristãos comuns, ou de outra

forma estaria desqualificado para o cargo que assumiu. "Seria totalmente

monstruoso", diz Bernard, "um homem estar no ofício mais elevado, e

ser o mais baixo de alma; o primeiro na posição e o último no viver."

Todas as suas outras formas de relacionamento são aureoladas pela

preeminência da responsabilidade pastoral, e se ele for fiel a seu Senhor,

tornar-se-á distinguido em todas elas por sua prática da oração. Como

cidadão, seu país goza a vantagem da sua intercessão; como vizinho, os

que estão à sombra dele são lembrados em suas súplicas. Ora como

marido e como pai; luta para fazer das devoções domésticas um modelo

para o seu rebanho; e se o fogo do altar de Deus há de bruxulear em

algum outro lugar, é bem mantido na casa do servo escolhido do Senhor

– pois ele vela para que os sacrifícios da manhã e da tarde santifiquem a

sua habitação. Mas há algumas das suas orações que concernem ao seu

ofício, e o nosso plano nestas preleções nos induz a falar mais destas. Ele

eleva súplicas peculiares como ministro, e se aproxima de Deus nesta

função além e acima de todas as suas outras abordagens em todos os seus

outros relacionamentos.

Tomo por suposto que, como ministro, ele está sempre orando.

Toda vez que a sua mente se volta para o seu trabalho, quer esteja

efetuando-o, quer não, lança uma petição, disparando os seus santos

desejos como flechas bem dirigidas para o céu. Não está sempre no ato

de orar, mas vive no espírito de oração. Se o seu coração está posto no

trabalho, ele não consegue comer ou beber ou recrear-se ou dormir ou

levantar-se de manhã, sem sentir sempre um ardor de desejo, um peso de

ansiedade e uma simplicidade da sua dependência de Deus; assim, de um

modo ou de outro, continua em oração. Se há algum homem debaixo do

céu compelido a cumprir o preceito – "Orai sem cessar", certamente é o

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 55

ministro cristão. Cabem-lhe tentações peculiares, provações especiais,

dificuldades singulares e deveres extraordinários; ele tem que se

entender com Deus em formidáveis relacionamentos, e com os homens

em misteriosos interesses; por isso ele tem muito mais necessidade da

graça divina do que os homens comuns, e, sabedor disto, é levado a

rogar constantemente ao Forte por força, e a dizer: "Elevo os meus olhos

para os montes, de onde me virá o socorro".

Certa vez Alleine escreveu a um amigo: "Embora eu seja propenso

à agitação e a sair rapidamente dos eixos, considero-me, porém, como

um pássaro fora do ninho, e não me tranqüilizo, enquanto não retomo a

minha antiga maneira de manter comunhão com Deus, como a agulha da

bússola, inquieta enquanto não se volta para o pólo. Posso dizer, pela

graça, com a igreja: "De alma te desejei de noite, e com meu espírito

dentro em mim te busquei de manhã". Cedo e de noite o meu coração

está com Deus; a ocupação e o prazer da minha vida é buscá-Lo."

Do mesmo teor deve ser o seu modo de ser e de agir, ó homens de

Deus! Se vocês, na qualidade de ministros, não são de muita oração, são

dignos de muito dó. Se futuramente, chamados para exercer pastorados,

pequenos ou grandes, relaxarem nas devoções secretas, não só vocês

merecerão dó; os seus rebanhos também o merecerão; em acréscimo,

vocês serão censurados, e chegará o dia em que ficarão envergonhados e

confusos.

Dificilmente seria necessário recomendar-lhes os agradáveis usos

da devoção particular, e, contudo, não posso abster-me de fazê-lo. Para

vocês, como embaixadores de Deus, o propiciatório tem valor que

ultrapassa todas as estimativas. Quanto mais familiarizados estiverem

com a corte do céu, melhor se desincumbirão do seu encargo celeste.

Dentre todas as influências estruturadoras que formam um honrado

homem de Deus no ministério, não ser de nenhuma outra que seja mais

poderosa que a sua familiaridade com o propiciatório. Tudo que o curso

da faculdade pode fazer por um estudante é tosco e superficial,

comparado com o refinamento espiritual excelente obtido pela

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 56

comunhão com Deus. Enquanto o ministro que ainda não tomou forma

gira sobre o eixo da preparação, a oração é a ferramenta do grande oleiro

com a qual molda o vaso. Todas as nossas bibliotecas e escritórios são

uma simples vacuidade, comparados com os nossos quartos. Crescemos,

ficamos cada vez mais poderosos, prevalecemos na oração secreta.

As suas orações serão os seus assessores mais competentes,

enquanto os seus discursos estão ainda na bigorna. Enquanto outros, do

tipo de Esaú, andam à caça da sua porção, vocês, com o auxílio da

oração, encontrarão saborosa refeição aí mesmo, em casa, e poderão

dizer de verdade o que Jacó disse com tanta falsidade: "O Senhor, teu

Deus, a mandou ao meu encontro". Se vocês puderem afundar suas

canetas em seus corações, recorrendo ardorosamente ao Senhor,

escreverão bem; e se puderem juntar o seu material de joelhos às portas

do céu, não deixarão de falar bem. A oração, como exercício mental,

trar-lhes-á à mente muitos assuntos, e assim os ajudará na seleção de um

tópico, enquanto que, como elevada ocupação espiritual, limpará a sua

visão interior para poderem ver a verdade à luz de Deus.

Muitas vezes os textos se negarão a revelar os seus tesouros,

enquanto não os abrirem com a chave da oração. De que maneira

maravilhosa se abriram os livros para Daniel quando elevou súplicas a

Deus! Quanta coisa Pedro aprendeu no eirado! O quarto é o melhor

gabinete de trabalho. Os comentadores são bons instrutores, mas o

próprio Autor é muito melhor, e a oração faz um apelo direto a Ele e O

alista em nossa causa. É coisa grandiosa a gente orar compenetrado do

espírito e da essência de um texto; penetrá-lo alimentando-se

sagradamente dele, exatamente como o verme perfura o seu trajeto rumo

ao miolo da noz.

A oração fornece força à alavanca para levantar verdades de peso.

Causa espanto pensar em como as pedras de Stonehenge [nome do

monumento pré-histórico mais importante da Grã-bretanha] puderam ser

colocadas em seus lugares. Causa mais espanto ainda pensar de onde

alguns homens obtiveram tão admirável conhecimento de doutrinas

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 57

misteriosas. Acaso não foi a oração o potente maquinismo que operou a

maravilha? Esperar em Deus muitas vezes transforma as trevas em luz.

A perseverante perquirição no oráculo sagrado (oração) levanta o véu, e

dá-nos graça sondar as profundas realidades de Deus. Observou-se

muitas vezes que certo teólogo puritano, durante um debate, escrevia

algo num papel que tinha diante de si. Outros, procurando curiosamente

ler as suas anotações, nada viram na página, senão as palavras, "Mais

luz, Senhor", "Mais luz, Senhor", repetidas muitas vezes; oração

sumamente própria para o estudante da Palavra quando está preparando

o seu sermão.

Com freqüência vocês encontrarão novas correntes de pensamento

saltando da passagem à sua frente, como rocha batida pela vara de

Moisés. Novos veios de minério precioso se descortinarão ao seu olhar

admirado quando vocês escavarem a Palavra de Deus e usarem

diligentemente o martelo da oração. Às vezes vocês se sentirão como se

estivessem inteiramente bloqueados, e de repente uma nova estrada se

abrirá à sua frente. Aquele que tem a chave de Davi abre, e ninguém

fecha. Se vocês viajaram alguma vez descendo o Reno. o cenário

aquático daquele majestoso rio os terá surpreendido, lembrando muito o

efeito de uma série de laços. Adiante e atrás o barco parece encerrado

por maciças muralhas de rocha, ou ladeado de terraços de parreirais, até

que num súbito virar de uma curva, eis em sua frente o rio, jubiloso e

abundante, a fluir, avançando com todo o seu vigor.

Assim, o laborioso estudante muitas vezes vê isso no texto; parece

estar fortemente cerrado contra vocês, mas a oração impele o barco e

dirige a proa para águas vigorosas, e vocês contemplam a larga e

profunda torrente da verdade sagrada a fluir em sua plenitude, e levando-

os com ela. Não é esta razão convincente para perseverar nas súplicas ao

Senhor? Usem a oração como vara de sondagem, e as fontes de águas

vivas saltarão das entranhas da Palavra de Deus. Quem vai contentar-se

em ficar com sede, quando as águas vivas aí estão, prontas para quem

quiser obtê-las?!

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 58

Os melhores e mais santos homens sempre fizeram da oração a

parte mais importante do preparo para o púlpito. De McCheyne se diz:

"Desejoso de dar a seu povo no dia do Senhor o que lhe tivesse custado

algo, jamais sem motivo urgente, se apresentava diante dele sem antes

meditar e orar muito. Seu princípio sobre esta questão foi incluído numa

observação que fez a alguns de nós quando conversávamos sobre o

assunto. Quando alguém lhe perguntou qual o seu conceito do diligente

preparo para o púlpito, lembrou-nos Êxodo 27:20 – "Azeite batido –

azeite batido para as lâmpadas do santuário". Entretanto, sua vida de

oração foi maior ainda. Ele realmente não conseguia negligenciar a

comunhão com Deus antes de comparecer perante a igreja reunida. Tinha

necessidade de banhar-se no amor de Deus. Seu ministério era em tão

grande parte a exposição de noções que primeiro santificaram a sua

própria alma, que a saúde da sua alma era absolutamente necessária para

o vigor e o poder das suas ministrações". "Para ele o começo de todo

trabalho invariavelmente consistia no preparo da sua alma. As paredes

do seu quarto eram testemunhas da sua vida de oração e de suas

lágrimas, como também dos seus clamores."

A oração lhes prestará singular assistência na transmissão do

sermão. De fato, nenhuma outra coisa pode qualificar-vos tão

gloriosamente para pregar como alguém que desce do monte da

comunhão com Deus a fim de falar com os homens. Ninguém é tão

capaz de pleitear com os homens como quem esteve pelejando com Deus

em favor deles. Dizem de Alleine que "Ele derramava o coração quando

orava e pregava. Suas súplicas e suas exortações eram tão afetuosas, tão

cheias de zelo, vida e vigor, que conquistavam os seus ouvintes; ele se

fundia sobre eles, de modo que amolecia, derretia, e às vezes dissolvia os

mais duros corações". Jamais dissolveria coração nenhum se antes a sua

mente não ficasse exposta aos raios tropicais do Sol da Justiça pela

secreta comunhão com o Senhor ressurreto. Uma pregação deveras

comovente, em que não há afetação, mas muita afeição, só pode brotar

da oração. Não há retórica igual à do coração, e nenhuma escola onde

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 59

aprendê-la, senão aos pés da cruz. Seria melhor que vocês nunca

aprendessem uma só regra de oratória humana, porém estivessem cheios

de poder do amor oriundo do céu; isto seria melhor do que dominar

Quintiliano, Cícero e Aristóteles, e ficar sem a unção apostólica.

A oração não poderá torná-los eloqüentes à moda humana, mas os

tornará verdadeiramente eloqüentes, pois falarão de coração; e não é este

o sentido da palavra eloqüência? Ela trará rogo do céu sobre o seu

sacrifício, e assim provará que é aceito pelo Senhor.

Assim como vigorosas fontes de pensamento muitas vezes

irromperão em resposta à oração, enquanto se preparam, também será na

entrega do sermão. Muitos pregadores que se põem na dependência do

Espírito de Deus lhes dirão que os seus pensamentos mais vívidos e

melhores não são os que foram premeditados, mas as idéias que lhes

vêm, voando como que em asas de anjos; inesperados tesouros trazidos

de repente por mãos celestiais, sementes das flores do paraíso que vêm

flutuando dos montes de mirra. Muitíssimas vezes, quando me sinto

embaraçado no pensamento e na expressão, o meu secreto gemido de

coração me tem trazido alívio; e passo a desfrutar liberdade maior do que

a costumeira. Mas, como ousarei orar na batalha se nunca clamei ao

Senhor enquanto afivelo a armadura?! A lembrança das suas lutas em

casa fortalece o pregador agrilhoado quando no púlpito. Deus não nos

abandonará, a menos que O abandonemos. Vocês verão, irmãos, que a

oração lhes assegurará força suficiente para o seu dia.

Como as línguas de fogo vieram sobre os apóstolos quando ficaram

vigiando e orando, assim também virão sobre vocês. Ver-se-ão a si

próprios, talvez quando poderiam ter desfalecido, subitamente

revivificados, como que pelo poder de um anjo. Rodas de fogo serão

ajustadas à sua carruagem. que começara a arrastar-se dificultosamente,

e corcéis angélicos serão num instante atrelados em seu carro chamejante

até você galgar os céus, como Elias, numa arrebatamento de inflamada

inspiração.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 60

Depois do sermão, como poderia o pregador consciencioso dar livre

curso aos seus sentimentos e achar consolo para a sua alma se lhe fosse

negado acesso à sede da misericórdia? Elevados ao mais alto grau de

comoção, como podemos aliviar a nossa alma, senão com intercessões

importunas? Ou, deprimidos pelo medo de fracassar, como seremos

confortados senão chorando nossas mágoas diante do nosso Deus?

Quantas vezes alguns de nós ficamos virando para um lado e para outro

na cama a metade da noite por causa dos nossos conscientes defeitos no

testemunho! Com que freqüência ansiamos por correr de volta ao púlpito

para dizer outra vez, com maior veemência, o que tínhamos dito de

maneira tão fria! Onde poderíamos achar descanso para o nosso espírito,

senão na confissão do pecado, e nos ardentes rogos para que a nossa

fraqueza ou estultícia de modo nenhum estorve o Espírito de Deus?

Numa assembléia pública não é possível derramar todo o amor do nosso

coração pelo rebanho que está a nosso cargo. Como José, o ministro

afetuoso procurará onde chorar; suas emoções, por mais livremente que

possa ele expressar-se, ficarão enjauladas quando ele estiver no púlpito,

e somente pela oração secreta poderá abrir as comportas e fazê-las fluir

para fora.

Se não podemos persuadir os homens a favor de Deus, havemos de,

pelo menos, esforçar-nos para persuadir a Deus a favor dos homens. Não

podemos salvá-los; nem sequer podemos induzi-los a serem salvos, mas

ao menos podemos deplorar a loucura deles e suplicar a intervenção de

Deus. Como Jeremias, podemos tomar nossa a resolução: "E, se isto não

ouvirdes, a minha alma chorará em lugares ocultos, por causa da vossa

soberba; e amargamente chorarão os meus olhos, e se desfarão em

lágrimas". A esses apelos tão comoventes o coração do Senhor nunca

pode ser indiferente; no devido tempo, o lacrimoso intercessor se tornará

jubiloso ganhador de almas. Existe clara conexão entre a agonia

importuna e o verdadeiro sucesso, semelhante à que existe entre as dores

de parto e o nascimento, entre semear em lágrimas e colher com alegria.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 61

"Como é que a semente que você planta brota depressa assim?",

perguntou um jardineiro a outro. "É porque a rego", foi a resposta.

Temos que regar com lágrimas todos os nossos ensinamentos "quando

ninguém está perto, exceto Deus", e o crescimento deles nos causará

surpresa e deleite. Poderia alguém admirar-se com o sucesso de

Brainerd, quando o seu diário contém anotações tais como a seguinte? -

"Dia do Senhor, 25 de abril – Esta manhã passei cerca de duas horas

ocupado com deveres sagrados e, extraordinariamente, pude agonizar

pelas almas imortais; embora fosse bem cedo, e o sol mal começasse a

brilhar, meu corpo ficou molhado de suor". O segredo do poder de

Lutero esteve nessa mesma direção. Teodoro disse ele: "Escutei-o em

oração, mas, bom Deus, com que vida e com que espírito ele orava! Era

com tanta reverência, como se estivesse falando com Deus, mas com tão

confiante liberdade, como se estivesse falando com um amigo".

Meus irmãos, permitam-me rogar-lhes que sejam homens de

oração. Pode ser que nunca venham a ter grandes talentos, mas se

desempenharão satisfatoriamente sem eles, se forem abundantes na

intercessão. Se não orarem sobre aquilo que semearam, Deus, na Sua

soberania, talvez decida conceder uma bênção, mas vocês não terão

direito de esperá-la, e se ela vier, não lhes trará conforto ao coração.

Estive lendo ontem um livro do Padre Faber, finado religioso da

Ordem do Oratório, em Brompton, maravilhosa composição de verdade

e erro. Relata nele uma lenda do seguinte teor: Certo pregador, cujos

sermões convertia homens aos montes, recebeu uma revelação do céu de

que nenhuma das suas conversões se devia aos seus talentos ou à sua

eloqüência, mas todas se deviam às orações de um irmão leigo iletrado,

que ficava sentado nos degraus do púlpito, orando o tempo todo pelo

sucesso do sermão. Poderá dar-se isso conosco no dia da revelação de

todas as coisas. Talvez descubramos, depois de termos trabalhado

demorada e cansativamente na pregação, que a honra toda pertence a

outro construtor, cujas orações foram ouro, prata e pedras preciosas, ao

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 62

passo que os nossos sermões, sendo apregoados sem oração, não

passaram de feno e palha.

Quando tivermos terminado de pregar, não teremos terminado ainda

de orar, se formos fiéis ministros de Deus, porque a igreja inteira, com

muitas bocas, estará clamando, na expressão do macedônio: "Passa à

Macedônia, e ajuda-nos" com oração. Se vocês estiverem habilitados a

prevalecer em oração, terão muitas súplicas para fazer por outros que se

juntarão ao seu redor e pedirão participação em suas intercessões, e

assim vocês se verão comissionados com mensagens enviados ao trono

da misericórdia a favor de amigos e ouvintes. Essa é sempre a cota que

me cabe, e para mim é uma satisfação ter tais súplicas para apresentar ao

meu Senhor. Vocês nunca podem ficar sem temas para oração, mesmo

que ninguém lhos sugira. Observem as pessoas da sua igreja. Há sempre

doentes entre elas, e muitas outras que são doentes da alma. Algumas

não são salvas; outras estão procurando e não conseguem achar. Muitas

vivem desanimadas, e não poucos crentes são infiéis ou lamurientos. Há

lágrimas de viúvas e suspiros de órfãos para pôr no seu frasco e derramar

perante o Senhor.

Se você é um autêntico ministro de Deus, manter-se-á diante do

Senhor como um sacerdote, usando espiritualmente o peitoral em que

você porta os nomes dos filhos de Israel, intercedendo por eles, detrás do

véu. Conheci irmãos que mantinham uma lista de pessoas pelas quais se

sentiam especialmente incumbidos a orar, e não tenho dúvida de que

aquele registro muitas vezes os lembrava de algo que de outra maneira

teria fugido da sua memória. No entanto seu rebanho não o absorverá

totalmente; a nação e o mundo requererão sua parte. O homem que for

poderoso na oração poderá ser uma muralha de fogo ao redor do seu

país, seu "anjo da guarda" e seu escudo. Todos já ouvimos sobre como

os inimigos da causa do protestantismo temiam as orações de Knox mais

que a exércitos de dez mil homens. O famoso Welch também foi um

grande intercessor por seu país. Ele costumava dizer que "se admirava de

como um cristão podia ficar no leito a noite inteira sem se levantar para

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 63

orar". Quando sua esposa, temendo que ele ficasse resfriado, foi até o

quarto ao qual se havia retirado, ouviu-o clamar em frases entrecortadas:

"Senhor, não me concederás a Escócia?"

Ah! se ficássemos lutando assim a desoras clamando: "Senhor, não

nos concederás as almas dos nossos ouvintes?"

O ministro que não ora fervorosamente pela obra que realiza, só

pode ser um homem fútil e vaidoso. Age como que se considerando

auto-suficiente, e, portanto, como se não precisasse apelar para Deus.

Todavia, que orgulho mais sem fundamento, conceber que a nossa

pregação seja em si mesma tão poderosa que pode converter os homens

dos seus pecados, e trazê-los para Deus sem a ação do Espírito Santo! Se

formos verdadeiramente humildes de coração, não nos aventuraremos a

meter-nos no combate enquanto o Senhor dos Exércitos não nos revestir

de todo o poder, e nos disser: "Vai nesta tua força".

O pregador que negligencia orar só pode ser muito desleixado

quanto ao seu ministério. Não é possível que tenha compreendido a sua

vocação. Não pode ter computado o valor de uma alma, nem avaliado o

sentido da eternidade. Certamente não passa de um oficial, tentado ao

púlpito porque o pedaço de pão que pertence ao ofício ministerial é-lhe

muito necessário; ou não passa de um detestável hipócrita que gosta do

louvor dos homens e não se preocupa com o louvor de Deus. Será por

certo um simples palrador superficial, mais bem aprovado onde a graça é

menos apreciada, e onde uma exibição vã é grandemente admirada. Ele

não pode ser um daqueles que aram bem e colhem messes abundantes. É

um reles vadio, não um trabalhador. Como pregador, tem nome de que

vive, e está morto. Manqueja em sua vida como o coxo de Provérbios,

cujas pernas eram desiguais, pois a sua oração é mais curta que a sua

pregação.

Temo que, uns mais, outros menos, a maioria de nós necessita de

um auto-exame quanto a este assunto. Se alguém aqui se aventurasse a

dizer que ora quanto deve, como estudante, eu questionaria seriamente a

sua afirmação; e se estiver presente algum ministro, diácono ou

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 64

presbítero capaz de dizer que se dedica a Deus em oração em toda a

extensão da sua possibilidade, eu gostaria de conhecê-lo. Só posso dizer

que, se ele pode arrogar-se este grau de excelência, deixa-me bem para

trás, pois eu não posso alegar isso em meu favor. Gostaria que fosse

possível. E faço a confissão com grande medida de vergonha e confusão,

mas sou obrigado a fazê-la. Se não somos mais negligentes do que os

outros, isto não nos serve de consolo; as falhas de outros não nos

inocentam.

Quão poucos de nós poderíamos comparar-nos com o Sr. Joseph

Alleine, cujo caráter mencionei anteriormente! "Quando estava bem de

saúde", escreve sua esposa, "levantava-se constantemente às quatro

horas, ou antes, e ficava aborrecido quando ouvia ferreiros ou outros

artesãos em suas atividades antes de ele estar em comunhão com Deus,

dizendo-me muitas vezes: "Como este ruído me envergonha! O meu

Senhor não merece mais que o deles?" Das quatro às oito ficava em

oração, em santa contemplação e cantando salmos, com que se deleitava

muito, e o que praticava diariamente, a sós e com a família. Às vezes ele

suspendia a rotina dos seus compromissos paroquiais e dedicava dias

completos a esses exercícios secretos, para o que dava um jeito de ficar

sozinho numa casa desocupada, ou senão em algum ponto isolado, em

pleno vale. Ali fazia muita oração e meditação sobre Deus e o céu."

Poderíamos ler, sem ruborizar-nos, a discrição que Jonathan

Edwards faz de Davi Brainerd? "Sua vida", diz Edwards, "mostra o

modo certo de se obter sucesso nos labores ministeriais. Ele o buscava

como um soldado resoluto busca a vitória num assédio ou numa batalha;

ou como um homem que disputa numa corrida um grande prêmio.

Animado pelo amor a Cristo e às almas, como trabalhava sempre com

fervor, não só na palavra e na doutrina, em público e em particular, mas

também em orações dia e noite, "lutando com Deus" em secreto, e "com

dores de parto", com gemidos e agonias inexprimíveis, "até ser Cristo

formado" nos corações das pessoas às quais ele foi enviado! Como era

sedento por uma bênção a seu ministério, e velava pelas almas "como

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 65

quem deve prestar contas"! Como ele ia "na força do Senhor" Deus,

procurando e se pondo na dependência da influência especial do Espírito

para assisti-lo e prosperá-lo! E que feliz fruto, afinal, depois de longa

espera e de muitos aspectos tenebrosos e desanimadores; como um

verdadeiro filho de Jacó, perseverava lutando através de toda a escuridão

da noite, até romper o dia."

Por certo nos causaria vergonha o diário de Henry Martyn, em que

achamos assentamentos como estes: "24 de setembro – A determinação

com que fui para a cama a noite passada, de devotar o dia de hoje à

oração e ao jejum, pude pôr em execução. Em minha primeira oração por

libertação de pensamentos mundanos, confiando no poder e nas

promessas de Deus, firmando a minha alma enquanto orava, tive ajuda

para desfrutar muita abstinência do mundo por quase uma hora: Li

depois a história de Abraão, para ver com que familiaridade Deus Se

revelara a mortais da antigüidade. Em seguida, orando por minha

santificação pessoal, minha alma aspirou livre e ardentemente a

santidade de Deus, e este foi o melhor período do dia". Talvez

pudéssemos juntar-nos mais sinceramente a ele em seus lamentos após o

primeiro ano do seu ministério, em que julgou "ter dedicado demasiado

tempo às ministrações públicas, e pouquíssimo à comunhão a sós com

Deus".

Quanta bênção perdemos por sermos remissos nas súplicas, mal

podemos imaginar, e nenhum de nós pode saber como somos pobres em

comparação com o que poderíamos ser se vivêssemos habitualmente

mais perto de Deus em oração. Vãos pesares e conjeturas são inúteis,

mas uma vigorosa determinação a corrigir-nos será muito mais útil. Não

só devemos orar mais, mas precisamos. O fato é que o segredo de todo o

sucesso ministerial está em prevalecer na sede da misericórdia – no

propiciatório.

Uma fulgente dádiva do céu que a oração particular traz ao

ministério é algo indescritível e inimitável, melhor para se experimentar

do que para se contar; é um orvalho do Senhor, uma presença divina que

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 66

vocês reconhecerão de imediato quando lhes disser que é "a unção do

Santo". Que será isto? Pergunto-me quanto tempo haveríamos de ficar

espremendo o cérebro até podermos colocar claramente em palavras o

que se quer dizer com pregar com unção. Contudo, quem prega sabe da

sua presença, e quem ouve logo detecta a sua ausência. Samaria, em

crise de fome, tipifica um discurso sem ela; Jerusalém, com suas testas

repletas de substâncias gordas e de tutano, pode representar um sermão

enriquecido por ela.

Toda gente sabe o que é o frescor da manhã quando pérolas

brilhantes recobrem cada folha da grama, mas quem pode descrevê-lo e,

quanto mais, produzi-lo por si mesmo? Assim é o mistério da unção

espiritual; sabemos o que é, mas não a podemos explicar a outros. É tão

fácil como insensato falsificá-la, como fazem alguns que usam

expressões que pretendem demonstrar fervente amor, mas, com mais

freqüência indicam sentimentalismo piegas ou mera gíria. "Querido

Senhor!" "Doce Jesus!" "Cristo precioso!" são expressões despejadas por

atacado por eles, a ponto de deixar a gente com náuseas. Estas

familiaridades podem ter sido não somente toleráveis, mas até belas, quando caíram pela primeira vez dos lábios de um santo de Deus, falando

como que da glória excelsa, mas quando repetidas petulantemente, não só

são intoleráveis, como também indecentes, senão profanas.

Alguns têm tentado imitar a unção por meio de entonação e

gemidos inaturais; virando os olhos pondo à mostra só o branco do globo

ocular; e levantando as mãos de modo sumamente ridículo. Ouvem-se a

entonação e o ritmo de McCheyne repetidos constantemente pelos

escoceses; preferimos o seu espírito a seu maneirismo; e todo mero

maneirismo sem poder é como repugnante carniça de toda forma de vida

desolada, odiosa e nociva. Certos irmãos pretendem obter inspiração

mediante esforços e altos gritos; mas ela não vem. Sabemos que alguns

interrompem o sermão, e exclamam: "Deus os abençoe" , e que outros

gesticulam de maneira selvagem, e metem as unhas nas palmas das mãos

como se estivessem tendo convulsões de febre celestial. Bolas! Essa

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 67

coisa toda cheira a camarim e palco. Instilar fervor nos ouvinte mediante

simulação dele pelo pregador, é uma abominável fraude que deve ser

desprezada pelos honestos.

"Simular sentimento", diz Richard Cecil, "é repugnante e logo

percebido mas sentir verdadeiramente é o caminho para o coração dos

outros." Unção é uma coisa que não se pode fabricar, e suas imitações

são piores do que indignas; entretanto, seu valor é inestimável, e ela é

necessária além de toda medida, se é que vocês desejam edificar os

crentes e levar pecadores a Jesus. Àquele que pleiteia secretamente com

Deus é entregue este segredo; sobre ele pousa o orvalho do Senhor, e o

cerca o perfume que alegra o coração. Se a unção que levamos não

provém do Senhor dos Exércitos, somos enganadores, e desde que só

com oração podemos obtê-la, perseveremos em súplicas insistentes e

constantes. Deixem o seu velo na eira dos rogos até umedecer-se com o

orvalho do céu. Não ministrem no templo enquanto não se lavarem na

pia perto do altar. Não se considerem mensageiros da graça a outros

enquanto vocês mesmos não tiverem visto o Deus da graça, e enquanto

não tiverem recebido a Palavra da Sua boca.

O tempo passado em quieta prostração da alma perante o Senhor é

extremamente revigorante. Davi fez isso diante do Senhor (2 Sm. 7:18);

é uma grande coisa manter esses "aconchegos sagrados", com a mente

receptiva, como uma flor aberta abeberando-se dos raios solares, ou

como a sensível chapa fotográfica captando a imagem diante de si. A

quietude, que alguns não conseguem suportar porque revela a sua

pobreza interior, é como um palácio de cedro para o sábio, pois ao longo

dos seus pátios sagrados o Reí em Sua formosura condescende em

passear. "Ó sagrado silêncio! tu és represa do coração, sim, do âmago da gente; produto de celeste natureza; gelo da boca e degelo da mente." (Flecknoe)

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 68

Inestimável como o dom da elocução possa ser, a prática do silêncio

em alguns aspectos o sobrepuja em muito. Acham que sou quacre? Bem,

que o seja. Nisto eu sigo George Fox com o maior afeto, pois estou

persuadido. de que a maioria de nós pensa bem demais da linguagem

falada que, afinal, é apenas o invólucro do pensamento. A contemplação

em silêncio, o culto silente, o arrebatamento sem articulação de palavras,

são meus, quando tenho diante de mim as minhas melhores jóias.

Irmãos, não neguem ao seu coração as alegrias do alto mar; não deixem

de lado a vida de maior profundidade, ficando sempre a tagarelar entre as

conchas quebradas e as ondas espumosas da praia.

Recomendo-lhes seriamente que, quando estiverem estabelecidos

no ministério, celebrem períodos especiais de devoção. Se as orações

feitas ordinariamente não estiverem mantendo a vida e o vigor das suas

almas, e notarem que se enfraquecem, fiquem sozinhos por uma semana,

ou até por um mês, se possível. Ocasionalmente temos feriados

nacionais; por que não termos com freqüência dias santos? Sabemos de

irmãos mais ricos que acham tempo para uma viagem a Jerusalém; não

poderíamos dispensar tempo para uma viagem menos difícil e muito

mais proveitosa à cidade celestial?

Isaac Ambrose, que foi pastor em Preston, autor do famoso livro,

Looking to Jesus (Olhando para Jesus), sempre reservava um mês por

ano para reclusão numa cabana em uma floresta de Garstang. Não

admira que fosse um teólogo tão cheio de poder, desde que passava com

regularidade tanto tempo no monte com Deus. Noto que os romanistas

estão acostumados a manter o que chamam de "Retiros", aonde certo

número de sacerdotes se acolhe por um tempo, procurando a quietude

completa, para passar o tempo todo em jejum e oração, com o fim de

inflamar de ardor as suas almas.

Podemos aprender dos nossos adversários. Seria uma grande coisa

de vez em quando um grupo de irmãos verdadeiramente espirituais

passar juntos um dia ou dois em real e consumidora agonia de oração.

Num retiro só de pastores, estes poderiam ter muito mais liberdade do

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 69

que num grupo misto. Períodos de humilhação e de súplicas para a igreja

toda também nos beneficiarão, se nos dedicarmos a isso de coração.

Os nossos períodos de jejum e oração no Tabernáculo têm sido de

fato dias de grande elevação. Nunca os portais do céu estiveram mais

amplamente abertos; nunca os nossos corações estiveram mais perto do

centro da glória. Aguardo sequioso o nosso mês de devoção especial,

como os marinheiros quando calculam que se aproximam de terra.

Mesmo que o nosso trabalho público fosse posto de lado para dar-nos

lugar à oração especial, poderia ser grande ganho para as nossas igrejas.

Uma viagem pelos rios da comunhão e da meditação seria bem

recompensada por um frete de sentimento santificado e de pensamento

elevado. O nosso silêncio poderia ser melhor do que as nossas vozes, se

passássemos com Deus a nossa solidão.

Foi uma atitude grandiosa a que o velho Jerônimo tomou quando

pôs de lado todas as suas prementes ocupações para realizar um

propósito que ele entendia ser um chamamento do céu. Tinha a seu cargo

uma grande igreja, tão grande que qualquer de nós gostaria de ter igual.

Mas ele disse a seu povo: "Agora há necessidade de que o Novo

Testamento seja traduzido; vocês precisam encontrar outro pregador. A

tradução precisa ser feita. Vejo-me forçado a partir para o deserto, e não

voltarei enquanto não concluir a minha tarefa". Lá se foi com os seus

manuscritos, e orou e trabalhou, e produziu uma obra – a Vulgata Latina

– que durará enquanto o mundo existir; de modo geral, a mais

maravilhosa tradução da Escritura Sagrada. Como num retiro, estudo e

oração igualmente e juntamente puderam produzir uma obra imortal, se

às vezes disséssemos aos nossos ouvintes, quando nos sentíssemos

impulsionados a fazê-lo: "Diletos amigos, precisamos realmente sair um

pouco para renovar a nossa alma na solidão"; o nosso aproveitamento

logo se tornaria patente, e embora não escrevêssemos Vulgatas Latinas,

ainda assim realizaríamos uma obra imortal, capaz de resistir ao fogo.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 70

ORAÇÃO EM PÚBLICO

Às vezes a vanglória dos episcopais é que os membros da igreja

oficial vão aos seus templos para orar e prestar culto a Deus, mas os

dissidentes (os das igrejas livres) simplesmente se reúnem para ouvir

sermões. Nossa réplica a isso é que, conquanto possam existir alguns

crentes professos culpados deste mal, não é verdade quanto aos filhos de

Deus que nos cercam, e pessoas desta estirpe espiritual são as únicas que

realmente apreciam a devoção, em qualquer igreja. Os crentes de nossas

igrejas se reúnem para prestar culto a Deus, e nós afirmamos, e não

hesitamos em afirmá-lo, que se eleva tanta oração verdadeira e aceitável

em nossas reuniões não-conformistas regulares, como nas melhores e

mais pomposas realizações da Igreja da Inglaterra.

Além disso, se aquela observação tiver o propósito de fazer supor

que ouvir sermões não é cultuar a Deus, funda-se em grosseiro engano,

porquanto ouvir corretamente o evangelho é uma das partes mais nobres

da adoração ao Altíssimo. É um exercício mental em que, quando

corretamente praticado, todas as faculdades do homem espiritual são

chamadas à realização de atos de devoção. Ouvir reverentemente a

Palavra exercita a nossa humildade, instrui a nossa fé, engolfa-nos em

raios de fulgente alegria, inflama-nos de amor, inspira-nos zelo, e nos

eleva até o céu.

Muitas vezes um sermão tem sido uma espécie de escada de Jacó na

qual vimos os anjos de Deus subindo e descendo, e a aliança de Deus no

alto dela. Temos sentido com freqüência quando Deus fala através dos

Seus servos ao íntimo das nossas almas. "Este não é outro lugar senão a

casa de Deus; e esta é a porta dos céus." Temos engrandecido o nome do

Senhor e O temos louvado de todo o coração, enquanto Ele nos tem

falado mediante o Seu Espírito, que Ele deu aos homens. Daí, não existe

aquela larga diferença entre a pregação e a oração, que alguns querem

que admitamos; pois a primeira parte da reunião funde-se brandamente

com a outra, e freqüentemente o sermão inspira a oração e o hino. A

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 71

verdadeira pregação é uma aceitável adoração a Deus pela manifestação

dos Seus atributos graciosos. O testemunho do Seu evangelho, que O

glorifica preeminentemente, e ouvir com obediência a verdade revelada,

são uma forma aceitável de culto ao Altíssimo, e talvez uma das mais

espirituais de que se pode ocupar a mente humana.

Não obstante, como nos diz o velho poeta romano, é certo aprender

dos nossos inimigos, e, portanto, talvez seja possível que os nossos

oponentes litúrgicos nos tenham indicado o que em alguns casos ocupa

má colocação em nossos cultos públicos. É de temer que os nossos

exercícios espirituais não sejam, em todos os casos, modelados da

melhor forma, ou apresentados da maneira mais recomendável. Há

salões de culto em que as súplicas não são nem tão devotas, nem tão

fervorosas como desejamos; noutros locais o fervor vem tão aliado à

ignorância, e a devoção tão desfigurada pelo linguajar bombástico, que

nenhum crente inteligente pode entrar para partilhar do culto com prazer.

Orar no Espírito não é praticado universalmente entre nós, como também

nem todos oram com o entendimento e com o coração. Há lugar para

melhoramento, e em algumas partes há imperiosa exigência disso.

Permitam-me, pois, amados irmãos, acautelar-vos contra o perigo de

estragarem os cultos com as suas orações. Tomem solenemente a

resolução de que todas as atividades do santuário haverão de ser da

melhor qualidade.

Fiquem certos de que a oração espontânea é a mais bíblica, e deve

ser a mais excelente forma de prece pública. Se perderem a fé no que

fazem, nunca o farão bem. Portanto, ponham na cabeça que perante o

Senhor vocês estão prestando um culto de maneira autorizada pela

Palavra de Deus e aceita pelo Senhor. A expressão "orações para ler" a

que estamos acostumados, não se acha na Escritura Sagrada, rica de

palavras como ela é para a transmissão de pensamento religioso; e a

frase não está lá porque a coisa de que trata nunca teve existência. Onde,

nos escritos dos apóstolos se acha a idéia pura e simples de uma liturgia?

Nas assembléias dos primeiros cristãos a oração não se restringia a

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 72

nenhuma fórmula de palavras. Tertuliano escreve: "Oramos sem ponto

porque do coração". Justino Mártir descreve o ministro dirigente fazendo

oração "de acordo com sua capacidade".

Seria difícil descobrir quando e onde começaram as liturgias. Sua

introdução foi gradativa e, segundo cremos, em paralelo com o declínio

da pureza da igreja. A introdução delas entre os não-conformistas – isto

é, entre as igrejas livres, não oficiais – assinalaria a era do nosso declínio

e queda. O assunto me tenta a dilatar-me, mas não é o ponto em foco, e,

portanto, passo adiante, anotando apenas que vocês encontrarão a

matéria referente às liturgias habilmente tratada pelo Dr. John Owen, a

quem farão bem em consultar.*

Compete-nos provar a superioridade da oração improvisada,

fazendo-a mais espiritual e mais fervorosa do que a devoção litúrgica

formal. É uma lástima quando o ouvinte é levado a observar: "O nosso

ministro prega muito melhor do que ora". Isto não está de acordo com o

modelo de nosso Senhor. Ele falava como nenhum homem jamais falou;

e quanto às Suas orações, tanto impressionaram os Seus discípulos que

eles disseram: "Senhor, ensina-nos a orar". Todas as nossas faculdades

devem concentrar as suas energias, e o homem completo deve elevar-se

ao ponto máximo do seu vigor, quando estiver orando em público, sendo

nesse ínterim batizado na alma e no espírito com a Sua sagrada

influência. Mas a fala desalinhada, negligente e sem vida à guisa de

oração, feita para encher certo espaço de tempo durante o culto, é tédio

para o homem e abominação para Deus.

Se a oração espontânea tivesse sido universalmente de categoria

mais elevada, nunca se teria pensado numa liturgia, e as fórmulas de

orações atuais não têm melhor desculpa do que a debilidade das

devoções improvisadas. O segredo está em que não somos realmente

devotos de coração, como deveríamos ser. A habitual comunhão com

* A Discourse Concerning Liturgies and their Imposition (Discurso Sobre Liturgia e sua Imposição),

Vol. XV, Owen's Works, Goold's Edition.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 73

Deus deve ser mantida, ou senão as nossas orações públicas serão

insípidas ou formalistas. Se não houver degelo das geleiras nas escarpas

da montanha, não haverá arroios descendo para animar a planície. A

oração em secreto é o terreno amanhado para as nossas ministrações

públicas. E não podemos negligenciá-la por muito tempo sem ficarmos

desajeitados quando estivermos diante do povo.

As nossas orações nunca devem rastejar; devem alçar vôo e subir.

Temos necessidade de uma estrutura mental celeste. As nossas petições

dirigidas ao trono da graça devem ser solenes e humildes, não petulantes

e ostensivas, nem formalistas e negligentes. A maneira coloquial de falar

está deslocada, diante do Senhor; devemos inclinar-nos reverentemente e

com o mais profundo temor. Podemos falar sem embaraço com Deus,

mas Ele ainda está no céu e nós na terra, e devemos evitar toda

presunção. Na súplica nos colocamos peculiarmente diante do trono do

Infinito, e, como o cortesão assume no palácio real outros ares e outros

modos, diferentes dos que exibe a seus colegas da corte, assim deve ser

conosco.

Nas igrejas da Holanda observamos que, tão logo o ministro

começa a pregar, todos os homens põem o chapéu, mas no instante em

que passa a orar, todos tiram o chapéu. Este era o costume nas igrejas

puritanas mais antigas da Inglaterra, e perdurou com os batistas. Usavam

seus gorros durante as partes do culto que entendiam que não eram

propriamente atos de adoração, mas os tiravam lago que havia uma

direta aproximação a Deus, no hino ou na oração. Considero imprópria a

prática, e errôneo o seu motivo. Tenho insistido em que a distinção entre

orar e ouvir a Palavra não é grande, e estou certo de que ninguém iria

propor retorno ao velho costume ou à opinião da qual ele é indicativo.

Contudo, há uma diferença, e, considerando que na oração estamos

falando diretamente com Deus, mais do que procurando a edificação dos

nossos semelhantes, temos que tirar os sapatos dos pés, pois o lugar em

que estamos pisando é terra santa.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 74

Que somente o Senhor seja o objeto das nossas orações. Cuidado

para não ficarem com um olho posto nos ouvintes; cuidado para não se

tornarem retóricos a fim de agradarem as suas audiências. A oração não

deve ser transformada num "sermão indireto". É pouco menos que

blasfêmia fazer da devoção uma oportunidade para exibição. As belas

orações geralmente são muito ímpias. Na presença do Senhor dos

Exércitos não fica bem o pecador fazer desfilar a plumagem e os atavios

de um linguajar extravagante, tendo em vista receber aplauso dos seus

semelhantes, como ele mortais. Os hipócritas que se atrevem a fazer isso

têm sua recompensa, mas esta é de causar pavor. Uma pesada sentença

de condenação foi imposta a um ministro quando se disse

lisonjeiramente que a sua oração foi a mais eloqüente de todas as orações

já apresentada a uma igreja de Boston. Podemos ter o objetivo de

estimular os anseios e aspirações dos que nos ouvem orar; mas cada

palavra e cada pensamento devem ser dirigidos a Deus, devendo tocar

nas pessoas presentes só o bastante para levá-las e suas necessidades à

presença do Senhor. Lembrem-se das pessoas em suas orações, mas não

modelem as suas súplicas com vistas a obter a sua estima. Olhem para o

alto; olhem para o alto com os dois olhos. .

Evitem todas as vulgaridades na oração. Admito que ouvi algumas

delas, mas não seria proveitoso repeti-las; especialmente quando se

tornam cada dia menos freqüentes. Raramente topamos agora com as

vulgaridades na oração que outrora eram muito comuns nas reuniões de

oração dos metodistas, provavelmente muito mais comuns nos boatos do

que na realidade. As pessoas sem instrução têm que orar do seu jeito,

quando têm fervor, e a sua linguagem muitas vezes choca os exigentes,

senão os devotos; mas essa permissão tem que ser dada, e se o espírito

for evidentemente sincero, podemos perdoar as expressões toscas.

Uma vez, numa reunião de oração, ouvi um pobre homem orando

assim: "Senhor, toma conta destes jovens nos dias de festa, pois sabes,

Senhor, como os inimigos deles os espreitam como o gato espreita os

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 75

ratos". Alguns zombaram da expressão, mas a mim me pareceu natural e

significativa, considerando a pessoa que a empregou.

Um pouco de instrução com delicadeza, e uma ou duas sugestões

geralmente impedem a repetição de coisas objetáveis em casos assim,

mas nós, que ocupamos o púlpito, precisamos ter o cuidado de ser bem

claros. O biógrafo daquele notável pregador metodista americano, Jacob

Gruber, menciona como exemplo da sua presença de espírito, que,

depois de ter ouvido um jovem ministro calvinista atacar o seu credo,

foi-lhe solicitado concluir com oração, e, entre outras petições, orou que

o Senhor abençoasse o jovem que estivera pregando, e lhe concedesse

muita graça, "para que o seu coração ficasse mole como a sua cabeça".

Deixando de lado o mau gosto de tal animadversão pública contra

um colega, qualquer pessoa cuja mente funcione bem verá que o trono

do Altíssimo não é lugar para a emissão desses gracejos vulgares. Muito

provavelmente o jovem orador mereceu castigo por sua ofensa ao amor

cristão, mas o mais velho pecou dez vezes mais com sua falta de

reverência. Ao Rei dos reis é cabível dirigir palavras seletas, não as que

foram poluídas por línguas grosseiras.

Outro defeito que se deve evitar na oração é a irreverente e

repugnante superabundância de palavras afetuosas. Quando expressões

como "Querido Senhor", "Bendito Senhor" e "Doce Senhor" aparecem e

tornam a aparecer como vãs repetições, estão entre as piores nódoas.

Devo confessar que não causariam repulsa à minha mente as palavras

"Querido Jesus", se saíssem dos lábios de um Rutherford, ou de um

Hawker, ou de um Herbert; mas quando ouço expressões amigáveis e

afetuosas desgastadas por pessoas nada notáveis por sua espiritualidade,

inclino-me a desejar que possam, de uma forma ou de outra, chegar a ter

melhor entendimento da verdadeira relação existente entre o homem e

Deus. A palavra "querido", dado o seu uso habitual, veio a ser tão

comum, tão fraca e, em alguns casos, tão afetada e tola, que misturar

com ela as orações não produz edificação.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 76

Existe a mais forte objeção à constante repetição da palavra

"Senhor", que ocorre nas primeiras orações dos jovens conversos, e

mesmo entre os estudantes. As palavras "Ó Senhor! Ó Senhor! Ó

Senhor!" nos afligem quando as ouvimos tão perpetuamente repetidas.

"Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão", é um grande

mandamento, e, embora se possa quebrar a leí inconscientemente,

quebrá-la ainda é pecado, e grave. O nome de Deus não deve ser um

tapa-buracos, para suprir a nossa pobreza de vocabulário. Tomem

cuidado para empregar com a máxima reverência a nome do infinito

Jeová. Em seus escritos sagrados, os judeus, ou deixam espaço em

branco no lugar da palavra "Jeová", ou então escrevem a palavra

"Adonai", porque na concepção deles aquele nome santo é demasiado

sagrado para ser usado de modo comum. Não precisamos ser

supersticiosos assim, mas seria bom sermos escrupulosamente

reverentes. A profusão de "Ohs!" e de outras interjeições bem pode ser

dispensada; os jovens pregadores freqüentemente estão em falta aqui.

Evitem aquele tipo de oração que pode ser denominada – embora o

assunto seja tal que sobre ele a língua não nos deu muitos termos – uma

espécie de peremptória exigência feita a Deus. É deleitável ouvir um

homem lutar com Deus e dizer: "Não te deixarei ir, se me não

abençoares", mas isso tem que ser dito suavemente, e não com espírito

de bravata, como se pudéssemos mandar no Senhor de tudo quanto há, e

exigir-Lhe bênçãos. Lembrem-se, ainda se trata de um homem que está

lutando, conquanto tenha a permissão de lutar com o eterno EU SOU.

Jacó "manquejava da coxa" depois daquele santo conflito noturno, para

fazê-lo ver que Deus é terrível, e que o poder com o qual prevalecera não

jazia nele próprio. Somos ensinados a dizer, "Pai nosso", mas ainda é

"Pai nosso, que estás nos céus".

Familiaridade pode haver, mas familiaridade santa; intrepidez, mas

a intrepidez que brota da graça e que é obra do Espírito Santo; não a

intrepidez do rebelde que anda com fronte de bronze na presença do seu

rei ofendido, mas a intrepidez da criança que teme porque ama, e ama

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 77

porque teme. Jamais caiam no inglório modo de dirigir-se a Deus com

impertinência. Ele não deve ser assaltado como se fosse um adversário,

mas deve ser invocado como nosso Senhor e Deus. Sejamos humildes e

submissos de espírito, e assim oremos.

Orem quando anunciam que oram, e não falem disso, apenas. Os

homens de negócio dizem: "Um lugar para cada coisa, e cada coisa em

seu lugar". Preguem no sermão e orem na oração. Fazer dissertações

sobre a nossa necessidade de recorrer à oração não é orar. Por que os

homens não se põem a orar de uma vez? – por que ficam procurando

evasivas? Em lugar de dizer o que deveriam e gostariam de fazer, por

que não põem mãos à obra, em nome de Deus, e o fazem? Com decidido

fervor, dedique-se cada um à intercessão, e volte o rosto para o Senhor.

Rogue a Deus que supra as grandes e constantes necessidades da igreja, e

não deixe de instar, com devoto fervor, pelas necessidades especiais da

hora e do público presentes. Mencione os enfermos, os pobres, os

moribundos, o gentio, o judeu, e toda classe de pessoas esquecidas, à

medida que constranjam o seu coração.

Ore pelas pessoas da sua igreja como sendo santas e pecadoras –

não como se fossem todas santas. Mencione os jovens e os idosos, os

cuidadosos e os negligentes; os consagrados e os infiéis. Nunca vire para

a direita ou para a esquerda, mas continue arando, seguindo os sulcos da

oração veraz. Sejam as suas confissões de pecado e as suas ações de

graça sinceras e específicas; e sejam as suas petições apresentadas como

se você de fato cresse em Deus e não duvidasse da eficácia da oração.

Digo isto porque muitos oram de maneira tão formal que levam os

observadores a concluírem que os que as fazem acham que orar é uma

coisa muito decente, mas é, afinal, uma atividade bem pobre e duvidosa,

quanto a quaisquer resultados práticos. Ore como alguém que

experimentou e provou o seu Deus, e portanto vem renovar as suas

petições com indubitável confiança. E lembre-se de orar a Deus durante

a oração toda, e jamais passe a fazer discurso ou pregação enquanto ora –

e muito menos, como fazem alguns – a ministrar censura e a fazer queixas.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 78

Como regra geral, se for convidado a pregar, dirija você mesmo a

oração. E se você gozar de alta estima no ministério, como espero que

aconteça, determine-se, com grande cortesia, mas com igual firmeza, a

resistir à prática da escolha de homens para orarem, com a idéia de

honrá-los dando-lhes algo para fazer. As nossas devoções públicas nunca

devem ser rebaixadas a oportunidades para atenções sociais. De vez em

quando ouço chamar a oração e o cântico de hinos de "serviços

preliminares", como se fossem apenas um prefácio do sermão. Espero

que isso seja raro entre nós – se fosse comum, seria para nossa maior

vergonha. Esforço-me invariavelmente para encarregar-me eu mesmo de

toda a ordem do culto, para o meu bem, e creio que também para o bem

do povo. Não acredito que "qualquer pessoa serve para fazer oração".

Não, senhores, é minha solene convicção que a oração é uma das

mais importantes, úteis e honoráveis partes do culto, e que deve até

merece maior consideração do que o sermão. Não devemos chamar para

orar pessoas de todo e qualquer tipo e, depois, fazer dentre elas a seleção

do mais capaz para pregar. Pode suceder que, ou por fraqueza, ou por se

tratar de ocasião especial, seja um alívio para o ministro ter alguém que

tome o seu lugar para elevar a oração. Mas se o Senhor lhe deu

capacidade para amar o seu trabalho, não muitas vezes, nem

prontamente, você fará essa parte por meio de procurador. Se delegar

todo o culto a outro, que o faça a alguém em cuja espiritualidade e

adequado preparo você tenha a mais plena confiança. Mas, pegar de

improviso um irmão menos dotado, e empurrá-lo para que realize

pessoalmente os atos de devoção, é vergonhoso. "Ao céu nós serviremos com menor respeito do que o fazemos com nossas toscas pessoas?"

Designe o mais competente para orar, e se houver falha, antes seja

no sermão do que na visita ao céu. Que o infinito Senhor seja servido

com o que temos de melhor; que a oração dirigida à Majestade divina

seja cuidadosamente avaliada, e então apresentada com todos os poderes

de um coração desperto e de um entendimento espiritual. Aquele que,

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 79

pela comunhão com Deus, foi preparado para ministrar ao povo, é

normalmente de todos os presentes o mais idôneo para aplicar-se à

oração. Elaborar um programa que coloca outro irmão em seu lugar, é

macular a harmonia do culto, privar ao pregador uma função que o

encorajaria para o sermão, e em muitos casos sugere comparações entre

uma parte do culto e outra, coisa que não se deve tolerar. Se irmãos

despreparados hão de ser mandados ao púlpito para fazer a minha oração

no meu lugar quando me compete pregar, não vejo por que não me

permitir que ore e depois me retire para deixar que aqueles irmãos

preguem. Não consigo ver nenhuma razão para privar-me do mais santo,

mais doce e mais proveitoso serviço de que o meu Senhor me incumbiu.

Se eu puder fazer a escolha, preferirei dispensar o sermão a dispensar a

oração. Irmãos, falei tanto assim para fazê-los fixar o fato de que

necessitam ter em alta estima a oração pública, e busquem do Senhor os

dons e graças necessárias para efetuá-la bem.

Os que desprezam toda oração improvisada, provavelmente

apanharão estas observações e as usarão contra ela, mas posso assegurar-

lhes que os defeitos contra os quais vos adverti não são comuns entre

nós, e na verdade estão quase extintos. Também é fato que o tropeço

causado por eles, mesmo no pior dos casos, nunca foi tão grande como o

causado, muitas vezes, pela maneira de realizar o culto, usando a liturgia

formal. Com muitíssima freqüência o culto na igreja é desenvolvido

apressadamente, com tanta falta de devoção como se fosse uma canção

de um cantor de baladas. As palavras são papagueadas sem a mínima

apreciação do seu significado; não às vezes, mas, muito freqüentemente,

nos lugares reservados para o culto episcopal, podem-se ver os olhos do

povo, os olhos dos coristas e os olhos do próprio clérigo, vagando por

todas as direções, uma vez que, evidentemente, pelo próprio tom da

leitura, não há sentimento algum em sintonia com o que está sendo lido.

Estive em funerais em que o ofício fúnebre da Igreja da Inglaterra

foi conduzido a galope, de maneira tão indecorosa, que me foi necessário

empregar todo o cavalheirismo que tinha para impedir-me de atirar um

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 80

capacho na cabeça da criatura. Fiquei tão indignado que não soube o que

fazer ao ouvir, na presença dos parentes do falecido, que estavam com o

coração sangrando, um homem a matraquear o ritual como se fosse pago

por peça e tivesse mais trabalho para fazer logo depois e, portanto,

quisesse chegar ao fim o mais depressa possível. Que efeito ele poderia

pensar que estava produzindo, ou que bom resultado poderia provir de

palavras arrancadas e arremessadas com força e violência, nem posso

imaginar. É realmente chocante pensar como aquele maravilhoso

cerimonial de enterro é assassinado e transformado numa abominação

pelo modo como freqüentemente o ofício é lido. Menciono isto

simplesmente porque, se eles criticarem as nossas orações com

demasiada severidade, podemos fazer um formidável contra-ataque para

silenciá-los. Todavia, muito melhor será corrigir as nossas tolices do que

achar defeito nos outros.

A fim de transformar a nossa oração pública naquilo que ela deve

ser, a primeira coisa necessária é, que tem que ser uma coisa do coração.

O homem tem que estar de fato com fervor quando ora. É preciso que

seja oração verdadeira e, se for, cobrirá multidão de pecados, como o

amor. Podem-se perdoar as familiaridades e vulgaridades de uma pessoa,

quando se vê claramente que o âmago do seu coração está falando com o

seu Criador, e que somente a sua educação defeituosa é que ocasiona os

seus defeitos na oração, e não quaisquer males morais ou espirituais do

seu coração.

Aquele que eleva súplicas a Deus em público deve ter ardor, pois,

que pode ser pior preparo para o sermão do que uma oração sonolenta?

Que é que pode levar mais o povo a não querer ir à casa de Deus do que

uma oração sonolenta? Ponha toda a alma no ato da oração. Se alguma

vez todo o seu ser se envolveu com alguma coisa, que o faça no sentido

de chegar perto de Deus em público. Ore, pois, para que, mediante uma

divina atração, você leve consigo todos os ouvintes até o trono de Deus.

Ore, pois, para que, mediante o poder do Espírito Santo pousando sobre

você, expresse os desejos e pensamentos de cada um dos presentes, e se

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 81

erga como a única voz falando por centenas de corações frementes, que

estão inflamados de fervor perante o trono de Deus.

Logo a seguir, as nossas orações devem ser pertinentes. Não digo

que se entre em todas e em cada uma das minúcias das circunstâncias

dos membros da igreja. Como já disse, não há necessidade de

transformar a oração pública numa gazeta dos acontecimentos da

semana, ou num registro de nascimentos, mortes e casamentos do

pessoal da igreja, mas os movimentos gerais que se deram entre os

irmãos devem ser notados pelo diligente coração do ministro. Ele deve

apresentar igualmente as alegrias e as tristezas do seu povo ao trono da

graça, e pedir que a bênção divina repouse sobre o seu rebanho em todos

os seus movimentos, atividades espirituais, serviços e santos

empreendimentos, e que Deus estenda o Seu perdão a todas as falhas e

inumeráveis pecados dos irmãos.

Depois, por meio de uma regra dada em termos negativos, devo

dizer, não alongue a sua oração. Acho que era John Macdonald que

costumava dizer: "Se você estiver com espírito de oração, não se

alongue, porque as outras pessoas não conseguirão manter o passo com

você nessa incomum espiritualidade; e se você não estiver com espírito

de oração, não se alongue, porque esteja certo de que aborrecerá os

ouvintes".

A respeito de Robert Bruce, de Edimburgo, o famoso

contemporâneo de Andrew Melville, diz Livingstone: "Ninguém em seu

tempo falava com tal evidência e poder do Espírito. Ninguém possuía

tantos selos da conversão; sim, muitos dos seus ouvintes achavam que

homem nenhum, desde os apóstolos, falara com tal poder. ... Ele era

muito breve na oração quando havia outros presentes, mas cada frase era

como um poderoso dardo disparado para o céu. Ouvi-o dizer que se

cansava quando outros faziam oração comprida; mas, estando a sós,

passava muito tempo em luta espiritual e oração".

Em ocasiões especiais, uma pessoa pode, se se sentir

extraordinariamente movida e arrebatada, orar durante vinte minutos no

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 82

culto matutino mais longo, mas isto não deve suceder com freqüência. O

meu amigo, Dr. Charles Brown, de Edimburgo, estabelece, como

resultado do seu ponderado julgamento, que dez minutos é o limite a que

deve estender-se a oração pública.

Os nossos antepassados puritanos costumavam orar por três quartos

de hora, ou mais, mas aí você precisa lembrar-se de que eles não sabiam

se teriam outra oportunidade de orar de novo diante de uma assembléia

e, portanto, faziam-no até saciar-se. Além disso, naquele tempo as

pessoas não eram propensas a contender pela extensão das orações ou

dos sermões como hoje em dia. Nunca será demasiado longa a sua

oração em particular. Não a limitaremos a dez minutos ali, nem a dez

horas, nem a dez semanas, se quiser. Quanto mais tempo estiver de

joelhos a sós, melhor. Agora estamos falando daquelas orações que vêm

antes ou depois do sermão, e para essas orações, dez minutos é melhor

limite do que quinze. Apenas um em mil se queixaria de você por ser

breve demais, ao passo que dezenas murmurarão por você ser enfadonho

por alongar-se muito. "Ele orou de modo que me colocou em bom estado

de espírito", disse uma vez George Whitefield sobre certo pregador, "e se

tivesse parado ali, estaria tudo muito bem; mas, continuando a orar,

tirou-me de novo dele".

A imensa longanimidade de Deus exemplifica-se no fato de ter Ele

poupado alguns pregadores que neste sentido têm cometido grave

pecado; eles têm lesado a piedade do povo de Deus com suas orações de

longo fôlego e, apesar disso, Deus, em Sua misericórdia, permite que

continuem a ministrar no santuário. Ah! pobres daqueles que têm que

ouvir pastores que fazem orações de quase meia hora e depois pedem

perdão a Deus por suas "omissões"! Não se alongue, por diversos

motivos. Primeiro, porque você e o povo se cansarão; segundo, porque

fazer oração muito comprida indispõe o coração das pessoas para o

sermão.

Toda aquela árida, fastidiosa e prolixa tagarelice na oração serve

apenas para embotar a atenção, e assim, os ouvidos se fecham como se

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 83

estivessem entupidos. Ninguém que pretenda tomar de assalto a "porta

da audição" pensará em bloqueá-la com barro ou pedras. Não; trate de

deixar limpo o portal, para que o aríete do evangelho produza efeito

quando chegar o tempo de usá-lo. As orações longas consistem, ou de

repetições, ou de explicações desnecessárias que Deus não requer; ou

então degeneram, transformando-se em pregações indiretas, de sorte que

deixa de haver diferença entre a oração e a pregação, exceto que na

primeira o ministro mantém os olhos fechados, e na segunda os mantém

abertos.

Na oração não é preciso recitar o Catecismo da Assembléia de

Westminster. Na oração não é preciso relatar a experiência de todos os

presentes, e nem mesmo a sua própria. Na oração não é preciso enfileirar

uma seleção de textos da Escritura, e citar Davi, Daniel, Jó, Paulo,

Pedro, e todos os demais, sob o título de "Teu servo do passado". Na

oração é preciso aproximar-se de Deus, mas não se requer que você

prolongue tanto o seu falar, que toda gente fique ansiosa por ouvir a

palavra "Amém".

Não posso deixar de fazer uma breve sugestão: Nunca faça parecer

que está concluindo, recomeçando então a falar mais uns cinco minutos.

Quando os amigos ficam com a idéia de que você está prestes a terminar,

não podem com um tranco retomar o espírito devoto e prosseguir.

Conheci homens que nos impunham o suplício de Tântalo, dando-nos a

esperança de que se aproximavam do fim, e depois se impunham por

novos períodos, duas ou três vezes. Isso é sumamente insensato e

desagradável.

Outra norma é – não empregue frases bombásticas. Irmãos,

acabemos de uma vez com essas coisas desprezíveis. Tiveram os seus

dias; deixemos que morram. Não há como exagerar na crítica a essas

peças de gritante pompa espiritual. Algumas delas são puras invenções;

outras são passagens tiradas dos apócrifos; outras são textos que se

originaram na Escritura, mas que têm sido horrivelmente deformados

desde quando foram produzidos pelo Autor da Bíblia.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 84

Na Revista Batista de 1861 eu fiz as seguintes observações sobre as

vulgaridades que ocorrem comumente nas reuniões de oração: "As frases bombásticas são um grande mal. Quem poderia justificar

expressões como as de que tratarei a seguir? "Não deveríamos correr para a presença do Senhor como o cavalo, incapaz de pensar, corre para a batalha". Como se os cavalos alguma vez pensassem, e como se não fosse melhor exibir a elegância e a energia do cavalo do que a lentidão e a estupidez do asno! Como a estrofe da qual imaginamos que essa fina citação foi extraída relaciona-se mais com pecados do que com orações, alegramo-nos com o fato de que a frase está em plena decadência. "Vá de coração em coração, como o óleo vai de vaso em vaso" é provavelmente citação do conto infantil de Ali Babá e os Quarenta Ladrões, mas destituída de sentido, de Escritura e de poesia, como qualquer frase que se poderia conceber. Não nos consta que o óleo corra de um vaso a outro de algum modo misterioso ou maravilhoso. É certo que ao ser despejado escorre lentamente e, portanto, é adequado símbolo do fervor de algumas pessoas. Mas, certamente seria melhor receber a graça diretamente do céu do que de outro vaso – idéia papista que a metáfora parece insinuar, se é que de fato tem algum significado. "Teu pobre e indigno pó", epíteto que geralmente os homens mais orgulhosos da igreja se aplicam a si próprios, e não raro os mais presos ao dinheiro e mais ordinários, caso em que as duas últimas palavras da frase não são muito impróprias.

"Ouvimos falar de um bom homem que, intercedendo por seus filhos e netos, ficou tão obscurecido pela alucinante influência da sua expressão, que exclamou: "Ó Senhor, salva o Teu pó, e o pó do Teu pó, e o pó do pó do Teu pó". Quando Abraão disse, "Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor, ainda que sou pó e cinza", a sua declaração foi vívida e expressiva; mas em sua forma mal citada, pervertida e exagerada, quanto mais depressa for reduzida a pó, melhor. Um miserável aglomerado de perversões da Escritura, rudes símiles e ridículas metáforas constituem uma espécie de gíria espiritual, fruto de ignorância ímpia, de imitação desfibrada ou de hipocrisia decorrente de ausência da graça; são ao mesmo tempo uma desonra para os que estão sempre repetindo essas coisas, e um aborrecimento intolerável para aqueles cujos ouvidos são atormentados por elas."

O Dr. Charles Brown, de Edimburgo, em admirável discurso numa

reunião da New College Missionary Association, dá exemplos de

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 85

citações truncadas peculiares à Escócia que, todavia, às vezes atravessa o

rio Tweed. Com sua permissão, farei citação completa. "Há aquilo que se poderia denominar mescla infeliz, às vezes

inteiramente grotesca, de textos da Escritura. Quem não conhece as seguintes palavras dirigidas a Deus em oração: "Tu és o alto e sublime, que habitas a eternidade e seus louvores"?, confusão de dois textos gloriosos, cada um deles glorioso se tomado isoladamente – ambos maculados, e um deles na verdade irremediavelmente perdido, quando assim combinados e misturados. Um é Isaías 57:15: "Porque assim diz o alto e sublime, que habita na eternidade, e cujo nome é santo". O outro é o Salmo 22:3: "Porém tu és Santo, o que habitas entre os louvores de Israel'. A referência à habitação entre louvores da eternidade é, para dizer o mínimo, pobre. Não havia louvores na eternidade passada para serem habitados. Mas, que glória há em condescender Deus em habitar, em fazer Seu domicílio, entre os louvores de Israel, da igreja resgatada!

"Depois há um exemplo nada menos que grotesco sob este título e, contudo, em tão freqüente uso que suspeito que geralmente se considera que tem a sanção da Escritura. Ei-lo: "Poríamos a nossa mão em nossa boca, e a nossa boca no pó, e clamaríamos: Imundos, imundos; ó Deus, tem misericórdia de nós, pecadores!" Trata-se de não menos de quatro textos reunidos, cada um deles belo, isoladamente. O primeiro é o de Jó 40:4: "Eis que sou vil; que te responderia eu? A minha mão ponho na minha boca". O segundo é o de Lamentações 3:29: "Ponha a sua boca no pó; talvez assim haja esperança". O terceiro é o de Levítico 13:45, onde se diz ao leproso que cubra o lábio superior, e grite: "Imundo, imundo". E o quarto é a oração do publicano. Mas como é incongruente pôr alguém primeiro a mão na boca, depois a boca no pó, e, por último, clamar, etc.!

"O único outro exemplo que dou é uma expressão quase universal entre nós, e, desconfio, considerada quase universalmente como registrada na Escritura: "Em teu favor há vida, e tua benignidade é melhor do que a vida". O fato é que isso também não passa de uma infeliz junção de duas passagens, em que o termo vida é empregado em sentidos completamente diversos, e mesmo incompatíveis, a saber, o Salmo 63:3, "Porque a tua benignidade é melhor do que a vida", onde evidentemente, vida significa a presente vida temporal. A outra passagem é o Salmo 30:5b - "no seu favor está a vida".

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 86

"Uma segunda classe pode ser descrita como infelizes alterações da linguagem da Escritura. Terei necessidade de dizer que o Salmo 130, "Das profundezas", etc., é um dos mais preciosos de todo o livro de Salmos? Por que havemos de ter as palavras de Davi e do Espírito Santo dadas assim na oração pública, e com tanta freqüência, que os piedosos crentes de nossas igrejas vieram a adotá-las em suas orações comunitárias e domésticas: "Mas contigo está o perdão, para que sejas temido, e abundante redenção para que sejas procurado"? Como são preciosas as singelas palavras registradas no salmo citado [versículo 4): "Mas contigo está o perdão, para que sejas temido"; versículos 7.8: "no Senhor há misericórdia, e nele há abundante redenção. E ele remirá a Israel de todas as suas iniqüidades"!

"Outra vez, nesse abençoado salmo, as palavras do versículo 3, "Se tu, Senhor, observares as iniqüidades, Senhor, quem subsistirá?", muito raramente nos são deixadas com sua manifesta simplicidade, mas têm que sofrer a seguinte mudança: "Se tu fores estrito em observar as iniqüidades", etc. Lembro-me de que nos meus tempos de estudante, costumávamos dar-lhe forma muito mais ofensiva: "Se tu fores estrito para observar e rigoroso para punir"! Outra mudança favorita é a seguinte: "Tu estás nos céus, e nós sobre a terra; pelo que sejam poucas e bem ordenadas as nossas palavras". O pronunciamento simples e sublime de Salomão (certamente cheio de instrução sobre o tema de que estou tratando) é: "Deus está nos céus, e tu estás sobre a terra; pelo que sejam poucas as tuas palavras" (Eclesiastes 5:2). Para outro exemplo desta classe, veja-se como são torturadas as sublimes palavras de Habacuque: "Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal, e não podes contemplar o pecado sem te aborreceres". As palavras do Espírito Santo são (Habacuque 1:13): "Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal, e a vexação não podes contemplar". Precisaria dizer que a força da figura, "e a vexação não podes contemplar", quase se perde quando você acrescenta que Deus pode contemplá-la, só que não sem se aborrecer?

"Uma terceira classe consiste de pleonasmos inexpressivos, de vulgares e banais redundâncias de expressão, na citação das Escrituras. Um desses casos tornou-se tão universal, que me aventuro a dizer que raramente você o omite quando a passagem em foco entra em cena. "Fica no meio de nós" (ou, como alguns preferem expressá-lo, de modo um tanto infeliz segundo penso, "em nosso meio"), "para abençoar-nos, e fazer-nos bem". Que idéia adicional há na última expressão, "e fazer-nos bem"? A

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 87

passagem aludida é Êxodo 20:24: "em todo o lugar onde eu fizer celebrar a memória do meu nome, virei a ti, e te abençoarei". Esta é a simplicidade da Escritura. O nosso acréscimo é: "para abençoar-nos, e fazer-nos bem". Em Daniel 4:35 lemos as nobres palavras: "não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?" A mudança favorita é: "Ninguém pode impedir a tua mão de agir". "As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam." Isto sofre a seguinte alteração: "e não subiu ao coração do homem conceber as coisas". Constantemente ouvimos referência a Deus como Aquele "que ouve e responde a oração", mero pleonasmo vulgar e inútil, pois a idéia que a Escritura contém é de que se Deus ouve a oração, Ele responde – "Ó tu que ouves as orações! a ti virá toda a carne." "Ouve, Senhor, a minha oração". "Amo ao Senhor, porque ele ouviu a minha voz e a minha súplica."

"Por que, outra vez, aquele chavão da oração pública, "As tuas consolações não são nem poucas nem pequenas"? Suponho que a referência seja às palavras de Jó: "Porventura as consolações de Deus te são pequenas?" Assim também raramente se ouve aquela oração do Salmo 74, "Atenta para o teu concerto; pois os lugares tenebrosos da terra estão cheios de moradas de crueldade", sem o acréscimo, "horrenda crueldade"; nem o chamamento à oração, em Isaías, "ó vós, os que fazeis menção do Senhor, não haja silêncio em vós, nem estejais em silêncio, até que confirme, e até que ponha a Jerusalém por louvor na terra", sem o acréscimo, "em toda a terra"; nem o apelo do salmista: "Quem tenho eu no céu senão a ti? e na terra não há quem eu deseje além de ti", sem o acréscimo: "em toda a terra".

"Estes últimos exemplos parecem coisas na verdade insignificantes. E são. Nem valeria a pena achar-lhes defeito, se ocorressem apenas ocasionalmente. Mas examinados como lugares comuns estereotipados, bem fracos em si mesmos, mas ocorrendo com tanta freqüência que dão a impressão de terem autoridade bíblica, humildemente acho que deviam ser desaprovados e descartados – banidos totalmente do culto presbiteriano. Talvez vocês se surpreendam ao saberem que a única autorização dada pela Escritura àquela expressão favorita e algo peculiar sobre o "perverso pecado que rola como doce manjar sob as suas línguas", está nas seguintes palavras do livro de Jó (20:12): "Ainda que o mal lhe seja doce na boca, e ele o esconda debaixo da sua língua"."

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 88

Basta disto, porém. Só lamento ser forçado a estender-me tanto

sobre um assunto infeliz como esse. Todavia, não posso deixar a matéria

sem insistir com vocês que façam com exatidão literal todas as citações

da Palavra de Deus.

Deveria ser uma questão de honra entre os ministros citar sempre

corretamente a Escritura. É difícil sempre fazê-lo com exatidão, e,

porque é difícil, deveria constituir objeto do nosso maior cuidado. Nos

salões de Oxford ou Cambridge seria considerado quase traição ou crime

um membro proeminente da universidade citar erroneamente Homero,

Virgílio ou Tácito; mas um pregador citar erradamente Davi, Moisés ou

Paulo é coisa muito mais séria, e bem merecedora da mais severa

censura. Notem que eu me referi a um membro proeminente da

universidade, não a um principiante; e de um pastor esperamos pelo

menos igual precisão em seu próprio departamento à daquele que faz

parte de um corpo universitário. Vocês que sem vacilar crêem na teoria

da inspiração verbal (para minha intensa satisfação), nunca deveriam

fazer uma citação enquanto não puderem usar as palavras precisas,

porque, de acordo com a explicação que vocês mesmos dão, pela

alteração de uma única palavra pode-se perder por completo o sentido

que Deus deu à passagem. Se não conseguem citar a Escritura

corretamente, por que citá-la de qualquer modo em suas petições? Façam

uso de uma expressão nova, oriunda da sua própria mente, e será tão

aceitável para Deus como uma frase bíblica desfigurada ou mutilada.

Lutem com todo o vigor contra as mutilações e perversões da Escritura, e

renunciem para sempre a todas as frases bombásticas, pois constituem

deformações da oração improvisada.

Notei um hábito entre alguns – espero que vocês não tenham caído

nisso – de orar com os olhos abertos. É inatural, inconveniente e de mau

gosto. Ocasionalmente, os olhos abertos e elevados ao céu podem ser

adequados e causar impressão, mas correr o olhar pelo ambiente

enquanto se declara que se está falando com o Deus invisível, é

detestável. Nos primeiros tempos da igreja os chamados pais

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 89

denunciaram esta prática imprópria. Deve-se fazer o mínimo de

movimentos, se tanto, durante a oração. Raramente é bom levantar e

mover o braço, como se se estivesse pregando. Contudo, os braços

estendidos e as mãos cerradas são naturais e sugestivos, quando se está

sob forte e santa comoção. A voz deve harmonizar-se com o assunto, e

jamais deve ser tempestuosa ou arrogante. Ao falar com Deus, usem-se

entonações reverentes e humildes. Não é verdade que até a natureza lhes

ensina isto? Se a graça não o fizer, perco a esperança.

Com especial atenção às suas orações nos cultos do dia do Senhor,

talvez sejam úteis algumas observações. Para impedir que o mero

costume e a rotina se entronizem entre nós, será bom variar quanto

possível a ordem do culto. O que quer que o Espírito nos mova a fazer,

façamos de uma vez. Até pouco tempo atrás eu não tinha ciência da

extensão em que permitiram que se intrometesse o controle dos diáconos

sobre os ministros em certas igrejas desafortunadas. Estou acostumado a

dirigir sempre os cultos da maneira que considero mais adequada e

edificante, e nunca ouvi sequer uma palavra de objeção, e creio que

posso dizer que vivo nas mais amáveis relações de amizade com os meus

cooperadores. Mas um irmão e colega de ministério me contou esta

manhã que certa ocasião orou no início do culto matutino, em vez de

mandar cantar um hino, e quando se retirou para o gabinete pastoral

depois do culto, os oficiais lhe disseram que não queriam saber de

inovações.

Até aqui entendíamos que as igrejas batistas não estão sob a

escravidão de tradições e de regras fixas quanto às maneiras de prestar

culto, e, contudo, essas pobres criaturas, esses pretensos senhores, que

bradam contra a liturgia formal, querem prender os seus ministros com

indicações limitadoras produzidas pelo costume. É tempo de silenciar

para sempre esse absurdo. Pretendemos dirigir o culto conforme nos

mova o Espírito Santo, e como nos pareça melhor. Não queremos ser

obrigados a cantar aqui e orar ali, mas queremos variar a ordem do culto

para evitar a monotonia.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 90

Ouvi dizer que o sr. Hinton uma vez pregou o sermão no começo do

culto, de modo que os retardatários puderam ter oportunidade de orar. E

por que não? Alterações da regularidade fazem bem; a monotonia

aborrece. Muitas vezes será uma coisa sumamente proveitosa deixar o

povo serenamente sentado no mais profundo silêncio uns dois a cinco

minutos. O silêncio solene dá nobreza ao culto. Verdadeira oração não é barulho imenso de lábios habituados ao clamor; mas é o silêncio d'alma, sim, profundo e intenso, d'alma que abraça os pés do seu Senhor.

Variem, pois, a ordem das suas orações, para manter a atenção e

impedir que as pessoas passem pelo programa todo do mesmo modo

como anda o relógio até os pesos irem até o chão.

Variem a extensão das suas orações públicas. Não acham que às

vezes seria muito melhor que, em vez de dar três minutos à primeira

oração e quinze à segunda, dessem nove minutos a cada uma delas? Não

seria melhor, às vezes, estender-se mais na primeira oração, e menos na

segunda? Não seria melhor fazer duas orações de durarão tolerável, do

que uma extremamente longa e outra extremamente curta? Não seria

bom também ter um hino depois da leitura do capítulo, ou um versículo

ou dois antes da oração? Por que não cantar quatro vezes,

ocasionalmente? Por que não se contentar com dois hinos, ou só um,

ocasionalmente? Por que cantar depois do sermão? Por outro lado, por

que alguns jamais cantam no fim do culto? É aconselhável fazer sempre,

ou mesmo freqüentemente, uma oração depois da pregação? Não

causaria maior impressão se fosse feita de vez em quando? A direção do

Espírito Santo não nos propiciaria uma variedade desconhecida no

presente? Tratemos de ter algo de maneira que o nosso povo não venha a

considerar qualquer forma do culto como determinada, e assim torne a

cair na superstição da qual escapou.

Variem os temas comuns das suas orações na intercessão. Há

muitos tópicos que requerem a sua atenção: a igreja com suas fraquezas,

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 91

suas infidelidades, suas tristezas e suas consolações; o mundo exterior, a

vizinhança, os ouvintes não convertidos, os jovens, a nação. Não orem

por tudo isso todas as vezes, ou senão as suas orações serão longas e

provavelmente desinteressantes. Qualquer que seja o tópico

predominante em seu coração, façam-no predominar em suas súplicas.

Há um modo de seguir um curso na oração, se o Espírito Santo os guiar

por ele, o que dará coesão ao culto, e se harmonizará com os hinos e com

a prédica.

É muito proveitoso manter unidade no culto, onde possível; não

servilmente, mas com sabedoria, de sorte que o efeito seja unificante.

Certos irmãos nem sequer procuram manter unidade no sermão, mas

vagueiam da Inglaterra ao Japão e introduzem todos os assuntos

imagináveis. Mas vocês, que já atingiram a preservação da unidade no

sermão, poderiam ir um pouco além, e demonstrar algum grau de

unidade no culto, sendo cuidadosos quanto ao hino, à oração e à leitura

bíblica, para manter em proeminência o mesmo assunto. Pouco

recomendável é a prática, comum em alguns pregadores, de reiterar o

sermão na última oração. Pode ser instrutivo para os ouvintes, mas é um

objetivo totalmente alheio à oração. É uma prática bombástica,

escolástica e inconveniente; não a imitem.

Como fugiriam de uma víbora, evitem todas as tentativas para

conseguir fervor espúrio na devoção pública. Não se esforcem para

parecer fervorosos. Orem segundo os ditames do seu coração, sob a

direção Espírito de Deus, e se vocês estiverem embotados e tediosos,

falem disso ao Senhor. Não será ruim confessar a sua falta de vida,

deplorá-la e clamar por vivificação. Será uma oração real e aceitável.

Mas o ardor fingido é uma vergonhosa forma de mentir. Nunca imitem

os fervorosos. Vocês conhecem um bom homem que geme, e outro cuja

voz vira grito estridente quando ele é arrebatado pelo ardor, mas, nem

por isso vocês deverão gemer ou chiar para parecerem fervorosos como

eles. Simplesmente sejam naturais do começo ao fim, e peçam a Deus

que os guie nisso tudo.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 92

Finalmente – esta palavra lhes digo confidencialmente – preparem

a sua oração. Vocês dirão com espanto: "Que será que o senhor poderá

querer dizer com isso?" Bem, quero dizer o que alguns não querem. Uma

vez foi discutida numa sociedade de ministros a questão: "É certo o

ministro preparar a sua oração com antecedência?" Alguns afirmaram

vigorosamente que não é certo; e agiram bem. Outros com igual vigor

sustentaram que é certo. E não deveriam ser contraditados. Creio que

ambas as partes tinham razão. Os irmãos do primeiro grupo entendiam

por preparo da oração o estudo de expressões, e a colocação ordenada de

uma linha de pensamento, o que todos eles diziam ser completamente

oposto ao culto espiritual, no qual devemos deixar-nos nas mãos do

Espírito de Deus para que Ele nos ensine tanto o assunto como as

palavras.

Com essas observações concordamos plenamente, pois, se um

homem escreve as suas orações e estuda as suas petições, que use logo

uma fórmula litúrgica. Mas os irmãos oponentes queriam dizer por

preparo uma coisa completamente diversa. Não o preparo da cabeça, mas

do coração, preparo que consiste em ponderar previamente na

importância da oração, em meditar nas necessidades espirituais dos

homens, e em recordar as promessas que havemos de pleitear – indo,

desta forma, à presença do Senhor com uma petição escrita nas tábuas de

carne do coração. Segura-mente isso é melhor do que ir a Deus à esmo,

correr para o trono divino ao acaso, sem mensagem ou desejo definido.

"Nunca me canso de orar", disse alguém, "porque sempre tenho uma

mensagem definida quando oro."

Irmãos, as suas orações são desta espécie? Vocês lutam para estar

numa adequada disposição de espírito para dirigir as súplicas do seu

povo? Vocês põem em ordem a sua causa quando vão comparecer

perante o Senhor? Creio, meus irmãos, que devemos preparar-nos pela

oração particular para a oração pública. Por uma vida vivida perto de

Deus, devemos manter espírito de oração, e então não falharemos em

nossas súplicas elevadas vocalmente. Se se deve tolerar alguma coisa

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 93

além disso, deveria ser a dedicação à memorização dos Salmos e de

porções da Escritura que contém promessas, súplicas, louvores e

confissões, os quais possam ser de utilidade no ato de oração. De

Crisóstomo se diz que aprendeu a Bíblia de cor, de modo que podia

repeti-la a seu bel-prazer. Não admira que se chamasse boca de ouro.

Agora, em nossa conversação com Deus, nenhuma linguagem pode

ser mais apropriada do que as palavras do Espírito Santo – "Faze como

disseste" sempre prevalecerá junto ao Altíssimo. Aconselhamos, pois, a

memorização dos inspirados exercícios de devoção presentes na Palavra

da Verdade. Depois, a contínua leitura das Escrituras os manterá sempre

supridos de renovadas preces, que serão como ungüento derramado,

impregnando toda a casa de Deus com a sua fragrância, quando

apresentarem as suas petições em público perante o Senhor. Sementes de

oração semeadas assim na memória, constantemente produzirão

excelentes colheitas, quando o Espírito lhes aquecer a alma com fogo

santo na hora da oração congregacional. Como Davi usou a espada de

Golias para vitórias futuras, assim podemos empregar às vezes uma

petição já respondida, e capacitar-nos a dizer com o filho de Jessé: "Não

há outra semelhante; dá-ma", pois Deus tornará a cumpri-la em nossa

experiência pessoal.

Oxalá as vossas orações sejam fervorosas, cheias de fogo,

veemência e poder. Rogo ao Espírito Santo que ensine todos os

estudantes desta Escola a fazer oração pública, de modo que Deus seja

servido sempre do melhor de cada um. Oxalá as suas petições sejam

singelas e brotem do coração. E, ao passo que às vezes o povo de sua

igreja pode achar que o sermão esteve abaixo do normal, possa também

achar que a oração compensou tudo,

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 94

O CONTEÚDO DO SERMÃO

Os sermões devem conter ensino valioso, e sua doutrina deve ser

sólida, substanciosa e abundante. Não subimos ao púlpito para falar por

falar. Temos para transmitir instruções em extremo importantes, e não

podemos dar-nos ao luxo de pronunciar belas nulidades. A nossa galeria

de assuntos é quase ilimitada e, portanto, não poderemos escusar-nos se

as nossas pregações forem vulgares e vazias de substância. Se falamos

como embaixadores de Deus, nunca precisaremos queixar-nos de falta de

assunto, pois a nossa mensagem chega a transbordar de tão cheia.

O evangelho inteiro deve ser apresentado do púlpito; toda a fé uma

vez entregue aos santos deve ser proclamada por nós. A verdade como se

apresenta em Jesus deve ser declarada instrutivamente, de sorte que o

povo não apenas escute, mas conheça o jubiloso som. Não servimos aos

pés do altar do "Deus desconhecido", mas falamos aos cultuadores

daquEle de quem está escrito: "em ti confiarão os que conhecem o teu

nome". Dividir bem um sermão pode ser uma arte muito útil, mas, como

fazê-lo se não houver nada para dividir? Um homem que só sabe dividir

sermão é como um excelente trinchador diante de uma travessa vazia.

Ser capaz de fazer um preâmbulo apropriado e atrativo, ter facilidade de

falar com propriedade durante o tempo designado para o sermão, e de

concluir com uma respeitável peroração, talvez pareça aos meros atores

que é tudo que se requer. Mas o verdadeiro ministro de Cristo sabe que o

verdadeiro valor de um sermão está, não em seu molde ou modo, mas na

verdade que ele contém.

Nada pode compensar a ausência de ensino; toda a retórica do

mundo é apenas o que a palha é para o trigo, em contraste com o

evangelho da nossa salvação. Por mais belo que seja o cesto do

semeador, é uma miserável zombaria, se estiver sem sementes. O maior

sermão já pronunciado é um ostentoso fracasso, se a doutrina da graça de

Deus está ausente dele; passa rapidamente por cima das cabeças dos

homens como uma nuvem, mas não distribui chuva alguma sobre a terra

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 95

sedenta. E daí, para as almas anelantes por sabedoria pela experiência de

premente necessidade, a lembrança dele é de desapontamento, ou pior.

O estilo de um homem pode ser fascinante como o da autoria da

qual alguém disse que costumava escrever com pena de cristal molhada

em orvalho, em papel de prata, e para secá-lo usava pó de asa de

borboleta. Mas para um auditório cujas almas estão em perigo iminente,

o que será a mera elegância, senão "muito mais leve que a vaidade"?

Não se julgam cavalos por suas campainhas e por seus arreios, e

sim, por suas pernas, sua estrutura óssea e por seu sangue; e os sermões,

quando criticados por ouvintes judiciosos, em grande parte são avaliados

pela proporção de verdade do evangelho e pelo poder do espírito do

evangelho que eles contém. Irmãos, ponderem os seus sermões. Não os

avaliem por retalhos, mas por peças. Não façam as contas pela

quantidade de palavras que pronunciam, mas lutem para serem avaliados

pela qualidade da substância que apresentam. É loucura ser pródigo em

palavras e avarento quanto à verdade. Seria destituído de juízo àquele

que gostasse de se ouvir descrito à moda de um dos grandes poetas do

mundo, que diz: "Graciano fala uma quantidade infinita de nada, mais

que qualquer outro homem de Veneza. Suas razões são como dois grãos

de trigo escondidos em duas arrobas de palha; você leva o dia todo para

achá-los, e quando os acha, não valem a busca".

Dirigir apelos aos sentimentos afetivos é excelente, mas se não vão

acompanhados de instrução, são apenas um lampejo no panorama, é

pólvora gasta, sem acertar o alvo. Estejam certos de que o mais

fervoroso avivalismo se fará fumaça, se não for mantido pelo

combustível do ensino. O método divino é pôr a lei na mente, e depois

escrevê-la no coração; o julgamento é iluminado, e então as paixões são

subjugadas.

Leiam Hebreus 8:10, e sigam o modelo da aliança da graça. O

comentário que Gouge faz sobre esse passo bíblico pode ser citado aqui

com propriedade: "Nisto os ministros devem imitar a Deus e, com o

máximo do seu esforço, devem instruir o povo sobre os mistérios da

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 96

piedade, e ensinar-lhe o que crer e praticar, e depois concitá-lo a mover-

se e a agir, a fazer o que foi ensinado a fazer. De outra forma, o seu

trabalho teria a probabilidade de ser em vão. Negligenciar esta linha de

ação é uma das principais causas pelas quais os homens caem em tantos

erros como acontece hoje em dia". Podemos acrescentar que esta última

observação ganhou mais força em nossos tempos; é entre os rebanhos

sem instrução que os lobos do papado fazem estragos. O ensino saudável

é a melhor proteção contra as heresias que assolam à direita e à esquerda

entre nós.

É sadia informação sobre os assuntos bíblicos que os seus ouvintes

desejam ardentemente, e precisam tê-la. Eles têm direito a explicações

precisas da Escritura Sagrada, e se cada um de vocês for "um intérprete,

um de mil", um verdadeiro mensageiro, dá-las-á com abundância.

Qualquer coisa mais que esteja presente, a ausência da verdade

instrutiva, edificante, à semelhança da ausência de farinha no pão, será

fatal. Avaliados pelo seu sólido conteúdo em vez de pela sua área de

superfície, muitos sermões são bem pobres exemplares do discurso

sacro. Creio que tem fundamento a observação de que, se vocês ouvirem

um prelecionador de astronomia ou geologia, durante um breve curso

obterão uma visão razoavelmente clara do seu sistema. Mas, se ouvirem,

não por doze meses apenas, mas por doze anos, a um pregador do tipo

comum, não chegarão a nada que se pareça com uma idéia do seu

sistema de teologia. Se é assim, é um grave mal, que não conseguiremos

deplorar demais.

Ah! as indistintas declarações de muitos sobre as mais grandiosas

realidades eternas, e a obscuridade de pensamento de outros quanto a

verdades fundamentais, têm dado muita ocasião à critica! Irmãos, se

vocês não forem teólogos, não serão absolutamente nada nos seus

pastorados. Poderão ser ótimos retóricos, profusos em expressões

polidas; mas sem o conhecimento do evangelho, e sem aptidão para

ensiná-lo, não passarão de metal que soa ou de sino que retine.

Muitíssimas vezes a verbosidade é a folha de figueira que funciona como

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 97

cobertura para a ignorância teológica. Ressonantes períodos são

oferecidos em lugar de boa doutrina, e a retórica floresce em lugar de

pensamento robusto. Essas coisas não deviam acontecer. A abundância

de declamações vazias, e a falta de alimento para a alma transformarão o

púlpito num estofo de enchimento, e inspirarão desprezo em vez de

reverência. Se não formos pregadores instrutivos, e não alimentarmos de

fato o povo, poderemos ser grandes recitadores de poesia elegante, e

poderosos varejistas de foles de segunda mão, mas seremos como o

antigo Nero, que tocava violino enquanto Roma ardia em chamas, e

enviava navios a Alexandria em busca de areia para a arena, enquanto a

população morria de fome por falta de trigo.

Insistimos nisso – em que é preciso haver abundância de substância

nos sermões – e, em seguida, em que essa substância deve ser coerente

com o texto. Em regra, o sermão deve brotar do texto, e quanto mais

evidente assim for, tanto melhor. Todas as vezes, porém, para dizer o

mínimo, deve ter a mais estreita relação com ele. Deve se permitir larga

amplitude no que se refere à espiritualização e à acomodação; mas a

liberdade não deve degenerar em abuso, e sempre deve existir uma

conexão, e algo mais que uma remota conexão – uma verdadeira relação

entre o sermão e o seu texto.

Outro dia me falaram de um extraordinário texto, que seria próprio

ou impróprio conforme o pensamento da gente. Um rústico proprietário,

membro da igreja, dera certo número de flamantes mantos escarlates às

mais idosas senhoras da comunidade. Solicitou-se que estes seres

resplendentes fossem à igreja no domingo seguinte, e se sentassem em

frente do púlpito, do qual um dos pretensos sucessores dos apóstolos os

edificou usando as palavras: "Nem mesmo Salomão, em toda a sua

glória, se vestiu como qualquer deles". Consta que, numa reunião

subseqüente, quando o mesmo benfeitor da paróquia dera meio saco de

batatas a cada pai de família, o tópico do domingo seguinte foi: "E

disseram: isto é maná". Não posso dizer se a matéria desse caso e o texto

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 98

escolhido são congruentes. Suponho que sim, pois as probabilidades são

de que toda a realização em foco era completamente doida.

Alguns irmãos não querem mais saber do texto, logo depois de o

terem lido. Havendo prestado toda a devida honra a essa passagem

particular ao anunciá-la, não vêem mais necessidade alguma de referir-se

a ela. Tiram o chapéu, por assim dizer, cumprimentando aquela parte da

Escritura, e passam adiante a verdes campos e novas pastagens. Afinal

de contas, por que esses homens tomam um texto? Por que limitam sua

gloriosa liberdade pessoal? Por que fazem da Escritura uma plataforma

só para que possam montar seu Pégaso sem freios? Certamente as

palavras do Livro inspirado nunca se destinaram a ser fivelas de sapatos

para ajudarem o tagarela firmar as suas botas de sete léguas com as quais

possa saltar de um pólo a outro.

O modo mais seguro de manter variações é obedecer à mente do

Espírito Santo na passagem particular que se esteja considerando. Não

existem dois textos exatamente iguais; alguma coisa na conexão ou na

tendência de cada um dos textos aparentemente idênticos dá-lhes um

sombreado diferente. Sigam as pegadas do Espírito e nunca serão

repetitivos nem ficarão sem material; Suas veredas destilam gordura.

Além disso, o sermão chega com muito maior poder às consciências dos

ouvintes quando é pura e simplesmente a própria Palavra de Deus – não

uma preleção sobre a Escritura, mas a Escritura mesma, exposta e

imposta. É devido à majestade da inspiração que, quando você declara

estar pregando sobre um versículo, não o tira da vista para dar lugar aos

seus pensamentos pessoais.

Irmãos, se vocês têm o hábito de manter diante de si o sentido

preciso da Escritura, recomendo-lhes que se atenham à ipsissima verba,

às palavras do Espírito Santo propriamente ditas; pois, embora em

muitos casos os sermões tópicos sejam, não só permissíveis mas também

muito apropriados, aqueles sermões que expõem as exatas palavras do

Espírito Santo são os mais úteis e os mais convenientes para a maioria

das nossas igrejas. Elas gostam de receber as palavras mesmas da

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 99

Escritura explicadas e expostas. Muitos não são capazes de captar o

sentido isolado da linguagem – de enxergar, por assim dizer, a verdade

desencarnada. Mas quando ouvem as palavras precisas reiteradas muitas

vezes, e cada expressão comunicada demoradamente, ao estilo de

pregadores do tipo do Sr. Jay (de Bath) são sobremaneira edificados, e a

verdade se fixa mais firmemente na memória deles. Sejam, pois,

copiosamente substanciais os seus sermões, e que a matéria deles evolva

da Palavra inspirada, como as violetas e as prímulas brotam naturalmente

do solo fértil, ou como o mel virgem destila do favo.

Cuidem para que as suas mensagens sejam valiosas e prenhes de

ensinamentos realmente importantes. Não edifiquem com madeira, feno

e palha, mas com ouro, prata e pedras preciosas. Dificilmente será

necessário adverti-los contra as degradações mais grosseiras da

eloqüência do púlpito, ou, senão, poderíamos citar o exemplo do notório

orador Henley. Aquele aventureiro loquaz que Alexandre Pope

imortalizou em sua obra satírica, Dunciad, costumava fazer dos

acontecimentos sucedidos durante a semana os temas das suas

chocarrices nos dias úteis, e os tópicos teológicos sofriam o mesmo

destino aos domingos. Seu ponto forte consistia em sua graça vulgar, nas

modulações da sua voz e no balanceio das mãos. O satirista diz dele:

"Que absurdidade fluente escorre da sua língua." Cavalheiros, melhor

nos fora nunca ter nascido do que dizerem com veracidade algo

semelhante de nós. Com risco de nossas almas, temos que lidar com os

fatos solenes da eternidade e com tópicos não gerados na terra.

Todavia, existem outros métodos mais convidativos de edificar com

madeira e feno, e convém que não se deixem ludibriar por eles. Esta

observação é necessária, especialmente para aqueles cavalheiros que

confundem declarações extravagantes com eloqüência, e expressões

latinizadas com grande profundidade de pensamento. Certos instrutores

de homilética, por seu exemplo – senão por seus preceitos – estimulam o

emprego de grandiosas palavras fanfarronas e enfunadas, e, portanto, são

os elementos mais perigosos para os pregadores jovens. Pensem num

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 100

discurso iniciado com uma asserção assombrosa e estupenda como a

seguinte que, por sua grandiosidade original, os impressionará de

imediato, com um sentimento do sublime e do belo: "O HOMEM É UM

SER MORAL". Este gênio poderia ter acrescentado: "O gato tem quatro

patas".

Haveria tanta novidade naquela informação como nesta. Lembro-

me de um sermão pregado por um suposto profundo escritor que

atordoava por completo o leitor com bombardeio de palavras de dois

metros de comprimento, mas que, quando postas a cozer do modo certo,

o suco de carne que sobrava era como este – O homem tem uma alma,

sua alma viverá noutro mundo, e, portanto, deve cuidar-se para que

venha a ocupar um lugar feliz. Ora, não se pode fazer objeção ao ensino,

mas este não é tão novel que precise do toque de trombetas e de uma

procissão de frases cheias de enfeites para apresentá-lo à atenção

pública. A arte de dizer chavões elegantemente, pomposamente,

grandiloqüentemente, bombasticamente, não se perdeu entre nós, embora

a sua total extinção devesse "ser uma consumação a desejar-se

devotadamente".

Sermões desse tipo têm sido apresentados como modelos, e,

todavia, são simples fragmentos de bexiga que caberiam na unha do

dedo, soprados até lembrarem aqueles balões coloridos que os

vendedores ambulantes levam pelas ruas para vendê-los por algumas

moedas, para a delícia dos extremamente juvenis. O paralelo, lamento

dizê-lo, está sendo benévolo, pois, em alguns casos, essas pregações só

contém um matiz de veneno, a modo de coloração, que alguns do tipo

mais fraco descobriram à sua própria custa.

É infame subir ao púlpito e despejar sobre os ouvintes rios de

oratória, cataratas de palavras, em que se dissolvem puras trivialidades

quais pílulas infinitesimais, de medicina homeopática num atlântico de

proclamação verbosa. Muito melhor dar ao povo massas de verdade em

casca, não burilada, como pedaços de carne do cepo do açougue,

retalhados de qualquer jeito, com osso e tudo, e até caídos no meio da

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 101

serragem – sim, muito melhor dar isso do que, com ostentação e finura,

apresentar-lhe num prato de porcelana uma deliciosa fatia de coisa

nenhuma, decorada com salsa de poesia e temperada com molho de

pedantismo.

Será uma feliz circunstância se vocês forem de tal modo guiados

pelo Espírito Santo que dêem claro testemunho de todas as doutrinas

que constituem o evangelho ou que o circunscrevem. Não se deve reter

nenhuma verdade. A doutrina retida, tão detestável na boca dos jesuítas,

não é nem um pouco menos abjeta quando adotada por protestantes. Não

é verdade que algumas doutrinas sejam somente para os iniciados; não

há nada na Bíblia que se envergonhe da luz. Os mais sublimes conceitos

da soberania divina têm um enquadramento prático, e não são, como

alguns pensam, meras sutilezas metafísicas. Os pronunciamentos

característicos do calvinismo têm sua aplicação na vida diária e na

experiência comum, e se vocês sustentarem essas idéias, ou as que lhes

são opostas, não têm licença para ocultar as suas crenças. Em nove de

dez casos, a reticência cautelosa é traição covarde. A melhor política é

não ser político nunca, mas proclamar cada átomo da verdade na medida

em que Deus lhe tenha ensinado. A harmonia requer que a voz de uma

doutrina não sufoque as restantes, e também exige que as notas mais

suaves não sejam omitidas por causa do volume maior dos outros sons.

Todas as notas assinaladas pelo grande menestrel devem soar, cada nota

tendo a sua intensidade e a sua ênfase proporcionais. A passagem

marcada com forte não deve ser suavizada, e as passagens assinaladas

com piano não devem retumbar como trovão, mas cada uma deve ter a

sua devida intensidade de vibração sonora. Toda a verdade revelada em

proporção harmônica, deve constituir o seu tema.

Irmãos, se vocês desenvolverem no púlpito proposições que tratam

de realidades importantes, é preciso que nunca jamais fiquem pairando

em torno dos simples ângulos da verdade. As doutrinas não vitais à

salvação da alma, nem essenciais ao cristianismo prático, não devem ser

consideradas em todas as ocasiões de culto. Apresentem todos os

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 102

aspectos da verdade na devida proporção, pois todas as partes da

Escritura são proveitosas, e a vocês compete pregar não somente a

verdade, mas toda a verdade. Não insistam perpetuamente numa só

verdade. O nariz é uma parte importante da fisionomia humana, mas

pintar somente o nariz não é método satisfatório de retratar a sua

imagem; uma doutrina pode ser muito importante, mas uma exagerada

estimativa dela pode ser de fatais conseqüências para um ministério

harmonioso e completo. Não transformem doutrinas secundárias em

pontos da maior importância. Não pintem as minúcias do pano de fundo

do evangelho com o grosso pincel usado para os grandes objetos do

primeiro plano.

Por exemplo, os grandes problemas do sublapsarianismo e do

supralapsarianismo, os mordazes debates sobre a filiação eterna, a zelosa

discussão concernente à dupla procedência, e os esquemas pré e pós-

milenários, por mais importantes que alguns possam julgá-los, são

praticamente sem interesse para aquela piedosa viúva com sete filhos

para sustentar com a sua agulha, que tem muito maior necessidade de

ouvir da benignidade do Deus da providência do que desses mistérios

profundos. Se vocês lhe pregarem sobre a fidelidade de Deus a Seu

povo, ela ficará animada e se sentirá ajudada na batalha da vida; mas as

questões difíceis a deixarão perplexa ou a farão dormir. Entretanto, ela é

o tipo representativo de centenas daqueles que mais precisam do cuidado

pastoral. O nosso tema principal são as boas novas do céu; as notícias da

misericórdia mediante a morte expiatória de Jesus, misericórdia para o

maior pecador que crê em Jesus.

Devemos empenhar todo o nosso poder de julgamento, memória,

imaginação e eloqüência na transmissão do evangelho; e não

dediquemos à pregação da cruz os nossos pensamentos casuais enquanto

assuntos de pequena importância monopolizam as nossas mais profundas

meditações. Estejam certos de que, se trouxermos o intelecto de um

Locke ou de um Newton, e a eloqüência de um Cícero, para sobrepor à

simples doutrina de "crê e viverás", não encontraremos poder em

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 103

excesso. Irmãos, primeiramente e acima de todas as coisas, mantenham-

se nas simples doutrinas evangélicas. Tudo mais que preguem ou deixem

de pregar, certifiquem-se de apresentar incessantemente a salvadora

verdade de Cristo, e Ele crucificado.

Conheço um ministro cujos sapatos sou indigno de desamarrar e

cuja pregação muitas vezes é pouco melhor do que uma pintura sagrada

em miniatura – quase que poderia dizer, uma santa ninharia. É grandioso

sobre os dez dedos da besta, os quatro rostos dos querubins, o

significado místico da pele de texugo, os suportes típicos das varas da

arca, e as janelas do templo de Salomão. Mas quase nunca toca nos

pecados dos homens de negócio, nas tentações atuais e nas necessidades

da época. Esse tipo de pregação lembra-me um leão empenhado em

cagar ratinhos, ou um guerreiro metido numa cruzada por uma pipa

d'água. Tópicos que mal se igualam em importância àquilo que Paulo

chama de "fábulas profanas e de velhas" são transformados em grandes

temas por aqueles teólogos microscópicos para os quais a sutileza

refinada de um ponto é mais atraente do que a salvação de pecadores.

Decerto vocês terão lido no Student's Manual (Manual do

Estudante), de Todd, que Harcácio, rei da Pérsia, era perito caçador de

toupeiras, e que Briantes, rei da Lídia, era igualmente au fait – com

efeito – hábil no manejo da agulha. Mas essas trivialidades de modo

nenhum provam que foram grandes reis. É bem parecido com isso o que

acontece no ministério. Existe disso – mediocridade na atividade mental

rebaixando a dignidade do embaixador do céu.

Em certa classe e mentalidade desta época, o desejo ateniense de

falar ou de ouvir alguma novidade parece predominar. Tais homens

jactam-se de que têm nova luz, e se arrogam uma espécie de inspiração

que os autoriza a condenarem todos os que estão fora da sua irmandade.

Entretanto, a sua grande revelação se relaciona com algum simples ponto

circunstancial do culto, ou com alguma obscura interpretação de

profecia. Desta forma, à vista do grande estardalhaço e dos altos brados

por tão pouca coisa, ocorre-nos:

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 104

"Enfurecer o oceano pra fazer uma folha flutuar ou simples mosca tragar"

São piores ainda aqueles que desperdiçam tempo insinuando

dúvidas sobre a autenticidade de textos, ou sobre a correção de

afirmações bíblicas acerca de fenômenos naturais. Com pesar recordo ter

ouvido numa noite de domingo um palavreado com nome de sermão

cujo tema era uma arguta pesquisa quanto a se um anjo realmente descia

e agitava as águas do tanque de Betesda, ou se era uma fonte

intermitente a respeito da qual a superstição judaica tinha inventado uma

lenda. Homens e mulheres sujeitos a perecer se reuniram para aprender o

caminho da salvação, e lhes largaram uma frivolidade como esta! Foram

em busca de pão, e receberam pedra; as ovelhas recorreram ao pastor, e

não foram alimentadas. Raramente ouço um sermão, e quando ouço, sou

lamentavelmente desafortunado, pois um dos últimos com que fui

obsequiado levava a intenção de justificar Josué por destruir os

cananeus, e outro, a de provar que não é bom que o homem esteja só.

Quantas almas se converteram em resposta às orações feitas antes desses

sermões, nunca pude verificar, mas a perspicácia me faz suspeitar que

nenhuma ação de regozijo incomum perturbou a serenidade das ruas de

ouro da Jerusalém celeste.

Acreditando que minha próxima observarão é quase universalmente

desnecessária, ponho-a em tela com modéstia – não sobrecarreguem o

sermão com material demais. Não se deve tentar comprimir a verdade

toda num discurso. Os sermões não devem ser sistemas completos de

teologia. Sói acontecer existir muitas coisas para dizer, e dizê-las a ponto

de fazer que os ouvintes voltem para casa nauseados em vez de

esperançosos. Andando com um jovem pregador, um velho ministro

apontou para uma lavoura de trigo e fez esta observação: "O seu último

sermão tinha demasiado conteúdo, mas não bastante clareza, nem

suficiente boa ordem; foi como aquela plantação de trigo – continha

muito alimento cru, mas nenhum pronto para ser servido. Você deve

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 105

fazer os seus sermões parecidos com pães – prontos para a gente comer,

e na forma conveniente".

É de temer-se que as cabeças humanas (frenologicamente falando)

não são tão capazes para a teologia agora como outrora, pois os nossos

antepassados regozijavam-se com cinco quilos de teologia não dissolvida

e sem enfeites, e podiam continuar a recebê-la durante três ou quatro

horas numa tirada, mas a nossa geração mais degenerada, ou quem sabe

mais ocupada, exige apenas uns trinta gramas de doutrina por vez, e essa

tem que ser extrato concentrado ou essência, e não a substância integral

da teologia. Nestes tempos precisamos falar muita coisa com poucas

palavras, mas não demais, nem com demasiada ampliação. Um

pensamento fixo na mente valerá mais do que cinqüenta pensamentos

que entram por um ouvido e saem pelo outro. Um prego de alguns

centavos levado para casa e pregado será mais útil do que uma porção de

tachinhas frouxamente fincadas e que se soltarão em uma hora.

O material do nosso sermão deverá ser bem ordenado, segundo as

legitimas normas da arquitetura mental. Nada de inferências práticas no

pedestal e de doutrinas no alto das paredes; nada de metáforas no

alicerce e de proposições na cumeeira; nada de apresentar primeiro as

verdades mais importantes e no fim os ensinamentos de valor

secundário, a modo de anticlímax; ao contrário, o pensamento deve

elevar-se, ascender, um degrau de ensino levando a outro, uma porta de

argumentação conduzindo a outra, e o conjunto elevando o ouvinte até

uma recâmara de cujos vitrais se vê a verdade resplandecente, engolfada

na luz de Deus. Na prédica há lugar para tudo, e cada coisa tem o seu

lugar. Nunca permitam que as verdades descambem em confusão. Não

deixem que os seus pensamentos corram qual multidão em tropel, mas

façam-nos marchar como uma tropa de infantaria. A ordem, que é a

primeira lei do céu, não deve ser negligenciada pelos embaixadores do

céu.

Os seus ensinamentos doutrinários devem ser claros e

inconfundíveis. Para isto, é preciso que primeiramente estejam claros

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 106

para você, meu irmão. Alguns pensam envoltos em fumaça e pregam

metidos numa nuvem. O povo da sua igreja não quer névoas fulgentes,

mas, sim, a sólida terra firme da verdade. As especulações filosóficas

levam certas mentes a um estado de semi-intoxicação em que, ou vêem

tudo em dobro, ou não vêm coisíssima nenhuma.

Anos atrás, um estrangeiro perguntou ao diretor de certa faculdade

de Oxford qual era o moto do brasão daquela universidade. Respondeu-

lhe que era "Dominus illuminatio mea" (O Senhor é a minha luz) E

também informou candidamente ao estrangeiro que, em sua opinião

particular, um moto mais apropriado poderia ser "Aristoteles meae

tenebrae" (Aristóteles das minhas trevas). Escritores sensacionalistas há

que quase enlouquecem muitos homens íntegros que conscienciosamente

lêem as suas lucubrações com a idéia de que devem manter-se

atualizados com a nossa época, como se esta necessidade não exigisse

também do nós que fôssemos aos teatros a fim de capacitar-nos para

julgar as novas peças, ou que freqüentássemos os hipódromos para não

sermos estreitos demais em nossas opiniões sobre as corridas e o jogo.

De minha parte, creio que os principais leitores de livros heterodoxos são

ministros, e que se estes não lhes dessem atenção, ficariam sem

divulgação como natimortos. Livre-se o ministro de mistificar-se, e

estará a caminho de tornar-se inteligível para a sua congregação.

Ninguém que seja incapaz de fazer-se entender pode esperar ser levado

em conta. Se dermos ao nosso povo a verdade pura, a sã doutrina bíblica,

e tudo de tal modo verbalizado que nenhuma obscuridade o cerque,

seremos verdadeiros pastores das ovelhas, e o proveito colhido por

nossos ouvintes logo se fará patente.

Esforcem-se para manter o conteúdo dos seus sermões com

novíssimo vigor quanto lhes for possível. Não fiquem martelando cinco

ou seis doutrinas com a invariável monotonia da repetição. Comprem um

realejo teológico, irmãos, com cinco melodias ajustadas com esmero, e

estarão habilitados para praticar como pregadores hiper-calvinistas em

Zoar e Jiré, se também comprarem em alguma fábrica de vinagre um

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 107

bom suprimento de amargo abuso contra arminianos e contra outros com

os quais não concordem. O cérebro e a graça são optativos, mas o realejo

e a losna são indispensáveis. Nós entendemos e nos alegramos que a

gama da verdade é mais ampla. Tudo que esses bons homens sustentam

sobre a graça e a soberania nós também mantemos tão firme e

intrepidamente como eles, mas não ousamos fechar os olhos para outros

ensinamentos da Palavra, e nos sentimos obrigados a dar plena prova do

nosso ministério declarando todo o conselho de Deus. Com temas

abundantes, diligentemente ilustrados por vivas metáforas e

experiências, não seremos cansativos, mas, nas mãos de Deus,

ganharemos os ouvidos e os corações dos nossos ouvintes.

Ampliem e desenvolvam os seus ensinos; que eles sejam

aprofundados com a sua experiência, e elevados com o seu progresso

espiritual. Não pretendo dizer que preguem novas verdades, pois, ao

contrário, afirmo que é feliz o homem que foi tão bem instruído desde o

início que, depois de cinqüenta anos de ministério, nunca teve que se

retratar de uma doutrina ou que lamentar uma omissão importante; mas o

que quero dizer é que tratemos de aumentar constantemente a nossa

profundidade e o nosso discernimento, e que isto acontecerá onde houver

progresso espiritual. Timóteo não podia pregar como Paulo. As nossas

primeiras produções têm que ser sobrepujadas pelas dos nossos anos de

maior maturidade; não devemos usar aquelas como nossos modelos. É

melhor queimá-las, ou preservá-las. só para lamentar o seu caráter

superficial. Seria mau, de fato, se não soubéssemos mais depois de

estarmos muitos anos na escola de Cristo. O nosso progresso pode ser

lento, mas progresso tem que haver, ou se não, haverá motivo para

suspeitar que falta vida interior ou que esta é tristemente doentia. Fixem

definidamente nas suas mentes que ainda não alcançaram, e oxalá lhes

seja dado graça que os impulsione para a frente, rumo àquilo que está

além. Oxalá todos vocês venham a ser competentes ministros do Novo

Testamento, e nem um pouco atrás dos mais notáveis pregadores,

embora em si mesmos vocês continuem sendo nada.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 108

Diz-se que a palavra "sermão" significa "arremetida", e, portanto,

quando fazemos e pregamos sermões, devemos ter em vista empregar o

assunto em mão com energia e eficácia, e o assunto deve ser apto para

tal emprego. Escolher apenas temas morais será usar um punhal de

madeira; mas as grandes verdades da revelação são agudas como

espadas. Apeguem-se a doutrinas que mexam com a consciência e com o

coração. Permaneçam como inabaláveis campeões do evangelho que

conquista almas. A verdade de Deus é adaptada ao homem, e a graça de

Deus adapta o homem à verdade. Há uma chave que, na mão de Deus,

pode dar corda na caixa de música da natureza humana; peguem-na e

usem-na diariamente. Portanto, eu os concito a ficarem com o antiquado

evangelho, e somente com ele, pois certamente é o poder de Deus para

salvação.

De tudo que eu gostaria de dizer-lhes, o resumo é este: Meus

irmãos, preguem a CRISTO, sempre e para sempre. Ele é todo o

evangelho. Sua pessoa, Seus ofícios e Sua obra devem constituir o nosso

grande e todo-abrangente tema. O mundo continua precisando ouvir falar

de Seu Salvador e do caminho para chegar a Ele. A justificação pela fé

deve ser muito mais do que aquilo que tem sido o testemunho diário dos

púlpitos protestantes. E se a essa verdade dominante se associarem mais

geralmente as outras grandes doutrinas da graça, melhor para as nossas

igrejas e para a nossa era. Se com o fervor dos metodistas pudermos

pregar a doutrina dos puritanos, um grande futuro nos espera. O fogo de

Wesley e a lenha de Whitefield causarão um incêndio que queimará as

florestas de erro e aquecerão a própria alma desta frígida terra.

Não somos chamados para proclamar filosofia e metafísica, mas o

simples evangelho. A queda do homem, sua necessidade de novo

nascimento, o perdão mediante a expiação, e a salvação como resultado

da fé, são estes os nossos machados de combate e as nossas armas de

guerra. Temos bastante que fazer para aprender e ensinar estas grandes

verdades, e anátema sejam aqueles aprendizados que nos desviam da

nossa missão, ou aquela caprichosa ignorância que nos faz coxear

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 109

quando procuramos cumpri-la. Mais e mais estou zelando para que

nenhuma teoria sobre profecia, governo da igreja, política, e mesmo

sobre teologia sistemática, leve algum de nós a deixar de gloriar-se na

cruz de Cristo. A salvação é um tema para o qual eu de bom grado

alistaria todas as línguas santas. Sou ávido por testemunhas do glorioso

evangelho do Deus bendito. Oxalá o Cristo crucificado fosse o fardo

universal dos homens de Deus!

As suas imaginações sobre o número da besta, as suas especulações

napoleônicas, as suas conjeturas concernentes a um anticristo pessoal -

perdoem-me, considero-as todas apenas como ossos para cães. Enquanto

os homens estão morrendo e o inferno vai ficando cheio, parece-me que

é a máxima tolice ficar resmungando acerca de um Armagedom em

Sebastopol ou em Sadowa ou em Sedan, e ficar espreitando por entre as

cerradas folhas do destino para descobrir a sorte da Alemanha.

Benditos os que lêem e ouvem as palavras da profecia do

Apocalipse, mas é evidente que a mesma bênção não tem caído sobre os

que simulam expô-las, pois o simples passar do tempo tem demonstrado

que geração após geração deles erraram, e a raça atual os seguirá para o

mesmo sepulcro inglório. Preferiria tirar um tição do fogo a explicar

todos os mistérios. Ganhar uma alma, livrando-a de descer ao abismo, é

um feito mais glorioso do que ser premiado como Doctor

Sufficientíssímus na arena da controvérsia teológica. Trazer fielmente à

luz o conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo será

considerado no juízo final como serviço mais valioso do que o de

solucionar os problemas da esfinge religiosa, ou de desfazer o nó górdio

das dificuldades apocalípticas. Bem-aventurado o ministério do qual

CRISTO É TUDO.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 110

A ESCOLHA DO TEXTO

Espero, meus irmãos, que todos nós estejamos sentindo

profundamente a importância de dirigir todas as partes do serviço divino

com a máxima eficiência possível. Ao lembrar-nos de que a salvação de

uma alma pode depender, instrumentalmente, da escolha de um hino, não

deveríamos considerar fútil a pequenina questão da seleção de salmos e

hinos.

Um forasteiro incrédulo, entrando durante um dos nossos cultos no

Exeter Hall, foi levado à cruz pelas palavras do verso de Wesley, "Jesus,

amante de minha alma". "Jesus me ama?", perguntou ele. "Então, por

que deveria eu viver em inimizade contra Ele?"

Ao refletirmos, também, que Deus pode dar uma bênção muito

especial a uma frase da nossa oração para a conversão de algum errante,

e que orar sob a unção do Espírito Santo pode contribuir grandemente

para a edificação do povo de Deus e trazer-lhe inumeráveis bênçãos, nós

nos esforçaremos para orar exercitando o melhor dom e a máxima graça

ao nosso alcance. Considerando ainda que na leitura da Bíblia podem ser

distribuídos consolo e instrução copiosamente, deter-nos-emos sobre as

nossas Bíblias abertas, e, devotamente procuraremos ser guiados àquela

porção da Escritura que tenha maior probabilidade de fazer-se útil.

A respeito do sermão, a nossa ansiosa preocupação é primeiramente

quanto à seleção de um texto. Nenhum de nós olha o sermão sob uma luz

tão negligente que chegue a conceber que um texto apanhado ao acaso

será apropriado para toda e qualquer ocasião. Não somos da opinião de

Sydney Smith, expressa quando recomendou a um irmão indeciso sobre

um texto, que pregasse sobre, "Partos e medas, elamitas e os que habitam

na Mesopotâmia", como se qualquer coisa servisse para um sermão.

Espero que, semanalmente, todos nós tenhamos como coisa da mais

zelosa e séria consideração, quais serão os assuntos de que falaremos ao

nosso povo no dia do Senhor, de manhã e de noite, pois, conquanto toda

a Escritura seja boa e proveitosa, não é toda ela igualmente apropriada

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 111

para todas as ocasiões. Há tempo para tudo, e tudo é melhor quando é

oportuno.

Um sábio pai trabalha para dar a cada membro da sua família a sua

porção de alimento na devida ocasião; não serve todas as rações

indiscriminadamente, mas ajusta as refeições às necessidades dos

comensais. Só um mero oficial, escravo da rotina, autômato inanimado

do formalismo se contentará em agarrar o primeiro tópico que venha à

mão. Aquele que cata assuntos como as crianças colhem botões-de-ouro

e margaridas nas campinas, simplesmente como se oferecem, talvez

esteja agindo de acordo com a sua posição de homem colocado por um

protetor numa igreja, da qual o povo não o pode expulsar. Mas os que se

proclamam chamados por Deus, e que foram escolhidos para as suas

posições pela livre eleição dos crentes, precisam dar maior prova do seu

ministério do que aquele que se acha nessa negligência. Dentre as muitas

gemas temos que selecionar a jóia mais adequada à circunstância do

momento. Não ousamos correr para o salão do banquete do Rei com uma

confusão de provisões como se o festim devesse ser uma vulgar refeição

de ovos fritos, mas, como servidores corteses, paramos para perguntar ao

grande Dono da festa: "Senhor, que queres que sirvamos à Tua mesa

hoje?"

Alguns textos nos chocam por terem sido escolhidos com extrema

infelicidade. Ficamos a indagar o que o pastor do célebre Disraeli disse

acerca das palavras: "Em minha carne verei a Deus", quando pregou

recentemente numa casa de uma aldeia por ocasião da colheita!

Excessivamente infeliz também foi o texto usado no funeral de um

clérigo assassinado (o Sr. Plow): "Assim dá ele aos seus amados o sono".

Manifestamente tolo, e muito, foi ainda aquele que escolheu "Não

julgueis, para que não sejais julgados", para um sermão pregado perante

os jurados numa sessão do tribunal do júri.

Não se deixem enganar pela sonoridade e pela aparente aptidão de

palavras bíblicas. M. Athanese Coquerel confessa ter pregado numa

terceira visita a Amsterdã baseado nas palavras: "É esta a terceira vez

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 112

que vou ter convosco" 2 Coríntios 13:1 – e bem pôde acrescentar que

"teve grande dificuldade depois, em colocar no discurso algo que fosse

próprio para a ocasião". Um caso paralelo foi o de um dos sermões pela

morte da princesa Charlotte, sobre o texto: "Enfermando ela, morreu".

Pior ainda é selecionar palavras miseravelmente engraçadas, como no

caso de um recente sermão sobre a morte de Abraão Lincoln, baseado na

sentença "E Abraão expirou e morreu".

Conta-se que um estudante, o qual é de esperar-se nunca tenha

saído de casa, pregou um sermão em público, diante do seu tutor, o Dr.

Filipe Doddridge. Ora, o bom homem estava acostumado a postar-se

justamente em frente do estudante e fitar-lhe diretamente o rosto.

Avaliem, pois, a sua surpresa, senão indignação, quando o texto

enunciado desfilou com estas palavras: "Estou há tanto tempo convosco,

e não me tendes conhecido, Filipe?"

Cavalheiros, às vezes loucos viram estudantes. Esperemos que

nenhum desse tipo desonre a nossa Alma Mater. Perdôo o homem que

pregou perante aquele Salomão bêbedo, Tiago I da Inglaterra e VI da

Escócia, baseando em Tiago 2:6; a tentação foi grande demais para que

se lhe pudesse resistir. Outrossim, seja o infame execrado para todo o

sempre, se existiu realmente o homem que celebrou a morte de um

diácono com a tirada: "E aconteceu que o mendigo morreu". Perdôo o

mentiroso que atribuiu a mim esse ultraje, mas espero que não tente

aplicar as suas manhas infames a ninguém mais.

Assim como devemos evitar a aplicação descuidada e acidental de

tópicos, também devemos evitar uma regularidade monótona. Ouvi falar

de um clérigo que tinha cinqüenta e dois sermões, e uns poucos

sobressalentes para datas especiais do calendário litúrgico; pregava-os

em ordem regular, ano após ano. No caso referido, o povo da igreja dele

não tinha necessidade de rogar-lhe que lhe falasse as mesmas coisas no

domingo seguinte, nem seria muito de admirar que fossem encontrados

imitadores de Êutico em outros lugares além do terceiro andar!

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 113

Não faz muito tempo que um clérigo disse a um fazendeiro amigo

meu: "Sabe, Sr. D., outro dia eu estava folheando os meus sermões e a

verdade é que a casa pastoral é tão úmida, principalmente o meu

gabinete, que os meus sermões ficaram todos mofados". O meu amigo,

embora zelador da igreja, freqüentava um local de culto mantido por

dissidentes, não foi rude a ponto de dizer: "bem feito!" Mas para os

respeitáveis cidadãos do povoado que tinham ouvido muitas vezes os

citados discursos, é possível que eles estivessem mofados em mais de

um sentido.

No ministério há pessoas que, tendo acumulado um pequeno

estoque de sermões, repetem-nos ad nauseam (até à náusea), com

horrível regularidade. Os irmãos itinerantes devem estar muito mais

sujeitos a essa tentarão do que os que permanecem no mesmo lugar

durante alguns anos. Se forem vítimas do hábito, isto será por certo o fim

da sua utilidade, e enviará um intolerável calafrio de morte aos seus

corações, de que depressa o seu povo tomará consciência quando os

ouvirem papaguear as suas produções gastas pelo tempo. A melhor

invenção para promover a preguiça espiritual deve ser o plano de

conseguir um estoque de sermões para dois ou três anos, e repeti-los em

ordem vezes sem conta. Se nós, meus irmãos, esperamos viver por

muitos anos, senão a vida inteira, num só lugar, arraigados ali pelo afeto

mútuo que se desenvolva entre nós e o nosso povo, temos necessidade de

um método bem diferente daquele que serve para um mandrião ou para

um evangelista itinerante.

Imagino que para uns deve ser um fardo pesado, e para outros deve

ser muito fácil achar assunto, como acontece com aqueles cuja sorte foi

lançada com a instituição episcopal, em que o pregador geralmente se

refere ao evangelho ou epístola ou lição para o dia, e se sente obrigado –

não por lei, mas por uma espécie de precedente – a pregar com base num

versículo tirado de uma dessas fontes. Seguindo o seu ciclo rotativo

estereotipado o Advento, a Epifania, a Quaresma e o Pentecoste,

ninguém precisa angustiar-se no coração com a pergunta: "Que direi a

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 114

esta gente?" A voz da igreja é clara e definida: "Mestre, vá falando; aí

está o seu trabalho; dedique-se totalmente a ele".

Pode ser que haja algumas vantagens nesse arranjo prévio, mas o

povo episcopal não parece partilhar muito delas, pois os seus escritores

seculares estão sempre reclamando da aridez dos sermões, e lamentando

a triste condição dos leigos resignados que são compelidos a ouvi-los. O

hábito servil de seguir o curso do sol e a revolução dos meses, em vez de

seguir o Espírito Santo, é, em minha opinião, suficiente para explicar o

fato de que em muitas igrejas, sendo os seus próprios escritores os que

julgam, os sermões não são nada melhores do que espécimes daquela

"decente debilidade que protege os seus autores de erros grotescos e ao

mesmo tempo lhes veda admiráveis belezas".

Tenha-se, pois, por concedido que para nós é da máxima

importância, não só pregar a verdade, mas pregar a verdade condizente

com cada ocasião particular. O nosso esforço há de ser o de dissertar

sobre assuntos que melhor se adaptem às necessidades do nosso povo, e

que tenham maior probabilidade de evidenciar-se como canal da graça

para os seus corações.

Há alguma dificuldade na obtenção de textos? Lembro-me de que,

em meus primeiros tempos, li em alguma parte de um volume de

preleções sobre homilética, uma afirmativa que na ocasião me alarmou

consideravelmente; tinha mais ou menos este sentido: "Se alguém tiver

dificuldade para achar um texto, é melhor que volte de uma vez para a

mercearia ou para o arado, pois evidentemente não tem a capacidade que

se requer de um ministro". Ora, como essa fora muitas vezes a minha

cruz e o meu fardo, indaguei-me a mim próprio se deveria recorrer a

alguma forma de trabalho secular e deixar o ministério. No entanto, não

o fiz, pois sempre tive a convicção de que, embora condenado pelo

radical julgamento do preletor, sigo uma vocação à qual Deus

manifestamente apôs o Seu selo.

Fiquei com tal conflito de consciência pela severa observação

referida, que perguntei a meu avô, que estivera no ministério uns

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 115

cinqüenta anos, se alguma vez tinha ficado embaraçado na escolha do

seu tema. Disse-me francamente que esse fora sempre o seu maior

problema, comparada com o qual, a pregação propriamente dita não era

nenhuma preocupação. Lembro-me desta observação do venerando

senhor: "A dificuldade não é porque não há bastantes textos, mas porque

há tantos que fico em apuros entre eles".

Irmãos, às vezes somos como o apaixonado por flores seletas que se

vê rodeado de todas as belezas do jardim, com a permissão de escolher

apenas uma. Quanto tempo hesita entre a rosa e o lírio, e com que

dificuldade dá preferência a um dentre dez mil encantos floridos! Para

mim, devo confessá-lo, a escolha de um texto ainda é um enorme

embaraço – embarras de richesses, como dizem os franceses – embaraço

de riquezas, bem diferente do aturdimento da pobreza; a inquietação por

atentar para a mais premente dentre tantas verdades, todas clamando por

ser ouvidas, tantos deveres necessitando todos de se fazerem cumprir, e

tantas necessidades do povo, todas exigindo suprimento. Confesso que

fico muitas vezes horas e horas orando e esperando por um assunto, e

que esta é a maior parte do meu estudo. Tenho tido muito trabalho

manipulando tópicos, ruminando pontos de doutrina, esquematizando

versículos e, depois, enterrando cada um dos ossos deles nas catacumbas

do esquecimento, saindo a navegar através de léguas de águas

encapeladas, até ver as luzes vermelhas e conduzir o barco ao porto

desejado.

Creio que em quase cada sábado da minha vida fago sermões

suficientes para um mês, se me sentisse em liberdade para pregá-los, mas

não me atrevo a usá-los mais que um marujo honesto a levar para a praia

uma carga de artigos de contrabando. Os temas deslizam diante da mente

um após outro como as imagens passam pela lente do fotógrafo, mas

enquanto a mente não for como a chapa sensível que retém o retrato, os

assuntos não terão valor para nós.

Qual é o texto certo? Como sabê-lo? Sabemo-lo mediante sinais de

amigo. Quando um versículo der à sua mente um saudável espasmo, do

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 116

qual não possa livrar-se, não precisará de outra orientação quanto ao

tema certo. Semelhante ao peixe, você espicaça muitas iscas, mas

quando o anzol o fisga bem, não vagará mais. Quando um texto nos

pega, podemos estar certos de que o pegamos, e podemos com segurança

entregá-lo com a alma.

Para empregar outro símile, você toma na mão certo número de

textos, e tenta esmiuçá-los; martela-os com força e empenho, mas o seu

trabalho é inútil. Por fim acha um que se esmigalha ao primeiro golpe, e

cintila ao cair em pedaços, e você percebe que dele refulgem jóias do

mais raro esplendor. Ele cresce diante dos seus olhos como a semente da

fábula que se desenvolveu e virou árvore enquanto o observador a

olhava. Encanta-o e o fascina, ou o força a ajoelhar-se e põe sobre você o

fardo do Senhor. Saiba então que esta é a mensagem que o Senhor quer

que você entregue. E, com este sentimento, você ficará tão preso àquela

passagem da Escritura, que não terá mais descanso enquanto não

submeter toda a sua mente ao poder dela, e enquanto não a tiver

transmitido conforme o poder que Deus lhe dá para fazê-lo. Espere por

aquela palavra eleita, mesmo que tenha que esperá-la até quase à hora do

culto. Isto não pode ser compreendido pelos homens frios e calculistas,

que não se deixam mover por impulsos como nós, mas, para alguns de

nós estas coisas são uma lei em nossos corações, lei que não nos

atrevemos a transgredir. Permanecemos em Jerusalém até que nos seja

dado poder.

"Creio no Espírito Santo." É um artigo do credo, mas raramente os

que o professam crêem no Espírito a ponto de se deixar mover por Ele.

Muitos ministros parecem pensar que são eles que devem escolher o

texto, que são eles que devem descobrir o sentido dele, que são eles que

devem encontrar um discurso nele. Nós não pensamos assim.

Naturalmente nos compete empregar as nossas volições, bem como o

nosso entendimento e os nossos sentimentos, pois não acreditamos que o

Espírito Santo nos compelirá a pregar sobre um texto contra a nossa

vontade. Ele não nos trata como se fossemos caixas de música, dando-

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 117

nos corda e ligando-nos em certa melodia. Antes, aquele glorioso

Inspirador de toda a verdade trata-nos como inteligências racionais,

influenciadas por forças espirituais coerentes com a nossa natureza; além

disso, as mentes devotas sempre desejam que a escolha do texto fique

com o sapientíssimo Espírito de Deus, e não com seus entendimentos

falíveis, e, portanto, colocam-se humildemente em Suas mãos, pedindo-

lhe que condescenda em conduzi-las à porção de alimento na ocasião

própria que Ele determinou para o Seu povo. Diz Gurnal: "Os ministros não possuem capacidade própria para a execução do

seu trabalho. Ah! quanto tempo podem ficar virando e revirando os seus livros e enredando os seus miolos, até vir Deus em seu socorro, e então – como a caça de Jacó – a coisa é trazida à sua mão. Se Deus não nos trouxer a Sua assistência, escreveremos com caneta sem tinta. Se há alguém que mais que qualquer outro precisa andar na confiante dependência de Deus, esse alguém é o ministro do evangelho".

Se alguém me perguntasse, "Como conseguirei o texto mais

apropriado?" eu responderia: "Clame a Deus por ele".

Harrington Evans, em sua obra, Rules for Sermons (Regras para

Sermões), lança como primeira delas a seguinte: "Busque a Deus em

oração para a escolha de uma passagem. Indague os motivos pelos quais

se decide por uma passagem. Veja que a pergunta seja bem respondida.

Às vezes a resposta pode ser tal que deveria levar a mente a decidir-se

contra a escolha feita".

Se somente a orarão não o guiar ao desejado tesouro, será em todo

caso um exercício proveitoso orar. Se a dificuldade em localizar um

tópico o fizer orar mais que de costume, será uma grande bênção para

você. Orar é o melhor estudo. Já no passado Lutero dizia: "Bene orasse

est bene studuisse" (Orar bem é estudar bem), e o repisado provérbio

agüenta repetição. Ore com meditativamente sobre a Escritura; é

espremer uvas no tonel, é trilhar trigo no terreiro, junto ao celeiro, é

fundir ouro extraindo-o do minério. A oração é bênção dupla: abençoa o

pregador em seus apelos, e abençoa as pessoas por ele servidas. Quando

o texto lhe vem em resposta à oração, ser-lhe-á o mais caro. Virá com

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 118

aroma e unção divinos, completamente desconhecidos do orador

formalista para quem não importa se o tema é este ou aquele.

Depois da oração, somos obrigados a empregar com muito

empenho os meios próprios para concentrar os nossos pensamentos e

conduzi-los pelo melhor canal. Considere a condição dos seus ouvintes.

Reflita no estado espiritual deles como um todo e como indivíduos, e

prescreva o remédio adequado à sua moléstia, ou prepare o alimento

próprio para a necessidade prevalecente. Contudo, permita-me acautelá-

lo contra a consideração dada aos caprichos dos seus ouvintes, ou às

peculiaridades dos ricos e influentes. Não dê muito valor ao cavalheiro e

à dama que ocupam o banco verde, se é que você é tão infeliz que tem

esse abominável lugar de distinção numa casa onde todos são do mesmo

nível. Veja que o grande contribuinte seja por todas as formas

considerado como os demais, e não permita que sejam negligenciadas as

fraquezas espirituais dele; mas ele não é a congregação toda, e você

entristecerá o Espírito Santo se pensar que é.

Olhe com igual interesse para os pobres nas alas da igreja, e escolha

tópicos que estejam dentro das suas categorias de pensamento e que

possam encorajá-los em suas muitas tristezas. Não permita que sua

cabeça se volte por respeito àqueles membros parciais da igreja que têm

sorrisos doces para uma porção do evangelho, e se fazem surdos para

outras partes da verdade. Nunca use de subterfúgio, quer para fazer-lhes

festa, quer para censurá-los. Pode dar-nos satisfação pensar que estão

contentes, se são boas pessoas, e respeitamos as suas predileções, mas a

fidelidade requer que não sejamos simples flautistas para os nossos

ouvintes, só tocando as músicas que eles exigem, e sim, que sejamos

como que a boca do Senhor para declarar todos os Seus conselhos.

Retorno à observação: pense bem no que o seu povo realmente

necessita para a sua edificação, e seja esse o seu tema. O famoso

apóstolo do norte da Escócia, o Dr. Macdonald, dá um exemplo

pertinente em seu Diary of Work in St. Kilda (Diário da Obra em Santa

Kilda): "Sexta-feira, 27 de maio. Em nosso culto matutino de hoje, li

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 119

Romanos 12 e dei algumas explicações, o que me deu oportunidade para

expor a relação entre a fé e a prática e para afirmar que as doutrinas da

graça se harmonizam com a vida consagrada e levam à santidade do

coração e da vida. Julguei necessário isto, pois do ponto elevado que eu

tinha ocupado por alguns dias, temi que o povo se desviasse para o

antinomismo, extremo tão perigoso como o arminianismo, se não mais".

Tome em consideração os pecados que parecem predominantes na

igreja e na sua congregação – Mundanismo, cobiça, negligência na

oração, ira, orgulho, falta de amor fraternal, calúnia e outros males

semelhantes. Leve em conta, afetuosamente, as provações do seu povo, e

busque um bálsamo para as suas feridas. Não é necessário descer a

minúcias, quer na oração, quer no sermão, quanto a essas provações dos

freqüentadores da sua igreja, embora fosse esse o costume de um

respeitável ministro que foi bispo nestas cercanias, e já foi para o céu.

Em seu abundante amor por seu povo, costumava fazer tantas alusões a

nascimentos, mortes e casamentos ocorridos com o seu rebanho, que um

dos prazeres dos seus ouvintes assíduos deve ter consistido em descobrir

a quem o ministro se referia nas várias partes da sua oração e do seu

sermão. Vindo dele, isso era tolerado, e até admirado – mas, de nós seria

ridículo. Um patriarca pode fazer com propriedade o que um jovem deve

evitar escrupulosamente. O venerando clérigo que acabo de mencionar

tinha aprendido essa arte de particularizar do seu pai, pois era de uma

família em que os filhos, tendo notado alguma coisa particular ocorrida

durante o dia, diziam uns aos outros: "Temos que esperar até o culto

doméstico da noite, quando ficaremos sabendo tudo sobre isso". Mas

estou fazendo digressão; este caso mostra como um excelente hábito

pode degenerar em defeito, mas a regra que registrei não é afetada por

ele. Em conjunturas particulares, ocorrerão certas provações a muitos

dos freqüentadores dos cultos, e visto que essas aflições atrairão a sua

mente para novos campos de pensamento, você agirá mal se for surdo ao

seu chamamento.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 120

Repito, devemos observar o estado espiritual de nossos ouvintes, e,

se notarmos que eles estão caindo numa condição de infidelidade; se

temermos que eles correm o perigo de serem contaminados por alguma

heresia perniciosa ou alguma imaginação perversa; se de fato alguma

coisa, no caráter fisiológico da igreja como um todo, chocar a nossa

mente – devemos apressar-nos a preparar um sermão que, pela graça de

Deus, possa sustar a praga. Essas coisas são indicações, entre os

ouvintes, que o Espírito de Deus dá ao pastor cuidadoso e cumpridor

quanto ao seu curso de ação.

O pastor cuidadoso examina com freqüência o seu rebanho, e

orienta o seu modo de tratá-lo de acordo com o estado em que o

encontra. Estará apto para fornecer com parcimônia um tipo de alimento,

outro tipo com maior abundância, e remédio na devida quantidade,

conforme o seu juízo experimentado achar necessário ou um ou outro.

Estaremos bem orientados, se simplesmente nos associarmos ao "grande

Pastor das ovelhas".

Todavia, não permitamos que a nossa pregação feita de modo bem

adaptado ao nosso povo degenere, assumindo a forma de pura

reprimenda. Chamam o púlpito de "Cidadela dos Covardes", e este nome

lhe vai bem em alguns aspectos, especialmente quando estultos sobem à

plataforma e injuriosamente insultam os ouvintes expondo as suas faltas

ou fraquezas à irrisão pública. Há uma personalidade – uma

personalidade ultrajante. frívola e injustificável – que deve ser

zelosamente evitada. É terrena, grosseira, e deve ser condenada sem

limitação de palavras. Ao passo que há outra personalidade sábia,

espiritual, celeste, que deve ser almejada incessantemente.

A Palavra de Deus é mais aguda que qualquer espada de dois

gumes, e, portanto, irmãos, é preciso deixar que a Palavra de Deus fira e

mate, não havendo necessidade de que vocês mesmos cortem com

palavras e atitudes. A verdade de Deus é penetrante. Deixem que ela

penetre os corações dos homens sem acréscimos ofensivos da parte de

vocês. É retratista de mau gosto aquele que precisa escrever o nome

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 121

embaixo do retrato quando este é pendurado na sala de visitas da família

onde a própria pessoa retratada tem o seu lugar para sentar-se. Levem os

seus ouvintes a perceberem que estão falando deles, sem contudo referir-

se aos seus nomes nem mesmo no mais remoto grau, e sem apontar para

eles.

Talvez ocorram ocasiões em que vocês podem ser forçados a ir ao

ponto a que chegou Hugh Latimer quando, falando sobre suborno, disse:

"Aquele que aceitou uma bacia e um jarro de prata como suborno pensa

que isto nunca virá à luz. Mas ele pode saber que eu sei disso, e não só

eu; há outros mais que o sabem. Oh, subornador! Oh, suborno! Quem

assim recebe peitas nunca foi boa gente; e nem posso acreditar que o

subornador possa vir a ser bom juiz". Aí há tanta reticência prudente

como revelação ousada. Se vocês não forem além disso, ninguém se

atreverá, em nome do decoro, a acusá-lo de personalidade severa demais.

A seguir, observando o texto, o ministro deve considerar quais

foram os seus tópicos anteriores. Seria insensato insistir perpetuamente

numa doutrina em detrimento das outras. Alguns dos nossos irmãos mais

profundos podem ser capazes de tratar do mesmo assunto numa série de

pregações, e, com um giro do caleidoscópio, podem ser capazes de

apresentar novas formas de beleza sem nenhuma alteração do assunto,

mas a maioria de nós, dotada de habilidades menos férteis, achará

melhor fazer estudos variados, e aplicar-se a mais ampla gama de

verdades. Freqüentemente eu olho a lista dos meus sermões para ver se

alguma doutrina escapou à minha atenção, ou se alguma graça cristã foi

negligenciada em minhas ministrações.

É bom averiguar se não temos sido demasiado doutrinários

ultimamente, ou insuficientemente práticos, ou exclusivamente

experimentais. Não desejamos degenerar até sermos antinomistas, nem,

por outro lado, queremos rebaixar-nos à condição de simples mestres de

fria moralidade, mas a nossa ambição é dar prova cabal do nosso

ministério. Gostaríamos de dar a cada porção da Escritura aquela

participação do nosso coração e da nossa cabeça que ela merece.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 122

Doutrina, preceitos, história, tipologia, salmos, provérbios, experiências,

exortações, promessas, convites, ameaças, repreensão – gostaríamos de

incluir o conjunto completo da verdade inspirada no âmbito dos nossos

ensinos. Aborreçamos toda unilateralidade, todo exagero de uma verdade

e menosprezo de outra, e esforcemo-nos para pintar o retrato da verdade

com traços balanceados e cores mescladas, para que não a desonremos

apresentando distorção em vez de simetria, e uma caricatura em lugar de

uma cópia fiel.

Supondo, contudo, irmão, que você orou naquele seu pequeno

quarto, lutou muito e suplicou demoradamente, pensou no povo e nas

suas necessidades, e ainda não pôde encontrar o texto – bem, não se

perturbe com isso, nem dê lugar ao desespero. Se você tivesse que ir à

guerra às suas expensas, ser-lhe-ia uma desgraça ficar sem pólvora,

estando tão perto a batalha, mas como compete a seu Comandante prover

o necessário, não há dúvida de que oportunamente distribuirá a munição.

Se você confiar em Deus, Ele não falhará com você; não pode falhar.

Continue clamando e velando, pois ao estudante industrioso o auxílio

celestial é certo. Se você tivesse ficado andando para cima e para baixo

ociosamente a semana inteira, e não tivesse se preocupado em preparar-

se bem, não poderia esperar a ajuda divina; mas, se fez o melhor que

pôde, e agora está esperando saber a mensagem do seu Senhor, o seu

rosto jamais sofrerá vexame.

Irmãos, ocorreram-me dois ou três incidentes que talvez lhes

pareçam estranhos, mas, então, eu sou estranho. Quando eu residia em

Cambridge, tive que pregar certa noite, como de costume, num povoado

próximo aonde eu tinha que ir a pé. Depois de ler e meditar o dia todo,

não pude dar com o texto certo. Fizesse o que fizesse, nenhuma resposta

vinha do oráculo sagrado, nenhuma luz raiava do Urim e Tumim; eu

orava, meditava, ia de um versículo a outro, mas a mente não pegava

nada, ou eu estava, como Bunyan diria, "muito virado e revirado em

meus pensamentos". Em dado momento fui até a janela e olhei para fora.

No outro lado da rua estreita em que eu morava, vi um pobre canário

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 123

solitário no telhado, cercado por um bando de pardais que o bicavam

como se o quisessem despedaçar.

Naquele momento o versículo me veio à mente – "A minha herança

é para mim ave de várias cores; andam as aves de rapina contra ela em

redor". Saí dali com a maior serenidade possível, ponderei a passagem

durante minha longa e solitária caminhada, e preguei acerca do povo

peculiar, e sobre as perseguições movidas por seus inimigos, e o fiz com

liberdade e tranqüilidade para mim, e creio que para conforto dos meus

rústicos ouvintes. O texto foi-me enviado, se não pelos corvos,

certamente pelos pardais.

Noutra ocasião, quando estava trabalhando em Waterbeach, tinha

pregado domingo de manhã, e tinha ido para casa, para almoçar com um

membro da igreja, como costumava. Ocorre, porém, que havia três

cultos, e, infelizmente, o sermão da tarde vinha tão em cima do da

manhã, que era difícil preparar a alma, especialmente quando o almoço é

uma necessidade, mas séria inconveniência, quando se requer cérebro

claro. Que pena! Aqueles cultos à tarde em nossas aldeias inglesas eram

geralmente um melancólico desperdício de esforço. O rosbife e o pudim

pesam na alma dos ouvintes, e o próprio pregador fica amortecido em

seus processos mentais, enquanto a digestão reclama o domínio da hora.

Graças a uma cuidadosa medida de dieta, mantive-me naquela

ocasião bem animado e vigoroso, mas, para minha consternação, vi que

se me fora a linha de pensamento elaborada previamente. Não consegui

achar a pista do sermão que tinha preparado, e espremi a testa quanto

pude, mas o tópico perdido não me vinha. O tempo era curto, a hora

chegava, e um tanto alarmado eu disse ao honesto lavrador que, por

minha vida, eu não conseguia lembrar o que tencionara pregar. "Ah!,

exclamou ele, '"não tem importância; esteja certo de que terá uma boa

palavra para nós". Justo naquele momento, um tição em brasa caiu fora

do fogo da lareira a meus pés, enchendo de fumaça os olhos e o nariz da

gente. "Aí", disse o lavrador, "aí está o texto para o senhor. Não é um

tição arrebatado do incêndio'?" Não, pensei, não foi tirado, pois saltou

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 124

fora sozinho. Ali estava um texto, uma ilustração, e um pensamento

dominante, como um indez no ninho, chamariz de mais ovos. Veio-me

maior luz, e certamente o sermão não foi pior do que as minhas efusões

bem preparadas; foi melhor no melhor sentido, pois mais tarde vieram

um ou dois declarar que se despertaram e se converteram com o sermão

daquela tarde. Sempre considerei feliz circunstância ter esquecido o

texto sobre o qual planejara pregar.

Na rua New Park uma vez passei por uma experiência singular, da

qual há testemunhas presentes nesta sala. Eu tinha passado com

felicidade por todas as partes iniciais do culto de domingo à noite, e

estava anunciando o hino anterior ao sermão. Abri a Bíblia para achar o

texto que eu tinha estudado cuidadosamente como o tópico do discurso,

quando na página oposta outra passagem da Escritura saltou sobre mim

como um leão de uma moita, com muitíssimo mais poder do que eu

sentira ao considerar o texto que havia escolhido. O povo cantava e eu

suspirava. Eu estava espremido de ambos os lados, e minha mente

pendia como em pratos de balança. Naturalmente eu estava desejoso de

seguir a trilha que tinha planejado cuidadosamente, mas o outro texto

não queria aceitar recusa, e parecia puxar-me pela orla do casaco,

gritando: "Não, não! Você tem que pregar sobre mim. Deus quer que

você me siga". Eu deliberava dentro de mim quanto ao meu dever, pois

não queria ser nem fanático nem incrédulo, e por fim pensei comigo

mesmo: "Bem, eu gostaria de pregar o sermão que preparei, e é grande

risco meter-me a tragar nova linha de pensamento, mas como esse texto

insiste em constranger-me, talvez seja do Senhor, e portanto me

aventurarei com ele, venha o que possa vir".

Quase sempre anuncio as minhas divisões logo depois do exórdio,

mas nessa ocasião, contrariamente ao meu costume, não o fiz, pela razão

que talvez alguns de vocês adivinhem. Passei pelo primeiro subtítulo

com considerável liberdade, falando perfeitamente, de modo

improvisado, quanto ao pensamento e à palavra. O segundo ponto foi

tratado com a consciência de um poder incomum, tranqüilo e eficaz, mas

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 125

eu não tinha idéia do que seria ou poderia ser o terceiro, pois o texto já

não oferecia mais conteúdo, e eu nem poderia dizer agora o que teria

feito, se não ocorresse um fato que eu nunca teria imaginado. Tinha-me

metido em grande dificuldade obedecendo ao que julgava ser um

impulso divino, e me sentia relativamente sossegado sobre isso, crendo

que Deus me socorreria, e sabendo que ao menos poderia encerrar a

reunião se não houvesse mais nada que dizer.

Não tive que ficar deliberando, pois de repente ficamos em

completa escuridão – o gás se acabara, e como os corredores da igreja

estavam repletos de gente, e o lugar todo estava superlotado; havia

grande perigo, mas também houve grande bênção. Que deveria fazer eu

então? Os presentes assustaram-se um pouco, mas eu os tranqüilizei na

hora dizendo-lhes que não se alarmassem por faltar a luz, pois logo seria

reacendida, e quanto a mim, como não tinha manuscrito, podia falar com

luz ou sem luz, desde que eles tivessem a bondade de sentar-se e ouvir.

Se o meu discurso fosse muito elaborado, seria absurdo continuá-lo, e

assim, no aperto em que eu estava, fiquei livre do embaraço. Voltei-me

mentalmente para o bem conhecido texto que fala do filho da luz

andando nas trevas, e do filho das trevas andando na luz, e vi que se me

derramavam observações e ilustrações apropriadas, e quando as luzes se

acenderam, vi diante de mim um auditório tão arrebatado e subjugado

como nenhum homem jamais viu em sua vida.

O estranho nisso tudo foi que, passadas algumas reuniões da igreja,

duas pessoas foram à frente para fazer a sua confissão de fé, e

declararam que foram convertidas naquela noite. A primeira deveu a sua

conversão à primeira parte da pregação, sobre o novo texto que me viera,

e a outra atribuiu o seu despertamento à última parte, ocasionada pela

súbita escuridão. Assim, vocês vêem, a Providência favoreceu-me.

Deixei-me aos cuidados de Deus, e os arranjos que Ele fez apagaram a

luz na hora certa para mim. Alguns podem ridicularizar-me, mas eu

adoro o Senhor; outros podem criticar-me, mas eu me regozijo.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 126

Qualquer coisa é melhor do que a mecânica produção e pregação de

sermões, em que a direção do Espírito é praticamente ignorada. Todos os

pregadores usados pelo Espírito Santo, não tenho dúvida, terão dessas

recordações agrupando-se em torno do seu ministério. Portanto, digo:

observem o curso da Providência; entreguem-se à orientação e ao auxílio

do Senhor. Se tiverem feito solenemente o melhor que puderam para

conseguir um texto, e o assunto não lhes vem, subam ao púlpito

firmemente convictos de que receberão uma mensagem quando chegar a

hora, mesmo que não tenham uma palavra naquele momento.

Na biografia de Samuel Drew, famoso pregador metodista, lemos:

"Detendo-se na casa de um amigo em Cornwall, depois da pregação,

uma pessoa que assistira o culto, fazendo-lhe a observação de que,

naquela ocasião, ele sobrepujara a sua capacidade habitual, confirmando-

lhe outros a mesma opinião, disse o Sr. Drew: "Se é verdade, é a coisa

mais singular, porque o meu sermão foi pregado sem qualquer meditação

prévia. Fui para o púlpito com a intenção de falar-lhes baseado noutro

texto, mas, olhando a Bíblia que estava aberta, a passagem sobre a qual

acabam de me ouvir, "Prepara-te, ó Israel, para te encontrares com o teu

Deus", prendeu a minha atenção com tanta força que pôs em fuga as

minhas idéias anteriores; e, conquanto eu nunca antes tivesse

considerado aquela passagem, resolvi de imediato fazê-la o assunto do

meu discurso. O Sr. Drew fez bem em ser obediente à direção celestial.

Meus irmãos, em certas circunstâncias vocês se sentirão

absolutamente compelidos a porem de lado o discurso bem estudado, e a

confiarem no presente socorro do Espírito Santo, empregando alocução

puramente improvisada. Talvez se vejam na situação do finado Kingman

Nott, quando pregava no Teatro Nacional de Nova York. Numa de suas

cartas ele diz: "O edifício estava abarrotado de gente, mormente de

jovens e meninos do tipo mais grosseiro. Fui com o sermão em mente,

mas logo que cheguei no palco, saudado com "Eh! eh!", e vendo a

heterogênea e ruidosa multidão com que tinha que lidar, deixei de lado

todos os pensamentos do sermão, e tomando a parábola do filho pródigo,

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 127

tentei interessar nela os presentes, e consegui manter a maior parte deles

dentro da casa e toleravelmente atentos". Que simplório teria sido ele se

tivesse perseverado em sua inadequada preleção! Irmãos, rogo-lhes,

creiam no Espírito Santo, e levem à prática a sua fé.

Como adicional assistência prestada a um pobre pregador

encalhado, incapaz de fazer sua mente navegar por falta de uma ou duas

ondas de pensamento, recomendo-lhe, em tal caso, voltar insistentemente

à Palavra de Deus, lendo um capítulo e ponderando seus versículos um

por um; ou escolher um versículo, e exercitar bem a sua mente nele.

Talvez não encontre o texto do seu sermão no versículo ou no capítulo

que está lendo, mas a palavra certa lhe virá mediante o engajamento

ativo da sua mente em assuntos santos. Conforme a relação dos

pensamentos uns com os outros, um pensamento induzirá outro, e outro,

até passar uma longa procissão deles diante da sua mente, dos quais um

ou outro será o tema predestinado.

Leia também bons e sugestivos livros, e eleve a sua alma através

deles. Se os homens querem bombear água com uma bomba não usada

recentemente, primeiro despejam água nele, e a bomba funciona.

Mergulhe num dos puritanos, e estude completamente a obra, e logo se

verá como um pássaro em vôo, mentalmente ativo e cheio de

movimento.

Deixe-me observar, porém, a modo de precaução, que devemos

estar treinando sempre a busca de textos e o preparo de sermões.

Devemos constantemente preservar a santa atividade das nossas mentes.

Ai do ministro que ouse desperdiçar uma hora sequer. Leia o Essay on

the Improvement of Time (Ensaio sobre o aproveitamento do tempo), de

John Foster, e tome a decisão de nunca perder um segundo. O homem

que perambula para cima e para baixo, de segunda-feira de manhã até

sábado de noite, e sonha indolentemente que o texto do seu sermão lhe

será enviado por um mensageiro angélico na última ou na penúltima hora

da semana, está tentando a Deus, e merece ficar emudecido no dia do

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 128

Senhor. Como ministros, não temos lazer; nunca estamos de folga, mas

permanecemos em nossas torres de vigia dia e noite.

Estudantes, digo-lhes solenemente, nada os escusará da mais rígida

economia de tempo; desperdiçá-lo é um perigo para vocês. A folha do

seu ministério logo fenecerá, a menos que, como o varão bem-

aventurado do Salmo primeiro, vocês meditem na lei do Senhor de dia e

de noite. Desejo ansiosamente que vocês não joguem fora tempo em

dissipação religiosa, ou em mexericos e em conversa frívola. Cuidado

para não ficarem correndo desta reunião para aquela, escutando meras

parolices, colaborando assim na indústria de inflar tagarelas. O homem

que é grande nos salões de chá, nas festas noturnas e nas excursões da

Escola Dominical, geralmente é pequeno em todos os demais lugares. O

preparo para o púlpito é a primeira ocupação de vocês, e se

negligenciarem nisso, não inspirarão confiança em si, nem no seu

ministério. As abelhas produzem mel de manhã à noite, e nós temos que

estar sempre armazenando provisões para o nosso povo. Não confio no

ministério que ignora a laboriosa preparação.

Quando viajávamos pelo norte da Itália, o nosso cocheiro dormiu na

carruagem, e quando o chamamos de manhã, ergueu-se desperto, estalou

o chicote três vezes, e disse que estava pronto. Não gostei muito de tão

rápidos aprestos pessoais, e preferia que ele tivesse dormido noutro

lugar, ou que eu ocupasse outro assento. Vocês que estão prontos para

pregar em três tempos, perdoem-me se me sentar num banco em

qualquer outra parte. O exercício mental costumeiro com vistas ao nosso

trabalho é aconselhável. Os ministros devem ser sempre diligentes,

principalmente no bom aproveitamento das oportunidades.

Vocês, irmãos, às vezes não se acham maravilhosamente

preparados para pregar? O Sr. Jay disse que quando se sentia nessas

condições, costumava pegar papel e anotar textos e divisões de sermões,

e guardá-los acumulados para lhe prestarem serviço nas ocasiões em que

a sua mente não estivesse tão bem disposta assim. O chorado Thomas

Spencer escreveu: "Conservo um pequeno livro em que anoto cada texto

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 129

da Escritura que me vem à mente com poder e dulçor. Se sonhasse com

uma passagem da Escritura, eu também a anotaria, e quando me ponho à

escrever, examino o livro, e nunca me acho em dificuldade quanto a um

assunto". Estejam atentos em busca de assuntos quando andarem pela

cidade ou pelo campo.

Reflitam sobre este exemplo: "Fui induzido a um proveitoso

impulso de meditação, sobre a maneira como o nosso bom Pastor cuida

do Seu rebanho, ao ver alguns cordeiros expostos ao frio e uma pobre

ovelha perecer por não receber os devidos cuidados." – Andrew Fuller's

Diary (Diário de A. Fuller).

Mantenham sempre os olhos e os ouvidos abertos, e ouvirão e verão

anjos. O mundo está repleto de sermões – peguem-nos no vôo. O

escultor crê, sempre que vê um rude bloco de mármore, que nele se

esconde uma nobre estátua, e que basta desbastar as superfluidades para

revelá-la. Assim também creiam vocês que dentro de cada vagem de

todas as coisas há a amêndoa de um sermão para quem for sábio. Sejam

sábios, e vejam o celeste em seu molde terreno. Ouçam as vozes dos

céus, e as traduzam para a língua dos homens. Sejam sempre, ó homens

de Deus, pregadores que fazem provisões para o púlpito, em todas as

províncias da natureza e da arte, armazenando e preparando material

toda hora e em todas as estações.

Perguntam-me se é boa coisa anunciar os temas preparados e

publicar listas de sermões previamente planejados. Respondo: Cada

homem em sua ordem. Não sou juiz dos outros. Mas não me atrevo a

tentar tal coisa, pois incorreria em memorável fracasso se me aventurasse

a fazê-lo. Os precedentes vão muito contra a minha opinião,

sobressaindo-se as séries de discursos de Matthew Henry, John Newton,

e de um batalhão de outros mais. Contudo, só posso falar das minhas

impressões pessoais, e deixo que cada qual seja a sua própria lei. Muitos

teólogos eminentes deram valiosos cursos de sermões sobre tópicos

ordenados previamente, mas nós não somos eminentes, e devemos

aconselhar a outros que são como nós a serem cautelosos sobre como

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 130

agir. Não ouso anunciar sobre o que pregarei amanhã, e muito menos

sobre o que pregarei daqui a seis semanas ou seis meses, sendo que em

parte a razão é esta – que tenho consciência de que não possuo aqueles

dons peculiares que são necessários para interessar uma assembléia num

assunto ou numa série de assuntos durante qualquer extensão de tempo.

Irmãos de extraordinária capacidade de pesquisa e de profunda cultura

podem fazê-lo, e irmãos que não possuem nada disso, e sem bom senso,

podem ter a pretensão de fazê-lo, mas eu não posso. Sou obrigado a fazer

grande parte da minha força depender da variedade, antes que da

profundidade.

É questionável se a grande maioria dos pregadores de temas em

série não faria melhor queimando os seus programas, se quisessem ter

êxito. Tenho nítida recordação, aliás, fúnebre recordação, de certa série

de conferências sobre Hebreus que causaram profunda impressão em

minha mente, mas da mais indesejável espécie. Muitas vezes tenho

desejado que os hebreus tivessem guardado para si mesmos a Epístola

aos Hebreus, pois ela deixou enfarado um pobre rapaz gentio. Quando se

tinham apresentado sete ou oito conferências da série, só as pessoas

muito bondosas podiam agüentá-las; estas naturalmente declaravam que

nunca tinham ouvido exposições mais valiosas, mas aos de julgamento

mais carnal parecia que cada sermão ficava mais enfadonho. O escritor,

naquela epístola, exorta-nos a suportar a palavra de exortação, e foi o

que fizemos. Serão como aquele todos os cursos de sermões? Talvez

não, mas temo que as exceções são poucas, pois até se diz daquele

maravilhoso expositor, Joseph Caryl, que começou as suas famosas

preleções sobre Jó com oitocentos ouvintes, e terminou o livro com

apenas oito! Um pregador profético alongou-se tanto sobre "a ponta

pequena" de que fala Daniel, que certo domingo de manhã só lhe

restaram sete ouvintes. Sem dúvida achavam "Estranho que uma harpa de mil cordas tocasse no mesmo tom por tanto tempo".

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 131

Comumente, e para homens comuns, parece-me que discursos

previamente organizados em série são um erro, nunca passam de

benefício aparente, e geralmente são um verdadeiro mal. Certamente

percorrer uma longa epístola requer muitíssimo gênio do pregador, e um

mundo de paciência da parte dos ouvintes. Sinto-me impulsionado a

fazer uma consideração mais profunda daquilo que acabo de dizer:

Tenho a impressão de que muitos pregadores vigorosos e ardentes

achariam que temas programados são grilhões. Se o pregador anuncia

para o próximo dia do Senhor um tópico cheio de alegria, que requer

vivacidade e exaltação de espírito, pode bem acontecer que, por várias

causas, se sinta num tristonho e sobrecarregado estado mental; apesar

disso, tem que pôr vinho novo no seu velho cantil e ir para a festa de

casamento usando roupa de pano de saco e cinzas, e pior que tudo, pode

ser obrigado a repetir isso um mês inteiro. É assim que deve ser? É

importante que o orador esteja em sintonia com o seu tema; como,

porém, assegurar-se isto, a não ser deixando a escolha do tópico às

influências que operem na ocasião? O homem não é uma máquina a

vapor correndo sobre trilhos de metal, e é insensato fixá-lo num encaixe.

Grande parte do poder do pregador consiste em sua alma estar em

harmonia com o assunto, e eu teria receio de determinar um assunto para

uma certa data, pois, ao chegar a ocasião, poderia não estar na mesma

clave. Além disso, não é fácil ver como um homem pode demonstrar

dependência da direção do Espírito de Deus, se já prescreveu sua própria

rota. Talvez vocês digam: "Que singular objeção, pois, por que não

confiar nEle por vinte semanas se confia por uma?" Certo, mas nunca

tivemos uma promessa para garantir-nos essa fé. Deus promete dar-nos

graça conforme os nossos dias, mas nada diz de dotar-nos de um fundo

de reserva para o futuro. "Dia a dia o maná forrava o chão; oh, tratem de aprender bem a lição!"

Exatamente assim nos virão nossos sermões, vigorosos, vindos do

céu, quando necessário. Tenho zelo quanto a qualquer coisa que lhes

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 132

impeça a dependência diária do Espírito Santo, e portanto registro a

opinião já dada. A vocês, meus jovens irmãos, sinto-me seguro ao dizer-

lhes com autoridade: Deixem as ambiciosas tentativas de elaboradas

séries de discursos aos mais velhos e mais capazes. Temos apenas uma

pequena porção de ouro e prata mental; invistamos o nosso pequeno

capital em mercadorias úteis, que alcancem mercado à disposição, e

deixemos que os negociantes mais ricos comerciem com artigos mais

caros e mais difíceis de sair. Não sabemos o que o dia trará – esperemos

pelo ensinamento diário, e não façamos nada que nos impeça a utilização

dos materiais que a providência pode lançar em nosso caminho hoje ou

amanhã.

Talvez vocês indaguem se deveriam pregar sobre textos que outras

pessoas escolhem e pedem que preguem sobre eles! Minha resposta

seria: como regra geral, nunca; e se houver exceções, que sejam poucas.

Permitam-me lembrar-lhes que vocês não cuidam de uma loja à qual os

fregueses podem vir e fazer os seus pedidos. Quando um amigo sugere

um tópico, pensem bem, e considerem se é apropriado, e vejam se ele

lhes vem com poder. Recebam o pedido com cortesia, pois é seu dever

agir como cavalheiros e cristãos. Mas, se o Senhor a quem vocês servem

não lançar a Sua luz sobre o texto, não preguem sobre ele, seja quem for

que queira persuadi-los.

Estou absolutamente certo de que, se esperarmos do Senhor os

nossos assuntos, e fizermos disso objeto de oração, para sermos guiados

retamente, seremos conduzidos pelo caminho certo. Mas se nos

inflarmos com a idéia de que nós mesmos podemos fazer facilmente a

escolha, veremos que até mesmo na seleção de um assunto, sem Cristo

nada podemos fazer. Esperem no Senhor, irmãos, ouçam o que Ele quer

falar, recebam a palavra diretamente da boca de Deus, e então partam

como embaixadores recém-enviados pela corte celestial. "Esperai, pois,

no Senhor."

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 133

A ARTE DE ESPIRITUALIZAR

Muitos que escrevem sobre homilética condenam em termos sem

limites até a ocasional espiritualização de um texto. * "Escolha textos",

dizem eles, "que dêem um sentido claro, literal; jamais viaje além do

sentido óbvio da passagem; nunca se permita acomodar ou adaptar; isso

é artifício de homens de cultura artificial, um estratagema de charlatães,

miserável exibição de mau gosto e de atrevimento." A quem honra,

honra, mas humildemente peço licença para discordar dessa opinião

erudita, entendendo que é mais fastidiosa do que correta, mais plausível

do que verdadeira. Grandes porções de verdadeiro bem podem ser feitas

tomando-se ocasionalmente textos esquecidos, singulares, notáveis,

incomuns; e estou persuadido de que, se apelarmos para um júri de

pregadores práticos e de sucesso, não teóricos, mas homens da luta,

teremos a maioria a nosso favor.

Pode ser que os doutos rabis desta geração sejam demasiado

sublimes e celestiais para condescender com homens de baixa condição;

mas nós, que não temos cultura de alto nível, ou profundo saber, ou

encantadora eloqüência de que nos jactar, julgamos prudente usar o

mesmo método que os poderosos proscreveram, pois vemos nele um dos

melhores modos de ficar fora da rotina da formalidade insípida, e ele nos

fornece uma espécie de sal com que podemos dar sabor a verdades

desagradáveis. Muitos grandes conquistadores de almas acharam bom

para dar estímulo ao seu ministério, e para prender a atenção dos seus

ouvintes, uma vez ou outra irromper por um caminho até então não

palmilhado. A experiência não lhes ensinou que laboravam em erro, mas

o contrário.

Dentro de certos limites, irmãos, não tenham medo de espiritualizar,

ou de tomar textos singulares. Continuem tratando das passagens da

* "A pregação alegórica avilta o gosto e agrilhoa o entendimento, tanto do pregador como dos

ouvintes." – Adam Clarke.

A regra de Wesley é melhor: "Seja parcimonioso nas alegorizações ou espiritualizações".

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 134

Escritura, e não dêem apenas o seu significado manifesto, como estão

obrigados a fazer, mas também extraiam delas os sentidos que talvez não

estejam na superfície. Aceitem o conselho se tem valor, mas lhes

recomendo que mostrem aos seus críticos superfinos que nem todos

prestam culto à imagem de ouro erigida por eles. Aconselho-vos a

empregarem a espiritualização dentro de certos limites e fronteiras, mas

lhes rogo que não se precipitem, sob a capa deste conselho, lançando-se

a incessantes e irrefletidas "imaginações", como George Fox lhes

chamaria. Não se afoguem porque foram recomendados a se banharem,

nem se enforquem num carvalho porque se diz que o tanino dele extraído

é valioso adstringente. Uma coisa permissível levada ao excesso é vício,

exatamente como o fogo é bom servo sob a chapa do fogão, porém mau

mestre quando furioso numa casa incendiada. O exagero, mesmo numa

coisa boa, causa indigestão e desagrado e em nenhum outro caso este

fato é mais patente do que neste diante de nós.

A primeira regra a ser observada é esta – não force violentamente

um texto com uma espiritualização ilegítima. É pecar contra o bom

senso. Quão terrivelmente a Palavra de Deus tem sido malhada e

mutilada por certo bando de pregadores que torturam textos, fazendo-os

revelar o que doutro modo jamais teriam falado. O Sr. "precipitado", de

que nos fala Rowland Hill em sua obra Village Dialogues (Diálogos de

Aldeia), é apenas um caso típico de um cardume numeroso. Aquela

sumidade é descrita como desincumbindo-se de um discurso baseado

em, "Eis que três cestos brancos estavam sobre a minha cabeça", do

sonho do padeiro de Faraó. Fundado nisso, o "chocho malho triplamente

consagrado", como lhe chamaria um amigo meu, discursou sobre a

doutrina da Trindade!

Um estimado ministro de Cristo, venerado e excelente irmão, um

dos mais instrutivos ministros no seu condado, contou-me que um dia

deu pela ausência de um trabalhador e sua esposa das reuniões da sua

igreja. Notou a ausência deles seguidamente, domingo após domingo, e

certa segunda-feira, encontrando na rua o homem, disse-lhe: "Ora, João,

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 135

não o tenho visto ultimamente". "Pois é", foi a resposta; "não estávamos

tirando proveito do seu ministério como antes". "Verdade João? Lamento

muito ouvir isso." "Bem, eu e minha mulher gostamos das doutrinas da

graça, e daí ultimamente temos ido ouvir o Sr. Bawler." "Ah! você se

refere ao bom homem da High Calvinist Meeting (União Hiper

Calvinista)?" "Sim, senhor; e estamos tão contentes! Recebemos muito

boi alimento ali, numa medida transbordante. Estávamos quase

morrendo de fome sob o seu ministério – mas, sempre o respeitamos

como homem, senhor." "Está bem, meu amigo; naturalmente vocês

devem ir aonde possam obter bom proveito para sua alma; só espero que

seja bom. Mas, como lhes foi domingo passado?" "Ah! foi um dia

extremamente animador para nós, senhor. De manhã tivemos – não me

parece bem contar-lhe isto – contudo, tivemos momentos realmente

preciosos."

"Sim, mas, que foi, João?" "Bem, senhor, o Sr. Bawler nos fez

penetrar abençoadamente naquela passagem: "Quando te assentares a

comer com um governador, ... põe uma faca à tua garganta, se és homem

glutão". "Que foi que ele tirou dessa passagem?" "'Bem, senhor, posso

dizer-lhe o que ele tirou dela, mas, primeiro eu gostaria de saber o que o

senhor teria dito sobre ela." "Não sei, João; creio que dificilmente

escolheria esse texto, mas se tivesse que falar sobre ele, diria que uma

pessoa dada a comidas e bebidas deve ter cuidado com o que vai fazer

quando estiver na presença de grandes homens, se não se arruinará.

Mesmo nesta vida a glutonaria é danosa." "Ah!", disse o homem, "esta é

a sua maneira de interpretá-la segundo a letra morta. Como eu disse à

minha mulher outro dia, desde que começamos a ouvir o Sr. Bawler, a

Bíblia abriu-se para nós, de modo que podemos ver nela muito mais do

que víamos." "Sim, mas, que disse o sr. Bawler sobre aquela passagem?"

"Bem, ele disse que o glutão é o recém-convertido que por certo tem

tremenda fome de pregação, e sempre está querendo comida, mas nem

sempre tem o devido cuidado quanto à qualidade da comida." "E depois,

João?" "Ele disse que se o recém-convertido se sentasse diante de um

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 136

governador – isto é, de um pregador legalista ou de outro homem de

convicção semelhante – seria a pior coisa para ele." "Mas, e quanto à

faca, João?" "Bem, o Sr. Bawler disse que é uma coisa muito perigosa

ouvir pregadores legalistas, pois isto certamente ia arruinar a vida do

ouvinte, e tanto faz cortar a sua garganta agora como depois!"

O assunto era, suponho, acerca dos efeitos prejudiciais sobre os

cristãos novatos que ouvem a outros pregadores, e não os da corrente

hipercalvinista. E eis a moral dele deduzida: Seria melhor que o irmão

em foco cortasse a garganta do seu ex-pastor do que ir ouvi-lo! Isto sim é

notável acomodação do texto.

Ó vós, críticos, entregamos esses cavalos mortos aos vossos dentes

brutais! Estraçalhai-os e devorai-os como quiserdes; não vos

censuraremos.

Ouvimos falar de outro "ator" que interpretou assim "Provérbios

21.17: "Necessidade padecerá o que ama os prazeres; o que ama o vinho

e o azeite nunca enriquecerá". O livro de Provérbios é um dos campos

favoritos dos espiritualizadores, que com os provérbios se divertem. O

nosso grande homem utilizou-se do provérbio desta maneira: "O que

ama os prazeres", isto é, o cristão que usufrui os meios da graça,

"necessidade padecerá", quer dizer, será pobre, mas pobre de espírito; "o

que ama o vinho e o azeite", a saber, o que se alegra com as provisões da

aliança, e desfruta o óleo e o vinho do evangelho, "nunca enriquecerá",

isto é, não será rico em sua própria opinião", mostrando a excelência dos

pobres de espírito, e como estes, gozarão os prazeres do evangelho –

sentimento muito bom, mas os meus olhos carnais não conseguem vê-lo

no texto.

Todos vocês já sabem da famosa explicação que William

Huntingdon deu de Isaías 11:8: "E brincará a criança de peito sobre a

toca do áspide, e o já desmamado meterá a sua mão na cova do

basilisco". "A criança de peito", isto é, o bebê na graça, "brincará sobre a

toca do áspide", "o áspide" quer dizer o arminiano; "a toca do áspide"

quer dizer a boca do arminiano." Segue-se então uma descrição do

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 137

esporte em que as mentes simples são mais que um trunfo sobre a

sabedoria arminiana. Os elementos que professam a outra escola

teológica em geral tiveram o bom senso de não devolver o cumprimento,

caso em que os antinomianos ver-se-iam competindo com os basiliscos,

e veriam os seus opositores desafiá-los zombeteiramente à boca da cova

deles. Tal abuso só serve para prejudicar os que o praticam. Há melhores

modos de expor e salientar as diferenças teológicas do que essa

palhaçada.

Da estupidez estufada de orgulho surgem resultados ridículos.

Talvez baste um exemplo. Um respeitável ministro disse-me outro dia

que fazia pouco tempo estivera pregando à sua congregação sobre as

"vinte e nove facas" de Esdras. Estou certo de que ele sabia manejar com

discrição esses agudos instrumentos, mas não pude abster-me de dizer-

lhe que esperava que ele não tivesse imitado o sapiente intérprete que via

naquele curioso número de facas uma referência aos "vinte e quatro

anciãos" de Apocalipse.

Diz uma passagem de Provérbios: "Por três coisas se alvoroça a

terra, e a quarta não a pode suportar: Pelo servo, quando reina; e pelo

tolo, quando anda farto de pão; pela mulher aborrecida, quando se casa;

e pela serva, quando fica herdeira da sua senhora". Um enlevado

espiritualizador declara que isso é um lindo quadro descritivo da obra da

graça na alma, e mostra o que alvoroça os arminianos, e os põe em pé de

guerra. "O servo, quando reina", isto é, pobres servos como nós, quando

feitos reinantes com Cristo; o "tolo, quando está farto de pão", pobres

tolos como nós, quando somos alimentados com o trigo mais excelente

da verdade do evangelho; a "mulher aborrecida, quando se casa", isto é,

o pecador, quando se une a Cristo: e a "serva quando fica herdeira da sua

senhora", isto é, quando nós, pobres criadas que estávamos sob a lei,

escravas, fomos acolhidas aos privilégios de Sara, e nos tornamos

herdeiras da nossa senhora."

Eis aí alguns espécimes de excentricidades eclesiásticas, as quais

são tão numerosas e valiosas como as relíquias que todo dia,se juntam

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 138

com tanta abundância no campo de batalha de Waterloo, aceitas pelos

mais ingênuos como inestimáveis tesouros. Mas já vos enfarei, e não

quero desperdiçar mais o nosso tempo. É preciso admoestar-vos a

repudiarem todo esse abominável absurdo! Esses devaneios desonram a

Bíblia, são um insulto ao bom senso dos ouvintes e um aviltamento

deplorável do ministro. Contudo, esta não é a espiritualização que lhes

recomendamos, como igualmente o cardo que se ache no Líbano não é o

cedro do Líbano. Evitem, irmãos, a infantil perda de tempo e a ultrajante

torção de textos que farão de vocês sábios entre tolos, ou tolos entre

sábios.

A segunda norma é: nunca espiritualizem assuntos indecorosos. É

preciso dizer isto, pois a família "Precipitado" nunca se sente mais em

casa do que quando fala de maneira que faz ruborizar a face da modéstia.

Os escaravelhos são espécies de besouros que procriam na imundícia, e

esse tipo de criatura tem o seu protótipo entre os homens. Não é que me

vem à memória neste momento um teólogo cheio de sabor, que se

estendeu com maravilhoso gosto e com patética unção a respeito da

concubina cortada em dez pedaços? Azedo como é, não poderia tê-lo

feito melhor. Que coisas abomináveis têm sido ditas sobre alguns dos

mais rudes e horripilantes símiles de Jeremias e Ezequiel! Onde o

Espírito Santo é velado e repassado de pudor, estes homens tiram o véu e

falam como só as línguas perversas se aventurariam a falar.

Não sou melindroso, longe disso, mas as explicações do novo

nascimento com analogias sugeridas por um pré-natal, exposições do rito

da circuncisão, e minuciosas descrições da vida conjugal, causam-me

indignação e fazem com que me sinta inclinado a ordenar como fez Jeú,

que os desavergonhados sejam lançados abaixo desde a sua alta posição

infelicitada por seu descarado despundonor. Sei que se diz, "A vergonha

domina a quem o mal imagina", mas assevero que as mentes puras não

devem ser expostas sequer ao mais leve sopro de indelicadeza

proveniente do púlpito. A mulher de César tem que estar livre de

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 139

suspeita, e os ministros de Cristo têm que estar sem nódoa em seu viver e

sem mácula em seu falar.

Cavalheiros, os beijos e abraços em que alguns pregadores se

deleitam são repugnantes. É melhor deixar em paz consigo o livro de

Cantares de Salomão, do que arrastá-lo à lama como se faz muitas vezes.

Especialmente os jovens devem ser escrupulosa e zelosamente sóbrios e

puros em suas palavras. A um idoso se perdoa, não sei bem por que, mas

um jovem ficará completamente sem desculpa, se ultrapassar a linha

estreita da delicadeza.

Em seguida, em terceiro lugar, nunca espiritualizem uma passagem

com o fim de mostrar que são extraordinariamente inteligentes. Tal

intenção é iníqua, e o método empregado será uma tolice. Somente um

egrégio simplório procurará ser notado fazendo o que nove entre dez

poderiam fazer muito bem feito. Certo candidato uma vez pregou um

sermão sobre a palavra "mas", esperando com isso captar a simpatia dos

congregados que, pensou ele, seriam arrebatados pelos poderes de um

irmão capaz de alargar-se tão maravilhosamente sobre uma simples

conjunção. Seu assunto parece ter consistido no fato de que, não importa

o que haja de bom no caráter de um homem, ou de admirável em sua

posição, o certo é que existe alguma dificuldade, algum sofrimento com

relação a todos nós. "Naamã era um grande homem diante do seu senhor,

mas – ". Quando o orador desceu do púlpito, os oficiais disseram: "Bem,

senhor, seu sermão foi deveras singular, mas – o senhor não é o homem

para o lugar; podemos ver isto com clareza". Ai da inventiva quando é

tão comum, e com ela põe uma arma nas mãos do próprio adversário!

Lembre-se de que a espiritualização não é uma esplêndida exibição

de talento, mesmo que você tenha competência para fazê-la bem, e de

que, sem discrição, é o método que mais se presta para revelar a sua

egrégia insensatez.

Cavalheiros, se aspiram a emular Orígenes em suas interpretações

extravagantes e ousadas, talvez seria bom ler antes a sua biografia e

observar as tolices às quais a sua maravilhosa mente foi arrastada por

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 140

permitir que uma desenfreada fantasia usurpasse a autoridade absoluta

do seu critério de julgamento. E se se meterem a competir com os

vulgares declamadores de uma geração passada, deixem-me lembrar-lhes

que hoje em dia o gorro e os sinos já não desfrutam o mesmo patrocínio

de poucos anos atrás.

Prosseguindo, a quarta advertência é – nunca pervertam a Escritura

para dar-lhe um sentido inusitado, pretensamente espiritual, para que não

seja achado culpado face àquela solene maldição que resguarda e fecha o

rol dos livros divinamente inspirados. O Sr. Cook, de Maidenhead,

sentiu-se obrigado a separar-se de William Huntingdon porque este

interpretou o sétimo mandamento como palavras ditas pelo Senhor ao

Seu Filho dizendo: "Não cobiçarás a mulher do diabo, isto é, do não

eleito". Só se pode dizer – horrível! Talvez fosse um insulto à sua razão

e à sua religião dizer, detestem pensar em tal profanação. Instintivamente

vocês o evitam.

Outra coisa mais – em nenhum caso permitam que os seus ouvintes

esqueçam que as narrativas que vocês espiritualizam são fatos, e não

apenas mitos ou parábolas. O sentido primário da passagem não deve

afogar-se na torrente da sua imaginação; deve ser declarado

definidamente e ter preeminência. A acomodação que fizer do texto

nunca deverá eliminar o sentido original e próprio, nem mesmo empurrá-

lo para um plano secundário. A Bíblia não é uma compilação de hábeis

alegorias ou de instrutivas tradições poéticas; ensina fatos concretos e

revela tremendas realidades. Faça com que a sua plena convicção desta

verdade se manifeste a todos quantos acompanham o seu ministério.

Serão péssimos dias para a igreja, se o púlpito vier a endossar a cética

hipótese de que a Escritura Sagrada é apenas o registro de refinada

mitologia, em que glóbulos da verdade se dissolvem em oceanos de

pormenores poéticos e imaginários.

Contudo, há um terreno legítimo para a espiritualização, ou seja,

para o dom particular que leva os homens a espiritualizarem fatos. Por

exemplo, muitas vezes tem sido demonstrado a vocês, irmãos, que os

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 141

tipos oferecem amplo escopo ao exercício do talento santificado. Por que

precisam andar por aí para encontrar "mulheres aborrecidas" sobre quem

pregar, quando têm diante de si o tabernáculo no deserto, com todo o seu

aparelhamento sagrado, as ofertas queimadas, as ofertas pacificas, e

todos os diferentes sacrifícios que eram oferecidos perante o Senhor? Por

que lutar por novidades. quando o templo e todas as suas glórias estão

diante de vocês? A maior capacidade para a interpretação tipológica

achará abundante emprego nos indubitáveis símbolos da Palavra de

Deus, e será seguro praticar esse exercício, porque os símbolos foram

ordenados por Deus.

Quando tiverem exaurido todos os tipos do Velho Testamento, terão

deixado ainda à sua disposição uma herança de mil metáforas. Benjamim

Keach, em seu laborioso tratado, prova de maneira sumamente prática,

que minas de verdades se ocultam nas metáforas da Escritura! A

propósito, sua obra abre os flancos a muita crítica por fazer as metáforas,

não só correrem com quatro, mas com muitas pernas, como um

centípede; mas não merece a condenação que lhe imputa o Dr. Adam

Clarke, quando diz que o livro de Keach fez mais que qualquer obra

dessa natureza para rebaixar o gosto dos pregadores e do povo. Uma

discreta explanação das alusões poéticas da Escritura Sagrada será muito

aceitável aos seus ouvintes, e, com a bênção de Deus, não pouco

proveitosa.

Mas, supondo que tenham exposto todos os tipos geralmente

aceitos, e que tenham esclarecido os emblemas e as expressões

figuradas, o seu gosto por símiles e o seu prazer neles terão que ir

dormir? De modo nenhum. Quando o autor sagrado vê mistério em

Melquisedeque, e Paulo fala de Hagar e Sara desta forma: "O que se

entende por alegoria", dão-nos precedente para a descoberta de alegorias

bíblicas noutros lugares além dos dois mencionados. Na verdade, os

livros históricos não somente nos dão aqui e ali uma alegoria, mas

parecem em seu conjunto global arranjados com vistas ao ensino

simbólico.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 142

O Sr. Andrew Juke, no prefácio da sua obra sobre os tipos em

Gênesis, mostra como, sem violência, uma pessoa devota pode construir

uma teoria extremamente elaborada: "Como base ou fundamento do que vem a seguir, primeiro se nos

mostra o que provém do homem, e todas as formas de vida que, pela natureza ou pela graça, podem desenvolver-se da raiz do velho Adão. Este é o livro de Gênesis. Então vemos que, seja bom ou mau que veio de Adão, tem que haver redenção; assim um povo eleito pelo sangue do Cordeiro é salvo do Egito. Disso trata Êxodo. Conhecida a redenção, chegamos à experiência dos eleitos como tendo necessidade de acesso a Deus o Redentor no santuário, e o aprendizado do caminho para ele. Obtemos isto em Levítico. Depois, no deserto deste mundo, como peregrinos egressos do Egito, da casa da servidão, rumo à terra prometida além do Jordão, ficamos sabendo das provações da viagem, desde aquela terra de maravilhas e do saber humano até à terra que mana leite e mel. Este é o livro de Números. Em seguida vem o desejo de trocar o deserto pela terra melhor; a entrada na qual se sabe que, por algum tempo depois da redenção, os eleitos ainda evitam; respondendo ao desejo dos eleitos, em certo estágio, de conhecer o poder da ressurreição, para viverem, mesmo no presente, como nos lugares celestiais. Seguem-se as regras e os preceitos que devem ser obedecidos, se isso há de se fazer. Deuteronômio, reiteração da lei, segunda purificação, fala do modo de progredir.

"Depois disso chega-se de fato a Canaã. Atravessamos o Jordão; experimentamos na prática a morte da carne, e o que significa sermos circuncidados, e desfazer-nos do opróbrio do Egito. Sabemos agora o que é ressuscitar com Cristo e lutar, não contra carne e sangue, mas contra os principados e as potestades nos lugares celestiais. Este é o livro de Josué. Então vem o fracasso dos eleitos nos lugares celestiais, fracasso resultante das alianças feitas com os cananeus, em vez de se sobreporem a eles. Juízes no-lo mostra. Depois, as diferentes formas de governo, que a igreja pode conhecer, passam em revista nos livros de Reis, desde o primeiro estabelecimento de governo em Israel até a sua extinção, quando, devido seu pecado, o governo da Babilônia sobrepuja o dos eleitos.

"Conhecido isto, com toda a sua vergonha, vemos os remanescentes dos eleitos, cada qual de acordo com a sua capacidade, fazendo o que está a seu alcance para, se possível, restaurar Israel: uns, como Esdras, voltando para construir o templo, isto é, para restaurar as formas do culto verdadeiro;

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 143

alguns vindo, como Neemias, para construir os muros, isto é, para restabelecer, com a permissão dos gentios, uma débil imitação da antiga comunidade política; enquanto em Ester um terceiro remanescente se vê cativo, mas fiel, salvo providencialmente, embora o nome de Deus (e isto é uma característica da sua condição) nunca apareça em parte alguma do registro todo".

Longe de mim recomendar-lhes que sejam fantasiosos como às

vezes é, o engenhoso autor que acabo de citar, mercê da sua tendência

para o misticismo, todavia, lerão a Palavra com interesse cada vez maior

se forem leitores bastante atentos para notar o curso geral dos livros da

Bíblia, e a sua subseqüência como sistema de tipos.

Outrossim, a faculdade que possibilita o bom emprego da

espiritualização consiste em generalizar os grandes princípios universais

desdobrados em fatos diminutos e isolados. Esta é uma busca engenhosa,

instrutiva e legítima. Talvez vocês não se decidissem a pregar sobre

"pega-lhe pela cauda", mas a observação que disso nos vem é muito

natural: "há um jeito certo de pegar cada coisa". Moisés pegou a serpente

pela cauda, e assim há um modo de agarrar as nossas aflições e vê-las

enrijecer-se em nossas mãos, transformando-se numa vara prodigiosa; há

um modo de sustentar as doutrinas da graça, um modo de confrontar-nos

com os ímpios, e assim por diante. Em centenas de incidentes

escriturísticos podemos achar grandes princípios gerais que talvez em

nenhum lugar estejam expressos com tantas palavras.

Tomem os seguintes exemplos, fornecidos pelo Sr. Jay. Do Salmo

74:14, "Fizeste em pedaços as cabeças do leviatã, e o deste por

mantimento aos habitantes do deserto", ele ensina que os maiores

inimigos do povo de Deus, povo peregrino, serão mortos, e de que a

lembrança da misericórdia revigorará os santos. De Gênesis 35:8, "E

morreu Débora, a ama de Rebeca, e foi sepultada ao pé de Betel, debaixo

do carvalho cujo nome chamou "Alom-Bacute", ele discursa sobre bons

servidores e sobre a certeza da morte. Com base em 2 Samuel 15:15,

"Então os servos do rei disseram ao rei: Eis aqui os teus servos, para

tudo quanto determinar o rei, nosso senhor", mostra ele que essa

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 144

linguagem pode com propriedade ser adotada pelos cristãos, e dirigida a

Cristo. Se alguém fizer objeção à forma de espiritualização que o Sr. Jay

tão eficiente e judiciosamente se permitiu fazer, só pode ser uma pessoa

cuja opinião não tem por que influir em vocês nem um pouco. Dentro da

minha capacidade pessoal, tenho tomado a liberdade de fazer a mesma

coisa, e os esboços dos meus sermões desse tipo podem ser encontrados

em meu opúsculo Evening by Evening (Noite a Noite), e uma irrigação

menos liberal em seu companheiro, Morning by Morning (Manhã a

Manhã).

Um notável exemplo de um bom sermão firmado numa base

forçada e injustificável, é o de Everard, em seu Gospel Treasury

(Tesouro do Evangelho). No discurso sobre Josué 15:16-17, onde as

palavras são estas: "E disse Calebe: Quem ferir a Quiriate-Séfer, e a

tomar, lhe darei a minha filha Acsa por mulher. Tomou-a pois Otniel,

filho de Quenaz, irmão de Calebe; e deu-lhe a sua filha por mulher"; aqui

o curso da elocução do pregador se baseia na tradução dos nomes

próprios hebraicos, de maneira que ele propicia esta leitura: "Um bom

coração disse: Quem ferir a cidade das letras, e a tomar, lhe darei a

ruptura do véu. E Otniel viu nisso o tempo próprio ou a oportunidade de

Deus, e se casou com Acsa, isto é, desfrutou a ruptura do véu, pelo que

teve a bênção das fontes superiores e das fontes inferiores". Não haveria

outro método para mostrar que devemos procurar o sentido interno da

Escritura, e não ficar nas meras palavras, ou na letra do Livro?

As parábolas do nosso Senhor, em sua apresentação e em seu

vigor, fornecem o mais amplo escopo para a imaginação amadurecida e

disciplinada, e se todas elas já passaram por vocês, ficam ainda os

milagres, ricos de ensinos simbólicos. Não pode haver dúvida de que os

milagres são sermões por meio de ações de nosso Senhor Jesus Cristo.

Vocês têm Seus "sermões em palavras" em Seu ensino incomparável, e

os Seus "sermões em atos" em Seus feitos sem par. Apesar de defeitos

doutrinários, verão que Trench, sobre os milagres, é extremamente útil

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 145

nesta direção. Todas as poderosas obras de nosso Senhor estão repletas

de ensinamentos.

Tomem a história da cura do surdo-mudo. Os males que a pobre

criatura padecia são eminentemente sugestivos quanto ao estado de

perdigão do homem, e o modo de agir de nosso Senhor ilustra muito

instrutivamente o plano da salvação. "Tirando-o à parte de entre a

multidão" – é preciso fazer a alma dar-se conta da sua personalidade e

individualidade, e deve ser levada a estar a sós. "Meteu-lhe os dedos nos

ouvidos", indicando assim a fonte do defeito; os pecadores são

convencidos do seu estado. "E, cuspindo" – o evangelho é um meio

simples e desprezado, e o pecador, quanto à salvação, tem que se

humilhar para recebê-la. "Tocou-lhe na língua", indicando também onde

reside o defeito – o nosso senso de necessidade cresce em nós. "E,

levantando os olhos ao céu" – Jesus lembrou a Seu paciente que todo o

poder vem de cima – lição que todo suplicante deve aprender.

"Suspirou", mostrando que as tristezas do Médico são os meios da nossa

cura. Depois disse, "Efatá; isto é, abre-te" – eis aí a palavra eficaz da

graça, que produz uma cura imediata, perfeita e duradoura. Tratem de

aprender todas as lições desta única exposição, e sempre acreditem que

os milagres de Cristo são uma grande galeria de quadros que ilustram a

Sua obra entre os filhos dos homens.

No entanto, seja isto uma instrução a todos quantos manuseiam

parábolas ou metáforas, para que sejam discretos. O Dr. Gill é um

personagem cujo nome deve ser sempre mencionado com honra e

respeito nesta casa, em que seu púlpito ainda permanece, mas a sua

exposição da parábola do filho pródigo parece-me ser absurda em alguns

pontos. O douto comentador diz-nos que "o bezerro cevado" é o Senhor

Jesus Cristo! A gente estremece ao ver a espiritualização chegar a isto.

Depois há também a sua exposição da parábola do bom samaritano. O

animal sobre o qual foi colocado o homem ferido é de novo o nosso

Senhor, e os "dois dinheiros" que o bom samaritano deu ao hospedeiro

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 146

são o Velho e o Novo Testamentos, ou as ordenanças do batismo e da

ceia do Senhor.

A despeito desta precaução, vocês podem permitir grande

amplitude na espiritualização a homens de raro temperamento poético,

entre os quais João Bunyan. Cavalheiros, já leram alguma vez a

espiritualização que João Bunyan fez do templo de Salomão? É uma

realização sumamente notável, e mesmo sendo um pouco forçada, é

repassada de santíssima ingenuidade. Tomem, como um espécime em

particular, uma das suas mais rebuscadas explanações, e vejam se pode

ser melhorada. É sobre "as folhas da porta do templo". "As folhas desta porta ou portal eram dobradiças, como já lhes disse, e

assim, como foi sugerido, trazem consigo alguma significação. Por causa disto a pessoa, principalmente um novo discípulo, pode equivocar-se facilmente, pensando estar aberta toda a passagem, quando apenas uma parte o está, permanecendo três partes dela ainda sem se lhe revelar. Pois essas portas, como já disse, nunca antes foram abertas completamente, quero dizer, no antítipo; nunca o homem tinha visto todas as riquezas e a plenitude que há em Cristo. Assim digo que o recém-vindo, caso julgasse pela visão presente, especialmente se tivesse pequena capacidade de ver, poderia enganar-se facilmente; por conseguinte os novos discípulos ficam, na maioria, com um medo terrível de que nunca entrarão lá.

"Que dizes, recém-vindo? Não é este o caso que se dá com a tua alma? Pois te parece que és muito grande, sendo na verdade tão grande, exageradamente inchado pecador! Mas, ó tu, pecador, não temas; as portas são dobradiças, e podem abrir-se mais, e depois abrir-se mais ainda. Portanto, ao chegares a esse portal, e imaginares que não há espaço suficiente para que entres, bate, e ela se te abrirá mais amplamente, e serás recebido (Lucas 11:9; João 6:37). Assim, pois, sejas quem fores, chegado à porta da qual o templo era um tipo, não te fies em tuas primeiras concepções das coisas, mas crê que há graça abundante. Ainda não sabes o que Cristo pode fazer; as portas são dobradiças. "Ele é poderoso para fazer tudo muito mais abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos" (Efésios 3:20). Os gonzos sobre os quais essas portas giram, eram, como lhes falei, de ouro; quer dizer que ambas giravam sobre motivos e impulsos de amor, e também suas aberturas eram ricas. Gonzos de ouro na porta, para Deus girar em torno deles. As ombreiras em que essas portas se fixavam eram de

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 147 oliveira, dessa árvore gorda e oleosa, para mostrar que nunca se abrem com relutância ou com lentidão, como portas a cujos gonzos falta óleo. Elas estão sempre oleosas, e assim se abrem com facilidade e rapidez aos que batem. Daí se lê que Aquele que habita nessa casa faz dádivas e ama por Sua livre graça, e nos faz o bem de todo o coração. Sim, diz Ele, "alegrar-me-ei por causa deles, fazendo-lhes bem; e os plantarei nesta terra certamente, com todo o meu coração e com toda a minha alma" (Jer. 3:12,14,22; 32:41; Apoc. 21:6; 22:17). Portanto, o óleo da graça, simbolizada por esta oliveira, ou essas ombreiras de oliveira, em que estão fixas estas portas, fazem que elas se abram soltas ou francas para a alma."

Quando Bunyan revela o significado de serem as portas de faia,

quem senão ele diria: "A faia é também a casa da cegonha, ave imunda,

como Cristo é abrigo e amparo dos pecadores"? "Pois quanto à cegonha,

diz o texto, a faia é sua casa; e Cristo diz aos pecadores que percebem

sua necessidade de amparo: "Vinde a mim, e encontrareis descanso". Ele

é um refúgio para os oprimidos, refúgio em tempo de aflição (Deut.

14:18; Lev. 11:19; Sal. 104:17 e 74:2-3; Mat. 11:27-28; Heb. 6:17-20)".

Em sua "Casa da Floresta do Líbano" Bunyan é ainda mais

enigmático, mas leva adiante a sua empreitada como nenhum outro

homem poderia tê-lo feito. Ele acha que as três filas de colunas, de

quinze colunas cada uma, são um enigma demasiado difícil para ele, e

desiste, não porém antes de fazer algumas bravias tentativas sobre isso.

O Sr. Bunyan é o principal, o maior, o chefe de todos os alegoristas, e

não deve ser seguido por nós às profundezas da comunicação típica e

simbólica. Ele era um mergulhador, nós não passamos de vadeadores;

não devemos ir além dos nossos níveis de profundidade.

Sinto-me tentado, antes de encerrar esta palestra, a dar um ou dois

esboços de espiritualizações que conheci nos meus primeiros tempos.

Nunca esquecerei um sermão pregado por um homem sem instrução,

mas notável, que foi meu vizinho próximo no campo. Obtive dos seus

próprios lábios as anotações do discurso, e eu esperava que

permanecessem como puras notas, e nunca mais fossem usadas para

pregação neste mundo. O texto era: "O avestruz, o mocho e o cuco".

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 148

Talvez o texto não lhes dê a impressão de ter conteúdo muito rico; foi a

impressão que me deu, e, portanto, perguntei inocentemente: "E as

cabeças (i. é, divisões do sermão) como eram?" Ele respondeu

astutamente: "Cabeças? Ora, torça os pescoços das aves, e terá três pura

e simplesmente: o avestruz, o mocho e o cuco". Mostrou que essas aves

eram imundas sob a lei, e claros tipos dos pecadores impuros. Os

avestruzes são pessoas que roubam sorrateiramente, e também pessoas

que adulteram as suas mercadorias e trapaceiam, enganando o próximo

às escondidas, sem que este suspeite que elas são uns patifes. Quanto aos

mochos, tipificam os ébrios, ativos de noite, mas de dia quase dão com a

cabeça num poste, de tão sonolentos. Há mochos entre os cristãos

professos também. O mocho depenado é uma ave muito pequena. Só

parece grande porque tem muitas penas. Assim, muitos crentes professos

são só penas, e se você pudesse arrancar as suas jactanciosas profissões

de fé, bem pouca coisa sobraria deles. A seguir, os cucos são os

membros do clero da igreja, que dão sempre a mesma nota, toda vez que

abrem a boca na igreja, e vivem à custa dos ovos de outros pássaros, com

as suas taxas eclesiásticas e com os dízimo. Os cucos são também, penso

eu, os crentes no livre arbítrio, no poder da vontade, que estão sempre

dizendo: "cum-pra-tu-do-tu-do".

Não é isso na verdade uma coisa muito boa? Contudo, vindo do

homem que pregou o sermão, não pareceu nem notável nem

extraordinário. O mesmo venerável irmão pregou um sermão igualmente

singular, mas muito mais original e útil. Os que o ouviram lembrá-lo-ão

até o dia da sua morte. Baseou-se no texto: "O preguiçoso não assará a

sua caça". O bom ancião inclinou-se no alto do púlpito, e disse: "Então,

meus irmãos, ele era mesmo um mandrião!" Esse foi o exórdio. Depois

prosseguiu dizendo: "Ele foi a uma caçada e, depois de muita

dificuldade, pegou uma lebre, e foi preguiçoso demais para assá-la. Era

um sujeito preguiçoso mesmo!"

O homem nos fez sentir quão ridícula é uma preguiça assim, e

depois disse: "Mas vocês não têm autoridade para acusar esse homem,

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 149

pois fazem justamente a mesma coisa. Ouvem falar da vinda de um

pregador popular de Londres, atrelam o cavalo à carroça, viajam vinte ou

trinta quilômetros para ouvi-lo e, depois de terem ouvido o sermão,

esquecem-se de tirar proveito dele. Cagam a lebre e não a assam; vão

cagar a verdade e depois não a recebem".

Daí continuou, para mostrar que, assim como a carne precisa de

cozimento para ficar boa para ser assimilada pelo organismo – não creio

que fosse esta a sua terminologia – assim a verdade precisa passar por

certo processo antes de poder ser recebida pela mente, a fim de que

sejamos alimentados com ela e cresçamos. Disse que ia mostrar como se

cozinha um sermão, e o fez da maneira mais instrutiva. Começou como

começam as receitas dos livros de culinária – "Primeiro pegue a lebre."

"Assim", disse ele, "primeiro pegue um sermão baseado no evangelho."

Aí declarou que havia muitos sermões que não valia a pena caçar, e que,

lamentavelmente, eram muito raros os bons sermões, e valia a pena

vencer qualquer distância para ouvir um discurso calvinista, sólido e no

velho estilo. Portanto, depois de pego o sermão, poderia ser necessário

fazer muita coisa acerca dele, pois, dada a deficiência do pregador,

poderia haver boa parte não aproveitável, que teria que ser lançada fora.

Aqui se alongou sobre discernir e julgar o que ouvimos, e sobre não

acreditar em todas as palavras de qualquer pregador. Seguiram-se depois

instruções sobre como assar um sermão: atravessem-no de ponta a ponta

com o espeto da memória, girem-no no cavalete da meditação, ao fogo

do coração realmente cálido e fervoroso, e deste modo o sermão ficará

bem assado e pronto para dar verdadeira nutrição espiritual.

Dou-lhes apenas o esboço, e embora possa parecer-lhes algo risível,

não foi considerado assim pelos ouvintes. Estava repleto de alegorias, e

prendeu a atenção do auditório do começo ao fim.

"Olá, caro senhor, como vai?", foi como o saudei certa manhã.

"Alegra-me vê-lo tão bem em sua idade." "Sim", disse ele, "estou em boa

forma para um velho, e praticamente não sinto fraqueza nenhuma."

"Espero que o seu bom estado de saúde continue durante anos ainda, e

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 150

que, como Moisés, desça ao túmulo sem se escurecerem os seus olhos e

sem perder o seu vigor." "Ótimo tudo isso!", disse o velho cavalheiro,

"mas, em primeiro lugar, Moisés nunca desceu ao túmulo, mas subiu a

ele; e, em segundo lugar, qual é o significado de tudo isso que está

falando? Por que os olhos de Moisés não se escureceram?" "Suponho,

senhor", disse eu com muita brandura, "que o seu modo natural de viver

e o espírito tranqüilo o ajudaram a conservar as suas faculdades e a fazer

dele um vigoroso ancião." "Muito provável", disse ele, "mas não era

nisso que eu estava pensando; qual o sentido, o ensinamento espiritual da

coisa toda? Não será este? – Moisés é a lei, e que glorioso fim o Senhor

deu à lei no monte em que consumou a Sua obra!Com que dulçor os

Seus terrores foram postos a dormir com um beijo da boca de Deus! E,

note bem, a razão pela qual a lei não nos condena mais, não é que os

seus olhos se escureceram, como se ela não pudesse ver o nosso pecado,

ou porque perdeu o seu vigor com o qual pudesse amaldiçoar e punir;

mas Cristo a levou ao alto do monte, e gloriosamente lhe deu fim."

Era essa a sua maneira comum de falar, e assim era o seu

ministério. Paz para as suas cinzas! Apascentou ovelhas nos primeiros

anos da sua vida, e foi pastor de homens depois disso, e, como

costumava dizer-me, "achava os homens muito mais dóceis do que

aqueles tímidos animais". Os conversos que acharam o caminho do céu

sob o seu trabalho foram tantos que, quando os lembramos, ficamos

como aqueles que viram o coxo saltando pela palavra de Pedro e João;

estavam dispostos a criticar, mas, vendo o homem que fora curado, de pé

junto de Pedro e João, nada puderam dizer contra.

Com isto encerro, reafirmando a opinião de que, guiados pela

discrição e pelo bom siso, podemos empregar ocasionalmente a

espiritualização com bom efeito para os nossos ouvintes; certamente os

interessaremos e os manteremos despertos.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 151

A VOZ

Nossa primeira regra quanto à voz seria – não pensem muito nisso,

pois, conseguir a voz mais agradável nada é, se não houver algo que

dizer, e por melhor que seja a utilização dela, será como uma carruagem

bem dirigida, vazia no seu interior, a menos que vocês transmitam por

meio dela verdades importantes e oportunas a seu povo. Sem dúvida

Demóstenes estava certo atribuindo um primeiro, segundo e um terceiro

lugar à boa transmissão; mas que valor terá, se o homem não tiver nada

para transmitir?

O homem dotado de voz inexcedivelmente excelente, mas

destituído de cabeça bem informada e de coração fervoroso, será "uma

voz que clama no deserto", ou, para usar a expressão de Plutarco, "Vox et

praeterea nihil" (Voz, e nada mais). Tal homem pode brilhar no coro,

mas é inútil no púlpito. A voz de Whitefield, sem o poder do coração,

não teria deixado sobre os seus ouvintes efeitos mais duradouros do que

os do violino de Paganini. Irmãos, vocês não são cantores, mas

pregadores; sua voz é de secundária importância; não se envaideçam

com ela, nem se lamentem como se fossem inválidos por causa dela,

como tantos o fazem. Uma trombeta não precisa ser feita de prata; um

chifre de carneiro basta. É preciso, porém, que agüente rude uso, pois as

trombetas são para os conflitos bélicos, não para os salões de recepção

da moda.

Por outro lado, não subestimem demais as suas vozes, pois a

qualidade excelente delas contribui grandemente para conduzir ao

resultado que vocês esperam produzir. Confessando o poder da

eloqüência, Platão menciona o tom de voz do orador. "Tão

poderosamente", diz ele, "a elocução e o tom do orador repercutem em

meus ouvidos, que dificilmente lá pelo terceiro ou quarto dia caio em

mim, percebendo em que ponto da terra estou; e por algum tempo fico

querendo acreditar que estou vivendo nas ilhas dos bem-aventurados."

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 152

Verdades sumamente preciosas podem ser grandemente maculadas

por serem transmitidas em tom monótono. Uma vez ouvi um ministro

muito estimado, mas que zumbia tristemente, como "uma humilde

abelha num jarro" – metáfora vulgar, sem dúvida, mas que oferece

descrição tão exata que traz à minha mente neste instante, e de modo

bem destacado, o som do zunido, e me faz lembrar a paródia da Elegia,

de Gray: "Da vista o tênue tema já se esvai, e dormente quietude o ar retém, salvo onde o cura voa e a zumbir vai fazendo o seu rebanho dormir bem".

Que lástima, um homem transmitir do coração doutrinas de

indubitável valor, em linguagem a mais apropriada, e cometer suicídio

harpejando numa corda só, quando o Senhor lhe deu um instrumento de

muitas cordas para tocar! Ah! aquela voz enfadonha! Zumbia e zumbia,

como uma roda de moinho, sempre no mesmo tom nada musical, quer

seu dono falasse do céu quer falasse do inferno, da vida eterna ou da ira

perpétua. Podia ficar, por acidente, um pouco mais alta ou mais suave,

conforme o comprimento da frase, mas o tom era sempre o mesmo, uma

cansativa vastidão de som, um uivante deserto de linguagem falada em

que não havia alívio possível, nem variação, nem musicalidade nada,

senão uma horrível mesmice.

Quando o vento sopra através da harpa eólia, ele ondula em suas

vibrações através de todas as cordas, mas o vento celestial, passando por

alguns homens, desgasta-se numa corda só, e isso, na maior parte,

tremendamente fora da harmonia do todo. Somente a graça poderia

capacitar os ouvintes a edificar-se debaixo do tantã de alguns ministros.

Creio que um júri imparcial daria um veredicto de sono justificável em

muitos casos em que o som proveniente do pregador acalenta os

ouvintes, fazendo-os dormir com a sua nota sempre repetida. O Dr.

Guthrie caridosamente atribui o sono dos dorminhocos de certa igreja

escocesa à má ventilação do local de reuniões; este fator tem algo que

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 153

ver com isso, mas a má condição das válvulas da garganta do pregador

talvez seja uma causa mais poderosa ainda. Irmãos, em nome de tudo

que é sagrado, toquem todo o carrilhão do seu campanário, e não

importunem o seu público com o blim-blem-blom de um pobre sino

rachado.

Quando derem atenção à voz, tenham o cuidado de não caírem nos

maneirismos habituais e comuns dos dias atuais. Raramente um homem

em doze no púlpito, fala como homem varonil. Estes maneirismos

enfatuados não se restringem aos protestantes, pois o abade Mullois

observa, "em todos os demais lugares, os homens falam; falam no balcão

e na tribuna. Já no púlpito, porém, não falam, pois ali só encontramos

linguagem fictícia e artificial, e tons falsos. Este estilo de falar só se

tolera na igreja porque, infelizmente, está por demais generalizado ali;

em nenhum outro lugar seria tolerado. Que se pensaria de um homem

que conversasse daquela maneira numa sala de visitas? Certamente

provocaria muitos sorrisos.

Há algum tempo havia um guarda do Panteão – bom sujeito a seu

modo – que, ao enumerar as belezas do monumento, adotava

precisamente o tom de muitos de nossos pregadores, pelo que nunca

deixou de provocar a hilaridade dos visitantes, que tanto se divertiam

com o seu modo de falar, como com os objetos de interesse que ele lhes

mostrava. O homem que não faz transmissão natural e genuína, não

deveria ter a permissão de ocupar o púlpito. Pelo menos dali, tudo que é

falso deveria ser banido sumariamente.

Nestes tempos de desconfiança, tudo que é falso deveria ser posto

de lado; e o melhor modo pelo qual a gente pode corrigir-se nesse

aspecto, quanto à pregação, é ouvir muitas vezes a certos pregadores

monótonos ou apaixonados. Sairemos com tanto desgosto e com tanto

horror da sua apresentação, que preferiremos reduzir-nos ao silêncio, a

imitá-los. No momento em que você abandona o natural e o genuíno,

perde o direito de ser crido, bem como o direito de ser ouvido.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 154

Irmãos, vocês podem andar por aí, visitando igrejas e congregações,

e verão que a imensa maioria dos nossos pregadores tem um tom de voz

santo para os domingos. Tem uma voz para a sala de visitas e para o

quarto de dormir, e outro tom completamente diverso para o púlpito, de

sorte que, se não são dúplices, de língua pecaminosamente, são-no por

certo literalmente. No momento em que alguns homens cerram a porta

do púlpito, deixam para trás a sua varonilidade pessoal, e se tornam tão

formais quanto o porteiro da comunidade. Quase que poderiam gabar-se

com o fariseu de que não são como os demais homens, conquanto seria

blasfêmia dar graças a Deus por isso. Deixam de ser carne e osso, já não

falam como homens, mas adotam um ganido, um roto gaguejar, um ore

rotundo (boca redonda) ou algum outro modo desgracioso de fazer

barulho, tudo isso para impedir toda suspeita de que não estão sendo

naturais e não estão falando do que está cheio o seu coração. Quando é

posta a veste sacral, quantas vezes fica patente que ela é a mortalha do

verdadeiro homem, e o efeminado emblema do formalismo!

Há dois ou três modos de falar que ouso dizer que vocês

reconhecerão tê-los ouvido muitas vezes. Aquele estilo engrandecido,

doutoral, inflado, bombástico, que há pouco chamei de ore rotundo, não

é tão comum agora como costumava ser, mas ainda é admirado por

alguns. (Desafortunadamente, não se pode representar o preletor aqui

com nenhuma forma de letra de imprensa conhecida, quando se pôs a ler

um hino com voz grandiosa, ondulante e empolada.)

Quando um respeitável cavalheiro estava certa vez soprando vapor

desse jeito, um homem no corredor da igreja disse que pensava que o

pregador "tinha engolido um bolinho quente", mas outro cochichou:

"Não, Jack, não foi isso: ele tragou um diabinho". Posso imaginar o Dr.

Johnson falando desse modo em Bolt Court; e de homens aos quais esse

estilo é natural, sai com grandiosidade olímpica; mas no púlpito, fora

com toda imitação dele, para sempre! Se vem naturalmente, muito bem e

muito bom, mas imitá-lo é trair a decência comum. Na verdade, no

púlpito, toda imitação é parente chegado de um pecado imperdoável.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 155

Há outro estilo do qual lhes rogo que não achem engraçado. É o

método de enunciação que se diz ser muito feminilmente elegante,

adocicado, delicado, tipo criadinha de salão, fútil. Opaco e enfadonho,

não sei como descrevê-lo melhor. A maioria de nós já teve a infelicidade

de ouvir estas ou algumas outras espécies do amplo gênero de falsetes,

maneirismos e altos vôos bombásticos. Ouvi-as nas mais diversas

variedades, desde as formas recheadas à Johnson, até a rala magreza do

frágil e gentil sussurro; desde o urro dos touros de Basã até o tip, tip, tip

do tentilhão. Pude seguir a pista de alguns deles até os seus antepassados

(refiro-me aos seus antepassados ministeriais) de quem recolheram

originalmente estes modos seráficos de falar, melodiosos, santificados,

belos em todos os aspectos – mas, devo acrescentar honestamente,

detestáveis! A indubitável ordem do registro genealógico da sua oratória

é como se segue: Soquinho, que era filho de Gaguejo, que era filho de

Sorrisinho, que era filho de Dândi, que era filho de Maneirismo; ou

Rebolante, que era filho de Pomposa, que era filho de Ostentação – de

muitos filhos o pai era o mesmo.

Entendam, até onde esses horrores de som sejam naturais, não os

condeno – fale cada criatura em sua própria língua. Mas o fato é que em

nove de cada dez casos, estes dialetos sagrados, que espero logo hão de

ser línguas mortas, são inaturais e forçados. Estou persuadido de que

esses tons, semitons e "monotons" são babilônicos, e absolutamente não

pertencem ao dialeto de Jerusalém, pois o dialeto de Jerusalém tem a sua

característica distintiva, que é o modo de falar próprio do homem, e esse

modo é o mesmo, fora do púlpito e dentro dele. O nosso amigo da

sofisticada escola do ore rotundo nunca foi visto falando fora do púlpito

como o faz estando nele, ou falando na sala de visitas no mesmo tom que

emprega no púlpito: "Você terá a bondade de me servir outra chávena de

chá? Usarei açúcar, se isto lhe aprouver". Far-se-ia ridículo se agisse

assim, mas o púlpito há de ser favorecido com a escória da sua voz, que

a sala de visitas não toleraria.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 156

Sustento que as melhores notas de que a voz de um homem é capaz

deveriam ser dedicadas à proclamação do evangelho, e são precisamente

as que a natureza lhe ensina a usar numa conversação séria. Ezequiel

servia a seu Senhor com as suas faculdades mais musicais e melodiosos,

de modo que Deus lhe disse: "E eis que tu és para eles como uma canção

de amores, canção de quem tem voz suave, e que bem tange". Ah! isso

de nada valeu, porém, para o duro coração de Israel, pois nada lhe valerá

exceto o Espírito de Deus; todavia, assentou bem ao profeta proclamar a

Palavra do Senhor no melhor estilo de voz e de modos.

Prosseguindo, se vocês têm quaisquer idiossincrasias no falar,

desagradáveis ao ouvido, corrijam-nas, se possível. 1 Admite-se que é

mais fácil ao professor sugerir-lhes isto do que a vocês praticá-lo.

Entretanto, para os jovens que se acham no alvor do seu ministério, a

dificuldade não é insuperável. Irmãos oriundos da zona rural têm na boca

o sabor do seu rústico regime de vida, lembrando-nos irresistivelmente

os novilhos de Essex, os leitões de Berkshire ou os animais anões de

Suffolk. Quem poderá deixar de reconhecer os dialetos de Yorkshire e

Somersetshire, que não são apenas pronúncias regionais, mas entonações

regionais também? Seria difícil descobrir a causa, mas o fato bastante

claro é que em alguns condados da Inglaterra as gargantas dos homens

parecem cobertas de pigarro, como chaleiras usadas durante muito

tempo, e noutros elas soam como música de um instrumento de latão,

com defeituoso som metálico. Estas variações da natureza podem ser

belas em sua ocasião e lugar, mas o meu gosto nunca pode apreciá-las.

Do agudo e dissonante chiado, como o de uma tesoura enferrujada,

livremo-nos a todo risco.

A mesma coisa a fala inarticulada e densa em que nenhuma palavra

é pronunciada completamente, mas os substantivos, os adjetivos e os

verbos viram uma espécie de picadinho. Igualmente objetável é aquela

1 "Cuidado com qualquer coisa que seja grosseira ou sofisticada, na gesticulação, nas frases ou na

pronúncia." – João Wesley.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 157

maneira fantasmagórica de falar em que a pessoa fala sem mover os

lábios, no mais horrível ventriloqüismo; tons sepulcrais podem servir

para levar alguém a tornar-se agente funerário, mas não se chama Lázaro

para fora do túmulo com gemidos surdos. Um dos meios mais seguros de

você matar-se é falar da garganta, e não da boca. Este uso errôneo da

natureza será vingado terrivelmente por ela; fujam da pena evitando a

ofensa.

Talvez seja bom neste ponto concitá-los a que, tão logo se dêem

conta de que estão gaguejando muito durante um discurso, tratem de

expurgar de uma vez o insinuante, mas ruinoso hábito. Não há nenhuma

necessidade dele e, embora os que agora são suas vítimas talvez nunca

possam romper as cadeias, vocês, principiantes na oratória, podem

desprezar esse exasperante jugo. É até preciso dizer, abram a boca

quando falam, pois muito resmungo desarticulado resulta de se manter a

boca meio fechada. Não é à toa que os evangelistas escreveram a

respeito de nosso Senhor: "E, abrindo a sua boca, os ensinava". Abram

bem as portas pelas quais há de sair marchando tão benéfica verdade!

Além disso, irmãos, evitem o emprego do nariz como órgão da expressão

oral, pois as melhores autoridades concordam que a função que lhe cabe

é a de cheirar. Tempo houve em que era correto falar fanhoso, mas nesta

era degenerada farão melhor em obedecer à evidente sugestão da

natureza, deixando que a boca faça o seu trabalho sem interferência do

aparelho olfativo. Se estiver presente um estudante americano, terá que

me escusar por salientar esse ponto para chamar-lhe a atenção.

Detestem também a prática de alguns que não pronunciam a letra

"r". Esse hábito é "deveuas uinoso e uidículo, deveuas uepugnante e

uepuensível". Ocasionalmente um irmão tem a ventura de possuir um

cativante e delicioso balbucio. Talvez esteja entre os menores males,

quando o próprio pregador é franzino e simpático, mas arruinaria a todo

aquele que visasse à virilidade e ao poder. Mal posso imaginar Elias

gaguejando a Acabe, ou Paulo graciosamente entrecortando as suas

palavras na Colina de Marte.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 158

Pode haver algo peculiarmente patético em olhos fracos e

lacrimejantes, bem como num estilo titubeante; iremos mais longe,

admitindo que, quando essas coisas decorrem de intensa paixão, são

sublimes. Alguns, porém, as possuem de nascimento, e as utilizam com

excessiva liberdade. Para dizer o mínimo, vocês não têm por que imitá-

los. Falem como a natureza educada lhes sugerir, e farão bem; mas que

seja a natureza educada, não a crua, rude e sem cultivo.

Como sabem, Demóstenes trabalhava a duras penas com a sua voz,

e Cícero, fraco por natureza, fez longa viagem à Grécia para corrigir o

seu modo de falar. Tendo nós temas muito mais nobres, não tenhamos

menor ambição pela excelência. "Privem-se de tudo mais", diz Gregório

de Nazianzeno, "mas, deixem-me a eloqüência, e nunca deplorarei as

viagens que fiz para estudá-la." .

Falem sempre de maneira que sejam ouvidos. Conheço um homem

de peso enorme, e que deveria poder ser ouvido a quase um quilômetro,

mas é tão insipidamente indolente que em seu pequeno local de culto

você mal pode ouvi-lo da parte da frente da galeria. Que utilidade tem

um pregador que os homens não conseguem ouvir? A modéstia deveria

levar o homem sem voz a dar seu lugar a outros mais bem dotados para a

obra de proclamar as mensagens do Rei. Alguns falam bastante alto, mas

sem clareza; suas palavras se sobrepõem umas às outras, ou brincam de

pular sela, ou passam rasteira umas nas outras.

Falar de maneira clara e definida é mais importante do que ter

muito fôlego. Dê boa oportunidade a uma palavra; não quebre as costas

dela com a sua veemência, nem lhe arranque as pernas em sua pressa. É

odioso ouvir um grandalhão murmurar e sussurrar quando os seus

pulmões são bastante fortes para possibilitar-lhe falar bem alto. Mas, ao

mesmo tempo, ainda que o pregador sempre grite vigorosamente, não

será bem ouvido se não aprender a lançar para frente as suas palavras

com o devido espaço entre elas.

Falar muito devagar é serviço miserável, e sujeita os ouvintes

mentalmente ágeis à doença chamada "horrores". É impossível ouvir um

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 159

homem que rasteja a um quilômetro por hora. Uma palavra hoje, outra

amanhã, é uma espécie de fogo lento de que somente os mártires

poderiam gostar. Falar depressa demais, com violência e furor que

resultam numa linguagem completamente bombástica, não tem desculpa

alguma. Não tem, nem nunca poderá ter poder, exceto para os idiotas,

pois transforma numa turbamulta o que deveria ser um exército de

palavras, e terá a máxima eficiência em afogar os sentidos em torrentes

de som. Ocasionalmente se ouve um enfurecido orador de fala indistinta,

cuja impetuosidade o precipita a uma tal confusão de sons, que logo a

gente se lembra dos versos de Lucan: "Sua língua mole um tom murmurante confunde, dissonante e diverso dos humanos sons; lembra o latir dos cães ou o uivar dos lobos, o soturno piar do mocho á meia-noite; das cobras o silvar, do leão o "rugir, das ondas o entrechoque, a esbater-se na praia; o gemido do vento na frondosa mata e o espocar do trovão na lacerada nuvem. Todas estas coisas numa só".

É castigo que não dá para agüentar duas vezes, ouvir quem

confunde transpiração com inspiração, e dispara como um cavalo

selvagem como um vespão no ouvido, até perder o fôlego, só fazendo

pausa para encher de novo os pulmões. A repetição desta indecência

várias vezes num sermão não é incomum, mas é muito penosa; pausa

feita a cada passo, para impedir aquele "ufa, ufa" que produz mais

piedade pelo orador ofegante do que simpatia pelo assunto tratado.

Nossos ouvintes nem devem perceber que respiramos. O processo de

respiração deve passar tão despercebido como a circulação do sangue.

Não fica bem deixar que a simples função animal de inspirar e expirar

ocasione algum hiato em nosso discurso.

Não forcem a voz ao máximo na pregação comum. Dois ou três

varões fervorosos aqui presentes andam fazendo-se em pedaços com

seus berros desnecessários; os seus pobres pulmões estão irritados, e suas

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 160

laringes estão inflamadas, por causa dos seus furiosos gritos, que

parecem incapazes de reprimir. Ora, está muito bem atender à exortação:

"Clama em alta voz, não te detenhas", mas o conselho apostólico é: "Não

te faças nenhum mal." Quando as pessoas podem ouvi-lo com a metade

da voz, é bom economizar a força excedente para as ocasiões em que

seja necessária. "Não gastes demais; falta não terás", pode aplicar-se aqui

como em qualquer outra parte. Sejam econômicos com esse enorme

volume de som. Não dêem aos seus ouvintes dor de cabeça, quando o

desejo é dar-lhes dor de coração. A intenção é impedir que durmam nos

bancos, mas, lembrem-se de que não é preciso estourar os tímpanos

deles. "O Senhor não estava no vento." Trovão não é raio. Os homens

não ouvem na proporção do barulho produzido; na verdade, barulho

demais ensurdece a gente, cria repercussões e ecos, e efetivamente

prejudica o poder dos seus sermões. Adaptem suas vozes ao auditório;

quando vinte mil estão diante de vocês, abram os registros e estrondem

com todo o vigor, mas não num recinto em que cabem apenas uma

vintena ou duas.

Sempre que entro num lugar para pregar, inconscientemente calculo

quanto som é necessário para enchê-lo, e depois de uma poucas frases, a

minha tonalidade já está ajustada. Se puderem fazer o homem que está

no outro extremo do templo ouvir, se puderem ver que ele está captando

o seu pensamento, poderão estar seguros de que os que estão mais perto

podem ouvi-los, e não será necessário pôr mais força – talvez seja bom

diminuí-la um pouco. Experimentem e vejam. Por que falar de modo que

seja ouvido na rua, quando lá não há ninguém para ouvir? Seja um

recinto fechado, seja ao ar livre, vejam que os mais distantes ouvintes

possam acompanhá-los, e isto será suficiente.

A propósito, devo observar que os irmãos deveriam, por

misericórdia dos enfermos, atentar sempre com muito cuidado para a

força das suas vozes nos quartos de doentes e nas igrejas em que se sabe

que alguns estão muito fracos. É cruel sentar-se ao pés do leito de um

enfermo e gritar: "O SENHOR É O MEU PASTOR: NADA ME FALTARÁ". Se

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 161

vocês agirem impensadamente assim, o pobre homem dirá logo que

tiverem descido as escadas: "Ai !Ai! Como me dói a cabeça! Alegra-me

que o homem tenha ido embora, Mary; esse salmo é muito precioso e

parece tão tranqüilo, mas ele o leu como raios e trovões, e quase me

deixou surdo!" Lembrem-se vocês, irmãos mais jovens e solteiros, que

suaves sussurros servirão melhor ao desvalido do que o rufar de

tambores e o estampido de trabucos.

Observem cuidadosamente a regra que manda variar a intensidade

da voz. A velha regra era: comece de modo bem suave, vá subindo o tom

gradativamente, e no fim produza as suas notas mais altas. Que esses

regulamentos sejam estourados à boca do canhão; são inoportunos e

enganosos. Falem baixo ou alto, conforme a emoção do momento lhes

sugira, e não observem normas artificiais e fantasiosas. Regras artificiais

são uma abominação total. Como M. de Cormorin satiricamente o

coloca: "Seja apaixonado, troveje, entusiasme-se, chore, até à quinta

palavra da terceira frase do décimo parágrafo da folha dez. Como seria

fácil! Sobretudo, quão espontâneo!"

Imitando um pregador popular, a quem isto era inevitável, certo

ministro se acostumou a falar em tão baixa tonalidade, que ninguém

conseguia ouvi-lo. Todos se inclinavam para diante, temendo que algo

importante se estivesse perdendo no ar, mas o esforço era vão; um santo

sussurro era tudo que podiam discernir. Se o irmão não fosse capaz de

falar, ninguém o teria acusado, mas era a coisa mais absurda fazer o que

fazia quando em curto lapso de tempo provava o poder dos seus pulmões

enchendo o edifício de sonoras frases. Se a primeira parte do seu

discurso não era importante, por que não omiti-la? Se tinha algum valor,

por que não apresentá-la audivelmente?

Efeito, cavalheiros, era o fim que tinha em vista. Ele sabia que

alguém que falava daquele modo tinha produzido efeitos grandiosos, e

esperava rivalizar com ele. Se algum de vocês ousar cometer tal loucura

com o mesmo objetivo detestável, de coração eu preferiria que essa

pessoa nunca tivesse entrado nesta instituição. Digo-lhes com a maior

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 162

seriedade que essa coisa chamada "efeito" é odiosa porque é falsa,

artificial e ardilosa manha, e, portanto, é desprezível. Nunca façam nada

para obter efeito, mas desprezem os estratagemas das mentes estreitas

que andam em busca da aprovação dos peritos em pregação que

constituem uma raça tão odiosa para o verdadeiro ministro como os

gafanhotos para o lavrador oriental. Mas estou fazendo digressão; sejam

claros e definidamente audíveis logo no início.

Os seus exórdios são bons demais para serem cochichados para o

espaço. Apresentem-nos com ousadia e conquistem a atenção desde o

começo com a sua entonação máscula. Não partam do ponto mais alto,

como regra geral, pois não conseguirá mais quando estiver aquecido com

o trabalho; todavia, falem com clareza desde as primeiras palavras.

Abaixem a voz, quando isso for pertinente, reduzindo-a até a um

sussurro, pois as expressões orais suaves, deliberadas e solenes não

somente dão alívio aos ouvidos, mas também são grandemente aptas

para atingir o coração. Não tenham medo de tonalidades baixas, pois, se

lhes imprimirem força, serão tão ouvidas como os gritos. Vocês não

precisam falar em alta voz a fim de serem ouvidos bem.

De William Pitt diz Macaulay: "Sua voz, mesmo quando afundava

até tornar-se um sussurro, era ouvida até nos mais distantes bancos da

Casa dos Comuns". Tem-se dito que não é a arma de fogo mais ruidosa

que atira mais longe a bala; o estampido de um rifle é tudo, menos

barulhento. Não é a altura da sua voz que é eficiente, mas a força que

você lhe dá. Estou certo de que poderia sussurrar e ser ouvido em todos

os cantos do nosso grande Tabernáculo, e, igualmente, estou certo de que

poderia gritar e berrar de um jeito que ninguém poderia compreender-

me. A coisa poderia ser feita aqui, mas talvez seja desnecessário o

exemplo, pois receio que alguns de vocês são capazes de fazer isso com

notável sucesso. As ondas de ar podem chocar-se com os ouvidos em tão

rápida sucessão que nenhuma impressão compreensível causam ao nervo

auditivo. A tinta é necessária para a escrita, mas se você derramar o

tinteiro numa folha de papel, não transmitirá com isso nada que tenha

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 163

algum significado. Assim é com o som. O som é a tinta, mas, requer-se

manejo – não quantidade – para produzir uma escrita inteligível para o

ouvido. Se a sua única ambição for competir com – "Estentor o forte, com pulmões de bronze, sobrepuja, e longe, o poder enorme de cinqüenta línguas",

então, berre para o Elísio tão rapidamente quanto possível, mas se quiser

ser compreendido e, assim, ser útil, evite a crítica de que é "fraco e

barulhento".

Vocês sabem, irmãos, que os sons estridentes vão longe; o singular

grito usado pelos viajores nas regiões agrestes da Austrália deve o seu

extraordinário poder à sua estridência. Ouve-se de muito mais longe um

sino do que um tambor; e, muito singularmente, quanto mais musical for

um som, maior será o seu raio de alcance. Não é preciso dar murros no

piano, mas extrair o judicioso som, dos melhores registros. Portanto,

vocês se sentirão em liberdade para abrandar o tom muitas vezes quanto

ao volume, e estarão dando grande alívio, tanto aos ouvidos dos ouvintes

como aos seus próprios pulmões. Experimentem todos os métodos, desde

o do malho até o do suave veludo. Irmãos, sejam gentis como o zéfiro e

furiosos como um furacão. Sejam, na verdade, justamente o que toda

pessoa de bom senso é em seu falar quando conversa naturalmente,

intercede veementemente, sussurra confidencial, apela sentidamente, ou

proclama com clareza.

Depois da moderação da força dos pulmões, eu coloria a regra –

modulem os tons da voz. Alterem a tonalidade com freqüência e variem a

intensidade do som constantemente. Dêem oportunidade ao baixo, ao

soprano e ao tenor. Rogo-lhes que façam isso por piedade de si mesmos

e dos que os ouvem. Deus tem pena de nós e arranja as coisas de modo

que satisfaçam ao anseio por variação; tenhamos pena dos nossos

semelhantes, e não os importunemos com o tédio da mesmice. É uma

grande barbaridade infligir aos tímpanos de uma pobre criatura humana a

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 164

angústia de ser como perfurados por broca ou verruma do mesmo som

durante meia hora. Que meio mais rápido de tornar a mente idiota ou

lunática poder-se-ia conceber do que o perpétuo zumbido de uma abelha,

ou o zunido de uma mosca varejeira no órgão da audição? Que desculpa

teríamos pela qual deveríamos ser tolerados em tanta crueldade para com

as desamparadas vítimas que se assentam sob as ministrações do tantã do

nosso tambor?

Muitas vezes a bondosa natureza poupa as infelizes vítimas do

zunido do pleno efeito das nossas torturas, fazendo-as mergulhar num

suave repouso. Contudo, não é isto que vocês querem; então falem com

variações na voz. Quão poucos ministros se lembram de que a

monotonia dá sono. Receio que a denúncia feita por um escritor na

Review Imperial seja literalmente válida quanto a numerosos irmãos

meus. "Sabemos todos como o ruído de água corrente, ou o murmúrio do

mar, ou os suspiros do vento sul entre os pinheiros, ou os queixumes dos pombos do mato induzem a um delicioso e sonolento langor. Longe de nós dizer que a voz de um clérigo moderno se parece, no mínimo grau, com qualquer desses suaves sons; todavia, o efeito é o mesmo, e poucos podem resistir às letárgicas influências de uma longa dissertação feita sem a mais ligeira variação de tom ou alteração da expressão."

De fato, o uso muito excepcional da frase, "um discurso que

desperta", mesmo por aqueles que mais conhecem do assunto, traz

consigo a implicação de que a grande maioria das arengas de púlpito é de

tendência decididamente soporífera. É um grave mal quando o pregador "Deixa os ouvintes perplexos – entre os dois, que decidir: "Vigiai e orai" diz o texto, e o sermão diz, "a dormir!"

Por mais musical que uma voz possa ser em si mesma, se vocês

continuarem tocando perpetuamente na mesma corda, os seus ouvintes

irão sentir que as suas notas, pela distância que percorrem, vão ficando

mais suaves. Em nome da humanidade, parem de entoar assim e passem

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 165

a falar racionalmente. Se este conselho não conseguir mudá-los, tenho

tanto zelo neste ponto que, se vocês não seguirem o meu conselho por dó

dos seus ouvintes, fá-lo-ão por dó de si próprios, pois, como a Deus em

Sua infinita sabedoria sempre aprouve aplicar uma penalidade a todo

pecado contra as Suas leis naturais, bem como contra as morais, assim o

mal da monotonia é freqüentemente vingado mediante aquela perigosa

doença chamada dysphonia clericorum, ou seja, "disfonia dos clérigos".

Quando certos irmãos nossos são tão amados por seus ouvintes que

não se opõem a pagar uma bela soma para livrar-se deles por alguns

meses, quando uma viagem a Jerusalém é recomendada e providenciada,

a bronquite de diferente ordem é tão extraordinariamente dirigida para o

bem, que o meu presente argumento não perturbará a sua equanimidade.

Mas não é a sorte que nos cabe; bronquite para nós significa miséria de

verdade e, portanto, para evitá-la deveríamos seguir quaisquer sugestões

sensatas. Se vocês quiserem estragar as suas gargantas, poderão fazê-lo

depressa, mas, se quiserem conservá-las, notem bem o que terão agora

diante de si.

Muitas vezes nesta sala comparei a voz com um tambor. Se o

tamborileiro bater sempre no mesmo lugar, a pele se gastará logo e se

abrirá um buraco ali; mas, quanto mais tempo duraria se tivesse variado

os golpes e tivesse usado a superfície inteira da pele de percussão do

tambor! Assim, é com a voz humana. Se usarem sempre o mesmo tom,

acabarão abrindo um buraco na parte da garganta mais exercitada na

produção daquela monotonia, e em pouco tempo estarão sofrendo de

bronquite. Tenho ouvido cirurgiões afirmarem que a bronquite dos

dissidentes difere da que a Igreja da Inglaterra apresenta. Existe uma fala

eclesiástica fanhosa muito admirada na igreja oficial, uma espécie de

grandeza de campanário na garganta, um linguajar declamatório e um

retumbar de palavras aristocrático, teológico, clerical, supranatural, sub-

humano.

Pode-se ilustrar com os seguintes espécimes: "A lei nos serviu de

aio", descrevendo comparativamente o pregador as virtudes do alho

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 166

aplicadas à lei. Notável, senão impressionante, compreensão e aplicação

de um texto da Escritura! Quem não conhece aquela santa maneira de

pronunciar – "Caríssimamente amados irmãos, a Escritura nos comove

em diversos lugares"? Repica em meus ouvidos como o Big Ben – a par

com juvenis lembranças de monótonos repiques de "O príncipe Albert,

Albert, príncipe de Gales, e toda a família Real. ... Amém". Ora, se o

homem que fala com tanta falta de naturalidade não pegar bronquite ou

alguma outra doença, só posso dizer que as doenças de garganta devem

ser soberanamente distribuídas. Nas manias de linguagem dos não-

conformistas já dei um golpe, e acredito que é por causa delas que

laringe e pulmões se debilitam, e os homens sucumbem, reduzindo-se ao

silêncio e indo parar no túmulo.

Irmãos, se vocês quiserem saber no que me baseio para apoiar a

ameaça que lhes fiz, passo-lhes a opinião do Sr. Macready, o eminente

autor trágico, que merece ser ouvido respeitosamente porquanto olha a

questão de um ponto de vista não parcial, mas experimental. "Garganta distensa em geral não resulta tanto de exercitar o órgão

como da qualidade do exercício; isto é, não é tanto por falar muito tempo ou por falar alto, como por falar com voz simulada. Receio não ser compreendido nesta afirmação, mas suponho que não há uma pessoa em dez mil que, ao dirigir-se a um grupo de ouvintes, empregue a sua voz natural; e este hábito é mais especialmente observável no púlpito. Creio que a distensão da garganta é causada por violentos esforços feitos naqueles tons artificiais, e que a irritação grave, e muitas vezes a ulceração, é a conseqüência.

"O trabalho requerido pelos deveres de uma igreja num dia inteiro não é nada, no que diz respeito ao trabalho propriamente dito, comparado com a realização artística de um dos principais personagens de Shakespeare, e suponho que também nada é, comparado com qualquer das grandes exibições feitas pelos nossos principais estadistas nas Casas do Parlamento. E me sinto seguro de que o desarranjo que chamam de "mal de garganta de pregador" geralmente se pode atribuir ao modo de falar, e não à extensão do tempo ou à violência do esforço que se empregue. Vi vários veteranos contemporâneos de palco ficarem sofrendo da garganta, mas não

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 167

creio que se pudesse considerar essa doença como predominante entre os elementos eminentes dessa arte."

Os atores e os jurisconsultos têm muita ocasião para forçar as suas

energias vocais. Contudo, não existe uma coisa chamada mal de garganta

de tribunal, ou bronquite de ator trágico; simplesmente porque esses

homens não se atrevem a servir o público da maneira tão desmazelada

como alguns pregadores servem a seu Deus. O excelentíssimo senhor

doutor Samuel Fenwick, num tratado popular sobre "Doenças da

Garganta e dos Pulmões", diz com a maior sabedoria: "Do que se afirmou a respeito da fisiologia das cordas vocais, ficará

evidente que falar continuadamente no mesmo tom é muito mais fatigante do que se fazerem freqüentes alterações na intensidade da voz, porque, no primeiro caso, força-se um só músculo ou um só conjunto de músculos, ao passo que no segundo, diferentes músculos são postos em ação, e assim dão-se descanso uns aos outros. Do mesmo modo, levantar o braço em ângulo reto em relação ao corpo cansa-nos em cinco ou dez minutos, porque somente um conjunto de músculos tem que agüentar o peso; mas estes mesmos músculos podem trabalhar o dia inteiro se a sua ação for alternada com a de outros. Portanto, sempre que ouvimos um clérigo zunindo durante o culto, e do mesmo jeito e no mesmo tom lendo, orando e exortando, podemos estar perfeitamente certos de que ele está dando às suas cordas vocais dez vezes mais trabalho do que o absolutamente necessário."

Talvez seja este o ponto próprio para reiterar uma opinião que

várias vezes expressei neste recinto, que o autor que citei me faz

lembrar. Se os ministros falassem com maior freqüência, as suas

gargantas e os seus pulmões estariam menos sujeitos à doença. Disto

estou bem seguro; é questão de experiência pessoal e de ampla

observação, e minha confiança é que não estou enganado. Cavalheiros,

pregar duas vezes por semana é muito perigoso, mas descobri que cinco

ou seis vezes é saudável, e que até doze ou quatorze vezes não é

excessivo. Um verdureiro veria que anunciar aos gritos couve-flor e

batatas um dia por semana seria esforço mais laborioso, mas quando em

seis dias sucessivos enche as ruas, avenidas e becos com o seu sonoro

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 168

estrépito, não achará nenhuma dysphonia pomariorum (disfonia dos

fruteiros) ou "mal de garganta de verdureiro" afastando-o dos seus

modestos trabalhos. Agradou-me ver a minha opinião – de que pregar

poucas vezes é a raiz de muitos males, declarada explicitamente assim

pelo Dr. Fenwick. "Todas as indicações que aqui registrei serão ineficazes, creio eu, sem

a sistemática e diária prática da voz. Nada parece ter tanta tendência para produzir esta doença como falar prolongadamente, alternando-se isto com longos intervalos de repouso, coisa à qual os clérigos estão particularmente sujeitos. Qualquer pessoa que der um momento de consideração ao assunto entenderá prontamente isto. Se um homem ou qualquer outro animal for destinado a qualquer esforço muscular incomum,e treinado nisso regularmente todos os dias, tornará fácil o trabalho que de outra forma seria quase impossível realizar. Mas a maioria dos que exercem a carreira eclesiástica se submete a grande intensidade de esforço muscular falando apenas um dia por semana, ao passo que nos restantes seis dias raramente eles elevam a voz acima do diapasão normal. Se um ferreiro ou um carpinteiro passasse desse modo pela fadiga ligada ao exercício da sua ocupação profissional, não só ficaria despreparado para ela, mas também perderia a aptidão que tivesse adquirido. O exemplo dos mais célebres oradores que o mundo já viu prova as vantagens da regular e constante prática da alocução; e em razão disto recomendo com a máxima ênfase a todas as pessoas sujeitas a esta questão que leiam em voz alta uma ou duas vezes por dia, empregando o mesmo grau de voz que emprega no púlpito, e dando especial atenção à postura do peito e da garganta, e à clara e adequada articulação das palavras."

O Sr. Beecher é da mesma opinião, pois observa: "Os jornaleiros mostram aquilo que o pregão ao ar livre faz com os

pulmões do pregador. Que faria o orador de fala apagada e fraca, que mal consegue alcançar duzentos ouvintes com a sua voz, se tivesse que gritar anunciando a venda de jornais? Os jornaleiros de Nova York ficam de pé no início de uma rua, e mandam as suas vozes rua abaixo, por toda a extensão dela, como um atleta faria rolar uma bola por uma pista. Aconselhamos os homens que se estão preparando para profissões que exigem oratória a que se dediquem por algum tempo ao trabalho de vendedor ambulante. Os novos ministros poderiam compartilhar do serviço dos camelôs durante

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 169

algum tempo, até que soubessem abrir a boca e tivessem á laringe vigorosa e resistente".

Cavalheiros, uma regra necessária é – adaptem sempre a sua voz ao

seu assunto. Não mostrem júbilo quando o assunto é melancólico e, por

outro lado, não se arrastem pesadamente quando os tons deveriam

saltitar ágeis e alegres, como se estivessem dançando ao som das

melodias dos anjos do céu. Não me alongarei sobre esta regra, mas

fiquem certos de que é da maior importância e, se for seguida

obedientemente, sempre assegurará atenção, desde que a sua exposição a

mereça. Adaptem sempre a voz ao assunto e, acima de tudo, sejam

naturais em todas as coisas. Fora para sempre com a servidão a regras e

modelos. Não imitem as vozes de outrem, mas se por uma invencível

propensão as reproduzem, então imitem as melhores qualidades de cada

orador, e o mal estará diminuído. Eu mesmo, por uma espécie de

influência irresistível, sinto-me arrastado a ser um imitador, de sorte que

uma viagem pela Escócia ou Gales afetará substancialmente a minha

pronúncia e a minha entonação por uma semana ou duas. Lutar contra

isso eu luto, mas aí está, e o único remédio que conheço para curá-lo é

deixar que o defeito morra de morte natural.

Cavalheiros, volto à minha regra – usem as suas vozes naturais.

Não sejam macacos, mas homens; não papagaios, mas homens capazes

de originalidade em todas as coisas. Diz-se que a maneira mais

conveniente de um homem usar a barba é aquela em que a barba cresce

ajustando-se ao rosto, na cor e na forma. Os seus próprios modos de falar

deverão estar ao máximo em harmonia com os seus métodos de

pensamento e com a sua personalidade. A mímica é para o teatro; o

homem ilustrado em sua personalidade santificada é para o santuário. Eu

repetiria até ao cansaço esta regra, se pensasse que vocês poderiam

esquecê-la; sejam naturais, sejam naturais, sejam perpetuamente

naturais. Uma simulação da voz ou uma imitação da maneira do Dr.

Silvertongue (Língua de Prata), o eminente teólogo, ou mesmo de um

estimadíssimo preceptor ou diretor, inevitavelmente os arruinará. Dou-

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 170

lhes a incumbência de lançar fora o servilismo da imitação e de elevar-se

à originalidade viril.

Diletos irmãos, somos obrigados a acrescentar – esforcem-se para

educar a voz. Não lamentem as penas e os trabalhos requeridos para

realizar isso, pois, como já se observou bem, "Por mais prodigiosos que

sejam os dons da natureza a seus eleitos, só podem ser desenvolvidos e

levados à sua extrema perfeição pelo trabalho e pelo estudo". Pensem em

Miguel Ângelo trabalhando uma semana sem trocar de roupa, e em

Handel deixando côncava como uma colher cada tecla do seu cravo pela

prática incessante. Cavalheiros, depois disso, nunca falem de dificuldade

ou cansaço. É quase impossível ver a utilidade do método de falar de

Demóstenes, com pedras na boca, mas qualquer um pode perceber como

é útil argumentar com as ruidosas e encapeladas ondas, para que fosse

capaz de fazer-se ouvir nas tumultuadas assembléias dos seus patrícios; e

por que falava enquanto subia correndo morro acima para que os seus

pulmões acumulassem força, graças ao seu uso laborioso, a razão é tão

óbvia como recomendável é a abnegação.

Cabe-nos usar todos os meios possíveis para aperfeiçoar a voz, com

a qual havemos de expor o glorioso evangelho do Deus bendito. Tenham

grande cuidado com as consoantes, enunciando com clareza cada uma

delas; são as feições e as expressões das palavras. Pratiquem

infatigavelmente, até darem a cada uma das consoantes o que lhe é

devido; as vogais têm a voz que lhes é própria, e portanto podem falar

por si mesmas. Em todas as outras questões exerçam uma disciplina

rígida até dominarem a sua voz e tê-la à mão como um corcel bem

treinado. Os cavalheiros de peito estreito são aconselhados a exercitar-se

com halteres todas as manhãs, ou melhor ainda, com aqueles peitorais

que esta escola providenciou para vocês.

Irmãos, vocês precisam ter ampla caixa torácica e devem fazer o

melhor que puderem para consegui-la. Não falem com as mãos metidas

nos bolsos do colete, contraindo deste modo os pulmões, mas lancem

para trás os ombros, como fazem os cantores públicos. Não se inclinem

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 171

sobre uma escrivaninha enquanto falam e nunca abaixem a cabeça sobre

o peito enquanto pregam. Para cima, e não para baixo, façam curvar-se o

corpo. Fora com todas as gravatas apertadas e com coletes fechados até

em cima; dêem lugar ao pleno desempenho dos foles e tubos sonoros.

Observem as estátuas dos oradores gregos e romanos, olhem um quadro

de Paulo feito por Rafael, e, sem artificialismo pedante, adotem com

naturalidade as atitudes elegantes e convenientes ali retratadas, pois são

as melhores para a voz.

Peçam a um amigo que lhe diga quais são as suas falhas, ou melhor

ainda, acolham bem um inimigo que os vigie com rigor e os aguilhoe

com selvageria. Que bênção será para o sábio um crítico irritante assim,

mas quão intolerável para o tolo! Corrijam-se a si mesmos, com

diligência e com freqüência, ou cairão inadvertidamente em erros, os

tons falsos se desenvolverão, ou hábitos desordenados se formarão

insensivelmente; portanto, façam autocríticas com incessante vigilância.

Não considerem pouco aquilo pelo que vocês possam vir a ser um pouco

mais útil. Mas, cavalheiros, jamais degenerem nesta atividade,

transformando-se em janotas do púlpito, que pensam que a gesticulação

e a voz são tudo. Meu coração padece quando ouço falar de homens que

tomam a semana toda para fazer um sermão, sendo que o preparo todo

consiste em repetir as suas preciosas produções diante do espelho!

Ai desta era, se corações destituídos da graça hão de ser perdoados

por amor à graça das suas maneiras. Oxalá nos dêem todas as

vulgaridades do mais rude pregador itinerante dos rincões mais

afastados, antes que a perfumada lindeza do donaire efeminado. Como

eu não os aconselharia a serem fastidiosos com suas vozes, tampouco os

recomendaria que imitassem o Sr. Taplash (amigo de Rowland Hill) com

o seu anel de diamante, seu lenço repassado de fino perfume, e seu

monóculo. Os elementos refinados estão deslocados no púlpito;

deveriam ser colocados numa vitrina, com uma etiqueta: "Este artigo

elegante completo, com o Dr. Fulano incluído, 10 libras e 10 xelins".

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 172

Talvez seja este o momento para observar que seria bom se todos os

pais dessem mais atenção aos dentes dos seus filhos, desde que dentes

defeituosos podem causar sério prejuízo a um orador. Há homens de

articulação defeituosa que deveriam procurar logo um dentista (refiro-

me, é claro, a um dentista cientificamente perito e experimentado), pois

alguns dentes postigos ou algum outro acerto simples seriam uma bênção

permanente para eles. O meu dentista anota mui sensatamente em sua

circular: "Quando se perdem alguns ou todos os dentes, segue-se uma

contração dos músculos do rosto e da garganta, os outros órgãos da voz que estavam habituados aos dentes ficam prejudicados e são deslocados da sua função normal, produzindo uma falha, um entorpecimento ou uma depressão, como num instrumento musical deficiente numa nota. Em vão se esperará sinfonia perfeita e inflexão proporcional e harmoniosa com a nota, a tonalidade e o volume da voz, se os órgãos forem deficientes e, naturalmente, a articulação ficará defeituosa. Esse defeito aumenta muito o esforço para falar, para dizer o mínimo, e em muitíssimos casos, o resultado é gaguejo, ou uma queda rápida ou brusca da fluência, ou uma transmissão fraca. De deficiências mais sérias, quase certamente resultarão chiados e estalos".

Quando o mal for este e a cura estiver ao nosso alcance, temos a

obrigação de utilizar-nos dela, por amor do nosso trabalho. Os dentes

podem parecer coisa sem importância, mas convém lembrar que nada é

pequeno numa Vocação tão grande como a nossa. Nas observações

subseqüentes mencionarei questões menores ainda, mas o faço com a

profunda impressão de que sugestões sobre coisas insignificantes podem

ser de valor incalculável para livrar-lhes de graves omissões ou erros

grosseiros.

Finalmente, com relação às suas gargantas, eu gostaria de dizer –

cuidem delas. Tenham o cuidado de limpá-las bem quando estiverem

perto da hora de falar, mas não fiquem a limpá-las constantemente

enquanto estiverem pregando. Um irmão muito estimado, meu

conhecido, fala sempre deste jeito – "Prezados amigos – hem, hem – é

um assunto – hem – muito importante o que agora – hem, hem – lhes

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 173

apresento, e – hem, hem – lhes peço que me dêem – hem, hem – a sua

mais cuidadosa – hem atenção". Evitem isto com o máximo empenho.

Outros, por falta de limpeza da garganta, falam como se estivessem

entupidos e a ponto de expectorar; seria melhor que o fizessem de uma

vez, em lugar de deixar enjoado o ouvinte com repetidos sons

desagradáveis. Fungar e aspirar pelo nariz são desculpáveis quando o

pregador está resfriado, mas são extremamente desagradáveis, no entanto

se se tornam habituais, deveriam ser indiciados como infrações contra o

"decreto dos aborrecimentos". Rogo escusas, pois pode parecer vulgar

mencionar essas coisas, mas se derem atenção às claras e francas

observações feitas nesta sala de aulas poderão livrar-se de muitos

motejos feitos ás suas custas mais tarde.

Depois de terem pregado, cuidem das suas gargantas, não as

envolvendo com agasalhos exagerados. Com base em experiência

pessoal, aventuro-me a dar-lhes este conselho de maneira um tanto

confidencial. Se alguns de vocês possuem cachecóis de lã deliciosamente

quentes, com os quais talvez estejam associadas as mais ternas

recordações da mãe ou da irmã, estimem-nos – mas entesourem-nos no

fundo do baú; não os exponham a nenhum uso vulgar envolvendo com

eles os seus pescoços. Se algum colega quiser morrer de gripe, basta usar

uma cálida manta estreita ao redor do pescoço; depois, numa noite

qualquer a esquecerá e pegará um resfriado daqueles, que durará pelo

resto da sua vida. Raramente se vê um marinheiro com o pescoço

agasalhado. Não. Ele sempre o mantém nu e exposto, com colarinho

aberto e baixo, e se chega a usar gravata, é das pequenas e de laço solto,

de modo que o vento possa soprar em torno do seu pescoço. Sou firme

seguidor desta filosofia, e nunca me desviei dela nestes últimos quatorze

anos, tendo sofrido resfriado muitas vezes antes disso, e raramente

depois. Se acham que lhes falta algo, deixem crescer a barba, ora! Hábito

muito natural, bíblico, másculo e benéfico. Um dos nossos irmãos, aqui

presente, já faz anos que acha isso muito útil. Foi compelido a sair da

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 174

Inglaterra por perder a voz, mas ficou forte como Sansão, agora que as

suas melenas ficam sem tosquiar.

Se suas gargantas ficarem afetadas, consultem um médico, ou, se

não puderem fazer isso, dêem a atenção que lhes aprouver à seguinte

idéia: Jamais comprem nenhum dos dez mil emolientes compostos –

xaropes, pastilhas, descongestionantes – que a propaganda popular exalta.

Podem servir-lhes por uma vez, removendo o incômodo do momento,

mas arruínam a garganta com as suas qualidades relaxantes. Se quiserem

melhorar as suas gargantas, tomem uma boa porção de pimenta – da boa

pimenta de Caiena, e outras substâncias adstringentes, na quantidade que

o seu estômago puder agüentar. Não vão além dessa medida, porque

precisam lembrar-se de que devem cuidar do estômago, bem como da

garganta, e se o aparelho digestivo sofrer desarranjo, nada poderá

funcionar bem. O bom senso ensina que os adstringentes só podem ser

úteis.

Alguma vez vocês ouviram falar que o curtidor transforma pele

crua em bom couro deixando-a embebida em açúcar? Tampouco servirão

ao propósito dele o bálsamo-de-tolu, a ipecacuanha e o melado, mas

justamente o contrário; se ele quer enrijecer e fortalece a pele, coloca-a

numa solução de casca de carvalho ou tanino, ou de alguma substância

adstringente capaz de fazer contrair-se o material e de fortalecê-lo.

Quando comecei a pregar no Exeter Hall, a minha voz era fraca

para aquele local – tão fraca como as vozes em seu curso normal, e

muitas vezes me faltava completamente quando pregava na rua. Mas no

Exeter Hall (lugar geralmente difícil para ser usado para pregação, por

sua excessiva largura, desproporcional ao seu comprimento), eu sempre

tinha bem perto de mim um vidrinho de vinagre com pimenta e água.

Um gole daquilo parecia dar novas forças à garganta, sempre que esta ia

ficando cansada e a voz parecia sucumbir. Quando a minha garganta se

enfraquece um pouco, normalmente peço ao cozinheiro que me prepare

uma tigela de caldo de carne, com tanta pimenta quanta se pode

agüentar, e até aqui isso tem sido um soberbo remédio.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 175

Todavia, como não estou qualificado para a prática da medicina,

vocês não me darão mais atenção nas questões médicas do que a

qualquer outro charlatão. Minha convicção é que metade das

dificuldades relacionadas com a voz nos nossos primeiros tempos

desaparecerá com o passar dos anos e, com a prática, desenvolverá uma

segunda natureza.

Quero encorajar os que de fato são zelosos, a perseverarem. Se

sentem a Palavra do Senhor arder como fogo nos seus ossos, até a

gagueira poderá ser vencida, e o medo, com os seus resultados

paralisantes, poderá ser banido. Coragem, jovens irmãos! Perseverem, e

Deus, a natureza e a prática os ajudarão.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 176

ATENÇÃO

Praticamente nunca notei a presença do assunto de que vamos tratar

em nenhum livro de homilética – fato deveras curioso, pois é matéria de

suma importância, fazendo jus a mais de um capítulo. Suponho que os

sábios em homilética acham que os seus volumes estão inteiramente

temperados com este assunto, e que não têm por que no-lo dar em

pedaços, uma vez que, como o açúcar no chá, ele impregna todo o

conjunto do seu sabor. O tópico omitido é: COMO OBTER E RETER A

ATENÇÃO DOS NOSSOS OUVINTES. A atenção deles tem que ser

conquistada, ou nada se poderá fazer com eles; e tem que ser retida, ou

poderemos continuar levando as palavras a passear, sem colher benefício

algum.

Acima do cabeçalho das proclamações militares os nossos oficiais

ingleses sempre apõem a palavra "ATENÇÃO!", com enormes letras, e

precisamos de uma palavra como essa para colocar no alto de todos os

nossos sermões. Precisamos da fervorosa, singela, desperta e continuada

atenção dos que compõem a congregação. Se a mente dos homens

estiver vagando longe, não poderá receber a verdade, e é como se

estivesse inativa. O pecado não pode ser arrancado dos homens enquanto

estiverem dormindo, como Eva foi arrancada do lado de Adão. Precisam

estar acordados, compreendendo o que dizemos e sentindo a sua força,

ou então podemos ir dormir também.

Há pregadores que pouco se importam se estão sendo ouvidos ou

não, desde que preencham o tempo determinado. É-lhes de somenos

importância se o público ouve para a eternidade ou se ouve em vão.

Quanto mais depressa esses ministros dormirem no cemitério e pregarem

por meio do epitáfio gravado nos seus túmulos, tanto melhor.

Alguns irmãos falam para o alto, dirigindo-se ao ventilador, como

se buscassem a atenção dos anjos; outros olham para baixo, para o seu

livro, como se estivessem absortos a pensar, ou tivessem a si próprios

como ouvintes e se sentissem muito honrados com isso. Por que esses

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 177

irmãos não pregam nos prados, edificando as estrelas do firmamento? Se

a sua prédica não tem relação com os seus ouvintes, bem que poderiam

fazer isso com evidente propriedade. Se o sermão for um solilóquio,

quanto mais sozinho estiver o executante, melhor. A um pregador

racional (e nem todos são racionais) só pode parecer essencial interessar

todos os seus ouvintes, do mais velho ao mais novo. Nem mesmo as

crianças devemos fazer com que fiquem desatentas. "Fazer com que

fiquem desatentas", o senhor diz, "quem faz isso?" Afirmo que a maioria

dos pregadores o faz. E quando as crianças não ficam quietas numa

reunião, a culpa é tanto nossa como delas.

Você não poderia introduzir uma breve estória ou parábola de

propósito para os pequeninos? Você não pode captar o olhar do menino

que está na galeria e o da garota embaixo, agitados, e com um sorriso

trazê-los à ordem? Muitas vezes eu falo com os olhos aos rapazes órfãos

que ficam aos pés do meu púlpito. Queremos todos os olhos fitos em nós

e todos os ouvidos abertos para nós. Para mim é um aborrecimento se

mesmo um cego não me olha com o seu rosto. Se vejo alguém virando-

se para os lados, cochilando, cochichando ou olhando o relógio, julgo

que não estou atingindo o alvo e que de algum modo devo conquistar

aquelas mentes. Muito raramente tenho de queixar-me, e quando o faço,

meu plano geral é queixar-me de mim mesmo, e reconhecer que não

tenho direito à atenção se não sei captá-la.

Agora, há algumas congregações cuja atenção você não consegue

prontamente; não se preocupam em interessar-se. É inútil repreendê-las;

seria como atirar um penacho numa ave para apanhá-la. O fato é que na

maior parte dos casos há outra pessoa que você deve repreender, e essa

pessoa é você mesmo. Pode ser dever dos ouvintes dar atenção, mas é

muito mais dever seu fazê-los prestar atenção. Você tem que atrair os

peixes para o seu anzol, e se eles não vêm, você deve culpar o pescador,

e não os peixes. Constrange-os a ficarem quietos por um pouco, e a

ouvirem o que Deus, o Senhor, quer falar às suas almas. O ministro que

recomendou à velha senhora a tomar rapé para evitar o sono, foi

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 178

censurado pela resposta que recebeu – que se ele pusesse mais rapé no

sermão, ela ficaria bem desperta. Devemos lançar bastante rapé no

sermão, ou algo mais forte ainda para despertar os ouvintes. Lembre-se

de que para alguns elementos da audiência não é fácil manter-se atentos;

muitos deles não estão interessados no assunto, e não há qualquer

operação da graça nos seus corações que os leve a confessar que o

evangelho tem algum valor especial para eles. A respeito do Salvador

que você apregoa, pode dizer-lhes: "Nada vos significa contemplar a cruz? Nada vos significa a morte de Jesus?"

Muitos deles sucumbiram durante a semana sob o peso das

preocupações com os seus negócios. Deviam transferir o seu fardo para o

Senhor; mas você age sempre assim? Você acha sempre fácil escapar das

inquietações? Você é capaz de esquecer em casa a esposa exausta e os

filhos doentes? Não há dúvida nenhuma de que muitos entram na casa de

Deus sobrecarregados de preocupações com as suas atividades diárias. O

agricultor lembra-se dos campos que precisam ser arados ou semeados; é

um domingo chuvoso, e ele fica refletindo sobre o dourado panorama

dos trigais novos. O mercador vê aquela fatura desonrada ondulando

diante dos seus olhos, e o comerciante calcula as suas perdas por alheias

dívidas irrecuperáveis. Não me espantaria se as cores dos adornos das

senhoras e o ranger das botinas dos cavalheiros perturbassem a muitos.

Há molestos insetos ao redor, você sabe: Belzebu, o deus dos insetos,

cuida para que onde houver uma festa do evangelho, os convidados

sejam atormentados com pequenas contrariedades.

Muitas vezes mosquitos mentais picam o homem enquanto você lhe

está pregando, e ele fica pensando mais em distrações fúteis do que no

seu discurso; é de admirar muito que ele aja assim? Você tem que

mandar embora os mosquitos e conseguir que os ouvintes não fiquem

distraídos com outros pensamentos, retirando-os do canal em que

estiveram rodando seis dias e colocando.os num canal próprio para o dia

do Senhor. Você precisa ter força de alavanca suficiente em seu discurso

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 179

e em seu assunto para erguê-los acima da terra à qual estão apegados, e

elevá-los para mais perto do céu.

Com os ouvintes acontece freqüentemente que é muito difícil

prestar atenção por causa do lugar e da atmosfera. Por exemplo, se o

lugar é como esta sala neste momento, selada contra o ar puro. com todas

as janelas fechadas, eles têm trabalho bastante para respirar, e não podem

pensar em mais nada. Quando as pessoas inalam repetidamente o ar que

já esteve nos pulmões dos outros, toda a maquinaria da vida se

desengrena, e elas ficam mais propensas a ter dor de cabeça do que dor

de coração. A segunda melhor coisa depois da graça de Deus para o

pregador é o oxigênio. Ore para que se abram as janelas do céu, mas

comece abrindo as janelas do seu salão de cultos. Verifique muitos dos

nossos templos rurais, e receio que também as nossas capelas urbanas, e

verá que as janelas não foram feitas para serem abertas. O bárbaro estilo

moderno de construção não nos dá mais teto do que um celeiro, nem

mais aberturas para ventilação do que encontraríamos num calabouço

oriental onde o tirano esperava que o seu prisioneiro morresse pouco a

pouco.

Que pensaríamos de uma casa em que as janelas não pudessem ser

abertas? Algum de vocês alugaria uma moradia dessas? Entretanto, a

arquitetura gótica e o orgulho tolo levam muitas pessoas a renunciarem à

salutar janela de caixilhos por pequeninos buracos no teto, ou por

alçapões para pássaros no lugar das janelas, e assim os locais se tornam

menos confortáveis do que a fornalha de Nabucodonosor para Sadraque,

Mesaque e Abede-Nego. Sob a condição de que tais capelas fossem

convenientemente postas no seguro, eu não poderia orar por sua

preservação do fogo. Mesmo onde as janelas podem ser abertas, muitas

vezes ficam fechadas meses inteiros, e de domingo a domingo a

atmosfera impura não é renovada. Não se deveria tolerar isto.

Conheço algumas pessoas que não ligam para essas coisas, e já ouvi

a observação de que as raposas não morrem pelo mau cheiro das suas

covas. Mas eu não sou raposa, e o ar viciado nos deixa lerdos, a mim e

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 180

aos meus ouvintes. A sensação do ar fresco percorrendo o edifício

poderia ser para o público a melhor coisa depois do evangelho; pelo

menos o colocaria em adequada disposição mental para receber a

verdade. Durante os dias da semana, dê-se ao trabalho de retirar o

empecilho causado pelo ar poluído.

Na capela em que eu pregava anteriormente, na Park Street,

mencionei várias vezes aos oficiais a minha opinião de que seria melhor

tirar as vidraças superiores das janelas de estrutura de ferro, pois as

janelas não eram de abrir. Falei disso diversas vezes, e nada consegui.

Providencialmente, porém, aconteceu que numa segunda-feira alguém

tirou a maior parte daquelas vidraças, e de maneira magistral, quase tão

bem como se os vidros tivessem sido retirados por um vidraceiro. Houve

considerável consternação e muita conjetura quanto a quem teria

cometido o crime, e propus que se oferecesse uma recompensa de cinco

libras pela descoberta do ofensor que, quando encontrado, deveria

receber a quantia de presente. Não se concretizou a recompensa e,

portanto, não me senti na obrigação de delatar o indivíduo. Espero que

ninguém desconfie de mim, pois, se vocês desconfiarem, terei que

confessar que ando com a bengala que fez o oxigênio entrar naquele

sufocante edifício.

Às vezes os modos do nosso público são avessos à atenção. Não

têm o hábito de prestar atenção. Prestam serviço freqüentando a capela,

mas não prestam atenção ao pregador. Estão acostumados a olhar em

torno cada vez que alguém entra no recinto, e chegam a qualquer hora, e

às vezes com muito sapateado, ranger de botas e bater de portas.

Uma vez eu estava pregando a pessoas que continuamente olhavam

para os lados, e adotei o expediente de dizer: "Agora, amigos, como

vocês estão muito interessados em saber quem chega, e como o muito

olhar em volta de vocês me perturba muitíssimo, se quiserem, eu

descreverei cada pessoa que entrar, de modo que podem ficar sentados e

olhando para mim, e façam pelo menos uma demonstração de decência".

Descrevi um cavalheiro que entrou, que sucedeu ser um amigo que, sem

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 181

ofensa, pude retratar como "um cavalheiro muito respeitável que acabou

de tirar o chapéu", e assim por diante; e depois dessa única tentativa,

achei que não era necessário descrever mais ninguém, porque ficaram

chocados com o que eu estava fazendo, e lhes afirmei que eu tinha ficado

muito chocado por tornarem necessário que eu reduzisse a conduta deles

àquele absurdo. Curei-os na ocasião, dando – espero que para sempre –

muita alegria a seu pastor.

Suponhamos agora que tudo isso foi acertado. Você pôs para fora

do recinto o ar viciado e corrigiu os modos do povo. O que vem em

seguida? Para conseguir a atenção, a primeira regra de ouro é, sempre

diga algo que valha a pena ouvir. Na maioria, as pessoas possuem um

instinto que as leva a desejar ouvir coisa boa. Têm também um instinto

similar, que seria melhor você anotar, a saber, um instinto que as impede

de ver benefício em ouvir atentamente meras palavras. Não é crítica

severa dizer que há ministros cujas palavras são grandemente

proporcionais aos seus pensamentos. De fato, as suas palavras escondem

os seus pensamentos, se é que eles têm algum. Despejam montões de

palha, e, talvez haja em algum lugar um ou dois feixes de aveia, mas

seria difícil dizer onde. As igrejas não ficarão muito tempo escutando

palavras, palavras, palavras e nada mais. Não me ocorre que entre os

mandamentos exista um que diga: "Não serás verboso", mas talvez esteja

compreendido neste mandamento: "Não furtarás"; pois é defraudar os

ouvintes dar-lhes palavras em vez de alimento espiritual.

"Na multidão de palavras não falta transgressão", mesmo no melhor

pregador. Dê aos seus ouvintes algo que eles possam entesourar e

recordar; algo que tenha a probabilidade de ser-lhes útil, a melhor

matéria do melhor de todos os lugares, sólida doutrina da Palavra de

Deus. Dê-lhes o maná repassado do frescor dos céus; não a mesma coisa

repetida o tempo todo, sempre da mesma forma, ad nauseam (até causar

náusea), como pão de cadeia fornecido da mesma forma o ano inteiro.

Dê-lhes algo notável, algo que possa levar um homem a levantar-se no

meio da noite para ouvir, e que valha uma caminhada de oitenta

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 182

quilômetros para ouvi-lo. Irmãos, vocês são capazes de fazer isso.

Façam-no continuamente, e terão toda a atenção que possam desejar.

Disponham com bastante clareza a boa matéria que vocês lhes

querem dar. Há muita coisa incluída nisto. É possível amontoar uma

imensa massa de coisas boas, tudo em desordem. Desde o dia em que fui

à venda com uma cesta e comprei meio quilo de chá, duzentos gramas de

mostarda e dois quilos de arroz, e, de caminho para casa vi uma matilha

de cães e achei necessário segui-los através de cercas e valados (como

sempre fazia quando menino), e ao chegar em casa vi que os artigos

estavam amalgamados – o chá, a mostarda e o arroz – numa terrível

confusão, compreendi a necessidade de embalar os meus assuntos em

porções bem firmes, amarradas com o cordão do meu discurso. E isto me

faz manter-me no estilo "primeiro, segundo e terceiro", por mais fora da

moda que esteja este método na atualidade. O povo não tomará vosso

chá misturado com mostarda, nem gostará dos vossos sermões

desordenados, nos quais vocês não podem saber qual é a cabeça e qual a

cauda, porque não têm nem uma nem outra, mas são como o cãozinho

peludo do Sr. Bright, cuja cabeça e cauda são iguais. Coloquem diante

dos homens a verdade de maneira lógica e ordenada, de modo que

possam lembrá-la com facilidade, e eles a receberão mais prontamente.

Além disso, certifiquem-se de que falam com clareza, porque, por

mais excelente que seja o argumento, se o ouvinte não o entende, não lhe

é útil. Se é para usar frases que estejam completamente fora do

conhecimento dele, e todos de expressão não ajustados à sua mente,

tanto faz vocês falarem na sua língua ou na de Kamchatka.* Subam ao

nível dele, se se tratar de homem simples; desçam à sua capacidade de

compreensão, se for uma pessoa instruída. Vocês dão risada por eu torcer

os termos desta maneira, mas acho que ser claro para os iletrados é mais

"subir" do que ser refinado para os polidos. De qualquer forma, é o mais

difícil dos dois, e mais parecido com o modo de falar do Salvador. É

* Península asiática, outrora parte da Sibéria. Nota do Tradutor.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 183

sábio andar num passo em que os seus ouvintes podem acompanhá-lo,

em vez de dar-se ares de importância e ir por cima das cabeças deles. O

nosso Senhor e Mestre foi o Rei dos pregadores e, contudo, nunca esteve

acima da compreensão de ninguém, salvo naquilo que se refere à

grandiosidade e glória do Seu assunto. Suas palavras e declarações eram

tais que Ele falava como "o santo menino Jesus". Cogitem os seus

corações boa matéria, arrumada com clareza e simplicidade, e é mais que

certo que vocês ganharão o ouvido, como também o coração.

Atentem também para o modo de apresentar a mensagem; visem

com ela a incentivar a atenção dos ouvintes. E aqui devo dizer – como

regra geral, não leiam os seus sermões. Tem havido uns poucos leitores

de sermões que exercem grande poder, como, por exemplo, o Dr.

Chalmers, que não poderia ter tido audiência mais atenta se falasse

improvisadamente. Mas o caso é que não suponho que somos iguais ao

Dr. Chalmers. Homens eminentes assim podem ler, se o preferirem, mas

para nós "há um caminho ainda mais excelente". A melhor leitura que já

ouvi tinha gosto de papel, e ficou entalada na minha garganta. Não me

agradou, porque minha digestão não é tão boa que possa dissolver folhas

de papel. É melhor dispensar o manuscrito, mesmo que vocês sejam

obrigados a recitar. Melhor ainda se vocês não precisarem nem de recitar

nem de ler. Se tiverem que ler, tratem de fazê-lo com perfeição. Sejam

dos melhores leitores, e terão que o ser, se quiserem garantir atenção.

Deixem-me dizer aqui – se quiserem ser ouvidos, não exagerem na

alocução improvisada, pois isso é tão ruim como a leitura, e talvez pior,

a menos que o manuscrito tenha sido redigido improvisadamente, quero

dizer, sem estudo prévio. Não vá para o púlpito para dizer a primeira

coisa que venha à mão, pois na maioria dos homens a coisa impensada é

mera espuma. Os seus ouvintes precisam de discursos preparados com

muita oração e muito trabalho. O povo não quer alimento cru; deverá

recebê-lo cozido e pronto para ser servido. Devemos dar do íntimo das

nossas almas, com as palavras que surgirem naturalmente, o assunto

preparado tão completamente tal qual o pudesse fazer o escritor de

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 184

sermões; de fato, deve ser mais bem preparado ainda, se é que queremos

falar bem. O melhor método é, em meu juízo, aquele em que o homem

não apresenta improvisadamente a matéria, mas, as suas palavras são

improvisadas. A linguagem lhe vem de improviso, mas o tema foi objeto

de muito pensamento, e, como mestre em Israel, fala do que sabe, e

testifica do que viu.

A fim de conseguirem a atenção, ajam de maneira tão agradável

quanto possível. Por exemplo, não cedam ao uso do mesmo tom de voz.

Variem continuamente a voz. Variem também a velocidade no falar –

lancem-se rápidos como o fulgor do relâmpago, e, daí a pouco,

prossigam com serena majestade. Mudem a tônica, alterem a ênfase e

evitem o falar cantante. Variem a tonalidade; usem às vezes o baixo,

deixando os trovões rolarem nele; outras vezes falem como deveriam

fazê-lo geralmente – com os lábios, e dêem tom coloquial à pregação.

Faça tudo para haver mudança. A natureza humana tem fome de

variações, e Deus no-las provê na natureza, na providência e na graça;

tenhamo-las nos sermões também. Contudo, não me delongarei muito

nisto, pois os pregadores têm fama de despertar e manter a atenção

somente com o assunto que apresentam, sendo muito imperfeito o seu

modo de falar.

Se Richard Sibbes, o puritano, estivesse aqui esta tarde, garanto que

a atenção estaria firmemente posta em qualquer coisa que dissesse, e,

entretanto, ele gaguejava horrivelmente. Um dos seus contemporâneos

diz que ele gaguejava e sibilava demais. Não é necessário muita procura

de exemplos em nossos púlpitos modernos, pois há muitos deles.

Devemos lembrar, porém, que Moisés era pesado de boca e de língua, e,

apesar disso, todos os ouvidos ficavam atentos às suas palavras. Paulo

provavelmente labutou com a mesma fraqueza, pois diziam que o seu

falar era desprezível; todavia, não temos certeza disso, porque era só

crítica dos seus inimigos. O poder de Paulo era grande nas igrejas, mas

nem sempre era capaz de manter a atenção quando o seu sermão era

comprido, pois pelo menos um ouvinte dormiu enquanto ele pregava, e

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 185

com séria conseqüência. O modo de falar não é tudo. Entretanto, se

tiverem ajuntado bom material, será uma lástima transmiti-lo mal.

Um rei não andaria numa carruagem empoeirada; as gloriosas

doutrinas da graça não devem ser anunciadas com desalinho. As retas e

reais verdades devem viajar num carro de ouro. Apresentem os mais

nobres dos seus brancos corcéis, e façam que a música soe

melodiosamente das trombetas de prata, enquanto a verdade percorre as

ruas. Se as pessoas não prestarem atenção, não lhes demos motivo para

acharem desculpa em nossa comunicação defeituosa. Contudo, se não

conseguirmos corrigir-nos neste aspecto, sejamos diligentes ao máximo

para compensar isso com a riqueza do nosso assunto, e em todas as

ocasiões façamos o melhor que pudermos.

Como regra geral, não façam introdução muito longa. É sempre

uma pena construir um grande pórtico para uma casa pequena. Uma

excelente senhora cristã ouviu uma vez a John Howe, e, como ele gastou

cerca de uma hora no prefácio, a observação dela foi que o bom e

querido servo de Deus demorou tanto tempo pondo a mesa, que ela

perdeu o apetite; não podia esperar que houvesse algum jantar depois de

tudo. Arrume a mesa depressa, sem fazer barulho com os pratos e

talheres.

Talvez vocês tenham visto certa edição da obra, Rise and Progress

of Religion in the Soul (Surgimento e Progresso da Religião na Alma), da

autoria de Doddridge, com um ensaio introdutório de John Foster. O

ensaio é maior e melhor do que o livro, e priva Doddridge da

oportunidade de ser lido. Não é um absurdo? Evitem este erro em suas

produções pessoais. Eu prefiro fazer a introdução do meu sermão bem à

maneira do pregoeiro público, que toca a sua sineta e grita: "Ó, sim! Ó,

sim! Isto é para dar notícia", apenas para fazer o público saber que ele

tem notícias para dar-lhe e quer ser ouvido. Para conseguir isso, a

introdução deve conter algo extraordinário. É bom disparar uma

estrondosa carga com canhoneio como alerta para a ação. Não comecem

com todo o impulso e tensão da mente, mas, não obstante, façam-no de

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 186

modo que todos sejam levados a esperar bons momentos. Não façam do

seu exórdio uma pomposa introdução de coisa nenhuma, mas, façam

dele um passo para algo ainda melhor. Sejam vívidos já bem no início.

Irmãos, na prédica não se repitam a si próprios. Eu costumava

ouvir um pregador que tinha o hábito de, depois de ter pronunciado cerca

de uma dúzia de frases, dizer: "Como já observei", ou, "Repito o que

antes fiz notar". Bem, alma bondosa, como não havia nada de especial

no que ele tinha dito, a repetição só servia para revelar com maior

clareza a nudez da terra. Se foi muito bom, e vocês o disseram com

ênfase, por que retornar àquilo? Se foi algo fraco, por que exibi-lo

segunda vez? Ocasionalmente, é claro, a repetição de umas poucas frases

pode ser muito expressiva; qualquer coisa povo ser boa ocasionalmente,

e, contudo, pode ser péssima como hábito. Quem se espanta porque o

povo não o ouve da primeira vez, quando sabe que tudo tornará a vir?

Ademais, não repitam a mesma idéia vez após vez, empregando

outras palavras. Façam surgir algo novo em cada frase. Não fiquem a

vida toda martelando o mesmo prego; a Bíblia é grande; permitam que o

povo desfrute o comprimento e a largura da Palavra de Deus. E, irmãos,

não pensem que é necessário ou importante dar, toda vez que pregam,

um sumário completo de teologia, ou uma compilação formal de

doutrinas, à moda do Dr. Gill – não que eu queira desacreditar o Dr. Gill

ou falar uma palavra contra ele – seu método é admirável para um corpo

de teologia, ou para um comentário, mas não se presta bem para a

pregação. Conheço um teólogo cujos sermões, sempre que impressos,

parecem compêndios teológicos, mais próprios para uma sala de aulas do

que para o púlpito. Soam insípidos nos ouvidos do público.

Os nossos ouvintes não querem os puros ossos da definição técnica,

mas carne e sabor. As definições e diferenciações são boa coisa, mas,

quando constituem o artigo principal do sermão, lembram-nos o jovem

cujo discurso se compunha de várias distinções importantes. Sobre essa

apresentação um velho oficial observou que havia uma distinção que o

pregador omitira, a saber, a distinção entre carne e ossos. Se os

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 187

pregadores não fizerem esta distinção, todas as suas outras distinções não

lhes trarão muita distinção.

Para manter a atenção, evitem alongar-se muito. Um velho pregador

costumava dizer a um jovem que pregava uma hora: "Meu caro amigo,

não me importa acerca do que você pregue, mas gostaria que sempre

pregasse cerca de quarenta minutos". Raramente devemos ir muito além

disso – quarenta minutos, ou, digamos, três quartos de hora. Se um

sujeito não puder dizer tudo que tem para dizer nesse tempo, quando o

dirá? Mas houve alguém que disse que gostava de "fazer justiça ao seu

tema". Muito bem, mas, não deveria fazer justiça aos seus ouvintes, ou,

pelo menos, ter um pouco de misericórdia deles, e não os reter

demasiado tempo? O tema não se queixará de vocês, mas o povo sim.

Em alguns lugares da zona rural, principalmente à tarde, os sitiantes

têm que ordenhar as vacas, e um deles queixou-se amargamente comigo

de um jovem – creio que desta escola – "Sr. Spurgeon, ele devia ter

terminado às quatro horas, mas continuou por mais meia hora, e lá

estavam todas as minhas vacas esperando pela ordenha! Como se

sentiria ele se fosse uma vaca?" Havia muito sentido nessa interrogação.

A Sociedade Protetora de Animais devia ter processado aquele jovem

declamador. Como podem os criadores de gado ouvir com proveito

quando suas cabeças estão cheias de vacas?

A mãe acha moralmente certo, durante os dez minutos extras do

sermão, que a criança esteja chorando, ou que o fogo se apague, e ela

nem pode pôr, e nem põe mesmo, o coração nas suas ministrações.

Vocês a estão retendo dez minutos além do trato que ela aceitara, e vê

isso como uma injustiça da parte de vocês. Existe uma espécie de pacto

moral entre vocês e a congregação, de que não haverão de cansá-la por

mais de uma hora e meia, e se a retiverem por mais tempo, isto

equivalerá a uma infração de um tratado e a um ato de desonestidade

prática da qual não deveriam fazer-se culpados.

A brevidade é uma virtude que está ao alcance de todos nós; não

percamos a oportunidade de ganhar o crédito que ela traz. Se me

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 188

perguntarem como fazer para encurtar os sermões, dir-lhes-ei, estudem-

nos melhor. Passem mais tempo no gabinete, para que necessitem menos

tempo no púlpito. Geralmente nos alongamos mais quando temos menos

a dizer. O homem com muito material bem preparado provavelmente não

excederá quarenta minutos; quando tem menos que dizer, irá aos

cinqüenta minutos, e quando não tem absolutamente nada, precisará de

uma hora para dizê-lo. Dêem atenção a estas pequeninas coisas, e elas os

ajudarão a reter a atenção dos ouvintes.

Irmãos, se vocês quiserem ter a atenção dos seus ouvintes – tê-la

completa e constantemente, isto só se pode realizar se eles forem

conduzidos pelo Espírito de Deus a um elevado e devoto estado mental.

Se os seus ouvintes forem suscetíveis de ensino, gente de oração, ativos,

fervorosos, devotas, virão à casa de Deus com o propósito de receber

uma bênção. Tomarão os seus lugares com atitude piedosa, pedindo a

Deus que lhes falem por intermédio de vocês; ficarão atentos a cada

palavra, e não se cansarão. Terão apetite pelo evangelho, pois conhecem

o dulçor do maná celestial, e estarão ávidos por recolher as porções que

lhes cabem. Ninguém jamais terá uma igreja á qual pregar que supere a

minha neste aspecto. Na verdade, os melhores ouvintes, para o pregador,

são geralmente aqueles com quem ele está mais familiarizado. É-me

relativamente fácil pregar no Tabernáculo; o meu povo vem com o

propósito de ouvir alguma coisa, e a sua expectativa ajuda o seu

cumprimento. Se fosse ouvir outro pregador com a mesma expectação,

creio que em geral ficaria satisfeito, conquanto haja exceções.

Quando o pregador está iniciando o seu pastorado; não pode esperar

que os seus ouvintes lhe dêem aquela fervente atenção obtida por aqueles

que são como pais entre os próprios filhos, amado pelo seu povo por mil

lembranças, e estimado por sua idade e experiência. A nossa vida, na

integra, deve ser tal que acrescente peso às nossas palavras, de sorte que

nos anos da maturidade sejamos capazes de brandir a invencível

eloqüência de um caráter mantido através de muito tempo, e possamos

obter, não somente a atenção, mas também a afetuosa veneração do

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 189

nosso rebanho. Se com as nossas orações, lágrimas e labutas o nosso

povo se tornar espiritualmente sadio, não precisaremos ter medo de

perder a sua atenção. Um povo com fome de justiça, e um ministro

ansioso por alimentar as suas almas, agirão na mais suave harmonia

entre si, quando o vínculo comum a ambos for a Palavra de Deus.

Se vocês tiverem necessidade de outra orientação para obter a

atenção, devo dizer-lhes, estejam vocês mesmos interessados, e

interessarão outros. Há mais nessas palavras do que parece, e, portanto,

seguirei aqui um costume que condenei agora há pouco, repetindo a frase

– estejam vocês mesmos interessados, e interessarão outras pessoas. O

assunto que vão apresentar deve pesar tanto sobre suas mentes, que

vocês dedicarão todas as suas faculdades, no que elas têm de melhor, à

entrega de suas almas quanto ao referido tema; então, quando os seus

ouvintes virem que o tópico os absorveu, aos poucos se absorverão

também.

Vocês se admiram se o povo não presta atenção a um homem que

acha que não tem algo importante para dizer? Espantam-se porque o

povo não é todo ouvidos quando o pregador não fala de todo o coração?

Maravilham-se de que os pensamentos dos ouvintes vagueiem por entre

assuntos reais para eles quando vêem que o pregador está perdendo

tempo com matérias de que trata como se fossem ficção? Romaine

costumava dizer que era bom entender a arte de pregar, mas

infinitamente melhor conhecer o coração da pregação; e nesta afirmativa

não há pouco peso. O coração da prédica, o lançamento da alma nela, o

fervor que clama como pela própria vida, é metade da batalha pela

conquista da atenção.

Ao mesmo tempo, vocês não poderão manter a mente dos homens

em total atenção só com o fervor, se não tiverem nada para dizer. As

pessoas não ficarão às suas portas para sempre a ouvir um sujeito tocar

bumbo; sairão para fora a fim de ver o que está acontecendo, mas

quando virem que é muita bulha por nada, baterão a porta e entrarão em

casa de novo, como que dizendo: "Você nos logrou, e não gostamos".

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 190

Tenham alguma coisa para dizer, digam-na com fervor, e a congregação

se porá a seus pés.

Talvez seja supérfluo notar que para grande parte do nosso público

é bom que haja bom número de ilustrações em nossos discursos. Temos

o exemplo de nosso Senhor para isso; e a maioria dos maiores

pregadores têm sido abundantes em símiles, metáforas, alegorias e

historietas. Cuidado para não exagerar nisso. Outro dia li o diário de uma

dama alemã que se converteu do luteranismo à nossa fé, e fala de certo

povoado onde ela mora: "Existe aqui um posto missionário, e jovens descem para pregar-nos.

Não quero incriminar esses jovens cavalheiros, mas eles nos contam muitas estorinhas bonitas, e não vejo muita outra coisa no que eles dizem. Também ouvi algumas das suas pequenas estórias antes, e daí, eles não me despertam muito interesse como o fariam se nos falassem de alguma boa doutrina das Escrituras".

Sem dúvida a mesma coisa passou pela mente de muitos outros.

"Estórias bonitas" são muito boas, mas nunca funciona confiar nelas

como sendo a grande atração de um sermão. Além disso, estejam alertas

quanto a certas "belas estorinhas" dessas, pois a sua época chegou e

passou; essas pobres coisas estão surradas de tanto uso, e deviam ir para

o baú de trapos. Ouvi algumas delas tantas vezes que eu mesmo poderia

contá-las, mas não há por quê. Do estoque de historietas bem que

poderíamos nos livrar, tanto a nós como aos nossos ouvintes. Anedotas

antigas nos deixam doentes, quando os engraçadinhos as reeditam como

suas idéias próprias, e historietas que os nossos bisavós ouviam fazem o

mesmo efeito na mente.

Cuidado com aquelas compilações de ilustrações extremamente

populares, que se acham nas mãos de todos os professores da Escola

Dominical, pois ninguém lhes agradecerá a repetição daquilo que toda

gente já sabe de cor. Se vocês contarem historietas, cuidem para que

tenham algum grau de novidade e originalidade. Mantenham os olhos

abertos, e colhem com as suas mãos flores do jardim e do campo. Serão

muito mais aceitáveis do que exemplares murchos tirados de ramalhetes

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 191

alheios, por mais belos que estes possam ter sido outrora. Ilustrem rica e

pertinentemente, porém, não tanto com parábolas importadas de fontes

estrangeiras, como com símiles apropriados que brotem do próprio tema.

Todavia, não pensem que a ilustração é tudo; é a janela, mas de que

serve a luz que passa por ela, se vocês não têm nada para a luz revelar?

Enfeitem os seus pratos, mas, lembrem-se de que o assado é o principal

ponto a considerar, não o enfeite. É preciso dar instrução real e ensinar

sólida doutrina, se não as suas figuras darão desalento aos seus ouvintes,

e eles ansiarão por carne espiritual.

Em seus sermões cultivem o que o padre Taylor chama de "o poder

da surpresa". Há grande porção de força nisso para obter-se atenção.

Não digam o que todos esperam que digam. Mantenham as suas frases

fora dos sulcos rotineiros. Se vocês já disseram, "A salvação é só pela

graça", não acrescentem sempre, "e não por méritos humanos" mas

variem e digam, "A salvação é só pela graça; a justiça própria não tem

nenhum canto para esconder a cabeça".

Receio não poder recordar uma frase do Sr. Taylor de maneira que

lhe faça justiça, mas é mais ou menos assim: "Alguns de vocês não

progridem muito na vida ministerial porque vão para frente um trecho da

rota, e logo vogam de volta, como um barco num rio de regime de marés,

que avança com a correnteza só para ser trazido de volta com o refluxo

da maré. Assim vocês fazem bom progresso por um pouco, e depois, de

repente" – que disse ele? – "ficam encalhados em alguma enseada

lamacenta". Também não repetiu ele para nós dizeres com este sentido:

"Ele estava certo de que se eles fossem convertidos, andariam retamente

e manteriam os seus bois fora da lavoura do vizinho"?

Recorrer ocasionalmente a este sistema de surpresa manterá uma

audiência em estado de adequada expectativa. No ano passado, mais ou

menos nesta época do ano, sentei-me na praia de Mantone, no Mar

Mediterrâneo. As ondas iam e vinham mansamente, pois ali existe pouca

maré, ou nenhuma, e o vento era brando. As ondas se arrastavam

languidamente uma após outra, e eu lhes dava pouca atenção, embora

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 192

estivessem bem aos meus pés. De súbito, como se tomado de nova

paixão, o mar arremessou uma enorme vaga que me ensopou

completamente. Tranqüilo como eu estava, vocês podem compreender

prontamente com que rapidez me pus de pé, e com que velocidade se

desfez o meu devaneio.

Observei a um colega de ministério que estava ao meu lado: "Isto

nos mostra como pregar; para despertar os ouvintes precisamos assustá-

los com alguma coisa que eles não esperavam".

Irmãos, peguem-nos de surpresa. Façam cair raios de um céu

límpido. Quando tudo estiver calmo e brilhante, façam irromper a

tempestade e, por contraste, aumentem os seus terrores. Lembrem-se,

porém, que nada terá valor se vocês dormirem enquanto estiverem

pregando. Será possível isso? Oh, possível! Faz-se todo domingo.

Muitos ministros estão mais que meio dormindo durante o sermão

inteiro; na verdade, nunca estiveram acordados em tempo nenhum, e

provavelmente nunca estarão, a menos que estoure um tiro de canhão

perto das suas orelhas. Frases mansas, expressões gastas pelo uso, e

enfadonhas monotonias dominam os seus discursos, e se admiram de que

o público fique tão sonolento; eu confesso que não me admiro.

A pausa ajuda muito a garantir a atenção. Retesem as rédeas de

repente uma vez ou outra, e os passageiros da sua carruagem se

despertarão. O moleiro vai dormir enquanto as rodas do moinho giram;

mas, se por qualquer motivo a moagem pára, o bom homem dá um salto

e grita: "Que é que foi?" Num sufocante dia de verão, se nada eliminar a

sensação de sono, sejam muito breve, cantem mais vezes que de

costume, ou convidem um ou dois irmãos para orarem. Um ministro que

viu que o público ia dormir, sentou-se, dizendo: "Vi que todos vocês

estavam repousando, e pensei em repousar eu também".

Andrew Fuller mal começara um sermão, quando viu que o povo ia

dormir. Disse ele: "Amigos, amigos, amigos, isto não pode ser. Algumas

vezes pensei que quando vocês dormiam, a culpa era minha, mas agora

vocês estão dormindo antes de eu começar, e a culpa só pode ser de

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 193

vocês. Rogo-lhes que acordem e me dêem oportunidade de fazer-lhes

algum benefício". É isso mesmo. Saibam fazer pausa. Façam paradas de

quietude que despertem. Falar é prata, mas o silêncio é ouro quando os

ouvintes estão desatentos. Continuem, mais, mais, mais e mais, com

assuntos que são lugares comuns e com voz monótona, e estará

embalando o berço, e sono mais profundo será o resultado; dêem um

puxão no berço, e o sono fugirá.

Sugiro ainda que, a fim de assegurar a atenção durante todo um

discurso, devemos fazer que o povo sinta que tem interesse naquilo que

lhe estamos falando. Este é, de fato, um ponto extremamente essencial,

porque ninguém dorme enquanto espera ouvir algo que lhe convém.

Tenho ouvido falar de algumas coisas muito estranhas, mas nunca ouvi

dizer que uma pessoa dormiu enquanto se lia um testamento no qual

esperava uma herança, nem ouvi dizer que algum prisioneiro dormiu

quando o juiz estava fazendo o sumário para a sentença, e sua vida

estava em perigo. O interesse próprio estimula atenção. Preguem sobre

temas práticos, atuais e de interesse pessoal, e garantirão que os ouçam

fervorosamente.

Será bom impedir que os assistentes atravessem os corredores da

nave para lidar com o gás ou com as lâmpadas, ou para passar os pratos

da coleta, ou para abrir janelas. Diáconos e auxiliares trotando pelo

recinto são uma tortura que jamais deve ser suportada com paciência, e

se deve pedir bondosa mas decididamente que suspendam as suas

perambulações.

Os retardatários também precisam ser corrigidos, e nesse sentido

devemos fazer gentis arrazoados e admoestações. Tenho certeza que o

diabo dá a mão a muitos distúrbios ocorridos na igreja reunida, irritando

os nossos nervos e distraindo os nossos pensamentos. O bater de uma

porta, a queda seca de uma bengala no piso, ou o choro de uma criança,

todas estas coisas são instrumentos nas mãos do maligno para estorvar o

nosso trabalho; podemos, pois, muito justificadamente, pedir aos nossos

ouvintes que protejam o nosso serviço útil dessa classe de agressões.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 194

Dei-lhes uma regra de ouro para obter a atenção no começo, a

saber, sempre digam alguma coisa que valha a pena ouvir; agora lhes

vou dar uma regra de diamante, e concluirei. Irmãos, revistam-se do

Espírito de Deus, e depois não questionem acerca do surgimento ou não

da atenção. Venham revigorados do gabinete pastoral e da comunhão

com Deus, para falar de todo o coração e de toda a alma aos homens por

Deus, e haverão de ter poder sobre eles.

Vocês possuem cadeias de ouro na boca que os prenderão com

segurança. Quando Deus fala os homens devem ouvir, e embora Ele fale

por meio de um pobre e frágil homem como eles mesmos, a majestade

da verdade os compelirá a acatar a Sua voz. O poder sobrenatural deverá

ser a sua confiança.

Dizemos-lhes, irmãos, aperfeiçoem-se na oratória, cultivem todos

os campos do conhecimento, façam que o seu sermão seja tudo o que

deve ser intelectual e retoricamente (vocês não devem deixar por menos

esse serviço), mas ao mesmo tempo lembrem que não é "por força nem

por poder" que os homens são regenerados ou santificados, mas "por

meu Espírito, diz o Senhor". Às vezes vocês não se sentem vestidos de

zelo como de um manto, e plenamente cheios do Espírito de Deus?

Nessas ocasiões vocês tiveram um público ouvindo atentamente, e, em

pouco tempo, um público crente; mas se vocês não forem assim dotados

de poder do Alto, não serão para os ouvintes nada mais que um músico

que toca um belo instrumento, ou que canta uma agradável canção com

clara voz, alcançando os ouvidos, mas não o coração. Se vocês não

atingirem o coração, logo os ouvidos se cansarão.

Revistam-se, pois, irmãos, do poder do Espírito de Deus, e preguem

aos homens como os que têm que dar logo um relatório, e desejam que o

mesmo não seja doloroso para os seus ouvintes, nem mortificante para si

próprios, mas que seja para a glória de Deus.

Irmãos, que o Senhor seja com vocês, enquanto avançam em nome

dEle e bradam: "Quem tem ouvidos, ouça".

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 195

A CAPACIDADE DE FALAR DE IMPROVISO

Não vamos discutir aqui a questão se os sermões devem ser escritos

e lidos, ou escritos, decorados e repetidos, ou ainda se se devem

empregar copiosas anotações ou nenhuma. Nenhum desses itens

constitui o assunto agora em consideração, embora possamos aludir

incidentalmente a cada um deles; mas nesta oportunidade vamos falar da

alocução improvisada em sua mais autêntica e completa forma – o

discurso de improviso, sem preparação especial, sem notas ou

premeditação.

Nossa primeira observação será que não recomendamos a ninguém

que tente pregar desde modo como regra geral. Se o tentasse,

certamente conseguiria, cremos nós, produzir um vácuo no seu local de

reuniões. Os seus dons de dispersão se manifestariam claramente.

Pensamentos não estudados provenientes do intelecto sem prévia

pesquisa, sem que os temas em mãos tenham sido investigados nem um

pouco, só podem ser de qualidade muito inferior, mesmo que sejam de

homens talentosos. E como nenhum de nós teria a afrontosa ousadia de

glorificar-nos como homens de gênio ou como maravilhas de erudição,

temo que os nossos pensamentos não premeditados sobre a maioria dos

assuntos não seriam dignos de atenção.

As igrejas não haverão de ser mantidas unidas senão por um

ministro capaz de instruir; encher simplesmente o tempo com oratória

não basta. Em toda parte os homens pedem que os alimentem, que os

alimentem realmente. Aqueles religionários novidadeiros, cujo culto

público em geral consiste de preleções feitas por qualquer irmão que

queira apresentar-se de momento e falar, não obstante o seu lisonjeiro

incitamento aos ignorantes e tagarelas, quase sempre definham e

desaparecem; porque, mesmo os homens que adotam as idéias

caracterizadas pela mais contundente excentricidade, concebendo que o

Espírito quer que cada membro do corpo seja uma testemunha, logo se

impacientam ao ouvirem os absurdos de outra gente, embora contentes

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 196

por dispensar os seus próprios. Enquanto isso, a maior parte do bondoso

público se cansa da ignorância prosaica, e volta para as igrejas das quais

se deixara levar, ou voltaria se os seus púlpitos fossem supridos de

ensino sólido. Mesmo o movimento dos quacres, com todas as suas

excelentes virtudes, mal pode sobreviver à pobreza de pensamento e de

doutrina, demonstrada em muitas das suas assembléias por oradores que

falam de improviso. O método de realizar ministrações despreparadas é

um fracasso na prática, e teoricamente defeituoso.

O Espírito Santo não fez promessa de fornecer alimento espiritual

aos santos por intermédio de um ministério improvisado. Ele jamais fará

para nós o que nós mesmos podemos fazer. Se podemos estudar e não o

fazemos, se podemos ter um ministério estudioso e não o exercitamos,

não temos direito de apelar para a intervenção divina para cobrir os

déficits da nossa ociosidade ou da nossa excentricidade. O Deus da

providência prometeu alimentar o Seu povo com alimento temporal; mas

se nos reuníssemos para um banquete e ninguém tivesse preparado nem

um só prato porque todos tinham fé no Senhor de que a comida seria

dada na hora exata, o festival não seria muito satisfatório, pois a

estultícia seria repreendida pela fome; como, na verdade, se dá no caso

dos banquetes espirituais do tipo improvisado. Contudo os receptáculos

espirituais dos homens raramente são "oradores" tão poderosos como os

seus estômagos.

Cavalheiros, conto regra, não tentem seguir um sistema de coisas

que geralmente é tão sem proveito que as poucas exceções só confirmam

a regra. Todos os sermões devem ser bem ponderados e preparados pelo

pregador; e, quanto possível, todo ministro deve, com muita oração por

direção divina, penetrar plenamente no seu tema, exercitar todas as suas

faculdades mentais com originalidade, e reunir todas as informações que

estejam ao seu alcance. Examinando de todos os ângulos a matéria toda,

o pregador deve refletir nela, mastigá-la e digeri-la; e, tendo-se ele

próprio alimentado com a Palavra, deve depois preparar a mesma

nutrição para outros. Os nossos sermões devem ser o nosso sangue vital

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 197

mental – o fluxo do nosso vigor espiritual e intelectual; ou, para mudar a

figura, devem ser diamantes bem lapidados e bem guarnecidos –

intrinsecamente preciosos, e trazendo as marcas do labor. Não permita

Deus que ofereçamos ao Senhor algo que não nos custe nada.

Com muito empenho advirto-os a todos contra a leitura dos seus

sermões, mas lhes recomendo, como exercício sumamente saudável, e

como grande auxílio com vistas à consecução de poder na pregação

improvisada, que freqüentemente os escrevam. Aqueles de nós que

escrevem muito noutras modalidades, para a imprensa etc., talvez não

precisem tanto desse exercício; mas, se vocês não usam a caneta de

outros modos, será prudente escreverem ao menos alguns dos seus

sermões, e revisá-los com grande esmero. Deixem-nos em casa depois,

mas continuem a escrevê-los, para que fiquem livres de um estilo

desmazelado.

M. Bautain, em sua admirável obra sobre a alocução improvisada,

observa: "Você nunca será capaz de falar bem em público se não adquirir tal

domínio do seu próprio pensamento que o capacite a decompô-lo em suas partes, analisá-lo em seus elementos, e depois, quando necessário recompô-lo, reuni-lo e concentrá-lo de novo por um processo de síntese. Pois bem, esta análise da idéia, que a expõe, por assim dizer, diante dos olhos da mente, só se executa bem escrevendo. A caneta é o escalpelo que disseca os pensamentos, e nunca você poderá conseguir discernir claramente tudo que se contém numa concepção, ou atingir o seu escopo bem determinado, a não ser quando escreve o que contempla interiormente. Então você se compreende a si próprio, e faz com que outros o compreendam".

Não recomendamos o plano de aprender de cor os sermões,

repetindo-os depois de memória. Isso é ao mesmo tempo um cansativo

exercício de uma capacidade inferior da mente, e uma indolente

negligência de faculdades outras e superiores. O plano mais árduo e mais

recomendável é suprir a mente de material sobre o assunto do discurso, e

depois transmiti-lo com palavras apropriadas que se sugiram a si mesmas

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 198

na hora. Isto não é prédica improvisada; as palavras são improvisadas,

como creio que sempre devem ser, mas os pensamentos resultam de

pesquisa e estudo. Só pessoas negligentes pensam que isso é fácil. É a

um só tempo o mais trabalhoso e o mais eficiente modo de pregar, e tem

suas virtudes próprias, das quais não posso falar particularmente agora,

visto que isto nos levaria para longe do ponto em questão.

Nosso assunto trata da alocução pura, casta e genuinamente

improvisada, e a ele voltamos. Esse poder é extremamente útil e, na

maioria dos casos, pode ser adquirido com um pouco de diligência.

Muitos o possuem, mas não tantos que eu seja incorreto se disser que o

dom é raro. Os improvisatori da Itália possuíam em tal extensão o poder

de falar de improviso, que as suas poesias sobre assuntos sugeridos no

palco pelos espectadores chegavam muitas vezes a centenas e até

milhares de versos. Produziam tragédias completas tão espontaneamente

como nas fontes a água borbulha, e rimavam meia hora ou uma hora

inteira ao estímulo do momento, e talvez também ao estímulo de um

pouco de vinho italiano. Suas obras impressas raramente vão acima da

mediocridade e, todavia, um deles, Perfetti, obteve a coroa de louros com

que somente Petrarca e Tasso tinham sido premiados. Muitos deles

nestes dias produzem na hora versos ao nível das capacidades dos seus

ouvintes, e os prendem fascinados. Por que nós não adquirimos esse

poder para a prosa? Não seremos capazes, suponho, de produzir poesias,

nem precisamos desejar essa faculdade. Sem dúvida, muitos de vocês

têm versificado um pouco (pois, qual de nós, num momento de fraqueza,

não o fez?), mas deixamos as coisas de meninos, agora que a sóbria

prosa de vida e morte, céu e inferno, e pecadores que perecem, requer

todo o nosso pensamento.

Muitos advogados possuem em alto grau o dom de falar de

improviso. Haveriam de ter algumas virtudes! Algumas semanas atrás

uma infeliz criatura foi processada pelo horrível crime de caluniar um

advogado. Foi bom para ele que eu não fui o seu juiz, pois se eu fosse

levado a cuidar razoavelmente de um crime tão difícil e atroz, eu o teria

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 199

entregue para ser interrogado durante a duração da sua vida natural,

esperando, por amor à misericórdia, que fosse curta. Mas muitos dos

cavalheiros do tribunal são oradores sempre preparados para falar, e

como vocês vêem claramente, eles devem ser também, em considerável

grau, improvisadores, porque lhes seria impossível prever sempre a linha

de argumentação que as provas, ou o temperamento do juiz, ou as

alegações da parte contrária poderiam exigir. Por melhor que se prepare

um caso, terão que surgir e surgirão pontos que requererão mente viva e

língua fluente para lidar com eles.

De fato, tenho ficado admirado ao observar as réplicas espirituosas,

agudas e em todos os aspectos apropriadas que o causídico arremessa,

sem meditação prévia, em nossos tribunais. O que um advogado pode

fazer defendendo a causa do seu cliente, certamente eu e você devemos

ser capazes de fazer pela causa de Deus. Não se deve permitir que a

tribuna forense sobrepuje o púlpito em excelência. Com a ajuda de Deus,

seremos tão competentes no uso das armas intelectuais como quaisquer

outros homens, sejam eles quem forem.

Certos membros da Casa dos Comuns exercitaram a capacidade de

falar improvisadamente com grandes resultados. Normalmente, de todas

as tarefas que nos obrigam a ouvir, a mais miserável é a de escutar a

casta comum de oradores da Casa dos Lordes e dos Comuns. Oxalá se

proponha que, quando for abolida a pena de morte, os que forem achados

culpados de homicídio, sejam obrigados a ouvir uma seleção dos mais

áridos oradores do parlamento. Que a Sociedade Real pelos Direitos

Humanos o impeça. Todavia, alguns membros da Casa são capazes de

falar de improviso, e de falar bem. Imagino que algumas das coisas mais

belas que foram ditas por John Bright, Gladstone e Disraeli, foram muito

bem o que Southey chamaria de jatos do grande gêiser quando a fonte

está em plena atividade.

Naturalmente os seus longos discursos sobre orçamento, sobre o

decreto de reforma, etc., foram elaborados ao máximo mediante

manipulações prévias; mas muitos dos seus discursos mais curtos foram,

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 200

sem dúvida, produtos da hora, e contudo estão cercados por espantoso

volume de poder. Atingirão os representantes da nação uma perícia no

falar maior do que a dos representantes da corte celestial?

Irmãos, ambicionem fervorosamente este valioso dom, e partam

para conquistá-lo.

Todos vocês estão convencidos de que a capacidade que estamos

considerando é por certo uma inapreciável possessão para o ministro.

Será que ouvimos um coração solitário cochichar: "Eu gostaria de tê-la,

pois daí não teria necessidade de estudar tão arduamente"? Ah! Neste

caso você não deve tê-la; é indigno desta dádiva, e não está apto para que

lhe seja confiada. Se você procura o dom para usá-lo como travesseiro

para uma cabeça preguiçosa, está muito enganado, pois a posse desse

poder o envolverá numa soma imensa de trabalho para aumentá-lo ou

mesmo conservá-lo. É como a lâmpada mágica da fábula, que não

acendia se não fosse bem esfregada, e se tornava um simples globo

opaco quando cessava a fricção. O que o ocioso deseja para sua

comodidade, podemos, contudo, cobiçar pelo melhor de todos os

motivos.

Ocasionalmente se ouve ou se lê sobre homens que concordam, por

bravata, em pregar sobre textos dados a eles na hora no púlpito, ou no

gabinete pastoral; essas exibições de vanglória são repulsivas e tocam as

raias da profanação. Também poderíamos fazer exibições ilusionistas no

dia do Senhor, como saltimbancos da oratória. Recebemos os nossos

talentos para fins bem diferentes. Confio em que vocês nunca se

permitirão essa prostituição do dom. Proezas de alocução ficam bem

numa agremiação de debates, mas no ministério são abomináveis,

mesmo quando um Bossuet se preste para isso.

A capacidade de falar de improviso é inapreciável, porque

possibilita ao homem, ao estímulo do momento, numa emergência,

comunicar-se com propriedade. Estas emergências surgem. Acidentes

ocorrem nas mais ordeiras assembléias. Eventos singulares podem alterar

completamente o curso dos seus pensamentos. Você percebe claramente

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 201

que o assunto escolhido seria inoportuno, e, como homem prudente,

muda sem demora para alguma outra coisa. Quando se fecha a velha

estrada e não há outro recurso senão o de abrir novo caminho para a

carruagem, se você não estiver qualificado para dirigir os cavalos por um

campo arado bem como pela estrada empedrada pela qual esperava

viajar, você se verá lançado fora da boléia, e os companheiros sofrerão o

prejuízo. É grande aquisição poder, numa reunião pública, depois de

ouvir os discursos dos seus irmãos e achar que foram muito frívolos, ou

talvez, por outro lado, muito enfadonhos, serenamente, sem aludir a eles,

neutralizar o mal e levar a assembléia a uma linha de pensamento mais

proveitosa.

Este dom pode ser da máxima importância na reunião eclesiástica,

na qual podem surgir questões que seria difícil prever. Nem todos os

perturbadores de Israel já morreram. Acã foi apedrejado, com sua mulher

e seus filhos, mas outros da sua família devem ter escapado, pois o certo

é que a raça se perpetuou, e deve ser tratada com prudência e vigor. Em

algumas igrejas, certos homens turbulentos se levantam e falam, e

quando fazem isso, é de grande importância que o pastor replique

prontamente e de modo convincente, para que não permaneçam más

impressões. O pastor que vai à reunião eclesiástica no espírito do Mestre,

sentindo-se seguro de que, confiando no Espírito Santo, será

perfeitamente capaz de responder a qualquer espírito amolante, senta-se

tranqüilo, mantém a calma, sobe no conceito geral a cada lance, e

consegue uma igreja pacífica.

Mas o irmão despreparado fica agitado, provavelmente se acalora,

compromete-se, e herda um mundo de aborrecimentos. Além disso, um

homem pode ser convidado para pregar à última hora, por não ter

chegado o ministro esperado, ou por ter adoecido de repente; numa

reunião pública pode sentir-se impelido a pregar embora tivesse decidido

ficar em silêncio; e em qualquer forma de exercício religioso podem

ocorrer emergências que tornarão a alocução feita de improviso preciosa

como o ouro de Ofir.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 202

O dom é valioso. Como obtê-lo? A indagação leva-nos a observar

que alguns jamais o obterão. Tem que haver uma adaptabilidade natural,

para a alocução improvisada. É como no caso da arte poética: um poeta

nasce, não se faz. "A arte pode desenvolver e aperfeiçoar o talento do

orador, mas não pode produzi-lo." Todas as regras de retórica e todos os

artifícios da oratória não conseguem tornar eloqüente um homem; é dom

do céu, e onde inexiste, não pode ser adquirido. Este "dom de

comunicação", como lhe chamamos, nasce com algumas pessoas,

provavelmente herdado do lado materno.1 Para outras o dom é negado; o

fato de que têm boca, e ainda mais o fato de que têm cérebro, nunca lhes

concederão que se tornem oradores fluentes e expeditos. Talvez possam

fazer desses homens tartamudos moderados, e vagarosos transmissores

de verdades sóbrias, mas eles nunca serão oradores capazes de

improvisar. Se não forem rivais de Matusalém na idade, e tampouco da

teoria darwiniana, que extrai um arcebispo da Cantuária de uma ostra,

poderão desenvolver-se e transformar-se em oradores. Se não houver um

dom natural de oratória, um irmão pode chegar a uma posição

respeitável noutras profissões, mas não é provável que brilhe como um

astro de particular esplendor na alocução improvisada.

Se um homem quiser falar desprovido de qualquer estudo,

normalmente precisará estudar muito. Talvez seja um paradoxo, mas a

sua explicação está na superfície. Se sou moleiro, e me trazem um saco à

porta para que o encha de farinha de primeira em cinco minutos, o único

modo pelo qual posso fazê-lo é mantendo o celeiro do meu moinho

sempre cheio, para que possa logo abrir a boca do saco, enchê-lo de

farinha e entregá-lo. Não estou moendo na ocasião, de modo que a

entrega é improvisada; mas estive moendo antes, e assim tenho farinha

para servir o freguês.

1 "Há homens estruturados para falar bem, como há pássaros estruturados para cantar bem, abelhas

para produzir mel, e o castor para construir." M. Bautain.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 203

Assim, irmãos, é preciso que tenham estado moendo, ou não terão

farinha. Vocês não serão capazes de transmitir de improviso bom

pensamento se não tiverem o hábito de pensar e alimentar as suas mentes

com alimento abundante e nutritivo. Trabalhem arduamente em todos os

momentos disponíveis. Aprovisionem as suas mentes ricamente, e então,

como negociantes com os seus armazéns atulhados, terão mercadorias

prontas para os seus fregueses, e, tendo arrumado as suas boas coisas nas

prateleiras das suas mentes, poderão fazê-las descer a qualquer hora sem

o trabalhoso processo de ir ao mercado, classificar, embrulhar e preparar.

Não acredito que algum homem seja capaz de manter continuamente

com sucesso o dom da alocução improvisada, exceto empregando

ordinariamente mais afã do que normalmente acontece com os que

escrevem os seus discursos e os confiam à memória. Tomem isto como

uma regra sem exceções, que para poderem transbordar

espontaneamente, precisam estar abastecidos até às bordas.

Coletar um fundo de idéias e expressões é extremamente útil. Há

riqueza e pobreza em cada um desses aspectos. Aquele que possui muita

informação, bem ordenada e compreendida inteiramente, com a qual está

intimamente familiarizado, será capaz de, como algum príncipe de

fabulosa riqueza, espalhar ouro à direita e à esquerda por entre a

multidão. Para vocês, cavalheiros, uma íntima familiaridade com a

Palavra de Deus, com a vida espiritual interior, com os grandes

problemas do tempo e da eternidade, será indispensável. A boca fala do

que está cheio o coração. Acostumem-se a meditações celestiais,

examinem as Escrituras, deleitem-se na lei do Senhor, e não precisarão

ter receio de falar das coisas que já experimentaram e apalparam da boa

Palavra de Deus.

Os homens bem podem ser lerdos de língua ao discutirem temas

fora do alcance da sua experiência. Mas vocês, aquecidos pelo amor ao

Rei, e desfrutando comunhão com Ele, verão os seus corações compondo

boa matéria, e suas línguas serão como penas de hábeis escritores.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 204

Cheguem às raízes das verdades espirituais mediante conhecimento

experimental delas, e assim estarão aptos para expô-las a outros.

A ignorância da teologia não é rara em nossos púlpitos, e o que

causa espanto não é que haja tão poucos oradores capazes de improvisar,

mas que haja tantos quando são tão raros os teólogos. Jamais teremos

grandes pregadores, enquanto não tivermos grandes teólogos. Vocês não

podem construir um navio de guerra de um ramo de parreira, nem se

podem formar de estudantes superficiais grandes pregadores, capazes de

comover as almas. Se quiserem ser fluentes, quer dizer, capazes de fluir.

encham-se de todo o conhecimento, e principalmente do conhecimento

de Cristo Jesus o seu Senhor. Mas nós observamos que um fundo de

expressões também seria de muita ajuda ao orador que improvisa; e,

realmente, um vocabulário rico somente se torna secundário ante um

depósito de idéias. As belezas de linguagem, as elegâncias no falar, e

acima de tudo as frases vigorosas devem ser selecionadas, rememoradas

e imitadas.

Não devem levar consigo aquela caneta tinteiro de ouro e anotar

cada palavra polissílaba que encontrarem em sua leitura para introduzi-la

no seu próximo sermão, mas devem saber o que as palavras significam

para que possam avaliar o poder de um sinônimo, julgar o ritmo de uma

frase e medir a força de um expletivo. Vocês têm que dominar as

palavras; estas devem ser os gênios a seu serviço, os seus anjos, os seus

raios trovejantes, ou as suas gotas de mel. Os simples ajuntadores de

palavras são colecionadores de conchas de ostras, vagens de feijão e

bagaço de maçã; mas, para o homem que tem ampla informação e

pensamento profundo, as palavras são salvas de prata nas quais se

servem maçãs de outro. Atentem para que tenham uma boa equipe de

palavras para puxar o carro dos seus pensamentos.

Também creio que o homem que quiser falar bem,

improvisadamente, deve ter todo o cuidado de escolher um tópico que

ele mesmo compreenda. Este é o ponto principal. Desde que vim para

Londres, para habituar-me a falar improvisadamente eu nunca estudei

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 205

nem preparei nada para a reunião de oração de segunda-feira à noite. De

há muito escolhi essa ocasião como a oportunidade para uma exortação

de improviso. Mas vocês notarão que nessas ocasiões não escolho

difíceis tópicos expositivos ou temas abstrusos, mas me restrinjo a

simples fala caseira sobre os elementos da nossa fé. Ao pôr-me de pé

nessas ocasiões minha mente faz uma revisão, e indaga: "Que assunto já

ocupou o meu pensamento durante o dia? Que encontrei nas leituras que

fiz durante a semana passada? Que é que se impõe mais ao meu coração

nesta hora? Que me sugerem os hinos ou as orações?"

É inútil levantar-se diante de uma assembléia e esperar ser inspirado

para assuntos sobre os quais você não sabe nada; se for insensato a esse

ponto o resultado será que, como você não sabe nada, provavelmente

nada dirá, e o povo não será edificado. Mas não vejo por que um homem

não pode falar improvisadamente sobre um assunto de que ele entende

plenamente. Qualquer comerciante, bem versado em sua linha de

negócios, pode explicá-la a você sem precisar retirar-se para meditação;

e certamente devemos estar de igual modo familiarizados com os

princípios básicos da nossa fé santa; não devemos ficar embaraçados

quando chamados para falar sobre tópicos que constituem o pão

cotidiano das nossas almas. Não vejo que benefício se ganha nesse caso

com o mero trabalho manual de escrever antes de falar; porque, ao fazê-

lo, o homem escreveria improvisadamente, e é provável que a escrita

improvisada fosse coisa ainda mais fraca do que a elocução improvisada.

O lucro de escrever está na oportunidade de cuidadosa revisão; mas

como os escritores talentosos são capazes de expressar corretamente já

de início os seus pensamentos, da mesma forma se dá com os oradores

capazes.

O pensamento do homem que se acha firme sobre os seus pés,

dilatando-se sobre um tema que conhece bem, pode estar muito longe de

ser pensamento que lhe ocorreu pela primeira vez; pode ser a nata das

suas meditações aquecidas pelo calor do seu coração. Tendo antes

estudado bem o assunto, embora não no momento, pode comunicar-se

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 206

muito poderosamente; ao passo que outro homem, sentando-se para

escrever, pode escrever somente as suas primeiras idéias, provavelmente

vagas e insípidas. Neste caso, não tentem falar de improviso, a menos

que tenham estudado bem o tema – paradoxo que é conselho da

prudência.

Lembro-me de ter sido provado duramente certa ocasião, e se não

fosse versado na prática de falar de improviso, não sei como me teria

saído. Esperavam-me para pregar em certa capela que estava apinhada de

gente, mas não cheguei na hora, pois fui atrasado por uma obstrução na

estrada de ferro. Assim, outro ministro dirigiu o culto e, quando cheguei

ao local, esbaforido pela pressa, ele já estava pregando. Vendo-me

aparecer e entrar por entre as fileiras de bancos, parou e disse: "Aí está

ele", e, olhando-me, acrescentou: "Vou dar-lhe o lugar; venha terminar o

sermão". Perguntei-lhe qual era o texto e até que ponto havia chegado

com ele. Disse-me qual era o texto e que tinha acabado de passar pela

primeira divisão. Sem hesitação, tomei o discurso a partir daquele ponto

e concluí o sermão; e me envergonharia de qualquer homem aqui

presente que não pudesse fazer a mesma coisa, sendo as circunstâncias

tais que me tornaram a tarefa notavelmente fácil.

Em primeiro lugar, o outro ministro era meu avó, e, em segundo

lugar, o texto era – "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto

não vem de vós; é dom de Deus". O indivíduo teria que ser um animal

mais bronco do que aquele que Balaão montou se, em tal conjuntura, não

tivesse achado algo que falar. "Pela graça sois salvos" fora comentado

como indicando a fonte da salvação.. Quem não poderia continuar,

descrevendo a cláusula seguinte, "por meio da fé", como o canal?

Ninguém teria necessidade de estudar muito para demonstrar que

recebemos a salvação por meio da fé. Contudo, naquela ocasião, tive

uma provação adicional pois, quando tinha avançado um pouco e estava

ficando aquecido para o meu trabalho, a mão de alguém bateu-me

aprovadoramente, e uma voz disse: "Está bem, está bem; diga-lhes isso

de novo, para que não o esqueçam". Imediatamente repeti a verdade e

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 207

pouco depois, quando me estava tornando mais profundamente

experimental, puxaram-me gentilmente pela ponta do casaco, e o velho

cavalheiro ficou em pé na frente e disse: "Ora, o meu neto pode falar-

lhes isto em termos de uma teoria, mas eu estou aqui para dar-lhes

testemunho disto como matéria de experiência prática; sou mais velho

que ele, e devo dar-lhes meu testemunho como velho".

Daí, depois de nos dar a sua experiência pessoal, disse: "Aí, pois,

meu neto pode pregar o evangelho muito melhor do que eu, mas ele não

pode pregar um evangelho melhor, não é?" Bem, cavalheiros, facilmente

posso imaginar que se eu não possuísse um pouco de capacidade de falar

de improviso naquela ocasião, poderia ter ficado um tanto perturbado;

mas do modo como foi, o sermão me veio tão naturalmente como se

tivesse sido preparado.

A aquisição de outro idioma fornece um bom exercício para a

prática da alocução improvisada. Levado a relacionar-se com as raízes

das palavras e com as regras de oratória, e sendo compelido a notar as

diferenças das duas línguas, o homem se desenvolve gradativamente até

conhecer bem as partes do discurso, os modos, tempos e inflexões; como

um operário, familiariza-se com as suas ferramentas e as manipula como

companheiros cotidianos. Não sei de exercício melhor do que o de

traduzir tão depressa quanto possível um trecho de Virgílio ou Tácito e

depois, com reflexão, corrigir os erros. Pessoas que não conhecem coisa

melhor acham que é jogar fora todo o tempo passado sobre os clássicos,

mas se esses estudos fossem postos ao serviço do orador sacro, deveriam

ser mantidos em todas as nossas instituições colegiais.

Quem não vê que a constante comparação dos termos e expressões

idiomáticas das duas línguas só pode favorecer a facilidade de

expressão? Ademais, quem não vê que com esse exercício a mente se

capacita para apreciar refinamentos e sutilezas de significado, e assim

adquire o poder de distinguir entre coisas que diferem? – poder essencial

para um expositor da Palavra de Deus, e para um arauto da Sua verdade.

Cavalheiros, aprendam a montar e desmontar toda a maquinaria da

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 208

linguagem, marquem cada dente de roda e cada roda, cada cavilha, cada

raio, e se sentirão mais seguros para dirigir a máquina, mesmo em

velocidade de expresso, se as emergências o exigirem.

Todo o que quiser adquirir esta arte precisa praticá-la. Foi

mediante lentos passos, como diz Burke, que Charles Fox tornou-se o

mais brilhante e poderoso mestre do debate que já viveu. Ele atribuía o

seu sucesso à resolução tomada quando ainda era bem jovem, de falar

bem ou mal pelo menos uma vez por noite. "Durante cinco períodos

letivos completos", costumava dizer, "eu falei todas as noites menos

uma, e apenas lamento não ter falado naquela noite também". A

princípio não podia fazê-lo para outro auditório senão às cadeiras e livros

do seu escritório, imitando o exemplo de um cavalheiro que, solicitando

admissão nesta escola, garantiu-me que durante dois anos tinha se

exercitado na pregação improvisada no seu próprio quarto. Os estudantes

que moram juntos poderiam ser de grande ajuda mútua, desempenhando

alternadamente as partes de audiência e orador, com pequena e amigável

crítica no fim de cada tentativa. A conversação também pode ser de

essencial utilidade, se for questão de princípio fazê-la sólida e edificante.

O pensamento deve estar ligado á linguagem oral, esse é o

problema; e pode ajudar um homem a solucioná-lo, se ele se esforçar

para pensar em voz alta em suas meditações privadas. Isto se me tornou

tão habitual, que acho muito útil poder, na devoção particular, orar

ouvindo a minha voz; ler em voz alta é mais benéfico para mim do que o

processo silencioso; e quando estou elaborando mentalmente um sermão,

é um alívio para mim o falar comigo mesmo conforme vão fluindo os

pensamentos. É evidente que isto só resolve a metade da dificuldade, e

vocês têm que praticar em público para dominarem a tremedeira

ocasionada pela visão dos ouvintes; mas, meio caminho é grande parte

da jornada. O bom discurso de improviso é exatamente a comunicação

de um pensador prático – homem bem informado, que medita por sua

conta e deixa que os seus pensamentos marchem através de sua boca

para o ar livre.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 209

Pensem alto quanto puderem quando estiverem sozinhos, e logo

estarão na via principal para o sucesso nesta questão. A discussão e os

debates na sala de aulas são de vital importância como um passo a mais,

e eu gostaria de exortar os irmãos mais retraídos a participarem deles. A

prática de convocá-los para falarem sobre um tópico sorteado ao acaso

de um vaso com ampla escala de temas escolhidos foi introduzida entre

vocês, e devemos recorrer a ela com mais freqüência. O que condenei

como parte do culto podemos usar livremente como exercício escolar

entre nós. Isso foi planejado para experimentar a prontidão e o domínio

próprio do indivíduo, e os que falham nisso provavelmente são tão

beneficiados como os que se saem bem, pois o conhecimento de si

mesmo pode ser tão útil para uns como a prática para outros. Irmãos, se a

descoberta de que vocês são toscos ainda na oratória os levar a estudos

mais afinados e a esforços mais resolutos, talvez seja o verdadeiro

caminho à eminência última.

Em acréscimo à prática recomendada, devo exortar cada irmão

quanto à necessidade de ser calmo e confiante. Como diz Sydney Smith,

"Muito talento é desperdiçado por falta de um pouco de coragem". Esta

não é fácil de ser adquirida pelo orador novato. Vocês, oradores

principiantes, não simpatizam com Blondin, o equilibrista? Irmãos,

vocês não se sentem às vezes, quando estão pregando, como se

estivessem andando numa corda em pleno ar, e não tremem e se

perguntam se chegarão com segurança à outra extremidade?

Às vezes, quando vocês estão fazendo floreios com aquela vara

balançante, e contemplando aquelas lantejoulas metafóricas que

esplendem de poesia sobre suas audiências, não ficam temerosos de

sempre se exporem a esses riscos de uma queda súbita, ou, deixando de

lado a figura, não se perguntam se serão capazes de concluírem a frase,

ou se acharem um verbo para o nominativo, ou um acusativo para o

verbo? Tudo depende de estarem calmos e imperturbáveis. Presságios de

fracasso e medo dos homens os arruinarão. Prossigam, confiando em

Deus, e tudo estará bem.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 210

Se vocês cometerem um erro gramatical e estiverem meio

inclinados a retroceder para corrigi-lo, logo cometerão outro, e a

hesitação os envolverá como numa rede. Deixem-me cochichar – pois

isto se destina somente aos seus ouvidos – é sempre ruim ir para trás. Se

cometerem um erro verbal, prossigam, e não lhe dêem atenção.

Quando eu estava aprendendo a escrever, meu pai me deu uma boa

regra que acredito que é igualmente útil quando se aprende a falar. Ele

costumava dizer: "Quando estiver escrevendo, se cometer um erro na

ortografia de uma palavra, ou redigir uma palavra errada, não a risque,

fazendo um borrão, mas veja como pode sem demora alterar o que ia

dizer, de maneira que se enquadre no que escreveu e não deixe vestígios

do erro". Assim, na oratória, se a frase não terminar da melhor maneira,

encerre-a doutro modo. É de bem pouco valia retroceder para corrigir,

pois assim você chama a atenção para a falha que talvez poucos tenham

notado, e você desvia a mente do assunto para a linguagem, que é a

última coisa que o pregador deve fazer.

Contudo, se o seu lapsus linguae (deslize no linguajar) for notado,

todas as pessoas de bom senso perdoarão o jovem principiante, e terão

maior admiração por você do que se agisse diferentemente, por dar

pouca importância a esses escorregões, e por impulsionar-se de todo o

coração rumo ao seu objetivo principal. Um novato na oratória pública é

como um cavaleiro não acostumado a montar; se o cavalo tropeça, ele

fica com medo de cair ou de ser lançado por cima da cabeça do animal,

ou, se este for impetuoso, fica certo de que ele fugirá. E o olhar de um

amigo, ou a observação feita por um rapazinho o fará angustiado como

se estivesse amarrado ao lombo do grande dragão vermelho.

Mas quando o homem está bem acostumado a montar, não conhece

perigos e não encontra nenhum, porque a sua coragem os impede.

Quando um orador crê, "Sou senhor da situação", normalmente o é. A

sua confiança afasta os desastres que a tremedeira com certeza

produziria. Meus irmãos, se de fato o Senhor os ordenou ao ministério,

vocês têm as melhores razões para serem ousados e calmos, pois a quem

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 211

terão que temer? Terão que entregar a mensagem do Senhor conforme

Ele os capacite e, se isso for feito, não serão responsáveis perante

ninguém mais, senão seu Mestre celestial, que não é juiz intratável.

Irmãos, vocês não entram no púlpito para luzir como oradores, ou

para gratificar as predileções dos seus ouvintes; são mensageiros do céu

e não escravos dos homens.2 Lembrem-se das palavras do Senhor a

Jeremias, e receiem temer. "Tu, pois, cinge os teus lombos, e levanta-te,

e dize-lhes tudo quanto eu te mandar; não desanimes diante deles,

porque eu farei com que não temas na sua presença." (Jeremias 1:17).

Confiem no presente socorro do Espírito Santo, e o temor do homem que

traz uma armadilha os abandonará. Quando vocês forem capazes de

sentir-se em casa no púlpito, e puderem olhar em torno e falar ao público

como irmãos falando a irmãos, então serão capazes de improvisar; não,

porém, antes disso. O acanhamento e a timidez, que têm tanta beleza em

nossos irmãos mais jovens, serão sucedidas pela verdadeira modéstia que

se esquece de si, e não se preocupa tanto com a sua reputação como com

que Cristo seja pregado da maneira mais enérgica possível.

Para chegar ao santo e benéfico exercício da alocução improvisada,

o ministro cristão precisa cultivar uma confiança singela como de

criança na assistência imediata do Espírito Santo. "Creio no Espírito

Santo", diz o Credo. É de temer-se que muitos não fazem deste um

verdadeiro artigo de fé. Ir para cima e para baixo a semana inteira

perdendo tempo, e depois lançar-se ao amparo do Espírito, é presunção

ímpia, é tentativa de fazer do Senhor um ministro da nossa preguiça e

auto-complacência; mas numa emergência o caso é muito diferente.

Quando um homem se vê inevitavelmente chamado para falar sem

nenhum preparo, pode com a mais plena confiança entregar-se ao

2 "A princípio a minha maior solicitude costumava ser quanto àquilo que eu acharia para dizer; espero

que agora seja mais quanto a que não fale em vão. Pois o senhor não me enviou para cá para eu

conseguir caracterizar-me como orador sempre pronto, mas para ganhar almas para cristo e edificar

o Seu povo. Muitas vezes quando começo fico indeciso sobre como prosseguir, mas insensivelmente

uma após outra as coisas se oferecem, e, em geral, as partes melhores e mais úteis do meu sermão

ocorrem como algo novo enquanto prego." – John Newton, Letters to a Student in Divinity.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 212

Espírito de Deus. Está fora de dúvida que a mente divina entra em

contato com o intelecto, ergue-o para cima da sua fraqueza e confusão,

dá-lhe elevação e força, e o capacita a compreender e expressar a

verdade divina de maneira muito superior às suas capacidades

desassistidas.

À semelhança dos milagres, essas intervenções não se destinam a

substituir os nossos esforços, nem a afrouxar a nossa diligência, mas

constituem a assistência do Senhor com que podemos contar numa

emergência. Seu Espírito estará sempre conosco, mas especialmente

quando estivermos sob rigorosa pressão de serviço. Por zelosamente que

os admoeste a não falarem puramente de improviso mais do que se lhes

imponha a obrigação, enquanto não estiverem um tanto amadurecidos no

ministério, contudo os exorto a falar desse modo sempre que compelidos

a fazê-lo, crendo que naquele exato momento ser-lhes-á dado o que

haverão de falar.

Se vocês forem bastante felizes para adquirir a capacidade de falar

de improviso, rogo que se lembrem de que poderão perdê-la em pouco

tempo. Levei este golpe em minha própria experiência, e me refiro a isto

porque é a melhor demonstração que lhes posso fazer. Se por dois

domingos sucessivos fago o meu esboço um pouco mais longo e mais

completo que de costume, vejo na terceira ocasião que preciso dele mais

longo ainda; e também observo que, se ocasionalmente me apóio um

pouco mais na recordação dos meus pensamentos e não sou tão

improvisador como costumava ser, há um desejo direto e mesmo uma

crescente necessidade de composição prévia.

Se um homem começa a andar com uma bengala só por capricho,

logo virá a depender duma bengala; se vocês concedem óculos aos seus

olhos, depressa estes os exigirão como acessório permanente; e se vocês

andassem de muletas durante um mês, no fim desse período elas seriam

quase necessárias para os seus movimentos, embora naturalmente as suas

pernas fossem firmes e sadias como as de qualquer pessoa. Maus usos

criam natureza má. Vocês têm que praticar continuamente a alocução

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 213

improvisada, e se para conseguir oportunidades convenientes tiverem

que usar muitas vezes da palavra em choupanas, nas salas de aulas das

nossas aldeias, ou a dois ou três à beira do caminho, o seu proveito será

conhecido de todos os homens.

Podem poupar-se de muita surpresa e desgosto se forem prevenidos

de que haverá muitas variações em seu poder de comunicação. Hoje a

sua língua pode ser a caneta de um ágil escritor, e amanhã os seus

pensamentos e as suas palavras podem estar igualmente congelados. Os

seres vivos são sensíveis, e são afetados por uma variedade enorme de

forças; só sobre as coisas puramente mecânicas se podem fazer cálculos

com absoluta certeza. Não estranhem, irmãos, se freqüentemente

acharem que fracassaram, nem se admirem se finalmente evidenciar-se

que nessas ocasiões obtiveram o melhor sucesso. Não esperem tornarem-

se auto-suficientes; nenhum hábito ou exercício poderá torná-los

independentes da assistência divina; e se pregarem bem quarenta e nove

vezes quando solicitado à última hora, isto não escusa a auto-confiança

na qüinquagésima vez, pois se o Senhor os abandonar, vocês estarão em

apuros. Suas variáveis disposições de fluência e de dificuldade tenderão,

com a graça de Deus, a mantê-los humildemente elevando o olhar ao

Forte em busca de forças.

Acima de todas as coisas, que cada um cuide para que a sua língua

não ultrapasse o seu cérebro. Guardem-se contra uma fluência débil, uma

prosa fanfarrona, uma facilidade para dizer coisa nenhuma. Que prazer

ouvir falar do tombo de um irmão que tinha a presunção de poder

manter-se com a sua própria capacidade quando na realidade não tinha

nada para dizer! Oxalá essa consumação sobrevenha a todos os que

erram naquela direção. Meus irmãos, é um dom horrível de se possuir, o

de poder dizer coisa nenhuma numa extensão extrema. Absurdo

alongado, sensaboria parafrástica, banalidade e fanfarronada, são

bastante comuns e são o escândalo e a vergonha da improvisação.

Mesmo quando sentimentos sem valor são expressos lindamente e

verbalizados com primor, de que valem? Do nada, nada provém. A

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 214

alocução improvisada sem estudo é nuvem sem chuva, poço sem água,

dom fatal, que ofende igualmente ao que o possui e ao seu rebanho.

Certos homens têm-me solicitado admissão nesta Escola, admissão que

lhes tenho negado porque, sendo completamente destituídos de instrução

e de senso da sua ignorância, a sua limitada vaidade e a sua volubilidade

enorme fizeram deles sujeitos perigosos para o treinamento. Alguns até

me fizeram lembrar a serpente do Apocalipse que lançou água pela boca

numa torrente a tal ponto abundante que a mulher por pouco não foi

arrastada por ela.

Recebendo corda como relógios, vão falando, falando, falando, até

acabar a corda, e bem-aventurado aquele que menos relações mantém

com eles. Os sermões desses pregadores são como Snug, na parte do

marceneiro quando fez o papel do leão. "Você pode fazer isso

improvisadamente, pois nada fará senão rugir." É melhor perder, ou

antes nunca possuir, o dom da comunicação improvisada, do que

degradar-nos reduzindo-nos a simples produtores de ruído,

representações vivas do que Paulo chama de metal que soa ou sino que

retine.

Eu poderia ter dito muito mais se estivesse estendido o assunto

àquilo que é geralmente denominado pregação improvisada, isto é, o

preparo do sermão à medida que os pensamentos fluem e deixando para

encontrar as palavras durante a comunicação da mensagem; mas este é

outro assunto e, embora vista como grande conquista por alguns, é, creio

eu, um requisito indispensável para o púlpito, e de modo nenhum

constitui um luxo dos gênios apenas; mas disto falaremos noutra ocasião.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 215

AS CRISES DE DESÂNIMO DO MINISTRO

Como está registrado que Davi, no calor da batalha, abateu-se,

assim se pode escrever de todos os servos do Senhor. Crises de

depressão acometem a maioria de nós. Animados como possamos ser

normalmente, a intervalos temos que ser derrubados. O forte nem sempre

está vigoroso, o sábio nem sempre é expedito, o bravo nem sempre é

corajoso, e o alegre nem sempre está feliz. Pode ser que existam aqui e

ali homens de aço a quem o ralar e o rasgar não causam nenhum dano

perceptível, mas por certo a inércia desgasta mesmo a estes; e quanto aos

homens comuns, o Senhor sabe e os faz saber que não passam de pó.

Sabendo pela mais penosa experiência o que significa uma

profunda depressão de espírito, sendo visitado por ela freqüentemente e a

intervalos não demorados, achei que poderia ser consolador para alguns

dos meus irmãos se partilhasse meus pensamentos sobre isso para que os

mais jovens não imaginem que algo estranho lhes acontece quando

tomados em alguma ocasião pela melancolia; e para que os mais

deprimidos saibam que a pessoa sobre quem o sol está brilhando

jubilosamente nem sempre andou na luz.

Não é necessário provar com citações de biografias de ministros

eminentes que a maioria deles, senão todos, passou por períodos de

terrível prostração. A vida de Lutero poderia ser suficiente para dar mil

exemplos, e ele não era de modo nenhum do tipo mais fraco. Seu espírito

grandioso esteve muitas vezes no sétimo céu da exultação, e com igual

freqüência às bordas do desespero. Nem mesmo seu leito de morte ficou

livre de temporais, e ele soluçou no seu último sono como um fatigado

menino grande. Em vez de multiplicar casos, demoremos nas razões

pelas quais estas coisas são permitidas. Por que será que os filhos da luz

andam às vezes em trevas espessas? Por que será que os arautos da

alvorada às vezes se acham numa noite que vale por dez?

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 216

Não será primeiro porque são homens? Sendo homens, estão

enquadrados na fraqueza e são herdeiros da tristeza. Com acerto disse o

sábio nos textos apócrifos de Eclesiástico 40:1-5,8: "Grande fardo foi imposto a todos os homens, e um pesado jugo posto

sobre os filhos de Adão, desde o dia em que eles saem do ventre da mãe até ao dia da sua sepultura (em que eles entram) no seio da mãe comum de todos. Os seus cuidados, os sobressaltos do coração, a apreensão do que esperam, e o dia em que tudo acaba (perturbam-nos a todos), desde o que está sentado sobre um trono de glória, até àquele que jaz abatido na terra e na cinza; desde aquele que está vestido de púrpura e traz coroa, até ao que se cobre de linho cru. Tudo é furor, inveja, inquietação, perplexidade, temor da morte, rancor obstinado e contendas. Isto acontece a todos os viventes, desde os homens até aos animais, mas para os ímpios é sete vezes pior".

A graça nos protege de grande parte disso, mas devido não termos

maior porção da graça, continuamos sofrendo até males que poderiam

ser evitados. Mesmo sob a economia da redenção, é mais que evidente

que temos que suportar debilidades; de outra forma não haveria

necessidade do prometido socorro do Espírito nessas circunstâncias. É

preciso que às vezes enfrentemos durezas. Aos homens de bem foram

prometidas tribulações neste mundo, e os ministros podem esperar maior

parte do que outros, para aprenderem a simpatizar com o sofredor povo

do Senhor, e assim possam ser aptos pastores de um rebanho enfermo.

Poderiam ter sido enviados espíritos desencarnados para

proclamarem a Palavra, mas não teriam penetrado os sentimentos dos

que, estando neste corpo, gemem deveras, sobrecarregados que estão; os

anjos poderiam ter sido ordenados evangelistas, mas os seus atributos

celestiais os teriam incapacitados para terem compaixão dos ignorantes;

poderiam ter sido modelados homens de mármore, mas a sua natureza

impassível seria um sarcasmo para a nossa fragilidade e uma zombaria

das nossas necessidades. Foi a homens, e homens sujeitos às paixões

humanas, que o sapientíssimo Deus escolheu para serem os Seus vasos

de bênçãos; daí estas lágrimas, estas perplexidades, estas quedas.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 217

Além disso, na maioria somos, de um modo ou de outro,

fisicamente defeituosos. Aqui e ali encontramos um ancião que não se

lembra de que alguma vez tenha sido posto de lado. Mas a grande

maioria de nós trabalha com uma ou outra forma de deficiência do corpo

ou da mente. Certas doenças do corpo, principalmente as relacionadas

com os órgãos do aparelho digestivo, o fígado e o baço, são tremendas

fontes de desânimo, e, lute o homem quanto puder contra tais

influências, haverá momentos e circunstâncias em que por algum tempo

o vencerão. Quanto às doenças mentais, haverá alguém que seja

inteiramente são? Não estamos todos um pouco fora do equilíbrio?

Mentes há que parecem ter um matiz sombrio essencial á sua própria

individualidade. Pode se dizer deles:

"A melancolia os marcou para si"; mentes finas aliás, e governadas

pelos princípios mais nobres, mas muito inclinadas a olvidar o alvor da

prata e a lembrar somente a nuvem. Homens assim podem cantar com o

poeta: "Partido o coração, harpas desafinadas, por música, suspiros e gemidos, são nossas canções para a melodia das lachrymae, que a pele e ossos estamos reduzidos"

Thomas Washbourne.

Estas enfermidades podem não ser infensas à carreira do homem de

especial valor; pode até ser que lhe sejam impostas pela sabedoria divina

como necessária habilitação para o seu peculiar curso de serviço.

Algumas plantas devem as suas qualidades medicinais ao pântano em

que crescem; outras ás sombras de que dependem para florescer. Há

frutos preciosos que vicejam graças à lua, bem como graças ao sol. Os

barcos precisam de vela e também de lastro; puxar uma carreta não é

difícil quando a estrada desce morro abaixo. Provavelmente em muitos

casos foi a dor que desenvolveu o gênio, dando caga à alma que de outra

forma poderia ter ficado a dormir como um leão em sua cova. Não fosse

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 218

por sua asa quebrada, alguns poderiam ter-se perdido nas nuvens, até

mesmo alguns daqueles pombos seletos que agora trazem nas suas bocas

o ramo de oliveira e mostram o caminho para a arca.

Mas quando no corpo e na mente há causas que predispõem ao

abatimento do espírito, não é para espantar-nos se em momentos

tenebrosos o coração sucumba a elas; o que causa espanto em muitos

casos é – e se se pudesse pôr por escrito a vida interior, os homens

poderiam ver que é assim – como alguns ministros não largam do seu

trabalho de jeito nenhum, e ainda trazem um sorriso no rosto. A graça

continua tendo os seus triunfos, e a paciência os seus mártires; mártires

em nada menos dignos de honra porque as chamas atingem os seus

espíritos mais do que os seus corpos, e a sua fogueira é invisível aos

olhos humanos. Os serviços ministeriais de Jeremias são tão aceitáveis

como os de Isaías, e mesmo o rabugento Jonas é um verdadeiro profeta

do Senhor, como Nínive pôde bem perceber.

Não desprezem os coxos, pois está escrito que eles pegam a presa;

honrem, porém, aqueles que, em seu desalento, prosseguem ainda. Lia,

de olhos tenros ou baços, foi mais frutífera do que a formosa Raquel, e

as aflições de Ana foram mais divinas do que a vanglória de Penina.

"Bem-aventurados os que choram", disse o Varão de Dores, e que

ninguém os repute diferentemente quando as suas lágrimas vêm

temperadas pela graça. Temos o tesouro do evangelho em vasos de

barro, e se no vaso houver um defeito aqui e ali, que ninguém se espante.

Quando empreendemos a nossa obra fervorosamente, tomamo-nos

vulneráveis à depressão. Quem pode agüentar o peso das almas sem às

vezes afundar no pó? As entranhadas aspirações pela conversão dos

homens, se não plenamente satisfeitas (e quando são?), consomem de

angústia e desapontamento a alma. Ver os interessados irem por água

abaixo, os piedosos se esfriarem, os crentes professos abusarem dos seus

privilégios, e os pecadores ficarem mais descarados – ver estas coisas

não é suficiente para esmagar-nos contra o solo? O Reino não vem como

queremos, o venerável Nome não é santificado como desejamos, e por

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 219

isso temos que chorar. Como podemos sentir-nos doutro modo se não

entristecidos, enquanto os homens não crêem em nossa mensagem, e não

se revela o braço do Senhor? Todo trabalho mental tende a cansar-nos e

a deprimir-nos, pois o muito estudo enfado é da carne; mas o nosso

trabalho é mais que mental – é do coração, é labuta do íntimo da nossa

alma.

Quantas vezes, nas noites do dia do Senhor, nós nos sentimos como

se a vida se nos esvaísse por completo! Depois de despejar as nossas

almas sobre os nossos ouvintes, sentimo-nos como um jarro vazio que

uma criança poderia quebrar. Provavelmente, se fôssemos mais

semelhantes a Paulo, e velássemos pelas almas numa proporção mais

nobre, saberiam.os melhor o que é ser consumido pelo zelo da casa do

Senhor. É nosso dever e nosso privilégio esgotar as nossas vidas por

Jesus. Não nos compete sermos espécimes vivos de homens em fina

conservação, mas, sim, sacrifícios vivos, destinados a serem

consumidos; cabe-nos gastar e gastar-nos, e não banhar-nos em alfazema

e mimar a nossa carne. Esse trabalho de alma que um fiel ministro

realiza produz ocasionais períodos de exaustão, quando o coração e

carne falham. As mãos de Moisés ficaram pesadas na intercessão, e

Paulo clamou: "E para estas coisas quem é idôneo?" Mesmo João Batista

parece ter sofrido suas crises de desânimo. e os apóstolos ficaram cheios

de assombro e tiveram angustioso medo.

A nossa posição na igreja também conduz a isto. Um ministro

plenamente habilitado para o seu trabalho normalmente será em si

mesmo um espírito que está acima, além e à parte dos demais. O mais

afeiçoado dentre o seu povo não pode penetrar os seus pensamentos,

cuidados e tentações peculiares. Nas fileiras militares os homens andam

ombro a ombro, com muitos companheiros, mas conforme o oficial sobe

na hierarquia, os homens da sua posição vão sendo cada vez em menor

número. Há muitos soldados, poucos capitães, menos coronéis, mas

somente um comandante-em-chefe. Assim, em nossas igrejas, o homem

que o Senhor eleva como líder vem a ser, no mesmo grau em que é

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 220

homem superior, homem solitário. Os picos de montanhas ficam

solenemente isolados e falam a sós com Deus quando Ele visita as suas

terríveis soledades. Os homens de Deus que se elevam acima dos seus

semelhantes mantendo mais íntima comunhão com as realidades

celestiais, em seus momentos de maior fraqueza acham falta da simpatia

humana. Como seu Senhor no Getsêmani, buscam em vão receber

conforto dos discípulos que dormem ao seu redor; choca-os a apatia do

seu pequeno grupo de irmãos, e voltam para a sua agonia secreta com

uma carga muito mais pesada a premi-los, porque encontram dormindo

os seus mais caros companheiros.

Ninguém senão quem a suportou conhece a solidão de uma alma

que ultrapassou os seus irmãos, em dedicação ao Senhor dos Exércitos;

ela não se atreve revelar-se, temendo que os homens chamem-na de

loucura; não consegue ocultar-se, pois um fogo queima seus ossos.

Somente diante do Senhor ela acha repouso. A comissão do Senhor

enviando os Seus discípulos dois a dois põe de manifesto que Ele sabia o

que havia nos homens; mas, para um homem como Paulo parece que não

se achou parceiro. Barnabé, Silas, Lucas eram montes baixos demais

para poderem conversar com uma sumidade tipo Himalaia como o

apóstolo dos gentios. Esta solidão que, se não me engano muitos dos

meus colegas experimentam, é fértil fonte de depressão; e os nossos

encontros fraternais de ministros, e o cultivo de santo intercâmbio com

as mentes afins, com a bênção de Deus nos ajudarão grandemente a

escapar do lago.

Pouca dúvida pode haver de que os hábitos sedentários tendem a

produzir desânimo em alguns temperamentos. Burton, em sua Anatomy

of Melancholy (Anatomia da Melancolia), tem um capítulo sobre esta

causa do abatimento; e, citando um dentre miríades de autores de cuja

contribuição se serve, diz: "Os estudantes negligenciam os seus corpos. Os outros homens olham

por suas ferramentas: o pintor lava os seus pincéis; o ferreiro cuida do malho, da bigorna e da forja; o lavrador conserta os ferros do seu arado e

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 221

afia o seu machado, se estiver cego: o falcoeiro ou caçador terá especial cuidado dos seus falcões, cães, cavalos etc.; o músico aperta e desaperta as cordas do seu alaúde, afinando-o – somente os estudiosos negligenciam o instrumento (quero dizer, os seus cérebros e os seus espíritos) que usam diariamente."

Disse bem Lucan: "Não torça demais o cordão para que não

arrebente". Ficar sentado muito tempo numa só posição, com os olhos

fitos num livro, ou movendo uma caneta, é, em si mesma, fatigante à

natureza; mas, acrescentem-se a isto um quarto mal ventilado, um corpo

que passou muito tempo sem exercício muscular, e um coração

sobrecarregado de preocupações, e teremos todos os elementos

necessários para arranjar um fervente caldeirão de desespero,

principalmente nos sombrios meses de cerração: "Quando o dia é envolto num manto, quando a mata insalubre goteja, e a folha se incrusta na lama".

Se um homem for de natureza alegre como um pássaro, dificilmente

poderá manter-se assim ano após ano contra esse processo suicida. Fará

do seu escritório uma prisão e de seus livros carcereiros de um presídio,

enquanto do lado de fora da sua janela a natureza acena-lhe com a vida

saudável e chama-o para a alegria. Aquele que esquece o zumbir das

abelhas na urze, o arrulho dos pombos selvagens na floresta, o canto dos

pássaros no arvoredo, o ondular do regato por entre o junco, e os

lamentos do vento entre os pinheiros, não tem por que se espantar caso o

seu coração olvide cantar e sua alma fique pesarosa. Passar um dia

respirando o ar fresco das montanhas, ou fazer uma excursão na umbrosa

tranqüilidade das copadas faias, servirá para varrer as teias de aranha das

cabeças cheias de vincos dos nossos fatigados ministros que já andam

meio mortos. Uma tragada de ar marinho, ou uma firme caminhada

contra o vento, não dará graça à alma, que é o que há de melhor, mas

dará oxigênio ao corpo, coisa que vem em segundo lugar. "Coração pesaroso em ar pesado está; todo vento que sobe, a angústia expulsará."

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 222

As samambaias e os coelhos, os ribeiros, as trutas, os abetos e os

esquilos, as primaveras e as violetas, o terreiro da fazenda, o feno recém-

colhido, e os lúpulos fragrantes – todas essas coisas são o melhor

remédio para os hipocondríacos, os mais seguros tônicos para os

decadentes, a melhor restaurarão dos que sofrem estafa. Por falta de

oportunidade, ou de inclinação, estes grandes remédios são

negligenciados, e o estudante vai se tornando uma vítima auto-imolada.

As ocasiões mais propícias para as crises de desânimo, na medida

em que eu as tenho experimentado, podem ser resumidas num breve

catálogo. Dentre elas devo mencionar em primeiro lugar a hora de

grande sucesso. Quando um desejo há muito tempo acalentado

finalmente se cumpre, tendo Deus sido grandemente glorificado por

nosso intermédio, havendo-se alcançado grande triunfo, então estamos

sujeitos a desfalecer. Talvez se pudesse imaginar que, em meio a favores

especiais, a nossa alma pairaria nas alturas do êxtase e se regozijaria com

júbilo indescritível, mas o que se dá geralmente é o inverso. Raramente o

Senhor expõe os Seus guerreiros aos perigos da exultação pela vitória.

Ele sabe que poucos deles podem suportar um teste desses e, portanto,

quebra-lhes a taça com rigor. Vejam Elias depois de ter caído fogo do

céu, depois de terem sido mortos os sacerdotes de Baal, depois que a

chuva alagou a terra árida! Para ele nada de notas de música de

autocomplacência, nada de pavonear-se como um conquistador em

roupagens de vitorioso. Ele foge de Jezabel, e, sentindo a repulsão do seu

distúrbio intenso, suplica pedindo para morrer. Aquele que nunca haveria

de ver a morte anseia pelo repouso do sepulcro, como César, o monarca

do mundo, em seus momentos de pesar chorava como uma menina

doente.

A pobre natureza humana não pode agüentar tensões como as que

advém das vitórias celestiais; tem que sobrevir uma reação. O excesso de

alegria ou de emoção tem que ser pago com depressões subseqüentes.

Enquanto uma provação dura, a força é igual à emergência; mas quando

passa, a fraqueza natural reivindica o direito de mostrar-se. Sustentado

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 223

secretamente, Jacó pode lutar a noite inteira, mas tem que coxear de

manhã, depois de concluída a peleja, para que não se gabe além da

medida. Paulo pode ser arrebatado ao terceiro céu e ouvir coisas

indizíveis, mas um espinho na carne, um mensageiro de Satanás para

esbofeteá-lo, tem que ser a seqüela inevitável. Os homens não podem

suportar felicidade sem mistura; mesmo os bons homens não estão

habilitados ainda para terem "suas frontes cingidas de lauréis e murta",

sem que sofra secreta humilhação para mantê-los no lugar próprio.

Arrancados do solo em turbilhão por um avivamento, levados para as

alturas pela popularidade, exaltados pelo sucesso na conquista de almas,

seríamos como a palha que o vento dispersa, se a disciplina da graça e da

misericórdia não quebrasse as naves da nossa vanglória com poderoso

vento oriental, e não nos fizesse ir a pique, desnudos e desamparados,

lançando-nos na Rocha dos Séculos.

Antes de alguma grande realização, certa medida da mesma

depressão geralmente ocorre. Divisando as dificuldades que se nos

antepõem, os nossos corações sucumbem dentro de nós. Os filhos de

Enaque se agigantam diante de nós, e somos como gafanhotos aos

nossos próprios olhos na presença deles. As cidades de Canaã são

muradas até aos céus, e quem somos nós para esperar capturá-las?

Estamos dispostos a largar as armas e a fugir o mais depressa possível.

Nínive é uma grande cidade, e deveríamos fugir para Társis, e não ir ao

encontro das suas ruidosas multidões. Já procuramos um navio que nos

leve tranqüilamente para longe do terrível cenário, e só o medo do

temporal refreia os nossos covardes passos. Foi esta a minha experiência

quando no começo me tornei pastor em Londres.

O meu sucesso me aterrorizou; e a idéia da carreira que parecia

abrir-se, muito longe de entusiasmar-me, lançou-me às maiores

profundezas, das quais pronunciei o meu miserere e não achei lugar para

cantar gloria in excelsis. Quem era eu para continuar liderando tão

grande multidão? Queria ir para a minha obscuridade aldeã, ou emigrar

para a América e encontrar um ninho no ermo onde fosse idôneo para as

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 224

coisas que se exigissem de mim. Mas precisamente aí a cortina estava se

levantando sobre a obra da minha vida, e temi o que poderia sobrevir. Eu

espero que não tenha sido falta de fé, mas eu estava temeroso e

completamente tomado pelo senso da minha inépcia. Estava com medo

de uma obra que a Providência repassada da graça divina preparava para

mim. Senti-me como simples criança, e tremi quando ouvi a voz que

dizia: "Levanta-te, malha as montanhas, e faz delas palha".

Esta depressão me sobrevém sempre que o Senhor está preparando

maior bênção para o meu ministério; a nuvem é negra antes de romper-

se, e produz escuridão antes de entregar o seu dilúvio de misericórdia. A

depressão passou a ser para mim como um profeta rusticamente vestido,

um João Batista, anunciando a próxima vinda de bênçãos mais ricas do

meu Senhor. Assim pensaram homens muito melhores. O brunimento do

vaso aparelha-o para uso do Senhor. A imersão no sofrimento precede o

batismo do Espírito Santo. O jejum abre o apetite para o banquete. O

Senhor se revela no interior do deserto, enquanto o Seu servo cuida das

ovelhas e o aguarda em solitário temor. O deserto é o caminho para

Canaã. O fundo vale leva para a montanha altaneira. A derrota é

preparativo para a vitória. O corvo é enviado antes da pomba. A hora

mais escura da noite precede o raiar do dia. Os marinheiros descem às

profundezas, mas a onda seguinte os faz subir aos céus; suas almas se

derretem de angústia antes de serem trazidos por Ele ao porto desejado.

Em meio a uma longa tirada de trabalho ininterrupto, pode-se

achar a mesma aflição. Não se pode dobrar o arco o tempo todo sem

temer quebrá-lo. O repouso é necessário à mente tanto quanto o sono ao

corpo. Nossos sabbaths – nossos domingos – são os nossos dias de

trabalho, e se não descansarmos nalgum outro dia, ficaremos prostrados.

Mesmo a terra precisa ficar sem lavradio e ter os seus períodos sabáticos;

assim conosco. Daí a sabedoria e compaixão do nosso Senhor, quando

disse aos Seus discípulos: "Vinde vós aqui à parte, a um lugar deserto, e

repousai um pouco". O quê?! Quando o povo está desfalecido? Quando

as multidões estão como ovelhas nas montanhas sem pastor? E Jesus fala

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 225

de descanso? Quando os escribas e fariseus, quais lobos vorazes, rondam

o rebanho, leva Ele os Seus discípulos para um tranqüilo lugar de

repouso? Algum zelote queimando como ferro em brasa denuncia esse

atroz esquecimento das presentes e prementes necessidades? Deixe-o

enfurecer em sua estultícia!

O Mestre sabe de algo melhor do que esgotar os Seus servos e

extinguir a luz de Israel. O tempo de repouso não é tempo perdido. É

economia juntar novas forças. Vejam o ceifeiro no dia de verão, com

tanto que ceifar antes de pôr-se o sol. Faz pausa em seu labor. É

preguiçoso? Busca a sua pedra e começa a esfregá-la para cima e para

baixo em sua foice, soando "roque-froque, roque-froque, roque-froque".

Essa música é ociosa? Estará ele desperdiçando preciosos momentos?

Quanto poderia colher durante o tempo que passa tocando aquelas notas

na lâmina da foice!

Mas ele está afiando a ferramenta, e conseguirá muito mais quando

tornar a por força naqueles longos movimentos que fazem a erva cair

prostrada em fiadas diante dele. Exatamente assim uma pequena pausa

prepara a mente para prestação de maior serviço à boa causa. Os

pescadores têm que consertar as suas redes, e de vez em quando nós

temos que reparar o nosso desgaste mental e pôr o nosso maquinismo em

ordem para serviços futuros. Mover o remo dia a dia, como o escravo das

galés que não conhece dia de descanso, não presta para os mortais. A

corrente que toca o moinho corre, e corre sempre, sem parar, mas nós

necessitamos ter nossas pausas e nossos intervalos.

A quem pode ajudar ficar sem fôlego quando se continua a corrida

sem interrupção? Mesmo os animais de carga devem ser deixados no

pasto ocasionalmente; o próprio mar faz pausa na baixa-mar e na

preamar; o solo guarda o sábado dos meses hibernais; e o homem, ainda

quando elevado à posição de embaixador de Deus, ou descansa ou

desfalecerá; ou limpa a sua lâmpada, ou terá luz fraca; ou reabastece a

sua energia, ou ficará velho prematuramente. É sábio tirar férias

ocasionais. Na contagem final, faremos mais, fazendo menos de vez em

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 226

quando. Seguir no trabalho mais e mais, para sempre, sem recreação,

pode servir para os espíritos emancipados deste "barro pesado", mas

enquanto estivermos neste tabernáculo, temos que uma vez ou outra

gritar, alto!! e servir ao Senhor mediante santa inação e consagrado lazer.

Que nenhuma tenra consciência duvide da legitimidade de deixar o

serviço ativo por algum tempo, mas aprenda com a experiência de outros

a necessidade e o dever de fazer oportuno repouso.

Um golpe esmagador às vezes deixa o ministro muito abatido. O

irmão em que mais se confiava torna-se um traidor. Judas levanta o

calcanhar contra o homem que confiava nele, e o coração do pregador

lhe falha na hora. Todos nós estamos prontos demais para ver uma arma

carnal, e dessa propensão surgem muitas das nossas tristezas. O golpe é

igualmente demolidor quando um honrado e estimado irmão se rende a

alguma tentação, e leva à desgraça o santo nome pelo qual era chamado.

Qualquer coisa é melhor do que isto. Isto leva o ministro a ansiar por

uma cabana em algum vasto deserto onde possa ocultar a cabeça para

sempre, e não ouvir mais as zombarias blasfemas dos ímpios. Dez anos

de trabalho não tiram tanto da vida como o que perdemos em poucas

horas por causa de Aitofel, o traidor, ou de Demas, o apóstata. As

contendas, também, e as divisões, as calúnias e as críticas tolas, muitas

vezes prostram santos homens e os fazem ir "como com uma espada nos

ossos". As palavras duras ferem profundamente certas mentes delicadas.

Muitos dos melhores ministros, pela própria espiritualidade do seu

caráter, são excessivamente sensíveis – sensíveis demais para um mundo

como este. "Um coice que mal move um cavalo, mata um bom teólogo."

Pela experiência a alma enrijece-se para os rudes golpes que são

inevitáveis em nossa guerra; mas, no início, essas coisas nos abalam

completamente e nos mandam para casa envoltos no horror de grandes

trevas. As provações de um verdadeiro ministro não são poucas, e as que

são causadas por crentes professos ingratos são mais duras de agüentar

do que os mais grosseiros ataques de inimigos confessos. Oxalá nenhum

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 227

homem que anda em busca de tranqüilidade mental e de quietude na vida

entre no ministério; se o fizer, fugirá dele desgostoso.

A poucos toca passar pelo horror de densas trevas como o que me

coube experimentar depois do deplorável incêndio ocorrido no Teatro

Musical de Surrey. Senti-me oprimido além da conta e fora dos limites

por um enorme fardo de miséria. O tumulto, o pânico, as mortes,

estiveram dia e noite diante de mim e tornaram minha vida uma carga.

Então cantei em meu pesar: "O tumulto dos meus pensamentos apenas aumentou minha aflição; fana-se o espírito, e fica desolado e débil o meu pobre coração".

Desse pesadelo de terror fui despertado num momento pela

abençoada aplicação à minha alma do texto: "Deus com a sua destra o

elevou". O fato de que Jesus continua sendo grandioso, sofram os Seus

servos o que sofrerem, conduziu-me de volta à razão calma e à paz. Se

tão terrível calamidade sobrevier a um dos meus irmãos, oxalá tenha

paciente esperança e aguarde pela salvação de Deus.

Quando as aflições se multiplicam, e os desencorajamentos se

seguem uns aos outros em longa sucessão, como mensageiros de Jó, daí,

também, em meio à perturbação da alma ocasionada pelas más notícias,

o desânimo despoja o coração de toda a sua paz. O constante gotejar

dissolve pedras, e as mentes mais bravias sentem-se corroídas pelas

repetidas aflições. Se um guarda-comida escassamente suprido é

provação agravada pela doença da esposa ou pela perda de um filho, e se

as observações nada generosas dos ouvintes vêm seguidas pela oposição

dos presbíteros e pela frieza dos membros da igreja, então, como Jacó,

somos capazes de lamentar: "Todas estas coisas vieram sobre mim".

Quando Davi retornou a Ziclague e viu que a cidade fora queimada, os

seus bens foram saqueados, suas esposas foram raptadas, e as suas

próprias tropas estavam prontas para apedrejá-lo, lemos: "Davi se

reanimou no Senhor seu Deus". E foi bom para ele agir assim pois, do

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 228

contrário, teria desfalecido se não cresse que veria a bondade do Senhor

na terra dos viventes.

Angústias acumuladas aumentam o peso umas das outras; dão-se as

mãos e, como bandos de salteadores, destroem brutalmente o nosso

conforto. Onda após onda é trabalho duro para o nadador mais vigoroso.

O lugar em que dois mares se encontram força demais a quilha mais

navegável. Se houvesse uma pausa sistemática entre as bofetadas da

adversidade, o espírito ficaria prevenido; mas quando vêm súbita e

pesadamente, como pancadas de saraiva grossa, bem pode acontecer que

o peregrino fique aterrorizado. O último grama da carga quebranta o

lombo do camelo, e quando esse último grão é lançado sobre os nossos

lombos, por que espantar-nos se por um pouco de tempo ficamos prontos

para render o espírito?!

Este mal também nos atinge sem que saibamos a razão, caso em

que é a coisa mais difícil eliminá-lo. Não se pode arrazoar com

depressão desmotivada. Tampouco pode a harpa de Davi encantá-la e

expulsá-la com os seus suaves argumentos. É como lutar com o

nevoeiro, enfrentar esta situação informe, indefinível e trevosa de

desamparo. Nem a gente mesmo tem dó de si neste caso, porque parece

irrazoável, e até pecaminoso, ficar angustiado sem causa evidente; e,

todavia, o homem está deveras angustiado, no mais profundo do seu

espírito. Se os que se riem dessa melancolia apenas sentissem por uma

hora a sua dor, o riso deles seria silenciado pela compaixão. Uma

disposição resoluta poderia talvez sacudi-la de nós, mas onde

poderíamos achar resolução quando todo o ser está frouxo?

O médico e o pastor podem unir as suas habilidades nesses casos, e

ambos se vêem de mãos ocupadas, e mais que ocupadas. O ferrolho de

metal que tão misteriosamente tranca a porta da esperança e mantém os

nossos espíritos em tétrica prisão, requer mão celestial que o force a

abrir-se; e quando se vê essa mão, clamamos com o apóstolo: "Bendito

seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e

o Deus de toda a consolação; que nos consola em toda a nossa

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 229

tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em

alguma tribulação, com a consolação com que nós mesmos somos

consolados de Deus" (2 Coríntios 1.3-4). É o Deus de toda a consolação

que pode: "Com doce e esquecido antídoto varrer do pobre peito o perigoso entulho que pesa no coração".

Simão afunda enquanto Jesus não o toma pela mão. O demônio no

interior do ser rasga e fere a pobre criança enquanto a palavra de

autoridade não lhe ordena que saia dela. Quando nos dominam horríveis

temores, e nos vemos prostrados por intoleráveis demônios da noite, só

precisamos que surja o Sol da Justiça, e os males gerados em nossas

trevas serão expulsos; entretanto, nada menos que isto porá em fuga o

pesadelo da alma. Timothy Rogers, autor de um tratado sobre a

melancolia, e Simon Browne, escritor de alguns hinos notavelmente

belos, experimentaram em seus próprios casos como é vão o socorro do

homem, se o Senhor retirar a luz da sua alma.

Se se perguntar por que tantas vezes os servos do Rei Jesus têm que

atravessar o Vale da Sombra da Morte, a resposta não está longe. Tudo

isso promove o modo de agir do Senhor, que se resume nestas palavras:

"Não por força nem por violência, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor".

Os instrumentos serão empregados, mas a sua fraqueza intrínseca se

manifestará claramente; não se fará nenhuma divisão da glória, nenhuma

diminuição da honra devida ao Grande Trabalhador. O homem será

esvaziado de si, e depois será enchido do Espírito Santo. Em sua própria

apreensão do fato, ele será como uma folha seca levada pela tempestade,

e depois será fortalecida transformando-se num muro de bronze contra

os inimigos da verdade. Encobrir ao obreiro o orgulho é a grande

dificuldade. O sucesso ininterrupto e a alegria inapagável por ele iriam

além do que as nossas cabeças podem suportar. Nosso vinho tem que ser

misturado com água, se não, transtorna os nossos miolos.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 230

Meu testemunho é que os que são honrados pelo Senhor em

público, geralmente têm que sofrer castigo secreto, ou têm que carregar

uma cruz peculiar, a fim de que de algum modo não se exaltem a caiam

no lago do diabo. Com que freqüência o Senhor chama Ezequiel de

"Filho do homem"! Em meio aos seus vôos penetrando esplendores

superlativos, exatamente quando, com os olhos límpidos, é capacitado a

contemplar a glória sublime, a expressão "Filho do homem" cai em seus

ouvidos, serenando o coração que, de outra forma, poderia intoxicar-se

com a honra a ele conferida. Tais mensagens humilhantes mas salutares

murmuram aos nossos ouvidos as nossas depressões; falam-nos de

maneira inequívoca que somos apenas homens, frágeis, débeis, sujeitos a

desfalecer.

Mediante todos os tombos dos Seus servos, Deus é glorificado, pois

eles são levados a engrandecê-lo quando Ele os coloca a Seus pés, e

precisamente quando prostrados no pó, sua fé lhe rende louvor. Falam

com o maior dulçor da Sua fidelidade, e ficam firmados com a maior

solidez em Seu amor. Homens amadurecidos assim, como são alguns

idosos pregadores, dificilmente ter-se-iam produzido se não tivessem

sido esvaziados vaso a vaso, e não tivessem sido levados a ver a sua

própria vacuidade e a vaidade de todas as coisas que os cercam. Glória

seja dada a Deus pela fornalha, pelo malho e pela lima. O céu estará todo

cheio de bem-aventurança porque nos enchemos de angústia cá embaixo,

e a terra será mais bem cultivada por causa do nosso treinamento na

escola da adversidade.

A lição da sabedoria é: não desfaleçam pela aflição de alma. Não a

considerem coisa estranha, mas parte da experiência ministerial comum.

Se o poder da depressão for extraordinário, não pensem que toda a sua

utilidade está perdida. Não repudiem a sua confiança, pois terá por

prêmio grande recompensa. Mesmo que o pé do inimigo esteja sobre os

vossos pescoços, tenham esperança de levantar-se e dominá-lo. Lancem

o fardo do presente, o pecado do passado e o medo do futuro, todos

juntos, aos cuidados do Senhor, que não abandona os Seus santos.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 231

Vivam o dia presente – sim, a hora. Não ponham confiança em

disposições de espírito e em sentimentos. Atentem mais para um grão de

fé que para uma tonelada de agitação emocional. Confiem em Deus

somente, e não se inclinem a ceder às necessidades de ajuda humana.

Não se surpreendam quando os amigos falharem com vocês: este é

um mundo falho. Jamais contem com a imutabilidade dos homens; com

a inconstância vocês podem contar sem temer decepção. Os discípulos

de Jesus O abandonaram; não se espantem, então, se os vossos adeptos

se apartarem indo atrás de outros mestres: como não eram tudo o que

vocês tinham quando eles estavam em vossa companhia, nem tudo vos

deixou quando partiram.

Sirvam a Deus com todas as suas forças enquanto arde a candeia, e

depois, quando se apagar por algum tempo, terão o mínimo para

lamentar. Contentem-se em nada ser, pois é o que são. Quando a

vacuidade oprimir dolorosamente a consciência, ralhem consigo

mesmos, lembrando-se de que nunca sonharam estar cheios, exceto no

Senhor. Dêem pouco valor às recompensas atuais; sejam agradecidos

pelos pequenos prêmios recebidos durante o percurso, mas busquem a

recompensadora alegria vindoura.

Continuem servindo ao Senhor com redobrado fervor quando não

se lhes apresentar nenhum resultado visível. Qualquer simplório pode

seguir pelo caminho estreito na luz; a rara sabedoria da fé nos capacita a

prosseguir no escuro com precisão infalível, visto que ela põe a mão na

do Grande Guia. Entre este ponto e o céu ainda poderá ocorrer mau

tempo, mas o Senhor da aliança tomou providências para tudo. Em nada

saiamos do caminho que a vocação divina induziu-nos a seguir. Bom ou

ruim, o púlpito é nossa torre de vigia, e o ministério é a nossa guerra;

compete-nos, quando não pudermos ver o rosto de Deus, confiar à

sombra das Suas asas.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 232

A CONVERSAÇÃO COMUM DO MINISTRO

Nosso tema agora será a conversação comum que o ministro

mantém quando se mistura com os homens em geral e se supõe que

esteja bem descontraído. Como deverá ordenar o seu falar entre os seus

semelhantes.

Primeiramente e acima de tudo, permitam-me dizer, que ele trate de

não se dar ares ministeriais, mas que evite tudo que seja bombástico,

oficial, vaidoso e pretensioso. "Filho do homem" é um nobre título; foi

dado a Ezequiel, e a Alguém que foi maior do que ele. Não deixem que o

embaixador do céu seja outra coisa que filho do homem. Na verdade, é

bom que se lembre de que quanto mais simples e despretensioso ele for,

mais intensamente se assemelhará àquele menino-homem, o santo

menino Jesus.

É possível fazer esforço demais para ser grande ministro, e isso

resulta em tornar-se homem bastante pequeno; mas, quanto mais

verdadeiro homem você for, mais verdadeiramente será o que um servo

do Senhor deve ser. Os mestres e os ministros geralmente têm uma

aparência que lhes é peculiar; num sentido errôneo, eles "não são como

os demais homens". Como demasiada freqüência eles são pássaros

mosqueados, dando a impressão de que não se sentem à vontade entre os

outros habitantes da região, mas, sim, sem jeito e fora do comum.

Sempre que vejo um flamingo com o seu andar altivo e grave, uma

coruja piscando na sombra, ou uma cegonha seriamente perdida em seus

pensamentos, sou irresistivelmente levado a lembrar-me de alguns dos

meus dignos irmãos, colegas de magistério e de ministério, que são tão

maravilhosamente extraordinários em todas as ocasiões, que mal chegam

a ser divertidos. É fácil adquirir o modo respeitável, imponente, nobre,

importante, austero; mas vale a pena adquiri-lo?

Theodore Hook uma vez marchou até um cavalheiro que desfilava

na rua com grande pompa, e lhe perguntou: "O senhor não é uma

personalidade de grande importância?" – e às vezes a gente se sente

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 233

inclinado a fazer a mesma coisa com certos irmãos de traje clerical.

Conheço irmãos que, dos pés à cabeça, no traje, no tom, nos modos, na

gravata e nas botinas, são tão completamente clericais que nenhuma

partícula de virilidade é visível. Um recente rebento da teologia precisa

andar pelas ruas de batina, e outro da Igreja Anglo-Católica publicou nos

jornais com muita satisfação que atravessara a Suíça e a Itália usando em

toda parte o seu barrete de clérigo; poucos rapazes teriam tido tanto

orgulho de um abominável gorro.

Nenhum de nós corre perigo de ir tão longe assim em nosso modo

de vestir-nos; mas podemos assemelhar-nos àquilo em nosso

maneirismo. Alguns parecem ter um colarinho branco apertando as suas

almas; a sua masculinidade é sufocada por aquele trapo engomado.

Certos irmãos mantêm um ar de superioridade que eles julgam

impressionante, mas que é simplesmente ofensivo, e eminentemente

oposto ás suas pretensões como seguidores do humilde Jesus. O

orgulhoso duque de Somerset dava ordens a seus criados por meio de

sinais, não condescendendo em falar com seres tão baixos; os filhos dele

nunca ficavam sentados em sua presença, e quando dormia de tarde, suas

filhas ficavam, uma de cada lado dele, durante o seu augusto repouso.

Quando elementos vaidosos como Somerset entram no ministério,

assumem dignidade de outras maneiras quase igualmente absurdas.

"Parado aí; sou mais santo do que tu", é o que está escrito na testa deles.

Uma vez, um bem conhecido ministro foi censurado por um

sublime irmão por sua indulgência para com algum luxo, e o grande

argumento foi a despesa. "Bem, bem", replicou ele, "pode haver algo

nisso. Mas, lembre-se, não gasto com a minha fraqueza a metade do que

você gasta com goma". Este é o artigo que estou criticando, a terrível

goma ministerial. Se algum de vocês cedeu nisso, vigorosamente o

exorto a ir lavar-se "sete vezes no Jordão", e tire-a de si, sem deixar

nenhuma partícula dela. Estou persuadido de que uma razão pela qual os

nossos operários tão universalmente querem distância dos ministros é

porque detestam as suas maneiras artificiais e antimasculinas. Se nos

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 234

vissem, no púlpito e fora dele, agindo como homens de verdade, e

falando com naturalidade, como homens sinceros, eles nos rodeariam.

Ainda vale a observação de Baxter: "A falta de tom e de expressão

familiares é um grande defeito da maioria das nossas prédicas, coisa que

devemos ter todo o cuidado de corrigir". O erro do ministério é que os

ministros querem clericalizar o evangelho. Temos que ter humanidade

junto com a nossa "divindade" (teologia), se é que desejamos ganhar as

massas. Toda gente é capaz de perceber afetações e provavelmente o

povo não se deixa levar por elas. Irmãos, joguem fora as suas pernas-de-

pau, e andem firmados em seus pés; dispam-se do seu eclesiasticismo e

vistam-se da verdade.

Contudo, um ministro é um ministro, esteja onde estiver, e deve

lembrar-se de que está sempre em serviço. Um policial ou soldado pode

ficar de folga, mas o ministro nunca. Mesmo em nossas recreações

devemos continuar perseguindo o grande objetivo das nossas vidas, pois

somos chamados para sermos diligentes "a tempo e fora de tempo". Não

há situação em que possamos achar-nos fora do alcance da pergunta do

Senhor: "Que fazes aqui, Elias?", e devemos ser capazes de responder

logo: "Tenho algo para fazer por Ti neste lugar, e estou tentando fazê-

lo". É claro que de vez em quando o arco tem que ficar solto, frouxo, ou

se não perderá a sua elasticidade, mas não há necessidade de cortar-lhe a

corda. Estou falando por ora do ministro em suas ocasiões de

descontração, e mesmo então digo que ele deve conduzir-se como

embaixador de Deus, e apegar-se ás oportunidades de fazer o bem. Isto

não estragará o seu repouso, e, sim, o santificará.

O ministro deve ser como certa câmara que vi em Beaulieu, em

New Forest, onde jamais se vê uma teia de aranha. É um grande quarto

de despejo, e nunca é varrido. Apesar disso, nenhuma aranha o mancha

com os emblemas da negligência. O teto é de castanheiro e, por alguma

razão, não sei qual, as aranhas não se aproximam dessa madeira em

nenhuma época do ano. A mesma coisa me foi mencionada nos

corredores da Winchester School. Disseram-me: "Nunca vem nenhuma

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 235

aranha aqui". As nossas mentes devem de igual forma estar livres de

hábitos ociosos.

Nos nossos lugares públicos de descanso para os carregadores da

cidade de Londres podemos ler as palavras, "Descanse, mas não

vagabundeie"; e contém conselho digno de atenção. Não chamo de

indolência o dolce far niente. Há um doce não fazer nada que é

justamente o melhor remédio do mundo para a mente exausta. Quando a

mente fica fatigada e em desordem, repousar não é mais ociosidade do

que o sono; e ninguém diria que dormir no tempo próprio é preguiça. É

muito melhor estar dormindo industriosamente do que ficar

preguiçosamente acordado. Irmão, esteja pronto para fazer o bem,

mesmo em seus períodos de repouso e em suas horas de lazer, e assim

será de fato um ministro, e não lhe será preciso proclamar que o é.

Fora do púlpito, o ministro cristão deve ser sociável. Ele não é

enviado ao mundo para ser um eremita, ou um monge de La Trappe – da

ordem dos trapistas. Sua vocação não consiste em postar-se no alto de

uma coluna o dia todo, acima dos seus semelhantes, como aquele

desatinado Simão Estilita dos velhos tempos. Não lhe cabe ficar

pipilando no alto de uma árvore, como um rouxinol invisível, mas ser

homem entre os homens, a dizer-lhes: "Sou como vocês, em tudo quanto

se relaciona com o homem". De nada vale o sal no saleiro; tem que ser

posto na comida; e a nossa influência precisa penetrar e temperar a

sociedade. Afastando-se dos outros, como poderá beneficiá-los? O nosso

Mestre foi a uma festa de casamento, comia com publicanos e pecadores,

e contudo era mais puro do que aqueles beatos fariseus cuja glória estava

em manter-se separados dos seus semelhantes.

É preciso dizer a alguns ministros que eles são da mesma espécie

dos seus ouvintes. É um fato notório mas bem o podemos declarar, que

os bispos, os cônegos, os arcedíagos, os prebendados, os deãos rurais, os

párocos, os vigários, e até os arcebispos, não passam de homens afinal de

contas; e Deus não cercou um recanto sagrado da terra para lhes servir de

câmara clerical, para ficarem sozinhos.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 236

Não seria uma coisa má se houvesse um ressurgimento da santa

conversação no pátio da igreja e no pátio de reuniões. Gosto de ver o

arvoredo de grandes teixos com assentos ao redor. Parecem dizer:

"Sente-se aqui, amigo, e fale sobre o sermão. Aí vem o pastor. Ele se

juntará a nós, e teremos um bate-papo santo e agradável". Não é com

todos os pregadores que nos interessaríamos em manter conversa; mas

há alguns que, para conversar uma hora com eles, a gente daria uma

fortuna. Gosto de um ministro cujo rosto me convida para fazê-lo meu

amigo – um homem em cujo limiar de porta se lê: "Salve", "Bem-vindo",

e se sente que não há necessidade daquela advertência encontradiça:

"Cuidado com o cão".

Dêem-me um homem que as crianças rodeiam, como os insetos

rodeiam um jarro de mel; elas são juízes de primeira classe de um bom

homem. Quando Salomão foi testado pela rainha de Sabá quanto à sua

sabedoria, dizem os rabinos que ela levou consigo algumas flores

artificiais, lindamente confeccionadas e delicadamente aromatizadas,

como fac-símiles de flores verdadeiras. Ela pediu a Salomão que

descobrisse quais eram artificiais e quais eram naturais. O sábio mandou

os seus servos abrirem a janela, e quando as abelhas entraram, voaram

imediatamente para as flores naturais, e não deram a mínima atenção às

artificiais. Assim vocês verão que as crianças têm os seus instintos, e

descobrem depressa quem é amigo delas, e acreditem que o amigo das

crianças é alguém que vale a pena conhecer.

Tenham uma boa palavra para dizer a todos e a cada membro da

família – aos moços, às moças, às menininhas, a todos. Não se sabe o

que um sorriso e uma frase cordial podem fazer. Quem tem o dever de

fazer muito com os homens precisa amá-los e sentir-se à vontade com

eles. O indivíduo destituído de cordialidade, melhor seria que fosse

agente funerário e enterrasse os mortos, porque nunca terá sucesso

quanto a influenciar os vivos.

Encontrei algures a observação de que para ser pregador popular é

preciso ter entranhas. Receio que a intenção desta observação seja

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 237

criticar suavemente certos irmãos pela tremenda corpulência que vieram

a ter; mas há verdade nela. O homem deve ter grande coração, se quiser

ter uma grande congregação. O seu coração deve ter tão ampla

capacidade como aqueles nobres portos ao longo da nossa costa

marítima, que têm largueza suficiente para abrigar toda uma frota.

Quando um homem tem coração grande e amoroso, os homens vão a ele

como os navios a um porto, e sentem paz quando ancorados a sota-vento

da sua amizade. Tal homem é cordial, tanto em particular como em

público; seu sangue não é frio, não é sangue de peixe, mas é cálido como

a lareira a que vocês se aquecem. Nenhum orgulho e egoísmo lhes causa

calafrios quando vocês se aproximam dele; ele mantém abertas todas as

suas portas para recebê-lo, e num instante vocês ficam à vontade junto

dele. Gostaria de persuadir vocês, cada um de vocês, a serem homens

desse tipo.

O ministro cristão deve ser alegre também. Não creio em andar por

aí como certos monges que vi em Roma, que se saúdam uns aos outros

em tons sepulcrais, e transmitem a prazenteira informação: "Irmão,

temos que morrer", e a essa vívida saudação, cada um dos vívidos irmãos

da ordem responde: "Sim, irmão, temos que morrer". Alegrou-me ser

certificado, com base nessa boa autoridade, de que todos esses sujeitos

indolentes estão prestes a morrer; de modo geral, é quase a melhor coisa

que eles podem fazer. Mas, enquanto não se dá esse acontecimento, eles

poderiam usar uma forma de saudação mais confortante.

Sem dúvida há algumas pessoas que se impressionam com a

aparência muito solene dos ministros. Ouvi falar de alguém que se

convenceu de que tem que haver algo na religião católica romana, por

causa da aparência extremamente faminta e chupada de certo

eclesiástico. "Olhem", disse aquele, "como o homem está que é quase

esqueleto por seus jejuns diários e suas vigílias noturnas! Como ele

mortifica a sua carne!" Ora, as probabilidades são de que o emaciado

sacerdote estivesse labutando com alguma doença interna, da qual se

alegraria de coração se pudesse livrar-se, e não fosse o domínio do

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 238

apetite, mas a falta de digestão, que o tivesse reduzido tanto; ou talvez

uma consciência atribulada, que o tivesse desgastado, reduzindo-lhe

assim o peso.

Certamente nunca achei um texto que mencione a proeminência dos

ossos como evidência da graça. Se fosse assim, "O Esqueleto Vivo"

deveria ser exibido, não apenas como uma curiosidade da natureza, mas

como padrão de virtude. Alguns dos maiores velhacos do mundo têm

sido na aparência tão mortificados como se vivessem de gafanhotos e

mel silvestre. É erro vulgar supor que um semblante melancólico seja

índice de coração agraciado. Recomendo jovialidade a todos os que

desejam ganhar almas para Cristo; não leviandade e ostentação fútil, mas

espírito cordial e feliz. Pegam-se mais moscas com mel do que com

vinagre, e haverá mais almas levadas para o céu pelo homem que usa o

céu no rosto, do que pelo que traz o tártaro no semblante.

Os jovens ministros, e, na verdade, todos os demais, quando na

companhia de outras pessoas, devem ter o cuidado de não monopolizar

toda a conversação. Estão bem qualificados para fazê-lo, sem dúvida.

Digo isso por sua capacidade para ensinar e por sua facilidade de

expressão. Mas devem lembrar-se de que as pessoas não estão

interessadas em receber instrução perpetuamente; gostam de ter a sua

vez na conversa. Nada agrada tanto a algumas pessoas, como deixá-las

falar, e talvez lhes seja benéfico agradá-las.

Certa noite passei uma hora com um personagem que me honrou

dizendo que achava que eu era uma companhia encantadora, com

conversa muitíssimo instrutiva; contudo, não hesito em confessar que eu

não disse quase nada, mas deixei que só ele falasse. Pelo exercício da

paciência, ganhei a sua boa opinião e a oportunidade de lhe falar noutras

ocasiões. À mesa não se tem mais direito de falar tudo, do que de comer

tudo. Não devemos considerar-nos o Senhor Oráculo, diante de quem

nenhum cão deve abrir a boca. Não. Permita-se que todos os membros

do grupo contribuam dos seus depósitos, e terão os melhores

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 239

pensamentos sobre as palavras piedosos com as quais vocês procuram

temperar o discurso.

Haverá algumas ocasiões nas quais vocês estarão presentes,

especialmente no início do seu ministério, quando todos ficarão

atemorizados pela majestade da sua presença, e o povo será convidado

porque o novo ministro estará ali. Tal posição faz-me lembrar a mais fina

estatuária do Vaticano. Abre-se uma pequena sala, corre-se uma cortina,

e, eis aí! diante de você ergue-se o grande Apolo! Se lhe couber a penosa

sorte de ser o Apolo do grupo, dê fim ao absurdo! Se eu fosse o Apolo,

gostaria de sair do pedestal e apertar a mão de toda gente, e melhor seria

que você fizesse a mesma coisa, pois, mais cedo ou mais tarde, o

alvoroço que fazem em torno de você terá fim, e o procedimento mais

sábio será dar-lhe cabo você mesmo.

O culto do herói é uma espécie de idolatria, e não deve ser

estimulado. Os heróis agem bem quando, fazendo como os apóstolos em

Listra, ficam horrorizados com as honras que lhes prestam, e correm pelo

meio do povo, gritando: "Varões, por que fazeis essas coisas? Nós

também somos homens como vós, sujeitos às mesmas paixões". Os

ministros não precisarão fazer isso por muito tempo, pois, os seus

estultos admiradores são bem capazes de virar-se contra eles e, se não os

apedrejarem quase até à morte, irão até onde sua ousadia lhes permitir,

em sua grosseria e menosprezo.

Conquanto eu diga, "Não exagere no falar, e não assuma

importância que não passa de impostura", digo porém, não seja mudo.

As pessoas formarão uma estimativa a respeito de você e do seu

ministério por aqui que notam em seu falar particular tanto como em

seus discursos em público. Muitos jovens se arruinaram no púlpito por

serem indiscretos na sala de visitas, e perderam toda a possibilidade de

serem úteis por causa da sua insensatez ou frivolidade em meio a outras

pessoas. Não seja um pedaço de pau inanimado. Na Feira de Antuérpia,

entre muitas curiosidades anunciadas com enormes quadros e grandes

alardes, avistei uma barraca em que havia "uma grande maravilha" que

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 240

se podia ver por apenas uns níqueis; era um homem petrificado. Não

gastei a quantia exigida para a entrada, pois eu tinha visto de graça

muitíssimos homens petrificados, no púlpito e fora dele – sem vida,

negligentes, destituídos de bom senso, e completamente inertes, apesar

de se ocuparem da atividade mais importante que o homem poderia

exercer.

Procure mudar a conversa, dando-lhe uso proveitoso. Seja

comunicativo, alegre etc., mas labute para realizar alguma coisa. Por que

você deveria semear vento ou arar pedra? Considere-se, depois de tudo, a

si próprio como muito responsável pela conversação que é mantida onde

você se encontra, pois é esta a estima em que normalmente será tido –

que você será o timoneiro da conversação. Portanto, conduza-a para um

bom rumo. Faça isso sem ser rude e sem forçar. Mantenha em boa ordem

os pontos da linha, e o trem correrá pelos trilhos sem um solavanco.

Esteja preparado para agarrar com destreza as oportunidades, e conduzir

imperceptivelmente as coisas pela trilha desejada. Se o seu coração

estiver posto nisto, e se o seu espírito estiver desperto, isto será bastante

fácil, especialmente se você elevar uma oração pedindo direção.

Nunca me esqueço da maneira como um indivíduo sedento apelou

para mim em Clapham Common. Eu o vi num enorme carro no qual

levava um pacote extremamente pequeno, e lhe perguntei por que não

punha o pacote no bolso e deixava o veículo em casa. Disse-lhe eu: "É

esquisito ver um carro tão grande para uma carga tão pequena". Ele

parou e, olhando-me seriamente no rosto, disse: "Sim, senhor, é

esquisito; mas, você sabe, hoje mesmo vi uma coisa mais esquisita ainda.

Andei por aí trabalhando e suando todo este bendito dia, e até agora não

encontrei nem um só cavalheiro que me parecesse disposto a dar-me uma

garrafa de cerveja, até que encontrei você".

Achei que ele manobrou com muita habilidade aquela virada na

conversação, e nós, com muito melhor assunto em nossas mentes,

devemos ser igualmente capazes de apresentar o tópico em que o nosso

coração está posto. O homem agiu com tanta facilidade, que tive inveja

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 241

dele, pois eu não achei coisa simples assim apresentar o meu próprio

tópico à sua consideração. Entretanto, se eu tivesse pensado tanto em

como fazer-lhe bem quanto ele em como obter uma bebida, estou certo

de que teria tido sucesso em atingir o meu objetivo. Se por todos os

modos havemos de salvar alguns, devemos, como o nosso Senhor fez,

falar à mesa com bom propósito em mente – sim, e à beira do poço, pelo

caminho, na praia do mar, em casa e no campo. Ser um santo palestrante

em prol de Jesus pode ser um ofício tão frutífero como ser um pregador

fiel. Tenha em mira um alto grau de excelência em ambos os exercícios,

e se for pedido o auxílio do Espírito Santo; você realizará o seu desejo.

Aqui talvez eu deva inserir uma regra que, não obstante, creio que é

completamente desnecessária com referência a cada um dos honoráveis

irmãos a quem me dirijo nesta oportunidade. Não freqüentem as mesas

dos ricos para obter o apoio deles, e nunca se façam uma espécie de

parasita das recepções e dos banquetes. Quem é você que deva ser um

bajulador deste ou daquele ricaço, quando os pobres do Senhor, os Seus

enfermos, e as Suas ovelhas errantes precisam de você? Sacrificar o

gabinete pastoral pela sala de visitas é um crime. Ser um agenciador da

sua igreja, e surpreender as pessoas nas suas casas para atraí-las de modo

que lotem os bancos da sua igreja, é uma degradação a que homem

nenhum deve submeter-se. Ver ministros de diferentes denominações

alvoroçando-se em volta de um homem rico, como abutres rodeando um

camelo morto, deixa a gente enojado.

Foi deliciosamente sarcástica aquela carta "de um velho e amado

ministro a seu querido filho", por ocasião de sua entrada no ministério,

da qual o seguinte extrato fere o ponto em questão. Dizem que ela foi

transcrita da Smellfungus Gazette, mas desconfio que o nosso amigo

Paxton Hood sabe tudo sobre a sua autoria. "Mantenha também um olho vigilante posto em todas as pessoas,

especialmente as ricas ou influentes, que provavelmente venham para a sua cidade. Visite-as, e procure ganhá-las por meio de ato de devoção realizados na sala de visitas. Assim você poderá servir aos interesses do Mestre de maneira extremamente eficiente. É preciso tratar bem as pessoas,

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 242

e o resultado de longa experiência confirmará a minha convicção, de há muito acariciada, de que o poder do púlpito é uma ninharia, comparado com o poder da sala de visitas. Precisamos imitar e santificar, mediante a Palavra de Deus e oração, os exercício dos jesuítas. Estes obtinham sucesso, não tanto com o púlpito como o que tinham com o locutório. Neste você pode sussurrar – pode conhecer as pessoas em todas as suas pequenas idéias pessoais.

"O púlpito é um lugar muito desagradável; é claro que é o grande poder de Deus, e assim por diante, mas é a sala de visitas que conta, e o ministro, mesmo que for bom pregador, não terá a mesma possibilidade de sucesso que terá aquele que for um perfeito cavalheiro. Tampouco homem nenhum terá qualquer perspectiva de êxito numa sociedade culta, se não for, não obstante tudo o que seja, um cavalheiro. Sempre admirei a caracterização do apóstolo Paulo feita por Lorde Shaftesbury em sua obra, Characteristics (características), de que ele era um fino cavalheiro. E eu lhe digo: seja um cavalheiro. Não que eu tenha necessidade de dizê-lo, mas estou persuadido de que somente desta maneira podemos esperar a conversão da nossa crescente classe média. Temos que mostrar que a nossa religião é a religião do bom senso e do bom gosto; que desaprovamos as emoções fortes e os fortes estimulantes; e, ah, meu caro rapaz, se você quiser ser útil, ore fervorosamente muitas vezes em seu quarto, para que você seja um cavalheiro. Se me perguntassem qual é o seu primeiro dever, eu diria, seja cavalheiro; e o segundo, seja cavalheiro; e o terceiro, seja cavalheiro".

Os que recordam certa classe de pregadores que floresceram há

cinqüenta anos, verão a agudeza da sátira deste extrato. O mal acha-se

grandemente mitigado agora. Na verdade, receio que estejamos indo para

o outro extremo.

Com toda a probabilidade, uma conversação sensata às vezes pende

para a controvérsia, e aqui muito bom homem topa com um tropeço. O

ministro sensato será particularmente gentil na argumentação. Acima de

todos os demais homens, ele não deve cometer o erro de imaginar que há

força no mau gênio e poder no falar zangado. Um pagão que estava no

meio de uma multidão em Calcutá, ouvindo um missionário discutir com

um brâmane, sabia quem estava certo apesar de não entender a língua

sabia que estava errado aquele que perdera a calma primeiro.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 243

Na maioria dos casos, este é um modo muito precioso de julgar.

Procure evitar discutir com as pessoas. Dê sua opinião, e permita que

elas dêem as suas. Se você vê que uma vara é torta, e quer que o povo

veja como ela é torta, ponha um bastão reto ao lado dela, e bastará. Mas

se você for levado a uma controvérsia, empregue argumentos bem duros

e palavras bem suaves. Muitas vezes não conseguimos convencer um

homem dando puxões na sua razão, mas você pode persuadi-lo

conquistando o seu afeto.

Outro dia eu tive a desgraça de precisar de um par de botinas novas,

e embora tenha pedido ao camarada que as fizesse grandes como canoas,

tive que fazer um esforço terrível para calçá-las. Com um par de

calçadeiras labutei como os homens que estavam a bordo do navio de

Jonas, mas tudo em vão. Foi nesse instante que o meu amigo pôs na

minha frente um pequeno pedaço de giz francês, e o trabalho foi feito

num momento. Maravilhosa e gentilmente persuasivo era aquele giz

francês. Cavalheiros, levem sempre consigo um pequeno giz francês à

sociedade, um belo pacote de persuasão cristã, e logo descobrirão as

virtudes dele.

E finalmente, com toda a sua amabilidade, o ministro deve ser firme

em seus princípios, e destemido para proclamá-los e defendê-los em

todos os agrupamentos sociais. Quando ocorre uma boa oportunidade,

ou se ele tiver produzido uma, não se demore a aproveitá-la. Forte em

seus princípios, fervoroso na entonação e afetuoso de coração, fale como

homem, e agradeça a Deus o privilégio. Não há necessidade de reticência

– ela é desnecessária. As mais doidas fábulas dos espíritas, os mais

rústicos sonhos dos reformadores utópicos, a mais tola tagarelice da

cidade, e a mais fútil absurdidade do mundo frívolo, exigem quem os

ouça, e os conseguem. E Cristo, não será ouvido? Sua mensagem de

amor ficará sem ser proferida, por temer-se acusação de intrusão ou de

hipocrisia? Far-se-á da religião um tabu – proibido o melhor e o mais

nobre de todos os temas? Se esta for a regra de alguma sociedade, não

concordaremos com ela. Se não a pudermos pôr fora de ação,

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 244

deixaremos a sociedade entregue a si mesma, como os homens

abandonam uma casa contagiada pela lepra. Não podemos consentir que

nos amordacem. Não há razão por que devamos ser amordaçados. Não

iremos a nenhum lugar aonde não podemos levar conosco o nosso

Mestre. Enquanto outros tomam a liberdade de pecar, nós nos

renunciaremos à nossa liberdade de repreendê-los e adverti-los.

Utilizada com sabedoria, a nossa conversação comum pode ser um

poderoso instrumento para o bem. Encadeamentos de conceitos podem

ser iniciados com uma só frase que talvez leve á conversão pessoas

jamais alcançadas por nossos sermões. O método de segurar as pessoas

pela lapela, ou de levar-lhes a verdade individualmente, tem obtido

grande sucesso. Este é outro assunto, e dificilmente ficará bem sob o

título de conversação comum.

Mas concluiremos dizendo que é de esperar-se que nós, em nosso

falar comum, não mais do que no púlpito, nunca sejamos vistos como

uma refinada espécie de pessoas, cuja ocupação é tornar agradáveis as

coisas para todos, e que nunca, por qualquer motivo ou circunstância

possível, causam inquietação a quem quer que seja, por mais ímpias que

suas vidas sejam. Tais pessoas vão e vêm entre as famílias dos seus

ouvintes, e se divertem com elas, quando deviam chorar sobre elas.

Sentam-se às suas mesas e se banqueteiam em sua comodidade, quando

deviam exortá-las a fugirem da ira vindoura. São como o alarme

americano de que ouvi falar, que era garantido que não o despertaria, se

você não quisesse que o despertasse.

Quanto a nós, cabe-nos semear, não somente no terreno plano e

bom, mas também nas rochas e nos caminhos pisados, e no último e

grande dia ter uma feliz colheita. Que o pão lançado por nós às águas em

horas extraordinárias e em ocasiões estranhas, seja encontrado de novo

depois de muitos dias!

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 245

AOS OBREIROS MAL EQUIPADOS

Que hão de fazer os ministros mal equipados? Por mal equipados

quero dizer que têm poucos livros, e escasso ou nenhum recurso com que

comprar mais. Este estado de coisas não devia existir em caso nenhum;

as igrejas deviam cuidar que isto se tornasse impossível. Na medida

máxima da sua capacidade, deviam suprir o seu ministro, não só de

alimento necessário para o sustento da vida física, mas de nutrição

mental, para que sua alma não morra de fome.

Uma boa biblioteca deve ser considerada como parte indispensável

da equipagem da igreja; e os diáconos, cuja atividade consiste em "servir

às mesas", serão sábios se, sem negligenciarem a mesa do Senhor, ou

dos pobres, e sem diminuírem os suprimentos da mesa de jantar do

ministro, derem uma olhada na mesa do seu gabinete, e a mantiverem

suprida de novas obras e de livros básicos com razoável abundância.

Seria bom investimento de dinheiro, e seria produtivo muito além do que

se poderia esperar. Em vez de se fazerem eloqüentes sobre o poder

decrescente do púlpito, os líderes da igreja deveriam empregar os meios

legítimos para melhorar-lhe o poder, suprindo o pregador de alimento

que o faça pensar. Coloquem de lado o chicote, é o meu conselho a todos

os resmungões.

Há alguns anos procurei induzir as nossas igrejas a terem

bibliotecas para os ministros como coisa natural, e algumas poucas

pessoas dotadas de raciocínio viram o valor da sugestão e começaram a

executá-la. Com muita satisfação tenho visto aqui e ali estantes supridas

de uns quantos volumes. Gostaria imensamente que esse começo tivesse

sido dado em toda parte, mas, ah! temo que somente uma longa sucessão

de ministros famintos levará os avarentos à convicção de que a

parcimônia com um ministro é falsa economia. As igrejas que não

podem oferecer um generoso estipêndio, devem fazer algumas emendas

fundando uma biblioteca como parte permanente do seu patrimônio; e,

fazendo-lhe acréscimos freqüentemente, ela logo se tornará valiosa.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 246

O gabinete pastoral do meu venerável avó tinha uma coleção de

muitos volumes antigos e valiosos dos puritanos, que passavam de

ministro a ministro. Bem me lembro de certos tomos de peso, cujo

principal interesse para mim estava em suas curiosas letras iniciais

adornadas com pelicanos, grifos mitológicos, meninos brincando, ou

patriarcas trabalhando. Pode se objetar que os livros se perderiam pela

mudança dos usuários, mas eu correria esse risco. E, como um pouco de

atenção aos catálogos, os administradores poderiam manter as

bibliotecas com a mesma segurança com que mantêm os bancos do

templo e o púlpito.

Se não se adotar este esquema, experimente-se outro mais simples.

Que todos os subscritores comprometidos com o sustento do pregador

acrescentem dez por cento ou mais às suas contribuições, com o fim

expresso de dar sustento ao cérebro dele. Receberão de volta a

recompensa através dos melhores sermões que ouvirão. Se se garantisse

uma pequena renda anual aos ministros pobres para ser sagradamente

gasta em livros, ser-lhes-ia uma dádiva do céu, e uma incalculável

bênção para a comunidade. As pessoas sensatas não esperam que uma

horta lhes dê legumes ano após ano, a menos que enriqueçam o solo; não

esperam que uma locomotiva funcione sem combustível, ou que um boi

ou um asno trabalhe sem receber alimento. Que não esperem, pois,

receber sermões instrutivos de homens a quem se veda o armazém de

conhecimentos por não poderem comprar livros.

Mas a questão é, que farão os homens que não têm recursos, que

não contam com uma biblioteca da igreja, e que não recebem verba para

prover-se de livros? Observemos de imediato que, se tais homens

tiverem êxito, deve-se-lhes maior honra do que aos que têm abundantes

meios.

Conta-se que os seus companheiros de trabalho tiraram de Quintin

Matsys todas as suas ferramentas, menos o seu martelo e a sua lima, e

que ele produziu sem elas a sua famosa cobertura de poço; tanto maior

honra para ele! Grande crédito se deve àqueles que, trabalhando para

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 247

Deus, fizeram grandes coisas sem ferramentas utilizáveis. Seu labor teria

sido aliviado grandemente, se as possuíssem; mas o que realizaram é por

demais maravilhoso.

Na atual Exposição Internacional de Kensington, a Escola de

Culinária do Sr. Buckmaster é admirada, principalmente porque produz

pratos saborosos com ingredientes inferiores. Com uma mancheia de

ossos e um pouco de macarrão, ele serve iguarias palacianas. Se ele

dispusesse de todos os ingredientes empregados na culinária francesa, e

os empregasse todos, toda gente diria: "Bem, qualquer um faria isso";

mas quando ele lhes mostra sobras de carne e ossos, e lhes diz que os

comprou no açougue por uma ninharia, e que com isso pode preparar um

prato para uma família de cinco ou seis membros, todas as boas senhoras

arregalam os olhos e se maravilham que alguém possa fazer tal prodígio;

e quando passa a uns e outros o seu prato, e eles o provam e vêem quão

delicioso é, enchem-se de admiração.

Ao trabalho, então, irmão pobre, pois você pode ter sucesso em

fazer grandes coisas no seu ministério, e as boas vindas com, "Bem está,

servo bom e fiel", serão tanto mais enfáticas porque você trabalhou

debaixo de sérias dificuldades.

Se um homem somente pode adquirir uns poucos livros, o meu

primeiro conselho a ele será: compre os melhores. Se não puder gastar

muito, gaste bem. Os melhores sempre serão os mais baratos. Deixe as

meras diluições e atenuações aos que podem arcar com tais luxos. Não

compre leite com água, mas consiga leite condensado, e ponha você

mesmo quanta água quiser. Esta época está cheia de fiandeiros de

palavras – compiladores profissionais que pilam um grão de tema

pulverizando-o tão fino que chega a cobrir uma folha de papel de cinco

acres; estes homens têm a sua utilidade, como a têm os artífices em ouro,

mas para você não têm utilidade nenhuma.

Outrora os fazendeiros do nosso litoral costumavam carrear cargas

de algas e colocá-las em seus terrenos; a parte mais pesada era a água;

agora secam as algas e poupam um mundo de trabalho e de despesas.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 248

Não compre sopa rala; adquira essência de carne. Obtenha muito do

pouco. Dê preferência a livros que abundem naquilo que James Hamilton

costumava chamar de "sulco bíblico", ou a essência dos livros. Você

precisa de livros modelares exatos, condensados, confiáveis, e deve

providenciar para que os tenha.

Ao preparar as suas Horae Biblicae Quotidianae (Horas Bíblicas

Cotidianas), admirável comentário da Bíblia, o Dr. Chalmers usou

somente a Concordance (Concordância), a Pictorial Bible (Bíblia

Ilustrada), a Synopsis (Sinopse), de Poole, o Comentário de Mathew

Henry, e a Researches in Palestine (Pesquisas na Palestina), de

Robinson. "São estes os livros que uso", disse ele a um amigo;

"harmonizam-se com a. Bíblia; não preciso fazer nada mais que isso, no

meu estudo da Bíblia". Isto mostra que os que têm provisões ilimitadas

às suas ordens acham, apesar disso, suficientes uns poucos livros

básicos. Se o Dr. Chalmers vivesse agora, provavelmente pegaria The

Land and the Book (A Terra e o Livro), de Thomson, em lugar de

Pesquisas, de Robinson, e trocaria a Bíblia Ilustrada por Daily Bible

Illustrations (Ilustrações Bíblicas Diárias), de Kitto; pelo menos eu

recomendaria esta alteração à maior parte dos homens. Isto prova

claramente que alguns pregadores dos mais eminentes achavam que

podiam fazer coisa melhor com poucos livros do que com muitos, ao

estudarem as Escrituras, e, conforme eu entendo, esta é a nossa principal

ocupação.

Desista, pois, sem queixas, dos muitos livros, os quais são como as

navalhas do popular Hodge, livros feitos "só para serem mercadejados".

Tais livros nada valem, no entanto sempre acham compradores. Quanto

ao Comentário de Matthew Henry, já mencionado, aventuro-me a dizer

que nenhum ministro fará investimento melhor do que comprar aquela

exposição sem par. Consiga-o, ainda que tenha que vender o casaco para

adquiri-lo.

A regra que em seguida firmo é, domine os seus livros. Leia-os

completamente. Banhe-se neles até ficar saturado. Leia-os e releia-os,

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 249

mastigue-os, e digira-os. Faça que penetrem o íntimo do seu ser.

Examine minuciosamente um bom livro várias vezes, e faça anotações e

análises dele. O estudante verá que a sua constituição mental é mais

influenciada por um livro dominado completamente do que por vinte

livros que só leu por alto, dando-lhe lambidas, como diz o provérbio

clássico, "Como os cães bebem no Nilo". Pouco saber e muito orgulho

vêm da leitura apressada. É possível empilhar livros no cérebro, até que

este não consegue funcionar. Alguns homens perdem a capacidade de

pensar por eliminarem a meditação por amor a demasiada leitura.

Empanturram-se do conteúdo de livros, e se tornam dispépticos mentais.

Livros em cima do cérebro causam doença. Meta o livro dentro do

cérebro, e você crescerá. Na obra Curiosities of Literature (Curiosidades

da Literatura), de D'Israeli, há uma invectiva de Luciano sobre os que se

jactam de possuírem grandes bibliotecas, das quais nunca lêem nem um

volume nem tiram proveito. Começa comparando uma pessoa dessas

com um piloto que nunca aprendeu a arte da navegação, ou com um

aleijado que usa chinelos bordados mas não consegue firmar-se neles.

Depois ele exclama: "Por que você compra tantas livros? Você não tem

cabelo, e compra um pente; é cego, e tem que comprar um fino espelho;

é surdo, e quer possuir o melhor instrumento musical!" – censura muito

bem merecida pelos que pensam que apenas a posse de livros lhes

garantirá cultura.

Certa medida dessa tentação nos ocorrerá a todos; pois não é que

nos achamos mais sábios depois de termos passado uma hora ou duas

numa livraria? Um homem poderia muito bem sentir-se mais rico por ter

inspecionado os depósito do Banco da Inglaterra. Na leitura de livros,

oxalá o seu lema seja: "Muito, não muitos". Além de ler, pense, e sempre

mantenha o pensamento proporcional à leitura, e a sua pequena

biblioteca não será grande infortúnio.

Há muito bom senso na observação de um escritor na Quarterly

Review (Revista Trimestral) há muitos anos. "Dê-nos aquele querido

livro, conseguido barato na banca, ao preço de um jantar, manuseado,

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 250

com as orelhas arrancadas, rachado na lombada, e arrebentado nos

cantos, com anotações nas folhas em branco, rabiscado nas margens,

manchado e chamuscado, rasgado e desgastado, alisado no bolso,

enodoado pela fuligem, umedecido na relva e empoeirado entre as

cinzas, sobre o qual você sonhou no bosque e cochilou em frente das

brasas, mas leu, releu e tornou a ler, de capa a capa. É por meio desse

livro em particular, e seus três ou quatro sucedâneos singulares, que se

transmite mais cultura verdadeira do que por todas as miríades de livros

que pesam e entortam as estantes de uma milha de extensão da biblioteca

universitária de Oxford – a Bodleian Library".

Mas, se você acha que deve ter mais livros, recomendo-lhes

empréstimos parcimoniosos e judiciosos. É bem provável que você tenha

alguns amigos que possuem livros e que sejam suficientemente bondosos

para permitir-lhe que os use por algum tempo; e o advirto especialmente

a devolver tudo que lhe seja emprestado, a devolvê-lo a tempo e em bom

estado, para que lho emprestem de novo. Espero que não me seja

necessário falar muito sobre a devolução de livros, como teria sido há

alguns meses, pois recentemente deparei com uma afirmação feita por

um clérigo, que fez muito pela elevação da minha opinião sobre a

natureza humana, pois ele declara que conhece pessoalmente três

cavalheiros que de fato devolveram guarda-chuvas emprestados!

Lamento dizer que ele se move num círculo muito mais favorável do que

eu, pois conheço pessoalmente vários jovens que tomaram livros

emprestados e nunca os devolveram.

Outro dia, certo ministro, que me emprestara cinco livros, que usei

por dois anos ou mais, escreveu-me um bilhete pedindo-me a devolução

de três. Para sua surpresa, recebeu-os de volta por encomenda postal, e

os outros dois que ele tinha esquecido. Eu tinha mantido cuidadosamente

uma lista dos livros que me foram emprestados e, portanto, pude fazer a

devolução completa ao dono. Estou certo de que ele não esperava a

pronta chegada deles, pois me escreveu uma carta com um misto de

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 251

espanto e de gratidão, e quando eu tornar a visitar o escritório dele, estou

certo de que receberá bem um novo pedido de empréstimo.

Creio que todos vocês conhecem os versos escritos nos livros de

muita gente: "Se um amigo pedir-te por empréstimo, certamente atendido ele será, para ler-te, estudar-te, não emprestar-te, mas devolver-te a mim. Não que o conhecimento transmitido reduza as provisões da erudição, mas descobri que os livros emprestados não me voltam jamais".

Walter Scott costumava dizer que os seus amigos podiam ser

contadores medíocres, mas estava convicto de que eram bons "guarda-

livros". Alguns até tiveram que fazer como certo estudioso que, ao lhe

pedirem que emprestasse um livro, mandou o recado pelo criado de que

não deixaria o livro sair da sua sala, mas que o cavalheiro que pedira o

empréstimo podia vir e sentar-se ali, e ler quanto tempo quisesse. A

réplica foi inesperada mas completa quando, estando a apagar-se-lhe o

fogo, mandou pedir à mesma pessoa que emprestasse um fole, e recebeu

como resposta que o dono não o emprestaria fora da sua sala, mas o

cavalheiro podia vir e soprar com o fole quanto tempo quisesse. Os

empréstimos judiciosos podem fornecer-lhe muita leitura, mas lembre-se

do machado emprestado (2 Reis 6:5) e tenha cuidado com o que tomar

emprestado. "O ímpio toma emprestado, e não paga."

Caso a fome de livros aflija a terra, há um livro que todos vocês

têm, e esse é a sua Bíblia. E o ministro com a sua Bíblia é como Davi

com a sua funda e pedra, plenamente equipado para a peleja. Ninguém

poderá dizer que não tem poço donde tirar, enquanto as Escrituras

estiverem a seu alcance. Na Bíblia temos uma perfeita biblioteca, e quem

a estudar completamente, será um erudito melhor do que se tivesse

devorado a biblioteca de Alexandria inteira. Compreender a Bíblia deve

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 252

ser a nossa ambição; devemos estar familiarizados com ela, tão

familiarizados como a dona de casa o está com a sua agulha, o

comerciante com o seu livro-razão, o marinheiro com o seu navio.

Devemos conhecer o seu roteiro geral, o conteúdo de cada livro, as

minúcias das suas histórias, doutrinas e preceitos, e tudo que lhe diz

respeito.

Falando de Jerônimo, pergunta Erasmo: "Quem senão ele jamais

aprendeu de cor toda a Escritura? ou a absorveu, ou meditou nela com

ele?" Diz-se de Witsius, culto holandês, autor da famosa obra sobre The

Covenants ("As Alianças"), que também era capaz, não somente de

repetir cada palavra da Escritura nas línguas originais, mas também de

dar o contexto e as críticas dos melhores autores. E ouvi falar que um

velho ministro de Lancashire era "uma concordância ambulante", e que

podia dar o capítulo e o versículo de qualquer passagem citada, ou vice-

versa, podia dizer corretamente as palavras quando se mencionava o

lugar onde ocorrem. Isso pode ter sido uma proeza da memória, mas o

estudo requerido só pode ter sido altamente proveitoso. Não digo que

vocês precisam aspirar a isso; mas se o fizessem, o lucro valeria a pena.

Foi este um dos pontos fortes daquele gênio singular, William

Huntington (que agora não condeno nem recomendo), que, quando

pregava, citava incessantemente a Escritura Sagrada, e costumava, cada

vez que o fazia, dar o capítulo e o versículo. E para mostrar a sua

independência do livro impresso, tinha o deselegante hábito de tirar a

Bíblia de cima do púlpito.

O homem que aprendeu, não apenas a letra da Bíblia, mas o seu

espírito interior, não será um tipo inferior, quaisquer que sejam as

deficiências com que ele trabalhe. Vocês conhecem o antigo provérbio,

"Cave ab homine unius libri" – Cuidado com o homem de um só livro.

Este é um terrível antagonista. O homem que tem a Bíblia na ponta da

língua e no fundo do coração é um campeão em Israel. Você não pode

competir com ele. Você pode ter um verdadeiro arsenal, mas o

conhecimento que ele tem da Escritura o sobrepujará, pois é uma espada

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 253

como a de Golias, da qual disse Davi: "Não há outra semelhante". O

amável William Romaine, creio eu, na última parte da sua vida, pôs fora

todos os seus livros, não lendo outra coisa senão a Bíblia. Era erudito,

mas foi monopolizado pelo Livro, e este o fez poderoso.

Se formos levados a fazer a mesma coisa por necessidade,

lembremos que alguns a fizeram por escolha, e não lamentemos a nossa

sorte, pois as Escrituras serão mais doces que o mel ao nosso paladar, e

nos farão "mais sábios do que os antigos". Jamais nos faltarão temas

santos se estudarmos continuamente o volume inspirado; ao contrário,

não só acharemos temas ali, mas também ilustrações, pois a Bíblia é a

melhor ilustradora de si mesma. Se você quiser historieta, símile,

alegoria ou parábola, dirija-se ás páginas sagradas. A verdade

escriturística nunca parece mais atraente do que quando é adornada com

jóias tiradas do seu próprio tesouro.

Tenho lido ultimamente os livros de Reis e de Crônicas, e me

enamorei deles. Estão repletos de instruções divinas, como os Salmos ou

os profetas, se os lermos com os olhos abertos. Acho que era Ambrósio

que costumava dizer: "Adoro a infinidade da Escritura". Ouço a mesma

voz que soou nos ouvidos de Agostinho, concernente ao Livro de Deus:

"Tolle, lege" – Toma, lá. Talvez você venha a viver isolado em alguma

aldeia, onde não encontrará alguém que esteja acima do seu nível com

quem conversar, e onde encontrará bem poucos livros que valha a pena

ler. Então, leia e medite na lei do Senhor de dia e de noite, e será "como

a árvore plantada junto a ribeiros de águas". Faça da Bíblia o seu braço

direito, o companheiro da todas as horas, e terá poucos motivos para

lamentar o seu equipamento deficiente em coisas inferiores.

Irmãos, gostaria imensamente de inculcar-lhes a verdade de que um

homem pobremente equipado pode compensar isso com farto

pensamento. Pensar é melhor do que possuir livros. Pensar é um

exercício da alma que tanto desenvolve as suas faculdades como as

educa. Alguém perguntou a uma menina se ela sabia o que era a alma e,

para surpresa de todos, ela disse: "Senhor, a minha alma é o meu

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 254

pensar". Se isto estiver correto, algumas pessoas têm muito pouca alma.

Sem pensamento, a leitura não pode beneficiar a mente, mas pode iludir

o homem com a idéia de que está ficando mais sábio. Os livros são uma

espécie de ídolos para alguns homens. Como a imagem para o católico

romano visa a fazê-lo pensar em Cristo, e com efeito o mantém longe de

Cristo, assim os livros visam a fazer os homens pensarem, mas muitas

vezes são um empecilho para o pensamento.

Quando George Fox pegou uma aguda faca e cortou um par de

calções de couro para si próprio e, desligando-se das modas da

sociedade, ocultou-se numa árvore oca para ficar ali meses a pensar,

estava se tornando um homem de pensamento diante de quem os homens

de livros rapidamente batiam em retirada. Que alvoroço ele causou, não

só entre papismos, episcopados e presbitérios do seu tempo, mas também

entre os mui versados dignitários dos dissidentes. Ele varreu totalmente

as teias de aranha dos céus, e fez os cupins de livros passarem maus

bocados.

O pensamento é a espinha dorsal do estudo, e se mais ministros

pensassem, que bênção seria! Somente queremos homens que pensem na

verdade revelada de Deus, e não sonhadores que façam desenvolver-se

religiões dos seus próprios sentidos. Hoje em dia estamos praguejados

com um bando de sujeitos que acham de firmar-se sobre a cabeça e de

pensar com os pés. A sua noção de meditação consiste em romancear.

Em vez de considerar a verdade revelada, excogitam um prato de sua

invenção pessoal em que o erro, o absurdo e a presunção aparecem em

partes quase iguais; e a esse caldo chamam "pensamento moderno".

Precisamos de homens que procurem pensar direito, e ainda pensar com

profundidade, porque estarão pensando os pensamentos de Deus.

Longe de mim concitá-los a imitar os jactanciosos pensadores desta

época, que esvaziam os seus salões de culto, e depois se ufanam de que

pregam a ouvintes cultos e intelectuais. Miserável hipocrisia! Pensar

fervorosamente nas coisas em que cremos firmemente é coisa

inteiramente diversa, e a isto os incito. Pessoalmente devo muito a

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 255

muitas horas, e mesmo dias, passados a sós, debaixo de um velho

carvalho, às margens do rio Medway. Por motivo de estar um tanto mal

de saúde na época em que eu estava deixando a escola, foi-me permitido

considerável lazer, e, armado de excelente vara de pescar, peguei alguns

peixinhos, e me deleitei com muitos sonhos fagueiros, de mistura com

sondagens do coração, e muito ruminar conhecimentos adquiridos. Se os

meninos pensassem, seria bom dar-lhes menos trabalho em salas de aula

e mais oportunidade para pensarem. Só empanturrar-se, sem nenhuma

digestão, deixa a carne destituída de músculos, e isto é ainda mais

deplorável mentalmente do que fisicamente. Se a sua igreja não for

suficientemente numerosa para dar-lhe uma biblioteca, irmão, exigirá

menos do seu tempo e, tendo tempo para meditar, você se sairá até

melhor do que os seus colegas que dispõem de muitos livros e de pouco

espaço de tempo para serena contemplação.

Sem livros, o homem pode aprender muito mantendo os olhos

abertos. Da história atual, dos incidentes que transpiram debaixo do seu

nariz, dos fatos registrados no jornal, dos assuntos da conversação

comum – disso tudo ele pode aprender. A diferença entre ter e não ter

olhos é maravilhosa. Se você não tem livros, experimente os olhos.

Mantenha-os abertos por onde andar, e encontrará algo que vale a pena

ver. Você não é capaz de aprender da natureza? Cada flor está à sua

espera, para ensiná-lo. Olhe "os lírios" e aprenda das rosas. Não é só à

formiga que você pode ir, mas todos os seres vivos se oferecem para dar-

lhe instrução. Há uma voz em cada rajada de vento, e uma lição em cada

grão de pó que ela arrasta. Sermões cintilam de manhã em cada folha de

relva, e homilias adejam ao seu redor ao cair das folhas secas. Uma

floresta é uma biblioteca, uma lavoura é um tomo de filosofia, a rocha é

história, e o rio em seu leito é um poema.

Vá, você que tem os olhos abertos, e descubra lições de sabedoria

por toda parte, em cima no céu, embaixo na terra, e nas águas debaixo da

terra. Comparados com estas riquezas, os livros são coisas pobres.

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 256

Além disso, por limitadas que sejam as suas bibliotecas, você pode

estudar-se a si próprio. Este é um misterioso volume, a maior parte do

qual você não leu. Se alguém pensa que se conhece completamente,

engana-se, pois o 'livro mais difícil que você jamais leu é o seu próprio

coração. Outro dia eu disse a uma pessoa cheia de dúvidas, que parecia

estar vagando num labirinto: "Pois bem, não posso compreendÊ-lo, mas

isto não me dá vexame, porque nunca pude compreender-me a mim" – e

realmente eu quis dizer isso mesmo. Observe os rodeios e giros e

singularidades da sua mente, e as estranhas peculiaridades da sua

experiência pessoal; a depravação do seu coração e a obra da graça

divina; a sua tendência para pecar e a sua capacidade para santificar-se;

quanta afinidade você tem com o diabo e, todavia, quão unido está a

Deus!

Note com que sabedoria você pode agir quando ensinado por Deus,

e como se comporta estultamente quando entregue a si próprio. Verá que

o estudo do seu coração é de imensa importância para você, como vigia

das almas dos outros. A experiência pessoal de um homem deve servir-

lhe de laboratório em que ele testa os remédios que prescreve para

outros. Até mesmo os seus erros e fracassos lhe instruirão, se os levar ao

Senhor. Homens absolutamente sem pecado seriam incapazes de

compadecer-se de homens e mulheres imperfeitos. Estude os tratamentos

que o Senhor dá à sua alma, e você saberá mais das maneiras como Ele

age com os outros.

Leia outros homens. São tão instrutivos como os livros.

Suponhamos que chegasse a um dos nossos grandes hospitais um

estudante jovem e tão pobre que não pudesse comprar livros de cirurgia.

Ser-lhe-ia por certo grande prejuízo. Mas, se ele conhecesse o programa

do hospital, se assistisse às operações realizadas, e observasse as

ocorrências clínicas dia após dia, não me espantaria se ele se tornasse um

cirurgião tão habilitado como os seus colegas mais favorecidos. A sua

observação lhe mostraria o que, sozinhos, os livros não poderiam

mostrar. E, ficando por perto para ver a amputação de uma perna, o

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 257

curativo de uma ferida, a ligação de uma artéria rota, ele poderia, no

mínimo, pegar cirurgia prática o bastante para prestar-lhe serviço

imenso. Pois bem, muita coisa que o ministro precisa saber ele tem que

aprender pela observação dos fatos.

Todos os pastores sábios têm andado pelos hospitais,

espiritualmente falando, e lidado com perguntadores, hipócritas,

extraviados, aflitos e presunçosos. O homem que teve sólida experiência

prática nas coisas de Deus, e que observou os corações dos seus

semelhantes – não tendo nada a impedir-lhe os passos – será um homem

muito mais útil do que aquele que só sabe o que leu. É uma lástima, um

homem ser um estudante janota, que sai da sala de aulas como de uma

caixa de embalagem. para um mundo que jamais viu, para lidar com

pessoas que nunca tinha observado, e para manipular fatos com os quais

nunca tivera contato pessoal. "Não seja neófito", diz o apóstolo. E é

possível ser um neófito, e, contudo, ser um erudito consumado, um

clássico, um matemático, e um teólogo teórico. Devemos ter

conhecimento prático das almas humanas, e, se tivermos abundância

desse conhecimento, a escassez de nossos livros será uma aflição leve.

"Mas", indaga um irmão inquiridor, "como se pode ler um

homem?" Ouvi falar de um cavalheiro de quem se dizia que você nunca

poderia deter-se com ele por cinco minutos sob uma arcada qualquer sem

que ele lhe ensinasse alguma coisa. Esse era um sábio. Mas seria mais

sábio ainda aquele que nunca parasse debaixo de uma arcada sem

aprender alguma coisa de outrem. Os sábios tanto podem aprender de um

tolo como de um filósofo. O tolo é um esplêndido livro em que ler,

porque todas as folhas estão abertas diante de você. Há uma pitada de

comicidade nesse gênero, que o incita a prosseguir na leitura, e, se você

não colher mais nada, fica advertido a não publicar a sua própria tolice.

Aprenda dos santos experimentados. Que coisas profundas alguns

deles podem ensinar-nos, a nós, mais jovens! Que casos exemplares os

pobres de Deus podem narrar, das intervenções providenciais do Senhor

a favor deles! Como se gloriam na divina graça que os sustenta e na

Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 258

fidelidade de Deus para com a Sua aliança! Que novas luzes eles

derramam muitas vezes sobre as promessas, revelando significados

ocultos aos carnalmente sábios, mas tornados claros aos corações

simples! Você não sabe que muitas promessas estão escritas com tinta

invisível, e têm que ser expostas ao fogo da aflição para que se vejam as

letras? Santos provados são grandes instrutores de ministros.

Em relação ao perguntador, quanto se pode obter dele! Tenho

enxergado muita asneira minha enquanto converso com almas

inquiridoras. Fui ludibriado por um pobre rapaz quando tentava levá-lo

ao Salvador. Eu pensava que o tinha seguro, mas ele se esquivava vez

após vez, com o perverso engenho da incredulidade. Às vezes os

perguntadores realmente inquietos me surpreendem com a sua singular

habilidade para combater a esperança; os seus argumentos são

intermináveis, e incontáveis os seus problemas. Eles nos colocam

repetidamente num beco sem saída. Afinal a graça de Deus nos capacita

a trazê-los à luz, no entanto, não antes de vermos a nossa própria

ineficiência. Nas inusitadas perversidades da descrença, as singulares

interpretações ou falsas proposições que os desalentados dão aos seus

sentimentos e às declarações bíblicas, muitas vezes você achará um

mundo de instruções. Eu preferiria que um jovem passasse uma hora

com os perguntadores ou com os mentalmente deprimidos do que uma

semana em nossas melhores aulas, no que diz respeito ao treinamento

prático para o pastorado.

Um ponto mais – esteja muitas vezes ao lado dos leitos de morte.

São livros iluminados. Ali você lerá a porta autêntica da nossa religião e

aprenderá os seus segredos. Que gemas esplêndidas são levadas à praia

pelas ondas do Jordão! Que lindas flores crescem em suas ribanceiras!

Os mananciais sempiternos do país da glória lançam para o alto os seus

jatos, e as gotas do orvalho gotejam deste lado da estreita corrente!

Tenho ouvido humildes homens e mulheres na hora da sua partida

falarem como inspirados, proferindo estranhas palavras, resplandecentes

de suprema glória. Não as aprenderam dos lábios de ninguém debaixo da

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lua; só podem tê-las ouvido quando estavam sentados nos subúrbios da

Nova Jerusalém. Deus sussurra em seus ouvidos em meio às suas dores e

fraquezas, e depois eles nos contam um pouco do que o Espírito lhes

revelou. Largarei todos os meus livros, se puder ver os Elias do Senhor

subirem em seus carros de fogo.