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 RAÍZES JURÍDICAS Curitiba, v. 3, n. 1, jan./jun. 2007 53 INTRODUÇÃO: A PERMEABILIDADE DO DIREITO À REALIDADE A “revolta dos fatos contra o código”  captou, há algum tempo, à distância entre o clássico direito privado e as relações fáticas da vida.  se reconheceu a fratura do direito expost a na “esteril ização dos concei- tos e no desmoronamento de construções que pareciam inabaláveis ”. 1 O projeto dos juristas do século passado  está teoricamente desfigu- rado, mas a doutrina e a prática do direito, ao responderem as novas exigências sociais, ainda se valem da inspiração no valor supremo da segurança jurídica e do purismo conceituaI. Se na teoria o modelo clássico se acomoda como passagem da história jurídi- ca, mesmo assim segue firme e presente certa arquitetura de sistema que tem mantido afastada uma suposta realidade jurídica da realidade social, hábil para “se refugiar num mundo abstrato, alheio à vida, aos seus interesses e necessidades”. 2 Essa constatação, que já teve ares de atentado, é um reconhecimento do desajuste do ordenamento jurídico face ao “sangue que corre nas suas artérias”. 3 Cogita-se agora, pois, de aprofundar uma revis ão crítica principiada e não terminada, dado que não basta mais revelar a franca decadência que sofreram as bases sobre as quais se edificaram os institutos jurídicos. Não se trata de uma crise de formulação, eis que o desafio de uma nova teoria geral do direito civil está além de apenas reconhecer o envelhecimento da dogmática. Deve se tratar, isso sim, das possibilidades da “ repersonalização” de esta- tutos essenciais, como 2ª propriedade e o contrato, bem assim’ do núcleo do direi- Limites e possibilidades da nova  Teoria Geral do Direito Civil Luiz Edson Fachin Professor Titular de Direito Civil da UFPR. Doutor em Direito pela PUCSP. 1) ORLANDO GOMES, Introdução ao Direito Civil, 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 09. 2) Assim afirmou o professor ANTONIO PINTO MONTEIRO, na conferência “Inflação e Direito Civil”, proferida no Centro de Estudos Judiciários de Lisboa, e depois publicada em Coimbra, 1984. 3) PINTO MONTEIRO, p. 06.

Limites e Possibilidades Da Nova Teoria Geral Do Direito Civil

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Direito Civil e Constituição

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  • RAZES JURDICAS Curitiba, v. 3, n. 1, jan./jun. 2007 53

    INTRODUO: A PERMEABILIDADE DO DIREITO REALIDADE

    A revolta dos fatos contra o cdigo captou, h algum tempo, distncia entre o clssico direito privado e as relaes fticas da vida.

    J se reconheceu a fratura do direito exposta na esterilizao dos concei-tos e no desmoronamento de construes que pareciam inabalveis.1

    O projeto dos juristas do sculo passado est teoricamente desfigu-rado, mas a doutrina e a prtica do direito, ao responderem as novas exignciassociais, ainda se valem da inspirao no valor supremo da segurana jurdica edo purismo conceituaI.

    Se na teoria o modelo clssico se acomoda como passagem da histria jurdi-ca, mesmo assim segue firme e presente certa arquitetura de sistema que temmantido afastada uma suposta realidade jurdica da realidade social, hbil para serefugiar num mundo abstrato, alheio vida, aos seus interesses e necessidades.2

    Essa constatao, que j teve ares de atentado, um reconhecimento dodesajuste do ordenamento jurdico face ao sangue que corre nas suas artrias.3

    Cogita-se agora, pois, de aprofundar uma reviso crtica principiada e noterminada, dado que no basta mais revelar a franca decadncia que sofreram asbases sobre as quais se edificaram os institutos jurdicos. No se trata de umacrise de formulao, eis que o desafio de uma nova teoria geral do direito civilest alm de apenas reconhecer o envelhecimento da dogmtica.

    Deve se tratar, isso sim, das possibilidades da repersonalizao de esta-tutos essenciais, como 2 propriedade e o contrato, bem assim do ncleo do direi-

    Limites e possibilidades da nova

    Teoria Geral do Direito Civil

    Luiz Edson FachinProfessor Titular de Direito Civil da UFPR. Doutor em Direito pela PUCSP.

    1) ORLANDO GOMES, Introduo ao Direito Civil, 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 09.2) Assim afirmou o professor ANTONIO PINTO MONTEIRO, na conferncia Inflao e Direito Civil,proferida no Centro de Estudos Judicirios de Lisboa, e depois publicada em Coimbra, 1984.3) PINTO MONTEIRO, p. 06.

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    to das obrigaes, para recolher o que de relevante e transformador h nessa runa.4

    Esse repensar comea pela compreenso dos traos do sistema das salva-guardas, adequado para dar o bero dogmtica clssica e seu squito.

    1 O SISTEMA DAS SALVAGUARDAS

    Um sistema pretensamente neutro calcado em abstratas categorias jurdi-cas, destinado a um ser impessoal, praticamente inatingvel e com pretenses perenidade, desenhou a formulao mais acabada do projeto ideolgico de sus-tentao do direito civil nos ltimos dois sculos.

    O direito do homem sozinho, centrado numa hipottica auto-regulamen-tao de seus interesses privados, e conduzido pela insustentvel igualdade for-mal, serviu para emoldurar o bem acabado sistema jurdico privado.5 Da deriva adisciplina das noes de personalidade, ato jurdico e capacidade.

    Conciliando liberdade formal e segurana,6 a base da teoria geral das relaesprivadas foi o que sustentou, no domnio econmico, o laisser faire da Escola Liberal.7

    Esse mecanismo se refletiu no distanciamento propositado entre o direitoe as relaes de fato excludas do sistema.

    2 O DIVRCIO ABISSAL ENTRE O DIREITO EO NO-DIREITO NA DOGMTICA CLSSICA

    Nessa perspectiva, possvel dizer que ai elaborao terica e jurispru-dencial filiadas em stricto sensu ao CCB esto ainda no sculo XIX.

    Essa experincia jurdica sob tais valores tem sido merecedora de veemen-

    4) Contribuir para desnudar as divisas jurdicas da apreenso dos falos na Teoria Geral do Direito Civil se trata,todavia, de uma gota de gua no oceano singular da inquietao contempornea. Centram-se as preocupaesapenas no generoso mbito da Teoria Geral, e desta levam em conta a utilidade para o acesso ao conhecimentodo direito, sem se confundir com a teoria das regras. Sobre a relevante distino entre Teoria Geral e aDogmtica, v. por todos PLAUTO FARACO DE AZEVEDO, Crtica Dogmtica e Hermenutica Jurdica,Sergio A. Fabris Editor, pp. 26/27.5) Isso se percebeu na letra implcita dos Cdigos. No Brasil, por exemplo, o autor do projeto ao mesmotempo em que se propunha a fazer com que os fracos se reconheam amparados pelo brao forte da lei noconflito de interesses que travarem com os ricos e os poderosos, se voltava feroz contra o socialismoabsorvente e aniquilador dos estmulos individuais, aquilo que ele mesmo designou de anarquia mental queinveste contra a organizao da propriedade, da famlia e do governo (CLOVIS BEVILCQUA, Em defezado Projecto de Codigo Civil brazileiro (sic), Livraria Francisco Alves, 1906, pp. 41142). Ora, isso diz muitomais centenas de artigos do CCB. O que no foi dito, naquela justificao, que o arcabouo da codificao searmou sobre um prolongamento do personalismo tico, que atribui ao homem, como indivduo, isoladamente,uma dignidade, embora (e apenas) formal.6) Precisamente a transposio do conceito tico de pessoa para a esfera do Direito Privado foi o que se operou,naquele contexto, sob os conceitos fundamentais de pessoa, direito subjetivo, dever jurdico e relao jurdica.Bem mais direto que o nosso projetista, LARENZ teve a clareza de reconhecer, explicitamente, o fundamentoideolgico do CC alemo, na esteira no longnqua de KANT, bem como da prpria tradio do Direito natural(KARL LARENZ, Derecho Civil- Parte General, Editorial Revista de Derecho Privado, Editoriales deDerecho Reunidas, Madrid, 1978).7) ORLANDO GOMES, Transformaes Gerais do Direito das Obrigaes, 2 ed., So Paulo: EditoraRevista dos Tribunais, 1980, p. 10.

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    te condenao, embora ainda no passe de um rosrio de intenes, reunidassob as envelhecidas gotas de leo social instiladas nos sistemas deste sculo.

    O que est em questo no mais apenas a crtica igualdade formal e arigidez dos pactos. Os acontecimentos recentes desencadeiam uma crise maisprofunda no mago da teoria geral do direito civil.

    No o caso, apenas, de atender as novas exigncias da convivncia socialdo sculo XX, como a limitao autonomia privada ou a formulao da funosocial do contrato. A real dimenso dos problemas vai mais longe do que to-somente perseguir a poltica de alargamento do dever de indenizar independen-temente de culpa, ou do prprio conceito de dano.

    Se se apreende hoje, sem grandes dificuldades, a inexistncia de perenidade eincolumidade desse sistema, armado sob a decadncia do voluntarismo jurdico, bem verdade que isso nele i reflete o divrcio abissal entre o direito e o no-direito.8

    O sistema artimanhado, de tal sorte competente, atribuiu a si prprio o poderde dizer o direito, e assim o fazendo delimitou com uma tnue, mas eficaz lmina odireito do no direito; por essa via, fica de fora do sistema o que ao sistema nointeressa, como por exemplo as relaes indgenas sobre a terra; o modo de apropri-ao no exclusivo de bens; a vida em comunho que no seja a do modelo dado.

    Desse modo e com essa matiz tomaram prumo cdigos civis deste sculo,a reboque de algumas codificaes anteriores. E entre ns no foi diferente: oCdigo posto em vigor em 1917 foi perfeito anfitrio ao acondicionar um retum-bante silncio sobre a vida e sobre o mundo; nele somente especulou-se sobre

    8) Veja-se a propsito um simples exemplo; da parte geral, na disciplina das pessoas fsicas ou naturais, o Cdigopromove, a rigor, a derrogao da igualdade jurdica, tutelada constitucionalmente em favor de todos oscidados, e o faz no regime das incapacidades (Nesse sentido, ADRIANO DE CUPIS, Istituzioni di DireitoPrivato, terza edizione aggiornota, Milano, Dott. A. Giuffr Editore:, 1983, p. 30; a distncia entre a disciplinaconstitucional e o CCB foi bem situada pelo professor GUSTAVO TEPEDINO no estudo Contorni delIaproprieta nelIa Costituzione brasiliana del 1988, Rassegna di diritto civile, n 01/91, Edizioni Scientifi-che Italiane, p. 104, assinalando que allosservatore comparatista potr sembrare strana Iinsensibilit dellacivilista di fronte ad una disciplina cos ricca di valori non patrimoniali e di doveri imposti a tutta Ia societ perlesplicazione delIa funzione sociale della propriet. O prprio Professor TEPEDINO bem localiza a fonte dessainterrogao, ao mencionar o erro de ler a Constituio luz do CCB ao invs de ler o Cdigo luz daConstituio. A idade imatura , como a denomina a doutrina italiana, exclui o sujeito da tutela da igualdade, eo marginaliza de poderes e deveres na ordem jurdica; o sexo j foi posto, originalmente, como causa derebaixamento da capacidade; a enfermidade psquica do mesmo modo, invocando o direito para si a tarefa deseparar, no mundo das relaes jurdicas, os normais (capazes) e os anormais (incapazes). possvel tomaroutro significativo exemplo do distanciamento que a construo da civilstica tradicional operou: trata-se doestabelecimento da filiao. O sistema do parentesco foi emoldurado para sustentar uma concepo patriarcal,matrimonializada e hierarquizada da famlia. Nessa perspectiva, somente tinham abrigo sob essa moldura osvalores com ela compatveis. Assim, por hiptese, o filho de pessoas no casadas entre si e que no podiam casarpela existncia de algum impedimento matrimonial, no era filho. Afirmar isso equivale a reconhecer o diversoolhar que o jurdico dirige sobre a filiao diante do olhar do bilogo. Aquele filho, para o direito, uma vezilegtimo, no passava para o mundo do direito, ficava no universo do no -direito. Todavia, para um bilogo,escreveu ENGlSCH (KARL ENGISCH, Introduo ao Pensamento Jurdico, 3 ed., Fundao CalousteGulbenkian, Lisboa, 1977, p. 17), nem sequer existe a distino entre filhos legtimos e ilegtimos - para eleapenas existe o fato da descendncia natural. A superao jurdica dessa dicotomia, posta no texto constituci-onal brasileiro, ainda reclama efetividade. Demais disso, cabe aduzir que mesmo o liame biolgico no explicacompletamente o verdadeiro sentido da filiao, eis que os laos de sangue podem no traduzir a construo dasrelaes paterno-filiais ou materno-filiais incorporada no tratamento scio- afetivo.

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    os que tm e julgou-se o se o equilbrio do patrimnio de quem se ps, por foradessa titularidade material, numa relao reduzida a um conceito discutvel deesfera jurdica.

    No entanto, de algum tempo para c, chegada a hora de filtrar o funda-mento da estabilidade dessas relaes jurdicas impessoais e praticamente irre-alizveis. Mais do que isso, pode ser a descodificao da teoria geral do direitocivil, para favorecer a compreenso exterior dos fenmenos sem pertinncia sub-jetiva direta com uma proposio jurdica, o caminho de apreenso menos artifi-cial da vida e dos fatos.

    3 O REGIME DAS LEGITIMIDADES

    Essa artificialidade se mostra no fenmeno de excluso dos sujeitos e issoingressa, por exemplo, no que pode ser designado como o regime das legitimidades.

    Para bem explicitar esse quadrante de idias, oportuno ter presenteque a concepo clssica da capacidade se redireciona com a idia modernade legitimao.9

    Em outras palavras, as pessoas ... tm plena capacidade para a prtica dequaisquer atos, -lhes vedada, simplesmente, a prtica de certos negcios, defi-nidos no pela sua categoria genrica. mas em razo de uma cena relao com oobjeto do negcio e com a outra parte.10

    Sob a alcunha de ilegitimidade,11 a regulao jurdica dos papis deferidoss pessoas12 depende da funo que, em abstrato, o prprio sistema define.13

    Por esse ntido afunilamento soa estridente o objetivo final que impregna oregime das legitimidades: a criao e manuteno, dentro do direito, de umaviso acabada, completa e supostamente monoltica.

    9) A primeira dirige-se a conformar um sujeito de direito perante o sistema, constituindo-se, pois, numpressuposto subjetivo do negcio jurdico; a segunda, tem por fim elencar um pressuposto subjetivo- objetivo,vale dizer, resulta de uma posio do sujeito (no em si mesmo), mas em seu modo de ser com os demais.Quando se examinam as hipteses de cabimento desse pressuposto - subjetivo-objetivo, percebe-se como osistema delineia claramente as relaes que pretende valorar. So exemplos dessa realidade, as ditas incapa-cidades npcias. Desse modo, dois sujeitos, capazes, no podem casar se entre eles existe um dos motivos quea lei prev como impedimento matrimonial. Nesse sentido, SERPA LOPES, Curso de Direito Civil, v. I,68. ed., Rio de Janeiro; Freitas Bastos, 1988.10) CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO. Teoria Geral do Direito Civil, 2. ed. Coimbra: Coimbratambm pode se enfeixar nos limites externos de um sistema que no pode ultrapassar. V. sobre boa-f, JOSLUIS DE LOS MOZOS, El principio de Ia buenafe, Barcelona: Bosch. 1965, p. 41.11) Sob outro prisma possvel localizar esse mesmo fenmeno. O principio da boa-f legitima o intrpretepara a efetivao de coordenadas fundamentais do direito. Em certa dimenso, percebe-se que a prpria boa-f se mostra como uma circunstncia valorada pelo direito e a partir da posio em que se encontra o intrprete.Resta tendo, ao menos no sentido objetivo, um fundamento tico, praticamente erigida ao patamar de regra deconduta. V. MARIO JULIO DE ALMEIDA COSTA & ANTONIO MENEZES CORDEIRO. Clusulas Con-tratuais Gerais, Coimbra: Almedina, 1991, p. 12.12) Da boa-f parte o que se denomina de exerccio idneo da autonomia privada. Conforme ALMEIDACOSTA & MENEZES CORDEIRO, p. 25.13) O conceito de boa-f, no obstante a amplitude de seu contedo e a relevncia no plano das clusulas gerais,Editora, 1983, p. 216.

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    4 A ANATOMIA DO SUJEITO: O DIREITO DAS COISAS E DA NATUREZA

    A noo de objeto de direito em face da proteo ao meio ambiente, e odireito da Natureza pode contribuir, nessa linha, para fornecer novos parmetrosao redesenhar o sujeito de direito.

    Isso porque saquear a vida at exausto de seus frutos tem sido um nefas-to papel atribuvel formulao jurdica de proposies, num simulacro da dis-ciplina do sujeito de direito.

    Sorvendo a essncia dos fenmenos concretos para configurar, apenas equando deseja. a fattispecie a caracterstica parasitria do sistema em relao vida concreta se revela no proceder de excluso e de marginalizao.

    Por essa via o sistema hospeda os fatos que quer tornar jurdicos (como ocaso fortuito, a fora maior, a prescrio, entre outros) ou quando muito aquelesque perante ele se impem,14 como se passou com a posse de estado e o concu-binato. Essa magnanimidade , porm, relativa, eis que as relaes de fatosomente ingressam no mundo do direito por uma das vias que o prprio direitoescolhe. E mesmo que essa via seja o rompimento de tais mecanismos, o resul-tado imediato a cooptao dos novos condutores no plano jurdico. Por isso epor tudo o mais que se sabe, inexiste neutralidade em direito.15

    Nessa perspectiva, inegvel reconhecer a necessidade de uma profunda trans-formao nesse conceito que nuclear na teoria geral do direito civil. A observaodesse fenmeno, segundo Michel Serres, pode ter como ponto de partida a compre-enso clssica do sujeito no contrato social e na Declarao dos direitos do homem.Ali est em exposio o produto mais acabado da razo humana, que se encerravaem si mesmo; o sujeito hipoteticamente livre e senhor de sua circunstncia goza deformal dignidade jurdica. Sob seu jugo, o objeto, as coisas e a prpria Natureza.

    E nessa percepo que foram excludos todos os que no tiveram acessoa tal dignidade jurdica, bem como o conjunto das condies da prpria nature-za humana, suas restries globais de renascimento ou de extino.16

    Nesses quadrantes tudo ainda se reduz a ingressar nesse foro privilegiadodo sujeito de direito: aquele que tem bens, patrimnio sob si, compra, vendepode testar, e at contrai npcias. Para esses, o mundo do direito articulado sobas vestes da teoria do direito civil; para os demais, o limbo.

    Qual seria a origem dessa linha divisria fatal entre o objeto e o direito a partirda noo do sujeito? E sob quais valores os que nada tm (naquela acepo clssicade patrimnio), logo (em regra geral) no vendem, nem compram, nem testam, vivemjuntos (por conseguinte, no contraem npcias no sentido do matrimnio civil vli-do), ficam de fora do espao criado pelas categorias abstratas do sistema jurdico?

    Essas interrogaes mostram que a reelaborao de uma teoria geral do

    14) Sobre o tema: FRANCESCHELLI, Vincenzo. I rapporti di fatto; ricostruzione della fattispecie e teoriagenerale. Milano: Dott. A. Giuffr Editora, 1984.15) ORLANDO DE CARVALHO, Para uma Teoria Geral da Relao Jurdica - I - A teoria geral da relaojurdica, seu sentido e limites. 2. ed. atualizada, Coimbra: Centelha, 1981, p. 15.16) MICHEL SERRES, O Contrato Natural, Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira. 1991, p. 49.

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    direito civil h de ter como ponto de partida a sua utilidade, e como perspectivaa reordenao dos fundamentos do sistema jurdico luz de um diverso projetoscio-econmico e poltico.

    5 A PATOLOGIA JURDICA: VCIO E PREJUZO NA ORDEM PRIVADA

    Apanhando a outra face das relaes jurdicas, percebe-se que o regimedas nulidades,17 no qual se inspirou o CCB, atende ao mesmo estatuto patri-monial privado.

    A repersonalizao, desse modo, pode alterar essa primazia, recolocandoo indivduo como ser coletivo no centro dos interesses.

    Isso repercute decisivamente no repensar desse captulo da parte geral,segundo a importncia que venha a ser atribuda, por exemplo, aos direitos dapersonalidade (ao direito intimidade, ao prprio corpo, entre outros), aos hi-possuficientes e a outros sujeitos nessa qualidade.

    Sem embargo do patrimnio mnimo garantido,- como se d com o bem defamlia e na impenhorabilidade do mdulo rural, a disciplina dos defeitos nasrelaes jurdicas, assim redirecionada, poder captar menos a patologia dostatus jurdico adstrito ao contrato e ao patrimnio e mais a tutela do trem devida dos reais receptores da norma civil.

    6 A AO DE RETAGUARDA E A TENDNCIA DOS SISTEMAS

    Essa ordem de idias j repercutiu, de certo modo, no interior do direito,como se observa de algumas dcadas para c sob o vu da era do acidente .

    Passando por sobre o sistema tradicional do individualismo, cuja foraainda gera uma ao de retaguarda para mant-lo inclume, princpios de jus-tia distributiva tornaram-se dominantes, a ponto de serem considerados ten-dncias mundiais da percepo. bem concreta dessa coisa que se chama soli-dariedade social, que nas modernas sociedades penetrou j profundamente narea do direito privado.18

    No plano da responsabilidade civil essa repercusso j deixa de lado umelevado grau de abstrao para compreender solues legais concretas. Mas, eisso seria tudo?

    A resposta negativa se impe, eis que a isso no corresponde efetivaalterao das estruturas que sustentam o ordenamento jurdico.

    Ocorre que o sentido privado, calcado no que a filosofia designa de perso-nalismo, mantm larga presena nas mesmas estruturas, mais prxima do regi-me feudal que do ideal que povoa as tendncias tericas do final deste sculo.19

    17) Sobre ineficcia e invalidade dos negcios jurdicos. v. MOTA PINTO, p. 591 e ss.18) Nas palavras de JORGE F. SINDE MONTEIRO. Anlise Econmica do Direito, Coimbra: separata doBoletim da Faculdade de Direito. 1982, p. 05.19) Ver, nesse sentido, embora em contexto ligeiramente diverso: NELSON SALDANHA, O Jardim e a Praa; ensaiosobre o lado privado e o lado pblico da vida social e histrica, Porto Alegre: Sergio A. Fabris Editor, 1986, p. 28.

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    Para definitivamente superar o sculo XIX no basta apenas ultrapas-sar a formulao clssica do contrato, como expresso perfeita do livreencontro de vontade.20

    A crise no apenas do modelo do pensamento jurdico, e nem ape-nas um incidente no Iegado terico do destaque das individualidades.

    CONCLUSO: EM BUSCA DA RAIZ ANTROPOCNTRICA

    A realidade contempornea arquivou o projeto do conceitualismo. Mas, semesmo assim, o sculo XIX continua em moda, a rejeio a essa fundamentaodo direito pode alcanar uma afirmao da qual a conscincia crtica no podefugir: no h sistema neutro.

    No parece recomendvel, entretanto, empolgar-se excessivamente com o even-tual efeito transformador das supostas crises morais ou sociais. Se certo que dafivre des moments denthousiasme colletifs pode se estabelecer um novo direito,21

    ofertar respostas prontas para questes complexas uma tentao a ser resistida.O amadurecimento das interrogaes e o caminho adequado para respond-

    las ou afast-las por impertinentes, comeando pelo que disse o professor Orlandode Carvalho, ao discorrer sobre o sentido e os limites da teoria geral da relaojurdica: restaurar a primazia da pessoa assim o dever nmero um de uma teoriado direito que se apresente como teoria do direito civil; e esta centralizao doregime em torno do homem e dos seus imediatos interesses que faz do direito civilo foyer da pessoa, do cidado mediano, do cidado puro e simples.22

    Numa expresso, o direito civil deve, com efeito, ser concebido como ser-vio da vida a partir de sua raiz antropocntrica, no para repor em cena o indi-vidualismo do sculo XVIII, nem para retomar a biografia do sujeito jurdico a daRevoluo Francesa, mas sim para se afastar do tecnicismo e do neutralismo.

    O labor dessa artesania de repersonalizao e reetizao leva em conta umsistema aberto e rente vida, ciente de que, como arrematou, do alto de suaautoridade, o professor Orlando de Carvalho:23 a solidariedade no se capta comesquemas jurdicos: constri-se na vida social e conmica.

    nessa via que o direito civil pode e deve resistir ao ritualismo epidr-mico, centrado num conjunto de frmulas que virtualmente abraam o mundoe o fazem nelas se esgotar. Na teoria geral, contrariamente preocupao denada deixar em aberto, tem sentido, isso sim, fundar sua concepo orgnicacoerente com a diversidade.

    Permear o direito vida, e vice-versa, a iluminar a essncia do quetem ficado sombra.

    20) NELSON SALDANHA, p. 41.21) Em sentido ctico a propsito, GEORGES RIPERT, Les forces cratrices du droit, Paris: Librairie Gnralede Droit et de Jurisprudence, 1955, p. 61. citando M. DAVY.22) ORLANDO DE CARVALHO, p. 92.23) Ibidem, p. 15.

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