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 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO..... ..................................................................................................... 9 O Contexto da Obra de Frege............................................................................. 9 Difculdades com o conceito de verdade.......................................................... 12 1. NOVIDADE DE SENTIDO E REFERÊNCIA NA FILOSOFIA DE FREGE.....................1 9 2. A ESTRUTURA FILOSÓFICA FREGIANA............................................................... 37 2.1Objetividade e Subjetividade............... ........................................................38 2.2Unidade no Pensamento e Sentido..............................................................47 2.3Reer ência e Nomes Próprios........ ...............................................................61 2.4Conceito e Objeto na Conexão Lógica entre Linguagem e Mundo...............66 3. O VERDADEIRO: LÓGICO E ONTOLÓGICO........... .............................................. 74 3.1 A Generalidade Quantifcacional................................................................ 75 3.2 A concepção de existência de F rege.......... .................................................80 3.3 O V erdadeiro e o Quantifcador Existencial.................................................87 CONCLUSÃO......................................................................................................... 91 BIBLIOGRAFIA....................................................................................................... 95

Linguagem e Verdade - Uma Análise Da Lógica de Frege - Textuais

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Em “Sobre o Sentido e a Referência”, Frege anuncia uma ruptura comseus trabalhos anteriores, notadamente a Conceitografia, na qual ele haviaassumido que a igualdade era referente aos nomes e sinais representativosdos objetos. Como consequência dessa negação, Frege apresenta a estruturade Sentido e Referência, como alternativa às possibilidades anteriormenteapresentadas. Em decorrência dessa ruptura, a dimensão da filosofia analíticadesenvolvida por Frege se amplia, revelando um complexo sistema no qual overdadeiro se torna o ponto fundamental. Mostramos que, no processo dereformulação do significado do verdadeiro, Frege diferencia, ainda nosFundamentos da Aritmética, o domínio do campo objetivo efetivo do campoobjetivo não-efetivo, espaço lógico no qual as leis do ser verdadeiro encontramlugar como referência para as proposições que expressam o pensamentoanalítico. Visamos demonstrar que, partindo dessa fundamentação inicial, oautor almeja estabelecer uma conexão ontológica entre o pensamento e as leisdo ser verdadeiro, o que lhe permite distinguir, em “Sobre o Sentido eReferência”, o pensamento que expressa uma representação ou ideia,pertencente ao domínio subjetivo, do pensamento que expressa as leis do serverdadeiro, e que podem ser transmitidas em gerações, por pertencerem aodomínio objetivo não-efetivo. Buscamos estabelecer uma conexão entre essasdiretrizes e a concepção de pensamento fregiano, justificando a composiçãodeste como sendo uma estrutura que atende ao princípio de saturação, quenão se articula na forma sujeito/predicado e que, para poder atender ànecessidade lógica de passar do sentido para a referência e ser nomeadocomo o verdadeiro, se articula com a lógica extensional e, em um sentido aindamais intrínseco, com uma lógica da existência, que surge como a estruturabasilar na qual se fundamenta o juízo, e sem o qual não poderia haver avalidação ontológica do pensamento analítico de Frege.

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  • 8SUMRIO

    INTRODUO..........................................................................................................9

    O Contexto da Obra de Frege.............................................................................9

    Dificuldades com o conceito de verdade..........................................................12

    1. NOVIDADE DE SENTIDO E REFERNCIA NA FILOSOFIA DE FREGE.....................19

    2. A ESTRUTURA FILOSFICA FREGIANA...............................................................37

    2.1Objetividade e Subjetividade.......................................................................38

    2.2Unidade no Pensamento e Sentido..............................................................47

    2.3Referncia e Nomes Prprios.......................................................................61

    2.4Conceito e Objeto na Conexo Lgica entre Linguagem e Mundo...............66

    3. O VERDADEIRO: LGICO E ONTOLGICO.........................................................74

    3.1 A Generalidade Quantificacional................................................................75

    3.2 A concepo de existncia de Frege...........................................................80

    3.3 O Verdadeiro e o Quantificador Existencial.................................................87

    CONCLUSO.........................................................................................................91

    BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................95

  • 9INTRODUO

    O Contexto da Obra de Frege

    Gottlob Frege foi o filsofo matemtico que fundou o logicismo e, em certa

    medida, a filosofia analtica. Da necessidade de fundamentar a prpria matemtica,

    Frege se lanou lgica, com o intuito de retir-la da psicologia e do empirismo. As

    mudanas de Frege, desde a introduo da funo como forma de clculo de

    predicados na Conceitografia (Begriffsschrift, 1879), substituindo o binmio sujeito-

    predicado, alm de todas as inovaes acerca dos conceitos, transformou a lgica.

    Todas as mudanas realizadas por Frege no decorrer de suas obras no se devem

    apenas introduo de mtodos ou de alguns elementos complementares lgica,

    mas sim a uma nova forma de articular o pensamento, no intuito de definir a relao

    entre verdade e lgica de forma mais adequada do que at ento havia sido

    possvel.

    De acordo com Santos (2008):

    A lgica funda, admitiria Frege, a arte de pensar corretamente, na exatamedida em que das leis lgicas podem ser derivadas prescries sobrecomo pensar de acordo com a verdade, mas ela o faz na qualidade decincia do ser verdadeiro enquanto tal. A uma cincia impe-se, antes detudo, elucidar o contedo de seus conceitos primitivos e a natureza de seusobjetos mais caractersticos. lgica impe-se, antes de tudo, elucidar oconceito de verdade e a natureza daquilo a que mais diretamente dizemrespeito as leis do ser verdadeiro, aquilo a que mais propriamente se aplicaesse conceito.1

    Como cincia do ser verdadeiro enquanto tal, cabe lgica elucidar o

    conceito de verdade, mas realizar tal tarefa, na concepo fregiana, implica

    empreender uma reviso sobre o que se entende por verdade e, igualmente, a que o

    conceito de verdade pode ser atribudo. um fato, no apenas em Frege, mas em

    toda a tradio filosfica, que lgica e verdade sempre estiveram intrinsecamente

    relacionadas e, em Frege, a relao entre elas se mantm pois, segundo o autor:

    Assim como a palavra "belo" assinala o objeto da esttica e "bem" assinalao objeto da tica, assim tambm a palavra "verdadeiro" assinala o objeto dalgica. De fato, todas as cincias tm a verdade como meta, mas a lgicaocupa-se dela de forma bem diferente. Ela est para a verdadeaproximadamente como a fsica est para o peso ou o calor. Descobrirverdades a tarefa de todas as cincias: cabe lgica, porm, discernir asleis do ser verdadeiro (Wahrsein).2

    1 SANTOS, L.H.L dos. O Olho e o Microscpio, pg. 42.2 FREGE, G. O Pensamento, trad. Alcoforado, in Anais de Filosofia, n 6, pg. 283.

  • 10

    A verdade, tal como apresentada aqui, como objetivo e meta a ser

    descoberta, constitui-se como o foco das cincias. Todavia, a lgica se relaciona

    com ela pelo fato de ter como meta as leis do ser verdadeiro, e no aquilo que

    podemos denominar verdades. Existe um aspecto de anterioridade da lgica em

    relao s demais cincias, na medida em que s podemos julgar as verdades a

    partir das leis do ser verdadeiro. Portanto, a prpria cincia pareceria depender do

    desenvolvimento da lgica para validar seu mtodo.

    No entanto, h que se notar que a lgica aqui referida deve ser abordada em

    seus pormenores, uma vez que, em meados do sculo XIX, muitas mudanas

    ocorreram em seu desenvolvimento, dando origem a duas vertentes diferentes da

    lgica. Esta, aos tempos de Frege, encontrava-se dividida em duas escolas muito

    distintas. De um lado, encontramos a lgica anti-formalista e empirista de John

    Stuart Mill (1806-1873) e seus seguidores como Sigwarth (1830-1904) e Lipps

    (1851-1947), na Alemanha. Do outro, temos a lgica relacionando-se com a

    matemtica, como vemos em Boole (1815-1864), De Morgan (18061871), Peirce

    (18391914) e Peano (18581932) que, fazendo uso da juno de elementos da

    lgebra e da aritmtica com a lgica, conseguiram ampliar os horizontes desta para

    alm daquilo que a lgica formal clssica e a lgica empirista conseguiam alcanar.

    A aproximao de ambas, lgica e matemtica, todavia, se deu em

    momentos e direes diferentes. Em um primeiro movimento, a matemtica se

    apresentar como um instrumento de auxlio e ampliao da lgica. Em um segundo

    momento, contrariamente, a lgica servir de suporte para a matemtica,

    encontrando um ponto de equilbrio no pensamento de Frege.

    Esse segundo momento se d em meados do sculo XIX quando, no ncleo

    da prpria Matemtica, surgir uma necessidade de fundamentao, na qual a

    Lgica ser buscada, para justificar e demonstrar a validade dos axiomas

    matemticos.

    Inmeras descobertas da poca foram cruciais para abalar os alicerces da

    crena sobre a auto-validao da aritmtica. Dentre elas, podemos destacar

    principalmente a questo da concepo de conjuntos infinitos de tamanhos

    diferentes, desenvolvida pela Teoria dos Conjuntos de Georg Cantor, alm da

    fundamentao emprica da aritmtica oferecida por John Stuart Mill. Tais situaes

  • 11

    levariam Bertrand Russell a comentar com ironia, que "as matemticas so uma

    cincia em que no se sabe de que se fala nem se o que se diz verdadeiro3".

    Para Kneale,

    Uma vez que dvidas foram jogadas sobre a fiabilidade da intuio espacialcomo uma fonte de conhecimento matemtico, tornou-se necessrioreexaminar todas as provas atualmente aceites, e o resultado foi umareconstruo radical da matemtica por homens como Cauchy eWeierstrass. J foi dito, de fato, que nada foi satisfatoriamente comprovadona anlise antes do sculo XIX. Agora tanto na anlise como na geometria origor exige a formulao explcita de tudo que essencial para umademonstrao. E assim encontramos a ateno dirigida, no sculo XIX, paraas frmulas que fornecem definies implcitas dos vrios tipos deexpresses numricas.4

    Essas frmulas, que se tornaram uma exigncia de rigor no sculo XIX,

    tanto atuam como regra de clculo quanto como axiomas que, por um lado,

    estabelecem as diretrizes e caminhos que se deve seguir e, por outro, podem ser

    uma fundamentao de todo conjunto de conhecimentos que ganham espao nesse

    perodo, sendo, no primeiro caso, orientados pelas leis gerais da lgica e, no

    segundo caso, devendo seu prprio fundamento e origem s mesmas leis gerais.

    Kneale questiona os critrios que levaram adoo dos axiomas e das frmulas,

    decorrentes desse procedimento:

    Se estas frmulas so consideradas como regra de clculo ou comoaxiomas a partir dos quais os teoremas devem ser calculados de acordocom as leis gerais da lgica no de grande importncia, desde que sejamestabelecidos plenamente e reconhecidos como fundamentais. Mas natural que se pergunte por que deve ter apenas estas frmulas. Existealguma necessidade inerente ao curso do desenvolvimento que nos levou aadot-las? Ou elas so convenes da nossa prpria criao, sugeridas, naverdade, por um interesse na descrio da natureza ou por um desejo degeneralidade abstrata na prpria matemtica, mas incapaz de prova,precisamente porque so apenas convenes? Estas questes foramsuscitadas no sculo XIX e ainda so debatidas em nossos dias.5

    Essas questes circunstanciais, demarcadas pelo surgimento de inmeros

    paradoxos, demandaria a necessidade de fundamentar a aritmtica em uma base

    que no dependesse de questionamentos ou arbitrariedades.

    De acordo com Blanch:

    Pedir lgica, convenientemente renovada que assegure os alicerces damatemtica, convida bastante naturalmente a prosseguir aqum dos limites

    3 BLANCH, R. Histria da Lgica, pg. 307.4 KNEALE & KNEALE. The Development of Logic, pg. 400.5 KNEALE & KNEALE. The Development of Logic, pg. 401.

  • 12

    habituais da matemtica o trabalho de regresso na formalizao dedutiva ea tentar fazer derivar o conjunto das noes e das verdades matemticas apartir das noes e das verdades propriamente lgicas.6

    nesse contexto de fundamentao que se insere a lgica de Frege. Este

    no pretendia, como anteriormente se props, utilizar a lgica como ferramenta ou

    auxiliar, mas essencialmente como o fundamento da matemtica. Um fundamento e,

    igualmente, um mtodo para o reconhecimento das leis do ser verdadeiro.

    Cronologicamente, a obra de Frege inicia-se em 1879, com a publicao do

    Begriffsschrift (Conceitografia ou Ideografia). A proposta de Frege, nessa obra,

    desenvolver uma linguagem que, de fato, se distinga da linguagem ordinria,

    fornecendo uma estrutura mais precisa para se formular as proposies e,

    consequentemente, os juzos. As bases do pensamento de Frege concebidas em

    sua linguagem passariam por algumas modificaes, mas seriam a base para o

    desenvolvimento do projeto logicista, cuja principal proposta consistia na

    fundamentao da matemtica pela lgica, e que encontra um ponto alto na

    publicao, em 1884, dos Grundlagen der Arithmetik (Os Fundamentos da

    Aritmtica), trabalho que estabelece uma ampla discusso com as correntes do

    empirismo e da psicologia vigentes na poca. , todavia, em decorrncia dos

    trabalhos realizados a partir de 1890 que percebemos uma ampliao da filosofia

    fregiana e uma ruptura essencial com o trabalho desenvolvido at ento. A partir dos

    artigos Funktion und Begriff (Funo e Conceito), de 1891; ber Sinn und

    Bedeutung (Sobre o Sentido e a Referncia), e ber Begriff und Gegenstand

    (Sobre Conceito e Objeto), ambos de 1892, Frege estabelece novas diretrizes para

    sua investigao lgica, o que resulta em uma definio do verdadeiro deveras

    singular.

    Dificuldades com o conceito de verdade

    Frege, ao escrever a Conceitografia, em 1879, demonstra uma preocupao

    quanto ao entendimento da comunidade cientfica em relao ao saber. A questo

    recai sobre a linguagem, pois o saber cientfico no pode se valer da linguagem

    comum, da qual nos valemos para o entendimento social, uma vez que sua

    ambiguidade constitui uma dificuldade para a aquisio de um conhecimento

    6 BLANCH, R. Histria da Lgica, pg. 306.

  • 13

    preciso. A perda da objetividade ocorre devido ao uso superficial ou subjetivo da

    linguagem. Conforme Frege dir em Sobre Sentido e Referncia, o ideal que

    cada palavra tivesse um nico sentido, e cada sentido uma nica referncia. Tal no

    o que ocorre na linguagem, onde uma mesma palavra possui inmeros sentidos, e

    estes, muitas vezes, mais de uma referncia.

    O que pode parecer um problema, no entanto, apresentado como uma

    caracterstica necessria da linguagem, segundo Frege. o que garante o

    dinamismo e a funo da mesma. Essa condio s vem a se tornar um problema

    quando deixamos o aspecto geral da linguagem e entramos em um domnio

    especfico, em situaes nas quais indagamos acerca de um conhecimento

    especfico, que no poderia ser conhecido por meio do uso da linguagem comum.

    nessa situao que uma nova linguagem deve se apresentar. Tal linguagem no

    pode ser ambgua, deve possuir um nvel de clareza e universalidade que permita o

    entendimento entre todas as comunidades que investiguem o mesmo saber. Essa

    linguagem, no entanto, no servir para o uso cotidiano. Ser intil para o conjunto

    de vivncias nas quais o homem de sociedade se v inserido. Mas ter grande

    utilidade nos meios estritos da investigao cientfica. Sobre essas duas linguagens,

    Frege assim se expressa:

    Creio que posso tornar mais clara a relao entre minha conceitografia e alinguagem comum comparando-a que existe entre o microscpio e o olho.Este, pela extenso de sua aplicabilidade, pela agilidade com que capazde adaptar-se s diferentes circunstncias, leva grande vantagem sobre omicroscpio. Considerado como aparelho tico, o olho exibe decerto muitasimperfeies que habitualmente permanecem despercebidas, em virtude daligao ntima que tem com a vida mental. No entanto, to logo os finscientficos imponham exigncias rigorosas quanto exatido dasdiscriminaes, o olho revelar-se- insuficiente. O microscpio, pelocontrrio, conforma-se a esses fins da maneira mais perfeita, mas,precisamente por isso, inutilizvel para todos os demais7.

    A acuidade necessria para certas investigaes torna o olho insuficiente em

    suas capacidades. Nesse caso, necessitamos de algo mais apurado, uma

    ferramenta de uso restrito, mas muito mais precisa. Todavia, essa mesma preciso

    torna-a incapaz de se adaptar s vrias circunstncias da vida cotidiana, na qual as

    caractersticas dinmicas do olho o tornam prefervel, porquanto mais adequado.

    7 FREGE, G. Prefcio Conceitografia, in: Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 46.

  • 14

    A analogia, aplicada linguagem, implica a necessidade de linguagens

    estritas para a compreenso de certos elementos do saber, para os quais a

    linguagem comum torna-se obscura e incerta.

    Essa preocupao acima demonstrada no posiciona Frege em um registro

    diferente daquele j seguido pela tradio platnica a aristotlica. O projeto de

    estruturar a linguagem em um modelo adequado, que representasse de modo

    perspcuo o processo de conhecimento, bem como o de juzo, constitui o projeto da

    tradio filosfica e este , de fato, o prprio bero norteador da lgica, em suas

    origens.

    Mas, nesse caso, se essa a preocupao inicial de Frege, por que iniciar

    sua Conceitografia com o intuito de tornar mais clara a aritmtica? Por que no

    buscar adentrar diretamente os domnios da linguagem? Afinal, a linguagem

    matemtica parece ser a mais distante da linguagem comum, sendo, portanto, uma

    das mais estritas e corretas. Iniciar suas investigaes pela aritmtica, com o intuito

    de fundament-la na lgica tambm no distancia, especificamente, Frege da

    tradio filosfica.

    Para Aristteles, na composio de textos que se tornariam o que hoje

    conhecemos como Organon, o ponto de partida era quase o mesmo. Aristteles

    considerava necessrio o rigor da linguagem, tanto para os saberes teorticos,

    quanto para uma melhor fundamentao da Geometria. E a Geometria, na ocasio,

    conforme Santos (2008), abarcava muito do que hoje admitiramos como objetos

    prprios da aritmtica.

    O primeiro motivo a necessidade de, um tanto paradoxal, num primeiro

    momento, de encontrar, em uma linguagem estrita, a generalidade necessria para

    dar conta de todas as situaes da linguagem sem que se recaia em ambiguidade.

    O que queremos dizer que a linguagem estrita procurada por Frege seria estrita

    porque no poderia possuir a ambiguidade natural da linguagem, por conta da

    necessidade de preciso que o objeto do saber exige. Em contrapartida, essa

    linguagem deve possuir um tipo de generalidade em sua estrutura, de maneira que

    consiga expressar, dentro de suas prprias regras de preciso, todas as relaes

    concernentes ao mbito de sua atuao. A estrutura tradicional da linguagem

    fundamentada sobre o sujeito e o predicado no , segundo Frege, suficientemente

  • 15

    apropriada para contornar esse problema. Frege encontra, como substitutos mais

    adequados, a funo e o argumento, operaes prprias da Aritmtica e que, por

    possurem um critrio baseado em saturao e insaturao, se aplicariam a

    praticamente todas as situaes apresentadas pela linguagem, contendo a suficiente

    generalidade.

    O segundo motivo para comear pela aritmtica est no fato de que tanto a

    matemtica quanto a lgica independeriam do mundo emprico e passariam a

    depender unicamente do pensar para validar seus elementos. Dois campos nos

    quais, segundo Frege, "a matria cede terreno e dominada pelo pensar"8. De tal

    maneira, Frege resguardaria tanto lgica quanto a aritmtica de cair nos domnios

    seja da psicologia, seja do empirismo.

    Ademais, tanto a aritmtica quanto a lgica dependem nica e

    exclusivamente dos acordos encontrados entre suas proposies. Segundo Santos:

    Enquanto a ausncia de fundamentao suficiente pode, nas cincias domundo emprico, ser compensada no momento do confronto com aexperincia, na matemtica, cuja relao com a experincia, se existir, remota e mediata, onde entra em considerao o grau de transparncia aoesprito das conexes lgicas tanto quanto a matria do saber, a totalidadedas verdades deve, por assim dizer, repousar sobre si prpria9.

    Um elemento importante salientado por Santos consiste no fato de que as

    validaes das verdades matemticas repousam, por total independncia do mundo

    emprico, somente nas conexes lgicas estabelecidas e, portanto, nas conexes

    entre as proposies matemticas:

    A questo de saber se uma dada proposio deve ser recebida comoverdade matemtica no admite resposta mesmo aps uma centena deaplicaes bem sucedidas, que conduziriam a uma mera certeza moral,mas to somente aps uma derivao lgica da proposio a partir dosfundamentos reconhecidos do sistema10.

    Considerando o que afirmamos acerca das preocupaes seminais de

    Frege, algumas perguntas norteadoras podem ser feitas no mbito da investigao:

    o que pode ser verdadeiro? A verdade um predicado que diz algo sobre um

    objeto? O ser verdadeiro constitui um conceito que atribui propriedades a algo? Em

    8 FREGE, apud Santos, pg. 13.9 SANTOS, L. H. L; O Olho e o Microscpio, pg. 15.10 Idem.

  • 16

    que medida o logicismo preserva a verdade em seu aspecto lgico? A verdade

    ainda a verdade da correspondncia entre representante e representado?

    Na realidade, a investigao de Frege no se pauta tanto no que diz respeito

    verdade, em uma acepo mais geral. As cincias procuram verdades. A verdade,

    nesse aspecto, plural, e Frege no discorda disso. O que no plural, para Frege,

    aquilo que ele denominar o verdadeiro. So as leis do verdadeiro que permitem

    ao cientista encontrar verdades. E, de certa maneira, a trajetria lgica de Frege

    uma trajetria de definio do que vm a ser essas leis do ser verdadeiro.

    No por acaso que o Prefcio Conceitografia (1879) inicia-se pela

    inquirio acerca da verdade cientfica. Conforme Frege:

    A apreenso de uma verdade cientfica passa, normalmente, por vriosestgios de certeza. Com efeito, conjeturada inicialmente a partir de umnmero talvez insuficiente de casos particulares, uma proposio geraltorna-se mais e mais solidamente estabelecida ao se relacionar com outrasverdades mediante cadeias de inferncias seja porque dela se derivamconcluses que so confirmadas por outros modos, seja, pelo contrrio, porela se afigurar uma concluso de proposies j estabelecidas.11

    Embora Frege afirme que a verdade cientfica passa por inmeros estgios

    de certeza, e embora um dos processos seja partir de um nmero limitado de casos

    particulares, por meio de inferncias lgicas que uma proposio geral ganha

    solidez. Essa solidez dada pela conexo com outras verdades e estabelecida por

    meio de inferncias que no dependem, necessariamente, da observao emprica.

    O mtodo de consolidao da fundamentao de uma verdade cientfica, ao menos

    o mais seguro, segundo o autor, no outro que o seguir as leis da lgica:

    O mtodo de prova (Beweisfhrung) mais seguro consiste, obviamente, emseguir estritamente a lgica, que, abstraindo as caractersticas particularesdas coisas, apoia-se exclusivamente nas leis sobre as quais se baseia todoo conhecimento. Por esta razo, dividimos todas as verdades que requeremprova em duas espcies: aquelas cuja prova pode ser conduzida por meiospuramente lgicos e aquelas cuja prova se apoia em fatos empricos. Mas ofato de uma proposio ser da primeira espcie plenamente compatvelcom o fato de ela jamais se tornar consciente em um esprito humano, casono houvesse atividade sensorial. Portanto, o que est na base destadiviso [das espcies de verdade] no a gnese psicolgica(Entstehungsgeweise), mas o melhor mtodo de prova (Beweisfhrung)12.

    Aparentemente, Frege estabelece uma distino entre duas classes de

    verdade, onde a diviso proposta feita com base no mtodo de prova. Sem entrar

    11 FREGE, Gottlob; Prefcio Conceitografia, in: Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 43.12 FREGE, Gottlob; Prefcio Conceitografia, in: Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 44.

  • 17

    no significado de verdade, pois Frege no o faz de modo metdico na

    Conceitografia, a espcie de verdade que interessar para o autor, por conta do

    privilgio do mtodo mais seguro, sero as verdades que dependem dos meios

    puramente lgicos, pois a estrutura lgica, uma vez estabelecida pelas regras de

    inferncia, torna-se necessria, enquanto que as verdades que se apoiam em fatos

    empricos necessitam sempre de mais casos particulares para a corroborarem, e

    nunca atingem um grau absoluto de confirmao e fundamentao. verdade que

    uma dessas verdades, cujo mtodo de prova se assenta estritamente nas leis sobre

    as quais se baseia todo o conhecimento, talvez jamais viesse a ser conhecida sem

    os meios sensrios. Uma verdade de fundamento lgico, porm, uma verdade

    dotada de generalidade, pois no depende de suas particularidades. Como tal,

    embora possam ser necessrios meios empricos para ser conhecida, isso no

    muda o fato que o mtodo de prova de tais verdades continue sendo estritamente

    lgico. As verdades matemticas, referindo-nos aqui especificamente aritmtica,

    seriam desse tipo descrito. Porm, dadas as circunstncias que resultaram na

    necessidade de fundamentao da Matemtica, esta deve ser fundamentada pela

    lgica, de modo a se submeter ao mtodo de prova estritamente lgico.

    Observamos que, j na Conceitografia, as verdades se apoiam na lgica

    como o mtodo mais seguro de prova. E mesmo assim, existem verdades que se

    apoiam em mtodos empricos. A diferena entre ambas ainda no claramente

    indicada. Todavia, podemos sugerir que apoiar a verdade na lgica significa, nesse

    caso, que podemos extrair o verdadeiro de uma sentena a partir das relaes

    internas da mesma, em uma estrutura de linguagem estrita, proposta por Frege na

    Conceitografia, de maneira dissociada das possveis relaes empricas das quais

    as referidas sentenas seriam derivadas.

    Vemos que a Conceitografia, em linhas gerais, demonstra o cuidado em

    desenvolver uma linguagem restrita que visa explicitar, sem ambiguidade, as leis do

    ser verdadeiro. As proposies estruturadas nessa linguagem contribuiriam para um

    conhecimento sem lacunas, tanto de verdades que dependem de casos particulares,

    quanto das que se assentam em pressupostos estritamente lgicos. Porm, no fica

    claro, e nem parece ser o propsito do texto, discutir o que significa a verdade

    almejada ou reconhecida. As investigaes de Frege, todavia, o levaro a uma

  • 18

    definio de verdade mais formal e com uma funcionalidade lgica mais rigorosa,

    inclusive em sua terminologia. Como resultado, em Der Gedanke (O Pensamento,

    1918-19), Frege nos informa que o verdadeiro o objeto de toda a lgica. Essa

    concepo parece ter uma conotao diferente do primeiro caso que observamos,

    pois, na Conceitografia, a lgica parecia ser algo distinto e mais amplo do que as

    verdades cientficas. Em O Pensamento, o que podemos perceber que toda a

    lgica encontra-se orientada para o verdadeiro como objeto. Isso nos sugere que,

    entre a Conceitografia e O Pensamento, Frege desenvolveu e ampliou sua

    concepo acerca da verdade. O significado do termo objeto, conforme ser

    explicitado no decorrer dessa dissertao, evidenciar uma trajetria que busca

    delimitar o verdadeiro em um contexto diferente daquele que costuma caracterizar

    as verdades cientficas, estabelecendo balizas muito consistentes entre a

    considerao usual de verdade e aquela que caracterizar a mesma como objeto

    lgico. O processo que estabelece esse rigor, que define o verdadeiro no apenas

    como o objeto da lgica, mas como objeto lgico e que o distanciar das verdades

    cientficas no somente no mtodo de prova, mas em toda sua aplicao,

    resultado de uma importante ruptura na concepo fregiana no que tange distino

    entre forma e contedo da proposio.

    A proposta desta dissertao, portanto, estabelecer trs pontos:

    a) Indicar em que sentido ocorre a ruptura na concepo de verdade fregiana

    em relao concepo da tradio filosfica, representada pelos

    modelos aristotlicos e kantianos;

    b) A exposio dos elementos que compem o ncleo do logicismo fregiano,

    concebendo o que significa tomar o verdadeiro como objeto da lgica;

    c) A implicao do valor de verdade para a concepo de existncia de

    Frege, tomando em considerao que o verdadeiro, enquanto objeto

    privilegiado da lgica, assume posio fundamental na validao da

    existncia de um pensamento.

  • 19

    1. NOVIDADE DE SENTIDO E REFERNCIA NA FILOSOFIA DE FREGE

    Observamos na Introduo que Frege considera a verdade como elemento

    fundamental no estudo da lgica. Todavia, seu procedimento parece-nos divergir do

    modo como costuma ser realizado na tradio filosfica. A Conceitografia ,

    inicialmente, a obra na qual Frege inaugura um novo mtodo, baseado em uma

    interpretao singular de funo. Nesse captulo, nossa proposta indagar qual a

    novidade que Sobre o Sentido e a Referncia trazem para a discusso, e como os

    conceitos ali trazidos tona promovem uma ruptura com a concepo tradicional de

    verdade. Tambm investigaremos os problemas que essa concepo carrega e

    como Frege ter de estruturar sua filosofia para acomodar e dar sustentao para

    sua obra.

    Hans Sluga (1999), no artigo intitulado Frege On Meaning, faz uma anlise

    crtica da Conceitografia em relao concepo de Frege a respeito da verdade

    em sua teoria. Segundo Sluga, as consideraes sobre a verdade existem de modo

    indireto, sem que haja, em qualquer momento, uma tentativa de formalizao de

    uma teoria da verdade:

    No h, em particular, nenhuma teoria da verdade ou qualquer coisaequivalente a ser encontrado nele (no Begriffsschrift). Qualquer pessoafamiliarizada com o desenvolvimento posterior de Frege ou com a evoluoda teoria analtica do significado vai achar surpreendente que os conceitosde verdade e falsidade esto totalmente ausentes do livro. Ao descrever oque poderamos chamar de conectivos de verdade-funcional, Frege falaapenas de proposies a serem afirmadas ou negadas, no de seu serverdadeiro ou falso.13

    Podemos considerar que a concepo de verdade de Frege largamente

    ampliada a partir de 1890, o que faz com que haja uma ruptura no pensamento do

    autor a partir desse perodo, que o distanciar definitivamente de uma viso clssica

    da verdade, aos moldes da viso conservadora. Essa ruptura, todavia, no nos

    parece ser uma ruptura total com seu pensamento, mas o resultado do

    amadurecimento de seu logicismo, da complexidade de suas concepes. O prprio

    autor, no Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica, ao estabelecer uma reviso de sua

    obra, firma uma continuidade que remonta Conceitografia, onde lemos: Eu realizo

    13 SLUGA, H. Frege on Meaning, pg. 22.

  • 20

    aqui um projeto que j havia tido em vista no meu Begriffsschrift do ano de 1879 e

    que anunciei em meus Fundamentos da aritmtica do ano de 1884.14

    Alm dessa continuidade anunciada, as modificaes que o autor enuncia

    em seguida, como a modificao do sinal de equivalncia para o sinal de igualdade

    e o acrscimo de outros sinais, devem-se, principalmente, ao que ele enuncia como

    consequncias da evoluo de minhas concepes lgicas.15

    De fato, os elementos fundamentais, como o clculo proposicional baseado

    na estrutura funo e argumento, atravessam toda a obra fregiana. No entanto,

    duvidoso concluir que Frege concebia, j na Conceitografia, que o verdadeiro seja

    um objeto (como apresentaremos a seguir), levando em conta as observaes feitas

    at o momento.

    A partir de Funo e Conceito, porm, essa associao torna-se explcita, e

    suas repercusses no deixam de ser problemticas. Para compreendermos melhor

    o problema que se apresenta, retomemos o fato de que, desde a Conceitografia,

    Frege estrutura as proposies com base na funo e no argumento, deixando de

    lado a nomenclatura sujeito e predicado. Quando tomamos uma expresso

    alicerada em sujeito e predicado, temos um elemento, o sujeito, que recebe uma

    propriedade, o predicado. Esse mesmo predicado, em outra expresso, pode ser o

    sujeito e receber tambm uma propriedade. Ao estruturarmos como funo e

    argumento, o comportamento das proposies ser diferente, pois funes so

    elementos incompletos, que no podem atuar sozinhos sem que percebamos a

    necessidade de complemento. Um argumento, em contrapartida, teria a

    caracterstica de ser completo, no precisar de complemento. Assim, uma funo

    no poderia trocar de lugar com um argumento, pois uma funo nunca se torna

    completa, assim como um argumento nunca se torna incompleto. Um argumento,

    para Frege, em geral um objeto. Ao falar do objeto, em Funo e Conceito, Frege

    o explica da seguinte maneira:

    Quando admitimos qualquer objeto sem restrio como argumento ou valorde uma funo, surge a questo do que que chamamos aqui de objeto.Considero impossvel uma definio regular [de objeto], j que nosdeparamos com algo cuja simplicidade no admite nenhuma anlise lgica.Aqui, s se pode assinalar o que se quer dizer. E s se pode dizer

    14 FREGE, G. Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica, pg. 3.15 FREGE, G. Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica, pg. 4.

  • 21

    sucintamente o seguinte: um objeto tudo o que no uma funo, tudoaquilo cuja expresso no contm um lugar vazio.16

    Assim, o objeto ou o argumento, para Frege, no pode ser substitudo por

    uma funo, e nem pode aparecer como atributo ou propriedade de algo. Em um

    sentido geral, portanto, podemos pensar que uma proposio baseada nessa

    estrutura ter o atributo de ser verdadeira se, de fato, o objeto, enquanto argumento,

    completar a funo, que insaturada. A prpria proposio seria ento considerada

    verdadeira. Porm, Frege apresenta, logo em seguida, uma afirmao que causa

    estranheza ao leitor: Uma sentena assertiva no contm lugar vazio, e assim,

    deve-se considerar que sua referncia seja um objeto. Essa referncia, porm, um

    valor de verdade. Logo, os dois valores de verdade so objetos.17

    Se o verdadeiro tomado como um objeto, ento ele no pode mais ser

    atributo ou propriedade de uma proposio da maneira usual, ou seja, por

    comparao com o mundo. Evidencia-se, de imediato, que a concepo de verdade

    de Frege passa a diferir grandemente da tradio filosfica, e carrega consigo uma

    srie de consequncias e desdobramentos.

    Um desses desdobramentos, que podemos adiantar aqui, embora seja mais

    bem discutido no captulo 2, consiste na seguinte afirmao:

    Por valor de verdade de uma sentena entendo a circunstncia de ela serverdadeira ou falsa. No h outros valores de verdade. Por brevidade,chamo a um de o verdadeiro e a outro de o falso. Toda sentena assertiva,caso importe a referncia de suas palavras, deve ser considerada como umnome prprio; e sua referncia, se tiver uma, ou o verdadeiro ou o falso.18

    Se tomarmos essas duas passagens conjugadas temos uma consequncia

    que chama ateno. Sendo o verdadeiro um objeto e no podendo ser, pela

    definio fregiana, uma propriedade nem do objeto e nem da proposio,

    percebemos que a conexo entre uma sentena e o verdadeiro passa a ser no

    mais a de uma predicao, mas de uma nomeao, na qual a proposio, uma vez

    completa, torna-se um nome, cuja referncia, o objeto ao qual o nome se refere,

    ser um valor de verdade.

    De acordo com Greimann:

    16 FREGE, G. Funo e Conceito, pg. 96.17 FREGE, G. Funo e Conceito, pg. 97.18 FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referncia, pg. 139.

  • 22

    A considerao da natureza positiva da verdade parece ser caracterizadapela viso de que a verdade um objeto. Por essa razo, sua concepo deverdade comumente vista como uma estranha "teoria da nomenclatura daverdade" de acordo com a qual a verdade o objeto nomeado pelassentenas verdadeiras.19

    Por essa concepo, a teoria de Frege da Verdade seria uma teoria de

    nomenclaturas, de nomeaes do objeto verdadeiro, onde cada sentena seria, no

    limite, reduzida ao nome do verdadeiro. Por conseguinte, as mudanas sobre a

    concepo da verdade em seu pensamento se do intrinsecamente a partir do

    desenvolvimento dos conceitos de sentido e referncia na proposio. Os trs

    artigos compostos por Frege, Funo e Conceito, Sobre Conceito e Objeto e

    Sobre o Sentido e a Referncia esto interligados e tanto o primeiro quanto o

    segundo artigo possuem, como pressuposto, as definies de sentido e referncia.

    Como veremos adiante, de acordo com Frege, a ausncia dos conceitos de sentido

    (Sinn) e referncia (Bedeutung) fez com que tivssemos, na Conceitografia, apenas

    o termo (nome) e o objeto, o que gerou um conjunto de problemas referentes,

    principalmente, ao que concerne considerao sobre a igualdade e ao contedo

    oriundo dessa igualdade. De forma indireta, essa questo aparece em Funo e

    Conceito e, ali, surge relacionada com o conceito de extensionalidade e implicada

    com a concepo de verdade considerada como o objeto verdadeiro. Em relao

    extensionalidade porque se encontra vinculada com a ideia de que duas expresses

    sero consideradas iguais se ambas possurem os mesmos percursos de valores

    verdadeiros. E relacionada com o verdadeiro como objeto porque, sendo um objeto,

    este s pode se relacionar com outro objeto se for por meio da igualdade entre

    objetos ou nomes ou sinais de objetos. Afirma Frege:

    Pode-se fazer aqui a objeo de que 2 = 4 e 2 > 1 significam coisastotalmente diferentes, expressam pensamentos totalmente distintos. Mastambm 24 = 42 e 4 . 4 = 4 expressam pensamentos diferentes, e apesardisso, pode-se substituir 24 por 4 . 4, uma vez que ambos os sinais tm amesma referncia. Por conseguinte, 24 = 4 e 4.4 = 4 tm tambm amesma referncia. Disso conclumos que a igualdade de referncias notm como consequncia a igualdade de pensamentos.20

    A igualdade definida pela extensionalidade consiste em uma igualdade

    relativa aos percursos de valores que impliquem em uma mesma referncia, mas

    19 Greimann, D. Did Frege Really Consider the Truth as an Object?, in: Essays on Freges Conception of Truth, pg. 126.20 FREGE, G. Funo e Conceito, in: Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 92.

  • 23

    isso no implica o mesmo pensamento, em seu significado. Alm disso, Frege

    tambm afirma:

    As funes x=1 e (x + 1) = 2(x + 1) tm sempre o mesmo valor para omesmo argumento, a saber, o verdadeiro para os argumentos -1 e +1; e ofalso para todos os demais argumentos. De acordo com nossas convenesanteriores, diremos, pois, que essas funes tm os mesmos percursos devalores [...]21

    O verdadeiro, pelo que indicado pela passagem acima, no dado por

    nada externo s prprias regras proposicionais, pois o valor verdadeiro atribudo aos

    argumentos 1 e -1 s so possveis devido s condies determinantes dadas pelas

    proposies (x + 1) = 2(x + 1) ou X=1. Dadas as relaes concernentes funo,

    somente os argumentos -1 e +1 engendram o valor verdadeiro. Temos tambm que

    duas proposies sero iguais se apresentarem as mesmas condies e os mesmos

    objetos sob essas regras, pois as duas expresses acima ((x + 1) = 2(x + 1) e X = 1) s

    so consideradas verdadeiras para os objetos +1 e -1 e s so consideradas iguais

    por, em ltima instncia, denotarem a mesma referncia: o valor de verdade

    verdadeiro.

    Temos, porm, que observar que os objetos numricos citados s

    engendram o verdadeiro, por assim dizer, pelo fato de, ao entrarem na proposio

    como argumentos, atenderem e completarem o vazio deixado pela funo e

    demarcado por x, o que sugere que, sozinhos, os objetos +1 e -1 no so capazes

    de produzir o verdadeiro. Da mesma forma, todos os outros nmeros que, nesse

    contexto, engendram um valor de verdade falso, s o so assim por conta da

    estrutura da funo. Fosse a funo de outra forma, os valores de verdade seriam

    diferentes para cada nmero que entrasse como argumento. Alm disso, se o

    contexto ou a combinao entre funo e argumento que determina os valores de

    verdade obtidos, a equivalncia entre as diversas proposies s ocorre quando

    temos um valor de verdade que se comporta como referncia ltima em um

    contexto de nomenclaturas que aparentemente privilegia a forma lgica ao

    contedo.

    Ao iniciar Sobre o Sentido e a Referncia, Frege parte precisamente da

    igualdade, e explicita a problemtica que observamos brevemente em Funo e

    Conceito:21 FREGE, G. Funo e Conceito, pg. 94.

  • 24

    A igualdade desafia a reflexo, dando origem a questes que no sofceis de responder. ela uma relao? Uma relao entre objetos? Ouentre nomes ou sinais de objetos? Em minha Begriffsschrift assumi a ltimaalternativa22.

    Frege toma como ponto de partida o fato que objetos possuem nomes, e

    que, havendo, pois, a igualdade, ela pode referir-se tanto igualdade entre objetos

    quanto igualdade entre nomes ou sinais de objetos. Na Conceitografia, Frege

    assume a ltima alternativa, entendendo a igualdade como equivalncia entre os

    nomes dos objetos. Todavia, medida que o prprio autor prossegue, essa escolha

    acarretar problemas. Quando dizemos que um objeto A igual a um objeto B, ou

    simplesmente que A=B, estamos dizendo que dois objetos, de nomes distintos, so

    a mesma coisa? Na Conceitografia, duas sentenas ou termos representados por

    um sinal A e outro B sero consideradas iguais se seu contedo conceitual for o

    mesmo. Mas o fato de serem designadas por nomes diferentes no acrescenta uma

    diferena nos pensamentos asseridos? Para Frege, a designao diferente de um

    mesmo objeto produz diferenas informativas significativas:

    [...] a=a e a=b so, evidentemente, sentenas de valor cognitivo diferentes,pois a = a sustenta-se a priori e, segundo Kant, deve ser denominada deanaltica, enquanto que sentenas da forma a = b contm, frequentemente,extenses muito valiosas de nosso conhecimento, e nem sempre podem serestabelecidas a priori. A descoberta de que o sol nascente no novo cadamanh, mas sempre o mesmo, foi uma das descobertas astronmicasmais ricas em consequncias.23

    Tomando esse fato em considerao, Frege expressa duas condies que

    acarretariam no absurdo, no qual o valor informativo novo cessaria de aparecer

    onde, evidentemente, aparece:

    Assim, se quisssemos considerar a igualdade como uma relao entre osobjetos a que os nomes a e b se referem, ento a = b no pareceriadiferir de a = a, caso a = b fosse verdadeira. Desse modo expressaramos arelao de uma coisa consigo mesma, relao que cada coisa tem consigomesma, mas que nunca se d entre duas coisas distintas. Mas, por outrolado, parece que por a = b quer-se dizer que os sinais ou os nomes a e breferem-se mesma coisa, e neste caso, a discusso versaria sobre essessinais: uma relao entre eles seria asserida. Mas tal relao entre osnomes ou sinais s se manteria na medida em que eles denominassem oudesignassem alguma coisa. A relao surgiria da conexo de cada um dosdois sinais com a mesma coisa designada24.

    22 FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referncia, in Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 129.23 Idem, pg. 130.24 Idem.

  • 25

    O problema percebido por Frege se deve ao fato de que, se a igualdade

    uma relao entre objetos, toda conexo realizada ser uma conexo que no

    acrescenta nenhum valor cognitivo relao estabelecida, pois estaremos dizendo

    que o objeto igual a si mesmo, ou seja, estaremos afirmando que nada de novo

    pode ser apreendido pelo objeto, que seu conhecimento analtico, no importa o

    nome que receba. Isso levou Frege segunda opo, de que a igualdade seria uma

    relao entre nomes ou sinais de objetos. Mas essa relao de igualdade estava

    condicionada aos objetos designarem sempre a mesma coisa, e ainda acarretava a

    arbitrariedade possvel para qualquer designao. o que conclui Frege logo em

    seguida:

    Ningum pode ser impedido de empregar qualquer objeto ou eventoarbitrariamente produzido como um sinal para qualquer coisa. Com isto, asentena a=b no mais se referiria propriamente coisa, mas apenas maneira pela qual a designamos; no expressaramos por seu intermdio,propriamente, nenhum conhecimento25.

    Essa arbitrariedade algo comum na atribuio de nomes aos objetos.

    Podemos utilizar tanto objetos quanto eventos como sinal para qualquer coisa.

    Porm, se a atribuio de nomes representasse apenas a maneira pela qual

    designamos um objeto, continuaramos com o problema de nenhum conhecimento

    ser expresso por seu intermdio. Para resolver essa questo, Frege, em seguida,

    acrescenta ao nome um fator que, at certo ponto, parece ser independente de

    qualquer arbitrariedade, a saber, o fato de que, junto ao nome, existe algo que

    acompanha o conjunto, que corresponde ao modo de apresentao do objeto que

    est sendo designado pelo nome. Esse elemento o que chamamos de sentido

    (Sinn) e que, como veremos adiante, no , de certa forma, algo arbitrrio.

    No que diz respeito ao sentido, Frege defende que este, como modo de

    apresentao do objeto, corresponde fuga do argumento do absurdo, pois a partir

    do sentido, o valor cognitivo de sentenas como A = B fica assegurado.

    Afirma Frege:

    , pois, plausvel pensar que exista, unido a um sinal (nome, combinao depalavras, letras), alm daquilo por ele designado, que pode ser chamado desua referncia (Bedeutung), ainda o que eu gostaria de chamar de o sentido(Sinn) do sinal, onde est contido o modo de apresentao do objeto. [...] A

    25 Ibidem.

  • 26

    referncia de estrela da tarde e estrela da manh a mesma, mas no osentido.26

    Desde a tradio kantiana que proposies analticas, como A igual a A,

    no possuem valor informativo, j que no acrescentam nada ao prprio nome.

    Somente proposies chamadas de sintticas possuiriam valor cognitivo. Com a

    introduo do conceito de sentido, uma proposio como A Estrela da manh

    Vnus possuiria valor cognitivo, pois no evidente o reconhecimento de que a

    estrela da manh seja Vnus. Porm, a estrela da manh corresponde a um sentido,

    um modo de apresentao do objeto designado pelo nome prprio Vnus. Por

    acrescentar um sentido a Vnus, consequentemente, o contedo informativo acerca

    do objeto que est sendo asserido pode aumentar em relao ao que se tinha

    anteriormente.

    Dessa forma, para a pessoa que apreende essa proposio acerca de

    Vnus, ela no apenas adquiriu um contedo informativo, como reconheceu ser

    verdadeira essa atribuio, uma vez que a Estrela da Manh um dos modos de

    apresentao de Vnus. E Vnus, por sua vez, o nome que designa o corpo

    celeste. Em contrapartida, o que determina essa atribuio? Se a verdade parte do

    reconhecimento de uma atribuio arbitrria de um termo em relao a um objeto,

    ento poderamos supor um relativismo em todo o processo de juzo, o que nos

    levaria a reconhecer como verdadeiras certas proposies e falsas outras

    proposies, enquanto outras pessoas podem considerar as mesmas proposies

    diferentemente.

    Outra possibilidade de relativismo o que Mark Textor (2005) leva em

    considerao em sua obra Frege On Sense and Reference. Segundo Textor, a

    Conceitografia tinha como ponto de partida os contedos judicveis. Esses

    contedos eram compostos pelo que Textor denomina circunstncias, formadas por

    particulares e propriedades. Textor afirma:

    O Begriffsschrift contm uma lgica e uma teoria do contedo judicvel, isto, uma teoria do que uma declarao diz ou como um julgamentorepresenta o que o mundo . Cada frase no Begriffsschrift tem comocontedo judicvel uma circunstncia, um complexo constitudo porelementos e propriedades.27

    26 FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referncia, pg. 131.27 TEXTOR, Mark. Frege On Sense and Reference, pg. 14, v. digital.

  • 27

    Em outras palavras, Frege atua, na Conceitografia, ainda no escopo da

    lgica que se forma a partir de um particular, com sua respectiva propriedade (ainda

    que no possamos mais identificar essa estrutura com o sujeito e predicado a partir

    de sua linguagem conceitual). Entretanto, a novidade de Sobre o Sentido e a

    Referncia que agora o conjunto todo passa a corresponder a um modo de

    apresentao do objeto, como enfatiza Textor:

    Quando se pensa acerca da linguagem, encontramos uma questofundamental e profunda: o significado de uma sentena como Mont Blanctem mais de 4.000 metros de altura consiste em estar correlacionado comuma configurao de objetos, um estado de coisas ou circunstncia quecontm o prprio Mont Blanc, e uma propriedade, ter mais de 4.000 metrosde altura, ou o significado da frase reside em estar correlacionado ouexpressar o que Frege chamar um "pensamento", contendo, entre outrascoisas, um modo de apresentao de Mont Blanc? De forma mais geral:nossas sentenas remetem diretamente para circunstncias ou elas, emprimeiro lugar, expressam apresentaes que podem existirindependentemente de tais circunstncias?28

    Evidencia-se aqui a significncia e contribuio de Sobre o Sentido e a

    Referncia. Esse tipo de questionamento no existia na Conceitografia e s pde

    ser formulado a partir da concepo de sentido (Sinn). No se trata apenas de

    explicitar, em Sobre o Sentido e a Referncia, quais partes correspondem ao

    sentido e referncia no contedo judicvel, mas sim conceber um novo modo de

    entender as sentenas e o mundo por elas expresso. O sentido de um objeto no

    possui a mesma arbitrariedade de um nome e nem mesmo a contingncia das

    circunstncias. Um modo de apresentao que pode existir independentemente das

    circunstncias sugere a possibilidade de o sentido estar unido referncia por

    regras e condies que no seriam determinadas pelas circunstncias, mas sim por

    condies relativas ao prprio referente, que seriam intrnsecas a ele. A relao

    entre nome, objeto e o sentido complexa, principalmente com a entrada do Sentido

    como o temos considerado aqui. Como Frege afirmou, podemos nomear qualquer

    objeto arbitrariamente, mas uma nomeao arbitrria manteria o contedo

    informativo? Agora, se a nomeao referir-se ao modo de apresentao do objeto,

    ela estar designando o objeto segundo seu sentido e, com isso, designando seu

    contedo informativo. Mas, se isso correto, o Sentido produz um comprometimento

    no ato dessa nomeao, que limita de certa maneira a suposta arbitrariedade de

    atribuio de nomes. Se o sentido pode ser expresso por um nome designativo e se

    esse sentido dado pelo prprio objeto referido, ento esse nome sempre estar em28 Idem, pg. 16.

  • 28

    relao com esse objeto, como uma relao de equivalncia. Essa informao

    extremamente importante, caso seja verdadeira, pois se essa relao

    (nome/sentido/objeto) vlida para a nomeao de objetos como o que

    denominamos Vnus ou Estrela da Manh, tambm vlida para proposies,

    conforme referido acima. E tanto mais importante quando pensamos que, se o

    sentido no arbitrrio, mas um dos modos de apresentao do referente, o

    reconhecimento do contedo informativo que uma pessoa tem ao apreender a

    expresso "a estrela da manh" ou "a estrela da tarde" em relao ao objeto (que,

    por sua vez, tambm recebe a denominao "Vnus") no ser apenas o

    reconhecimento formal de uma atribuio ocasional ou convencional, mas sim o

    reconhecimento de que essas atribuies so verdadeiras, pois so coincidentes

    com os sentidos dados pelos referentes.

    Esse tipo de conexo entre sentido e referncia, mesmo que ocorra dentro

    do espao da linguagem, abre o campo para a discusso acerca do juzo e do que

    vem a ser o verdadeiro, pois, em uma sentena, no se trataria mais de ser apenas

    uma sentena afirmada ou negada, mas reconhecida em equivalncia com o

    verdadeiro, por conta de ela assinalar de modo apropriado a relao entre sentido e

    referncia nas instncias s quais ela (a proposio) se aplica. O sentido, como

    modo de apresentao de um objeto, ou de uma referncia, torna-se o centro

    daquilo que deve ser levado em conta em um juzo, no por ele ser aquilo que se

    pode chamar de o verdadeiro ou o falso, mas sim porque o sentido apresenta a

    relao entre a referncia e a linguagem, no enquanto ele em si mesmo, mas

    enquanto ele em seus mltiplos modos de apresentao, que se evidenciariam por

    meio da linguagem, dos nomes ou expresses designativas, ou mesmo juzos

    completos.

    Essa considerao nos leva a uma observao feita por Klement (2004)29,

    que ressalta o fato de que, para Frege, o sentido geral de uma proposio possui

    uma anterioridade ao sentido de suas partes constituintes. Ao falar sobre as

    influncias de Frege e Russell sobre o jovem Wittgenstein, Klement diz: A evidncia

    para termos Frege como a principal influncia (sobre Wittgenstein) deriva quase

    29 KLEMENT, K.C. Putting Form Before Function: Logical and Grammar in Frege, Russell and Wittgenstein, in Philosophers Imprint, Vol. 4, n.2, Agosto, 2004.

  • 29

    inteiramente de certos lemas compartilhados que indicam ser o sentido de uma

    sentena inteira mais fundamental do que as partes.30

    De fato, como veremos, Frege parece considerar que, para o pensamento, a

    proposio no possui partes estruturadas, mas estruturveis. Somente em certa

    circunstncia, o pensamento (e a proposio) desmembrado em suas partes

    constituintes, como uma construo em blocos. Nesse aspecto, as proposies

    seriam a parte visvel de um pensamento, de modo que teramos, alm de um

    sentido independente das circunstncias (o que j difere do contedo judicvel

    presente na Conceitografia) ainda ser inerente, de modo distinto, tanto nas partes

    como na totalidade de uma proposio e, nesse caso, o sentido de uma proposio

    seria mais complexo ou mais completo do que o sentido de suas partes isoladas. De

    qualquer forma, para Klement, ele aparece como mais fundamental quando o

    sentido de uma proposio do que quando o sentido de um termo.

    Pelo que foi expresso at o momento sobre as consideraes de Frege nos

    artigos posteriores a 1890, o processo para o reconhecimento de uma proposio

    como verdadeira parece assumir contornos bem distintos. Usualmente, verdadeiro

    se d quando uma proposio diz algo acerca do mundo, e esse algo, por

    transposio, verifica-se no mundo. Por esse vis, quanto mais prxima for uma

    sentena de um fato, mais verdadeira ela ser. Frege, em contrapartida, considera

    que a verdade das proposies independe de qualquer comparao entre imagem e

    mundo. Como j observado pelos exemplos anteriores, o verdadeiro, alm de ser

    considerado um objeto, referido pelos termos de igualdade ou equivalncia, dentro

    de uma estrutura de nomenclaturas, cujas regras so dadas pelo prprio clculo

    proposicional. A verdade, portanto, no seria dada por comparao ou transposio

    com algo emprico, mas tambm no seria dada por nenhuma conexo psicolgica.

    A verdade de qualquer proposio parece ser dada de forma analtica, a partir da

    relao, possivelmente ontolgica, entre sentido e referncia. A linguagem, ou um

    juzo, expressaria um sentido, um modo de apresentao da referncia que, por sua

    vez, coincidiria com o objeto verdadeiro ou no. E dizemos ontolgica, pois tal

    relao entre sentido e referncia parece revelar-nos uma dinmica acerca do ser

    das coisas, da identidade das mesmas, que revelado pelos muitos sentidos pelos

    quais uma referncia possui. 30 Idem, pg. 01.

  • 30

    Mas, qual seria a natureza daquilo que chamamos de referncia? Se a

    referncia no emprica e nem psicolgica, o que Frege denomina referncia?

    Para o autor, a referncia um dado lgico. A lgica , em termos kantianos,

    analtica e a priori. Para Frege, os elementos constitutivos do mundo (funes e

    argumentos) so lgicos e, portanto, analticos. Poder-se-ia indagar acerca de casos

    como Jlio Csar ser tomado como referncia. Isso no seria um dado lgico, e seu

    conhecimento no seria analtico. De fato no podemos afirmar que Jlio Csar seja

    um dado a priori. Todavia, no parece o caso de, ao falarmos de Jlio Csar, como

    em Jlio Csar conquistou as Glias, estarmos nos referindo apenas a uma pessoa

    com uma referncia histrica, que cruzou o Rubico e estabeleceu toda uma

    mudana nos rumos de Roma, pois, em termos lgicos, no necessitamos recorrer

    histria para determinar a verdade de uma proposio. Jlio Csar, em tal sentena,

    um objeto cujas propriedades em questo seriam aquelas que nos permitiriam

    coloc-lo sob o conceito conquistou as Glias. Nesse aspecto, o que temos j no

    unicamente referente ao domnio objetivo sensvel e emprico, mas estaramos

    entrando no campo da lgica e de leis que no seriam dadas pelas relaes

    histricas de Jlio Csar e das Glias. Questes como as envolvendo pessoas,

    cujas afirmaes envolvem, de certa maneira o espao e o tempo, so distintas de

    afirmaes que envolvem definies acerca das leis do verdadeiro, e naquelas

    proposies especficas (as que envolvem espao e tempo) a verdade est sempre

    em questo. o que Frege diz:

    Todas as determinaes de lugar, de tempo, etc. pertencem ao pensamentocuja verdade est em questo; o ser verdadeiro mesmo no espacial enem temporal. O que realmente diz o princpio de identidade? Algo assim:No ano 1893 impossvel para os homens admitir que um objeto distintodele mesmo?, ou isso: Todo objeto idntico a si mesmo? A primeiralei trata de homens e contm uma determinao temporal; na segunda nose fala nem de homens nem de tempo. Esta uma lei do ser verdadeiro,aquela uma lei do assentimento humano. O contedo de ambas completamente distinto, e so independentes entre si, de modo quenenhuma das duas segue-se da outra.31

    O que podemos perceber por essa citao que os princpios que formam

    as leis do ser verdadeiro no so espaciais e nem temporais e, portanto, no

    pertencem ao assentimento humano. H, portanto, uma distino quando falamos

    de homens localizados no espao e no tempo, e quando falamos diretamente de leis

    31 FREGE, G. Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica, (Trad. Celso R. Braida) pg. 08. Traduo revista: FREGE, G. The Basic Laws of Arithmetic, pg. 15.

  • 31

    lgicas. Ambas as referncias, enquanto parte de uma proposio, estaro sujeitas

    lgica e tratadas como objetos da lgica, mas seus contedos sero distintos. Essa

    justificativa de nossa abordagem causa certo estranhamento, pois nos parece certo

    que, ao valer-se de determinados exemplos, Frege alude a experincias histricas e

    temporais. Alegar que, em algum nvel, elas so lgicas soa-nos excessivo,

    eventualmente. Porm, temos de nos ater a duas circunstncias. Ambas surgem em

    Funo e Conceito. A primeira delas diz respeito aplicao da funo e do

    argumento no contexto do que Frege denominou expresses funcionais, ou seja, a

    classificao das diversas expresses aritmticas como expresses saturadas ou

    insaturadas. Aps demonstrar como as expresses aritmticas se comportariam

    dentro da estrutura funcional, Frege ampliou o campo de aplicao da funo para o

    campo da linguagem:

    Vamos agora empreender a extenso [do termo funo] na outra direo, a

    saber, ampliando o domnio dos possveis argumentos. No apenas

    nmeros, mas objetos em geral, so agora admissveis, e aqui tambm

    pessoas devem ser contadas entre os objetos.32

    O motivo de Frege ampliar o campo dos argumentos tem a ver com sua

    considerao acerca de sentido e referncia. Essa a segunda circunstncia

    caracterstica. Para Frege, toda equao possui uma forma lingustica e toda forma

    lingustica apresenta uma sentena assertiva, ela afirma algo. Em tais casos, a

    sentena possui um sentido, um pensamento. Portanto, Frege trafega entre os

    campos da aritmtica e da linguagem, posicionando qualquer sentena, bem como

    qualquer pensamento, sob a estrutura de expresso funcional. Isso significa que as

    questes referentes ao campo da aritmtica, bem como o posicionamento de Frege

    em relao a ela, valero tambm para todo o campo de ampliao que Frege

    realizou em Funo e Conceito, o que inclui a escolha feita por Frege, em relao s

    opes tomadas tanto por Kant quanto por John Stuart Mill:

    Considerando-se tambm a oposio entre analtico e sinttico, resultamquatro combinaes, uma das quais, porm, a saber, analtico a posteriori, impossvel. Aqueles que se decidiram com Mill em favor do a posteriori noresta pois escolha, restando-nos ponderar ainda somente as possibilidadessinttico a priori e analtico. Kant decidiu-se em favor da primeira. Nestecaso, no h praticamente outra alternativa seno apelar para uma intuio

    32 Frege, G. Funo e Conceito, pg. 95.

  • 32

    pura como fundamento ltimo de conhecimento, embora aqui seja difcildizer se ela espacial ou temporal, ou de qualquer outra espcie.33

    Para Frege, a distino entre analtico e sinttico e a priori e posteriori

    caracteriza os tipos de escolhas que podemos fazer para classificar o sistema de

    operaes numricas e toda a aritmtica. Descartando a possibilidade de um

    conhecimento ser analtico e a posteriori, surgem as outras possibilidades: sinttico

    a posteriori, sinttico a priori e analtico. Stuart Mill optara pelo conhecimento

    sinttico a posteriori, significando com isso que todo conhecimento oriundo da

    experincia e a partir de indues. A opo de Kant fora a do conhecimento sinttico

    e a priori. Entender o que significa a escolha de Kant nos auxilia, em contrapartida, a

    compreender a magnitude da escolha de Frege frente tradio kantiana.

    De acordo com Mark Textor, Kant definiu que tanto a aritmtica quanto a

    geometria seriam cincias cujos juzos so classificados como sintticos a priori.

    Nesse sentido, o autor afirma: A distino sinttica / analtica diz respeito a como os

    diferentes conceitos esto relacionados no julgamento, a distino a priori / a

    posteriori diz respeito ao tipo de justificativa que se tem para o julgamento.34

    Essa definio implica que juzos analticos ou sintticos se referem ao

    modo como os conceitos se relacionam no interior de um julgamento, de maneira

    que um juzo analtico aquele no qual um conceito-sujeito contm um conceito-

    predicado. Esse tipo de juzo tambm chamado juzo de explicao conceitual e,

    em ltima instncia, ele explica ou analisa o conceito-sujeito. Por outro lado, um

    juzo sinttico, tambm chamado de juzo ampliativo, amplifica o conceito-sujeito, na

    medida em que acrescenta contedo junto ao conceito-predicado.

    Quando falamos de a priori / a posteriori, no entanto, estamos nos referindo

    a algo distinto da relao entre os conceitos, pois estamos considerando a

    justificativa que se tem para que aquele juzo seja realizado. Para Kant, um juzo a

    priori significa que ele se justifica independente da experincia, enquanto que um

    juzo a posteriori s pode ser justificado na experincia. O sentido de

    independncia usado por Kant possui relevncia para compreendermos a

    aplicao de independncia do ser verdadeiro em relao ao empirismo, feita por

    Frege. Para saber que uma rvore igual a si mesma, necessrio ter visto uma

    rvore para saber do que se fala, mas compreender que a rvore ou qualquer outra

    33 Frege, G. Fundamentos da Aritmtica, pg. 215.34 Textor, M. Frege On Sense and Reference, pg. 09.

  • 33

    coisa igual a si mesma dispensa a necessidade da experincia. Esse juzo

    justificado independente de experincias pessoais.

    Kant define que a Aritmtica, bem como a Geometria, possuem juzos que

    so sintticos a priori. Pela distino acima entre analtico / sinttico e a priori / a

    posteriori, as caractersticas de um juzo dessa natureza sero, conforme Textor:

    Um juzo que sinttico a priori no ser justificado pelo exerccio de umahabilidade para definir um conceito, mas ser justificado independentementeda experincia. A discusso de Kant alimentada pela pergunta sobre o queesta justificao pode ser. Por exemplo, ele (Kant) argumentou que adefinio dos conceitos de 7, 5 e mais no suficiente para justificar o meujulgamento que 7 + 5 = 12 (Kant 1781/8: B 15-16).35

    A simples definio dos conceitos no o suficiente para a realizao das

    operaes aritmticas. O conhecimento matemtico, segundo Kant, necessita

    recorrer intuio, significando que o conhecimento aprendido a partir de intuies

    a priori:

    A Filosofia mantm-se simplesmente em conceitos gerais; a Matemticanada pode fazer como mero conceito, mas apressa-se a recorrer intuio,na qual considera in concreto o conceito, embora no de modo emprico,mas simplesmente numa intuio que apresentou a priori, isto , construiu,e na qual tudo aquilo que resulta das condies gerais da construo deveser vlido tambm de uma maneira geral para o objeto do conceitoconstrudo. 36

    precisamente esse o ponto de discordncia de Frege em relao Kant.

    Ainda de acordo com Textor:

    Frege afirma, contra Kant, que na aritmtica ns no precisamos terintuies, representaes de coisas particulares no espao e no tempo,para justificar nossos juzos. Nossa habilidade para definir conceitos geraise para traar inferncias nossa fonte do conhecimento aritmtico.37

    Enquanto para Kant estava claro que o conhecimento aritmtico baseado

    na construo de instncias de conceitos, para Frege, as coisas procederiam de

    uma forma diferente.

    35 TEXTOR, M. Idem. A citao de Textor, ao final da passagem, remete Crtica da Razo Pura, passagens B 15 16. 36 KANT, I. Crtica da Razo Pura, A715 B744.

    37 TEXTOR, M. ibidem, pg. 10.

  • 34

    Frege opta pelo conhecimento aritmtico ser analtico. Essa escolha no

    gratuita e carrega consigo inmeras consequncias. O principal argumento de Frege

    contra Kant que o conhecimento no pode ser construdo por conceitos

    instanciados de objetos espao-temporais, pois a intuio de objetos dessa natureza

    no contempla um problema de outra natureza: a de que tudo o que pensvel,

    para Frege, pode ser contado. Na terminologia fregiana, isso implica dizer que tudo

    o que cai sob um conceito preciso contvel. E isso acarreta uma oposio ao

    pensamento kantiano. Se tudo o que cai sob um conceito preciso contvel, ento

    cada parte componente de um conceito contvel, e isso faz com que um conceito

    torne-se, na verdade, um conjunto. De fato, Textor afirma que a definio corrente de

    contvel se aplica a conjuntos. Textor afirma:

    Em seu atual significado padro, 'contvel' aplica-se a conjuntos. Umconjunto contvel se, e somente se, os seus membros podem sercolocados em um-para-um com um ou outro conjunto dos nmeros naturaisou um subconjunto deste conjunto. Se tudo o que pensvel contvel,essa noo de contagem muito estreita. Por exemplo, os pontos entre ospontos A e B de uma linha so contados, mas o conjunto contendo essespontos no pode ser colocado em um-para-um com o conjunto de nmerosnaturais. Objeto Contvel deve ser entendido como "objeto de um tipo que passvel de contagem.38

    Percebemos que a dimenso do que contvel ultrapassa aquilo que os

    nmeros naturais contemplam e, em contrapartida, aquilo que a intuio espao-

    temporal abrange. Dessa forma, a aritmtica, se devesse sua justificao a alguma

    forma de intuio a priori, culminaria por ter uma dimenso mais estrita do que de

    fato possui. pensando nisso que Frege afirma, nos Fundamentos da Aritmtica:

    Kant pretende recorrer intuio de dedos ou pontos, no que se arrisca apermitir, contra sua opinio, que elas apaream como empricas; pois aintuio de 37863 dedos no , de modo algum, pura. Tambm a expresso"intuio" no parece adequada, visto que j dez dedos, em virtude dadisposio de uns em relao aos outros, podem ocasionar as maisdiversas intuies. Temos, pois, enquanto tal, uma intuio de 135664dedos ou pontos? Se a tivssemos, e se tivssemos uma de 37863 dedos euma de 173527 dedos, a correo de nossa equao deveria evidenciar-seimediatamente, ao menos no que concerne a dedos, fosse elaindemonstrvel; mas no o que ocorre.39

    Frege inviabiliza a atuao da intuio, tal como Kant a concebia, para lidar

    com a amplitude da aritmtica. Afinal, se o domnio de tudo o que contvel excede38 Idem.39 FREGE, G. Fundamentos da Aritmtica, pg. 208.

  • 35

    o domnio dos objetos que podem ser conhecidos pela intuio espao-temporal,

    ento precisamos de um elemento adicional, cuja capacidade de generalizao v

    alm do caso restrito da intuio a priori. E, para tal, esse conhecimento deve estar

    arraigado na aritmtica.

    Vimos que a opo de Kant, de que o conhecimento aritmtico seja sinttico

    a priori, acarreta a necessidade de recorrer a uma suposta intuio espao-temporal

    que, em certa medida, se aproxima perigosamente de uma viso emprica da

    aritmtica. Frege rejeita essa posio, e o faz por dois motivos: o primeiro deles

    que a prpria aritmtica, em toda sua proporo, se estende para alm de quaisquer

    relaes espao-temporais. Disso decorre que, se um juzo sinttico a priori s pode

    ser justificado pela intuio espao-temporal, e essa intuio no o suficiente para

    justificar todas as relaes da aritmtica, ento o conhecimento aritmtico s pode

    ser analtico.

    O segundo motivo que, para Frege, as complexas relaes da aritmtica

    so coextensivas s relaes entre conceitos e objetos na construo do

    pensamento, expressas pelo juzo, uma vez que tudo o que pode ser pensado pode

    ser contado. Porm, as regras do juzo so as regras da lgica, o que faz com que a

    aritmtica tenha uma relao muito profunda com as leis da lgica. E as leis da

    lgica (leis do ser verdadeiro) so analticas.

    Seguir, portanto, com o raciocnio de Mill, de que a aritmtica sinttica a

    posteriori implica, em ltima instncia, que o mesmo se dir da lgica. E seguir o

    raciocnio de Kant, por sua vez, acarretar sujeitarmos a lgica a uma intuio

    espao-temporal restrita, desprovida de universalidade.

    O projeto de Frege no de modo algum estrito, uma vez que sua anlise

    da aritmtica conecta-o com a lgica e com a linguagem.

    Frege expressa, em os Fundamentos da Aritmtica:

    Do ponto de vista do pensamento conceitual, pode-se sempre assumir ocontrrio deste ou daquele axioma geomtrico, sem incorrer emcontradies ao serem feitas dedues a partir de tais assunescontraditrias com a intuio. Esta possibilidade mostra que os axiomasgeomtricos so independentes entre si e em relao s leis lgicasprimitivas, e, portanto, sintticos. Pode-se dizer o mesmo dos princpios dacincia dos nmeros? No teramos uma total confuso casopretendssemos rejeitar um deles? Seria ento ainda possvel opensamento? O fundamento da aritmtica no mais profundo que o detodo saber emprico, mais profundo mesmo que o da geometria? Asverdades aritmticas governam o domnio do enumervel. Este o mais

  • 36

    inclusivo; pois no lhe pertence apenas o efetivamente real, no apenas ointuvel, mas todo o pensvel. No deveriam, portanto, as leis dos nmerosmanter com as do pensamento a mais ntima das conexes?40

    O logicismo fregiano acaba se mostrando como um projeto que vai mais

    longe do que sujeitar a aritmtica lgica. No apenas isso, ao conectar a aritmtica

    com a estrutura do pensamento, Frege sujeita todo o pensamento que expressa um

    juzo com valor de verdade a um conhecimento analtico dado, que dispensa o

    recurso do empirismo e da intuio espao-temporal.

    A filosofia analtica de Frege estabelece uma ruptura com a tradio

    filosfica, tanto com a lgica clssica aristotlica quanto com a filosofia kantiana e, a

    partir dessa ruptura, Frege tem o desafio de forjar uma trajetria que remonte as

    relaes entre o pensamento, a linguagem e a verdade. Faz-se necessrio

    compreender o lugar que esses elementos ocupam dentro da lgica e qual sua

    relao com o mundo.

    Considerando a ciso que Frege realiza, nos aspectos acima observados,

    podemos dizer que o domnio das leis do verdadeiro, as referncias que no

    possuem posio no espao e no tempo, bem como os sentidos, que so seus

    modos de apresentao, seriam tambm objetivos? Ou elas estariam no domnio da

    subjetividade? Dada a importncia que essa questo assume para Frege na

    distino entre sentido, referncia e representao (ou ideia), estenderemos um

    pouco nossa linha de investigao para compreendermos a distino que o autor

    estabelece entre os campos objetivo e subjetivo.

    40 FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmtica, 14, pg. 217.

  • 37

    2. A ESTRUTURA FILOSFICA FREGIANA

    O problema que encontramos no captulo anterior pode ser formulado da

    seguinte maneira: se a verdade no a verdade por correspondncia entre uma

    proposio lingustica e um fato emprico ento como se d a verdade no

    pensamento fregiano?

    Esse problema foi, como vimos, oriundo da negao da posio kantiana

    segundo a qual a aritmtica seria um conhecimento sinttico a priori. Se a opo de

    Frege que o conhecimento aritmtico analtico, isso exclui, na considerao das

    operaes aritmticas, a derivao por experincias empricas. Dada essa ruptura

    com a lgica kantiana, Frege ter de redefinir o campo lgico onde a verdade poder

    ser encontrada, alm de reestruturar, dentro de seu pensamento, a atuao do que

    verdadeiro e de sua relevncia para nossas proposies acerca do mundo. Afinal,

    quando declaramos um juzo sobre o mundo, estamos aplicando certas proposies

    tidas como certas e verdadeiras e dizendo que, em determinadas condies, ser

    verdadeiro que algo seja assim, e no de outra forma. A relevncia do verdadeiro em

    tais circunstncias a de afirmar que, dadas certas condies (em geral empricas)

    ser verdadeiro o que se afirma do juzo ou das proposies que o compem.

    Afirma-se, na verdade, que aquilo que se diz corresponde ao que ocorre, e essa

    correspondncia exata o que aduzimos com o termo verdadeiro. Essa concepo

    parece ser a levada em considerao por Frege, como podemos verificar de uma

    maneira geral em Der Gedanke:

    A verdade atribuda a imagens, ideias, sentenas e pensamentos. O quechama a ateno nesta lista o fato de nela encontrarmos, ao lado decoisas visveis e audveis, coisas que no podem ser percebidas pelossentidos. O que indica a ocorrncia de um deslocamento no sentido dapalavra "verdadeiro". De fato, o que ocorre. Uma imagem, enquanto umobjeto visvel e palpvel, poder ser dita propriamente verdadeira? E umapedra, uma folha no sero verdadeiras? Evidentemente, no chamaramosuma imagem de verdadeira se nisso no houvesse uma inteno. A imagemtem que representar algo. Uma ideia tampouco dita verdadeira por simesma, mas s tendo em vista uma inteno; na medida em que elacorresponde a algo. Podemos, pois, presumir que a verdade consiste emuma correspondncia entre uma imagem e seu objeto.41

    41 FREGE, G. O Pensamento, in: Anais de Filosofia, pg. 284.

  • 38

    Porm, como acompanhamos no captulo anterior, Frege se posiciona

    contrariamente a essa concepo. Se a verdade ou verdadeiro no se refere a algo

    contingente, habitual, ou mesmo fsico, ditado pela experincia ou pela soma de

    experincias, ento o campo de relevncia e o modo como atua o termo verdadeiro

    na proposio necessita ser explicitado.

    Nesse captulo, acompanharemos a abordagem de Frege dos elementos

    que foram revisitados e reinterpretados, estabelecendo, primeiramente, o espao

    onde a verdade pode ocorrer, o significado de pensamento para Frege e sua relao

    com a proposio, o papel do sentido e da referncia e como eles se relacionam

    com conceito e objeto.

    Objetividade e Subjetividade

    Frege, em sua defesa da lgica, busca desvencilhar-se do empirismo e do

    psicologismo, em primeira instncia. A matemtica desenvolvida em sua poca

    encontrava-se envolta em concepes empricas que remetiam, na prtica, ao

    psicologismo. De tal maneira que todas as concepes matemticas ou lgicas

    estavam sujeitas a serem analisadas como decorrentes de comparaes, em grau

    subjetivo, para com objetos empricos.

    Todavia, Frege necessita distinguir as categorias lgicas das psicolgicas de

    modo a assegurar a universalidade de suas concepes, pois, se tudo subjetivo,

    tudo resultado de interpretaes contingentes e, como tal, no poderamos nos

    furtar de um relativismo no campo da lgica que reduziria a verdade a uma verdade

    circunstancial, redutvel no apenas s circunstncias, mas tambm considerao

    de cada indivduo.

    Em Os Fundamentos da Aritmtica (1884), Frege articula a distino entre o

    campo objetivo e subjetivo. O campo subjetivo o campo das representaes

    arbitrrias. Tais representaes partem dos objetos sensveis do mundo. No entanto,

    esses objetos marcam a subjetividade no apenas com sua sensibilidade, mas

    principalmente com as impresses individuais que tais objetos produzem. Segundo

    Frege:

    Se o dois fosse uma representao, seria de incio apenas meu. Arepresentao de outrem enquanto tal j outra. Neste caso teramos talvezmuitos milhes de dois. Dever-se-ia dizer: meu dois, teu dois, um dois,

  • 39

    todos os dois. Admitindo-se representaes latentes ou inconscientes,haveria tambm dois inconscientes que, por sua vez tornar-se-iam maistarde conscientes. Com a sucesso das geraes nasceriam sempre novosdois, e quem sabe se em milnios eles no se modificassem, de modo a 2 x2 tornarem-se 5.42

    Alm disso, Frege acrescenta, em Sobre o Sentido e a Referncia, que

    sentimentos e emoes, todos de fundo psicolgico, influenciam a interpretao de

    tais objetos, de maneira que a representao formada a partir deles no

    corresponde a uma ideia lgica e universal, mas sim individualizada e pessoal.

    Segundo Frege:

    A referncia e o sentido de um sinal devem ser distinguidos da ideia(Vorstellung) associada a este sinal. Quando a referncia de um sinal umobjeto sensorialmente perceptvel, ento a ideia que dele tenho umaimagem interna, emersa das lembranas de impresses sensveis passadase das atividades, internas e externas que realizei. Essa imagem interna estfrequentemente impregnada de emoes; os matizes de suas diversaspartes variam e oscilam. At num mesmo homem, nem sempre a mesmaideia est associada ao mesmo sentido. A ideia subjetiva: a ideia de umhomem no a mesma ideia de outro. Disto resulta uma variedade dediferenas nas ideias associadas ao mesmo sentido. Um pintor, umcavaleiro e um zologo provavelmente associaro ideias muito diferentes aonome Bucfalo.43

    Dessa forma, o campo subjetivo um campo pessoal, no qual a partilha de

    informaes nunca a mesma de pessoa para pessoa. Todos possuem um campo

    subjetivo, mas ele pessoal e intransfervel, sendo encapsulado no mundo interno

    de cada pessoa. Tal distino expressa por Frege, onde lemos:

    No se deve esquecer que nunca as representaes de homens diferentes,por mais parecidas que possam ser, o que, por outro lado, ns nopodemos comprovar exatamente, no coincidem em nenhum ponto, edevem ser diferenciadas. Cada um tem as suas representaes, que noso por sua vez as do outro. Naturalmente, entendo aqui representaesno sentido psicolgico.44

    Se os objetos da lgica pertencessem ao campo subjetivo, pouco poderia se

    fazer em termos de universalidade do conhecimento. Cada um teria seu prprio

    princpio de identidade, e cada proposio seria a verdadeira expresso do

    entendimento daquela pessoa, tal qual ela o concebe.

    Em tais condies, considera Frege, nada impediria que, com o tempo, uma

    pessoa pudesse chegar concluso de que a soma entre 2 mais 2 seja 5, ao invs

    42 FREGE, G., Os fundamentos da Aritmtica, pg. 227, 27.43 FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referncia, pg. 134.44 FREGE, G. Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica (Trad. Celso R. Braida), pg. 9.

  • 40

    de quatro, pois algum poderia concluir que os nmeros evoluem, de modo que, no

    princpio, 2 + 2 era igual a 1, depois a 2 e, no presente momento, igual a 4. Nada

    impediria tal pessoa de pensar que o prximo da lista seria 5. Mas tal representao

    s seria possvel se os prprios nmeros e a concepo de suas relaes fossem

    igualmente psicolgicas. Ainda segundo Frege, mesmo tal concluso acerca dos

    nmeros no poderia ser questionada, pois ela seria verdadeira para aquela pessoa

    e, sendo os nmeros representaes subjetivas, no haveria nenhuma referncia

    que obrigasse uma pessoa a rever sua interpretao, exceto, talvez, o consenso

    popular, que continuaria afirmando ser 2 + 2 = 4. Porm, em tal situao, ningum

    poderia objetar que, talvez um dia, o consenso mudasse e se adequasse ao daquela

    pessoa, e todos passassem a consentir que 2 + 2 = 5.

    Logo, se existe o campo subjetivo, e se as representaes desse campo so

    influenciadas pelas impresses internas de cada um, certamente existe um campo

    objetivo, onde tais representaes devem se assentar e nele ser corrigidas e

    adequadas. Nesse sentido, Frege afirma:

    Habitualmente, "branco" faz-nos pensar em uma certa sensao,inteiramente subjetiva, claro; mas j no uso ordinrio da linguagem,parece-me, distingue-se frequentemente um sentido objetivo. Quando se dizque a neve branca, pretende-se uma qualidade objetiva que, luzordinria do dia, reconhecida por uma certa sensao. Caso ela sejailuminada por uma luz colorida, isto deve ser levado em conta no momentodo juzo. Dir-se- talvez: ela agora aparece vermelha, mas branca.45

    O campo objetivo consiste no espao onde os objetos do mundo se

    encontram, e onde igualmente nos encontramos. Apreendemos os objetos do mundo

    por nosso intelecto e deles formamos representaes, interpretando-os. Ainda que

    nossas representaes subjetivas sejam pessoais e marcadas por nossas

    impresses e emoes, ganhando uma forma peculiar e sendo intransferveis, os

    objetos do mundo continuam estando l, permanecendo como objetos reguladores

    de nossas interpretaes, podendo produzir correes de nossas representaes.

    Porm, o campo objetivo o campo da experincia emprica, do sensvel.

    o mundo dos fenmenos com o qual nos deparamos. Esse mundo, a despeito dos

    fatos brutos que coagem nossas interpretaes e reduzem sua arbitrariedade,

    nunca, porm, de forma completamente eficiente, um mundo cujo conhecimento

    45 FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmtica, pg. 226.

  • 41

    s adquirido a posteriori, mediante a experincia. Frege afirma, a respeito desse

    espao objetivo do mundo dos objetos sensveis:

    O espao, segundo Kant, pertence ao fenmeno. Seria possvel que seresracionais diferentes o representassem de maneira completamente diferente.Na verdade, nunca podemos saber se ele aparece a uma pessoa como auma outra; pois no podemos colocar a intuio espacial de uma ao lado daintuio da outra a fim de compar-las.46

    De modo que, se tomarmos a realidade como sendo composta apenas dos

    campos subjetivo e objetivo sensvel, no encontraremos lugar para as leis

    universais, nem para a matemtica e nem para a verdade como sendo universais a

    priori. No haveria mais verdades analticas, mas apenas verdades sintticas, tais

    quais as verdades que todas as cincias procuram, mas das quais nenhum princpio

    permanente poderia ser extrado. Tomando igualmente o caminho da lgica

    kantiana, teremos sempre de recorrer a uma intuio para validar nossas

    percepes, e nelas no encontramos objetividade que possa ser compartilhada.

    A verdade, por essa concepo, bem como as leis da lgica ou da

    aritmtica, seriam sempre derivadas de relaes entre o subjetivo e o emprico e,

    portanto, contingentes. Seriam, segundo Frege, as verdades de Stuart Mill, todas

    derivadas de experincias obtidas do contato direto e da observao do meio. Frege

    observa:

    A concepo de Mill conduz necessariamente exigncia de que para cadanmero se observe um fato em particular, porque em uma lei geral perder-se-ia exatamente a peculiaridade do nmero 1.000.000, que pertencenecessariamente sua definio.47

    Sendo construdas por derivao, tais leis ou verdades no deixam de ser

    arbitrrias e podem ser ressignificadas com o tempo, passando a representar outras

    coisas, estabelecidas por consenso. Novamente, camos em um relativismo. As leis

    da lgica e as leis do verdadeiro estariam sujeitas ao pensar, pois no seriam

    apreendidas, mas sim construdas por derivao emprica. E, como construes do

    pensar, submetem-se ao domnio da psicologia, pois se enquadrariam no campo

    subjetivo.

    Frege, todavia, no considera as leis do verdadeiro, ou os elementos

    lgicos, bem como os nmeros e suas relaes como sendo frutos do campo

    46 FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmtica, pg. 226.47 FREGE, G., Os Fundamentos da Aritmtica, pg. 211.

  • 42

    subjetivo, e resultados do ato de pensar como representaes derivativas do mundo

    emprico. Frege as entende como objetivas, analticas e apreensveis pelo ato de

    pensar. Segundo o autor, mesmo nas intuies subjetivas, algo de objetivo pode ser

    encontrado:

    Entretanto, h ainda nelas algo objetivo; todos reconhecem os mesmosaxiomas geomtricos, ainda que to somente de fato, e devem faz-lo a fimde poderem orientar-se no mundo. Nelas objetivo o que conforme a leis,conceitual, judicvel, o que deixa exprimir em palavras.48

    Frege reconhece que o campo para toda uma categoria de elementos

    constituintes do mundo no se encontra no campo subjetivo e nem tampouco no

    campo objetivo sensvel.

    O domnio objetivo definido por Frege possui caractersticas distintas do

    campo sensvel: Distingo o objetivo do palpvel, espacial e efetivamente real. O

    eixo da Terra e o centro de massa do sistema solar so objetivos, mas preferiria no

    cham-los de efetivamente reais como a prpria Terra.49

    Os elementos presentes nesse campo no-sensvel possuem objetividade,

    constituem-se como referncia, so independentes de quaisquer comparaes

    humanas com o campo objetivo sensvel e, ainda que ningum jamais viesse a se

    aperceber deles, eles sempre estariam estabelecidos, de modo que, em qualquer

    tempo ou lugar, a razo poderia apreend-los, e eles estariam inalterados, sempre

    da mesma forma, e sempre constituindo-se como leis do ser verdadeiro.

    A objetividade, portanto, pode ser entendida, como Frege afirma:

    Assim, entendo por objetividade uma independncia com respeito a nossosentir, intuir, representar, ao traado de imagens internas a partir delembranas de sensaes anteriores, mas no uma independncia comrespeito razo; pois responder questo do que so as coisasindependentemente da razo significa julgar sem julgar, lavar-se e no semolhar.50

    O campo objetivo concebido por Frege nos Fundamentos da Aritmtica

    denominado como campo objetivo no-efetivo, no sensvel.

    48 Idem, pg. 226.49 Idem, pg. 225.50 Idem, pg. 226.

  • 43

    Consideramos, como vimos acima, que Frege estabeleceu trs instncias na

    constituio da realidade. A concepo de um plano objetivo no-efetivo permite a

    Frege desenvolver, como Dummett (1973) afirmou, um contexto no qual a realidade

    independe de quaisquer fatores empricos para se fazer conhecer de forma analtica.

    De acordo com Dummett:

    A imagem pode ser chamada de verdadeira, na medida em quecorresponde de perto com o que se pretende representar. A verdade de umaimagem , portanto, relacional: podemos julgar