5
Introdução Quando, há algum tempo atrás, a palavra literacia surge no nosso voca- bulário, embora não necessariamente no nosso dicionário, o seu significado é fundamentalmente o seguinte: capa- cidade do indivíduo para ler, escrever e falar na sua língua materna, efec- tuar cálculos e resolver problemas do dia-a-dia, de forma a cumprir as tarefas que lhe são exigidas tanto no emprego como na sociedade. Numa sociedade em transformação e desenvolvimento, cada vez mais exigente com o cidadão, que vive constantemente exposto a grandes massas de informação, é natural que o conceito de literacia também tenha evoluído. No estudo internacional PISA (Programme for International Student Assessment), levado a cabo em 29 países da OCDE, considerado o maior estudo sobre as compe- tências dos alunos que terminam a escolaridade obrigatória e de que resultou o volume Measuring Student Knowledge and Skills: The PISA 2000 Assessment of Reading, Mathematical and Scientific Literacy, o conceito de literacia aparece de forma mais abran- gente e mais exigente, destacando já três vertentes específicas (literacia em leitura, literacia matemática e literacia científica ) que, citando o dito estudo, têm as definições que a seguir se apresentam: Literacia estatística João Branco Maria Eugénia Graça Martins Pensar à maneira da Estatística será um dia tão necessário para o cidadão eficiente como a habilidade de ler e escrever G. Wells Literacia em Leitura — A capacidade de compreender, usar e reflectir sobre textos escritos, com o fim de atingir os nossos objectivos, desenvolver conhecimentos e potencialidades, e participar na sociedade. Literacia Matemática — A capacidade do indivíduo identificar, compreender, e de se ocupar da Matemática, de ter opiniões bem fundamentadas sobre o papel que a Matemática desempenha, como se torna necessário na sua vida presente e futura, na vida profissional, na vida social com os seus pares e familiares, para viver como um cida- dão construtivo, interessado e ponde- rado. Literacia Científica — A capacidade de usar conhecimentos científicos, de identificar problemas e de tirar conclusões baseadas em evidências para compreender e tomar decisões sobre o mundo natural e as mudanças que lhe são impostas pela actividade humana. Vários autores, ver Steen (1997, 2001), falam de literacia quantitativa, também designada por numeracia, e uma definição em voga (Steen, 2001) é: Literacia Quantitativa — Um conjunto de competências, conhecimentos, convicções e predisposições, hábitos mentais, capacidades de comunicação e jeito para resolver problemas que as pessoas precisam para enfrentar de maneira eficaz situações envolvendo quantidades que surgem na vida e na actividade profissional. Para que se perceba bem o que é literacia quantitativa há o cuidado de fazer a distinção entre literacia quantitativa e Matemática, a Mate- mática que se ensina nos cursos tradicionais. Esta é uma disciplina, com um programa, cujo objectivo é a aplicação de ideias abstractas ao estudo da relação entre objectos ideais. A literacia quantitativa ocupa- se de problemas concretos relativos a objectos ou acontecimentos reais que surgem em contextos determinados. A literacia quantitativa dá ao cidadão a capacidade de interpretar informa- ção quantitativa de natureza muito diversificada, o que é hoje uma neces- sidade permanente para a tomada de decisões correctas em praticamente todas as actividades da vida corrente. Trata-se mais de uma linguagem do que uma disciplina. Representa um novo tipo de formação e por isso é natural que outros métodos de ensino e aprendizagem, que não os tradicio- nais, sejam mais adequados para se conseguirem os objectivos para que ela aponta. A literacia quantitativa não dispensa naturalmente conhecimen- tos de matemática, e muito menos dispensa a Estatística, aquela parte que se ocupa dos problemas ligados a situações de incerteza. Contudo não parece ser com programas (de mate- mática ou de estatística) mais vastos ou mais exigentes que o ensino tradi- 9 Educação e Matemática nº 69 • Setembro/Outubro de 2002

Literacia Estatística

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Literacia Estatística

Citation preview

  • IntroduoQuando, h algum tempo atrs, a palavra literacia surge no nosso voca-bulrio, embora no necessariamente no nosso dicionrio, o seu significado fundamentalmente o seguinte: capa-cidade do indivduo para ler, escrever e falar na sua lngua materna, efec-tuar clculos e resolver problemas do dia-a-dia, de forma a cumprir as tarefas que lhe so exigidas tanto no emprego como na sociedade.

    Numa sociedade em transformao e desenvolvimento, cada vez mais exigente com o cidado, que vive constantemente exposto a grandes massas de informao, natural que o conceito de literacia tambm tenha evoludo. No estudo internacional PISA (Programme for International Student Assessment), levado a cabo em 29 pases da OCDE, considerado o maior estudo sobre as compe-tncias dos alunos que terminam a escolaridade obrigatria e de que resultou o volume Measuring Student Knowledge and Skills: The PISA 2000 Assessment of Reading, Mathematical and Scientific Literacy, o conceito de literacia aparece de forma mais abran-gente e mais exigente, destacando j trs vertentes especficas (literacia em leitura, literacia matemtica e literacia cientfica ) que, citando o dito estudo, tm as definies que a seguir se apresentam:

    Literacia estatsticaJoo Branco

    Maria Eugnia Graa Martins

    Pensar maneira da Estatstica ser um dia to necessriopara o cidado eficiente como a habilidade de ler e escrever

    G. Wells

    Literacia em Leitura A capacidade de compreender, usar e reflectir sobre textos escritos, com o fim de atingir os nossos objectivos, desenvolver conhecimentos e potencialidades, e participar na sociedade.

    Literacia Matemtica A capacidade do indivduo identificar, compreender, e de se ocupar da Matemtica, de ter opinies bem fundamentadas sobre o papel que a Matemtica desempenha, como se torna necessrio na sua vida presente e futura, na vida profissional, na vida social com os seus pares e familiares, para viver como um cida-do construtivo, interessado e ponde-rado.

    Literacia Cientfica A capacidade de usar conhecimentos cientficos, de identificar problemas e de tirar concluses baseadas em evidncias para compreender e tomar decises sobre o mundo natural e as mudanas que lhe so impostas pela actividade humana.

    Vrios autores, ver Steen (1997, 2001), falam de literacia quantitativa, tambm designada por numeracia, e uma definio em voga (Steen, 2001) :

    Literacia Quantitativa Um conjunto de competncias, conhecimentos, convices e predisposies, hbitos mentais, capacidades de comunicao e jeito para resolver problemas que as pessoas precisam para enfrentar de maneira eficaz situaes envolvendo

    quantidades que surgem na vida e na actividade profissional.

    Para que se perceba bem o que literacia quantitativa h o cuidado de fazer a distino entre literacia quantitativa e Matemtica, a Mate-mtica que se ensina nos cursos tradicionais. Esta uma disciplina, com um programa, cujo objectivo a aplicao de ideias abstractas ao estudo da relao entre objectos ideais. A literacia quantitativa ocupa-se de problemas concretos relativos a objectos ou acontecimentos reais que surgem em contextos determinados. A literacia quantitativa d ao cidado a capacidade de interpretar informa-o quantitativa de natureza muito diversificada, o que hoje uma neces-sidade permanente para a tomada de decises correctas em praticamente todas as actividades da vida corrente. Trata-se mais de uma linguagem do que uma disciplina. Representa um novo tipo de formao e por isso natural que outros mtodos de ensino e aprendizagem, que no os tradicio-nais, sejam mais adequados para se conseguirem os objectivos para que ela aponta. A literacia quantitativa no dispensa naturalmente conhecimen-tos de matemtica, e muito menos dispensa a Estatstica, aquela parte que se ocupa dos problemas ligados a situaes de incerteza. Contudo no parece ser com programas (de mate-mtica ou de estatstica) mais vastos ou mais exigentes que o ensino tradi-

    9Educao e Matemtica n 69 Setembro/Outubro de 2002

  • cional leva o estudante a melhorar a sua literacia quantitativa.

    O progressivo desenvolvimento da Estatstica e a crescente necessidade de conhecimentos estatsticos para enfrentar situaes da vida real, leva-ram introduo da literacia estats-tica, semelhana do que aconteceu com a literacia matemtica, exigida por uma quantizao cada vez mais acentuada da sociedade. Como referido em Moore (1997), Anne Hawkins define assim a ideia de lite-racia estatstica:

    Na sua expresso mais simples, literacia estatstica pode ser interpretada como uma habilidade de interagir eficazmente num ambiente de incerteza (no deter-minstico).

    Uma interpretao vaga, mas na qual faz sentido incluir a situao mais concreta que o frequente contacto com dados e a necessidade da sua anlise.

    Um aspecto fundamental na literacia estatstica compreender e usar o raciocnio estatstico. Note-se que o tipo de raciocnio estatstico dife-rente do raciocnio matemtico e a educao estatstica no se pode restringir a uma viso da estatstica simplesmente como um ramo da matemtica (Vere-Jones, 1995). O tipo de raciocnio matemtico, eminen-temente um raciocnio lgico, em que as proposies ou so verdadeiras ou falsas, no compatvel com o tipo de raciocnio estatstico, em que tratamos com proposies que no podemos dizer que so verdadeiras nem to pouco falsas, estando numa situao

    de incerteza, que pode ser quantifi-cada atravs da probabilidade:

    Verdadeiro?

    Incerteza

    Falso?

    Esta situao de incerteza acompa-nha-nos no nosso dia-a-dia, nas mais variadas situaes.

    A educao estatstica tem uma dimenso diferente das reas nor-malmente consideradas como ramos da Matemtica, como por exemplo a Geometria, a Anlise e a lgebra, pelo seu envolvimento directo com o estudo de outras cincias como as cincias mdicas e afins, cincias pol-ticas e cincias sociais. importante ensinar um mdico, um socilogo, um tcnico da indstria farmacutica e todos aqueles que fazem uso da Esta-tstica a utiliz-la correctamente. A uti-lizao incorrecta desta cincia pode levar a decises erradas com conse-quncias negativas quer para o desen-volvimento das outras cincias quer para o desenrolar da vida do cidado comum. E, como refere Chatfield (1991), em Estatstica possvel cometer erros com maior frequncia do que em outras cincias, especial-mente pelos no especialistas. Em seguida apresentam-se alguns casos de anlises estatsticas que podem levar a interpretaes e decises incorrectas quando no se conhecem bem os conceitos estatsticos.

    Reflexo de iliteracia estatsticaEsta preocupao com a educao estatstica, tem levado introduo de alguns conceitos bsicos de Esta-

    Grfico 1.Tabela 1.

    tstica e Probabilidade no ensino obri-gatrio e pr-universitrio de alguns pases, nos quais se inclui Portugal. No nos iludamos, no entanto, com as facilidades por vezes apregoadas de que estas noes so meras questes de bom senso ou do senso comum que no trazem nada de novo e que no precisam de ser ensinadas. O certo que elas so necessrias ao cidado comum na conduo da sua actividade diria e o seu desconhecimento pode acarretar graves inconvenientes e prejuzos. Por isso no estamos de acordo com aquela corrente simplista e desac-tualizada e apresentamos a seguir algumas situaes simples, mas que surgem com demasiada frequncia para serem ignoradas e s quais preciso responder com sabedoria.

    A mdia enganadora

    A mdia largamente utilizada para sintetizar a informao contida num conjunto de dados. Tratando-se de uma reduo to drstica, necess-rio acautelar as situaes em que a informao que ela transmite no tem qualquer utilidade ou falsa. O exem-plo que se segue ilustrativo. Numa regio comearam a aparecer pes-soas com uma doena desconhecida, tendo os mdicos do centro de sade recolhido informao sobre 35 desses doentes, escolhidos aleatoriamente, e concludo que a mdia das idades era 32 anos. Conjecturou-se que se tra-tava de uma doena atacando os adul-tos jovens. Um mdico mais curioso, sabedor que a mdia nem sempre uma boa medida para resumir a infor-mao contida nos dados, pediu que

    10Educao e Matemtica n 69 Setembro/Outubro de 2002

    11Educao e Matemtica n 69 Setembro/Outubro de 2002

  • Pas

    AngolaAustrliaCambodjaCanadChinaEgiptoFranaHaitiIraqueJapoMadagascarMxicoMarrocosPaquistoRssiafrica do SulSri LancraUgandaReino UnidoEst. UnidosVietnamYemen

    tmv

    4476.549.576.57060.57853.5677952.57264.556.5696471.5517675.56550

    pes/TV

    20021771.78152.6234181.8926.621733.2112819131.32938

    Tabela 2.

    lhe fornecessem as idades dos 35 doentes seleccionados, com os quais construiu a seguinte representao em caule-e-folhas:

    Atravs da representao da Tabela 1, foi possvel concluir que afinal a doena estava a atacar as crianas e as pessoas da terceira idade.

    A utilizao incorrecta do coeficiente de correlao

    O coeficiente de correlao larga-mente utilizado, nomeadamente na comunicao social, para exprimir o maior ou menor grau de associao entre duas variveis. Nem sempre o uso do coeficiente de correlao feito de forma correcta, sobretudo se no forem tomadas certas precau-es. Veja-se o seguinte exemplo. Um professor decidiu registar as notas que os seus alunos tinham tido em dois testes, para averiguar se se teria verificado consistncia entre os resultados dos dois testes, no sentido que um aluno que tenha tido boa (m) nota no primeiro teste, tambm tenha tido boa (m) nota no segundo teste. Calculou o coeficiente de correlao e ficou desapontado com o valor obtido, 0.04! Resolveu fazer a representao

    grfica dos dados, sob a forma de um diagrama de disperso e obteve o Grfico 1.

    A representao mostra uma asso-ciao linear, quase perfeita, entre os dados, havendo um nico valor a fugir desse padro. Se for retirado o elemento discrepante que aparece no grfico, j o coeficiente de correlao assume o valor 0.9997.

    O exemplo anterior chama a ateno para alguns problemas que podem surgir quando a interpretao do coe-ficiente de correlao no acompa-nhada de uma representao prvia dos dados.

    Frequentemente tambm se esquece que o que o coeficiente de correlao mede o grau de associao linear entre duas variveis pelo que, perante um valor deste coeficiente perto de zero, haver tendncia para dizer que as variveis no se associam, quando na realidade pode existir uma forte associao no linear.

    Por outro lado, ao detectar associa-o entre duas variveis, nem sempre se toma o devido cuidado com a inter-pretao que se d a esta associao. Efectivamente, nem sempre a existn-cia de associao entre duas variveis significa uma relao de causa-efeito. Pode haver outras variveis, relacio-nadas com as variveis em estudo, o que acontece com frequncia, que provoquem essa associao, como se exemplifica a seguir.

    Para um conjunto de 22 pases regis-tou-se o nmero de pessoas por apa-relho de televiso (pes/TV), assim como o tempo mdio de vida (tmv), tendo-se obtido os valores que se apresentam na Tabela 2 (Rossman e Chance, 2001).

    A representao dos pontos de coor-denadas (Pes/TV, tmv) num diagrama de disperso permite-nos concluir da existncia de uma associao linear negativa, com alguma intensidade, isto , existe tendncia para que quanto menor for o nmero de pes-soas por aparelho de TV, maior ser o tempo mdio de vida. S por graa que se poderia dizer que um modo de aumentar o tempo mdio de vida, seria aumentar o nmero de apare-lhos de TV! evidente que a asso-ciao negativa encontrada se deve

    presena de uma terceira varivel, que podemos denominar por nvel de vida, que influencia as variveis observadas.

    Assim, uma regra bsica a ter em linha de conta, quando se trabalha com o coeficiente de correlao ou a recta de regresso, efectuar a representao prvia dos dados, num diagrama de disperso.

    O grfico com eixos inapropriados

    Se bem verdade que um grfico vale mais do que mil palavras, nem sempre esta mxima deve ser seguida, pois podemos estar perante grficos enga-nadores. uma situao que se veri-fica, nomeadamente, quando os eixos desses grficos no so escolhidos convenientemente, quer devido a uma m escolha das escalas num ou mais eixos, quer devido truncatura do eixo das frequncias, isto , fixando o incio da escala nesse eixo num valor superior a zero. Os dois exemplos que se seguem esclarecem estes dois problemas.

    Suponha que o nmero de acidentes, por ms, no IP5, foi, no perodo de Setembro de 1997 a Janeiro de 1998, o seguinte: 8, 9, 12, 13 e 12. Dois jor-nais hipotticos apresentaram repre-sentaes grficas para transmitirem a informao anterior (Grficos 2 e 3).

    Como comentrio, podemos dizer que um dos jornais tentaria dramatizar o problema.

    O segundo exemplo (Grfico 4.) refere-se ao resultado de uma sonda-gem relativa s recentes eleies para o novo lder da Juventude Socialista. Os resultados da sondagem (Jornal Expresso N 1547 de 22 de Junho de 2002) indicam 215 votos (51%) para Jamila Madeira e 208 votos (49%) para Filipe Costa. A notcia relativa a este evento, propositadamente intitu-lada Iluso de ptica, apresenta um grfico, semelhante ao que se v na pgina seguinte, que faz explodir uma diferena muito reduzida (7 votos, cerca de 2%), entre os desempenhos dos dois candidatos, numa vitria (ou derrota) verdadeiramente impressio-nante.

    O prprio jornalista justifica assim a habilidade do grfico em transmitir informao deturpada: O truque para

    10Educao e Matemtica n 69 Setembro/Outubro de 2002

    11Educao e Matemtica n 69 Setembro/Outubro de 2002

  • Filipe Costa Jamila Madeira204

    206

    208

    210

    212

    214

    216

    que o resultado de Jamila aparea com o dobro de tamanho da coluna de Filipe foi utilizar, no as percenta-gens (51% a 49%), mas o nmero de respostas (215 a 208), e ao desenhar o grfico, no comear a partir do 0, mas do 204, mostrando apenas o topo da votao. Independncias?!!

    Na verdade o truque est, unica-mente, na escolha da escala e no no facto de se utilizarem frequncias absolutas ou relativas.

    Alguns problemas com o cl-culo de probabilidadesAssim como se podem cometer erros bsicos em Estatstica, o mesmo acontece em Probabilidades. Os exemplos seguintes pretendem ilus-trar situaes probabilsticas em que comum isso acontecer, j que:

    A intuio muitas vezes engana-dora;

    Em muitas situaes uma anlise correcta depende da identificao de resultados igualmente possveis (provveis ), o que nem sempre fcil.

    Se perguntar numa turma de alunos qual das sequncias MFFMFM, MMMMFM, mais provvel de ocor-rer, no nascimento de 6 crianas, onde representamos por M o nas-cimento de rapaz e F de rapariga e admitimos igual probabilidade para o nascimento de rapaz e rapariga, ter dvida de que a esmagadora maioria responde MFFMFM? No entanto os dois acontecimentos tm a mesma probabilidade, 1/26.

    Se repetir a experincia que consiste em lanar ao ar 6 moedas e deixar cair as moedas sobre uma mesa, experimente perguntar numa turma de alunos o que mais provvel obter:

    a) 2 caras e 4 coroas (15/26)

    12

    10

    8

    Set

    Out

    Nov

    Dez

    Jan

    12

    10

    8

    Set

    Out

    Nov

    Dez

    Jan

    Grfico 2. Grfico 3.

    b) 3 caras e 3 coroas (20/26)

    c) 5 caras e 1 coroa (6/26)?

    Provavelmente a maior parte dos alunos escolheria a resposta correcta b), mas sem ser pela razo certa!

    Se numa turma com 30 alunos encon-trar 2 alunos a fazer anos no mesmo dia, poder pensar tratar-se de uma rara coincidncia. Efectivamente um resultado que vai contra a intuio que bastam 23 pessoas para que a probabilidade de haver pelo menos duas a fazer anos no mesmo dia seja superior a 50% (Graa Martins et al, 1999a)!

    Atente-se na seguinte notcia (Rasfeld, 2001): Nestes ltimos meses, milhares de crianas americanas tm estado a escrever cartas para os sol-dados americanos estacionados no Golfo Prsico, seus desconhecidos, para lhes mostrar que eles no foram esquecidos no seu pas. Em geral o endereo : Para um soldado. O sargento Rory Lomas, de 27 anos de idade, natural de Savannah, na Georgia, recebeu uma tal carta na Arbia Saudita. E por pura coinci-dncia : a carta para um soldado foi escrita pela sua prpria filha Cetericka de 10 anos de idade. Perante este relato, pensamos que uma situao destas s pode ser devida a interven-o divina! A probabilidade de isto acontecer deve ser extremamente pequena, diz-nos a nossa intuio. Mas mais uma vez a nossa intuio nos enganou. Efectivamente a situa-o descrita uma verso do conhe-cido problema dos encontros, que pode ser formulado como se explica j a seguir (Graa Martins, et al. 1999a). Uma secretria distrada tinha n cartas para enviar a outros tantos destinatrios. Meteu aleatoriamente as cartas dentro dos envelopes, sem tomar ateno aos nomes. Qual a pro-

    Grfico 4.

    babilidade de pelo menos uma pessoa receber a carta que lhe era dirigida? O valor para esta probabilidade aproxi-madamente 0.63, aproximao que j se obtm para n=4.

    Componentes da formao de uma pessoa estatisticamente literadaNo pacfico enumerar as com-ponentes da formao exigida pela literacia estatstica, j que a prpria definio deste conceito no est pro-priamente estabelecida.

    Podemos, no entanto, indicar alguns requisitos bsicos que se consideram necessrios para que o cidado possa cumprir o que dele se espera numa sociedade de nmeros e quantidades (Gal, I., 2002):

    Perceber a necessidade de traba-lhar com dados (compreendendo que dados no so unicamente nmeros, mas nmeros inseridos num determinado contexto), conhe-cendo a sua provenincia e a forma de os produzir;

    Estar familiarizado com os termos e ideias bsicas de Estatstica Des-critiva, nomeadamente mtodos (medidas, tabelas e grficos) para reduzir a informao contida nos dados;

    Compreender noes bsicas de Probabilidade;

    Entender o mecanismo do pro-cesso inferencial, ao tomar deci-ses estatsticas.

    O primeiro tpico considerado, o da origem e produo de dados, por vezes relegado para segundo plano, sendo no entanto crucial em qualquer procedimento estatstico. Para realar a importncia desta fase consideremos, por analogia, o que se passa quando se realiza um cozinhado

    12Educao e Matemtica n 69 Setembro/Outubro de 2002

    13Educao e Matemtica n 69 Setembro/Outubro de 2002

  • (Graa Martins e Cerveira, 1999b). Comea-se por seleccionar os ingre-dientes, que sero depois manipu-lados de acordo com determinada receita. O resultado pode ser desas-troso, embora de aspecto agradvel. Efectivamente se os ingredientes no estiverem em condies, resulta um prato de aspecto semelhante ao que se obteria com ingredientes bons, mas de sabor intragvel. Se os dados no forem bons, embora se aplique a tcnica correcta, o resultado pode ser desastroso, na medida em que se pode ser levado a retirar concluses erradas. Ficaram clebres e hoje em dia ainda se verificam, antecipaes de resultados eleitorais completa-mente contraditrios com os resulta-dos aps os actos eleitorais, devido essencialmente a uma amostra defi-ciente, a partir da qual se obtiveram esses resultados, eventualmente com tcnicas estatsticas adequadas.

    A familiaridade com os termos e ideias bsicas da Estatstica Descritiva j foi realada, quando falmos no perigo da sua utilizao incorrecta.

    A compreenso das noes bsicas de probabilidade importante, pois o termo Probabilidade utilizado todos os dias, mais ou menos de forma intui-tiva, j que nos mais variados aspec-tos da nossa vida, est presente a incerteza. Neste ponto deve ser real-ado o facto de nem todos os resul-tados enunciados sob a forma proba-bilstica, serem baseados em estudos estatsticos, havendo por vezes lugar a juzos probabilsticos subjectivos ou baseados em situaes anedticas.

    Hoje em dia somos confrontados sis-tematicamente com informao, vei-culada pela comunicao social, sobre resultados de sondagens, que so apresentados obrigatoriamente com a ficha tcnica, onde se inclui nomea-damente a margem de erro. Ora, para que sejamos consequentes com esta exigncia, necessrio dar s pes-soas as ferramentas necessrias para poderem compreender e assimilar a informao que lhes est a ser trans-mitida. A compreenso do processo inferencial significa tambm que as pessoas ficam alerta para a possibili-dade de se cometerem erros quando se procura generalizar para um con-junto vasto de indivduos, algumas

    propriedades verificadas s em alguns deles, mas que estes erros podem ser controlados e quantificados, atra-vs da probabilidade, residindo aqui a enorme potencialidade da Estatstica.

    ConclusoO desenvolvimento dos computado-res, a sua interveno crescente na sociedade e a produo intensiva de informao, de que eles so os prin-cipais agentes, um fenmeno que se tem vindo a intensificar desde as ltimas dcadas do sculo XX. Esta transformao rpida de certo modo a responsvel pelo nascimento da literacia quantitativa, correspondendo necessidade do homem moderno se adaptar s novas condies de vida, compreendendo e usando com efic-cia a informao que lhe chega diaria-mente. Alis, os clculos automticos e grficos automticos, que lanam a controvrsia entre os matemticos so fundamentais em Estatstica. O uso da tecnologia , hoje em dia, um aspecto fundamental da prtica da Estatstica e podemos dizer que a literacia estatstica arrasta a literacia computacional.

    As definies de literacia em geral e de literacia nos vrios domnios e nveis particulares no esto ainda estabelecidas mas, dados os objecti-vos para que elas apontam, comea j a perceber-se que poder ser neces-srio criar adequados mecanismos de educao para a literacia.

    No caso da literacia estatstica o que se pretende no criar especialistas em estatstica, mas sim criar nas pes-soas a capacidade de compreenderem os processos elementares da recolha e anlise de dados, entenderem o que est por detrs de um raciocnio estatstico, terem a conscincia do que um fenmeno aleatrio, sendo capazes de construir modelos simples da realidade.

    A literacia estatstica, ao nvel do cidado comum, deve permitir a cada um de ns resolver com ligeireza e segurana um rol de problemas que nos dizem directamente respeito ou que nos so apresentados frequente-mente pelos media e cuja resoluo apela a conhecimentos e raciocnio estatsticos. Interpretar tabelas e gr-ficos, entender disputas salariais, ndi-

    ces de preos, oscilaes bolsistas, taxas de desemprego, taxas relativas evoluo de doenas, mecanismos e resultados eleitorais e de sonda-gens, comparar a qualidade e custos de bens ou servios so apenas algu-mas solicitaes dirigidas ao cidado e a que ele pode dar resposta fazendo uso da literacia estatstica.

    Um cidado com estas competncias que lhe d a literacia estatstica um cidado bem informado, vive melhor e pode contribuir de forma esclarece-dora para uma sociedade mais justa.Referncias

    Chatfield, C. (1991). Avoiding Statistical Pitfalls. Statistical Science, 6, 3, 240-268.

    Gal, I. (2002). Adults Statistical Literacy: Meanings, Components, Responsabili-ties. International Statistical Review, 70, 1, 1-51.

    Graa Martins, M. E., Monteiro, C., Viana, J. P. e Turkman, M. A. (1999a). Pro-babilidades e Combinatria. Ministrio da Educao. Departamento do Ensino Superior. Lisboa.

    Graa Martins, M. E. e Cerveira, A. (1999b). Introduo s Probabilidades e Esta-tstica. Edio Universidade Aberta. Lisboa.

    Moore, D. (1997). New Pedagogy and New Content. The Case of Statistics. International Statistical Review, 65, 2, 123-165.

    Rasfeld, P. (2001). The Role of Statistics in School Mathematics Teaching Today. International Journal for Mathematics Teaching and Learning.

    Rossman A. e Chance, B. (2001). Workshop Statistics: Discovery with data. Key Col-lege Publishing. Emeryville, CA.

    Steen, L. A., ed (1997). Why Numbers Count: Quantitative Literacy for Tomorrow America. The College Board. New York.

    Steen, L. A., ed (2001). Mathematics and Democracy: The case for Quantitative Literacy. National Council on Education and the Disciplines. Princeton.

    Vere-Jones, D. (1995). The Coming of Age of Statistical Education. International Statis-tical Review, 63, 1, 3-23.

    Joo BrancoCentro de Matemtica e Aplicaes

    Departamento de MatemticaInstituto Superior Tcnico

    Maria Eugnia Graa MartinsCentro de Estatstica e Aplicaes

    Departamento de Estatstica Operacional da Faculdade de Cincias

    da Universidade de Lisboa

    12Educao e Matemtica n 69 Setembro/Outubro de 2002

    13Educao e Matemtica n 69 Setembro/Outubro de 2002