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CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO CAMPUS ENGENHEIRO COELHO CURSO DE LETRAS EVELISE BERG PASSOS GABRIELA PREARO LITERATURA COMPARADA A QUESTÃO DA (IN) FIDELIDADE NA ADAPTAÇÃO DO LIVRO PARA O FILME ENGENHEIRO COELHO 2013

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CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO

CAMPUS ENGENHEIRO COELHO

CURSO DE LETRAS

EVELISE BERG PASSOS

GABRIELA PREARO

LITERATURA COMPARADA A QUESTÃO DA (IN) FIDELIDADE NA

ADAPTAÇÃO DO LIVRO PARA O FILME

ENGENHEIRO COELHO

2013

EVELISE BERG PASSOS

GABRIELA PREARO

LITERATURA COMPARADA A QUESTÃO DA (IN) FIDELIDADE NA

ADAPTAÇÃO DO LIVRO PARA O FILME

Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo, campus Engenheiro Coelho, do curso de Letras, sob orientação do Prof. M. Sc. Davi da Silva Oliveira.

ENGENHEIRO COELHO

2013

Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo,

do curso de Letras apresentado e aprovado em 24 de Novembro de 2013.

___________________________________

Orientador Prof. M. Sc. Davi da Silva Oliveira

______________________________________

Segundo Leitor Prof. M. Sc Sônia M. M. Gazeta

“Não, não é fácil escrever. É duro como

quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas

como aços espelhados.”

Clarice Lispector

RESUMO

Este trabalho realizou um estudo entre as linguagens midiáticas: faz uma análise

comparativa entre o romance A hora da estrela, de Clarice Lispector (1977) e sua

adaptação para o cinema, o filme homônimo da diretora Suzana Amaral (1985).

Pretendeu-se, também, compreender as diferentes linguagens, literária e

cinematográfica a partir do processo de transposição da linguagem narrativa escrita

para a visual, e a verificação da ocorrência de (in) fidelidade na relação livro para

filme. Pontuaram-se aspectos do vínculo entre literatura com outras artes, bem como

o cinema. Assim, primeiramente, foram apresentados conceitos teóricos de autores

como Stam, Silva e Johnson, mostrando os principais elementos da relação

literatura e cinema. Após, foi exposto o perfil da escritora Clarice Lispector,

apontando os principais momentos de sua vida e apresentando a genética textual

usada pela romancista no livro A hora da estrela. Por fim, foi feita uma análise

comparativa, procurando evidenciar o modo como a linguagem literária e seus

recursos narrativos foram transpostos para o cinema, ou seja, como os aspectos

técnicos da linguagem cinematográfica, personagens, movimentos da câmera,

focalização, diálogos, trilha sonora foram significativos para a adaptação fílmica,

estabelecendo diferenças e semelhanças. A análise revelou que a adaptação

cinematográfica transportou o teor da obra literária de Lispector, quando constituiu

as personagens de forma convincente, dando-lhes vida, identificando-se com a

narrativa do livro. Com esse trabalho concluiu-se que o filme manteve-se fiel ao livro,

ampliando as possibilidades de leituras significativas.

Palavras-chave: Literatura; Cinema, Adaptação; (In) Fidelidade.

ABSTRACT

This work conducted a study among media languages: a comparative analysis

between the novel The Hour of the Star, by Clarice Lispector (1977) and its film

adaptation , with the same name as novel, by director Suzana Amaral (1985) . It was

intended also to understand the different languages, both literary and cinematografic,

from the process of transposing the written narrative language into visual, and

verification of (in) fidelity occurrances in relation; book to film. Aspects of the

relationship between literature and other arts were pointed out, as well as cinema.

Therefore, firstly theoretical concepts were presented by authors such as Stam, Silva

and Johnson, showing the main elements of the relationship literature and film. Later,

the writer Clarice Lispector’s profile was presented, pointing out highlights of her life

and presenting textual genetics used by the novelist in the book The Hour of the Star.

Finally , a comparative analysis was made in order to demonstrate how the literary

language and its narrative resources were translated to film, in other words, as the

technical aspects of cinematographic language, characters, camera movement,

focus, dialogue, soundtrack were significant for the film adaptation, establishing

differences and similarities. The analysis revealed that the film adaptation carried the

literary content of Lispector, formed when the characters convincingly, giving them

life, identifying with the narrative of the book. With this work it was concluded that the

film remained true to the book, expanding the possibilities for meaningful readings.

Keywords : Literature , Cinema , Adaptation , ( In) Fidelity .

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 06

2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DE LITERATURA E CINEMA ............................... 08

2.2 Processo de adaptação ....................................................................................... 11

3 CLARICE LISPECTOR .......................................................................................... 13

3.1 Primeira obra de Clarisse Lispector .................................................................... 15

3.2 Genética do Texto de “A Hora da Estrela”........................................................... 16

4 ROMANCE E FILME: PERSPECTIVAS PARA UMA LEITURA COMPARATIVA .. 22

4.1 Narrador .............................................................................................................. 23

4.2 Do livro para o filme: uma reescrita ..................................................................... 25

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 29

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 30

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1 INTRODUÇÃO

A Literatura e o cinema são atividades artísticas que tendem a atrair a

atenção do leitor e espectador, respectivamente. Estas representações têm um

poder de influenciar grandemente a sociedade cultural. Ambas as artes levam a

sociedade a construir um mundo imaginário, pois nelas são apresentadas os

episódios da vida com fantasia e imaginação.

Assim, este trabalho propõe-se a analisar a transposição da linguagem

literária para a linguagem fílmica a partir do livro A hora da estrela, de Clarice

Lispector e o filme dirigido por Suzana Amaral, detalhando mais precisamente se

houve (in) fidelidade durante o processo de adaptação entre as linguagens

midiáticas.

Entre os autores que embasarão as discussões acham-se Stam (2008), Silva

(2009), Johnson (1982), Nádia Battella Gotlib (1995), Berta Waldman (1993) e

Márcia Lígia Guidin (1998), visto tratarem sobre a questão da (in) fidelidade em

transposições do livro para a tela e analisarem o perfil de escrito, bem como o seu

romance.

Diante disso a problemática levantada para a pesquisa relaciona-se à análise

comparativa entre livro e filme durante o processo de transposição, apresentando os

pontos de semelhanças e diferenças e revelando se houve nesta adaptação (in)

fidelidade a partir do ponto de vista do cineasta.

Os objetivos alinham-se à nossa proposta e, de modo geral, o primeiro

propósito do trabalho é comparar as duas linguagens, tanto escrita, quanto visual,

tendo a obra A hora da estrela e sua adaptação cinematográfica como principal foco

de estudo. Quanto aos objetivos específicos, o trabalho procura apontar as

diferenças e semelhanças das duas artes, escrita e visual e verificar se a

transposição priorizada no filme foi (in) fiel ao texto escrito.

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O interesse pela temática surgiu a partir de nossa curiosidade sobre o

processo de transposição da obra escrita, livro, para a obra visual, filme e também

entender as influências de uma arte para a outra que podem ser classificadas fiéis

ou infiéis na adaptação feita.

Além disso, consideramos que esse tipo de trabalho pode ser um caminho

para outras pesquisas, tanto de professores, como de conhecedores das literaturas,

assim como reconhecer a influência do processo comparativo para a sociedade

leitora e espectadora.

O trabalho insere-se na linha de pesquisa “Linguagem, códigos e

tecnologias”, mas, de modo específico, ajusta-se na subárea referente a teorias e

críticas da narrativa literária à literatura comparada.

Em relação à metodologia que adotaremos, será do tipo de pesquisa analítica

comparatista, desenvolvendo a partir das comparações referentes ao tema tratado.

Para atingirmos os nossos objetivos, começaremos o estudo fazendo uma

breve contextualização histórica, mostrando como são os processos de adaptação

através do livro para o filme. Buscaremos enfocar a questão das conduções de

produção, ou seja, a genética textual da obra A hora da estrela, traçando o perfil da

escritora e seu comportamento diante da época em que foi escrito o texto. Por fim

faremos o processo comparativo entre as duas linguagens artísticas, concluindo se

esta foi (in)fiel aquela.

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2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DE LITERATURA E CINEMA

A Literatura e o cinema são atividades artísticas que tendem a atrair a

atenção do leitor e espectador, por meio do andamento de uma narrativa. Estas

representações têm um poder de influenciar grandemente a sociedade cultural.

Ambas as artes levam o espectador a construir um mundo imaginário, pois nelas são

apresentados os episódios da vida com fantasia e imaginação.

De acordo com Lucas (2007, p. 4), “Cinema e Literatura compartilham a tarefa

de levar a fantasia, o sonho e o encanto da narrativa ao espectador. São dois

idiomas diferentes, com suas leis e limitações”.

Observe que o cinema e os romances estão ligados no dever de “afastar” as

pessoas do mundo real, levando-as a acreditar no encanto das palavras, da trilha

sonora, do mundo irreal presente nas narrativas – do livro e do filme. Entretanto,

possuem limitações de pouca duração.

Uma dessas limitações é a dificuldade do cineasta em adaptar uma obra

literária de várias páginas em apenas algumas horas de filme. Ele também precisa

manter a história de forma resumida e encaixar itens da narrativa e poesia

juntamente com outros como imagem em movimento e ao som. Uma obra escrita

não possui trilha sonora, nem imagens em uma tela, o único recurso de elaboração

que o escritor tem ao estruturar e escrever um romance é unicamente a própria

palavra.

No decorrer da leitura de um livro, a mente acaba projetando imagens e

cenários criando assim uma imagem maior, enquanto que o cinema traz tudo pronto,

fazendo com que a mente não precise imaginar. Por exemplo, no cinema enquanto

há um fundo musical para uma determinada cena ou personagem, no livro essas

ações precisam ser descritas detalhadamente, como as emoções, a brisa do mar e o

beijo, para que o leitor as sinta e as viva dentro de sua imaginação.

Com a adaptação de uma obra para o cinema existem as sensações

frustrantes do leitor. Por exemplo, o ator que representa um determinado

personagem e não foi do seu agrado, ou até, apenas porque a própria trilha sonora

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não foi colocada aquela música que imaginou quando estava lendo, ou o cenário

ficou mais simples ou mais complexo do aquele visto na imaginação.

De acordo com Stam (2008, p. 20)

a passagem de um meio unicamente verbal como o romance para um meio multifacetado como o filme, que pode jogar não somente como palavras (escritas e faladas), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo de indesejável.

Por esta razão, o cineasta não fará a transposição exatamente como o texto

traz. Pois em um livro há abordagens caracterizadoras mostradas na história pelo

escritor, sendo assim, o leitor terá a habilidade de criar uma cena da maneira que

desejar. Além disso, a produção cinematográfica não deixa que o próprio espectador

estimule sua imaginação tanto quanto a obra escrita.

A questão de adaptações fílmicas de obras literárias vem sendo discutida.

Tendo em vista que há dificuldades de transposição do romance com 153 páginas,

por exemplo, para uma hora e cinqüenta minutos de filme, através de diversos

sistemas de significação. Bluestone citado por Johnson (1982, p.7), afirma que “as

mudanças são inevitáveis no momento em que se abandona um meio linguístico e

se passa para o visual”.

Alencar (1971, p. 361) cita pelo menos duas questões atualmente evocadas

quando se tratam de adaptações. Primeiro: a reflexão relativamente pequena do

livro em relação a outros veículos de ficção; segundo: a adequação mais ou menos

impropria do trabalho alheio e a ameaça que a passagem de um meio a outro pode

representar para as noções tradicionais de autoria.

Houve mudanças no aspecto dos estudos sobre adaptação, que a partir daí

focaliza os elementos fílmicos, usando o método da comparação para enriquecer a

avaliação do filme. Além disso, a obra de McFarlane (1996) citada por Diniz (2005,

p.15) aborda a adaptação como tradução. Ele também usa como estratégia a

definição dos elementos transferíveis do romance para o cinema e dos que exigem

maior criatividade.

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Quando tratamos de tradução, a obra adaptada passa a ter aspectos que não

correspondem com a originalidade do romance. O que nos leva a diferenciar essas

características são os elementos usados na transposição de um para outro.

Essas transposições, de uma obra literária para o cinema caracterizam-

se pela necessidade de verificar os parâmetros dos espectadores com seus hábitos

da sociedade. O processo de adaptação é necessário para que, no final, ela não

seja invariável. A abordagem analítica usa os conceitos de contextualização histórica

e a questão das hierarquias culturais tradicionais para obter sucesso.

Segundo a jornalista Ávila (2013, p. 1):

Existe o desafio de tentar corresponder com pessoas e lugares reais, aos personagens e universos fantásticos criados por um escritor, superando assim a beleza da imaginação de cada leitor. Por mais bem sucedida que seja essa conversão entre as duas mídias, os livros quase sempre têm mais a oferecer. Seja em detalhes, seja na liberdade de imaginar a história como você quiser.

Alguns filmes de sucessos cinematográficos são derivados de grandes

romances que serviram de inspiração para transformar as palavras em imagens.

Como exemplo citemos o primeiro filme de origem literária provável, seria o filme “La

Sortie de l’usine” dos irmãos Lumière, de 1898.

Apesar da grande dificuldade de transpor um livro que contém várias páginas

de história para apenas uma película de duas ou mais horas de duração de um

filme, há muitos filmes que conquistaram as telas. Pelo fato do livro também ter

obtido sucesso o filme na esteira da obra escrita, muitos destas projeções foram

indicadas para o principal prêmio da Academia de Artes e Ciências

Cinematográficas (Academy Awards), conhecido popularmente como Oscar.

São numerosos os exemplos de livros que foram transpostos para as telas,

Por exemplo: Les Miserables, de Victor Hugo; O Invasor, de Marçal Aquino; Orgulho

e Preconceito, de Jane Austin; O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien; Cidade de

Deus, de Paulo Lins; Os Faroleiros, de Monteiro Lobato; Diário de uma paixão, de

Nicholas Sparks; Meu nome não é Johnny, de Guilherme Fiuza; Crônicas de Nárnia,

de C. S. Lewis; e muitos outros exemplos.

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2.1 Processo de Adaptação

O processo de adaptação não se enfraquece na transposição do texto literário

para outro veículo, podendo gerar quase uma série infinita de referências a outros

textos, compondo um fenômeno cultural que envolve processos dinâmicos de

transferência, tradução e interpretação de significados e valores histórico-culturais.

Quanto à análise do processo de adaptação Silva (2009, p. 61) afirma que:

Entendi ser ilusória a ideia de que um livro possa ser um pré-roteiro de cinema. A transposição de 336 páginas para duas horas não se dá como uma lipoaspiração da narrativa. É preciso assimilar o espirito do livro, apagar todas as palavras e iniciar uma nova narrativa, o roteiro, para que seja leal à obra original. Do contrario, será sempre um arremedo. O filme resultou menos denso do que o livro, por opção de uma narrativa veloz, sem que seja mais superficial. É uma diferença a serviço da semelhança.

A citação acima revela que a obra escrita passa por um processo

lipoaspiração, ou seja, uma redução do texto, mas não significa que haverá perda do

sentido original do livro passando para o filme.

Bazin (1991, p. 93) comenta: “(...) é absurdo indignar-se com as degradações

sofridas pelas obras-primas literárias na tela, pelo menos em nome da literatura.

Pois, por mais aproximativas que sejam as adaptações, elas não podem causar

danos ao original junto à minoria que o conhece e aprecia”.

Por seguinte, o texto original serve simplesmente como apoio da história do

filme ou como correspondente da história, na qual podemos dizer que o papel do

cineasta será a transposição.

A adaptação implica escolher uma obra relativamente adaptável, que poderá

ser modificada sem perder suas características. Os cineastas têm certas dificuldades

de criação nas suas versões, pois é necessário que o roteirista saiba colocar o

conteúdo da obra, isto é, combinando os ambientes, as personagens, as intenções,

da obra original para o desenvolvimento na adaptação.

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Nas adaptações cinematográficas sucedem métodos de transformação e

transmutação de consecutivas referências utilizadas de uma multiplicidade de textos,

sem a existência de uma origem visível.

Entretanto, existe um público que não possui conhecimento sobre adaptações

de romance para as produções cinematográficas. Todavia, o criador da obra discute

se os espectadores conhecem a obra original para estar realizando um julgamento

de comparação entre as obras. Será que pessoas que não tem o conhecimento do

romance podem fazer uma analise crítica?

Ao mesmo tempo em que uma pessoa crítica um filme, ela também se sentirá

estimulada a verificar se os julgamentos feitos por ela anteriormente serão corretos

de acordo com a imagem criada no filme e a leitura feita no livro.

No geral nós conhecemos filmes que saíram de livros, no entanto percorrendo

o caminho inverso, há filmes que foram para as páginas dos livros, o processo de

adaptação caminhando do literário para o fílmico. O cinema acabou passando a

exercer também certa influencia sobre criação literária. Scliar (2007, p.26), fala que

“aquelas longas descrições de paisagens dos antigos romances tornaram-se

anacrônicas: a câmera faz isto muito melhor”. Existem autores que cogitam o texto já

de olho na literatura e outro no cinema, interessados em ver sua obra sendo filmada,

mas mesmo antes dos filmes, os romancistas que criavam enredos já desenvolviam

a escrita de uma forma que saísse logo dos livros passando para o palco teatral.

A literatura está oferecendo novos caminhos para o cinema a partir daquilo

que foi escrito anteriormente por determinado literato, dentro do estudo das

adaptações existe a comparação entre os dois timos de artes. O escritor Henry Miller

fala que jamais uma boa arte poderá substituir a outra, mas em uma entrevista

realizada pelo Paris Review para descontrair Miller (1989, p.2) fala que “O cinema é

o mais livre de todos os meios de comunicação, pode-se realizar maravilhas com

ele. De fato, eu iria saudar o dia em que os filmes substituíssem a literatura, quando

não houvesse mais necessidade de ler”.

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3 CLARICE LISPECTOR

Depois da revolução de Maio de 1917, a Ucrânia se dividia entre poderes

conflitantes. A Rússia estava sob impacto da Primeira Grande Guerra, que levou a

Ucrânia a ser domínio da Alemanha. Além disso, as consequências da Revolução de

Outubro de 1917, que com a vitória dos bolcheviques, inaugurava o primeiro

governo comunista. Enquanto tentavam vencer as dificuldades da fome, os

“vermelhos” obrigavam os camponeses a entregar os grãos colhidos.

Foi neste contexto que a família de Pedro Lispector deixou sua terra natal

para fugir das dificuldades causadas pelo antissemitismo. A família Lispector de

origem judia, contava com duas opções de rotas para a nova vida que iriam trilhar:

os Estados Unidos e o Brasil, devido à quantidade de parentes que moravam em

ambos os países. O pai, Pedro, encontrou mais facilidades em vir para o Brasil,

então, partiu com a mulher, Marieta e as duas filhas do casal, Elisa, a mais velha e

Tania, a mais nova.

Clarice nasceu em viagem, quando a família já emigrava para a América. Em

Tchetchélnik, na região de Vínnitsia, uma pequena aldeia na Ucrânia. Batizada com

o nome de Haia, Clarice Lispector chegou ao Brasil como imigrante, com apenas um

ano de idade.

Declara Lispector (2009, p. 42): “nasci na Ucrânia, terra de meus pais. Nasci

numa pequena aldeia chamada Tchetchélnik, que não figura no mapa de tão

pequena e insignificante”.

Desembarcando no Brasil, a região escolhida pela família Lispector foi a

nordeste e a cidade Maceió, capital de Alagoas, onde tinham muitos parentes. A

nova vida começa, o impacto com a nova cultura foi grande e os desafios de

estruturação, tanto de emprego, quanto de habitação aumentam. Pedro Lispector

começa sua vida profissional, trabalhando como mascate, ou seja, vendas de porta

em porta na cidade de Maceió. Não havendo rendimento como mascate, Pedro tenta

mais uma vez, um novo negócio, produzir sabão em pequena fábrica montada nos

fundo do escritório do cunhado José Rabin, mas o negócio falha mais uma vez.

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Enquanto o pai parte para Recife, à procura de uma nova chance de trabalho,

a família fica a espera de uma resposta em Maceió, encerrando a primeira fase no

Brasil, com muita luta e decepção. Recife possuía facilidades para os imigrantes,

devido aos tempos de Colônia, indústria do açúcar e comércio. Instalaram- se no

centro da cidade em um casarão que na época já detinha cem anos de existência. O

pai vendia tecidos para roupas, as três filhas estudavam, enquanto que a mãe,

Marieta, ficava em casa, devido a uma doença que a paralisou dos pés a cabeça.

De acordo com Lispector (2009, p. 59)

Nós éramos bastante pobres e ainda havia doença em casa. E eu era tão alegre que escondia a dor de ver aquilo tudo. Mas me sentia despreocupada, apesar de toda a dor que eu via. Eu... eu... eu era tão... tão viva.

Aqui Clarice Lispector revela que a doença da mãe e a pobreza em que a

família vivia eram fatos marcantes para a família de imigrantes, que chegou a passar

dificuldades, inclusive por fome. Houve ocasiões em que o almoço da família

Lispector era composto de laranjada e um pedaço de pão.

Apesar das dificuldades financeiras, havia em Clarice também a dificuldade

na comunicação com outras pessoas. Ela sentia a necessidade de companhia e

ficava por horas no andar de baixo do antigo casarão, na porta da escada, vendo as

crianças passarem e perguntando se queriam brincar com ela.

Na mudança para o Rio de Janeiro, Clarice contava quatorze anos de idade.

Sua mãe Marieta havia falecido e agora a família era composta por quatro pessoas.

Instalaram-se no bairro da Tijuca e ali, as três filhas ficam até a morte do pai.

Enquanto isso a vida de imigrantes russos judeus incluía estudo e trabalho. O

primeiro emprego de Clarice foi dar aulas particulares de português e matemática.

Segundo a escritora (2009, p. 146)

[...] quando... tinha treze para catorze anos, eu era... era professora de português e matemática. Ainda estava no ginásio, mas eu era professora particular de português e matemática [...] Mas a matemática me fascinava. Me lembro que eu era tão menina! Botei um anúncio no jornal como explicadora. Aí, uma... uma senhora me telefonou. Me disse que tinha dois filhos, um filho e uma filha. Hernâni Fornalha, o pai, um que foi escritor, não me lembro o que.

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Aí, eu... ela me deu endereço, eu fui lá:”Ah meu bem! Não serve! Você é muito criança!” Eu disse: “Olha, vamos fazer o seguinte: se os seus filhos não melhorarem de nota, então a senhora, a senhora não me paga nada”. Ela achou curiosa a coisa e me pegou. Aí, melhoraram. Sensivelmente. (SIC)

Clarice Lispector, desde criança, no Recife, já possuía seus alunos

imaginários, sempre gostou de dar aulas, ensinar e dessa relação entre professor

aluno.

Mais tarde entra para a faculdade de Direito, a qual não estava interessada na

época. No entanto optou pelo curso, pois na infância diziam que ela era muito

reivindicadora de direitos e que, então, deveria estudar advocacia. Formou-se em

1943, juntamente com seu esposo Maury Gurgel Valente.

Além disso, foi neste mesmo ano em que se casou com seu colega de

faculdade Maury, o qual havia interrompido o curso de direito para se concentrar no

vestibular de Itamaraty e seguir a carreira diplomática. E a partir daí a vida de Clarice

se concentraria fora do Brasil, principalmente na Europa e nos Estados Unidos.

3.1 Primeira obra de Clarice Lispector

Perto do Coração Selvagem é o romance de estreia de Clarice Lispector.

Publicado originalmente em dezembro de 1943, o livro é marcado pelo estilo

introspectivo da escritora. Recebeu muitas críticas positivas na época, tendo sido

premiado como melhor romance de estreia pela Fundação Graça Aranha, em

outubro de 1944.

Escrito quando Clarice Lispector tinha vinte anos de idade, o livro tem como

protagonista Joana, que narra sua história em dois planos: sua infância e o início de

sua vida adulta. A literatura brasileira era, naquela altura, dominada por uma

tendência essencialmente regionalista, com personagens contando as dificuldades

da realidade social do país na época.

Lispector surpreendeu a crítica com seu romance, seja pela problemática de

caráter existencial, completamente inovadora, seja pelo estilo solto, elíptico e

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fragmentário. Este estilo de escrita se tornou marca característica da autora, como

pode ser observado em seus trabalhos subsequentes.

Foi neste contexto que a romancista escreveu uma das suas últimas obras

publicadas A hora da estrela , que estudaremos a seguir.

3.2 Genética do texto de “A Hora da Estrela”

Considerada a última obra escrita e publicada por Clarice Lispector, A hora da

estrela foi escrita em um dos momentos mais difíceis na vida da escritora, pois,

havia descoberto a presença de um tumor no útero e a sua interminável reflexão

sobre a condição do ser humano.

Publicado pouco antes de sua morte, no ano de 1977, o romance foi escrito

sob um olhar psicológico, com uma análise mais aprofundada nos personagens que

faz com que os leitores possam refletir sobre as condições de vida dos personagens.

Essas características revelam a cadência frequentemente usada pelos autores da

terceira fase modernista no Brasil, como, por exemplo, a existência de uma narrativa

interior, fluxo de consciência e o intimismo, uma linguagem mais elaborada, o uso da

pontuação, ou mesmo sua ausência, as metáforas e a metalinguagem.

A obra apresenta Rodrigo S.M, como o narrador do romance que conta a

história da personagem principal que está em busca de uma definição de si mesma.

Ao mesmo tempo, o narrador do romance também sente essa necessidade de

identificação do eu ao interagir com a personagem principal.

A obra é digressiva, ou seja, não segue uma narrativa linear. É

metalinguística pela contínua reflexão sobre sua própria estrutura. Apresenta 13

títulos que se referem aos estados de espírito do narrador e desmistificam o poder

centralizador de um só.

Enquanto Rodrigo S.M, o narrador, exalta-se com a sua masculinidade e seu

racionalismo, Clarice Lispector, a escritora, aparece nas páginas como contraponto

da masculinidade, apresentando o feminismo, ou seja, o sentimentalismo necessário

para a personagem principal, Macabea.

Macabea, intitulada como objeto na obra, é uma moça de origem nordestina,

miserável, órfã de pai e mãe por “febres ruins”, e que fora criada e judiada pela tia

beata, tinha por diversão brincar com pulgas.

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Com a morte da tia, sua única fonte de parentesco no mundo, sai de Alagoas

para a cidade grande, o Rio de Janeiro.

Rodeada por outros moradores, Macabea, passa a morar no subúrbio da

capital carioca, numa pensão, onde divide um quarto com mais quatro moças que

trabalham nas Lojas Americanas, as quatro Marias: Maria da Penha, Maria

Aparecida, Maria José e Maria. Enquanto que no escritório em que trabalha como

datilografa, e tem como chefe o seu Raimundo e sua colega de trabalho, a formosa

Glória. A protagonista tem como costume olhar vitrines de lojas de ferramentas,

como pregos e parafusos; também pensa em coxa de frango o todo tempo, mas ao

invés de satisfazer sua vontade pela carne animal, come papel. Além disso, todas as

noites, Macabea liga seu radinho de pilhas e sintoniza na Rádio Relógio, “hora certa

e cultura” que mostra informações minuto a minuto. Dia de domingo gosta de ir ao

cais, acompanhar os navios e quem sabe um marinheiro a olharia.

É nesse submundo que Macabea, uma personagem que parece estar “fora de

lugar” em uma sociedade de grande ascensão social e disputas de burguesias,

ignora os obstáculos e sobrevive de um jeito meio inconsciente, mas ao mesmo

tempo um modo natural de sua personalidade neutra, declarando o Brasil, um país

em que o pobre não tem vez.

Clarice Lispector transfere uma personagem criada num nordeste faminto e

cheio de miséria, para um cenário agressivo e devorador de uma grande capital,

como o Rio de Janeiro, assim como tantos outros milhões de brasileiros que tentam

melhorar a vida, migrando de seu lugar de origem para uma vida incerta.

No meio desta miséria tanto material, quanto existencial, Macabea relaciona-

se com Olímpico de Jesus, também nordestino, porém é ladrão e assassino, e tem a

ambição de ser rico e virar deputado, orgulha-se por ter um dente de ouro e gosta de

falar difícil. Quando saem para passear, chove e chove. Para eles, não há dias

bonitos.

O chefe do escritório pede algo impossível, para a moça que gosta de comer

cachorro quente e Coca-Cola, um trabalho limpo e competente, o que Macabea não

tem condições de realizar, e com sua cara de “sonsa”, ingênua, a moça sempre

convence seu chefe de desistir da ideia de demissão. O médico com o qual a

protagonista se consulta, devido às constantes dores no estômago, diz a ela que

não pode curar fome.

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Paralelamente a tanta miséria e violência social, a história encaminha-se para

uma desilusão realista, Macabea influenciada pela sua colega de trabalho, Glória,

procura uma cartomante, que penalizada com sua má sorte, lança uma última

cartada: a ilusão de um casamento com um jovem estrangeiro, rico e bonito, o que

seria para a protagonista finalmente um destino, uma existência, alguém que a

enxergaria. Entretanto tudo se passava de uma simulação da cartomante.

Segundo Waldman (1993 p. 94)

As formas objetivadas de sua existência como ser-no-mundo, os liames que ela estabelece com os sistemas de cultura, com as organizações sociais, com a História, são os tênues que se pode dizer que ela vive num limbo impessoal. O mundo é fora dela e ela é fora dela também porque não se pensa, o que a situa num espaço diferenciado na galeria de personagens de Clarice Lispector.

Macabea nada mais é do que um ser que se aproxima do animalismo, sem

identidade e sem o desejo por identificação. Em sua simplicidade a moça é

apresentada como o ser sem fissuras, contínuo, sob um olhar de impotência.

Macabea resume-se à matéria rala. A autora a compara com um cachorro, pois “um

cachorro não sabe que é cachorro, assim como essa moça não sabia quem ela era.”

(Lispector, p.62)

Quando Macabea manifesta um impulso de esperança, de desejo, no sentido

de se tornar um sujeito, estimulada pela falsa promessa da cartomante

aproveitadora, transfigura-se em vaporosa, cheia de energia, coisa que não havia

sido, a vida inteira. Veste-se um belo vestido azul, para se agarrar a essa nova vida,

a esse destino, sai da casa da cartomante e cheia de esperança, é atropelada por

um moço lindo, rico e estrangeiro, que guia um Mercedes amarelo, confessando

uma realidade social implacável, o rico mata o pobre.

Esse romance, escrito por Lispector nos últimos anos de sua vida, metaforiza

a glória e a miséria de cada um, revelando o momento de estrela das pessoas, a sua

morte. Macabea se encontra jogada na rua de uma cidade grande, com todos os

olhares voltados para ela, coisa que nunca havia conseguido viva: “nesta hora exata

sente um fundo enjoo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é

corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas” (A hora da estrela, p. 102).

19

Enquanto a narrativa aborda a violência social e o amor impossível, outra

história acontece: é a história de dois romances, Rodrigo, narrador criado pela

autora, para narrar a história de Macabea e Clarice, autora que cria Rodrigo para

justamente ele contar essa história, “... pois mulher iria lacrimejar piegas...” (A hora

da estrela, p. 21)

De acordo com Lispector (1998, p.15), ela “dedicava-se à saudade da antiga

pobreza, quando tudo era mais sóbrio e digno e nunca havia comido lagosta”.

Clarice rompe com as regras do jogo, tira a máscara de romancista e coloca-se

dentro do texto quando se declara idêntica ao narrador.

As histórias se misturam e Clarice Lispector, a autora implícita do romance,

evoca seu próprio passado. Na declaração acima, a autora coloca-se no livro que

escreve, escolhendo o seu narrador, Rodrigo M.S., que por sua vez cria o romance

contando a sua própria história e a história de Macabea.

Assim, Rodrigo é a personagem criada pela autora, ou seja, o narrador do

romance que conta a história de Macabea e a quem se transpõe a responsabilidade

de um afastamento crítico.

E a personagem criada, Macabea, é pura criatura, obra de outros, que não

tem linguagem, não tem saúde, não tem dinheiro, não tem poder, não tem graça. Ela

é nada. A moça que só sabe fazer perguntas e falar bobagens, cala-se, que parece

nada ter e ser, é na verdade o ser tudo, ela é o milagre da sobrevivência: “Não se

trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira”.

(A hora da estrela, p.16).

As três vozes da narrativa: Clarice-Rodrigo-Macabea espelham-se entre si,

são identidades que não podem ser mudadas. O feminino de Clarice, apresenta-se

como masculino de Rodrigo e por fim colocam-se no neutro de Macabea.

Sob outro ângulo, Clarice Lispector enfatiza em seu livro A hora da estrela o

ato de escrever, o poder da linguagem, a matéria-prima final da realidade,

configurando-se no exercício da metalinguagem.

Rodrigo S. M., o narrador do romance de Lispector, assume na narrativa o

seu embate com a linguagem, enfatizando ao longo do seu texto dois aspectos

importantes para a construção de uma narrativa: o primeiro refere-se ao aspecto

linguístico e à estrutura narrativa e o segundo, ao papel do leitor, como se verifica na

afirmação abaixo:

De acordo Lispector (1998, p.20)

20

[...] a história é história. Mas sabendo antes para nunca esquecer que a palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela.

Estabelece-se aqui um conflito diante do seu instrumento de trabalho que é a

“palavra”, instrumento fundamental que, na concepção do narrador, Rodrigo-Clarice,

não representa a “coisa”, mas o produto dela. A partir deste modo de lidar com a

prática textual, escrever deixa de ser a procura por uma relação de imediação entre

a palavra e o mundo exterior.

Desse modo, é por meio de reflexões questionadoras da construção da obra,

do papel da autoridade narrativa e da validade da literatura, que Lispector limita sua

narrativa, construindo um romance hermético, porque, dentre outros aspectos,

propõe a revisão da linearidade dos fatos.

Assim é que o processo de construção da narrativa em A hora da estrela se

dá de modo circular e o narrador revela o seu desinteresse pelas descrições tão

recorrentes em romances do tipo tradicional: “O definível está me cansando um

pouco. Prefiro a verdade que há no prenúncio. Quando eu me livrar desta história,

voltarei ao domínio mais irresponsável de apenas ter leves prenúncios”

(LISPECTOR, 1998, p. 29).

Rodrigo persiste no trabalho da escrita que ele descreve como difícil, escrever

é para ele “duro como quebrar rochas”. Há, então, na construção do texto de

Rodrigo S. M., um trabalho com a linguagem que percorre toda a narrativa, uma luta

feroz e constante que reflete a condição daquele que cria e escreve; é um trabalho

manual, como o narrador mesmo declara, um trabalho de “carpintaria” em que o

criador vai vendo o resultado de sua criação à medida que escreve, constituindo-se,

por isso, em uma visão gradual: “Como que estou escrevendo na hora mesma em

que sou lido” (LISPECTOR, 1998, p. 12).

A relação de Rodrigo com a linguagem, embora conflitante, causa reflexões e

promove o seu desenvolvimento interior, já que ele é o sujeito de seu próprio

discurso. No que diz respeito à Macabea, semi-analfabeta que lida com a palavra

alheia como modo de sobrevivência, o contato com a palavra não lhe traz nenhum

benefício, pois se resume a uma atividade mecânica de apenas reproduzir a palavra

de outros. Desse modo, trata-se de um trabalho árduo de decifração das palavras

21

que, mesmo em sua urgência, não se obtém a compreensão do sentido. Talvez por

isso, Macabea tenha medo das palavras:

Você sabe o que quer dizer caftina? Eu uso essa palavra porque nunca tive medo de palavras. Tem gente que se assusta como o nome das coisas. Vocezinha tem medo de palavras, benzinho? - Tenho, sim senhora” (LISPECTOR, 1998, p. 75).

Dito de outro modo, a força expressiva de A hora da estrela reside em seu

manuseio todo particular com a linguagem, que, por si só, anuncia lugar de encontro

e desencontro, de tensão entre criador e criação, além de evocar a construção de

um “eu” que surja na própria escrita.

22

4 ROMANCE E FILME: PERSPECTIVAS PARA UMA LEITURA COMPARATIVA

Neste capítulo faremos uma leitura comparativa entre o romance e o filme,

como se realizou a transposição e até que ponto há fidelidade e infidelidade no

processo de adaptação do livro para o filme.

Toda narrativa ficcional é elaborada na construção de um espaço, onde

alguma coisa acontece, e de uma ação, organizada em um enredo, que se desdobra

colocando em conflito os personagens ao longo de um determinado tempo. A

sequência de ações se faz por meio da voz atenta de um narrador, formando assim,

uma sequência de enunciados.

No romance de Clarice Lispector, A hora da Estrela, a história se passa na

cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1977. A ação se desenvolve através de uma

personagem: Macabéa, nordestina, órfã de pai e mãe, que migra para o Rio de

Janeiro, depois da morte de sua única responsável. Pela voz de um narrador, o

discurso caminha para uma abordagem de descoberta do comportamento do ser

humano em busca de uma identificação no mundo real. Há nesta obra uma análise

cuidadosa e crítica do comportamento do ser humano e suas várias facetas perante

a sociedade, o que está atrás das aparências.

Esta obra é fruto de um moderno pensamento, instaurado na segunda fase da

carreira da escritora, que retratava a realidade do povo brasileiro do fim do século

XX, evidenciando a solidão dos proletariados, aguçada pelo morar mal, comer mal,

vestir mal, ganhar mal, uma miséria concreta, real e objetiva. Nessa época, a

romancista denunciava a busca do ser humano em existir. Como confirma Berta

Waldman (1993, p.103)

Em todos os romances, o contínuo deslocamento do texto de Clarice à procura da recuperação do pólo sensível da vida, do núcleo que reúne a participação de todos os seres e coisas que compõem a existência – o neutro -, só é possível de ser expresso à sombra da palavra, na forma do vazio.

23

Assim, a obra de Clarice Lispector não tem simplesmente a intenção de

contar a história de Macabéa na cidade grande, essa não é a questão central da

narrativa, mas o modo como a autora organiza o texto sendo capaz de trazer aos

leitores os dados, e as características que permitem a este uma visão crítica sobre o

comportamento humano em busca da existencialidade. Logo, o objetivo primeiro do

livro é a conscientização da sociedade sobre a condição humana, evidenciando a

ideologia do autor.

O cinema tem um modo bem particular de narrar a realidade ou a ficção.

Imagens visuais, linguagem verbal, sons não-verbais, música e iluminação são

diferentes recursos usados pelo cineasta na construção de uma obra fílmica.

O filme adaptado do romance de Clarice Lispector, A hora da Estrela, dirigido

e roteirizado por Suzana Amaral ao lado de Alfredo Oroz, colorido, com duração de

96 minutos e avaliado em 150 mil dólares. Os personagens principais são: Macabéa,

Olímpico de Jesus, Glória e Madame Carlota, uma cartomante. A direção de

fotografia é de Edgar Moura, edição de Idê Lacreta e a música é de Marcus Vinícius.

O filme foi distribuído pela Embrafilme.

Esta obra foi reconhecida nacional e internacionalmente, tendo recebido

vários prêmios como: Urso de Prata, de melhor atriz no festival de Berlim para

Marcélia Cartaxo (Macabéa), melhor diretor no festival de Havana e foi vencedor em

várias categorias no Festival de Brasília.

Começaremos a leitura comparativa delineando os perfis dos narradores, do

romance e do filme, se o autor deste conservou a ideologia daquele, e depois

seguimos para uma comparação geral entre o livro e o filme.

4.1 Narrador

A obra de Suzana Amaral apresenta uma diferença principal em relação ao

texto original de Clarice Lispector: a eliminação do narrador Rodrigo S.M., que com

suas observações e hesitações, é também personagem central para a compreensão

do livro.

24

No entanto, para proporcionar mais dinamismo à história, sua ausência é

compreensível, por isso sua presença foi substituída por outros elementos

tipicamente característicos do meio visual, como a cenografia, o figurino, a música e

o ponto de vista das câmeras, seus ângulos e focalização.

No romance de Clarice a presença de Rodrigo S.M., é a única fonte de que o

leitor dispõe-se para conhecer Macabéa, já que, é ele o criador da órfã nordestina.

Além disso, é através dele em que o leitor pode assimilar as emoções sentidas

diante da personagem principal, seus anseios, gostos, temperamento e

comportamento.

Em entrevista a Márcia Lígia Guidin (1998, p. 97) no livro Roteiro de leitura: A

hora da estrela de Clarice Lispector, Suzana Amaral declara a razão da inexistência

do narrador Rodrigo S. M. no filme:

Eu abri mão do Rodrigo deliberadamente. Talvez eu estivesse implícita na câmera. O fato é que nós, cineastas, somos muitos práticos. Ter eliminado o narrador advém, principalmente, do seguinte: em cinema, contar uma história dentro da história (chamada de construção em abismo) torna difícil a compreensão da história, intelectualiza o filme, e isso o público brasileiro que eu queria atingir não absorve, não entende. Nos Estados Unidos, um bom filme tem de ter começo, meio e fim, assim o público apreende mais rapidamente. É preciso cortar tudo o que complique a história para o público.

Já na abertura do filme, ouve-se a Rádio Relógio enquanto os créditos

aparecem. Macabéa é apresentada em seu contexto profissional, em um escritório,

como datilógrafa. É nesse meio que ela vai interagir com alguns personagens da

trama. Lá, ela vive com o chefe, o diretor da firma, e Glória.

Enquanto que a obra escrita de Lispector inicia-se com um grande discurso

do narrador Rodrigo S. M. sobre o ato de escrever, para quem há a necessidade de

alcançar a perfeição da palavra. Ele diz que ‘absteve-se de sexo, futebol, não lê

mais nada para não contaminar com luxo a simplicidade de minha linguagem’ (A

hora da estrela, 1998, p. 37).

Nesse sentido, a escrita do romance dada pelo narrador Rodrigo S.M., é uma

ação, ação através da palavra. O ato de escrever e a busca pela palavra

transformam o sujeito: “A ação desta história terá como resultado minha

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transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto” (A hora da

estrela, 1998, pág. 35). Rodrigo S.M., é o único capaz de ver e sentir a presença de

Macabéa no mundo, aspecto principal diferenciador entre obra literária e fílmica.

Os cenários principais da história tanto no filme como no livro são: o

escritório, o quarto de pensão e a rua. Macabéa divide seu tempo nesses ambientes.

Durante o dia, trabalha no escritório, à noite volta para a pensão e escuta a

programação da Rádio Relógio.

4.2 Do livro para o filme: uma reescrita

O livro e o filme têm como protagonista uma jovem nordestina, pobre,

miserável, sozinha, sem consciência de sua existência e, segundo como ela mesma

se descrevia, datilógrafa, virgem e que gostava muito de Coca-Cola.

Em relação ao espaço, a história que se passa na cidade do Rio de Janeiro,

foi filmada na cidade de São Paulo, porém a diretora do filme, Suzana Amaral

conseguiu manter a ideia que se passava na capital fluminense.

O filme, além de considerar as personagens do livro – Macabéa, Glória, Seu

Raimundo, Olímpico de Jesus e Madame Carlota – também insere o chefe de Seu

Raimundo, a dona da pensão, um segurança do metrô, um cego no bar, um dono do

bar, uma vendedora de batom, um outro metalúrgico, uma mendiga, Osvaldo (o

namorado de Glória) e toda a família de Glória. Enquanto que algumas personagens

só estão presentes no texto literário como o médico que atende Macabéa e as

quatro moças da pensão que dividem o quarto com a nordestina: Maria Aparecida,

Maria José, Maria da Penha e Maria. Na obra fílmica, há somente três moças, sendo

apenas uma chamada de Das Dores.

A cineasta no início da transposição, explora uma relação entre a vida da

protagonista e a de um gato. Ela trabalha em vários momentos do filme com essa

relação. No momento em que reaparece o gato comendo um rato morto, há uma

cena sucedida que Glória, colega de trabalho de Macabéa, conhece Olímpico de

Jesus, namorado de Macabéa.

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Tanto no romance quanto no filme, a narrativa concentra-se em questões

existenciais. A atriz Marcélia Cartaxo consegue passar a vida sem nenhum brilho,

triste, solitária, sob a perspectiva de Macabea: no olhar, no tom de voz, nas roupas,

sem nenhuma reação.

Distinto do que acontece na obra literária, a personagem Glória é bem mais

focalizada sob o aspecto da ingenuidade, da tolice. Assim torna-se no filme mais

evidenciada do que no romance. No filme Macabea vê Glória mentindo para o seu

superior e aprende com ela. Glória mente várias vezes ao chefe para poder sair com

seus diversos namorados, o que é testemunhado por Macabea que começa a imitá-

la também.

No livro, a questão da mentira é colocada quando a protagonista fala que vai

ao dentista para simplesmente não ir no trabalho, enquanto que no filme ela se

ausenta do trabalho para que no quaro da pensão, possa brincar, dançar, vestir-se

de noiva com o lençol de cama. Na narrativa escrita os detalhes são menos

abrangentes, há o momento do lençol em que Macabea se materializa uma noiva,

mas a associação dá-se através de maio, o mês das noivas “maio, mês das

borboletas noivas flutuando em brancos véus” (Lispector, 1998, p. 42).

O encontro inicial de Macabea com Olímpico de Jesus, no filme, acontece

quando ele está tirando uma foto em uma praça pública. Ela passa diante da câmera

atrapalhando o trabalho do fotógrafo. Olímpico a adverte e ela imediatamente se

desculpa. A desculpa, é uma marca característica dela, colocada pela cineasta em

quase todas as passagens do filme. No romance a moça nordestina conhece o

paraibano em um final de tarde:

No meio da chuva abundante encontrou (explosão a primeira espécie de namorado de sua vida, o coração batendo como se ela tivesse englutido um passarinho esvoaçante e preso). O rapaz e ela se olham por entre a chuva e se reconheceram como dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam. Ele a olhava enxugando o rosto molhado com as mãos. E a moça, bastou-lhe vê-lo para torná-lo imediatamente sua goiabada com queijo. (LISPECTOR, 1998, p. 42, 43).

A música é apresentada como elemento fundamental em uma produção

cinematográfica e corresponde com a construção das cenas de modo a colocar os

27

sentimentos dos protagonistas. No filme A hora da estrela, a música também

desenvolve seu papel.

O diálogo entre Macabea e Olímpico de Jesus é sempre relacionado com o

que ela escuta na Rádio Relógio. A moça sempre questiona o namorado sobre o

significado das coisas, como por exemplo, o que é cultura. Mas como ele também

não é capaz de responder, por desconhecimento do assunto, Olímpico sempre

responde a Macabea com grosserias ou dizendo que isso não é coisa que moça

donzela deve saber. O que ele mais gosta de fazer é falar de si mesmo, declarando

que um dia será famoso e deputado. Mas a conversa dos dois logo termina em

função de Olímpico de Jesus irritar-se com Macabea.

A colega de trabalho de Macabea, Glória, tem uma vida não muito gloriosa.

Para se acertar na vida, procura uma cartomante que transmite a ela uma série de

rituais, para que Glória consiga chegar a sua meta: casar. No filme, Suzana de

Amaral percorre com domínio sobre essa cena entre Glória e a cartomante, que se

encontra o mesmo no romance escrito.

Enquanto que, o encontro de Glória, a colega de trabalho de Macabea e o seu

namorado Olímpico de Jesus, no filme, dá-se através de um pedido da órfã

nordestina quando não é possível encontra-lo e pede para que a amiga vá ao

encontro dele para avisa-lo em um parque, na obra narrativa, é a própria Macabea

que apresenta os dois.

Ambos, texto literário e texto fílmico, estão de acordo em relação ao

rompimento do relacionamento entre Macabea e Olímpico de Jesus. Ele diz para

ela: “Você, Macabea, é um cabelo na sopa. Não dá vontade de comer. Me desculpe

se eu lhe ofendi, mas sou sincero. Você está ofendida?”. (LISPECTOR, 1998, p.60).

Porém uma diferença encontrada entre as duas formas de narrativa é a resposta

dada por Macabea para o então namorado, no livro: “Não, não, não! Ah por favor

quero ir embora! Por favor me diga logo adeus.” (LISPECTOR, 1998, p.60). No filme

ela combate essa situação mandando-o embora.

Além disso, com o término do namoro, Macabea não consegue dar um

significado para seus sentimentos e todo seu corpo dói. Assim pede para Glória

comprimidos, aspirinas, que ao recebe-los Macabea mastiga-os. Penalizada pela dor

da moça, a colega de trabalho sugere que a nordestina vá a uma cartomante para

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saber seu futuro. Dá-lhe o dinheiro para a consulta e para a corrida de táxi. Essa

situação é apresentada nas duas obras estudadas.

Depois de ser consultada pela Madame Carlota, que no filme é explorado com

mais intensidade, maior riqueza de detalhes e bastante diálogo, Macabea sai da

consulta com a cartomante e dirige-se a uma loja para comprar um vestido azul,

para ela é o grande momento de sua vida, encontra-se esperançosa e cheia de vida,

pois iria encontrar o amor de sua vida, anunciada nas cartas da cartomante.

O instante de sua morte, Macabea é colocada livre, feliz, com vida, atravessa

a rua e é atropelada por um carro cor amarela no livro, e cor azul no filme.

Clarice Lispector declara: “parou no beco escurecido, pelo crepúsculo –

crepúsculo que é hora de ninguém” (1998, p. 79).

Assim, seja na obra literária de Clarice Lispector ou na obra fílmica dirigida

por Suzana Amaral, a morte de Macabea, a protagonista da história, revela aquilo

que todo ser humano está exposto a se destinar: desamparo, desaparecimento e pôr

fim a morrer sozinho.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao propormos a análise acerca da adaptação fílmica da obra literária A hora

da estrela, 1977, de Clarice Lispector, foi nossa intenção verificar a possibilidade de

haver-se a questão da (in) fidelidade entre as duas linguagens, literária e fílmica.

A transposição dessas linguagens resultou em transformações inevitáveis

diante da mudança de veículo, mas foi capaz de manter o espírito do livro enquanto

a cineasta, Suzana Amaral o recriava de modo ímpar.

A questão central do texto, a existência humana, foi bem trabalhada no filme

como condição de elemento fundamental. Nota-se o uso eficaz, tanto em um como

no outro, exploração de artifícios da Rádio Relógio, a exposição da pobreza, e a

dificuldade da protagonista em lidar com as palavras.

Em sua adaptação do livro para as telas do cinema, Amaral utilizou a música

de forma admirável. Na tentativa de modelar os sentimentos e a imagem da

protagonista, a trilha sonora foi a responsável de moldar a identidade da jovem

nordestina.

Além disso, os dois tipos de textos possibilitam reflexões acerca da existência

humana, o pensar sobre a morte e as questões da cultura e da ética. Portanto as

duas obras estão em consonância e a adaptação cinematográfica por sua vez é fiel

ao texto literário.

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6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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