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EPÍLOGO Hoje, após 2000 anos, o cristianismo é a fé, pelo menos nominalmente, de um terço da população mundial. Iniciada com um punhado de pescadores, coletores de impostos e jovens arruaceiros numa obscura província da Judéia, essa fé se espalhou pelo planeta clamando pela lealdade de cerca de um bilhão de pessoas. Um dos aspectos mais marcantes do cristianismo de hoje é que poucos dos que se professam crentes estudam seriamente a história de sua religião. Antigamente, os adeptos de uma religião raramente se encontravam com os adeptos de outra. Poucos precisavam defender sua religião contra a crítica de uma fé rival. Hoje, contudo, quando os meios de comunicação de massa fazem de todo o mundo nossos vizinhos, a ignorância dos cristãos é difícil de se justificar. O movimento de separação entre Estado e igreja acabou por remover a religião do ensino público. Mas mesmo a “educação cristã” em muitas denominações tem feito pouco para oferecer a seus membros um entendimento adulto da fé que eles professam. Será, então, motivo de surpresa ver um cristão de hoje cometer erros grosseiros sobre sua crença ou defender alguma prática pagã como conduta “cristã”? Cristãos informados podem se sentir tentados a perguntar: “Se ao justo é difícil ser salvo, que será do ímpio e pecador?” (1Pedro 4.18). Mas eles sabem que a falha humana é apenas metade da história. Eles percebem o quanto muitas vezes a própria igreja foi seu pior inimigo e com que freqüência o avivamento vem de um lugar totalmente inesperado. Inúmeras vezes, a igreja descobriu algum poder desconhecido desviar uma ameaça a sua existência ou transformar crise em oportunidade de crescimento. Perseguições ferrenhas serviram para limpar a casa da fé. A proliferação da heresia fez com que se tornassem

Livro a Historia Do Cristianismo Ao Alcance de Todos

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  • EPLOGO

    Hoje, aps 2000 anos, o cristianismo a f, pelo menosnominalmente, de um tero da populao mundial. Iniciada com umpunhado de pescadores, coletores de impostos e jovens arruaceiros numaobscura provncia da Judia, essa f se espalhou pelo planeta clamandopela lealdade de cerca de um bilho de pessoas.

    Um dos aspectos mais marcantes do cristianismo de hoje quepoucos dos que se professam crentes estudam seriamente a histria de suareligio. Antigamente, os adeptos de uma religio raramente seencontravam com os adeptos de outra. Poucos precisavam defender suareligio contra a crtica de uma f rival. Hoje, contudo, quando os meiosde comunicao de massa fazem de todo o mundo nossos vizinhos, aignorncia dos cristos difcil de se justificar.

    O movimento de separao entre Estado e igreja acabou por removera religio do ensino pblico. Mas mesmo a educao crist em muitasdenominaes tem feito pouco para oferecer a seus membros umentendimento adulto da f que eles professam. Ser, ento, motivo desurpresa ver um cristo de hoje cometer erros grosseiros sobre sua crenaou defender alguma prtica pag como conduta crist?

    Cristos informados podem se sentir tentados a perguntar: Se aojusto difcil ser salvo, que ser do mpio e pecador? (1Pedro 4.18). Maseles sabem que a falha humana apenas metade da histria. Elespercebem o quanto muitas vezes a prpria igreja foi seu pior inimigo ecom que freqncia o avivamento vem de um lugar totalmenteinesperado. Inmeras vezes, a igreja descobriu algum poder desconhecidodesviar uma ameaa a sua existncia ou transformar crise emoportunidade de crescimento. Perseguies ferrenhas serviram paralimpar a casa da f. A proliferao da heresia fez com que se tornassem

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    mais claras as crenas bsicas da igreja. E a sbita apario de hordasbrbaras abriu as portas para uma expanso maior. Essa habilidade deencarar novos desafios e fazer jorrar a fonte de avivamento um dossegredos do crescimento cristo.

    Em geral, o caminho para se avanar inclui um olhar determinadopara o passado, para a imagem de Deus revelada na histria de Jesus. Oscristos sempre consideraram a poca de Jesus e dos apstolos ummodelo para todas as outras pocas. Ela deu igreja sua f em Jesus, oMessias ressuscitado e a esperana do perdo dos pecados por seuintermdio. E essa poca demonstrou, por meio da vida de Paulo, que oevangelho da graa no conhece limites de naes, raa, sexo e cultura.

    O cristianismo catlico que aceitou essa verdade espalhou-serapidamente pelo mundo mediterrneo. Confrontou-se com as idiasestrangeiras do gnosticismo, marcionismo, montanismo e chamaram dementira a mentira apelando para os escritos apostlicos e para os bisposortodoxos que os guardavam. Ao mesmo tempo, os cristos se depararamcom o poder de perseguio de Roma e ousaram morrer heroicamentecomo mrtires, testemunhas para outros crentes que seguiram seus passos.

    Essa semente de sangue de mrtir, como chamou Tertuliano, deufrutos abundantes na converso do imprio. A era imperial comeou em312, quando Constantino teve uma viso de Cristo. Antes do sculo IV, orestrito cristianismo tornou-se a religio oficial do Imprio Romano emexpanso. Uma igreja nas catacumbas era uma coisa, mas o que ocristianismo tinha a ver com os palcios?

    Sob a tutela do imperador, a igreja aprendeu a servir o poderformulando a f para as massas. Da a era dos grandes conclios. Oscristos que no tinham posses para freqentar palcios rumaram pararegies incultas em busca de um novo caminho para a graa. Venerandoseremitas se viram vanguarda de um movimento, o monasticismo, oaceno do futuro.

    Mas, a maioria dos cristos viu a mo de Deus no casamento feliz daigreja crist e do Estado romano. No Oriente, o casamento continuoupor um milnio. Uma f mstica floresceu sob a proteo dosimperadores ortodoxos at 1453, quando os turcos muulmanos levaramo Imprio Bizantino runa final. A queda de Constantinopla significouo surgimento de Moscou, a nova capital da ortodoxia oriental.

    No Ocidente, a histria foi diferente. Depois do sculo V, quando

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    brbaros germanos e hunos derrubaram as defesas do Imprio einvadiram a cidade eterna, os homens voltaram-se para a Cidade de Deusde Agostinho em busca de explicaes. Encontraram uma viso para anova era. Esses sculos so chamados de medievais. As pessoas que nelesviveram consideravam-nos cristos.

    Suas razes residem no papel do papa, que se postou nas runas doImprio destrudo no Ocidente e deu incio construo da igreja medi-eval sobre a extinta glria de Roma. Como nica ligao com o passadoromano, a igreja de Roma mobilizou os monges beneditinos e os dispscomo embaixadores missionrios dentre o povo germnico. Levousculos, mas os papas, juntamente com os governantes cristos,lentamente pacificaram e batizaram um continente e o chamaram decristandade, Europa crist.

    As massas batizadas, contudo, significavam pagos batizados. Nosculo X, fez-se necessrio um avivamento espiritual. Ele comeou em ummonastrio no centro da Frana chamado Cluny e se expandiu at atingiro papado. O maior dos papas reformistas foi Gregrio VII. Seusdedicados sucessores levaram o ofcio papal ao znite do poder terreno.Como no era mais a base do Imprio Romano, a igreja do sculo XII, porsi s, constitua um tipo de imprio, um reinado terreno e espiritual quese estendia da Irlanda Palestina, da Terra ao Cu. Os cruzados e afilosofia escolstica foram testemunhas dessa soberania papal.

    Mas o poder corrompe. A igreja ganhou o mundo, mas perdeu aalma. De qualquer maneira, isso era o que pregava uma torrente dereformistas determinados: waldenses, franciscanos e albigenses. Em meio luta pelo poder terreno e s evidncias de uma religio estril, muitoscristos, nos sculos XIV e XV, voltaram-se para a Bblia em busca de umaviso nova e do avivamento.

    A Reforma veio com furor. Martinho Lutero tocou a trombeta, masmuitos outros abraaram a causa. O perodo denominado de perodoreformador caracterizado pela movimentao de protestantes: luteranos,reformados, anglicanos e anabatistas. No meio do sculo XVI, a Reformahavia arruinado a unidade tradicional da Europa ocidental e legado opluralismo religioso aos tempos modernos.

    A igreja de Roma resistiu a esse ataque com a tradio. Ela reuniunovas tropas, principalmente a Sociedade de Jesus. Enviou novas ondasmissionrias sia, frica e Amrica Latina. Travou batalhas na Frana,

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    Holanda e Alemanha. Mas, no final, a cristandade escorregou para opassado. Em seu lugar, surgiu o conceito denominacional de igreja, quepermitia s naes modernas tratar as igrejas como sociedadesvoluntrias, separadas do Estado. Novas escolas de pensamentofervilharam no sculo XVII. Nada era mais poderoso do que a razo.Perguntava-se: Quem precisa de Deus? O homem consegue viver porsi s. Os cristos manifestaram suas objees, mas essas idias seespalharam at que o secularismo tomasse conta da vida pblica dassociedades ocidentais. Deus permaneceu, mas como uma questo deescolha pessoal.

    Os cristos no podiam mais apelar para a fora do exrcito parasuprimir tais heresias. Ento, muitos deles voltaram-se para a condutados apstolos, pregao e orao. O resultado foi uma srie deavivamentos evanglicos: principalmente os pietistas, metodistas, e oGrande Avivamento. Pela pregao e converses pessoais, os evanglicosbuscaram restaurar Deus na vida pblica.

    A era do progresso viu cristos de todo tipo travar uma batalhacorajosa contra o avano do secularismo. Dos avivamentos evanglicossurgiram novos esforos para levar o evangelho de Cristo para terrasdistantes e inmeros ministros de servios sociais na Europaindustrializada e na Amrica do Norte. Dos baluartes de Roma, umpapado defensivo lanou uma carga de msseis orientados contra osinimigos modernos da f catlica. Apesar de todos os esforos doscristos, lentamente os cristos foram retirados da vida pblica nomundo ocidental. Os cristos foram deixados com um problema quereconhecemos hoje, em nosso prprio tempo: Como os cristos podemexercer influncia moral em sociedades pluralistas e totalitrias, nas quaisas colocaes crists sobre a realidade no mais prevalecem?

    A profundidade do problema ficou evidente na era das ideologias,quando novos deuses surgiram pedindo a lealdade do homem secular. Onazismo exaltava o Estado; o comunismo louvava o partido; e ademocracia americana reverenciava o indivduo e seus direitos.Supostamente iluminadas, as naes modernas travaram duas batalhasglobais numa tentativa de estabelecer a supremacia dessas duas novasdivindades. Quando nenhuma delas prevaleceu, uma guerra fria decoexistncia se estabeleceu nas naes anteriormente crists. Nessestempos conturbados, as denominaes lutaram devido a teologias liberais

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    e ortodoxas, encontraram novos caminhos para recobrar a unidadeperdida, e demonstraram fome de novas experincias apostlicas.

    Depois da Segunda Guerra Mundial, surgiram no Terceiro Mundolideranas vigorosas de novos cristos, que ofereciam esperanas de umnovo tempo para a antiga f. Ser que os missionrios das naesneopags da Europa e Amrica do Norte conseguiram garantir umaparticipao no futuro frica e Amrica Latina ao levar-lhes oevangelho?

    S o futuro dir. Mas os cristos podem ter esperanas porque a fsempre vai alm das circunstncias terrenas. Sua confiana reside em umapessoa. E nenhuma outra pessoa, segundo os registros histricos,influenciou mais pessoas sob as mais diversas condies por tanto tempodo que Jesus Cristo. As cores e sombras de sua imagem parecem mudarsegundo as necessidades dos homens: o Messias judeu dos crentesremanescentes, a sabedoria dos apologistas gregos, o rei csmico da igrejaimperial, o logos celestial dos conclios ortodoxos, o governador domundo das cortes papais, o modelo monstico da pobreza apostlica, osalvador dos predicantes evanglicos.

    Na verdade, ele um homem para todos os tempos. Em um tempoem que era visto por todos como algum sem importncia, uma relquiade um passado rapidamente descartado, a histria da igreja oferece umsilencioso testemunho de que Jesus Cristo no ir sair de cena. Seu ttulopode mudar, mas sua verdade permanecer por todas as geraes.

  • O PERODO DE JESUS E DOS APSTOLOS

    6 A.C.70 D.C.

    As razes do cristianismo remontam histria judaica anteriorao nascimento de Jesus. Contudo, foi Jesus de Nazar quematacou o judasmo institudo e gerou um movimento derenovao da histria no sculo I.Aps sua crucificao, determinada por Pncio Pilatos, oficialromano, os ensinamentos de Jesus espalharam-se pela regiodo Mediterrneo.Um apstolo chamado Paulo teve grande influncia nesseprocesso. Deu nfase salvao, ddiva de Deus para todos oshomens, e alou o cristianismo, emergente do judasmopalestino, condio de religio universal.

  • O perodo de Jesus e dos Apstolos

    A.C.

    0

    Nascimento

    de Jesus

    25Morte de

    Jesus

    Morte de

    Estvo

    50

    NeroMorte de

    Paulo

    Destruio

    de Jerusalm

    75

    100

  • O cristianismo a nica grande religio que tem como fato central ahumilhao de seu Deus.

    Amado cordeiro morto, cantam os crentes,seu precioso Sangue

    Jamais perder seu poder,At que toda a igreja do Senhor resgatada

    Seja salva do pecado.

    A crucificao era uma morte brbara, reservada a agitadores, piratase escravos. A lei judaica amaldioava todo aquele que fosse pregadonuma cruz, e Ccero, o estadista romano, advertia: Que at o prprionome da cruz fique distante, no apenas do corpo do cidado romano,mas de seus pensamentos, de seus olhos, de seus ouvidos.

    Parte da punio das vtimas consistia no aoite e em carregar aprpria cruz ao local da morte. Quando a cruz era erguida, pregava-senela uma tabuleta com o nome do acusado e o crime por ele cometido.No caso de Jesus, INRI: Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum Jesus de Nazar,rei dos judeus.

    Pncio Pilatos, juiz romano de Jesus, aparentemente desejava queessa inscrio fosse uma provocao malvola contra os judeus, mas, damesma maneira que aconteceu com a cruz, os seguidores de Jesusencontraram um significado especial nessa mensagem.

    JESUS E A IGREJA

    Jesus era judeu. Descendia de uma famlia judia, havia estudado a leijudaica e seguia a religio judaica. Todo estudo srio a respeito de sua

    1

    ANDANDO COM O REI!

  • 4 HISTRIA DO CRISTIANISMO AO ALCANCE DE TODOS

    vida deixa isso to claro que vrias pessoas se perguntam se Jesus de fatoteve a inteno de criar esse grupo de seguidores que chamamos deigreja. Albert Schweitzer, missionrio famoso que esteve na frica,acreditava que Jesus era obcecado pelo sonho do iminente fim do mundoe morreu para tornar esse sonho realidade. Rudolf Butmann, importantetelogo alemo, achava que Jesus era um profeta que desafiava as pessoasa optarem radicalmente a favor ou contra Deus. Outros cristosdefendiam a idia de que o reino de Deus era uma fraternidade de amor eperdo. Se ele fundou uma sociedade, dizem eles, era uma sociedadeinvisvel, uma companhia moral ou espiritual, e no uma instituio comleis e credos.

    Essa viso no-institucional do cristianismo to difundida que omelhor que fazemos consider-la. Jesus teve algo a ver com a formaoda igreja crist? E se teve, como moldou seu carter especial?

    Cada leitor do evangelho livre para julgar por si mesmo, mas umaleitura imparcial de Mateus, Marcos, Lucas e Joo revela os planos deJesus a respeito de um grupo de seguidores que desse continuidade ao seutrabalho. Durante dois anos, ele trabalhou com um grupo de discpulosfiis, transmitiu-lhes ensinamentos sobre a vida no que chamava de oreino de Deus, e os apresentou as novas promessas, que os mantevejuntos no amor e no perdo.

    Pode-se supor que quele grupo simples faltassem as leis, os oficiais eos crentes da cristandade de hoje, mas era uma sociedade parte. Jesusenfatizou com insistncia o modo de vida especial que separava o reinode Deus das autoridades rivais entre os homens. Pouco a pouco, osdiscpulos foram percebendo que segui-lo significava dizer no a outrasvozes que clamavam por sua lealdade. De alguma forma, esse foi onascimento do movimento de Jesus. E pelo menos nesse sentido Jesusfundou a igreja.

    A PALESTINA NO TEMPO DE JESUS

    Na poca de Jesus, a Palestina carecia de lealdade. Ela era umcruzamento de povos e culturas. Seus dois milhes ou mais de habitantes dominados por Roma encontravam-se divididos por regies,religies e posies polticas. Em uma viagem de um dia, podia-se passarpor povoados rurais, em que os lavradores aravam a terra com

  • 5O PERODO DE JESUS E DOS APSTOLOS

    ferramentas primitivas, e at em cidades agitadas, onde os homensapreciavam o conforto da civilizao romana. Na cidade santa deJerusalm, sacerdotes judeus ofereciam sacrifcios ao Senhor de Israel,enquanto em Sebaste, cerca de apenas 48 quilmetros dali, sacerdotespagos celebravam cerimnias em nome do deus romano Jpiter.

    Os judeus, que representavam apenas metade da populao,desprezavam seus dominadores e se ressentiram profundamente dapresena de sinais da cultura pag em sua antiga terra natal. Os romanosno eram somente mais um povo de uma longa srie de conquistadores.Representavam um modo de vida odiado. Seu reinado trouxe Palestinaa cultura helnica (grega), que os srios haviam tentado impor aos judeusmais de um sculo atrs. Todos os descendentes de Abrao desprezavamseus conquistadores; discordavam apenas quanto ao modo de lhes resistir.

    Sculos antes, os profetas de Israel haviam falado sobre o dia em queo Senhor libertaria seu povo do paganismo e estabeleceria seu reino sobretoda a Terra. Naquele dia, diziam, ele enviaria um soberano ungido um messias para dar um fim ao corrupto mundo atual e substitu-lopor um paraso eterno. Ele venceria a morte e julgaria suas aes nestemundo. Os perversos seriam punidos, mas os retos seriamrecompensados com a vida eterna no reino de Deus.

    Segundo o livro de Daniel e outros escritos judeus populares, o reinode Deus s se estabeleceria aps uma batalha final csmica entre as forasdo mal, comandadas por Satans, e as foras do bem, lideradas peloSenhor. Ela s cessaria com a destruio da ordem do mundo existente ecom a criao de um reino sem limites (Dn 7.13, 22). Essa crenajuntamente com as idias sobre ressurreio e juzo final faziam parte daf judaica popular.

    Em decorrncia do desgosto de viver sob dominao romana,surgiram vrias faces entre os judeus, cada uma com uma interpretaodiferente da crise. O movimento de Jesus era uma delas.

    O grupo dos fariseus enfatizava as tradies e as prticas judaicas queos separavam da cultura pag. Seu nome significa os separados, e eles seorgulhavam de observarem rigidamente cada detalhe da lei judaica e desua extrema intolerncia com as pessoas que consideravam impuras emrelao a essa lei. Sua f e seu patriotismo os tornaram lderes respeitadosentre seu povo.

    Para alguns judeus, no entanto, o domnio romano significava uma

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    grande vantagem. Dentre eles, estavam membros da aristocracia deJerusalm. Desse pequeno, rico e seleto grupo saa o alto sacerdote e osdemais sacerdotes do templo. Muitos deles apreciavam a moda e asmaneiras sofisticadas da cultura greco-romana. Alguns chegaram a adotarnomes gregos. Seus interesses eram representados por um grupopoliticamente conservador chamado saduceus. Na poca de Jesus, esseshomens ainda controlavam o alto conselho judeu, ou sindrio, mastinham pouca influncia sobre as pessoas comuns. Um outro grupo, odos zelotes, era favorvel resistncia armada contra todos os romanosinstalados em sua ptria. Eram motivados pelos gloriosos dias dosmacabeus, dois sculos atrs, quando o fervor religioso e a espada prontapara a luta derrotaram os suseranos pagos gregos. Assim, as colinas daGalilia sempre abrigaram um grande nmero de grupos guerrilheirosprontos para iniciar uma revolta ou destruir um smbolo da autoridaderomana na Palestina.

    Finalmente, havia tambm os essnios, que tinham pouco ounenhum interesse pela poltica ou pela guerra. Em vez disso, retiraram-separa o deserto. L, em isoladas comunidades monsticas, estudavam asEscrituras e preparavam-se para o reino de Deus.

    Jesus teve de pedir a lealdade de seus seguidores sem confundir ospropsitos de sua misso com os objetivos desses outros grupos existentesentre os judeus. Era uma tarefa difcil.

    O MINISTRIO DE JESUS

    Jesus iniciou seu ministrio unindo-se a um novo movimentoexistente no deserto judaico e liderado por um profeta chamado Joo. Avau do rio Jordo, ao norte do mar Morto, era um dos locais maisagitados de toda a regio, de forma que Joo Batista tinha a multido deque precisava para ouvi-lo. Usando roupa feita de plo de camelo e comolhar flamejante, ele ficava na margem do rio, aconselhando a todos quepor ali passavam a arrepender-se de seus pecados e a preparar-se para odia do juzo por meio do batismo no rio Jordo.

    Muitos acreditavam que Joo era o Messias prometido, mas ele onegava com veemncia. Explicava sua misso com as palavras do profetaIsaas: Voz do que clama no deserto, preparai o caminho do Senhor,endireitai as suas veredas (Mt 3.3). Afirmava ser apenas o precursor do

  • 7O PERODO DE JESUS E DOS APSTOLOS

    Messias. Eu na verdade vos batizo com gua, disse ele, Ele vos batizarcom o Esprito Santo e com fogo (Lc 3.16).

    O apelo de Joo ao arrependimento e retido atraiu Jesus ao Jordo.Ele encontrou na mensagem de Joo a verdade de Deus, e, para cumprirsua palavra, se submeteu ao batismo de Joo e logo em seguida deu incioa sua prpria misso, proclamando: O tempo est cumprido e o Reinode Deus est prximo. Arrependei-vos e crede no evangelho (Mc 1.15).

    Jesus, contudo, ao invs de permanecer no deserto, preferiu iniciarsua misso na Galilia, uma terra de suaves colinas e vales verdejantes.Nas primeiras semanas e meses, andou de vilarejo em vilarejo pelaGalilia, pregando nas sinagogas noite e nos Sabbath. Carregando umsaco de pes, um odre de vinho e uma bengala, ele andava pelas estradasempoeiradas. Provavelmente, vestia-se como qualquer outro viajante,com uma tnica de linho rstico coberta por um manto vermelho ouazul.

    Em um dia tpico, Jesus sairia ao amanhecer e andaria quilmetros equilmetros. Perto do pr-do-sol, entraria em um povoado e procurariasua sinagoga. Como diz uma histria popular, l talvez tivesse umarecepo calorosa dos habitantes da cidade, que muitas vezes no tinhamum rabino e dependiam dos servios de mestres andarilhos, como Jesus.Quando os lampies fossem acesos, e os homens do vilarejo tomassemseus lugares, Jesus se sentaria numa plataforma central e comearia a leruma passagem das sagradas Escrituras. Em voz clara e forte, eleanunciaria o cumprimento de alguma profecia ou contaria algumaparbola.

    O tema principal dos ensinamentos de Jesus era o reino de Deus.Mas o que queria dizer com isso? Ele acreditava numa intervenodecisiva de Deus na histria do mundo? Ou, de alguma maneira, que oreino j estava aqui? Provavelmente, acreditasse nas duas coisas. Elaspodem se conciliar se reconhecermos que tratam da soberania de umDeus pessoal e misericordioso, e no de um reino geogrfico ou local.

    Jesus dava a entender que o governo de Deus j estava presente nopoder salvador que havia em sua pessoa. E ele ofereceu provas sobre isso.Seus milagres de cura no eram apenas maravilhas, mas sinais, o poderdos tempos por vir j manifesto no presente. Mas se eu expulso osdemnios pelo dedo de Deus, disse Jesus, certamente a vs chegado oreino de Deus (Lc 11.20). Por temer que suas curas fossem mal-

  • 8 HISTRIA DO CRISTIANISMO AO ALCANCE DE TODOS

    interpretadas, que as pessoas o vissem como mais um mgico, semprepediu queles que curava que se mantivessem em silncio.

    Mas as notcias se espalharam, e rapidamente as pessoas das vilas ecidades de toda a Galilia comentavam sobre o novo operador demaravilhas capaz de curar cegos, aleijados e doentes com o poder de suavoz e o simples toque de suas mos fortes de carpinteiro. Logo, multidesse formavam onde quer que ele falasse.

    A crescente popularidade de Jesus gerou controvrsias,principalmente entre os fariseus, que detestavam ver as pessoas seguindoe ouvindo um homem que nunca estudara com seus cultos escribas. Eno hesitaram em questionar abertamente suas referncias.

    A MENSAGEM DE JESUS

    Jesus aceitava os desafios dos fariseus por lhe ofereceremoportunidade de confrontar sua mensagem de arrependimento e graacom o fato de se auto-exaltarem.

    Em certa ocasio, provavelmente quando os peregrinos dirigiam-se aJerusalm para uma das grandes festas, Jesus falou sobre dois homens quehaviam se dirigido ao templo para orar. Que tremendo contraste haviaentre eles! Um era fariseu, e o outro, surpreendentemente, coletor deimpostos.

    Com a percia de um ator, o homem sem pecados ficou em p eorou: Deus, graas te dou porque no sou como os demais homensque praticam a extorso, so injustos e adlteros, tampouco como estecobrador de impostos. Jejuo duas vezes na semana e dou os dzimos detudo o que possuo (Lc 18.11-12). Seja como for, era isso o que ele pediapara si mesmo e no apenas uma falsa ostentao vazia. Os fariseusdestacavam-se nos atos de retido jejuando e dizimando , o que osmantinha afastados dos homens depravados.

    A falha desse indivduo estava na exaltao que fazia de si mesmo eno olhar cruel que tinha em relao aos outros. Os fariseus seconsideravam os nicos justos e viam aos demais mortais sob uma rgidacondenao.

    Enquanto isso, o coletor de impostos, disse Jesus, estando em p eafastado, era a imagem da contrio. Seus olhos voltavam-se para baixo, ea cabea estava curvada pelo sentimento de culpa. Sua orao era um

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    soluar de remorso, uma splica por misericrdia: Deus, tenhamisericrdia de mim, pecador!

    Digo-vos, disse Jesus, que este desceu justificado para sua casa, eno aquele (Lc 18.14). Impossvel haver maior contraste do que aqueleentre a f dos fariseus e a atitude do movimento de Jesus. Uma se baseavana observncia das centenas de leis religiosas dos judeus, e a outra nanegao de si mesma e na crena na misericrdia de Deus.

    Jesus escolheu um grupo de homens, dentre as centenas de seusseguidores, para andar com ele todo o tempo. Passaram a ser chamadosde apstolos, que significa enviados. No incio, era um grupoheterogneo doze homens ao todo , pescadores e cobradores deimpostos, que devotavam forte lealdade a Jesus.

    Para eles, Jesus mostrou a distino entre seu reino e os reinos domundo. Seus seguidores, disse ele, representavam um outro tipo desociedade e de grandeza. Nos reinos deste mundo, lderes poderososdominam os outros homens, mas o reino de Deus governado demaneira santa, pelo servio e pelo amor.

    No temam, disse-lhes ele, vontade de seu Pai dar-lhes o reino.A popularidade de Jesus tornou-se evidente um ano antes de sua

    priso em Jerusalm. Na Pscoa, depois de haver alimentado cinco milperegrinos numa colina da Galilia, vrios de seus discpulos tentaramproclam-lo rei. Jesus sabia, entretanto, que eles sequer imaginavam quaiseram os planos de Deus para a sua vida e morte. Assim sendo,abandonou o local com apenas alguns homens.

    Jesus sabia que tinha um papel nico nos planos de redeno de Deus,mas temia os ttulos tradicionais oferecidos a redentores messinicos. Asmultides confundiam as coisas facilmente. Sua imagem ensinando aosdoze homens forma-se ao longo das linhas de Isaas que compem o retratodo Servo Sofredor: desprezado e rejeitado pelos homens (...) pelas suaspisaduras fomos sarados (Is 53.3,5) e da descrio de Zacarias que falava deum rei humilde, montado em um jumento (Zc 9.9).

    A LTIMA SEMANA

    Com essas imagens profticas em mente, no domingo anterior Pscoa, Jesus entrou em Jerusalm montado em um burro, cumprindo asprofecias de Zacarias. A multido atirava ramos de palmas em seu