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LIVRO DAS SONORIDADES [notas dispersas sobre composição]

Livro Das Sonoridades

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Debate sobre música e literatura.

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LIVRO DAS SONORIDADES[notas dispersas sobre composição]

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LIVRO DAS SONORIDADES[notas dispersas sobre composição]

um livro de música para não-músicosou de não-música para músicos

Silvio Ferraz

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© 2005 Silvio Ferraz

Produção editorial

Debora FleckIsadora Travassos

Jorge Viveiros de CastroMarília Garcia

Valeska de Aguirre

Revisão

José Alan Dias Carneiro

Desenhos de capa e miolo

Silvio Ferraz

FERRAZ, Silvio

Livro das sonoridades [notas dispersas sobre composição] - umlivro de música para não-músicos ou de não-música para músi-cos/ Silvio Ferraz – Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.

Coleção : ISBN 85-7577-

ISBN 85-7577-169-8

Viveiros de Castro Editora Ltda.R. Jardim Botânico 674 sl. 417Rio de Janeiro RJ CEP 22461-000

(21) 2540-0130 / [email protected]

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Sumário

11 Prefácio – Peter Pál Pelbart

15 Para que mesmo um livro?

25 Projeto do livro

35 A construção da casa...

53 Uma idéia de música

82 “Caminantes no hay camino...”:a composição de ritornelo

109 Em um Livro das Sonoridades,por que não descrever?

123 P.S.(1)

127 P.S.(2)

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para annita

agradeço àqueles que talvez passemescondidos por entrelinhas,

lia, isadora, joanacésar sponton, heitor, rogério costa e,

por que não, os gatos josé e maria

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“algumas coisas que não pudermos escreverse apagarão nesta nebulosa

sonoraonde cada vida possível

não dura mais do que um momentobreve

(que de tão brevenem chegamos a ouvir)”

Annita Costa Malufe

“Uma pequena frase, que basta ouvir uma vez para jamaisesquecê-la.”

Gilles Deleuze

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Prefácio

Seria triste se músicos só tocassem para músicos, pintores sóexpusessem para pintores, a filosofia só se destinasse a filóso-fos... Por sorte, a capacidade de ser afetado por um som, umaimagem, uma idéia, não é exclusividade de especialistas – aocontrário, é uma potência do homem comum. Costuma-sedizer que a política é coisa séria demais para ser deixada namão dos políticos, e talvez o mesmo valesse para a economia,a literatura, a dança, mesmo a música... Esplendor dos trâns-fugas! Há algo mais instigante do que ver como um cineastaaborda um problema político (Godard, em “Nossa Música”),ou como um compositor se refere a uma questão militar (asdeclarações de Stockhausen sobre o 11 de setembro), ou comoum filósofo pensa o cinema (Deleuze em A imagem-movimento)?

Mas a que vem isto tudo, se o livro sobre composição que oleitor tem em mãos foi escrito por um compositor, e parecedestinar-se sobretudo a compositores? Pois, justamente, nadaé menos óbvio. Ao despir-se do jargão técnico da música, de-sertando o hermetismo ressecado dos especialistas, Silvio Ferrazdeborda o circuito bem azeitado da discussão acadêmica emtorno das questões musicais e, a partir de um lugar híbridocavado a cada linha, se lança numa aventura teórica graciosa esoberana, inteiramente aberta a quem se interessa pelas práti-cas estéticas as mais diversas no contexto contemporâneo.Aberta inclusive a quem nada entende de composição musical,como é o caso do autor destas linhas.

É que neste livro das sonoridades não se trata só (o que já nãoseria pouco) de fazer dialogar o domínio sonoro com o visual,o literário, o filosófico, numa salutar transgressão das frontei-

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ras, mas trata-se, como o lembra um de seus fragmentos, de“espalhar ouvidos por toda parte”. É onde a aposta do autorbeira a alucinação. Porém, o que haveria de mais instigantehoje em dia, e também saboroso, num contexto em que a me-diocridade dominante nos converte em zumbis cegos e sur-dos? Que o leitor experimente por conta própria passear pelosfragmentos de Silvio Ferraz, e verá multiplicarem-se diante desi as paisagens melódicas, as texturas sonoras, as personagensrítmicas, as intensidades musicais e não musicais... É que fazermúsica, para o autor, é tornar sonoras as forças não sonoras domundo. Mais do que isso: é desprender-se do passado e dopresente e ir buscar no futuro forças que ainda não nos tinhamsido reveladas – é tornar sonora a potência do futuro.

Uma tal abordagem prospectiva conflui inteiramente com al-gumas das mais contemporâneas tendências da filosofia, deNietzsche a Deleuze. Assim, é compreensível que para darconsistência e concretude a sua abordagem, o autor tenha re-corrido a alguns conceitos provenientes do campo filosóficoatual. Por exemplo, quando define o som como “acontecimentode preensão”, ou avalia a música a partir de seu índice de “des-territorialização”, ou pensa a própria composição como umgiro louco, como um “ritornelo”, ou insiste que há uma repe-tição que repete a “potência de deixar livre a diferença”... Sevários conceitos deleuzeanos, e dos mais complexos, como sevê, dão suporte a essa elaboração sofisticada, em contrapartida,pode-se dizer que esses mesmos conceitos recebem desse usoengenhoso um inegável enriquecimento, uma “prova musical”.

Supondo-se que a um leigo fosse permitida a audácia de adentraro escopo desse livro, eu diria que o autor, ao abordar o temada composição, se deu a liberdade de experimentar um gênerode escrita, de volteio, de corte e de salto, em estreita sintoniacom seu objeto, pondo em marcha, através da escrita (mas ele

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o faz também enquanto compositor!) uma “máquina de atuali-zação de musicalidades virtuais”. Assim, o leitor-ouvinte é con-vidado a experimentar por conta própria os estados transientesde escuta, a potência de desalojamento da música, os pontosde conexão com o futuro nela embutidos, bem como a liber-dade maior – haverá convite mais irrecusável? – a de se dese-nhar o tempo, como diz o autor, ao invés de apenas seguí-loou se colocar nele.

Peter Pál Pelbart

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Para que mesmo um livro?

1.A primeira idéia para escrever este livro é bastante simples:falar de música, mais precisamente de composição musical.Uma segunda idéia se agrega a esta primeira, e também é bas-tante simples, embora mais complicada para um músico: con-seguir falar de música evitando abstrações próprias aos jargõestécnicos da música. Por que isto? É simples. Cada vez que fala-mos de música ou pensamos em música recorremos a um semnúmero de tais abstrações. São possibilidades e mais possibili-dades que buscamos fundamentar como garantia de que, dodiscurso sobre a música, sobressaia alguma música, ou aindafundamentos que empregamos para simplesmente convenceralguém de que uma determinada música vale ou não a pena.Até aí tudo bem. O problema começa quando da simples des-crição, da simples tentativa de convencimento, parte-se para acriação de escolásticas fundadas em um ou outro modeloabstrato de convencimento.

2.De que música eu estarei falando? Existe uma música que qua-se ninguém conhece. Uma música quase que proibida pelasrádios, televisão, salas de concerto, orquestras, grupos demúsica e até mesmo nas universidades e escolas de música.Que música é esta e o que faz com que seja tão temida assim?Não se trata aqui de responder à segunda parte desta questão,aliás já vai longe a época em que começamos a encarcerar nos-sos loucos. Mas a primeira parte é de fácil resposta. Falo aqui

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de uma música realizada por pessoas que não vêem porquerazão a música deva ser sempre aquela e apenas aquela que asrádios, tevês, mídias digitais e analógicas querem como fixas.Não que esta música que poucos conhecem não interesse aosmeios de comunicação, mas simplesmente porque circulam emum meio tão restrito que não justificariam o investimento decapital. No entanto uma coisa é importante de ser salientada:esta música está em constante diálogo com todas as outras, etalvez o seu tema seja justamente deixar-se atravessar por todasas linhas que passam pelo que chamamos de canto, dança, dra-ma sonoro etc.

3.Quando se fala de uma música que pouca gente sabe que exis-te, é mais fácil localizar quais aqueles problemas presentes noque chamamos de discurso sobre a música de um modo geral.Há uma série de discursos que vão desde aquele do jovem re-belde, ao do velho professor, que defende sua cátedra e cujofoco é o de limitar as potências de fazer emergir música, qual-quer música. Toda uma série de codificações e sobrecodifica-ções para submeter a vontade de acordo com uma ordem pré-estabelecida. Quem já não ouviu debates do tipo racional não-racional, popular não-popular, corporal intelectual, falsos pro-blemas, visto que desta lista uma só coisa é certa: uns são a cara-metade dos outros, ao que não existiriam sem o seu inverso.

4.Beirando muitas vezes uma literatura sem graça, em um jogosimples de criar metáforas e mais metáforas – as piores metá-foras que existem, pois se pretendem como a explicação dealgo –, assiste-se hoje proliferarem questões e explicações que

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raramente encontramos no ofício de se escrever música, masque a ele se dirigem. É claro que ouvimos o rumor do mar emLa Mer de Debussy, uma tempestade em Vivaldi, a tristeza emum canto de Verônica durante uma procissão, mas pouco im-porta se isto vem do título da peça, de sua sonoridade ou deseu entorno. Tanto Vivaldi, quanto Debussy, quanto o com-positor religioso, foram atraídos por um efeito, por uma forçaquase que sem nome, a qual tem a potência de tornar sonora atemperatura, de tornar sonoro o movimento, de tornar sono-ra a força da tempestade e de tornar sonora uma situação nãosonora como a tristeza. Como diz Debussy em Monsieur Crocheantidilettante,1 realçando na música um ponto em que “não hámais imitação direta, mas transposição sentimental daquilo queé ‘invisível’ na natureza”. De onde vem este efeito? Se vem dohábito de ouvirmos o mar, se vem do hábito de associarmossom e título, se vem da religiosidade quase pagã de um povo…Seja lá como for, existe uma grande distância entre descreverum efeito, entre narrar o quase inenarrável da sensação quedesencadeia uma escuta musical, e um processo de abstração ecriação de um quadro de previsibilidade para uma próxima es-cuta. Está certo! Não tratarei então de pensar ou falar por quealguém, ao ouvir La Mer, ouve o mar, mas em pensar comoDebussy e outros músicos brincaram com sonoridades, lem-branças, jogos de força, tamanhos… assim como trouxerampara o som a grandeza, a força, a cor, o cheiro do mar.

5.Uma área bastante próxima à da criação musical é aquela daanálise. Quando ouvimos e nos interessamos por uma música,surge sempre um interesse grande em saber como aquilo foi

1 Debussy, Claude. Monsieur Croche et autres écrits. Paris: Gallimard, 1971.

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feito, como é que conseguiram fazer com que uma coisa quenão existia em nós aparecesse na forma de uma sensação mui-tas vezes inesquecível. Acontece que, com a reviravolta de Kante da fenomenologia, a análise passou a ser a redução a regras eleis que estariam associadas aos fenômenos, uma busca cons-tante por uma razão suficiente, e a produção crescente de dis-cursos afastando mais e mais o simples contato pela mediaçãode um discurso necessário. Até mesmo um adolescente pensaassim. Se alguém não gosta de uma música que outro gosta,recebe sempre a resposta “você não entendeu nada”, como sehouvesse algo para ser entendido. Mas é o simples contato quegera coisas. É o que se vê nas cartas de Van Gogh, simples-mente descrever.2 Escrever uma carta narrando alguma coisa,e se valendo das palavras, das frases, das construções formaisda frase, das acentuações do texto, para produzir um efeito.Mas produzir um efeito não é fácil. Escrever sobre uma músi-ca que se escutou, sobre uma paisagem que se viu ou pintou,sobre um fato do dia que nos chamou a atenção não é fácil.Para escrever, nos valemos da palavra, da nossa língua, e sabe-mos o quanto nossa linguagem é atravessada de todo um modode ver, de pensar; mesmo se nos valemos das palavras parafalar de nossos sonhos e se é com elas que imaginamos o que ésem limite, muitas vezes elas são o nosso limite, ou nosso cam-po de batalha. E se a palavra é um problema, imagine-se o somsem palavras, imagine-se Debussy ouvindo o mar e a sua vio-lência: o campo de batalha de Debussy é a música. Daí algointeressante a ser resgatado pela análise musical: descrever eproduzir um efeito e se fazer dentro de um campo de bata-lha… a análise é simplesmente um diário de guerra… as me-ditações do imperador Marco Aurélio. Italo Calvino descreve

2 Van Gogh, Vincent. Cartas aThéo. Trad. Pierre Ruprecht. Porto Ale-gre: LPM, 1997.

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bem esta batalha ao nos lembrar de Leonardo da Vinci que ten-tava escrever sobre a baleia; a força, a leveza, a velocidade, aviscosidade, da baleia no mar.3

6.“O quante volte fusti tu veduto in fra l’onde del gonfiato e

grande oceano, col setoluto e nero dorso, a guisa dimontagna e con grave e superbo andamento!

…E spesse volte eri veduto in fra l’onde del gonfiato e grandeoceano, e col superbo e grave moto gir volteggiando in fra

le marine acque. E con setoluto nero dorso, a guisa dimontagna, quelle vincere e sopraffare.

…O quante volte fusti tu veduto in fra l’onde del gonfiate e gran-

de oceano, a guisa di montagna quelle vincere e sopraffare, e colsetoluto e nero dorso solcare le marine acque, e con superbo e

grave andamento”.

Leonardo da Vinci,Codex Atlantico, fl.265

7.Lendo livros de outras artes é comum o encantamento simplese direto que se tem com imagens e frases. O encantamento deGenet pela escultura, pelos desenhos, a pintura e a esculturade Giacometti. A fala nem sempre linear de Francis Bacon em

3 Aurélio, Marco. Meditações. Seleção tradução e introdução de WilliamLi. S. Paulo: Iluminuras, 1995; Calvino, Italo. Lezione Americane: SeiProposte per il Prossimo Millennio. Palomar. 1988. (trad. bras. Ivo Barroso,S.Paulo: Cia. das Letras, 1990).

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suas entrevistas referindo-se a Van Gogh ou mesmo a Giaco-metti. A poesia que Ferreira Gullar tece no falar da arte brasi-leira. No modo como fotógrafos registram artistas trabalhan-do em seus ateliês. Raramente temos esta luminosidade todaem nossos trabalhos de análise musical (talvez não se veja tam-bém nos trabalhos de análise pictórica ou de alguma críticaliterária). O que se tem, lado a lado a uma temática móvel,transiente, é quase na maioria das vezes a sombra fixa destamobilidade, sombra dura e sem graça de algo móvel que esca-pa por entre os dedos.

8.Um pouco dos problemas que encontro no que chamamos deanálise musical situa-se entre dois pontos: o excesso de abstra-ções que se interpõem entre alguém e sua escuta. Dentre taisjogos, o mais conhecido é o da música como signo. Signo dequê e para quê? Ouço Vivaldi. Ouço sua louca vontade de pin-tar o mar, não a de representar o mar e sua tempestade, talqual acredita uma linguagem de comunicação. A tempestade-música de Vivaldi não se distingue da tempestade, não há umae outra, há somente um bloco tempestade-música. Pintar atempestade no mar é, antes de mais nada, trair o mar e a fúriada tempestade. Desfazer tempestade e mar em seus afetos, osmais moleculares. É também desfazer os significados da tem-pestade e do mar, desfazer tudo em partículas cada vez meno-res e já sem significado, sem sentido claro, até que tudo isto setransforme, como mágica, em harmonia e jogo rítmico-meló-dico pertinente e, quem sabe, revolucionário para uma época.Vivaldi não opera como nossos publicitários que, ao desenha-rem o menor dos logotipos, ao formularem a mais curta dasfrases, operam um sistema de captura e sobrecodificação que

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prevê leituras e leituras, sempre ligando um pequeno sinal auma história... ao que eles, de um modo bizarro, chamam de“conceitos”. Não, não há tal semiótica de antemão em Vivaldi.Ou, se há uma linguagem, uma língua ou um código, estesnascem junto com o que dizem. E vem daí o que localizo comouma armadilha para qualquer pessoa que queira se aproximarda música, e sobretudo para o jovem compositor: a falsa per-gunta. Perguntar-se: o que que isto quer dizer? o que estamúsica representa? São falsas perguntas cuja resposta simples é“nada”. Mas há sempre um professor, o “mestre-escola”. E oséculo XX, exagerando e embaralhando o binômio forma ematéria, nos legou dois tipos de professor. Primeiro o formalistaque diz “a música é a expressão de uma forma”; depois o apai-xonado que realça: “a música fala da alma e da essência”.

9.Qual disciplina musical fala do movimento? Qual fala da arti-culação de tempo? Qual nos fala como encadear e conduzirum ouvinte? Acredita-se que estejamos falando disto, primei-ro, ao se falar da forma; crença antiga de que se deve falarapenas das essências formalizáveis, estáveis, e não das aparên-cias, instáveis, dinâmicas. E, segundo, quando se fala das ca-deias sígnicas amostradas e hierarquizadas pelas semióticas: é a“crença antiga”, agora ampliada para aquilo que antes pareciaimpalpável… a psicologia da arte, um conteúdo para a forma.Porém a idéia é sempre a mesma: existe uma música lá e umouvinte-compositor etc. cá. Tudo separado, ou unido por al-gum bonito conceito abstrato que fale que eles estão separadosmomentaneamente, mas se atualizaram juntos. A estratégia deconviver com isto é que leva à constante busca de legitimaçõesque um jovem compositor usa para justificar suas peças – como

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se fossem grandes tratados de uma ciência imaginária. Ora elese agarra na idéia de música-igual-cadeia-de-signos, ora na idéiade música-igual-esquema-formal.

10.No domínio mesmo da arte, críticos e artistas falam em repre-sentar, em copiar, em mimetizar. Francis Bacon, em uma desuas entrevistas,4 lembra do esforço de jovens artistas tentan-do explicar por que cargas d’água juntaram um punhado deareia num cantinho, ao que chamam de “uma instalação”. Ésempre a presença do professor, do significador, do codificadorde um código que não funciona sozinho. Não falo aqui do pro-blema de remissões que uma música possa fazer a uma sensa-ção, ou mesmo a outra música; ou ainda de escritos que nosfalam de um quadro, ou de uma escultura, escritas forçadaspor uma forte sensação, como o fez Jean Genet ao escreversobre as esculturas de Giacometti.5 Ali, o não narrável geratodo um vocabulário para tentar falar um campo inteiro deproblemas. E o vocabulário é o que está aí, porém, forçadopara seus limites, como se estivesse falando pela primeira vez.Van Gogh fala em tentar representar os apaixonados pelo con-traste forte entre o vermelho e o amarelo, a tristeza pelo verdee pelo azul, e assim vai. Mas não é necessário confundir essanecessidade terminológica como permissão a uma redução docampo de visão. As frases de Van Gogh não delimitam um cam-po semiótico a ser estudado para aplicações futuras, em classi-ficações sígnicas “legitimadas” e de eficácia “garantida” pelogrande gênio que ele foi, mas sim para operar multiplicações

4 Bacon, Francis. Entretiens. “Col. arts-esthétique”. Ligugé: Carré, 1996.5 Genet, Jean. L’ Atelier d’ Alberto Giacometti. Paris: Gallimard, 1979.(Trad. bras. Célia Euvaldo. S. Paulo: Cosac&Naify, 2001).

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sígnicas. Para compreender o quanto as dimensões se entre-cruzam, as cores de Van Gogh, ou as sonoridades de Messiaen,levam nossas faculdades de sensibilidade, entendimento e ra-zão ao colapso, naquilo que o barroco chamou de um acordodiscordante (accord-discordant), acorde destoante. E não exa-tamente a uma convergência explicativa, como pretende o cam-po comunicacional.

11.Idéia versus efeito. Numa música, o que é que mantém juntotudo isto que componho, toco ou ouço? Sem dúvida existe umponto do qual vale nos afastarmos por algum momento, aque-le em que compor é tecer uma seqüência teoricamente expli-cada de efeitos ou gestos ou símbolos ou truques, e buscar umoutro modo de ver as coisas que seja menos dependente detoda uma teoria.

12.Talvez um código opere por simples hábito, e não haja códigonenhum, apenas uma empiria, assim como os gatos que miampedindo por carinho-comida-calor, ou que respondem a al-guns desses ruídos que chamamos de palavras.

13.Por fim uma última razão para se escrever este livro. No finalde 1996 defendi meu doutorado. Na banca, estava o filósofo eamigo Peter Pál Pelbart. Sua função era aquela de ver se eutinha cometido muitas bobagens ao tentar um diálogo com opensamento de Gilles Deleuze. Aprovado o trabalho, não foino entanto esta a lembrança que me ficou de Peter, mas sua

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última pergunta: “em termos de composição musical, o quevocê faz com o futuro?” Custei a entender a pergunta, e seagora já entendo, ainda não sei se consigo respondê-la. Maseste livro fica como um exercício de tentar pensar a irrupçãodo futuro na composição musical e a idéia é pensar isto de ummodo que possa ser lido não apenas pelo músico, mas por qual-quer outra pessoa. Para compor este terreno me valho de ima-gens: imagens visuais – sobretudo de Paul Klee –, imagenssonoras, pequenos relatos, descrições de composições e escu-tas e algumas idéias esparsas que acompanharam a realizaçãode minhas composições mais recentes.

14.Para dialogar com tudo isto que venho pensando, me valhomuitas vezes da presença do pensamento de Gilles Deleuze. Oproblema da escuta do futuro, da presença do futuro, das for-ças do futuro na música, isto tudo volta aqui. Mas volta comopotência de fazer emergir idéias, entusiasmo musical e não comopensamento filosófico-cognitivista-semiótico. Vale lembrar oque disse Álvaro de Campos a respeito de Fernando Pesssoaquando este se referia às idéias de Alberto Caeiro, em suas “No-tas para a Recordação de meu mestre Caeiro”: “entusiasmaram-no as possibilidades metafísicas desta teoria súbita, indepen-dente da verdade ou falsidade dela. Estes estetas são assim.”6

6 Pessoa, Fernando. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Lisboa: EditorialPresença.

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Projeto do livro

15.Ao se falar em composição musical, como evitar a aridez dodiscurso abstrato e, ao mesmo tempo, a distância que causauma partitura para a leitura – este universo que é concretopara o músico, mas intransponível ao leigo? A primeira idéia éa de tentar escrever um livro sobre música que traga seus exem-plos tão vivos quanto um livro de poesia ou de pintura, emque tudo está ali direto para ser lido ou para ser visto, já quenão temos como ouvir apenas olhando para o papel, e quandoouvimos nem sempre conseguimos “visualizar” o que se passaali. A principal idéia é usar dois domínios paralelos, a pintura ea poesia, que em tantas vezes tangenciam o da música, paracriar esta tentativa de trazer uma leitura que não dependa dapartitura (seja ela uma audiopartitura ou uma partitura tradi-cional), lembrando que todas as artes se tocam em alguns pon-tos. Quando se fala de movimento, quando se fala de sístoles ediástoles, contrações e expansões, é como se o suporte fosseretirado de campo.

16.Falamos de movimento, mas é preciso dizer que não se tratado movimento que imprimimos metaforicamente na matéria.Nem do movimento como mera abstração, como um conceitoisolado. Vale sempre lembrar um pouco do percurso históricoda nossa música ocidental: o movimento – esta associação dosom com algo que se desloca no espaço e no tempo – remeten-do a todo um jogo de experimentação sonora presente nas obras

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vocais do renascimento, quando se tornaram sonoras as cha-mas das velas, o vento, o choro, a luz da lua, alguém que cor-re… impregnando o espaço melódico quase estático da voca-lização medieval com uma série de verdadeiras pinturas sono-ras, sobretudo entre os madrigalistas como Luca Marenzio,Gesualdo di Venosa e por fim Claudio Monteverdi. O movi-mento do qual falo agora, já passado muito tempo, é talvezoutro, mas sem deixar este primeiro de lado: aquele da escuta,este termo que Pierre Schaeffer elevou à categoria de concei-to. Ouvir as sonoridades, os coloridos (numa escuta que metraga luz, que fale de luz e de sombras), ouvir certas formas,certas seqüências. É deste lugar que não evito dizer que algunslivros de artistas como Paul Klee, por exemplo, são profunda-mente musicais. Outros, como os escritos de Fernando Pessoaem Alberto Caeiro e Bernardo Soares, ou ainda os pequenospoemas franceses de Mirlitonades de Samuel Beckett são tam-bém musicais. E por não serem música, ao menos a alusão quepode ser feita é que “tais coisas soam como música”.

17.Soar como música. O que faz com que se possa dizer que algosoa como música aos ouvidos? O que define a musicalidade,esta faculdade de algo se tornar música? Em que ponto possodizer que um movimento é musical e outro pictórico e outroliterário etc.? Este é o campo em que este livro vai se guiar.

18.“um hálito de música ou de sonho,

qualquer cousa que faça quasi sentir,qualquer cousa que faça não pensar”

Bernardo Soares, “§ 313”Livro do Desassossego.

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19.Não se trata de responder a perguntas, mas dialogar. O pri-meiro diálogo é com a imagem visual. Nem de traduzir umdomínio sonoro a um visual, ou vice-versa. Mas dos encontrose ressonância que podem estar em uma imagem (um quadro,um tapete oriental, um desenho abandonado, um poema, umafrase). Nem todo mundo lê uma partitura, nem todo mundocompreende a terminologia secreta de instrumentistas e com-positores, mas posso pensar em “imagens de som”, e por vezesaté mesmo imagens de música sem referência a som. É umpouco do que fez Paul Klee ao desenhar a música de Bach,Mondrian ao desenhar o bee-bop e Matisse ao recortar e colaras peças de Jazz. Ouvir o ponto, a linha e o plano. Mas ouvir osciclos, os pequenos ritornelos de idéias, de sons, de imagens,de paisagens, em uma poesia, isto também soa como música.

20.Falar de musicalidade, por exemplo, na poesia, não é necessa-riamente falar da sonoridade das palavras que aparentementeaproximaria música e poesia (embora elas também concorrama uma porção de musicalidade). Nem tampouco da transposi-ção de uma trama de relações estruturais para uma imagemvisual que apenas refletiria minha percepção de algumas redu-ções como agudo-grave, forte-fraco, claro-escuro, denso-ra-refeito. Não me refiro a traduções, nem a transposições. Exis-tem imagens na poesia e na pintura que não são imagens vi-suais, nem sons, mas sonoridades, musicalidades, uma potên-cia de tornar-se imagem musical. Existe musicalidade na poe-sia e existem modos de se ouvir uma música, de se perceberelementos que chamamos de musicais através de um poema. Emuitas vezes isso é muito mais claro do que fazer alguém ouviralgo e, sem dúvida, muito mais acessível do que fazer alguém

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ler uma partitura: uma ressonância, cujo efeito não é uma trans-posição em que uma coisa se mantém como referente à outra,mas simplesmente esquece da outra porque não precisa dela.Quando uma pedra cai na água, a água não precisa da pedrapara continuar ondulando, ela ondula; é próprio da água on-dular quando alguma coisa se choca nela, e pronto. Não há aimagem da pedra na água que ondula. Há para o detetive, masnão para a água que ondula.

21.“E rasgam-se os boulevards, em verdade, numa idéia só as-

cendente – e desliza a vida: rolam os automóveis, os trens –,deslizam nos largos passeios de asfalto citadino a multidão

dos transeuntes. E com efeito também todo este silêncio sereúne em música; não realmente em música, mas na idéia

duma melodia impossível que não se ouvisse, e fosse apenasum bafo: um hálito inconstante, perfumado e, espasmo –que nós aspirássemos como se ouvíssemos em harmonia”.

Mário de Sá-CarneiroCarta a Fernando Pessoa

Lisboa, 17 de julho de 1915

22.Música é aquilo que se faz ao mesmo tempo em que se desfaz,que ganha uma realidade a cada instante, sempre lançada sobreo futuro. Quando se ouve uma música pela primeira vez, é nofuturo que esta música está; ela cruza aquilo que não temos amenor idéia com um pouco daquilo que já conhecemos. Daí amúsica seguir a dinâmica da repetição, não a da simples reite-ração circunscrita a um objeto, ao fenômeno sonoro, mas deuma outra repetição, totalmente a parte, em que a música não

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repousa apenas no sonoro. A repetição vista como o ato derepetir sempre a condição de trazer o diferente, de permitirnovas conexões. E neste sentido, idéias tradicionais, como aque-la que atrela o serialismo à diferença e o minimalismo à reite-ração, podem até mesmo ser postas pelo avesso, revelando-senovamente o futuro como potência de escuta.

23.Desfazer a idéia de valoração e hierarquização musical. Abrirespaço para um problema que é o de podermos ouvir tantouma música quanto outra, de podermos transitar de uma mú-sica a outra, de uma cultura sonora a outra, sem interpor umaparede ensurdecedora. É claro que conhecemos pessoas e pes-soas que se apóiam em tais paredes, tais muros intransponíveis,seja o “erudito” que não ouve “música de massa”, seja o sujeito“popular” que não ouve nada além das canções e beats cíclicos;seja o ocidental que maldiz o oriental, ou vice-versa, mas istoé uma outra história.

24.Uma questão-imagem orienta em parte este livro: compreen-der como a música se move, como o movimento nasce na mú-sica, o que faz alguém ficar um palmo acima da cadeira en-quanto ouve a Sagração da Primavera de Igor Stravinsky ou Tinnitusdo compositor eletroacústico brasileiro Rodolfo Caesar. É claroque não responderei, mas tentarei me debater com esta idéia.

25.De um modo geral, meu diálogo será em muitos momentoscom as imagens desenhadas na filosofia do francês Gilles Deleuzeem seu pensamento da diferença, ou do acontecimento. Des-

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tas imagens, a de ritornelo será a mais recorrente. Não se tratade uma referência acadêmica, forma de tornar legítima algumaafirmação com base no uso de um nome já aprovado.7 Trata-se sim apenas de tecer um diálogo e, por muitas vezes, de evo-car alguns nomes como um pedido de ajuda para não me sentirfalando sozinho. Por outro lado, não me é mais possível notarexatamente de onde vem uma idéia ou outra do que tentareiescrever aqui. Isto porque muito do que escrevo e venho pen-sando vem atravessado pelas imagens de Deleuze e Schaeffer enão me é mais simples localizar frases, páginas. Mas um outrolembrete é necessário: “ritornelos”, “escuta”, “objeto sonoro”,não são termos, não são palavras soltas, imagens soltas no ar.São conceitos, verdadeiros conceitos. Schaeffer criou concei-tos em seu livro, assim como Deleuze o fez na filosofia, lugarpróprio a se inventarem conceitos. Então, quando falo aqui deescuta não estou falando de escutar, de “prestar o ouvido a”,não é ouvir no sentido de audição, mas trata-se sim de umconceito. Objeto sonoro não é só um objeto, um som, muitomenos um objeto que produz som. Objeto sonoro é um con-ceito e liga-se a outros conceitos. É todo um quadro de con-ceitos cuja porta de acesso é o livro de Schaeffer e as recriaçõesde Michel Chion e François Bayle em seus livros e artigos.8

7 De Gilles Deleuze: Différence et Répétition. Paris: Minuit, 1968 (trad.bras. Luiz Orlandi e R. Machado, Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1988);Francis Bacon:Logique de la sensation. Paris: Ed. de la Différence, 1981;Péricles etVerdi:A filosofia de François Châtelet. Paris: Minuit, 1988 (tra.bras. H. Lencastre. Rio de Janeiro: Pazulin, 1999). Em parceria comoutros autores: Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. Mille Plateaux. Pa-ris: Minuit, 1980. (Trad. bras. em 5 vols., S.Paulo: Ed.34); Deleuze,Gilles e Parnet, Claire. L’ Abecedaire de Gilles Deleuze. Paris: VideoEdition Montparnasse, 1996.8 Chion, Michel. Guide des objets sonores. Paris: Buchet/Chastel-INA, 1983;Bayle, François. Musique acousmatique. Paris: Buchet/Chastel-INA. 1993.

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26.Uma questão fundamental: como aproximar uma idéia do somcomo fenômeno à idéia do som como acontecimento? Comofazer Schaeffer conversar com Deleuze? Ora, Schaeffer dificil-mente conversará com Deleuze. O passo que falta a Schaefferé justamente o de abrir mão do fenômeno, notar a música nãomais como uma cadeia de sons a serem qualificados e classifi-cados, mas de um jogo em que entidades virtuais, puras inten-sidades sem forma nem matéria, próprias do futuro, ganhamaparência concreta passo a passo. Sendo assim, o foco da tal daescuta não seria o de perceber tais elementos a partir de um ououtro padrão ou tipologia, mas aquele de “preender” um flu-xo, tarefa simples de amalgamar, de tornar concreta uma es-cuta e não um ou outro som.

27.As principais imagens deste texto virão da minha prática comocompositor, dos problemas que enfrento compondo... com-pondo primeiro grandes texturas, depois momentos harmôni-cos... até ter conseguido enfrentar a idéia de usar melodias(essas baseadas em cantos de pássaros e na idéia sempre pre-sente do ritornelo).

28.O assunto do livro é a composição musical. Este é meu assun-to e, se vou falar nele, é bom que afaste daqui um ponto nebu-loso que orienta jovens e por vezes velhos compositores. Daí aoutra coisa que pretendo com este livro. Não só realizar estavontade de querer visível o que é sonoro ou de querer sonoroo que é visível, ou de pensar a música longe da fenomenologia.Mas também uma vontade, talvez menos “digna”, ainda que

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tão necessária, a mim, quanto esta primeira de dimensão posi-tiva: preocupa-me a composição musical, o modo adotado parase falar dela. Esta maneira enevoada das fenomenologias, dametafísica, ou dizendo mais claramente, dos analistas musicaise dos professores de plantão. O que aprendemos a falar sobrea composição musical muito pouco diz da composição. Falarsobre uma composição narrando estratégias é sempre a falsifi-cação de um percurso. Não que eu não goste de falsários dediscursos. Pelo contrário, é cheio de um mistério estranho ouvirVarèse quase que mentindo sobre como compôs suas peças, amaneira com que ele entremeia ciência, filosofia, religião, todauma linguagem secreta que afasta mais e mais o pretendente aosaber do objeto que deseja conhecer e faz crescer a figura demago do velho Varèse. Isto sem dúvida encanta os jovens. Aliás,Nietzsche já nos alertara sobre os efeitos encantatórios da me-tafísica e da fenomenologia sobre os espíritos jovens.

29.Falar da composição musical, dos problemas que nos tomamenquanto escrevemos uma música, em nada pode traduzir oato de compor, senão anexar-se a esta experiência como maisuma linha. Não se trata apenas de dizer “a forma musical nãodeve ser vista como uma fôrma”, mas de pensar a composiçãonão mais como uma questão com respostas, mas como um cam-po problemático, que não traz mais consigo suas respostas, ecujas respostas só se obtém de uma maneira: compondo, fa-zendo soar o tempo, fazendo soar a memória, os afetos, ospequenos fetiches.

30.Devo parar de ficar rodando em círculos cada vez mais abertose me afastando de minha questão. É preciso, neste momento,

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manter distância de algumas idéias que, se interessantes emnossas adolescências, esvaziaram-se com o passar do tempo.Volto-me assim para a seguinte pergunta: o que torna umasopa sonora, um amontoado de sons, uma música? Sem dúvidanão é o encantamento que existe ao conhecermos ou não aforma de construção de uma obra. Saber a “estrutura”, saberas resoluções formais de alguma coisa pouco me ajuda a saberporque o som sofre esta transformação – que está fora dele –de tornar-se música. Quantas vezes vejo alunos de composi-ção organizando sons e tendo por resultado seqüências enfa-donhas de sonoridades (às vezes até de interesse passageiro).Os artifícios são muitos para se salvar uma música: criar umaharmonia, criar uma batida rítmica clara, fazer pequenos ci-clos, usar sonoridades estranhas (adequadas às novidades deépoca… os maneirismos eletroacústicos), ou optar por sono-ridades já aceitas. Uns põem as respostas nos artifícios (daí oartesanato necessário… voltarei a falar nisto), outros falam datradução das paixões da alma, sobre a essência dos afetos, emfragmentos melódicos e rítmicos, ou mesmo em seqüênciasmais concretas de sons, outros ainda inebriam-se com o feti-che das técnicas e tecnologias que empregam na construção deseus “mécanos”. Nem falei aqui daqueles que se perdem deci-frando o código místico dos significados das seqüências sonoras.

31.São muitas as notas de advertências e mesmo assim serão mui-tas as confusões de leitura. Mas vale lembrar que aqui o ato decompor música em nenhum momento será visto como a buscade uma verdade, de uma verdadeira fórmula composicional. Éhora de invertermos aquele pensamento que há muito vemfazendo com que reverenciemos o modelo ideal. Não há aquium modelo ideal, e o compositor não será visto como o pre-

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tendente ao trono do mundo ideal. Também não reverencia-rei o gênio, a idéia romântica do criador de originais, dos ver-dadeiros originais. Haverá apenas um relato direto de um modode pensar a música, de pensar alguns conceitos envolvidos emmodos de ver o ato de escrever música. Não penso em ummétodo, em um sistema correto de fazer música, mas em al-guns pontos que vêm me norteando e ajudando a pensar amúsica e talvez a arte de um modo geral. Devemos aceitar aidéia de Berlioz de nos livrarmos do “zelador do templo darotina”.

32.Optei pela escrita por blocos – quase aforismos. Não afeita adesenvolvimentos, a grandes pensamentos cheios de continui-dade. Afeita sim à colagem, a sobreposições e justaposições –alternâncias e entrelaçamento – sigo aqui um modo que poderessoar a maneira de compor de muita gente. As coisas funcio-nam como que por encaixe e algumas justaposições. É maisfácil e aparentemente mais livre dispor algumas idéias, tomá-las como centro, dar alguns giros à sua volta; encontrar umalinha de fuga que leve a outra questão, estabelecer um novocantinho para novos giros. Depois voltar, voltar e voltar mui-tas vezes, refazendo os cantinhos, retomando os eixos, encon-trando novas escapadas. Algumas idéias voltarão mais de umavez, a cada vez imantadas por um novo ambiente. Justapor…talvez seja apenas o sinal de não saber, ou dificuldade em com-por desenvolvimentos. Simplesmente fazer ritornelos.

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A construção da casa...

33.Compor é como fazer uma casa. É desenhar um lugar. Os ele-mentos para esta operação, cada um os toma de um canto. Eaqui as harmonias, as séries, as pequenas reiterações, as sono-ridades reverberantes, os pequenos jogos de ressonância sãoaquele material que utilizamos para desenhar este lugar. É comesses pequenos elementos colocados em círculos que desenha-mos um lugar. É como desenhar um espaço físico, como de-marcar um território, um nicho. Algumas folhas são reviradas,alguns gravetos são quebrados, faz-se xixi em alguns cantos, es-palha-se um cheiro pelas bordas do lugar, descascam-se algumasárvores, desfolha-se alguns galhos, cavam-se alguns buracos.

34.Fazer um território, fazer uma casa ou nicho é como que dei-xar claro que ali vive alguém, vive alguma coisa. “Quando éque cantarolo?” se pergunta Deleuze em Abecedaire: “cantaroloquando limpo a casa e tenho um rádio tocando ao fundo. Istoquer dizer: estou em casa. Cantarolo também quando não es-tou em casa e tento voltar para casa quando a noite cai. Horade angústia, procuro meu caminho e tomo coragem ao canta-rolar /…/ e depois, cantarolo quando digo adeus, vou embora eem meu coração te levarei”. É isto o ritornelo, não é apenas voltarao mesmo ponto, retomar do início, mas uma questão de ter-ritório, de lugar. De escolher, fazer, sair e retomar este lugar.

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35.Em Deleuze, o conceito de ritornelo está associado a outroconceito. Afinal, todo conceito se associa a conceitos e comeles forma sua família, seu canto, deles foge e deles se aproxi-ma. O ritornelo dança junto com a idéia de devir. O que vema ser este outro conceito: devir? Fazer devir aqui, ao menoscomo se pode ver, ao pensar a música e talvez as outras artes,é acoplar-se à forças não humanas que nos dragam para fora denossa humanidade. É aqui que opera o compositor quando tornasonoras certas forças que não nos são sensíveis, não são sono-ras – nem presente, nem passado. Esta é a ligação da músicacom o som, não organizar sons, mas, se o tópico é organizar,tornar a organização sonora. Tornar sonora uma estrutura derelações. Assim, os primeiros passos de uma peça são o dese-nhar desta cantilena, deixando claro a quem ouve que existeuma sonoridade em círculo (um intervalo musical, algumasnotas, um som concreto, um tipo de ressonância, um gesto,uma figuração melódica ou harmônica), que ali mora alguém.A música passa a ser pensada então não só por suas evidênciascatalogáveis (os temas recursivos, as seqüências harmônicas eseriais), mas também por aqueles pequenos pontos circulantesque vivem dentro dessas evidências catalogáveis. Assim, nãopreciso pensar em um tema, mas em pequenos componentesdeste tema; não preciso pensar em uma forma musical, masem uma seqüência de passos em que demarco alguns lugares edepois desfaço esta demarcação. Isto porque estou pensandoneste jogo com várias etapas, com vários momentos.

36.“Dentro da casa-de-fazenda, achada, ao acaso de outras várias

e recomeçadas distâncias, passaram-se e passam-se, naretentiva da gente, irreversos grandes fatos – reflexos, re-

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lâmpagos, lampejos – pesados em obscuridade. A mansão,estranha, fugindo, atrás de serras e serras, sempre, e à beira

da mata de algum rio, que proíbe imaginar. Ou talvez nãotenha sido numa fazenda, nem no indescoberto rumo, nem tão

longe? Não é possível saber-se, nunca mais”.

Guimarães Rosa, “Nenhum, nenhuma”Primeiras Histórias

37.Se desenho um lugar, e faço com que o ouvinte viva um pouconeste lugar, posso brincar também de fazer com que ele sesinta tranqüilo naquele lugar, ou com que tenha esta tranqüili-dade abalada quando, de repente, e isto tem de ser de repente,o faço sentir-se arrastado para fora daquele lugar: era nistoque consistia o jogo de modulação do classicismo, levar o ou-vinte para passear em um ponto em que ele não se reconheces-se mais e cujo ponto de chegada ele desconhecesse, ou ainda,se o conhecesse, seria apenas de leve. O efeito surpresa! Masque surpresa é esta? Só há surpresa se houver preparação deum lugar cômodo a ser abalado. Para que alguém se surpreen-da é necessário que este alguém fique tranqüilo acreditandoque tudo já está estabelecido. E para fazer este lugar, o recursotalvez seja este de reiterar elementos, de fazer com que as coi-sas girem numa pequena roda, uma cantilena, um ritornelo,uma ladainha, um caleidoscópio, uma caixinha de música. E asurpresa é justamente aquele momento em que alguma coisafoge da ladainha, alguma coisa que está dentro da ladainha,algo que até poderia ser previsível, mas que não era. De re-pente uma nota trai a harmonia, desfaz o perfil principal dafrase musical, uma sonoridade leva para um outro espaço deressonâncias.

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38.Esses momentos não ocorrem só vez ou outra. A música éfeita desses jogos de criar e desfazer lugares. Você escolhe umcentro, gira em torno dele com alguns elementos e, de repen-te, é atraído por outro centro, e daí retoma o movimento. Eisto não tem nada a ver com ordenar sons, com fazer interpo-lações, com limitar-se a fazer permutações, com colocar umelemento em loop… aliás, fazer loop é um inferno: ele é a lava-gem cerebral posta em música, não há loop na música das tri-bos, há sempre as nuances, só o ocidente eletrônico imaginouesta coisa terrível que é a trilha de videogame, a trilha de caixaseletrônicos, a trilha dançante dos loops. Por que o ritornelonão é o loop? Porque não estamos falando da matéria sonora,nem da forma que ela possa ganhar em um espaço-tempo. Fa-lamos de construir o lugar, de fazer um canto, de girar emtorno de um centro, e tudo isto só surge porque, antes dolugar, está a presença constante das linhas que me tiram dolugar. Que linhas são essas?

39.Não se compõe o lugar com uma matéria que tem uma forma,ou seja, com linhas duras… ou mesmo com uma forma preen-chida de matéria, mas com estas formas e matérias desman-teladas. Há antes o desmonte e o que vai e vem são partículasque giram sem um centro dado de antemão. O que faz Beethovenem suas Variações sobre tema de Anton Diabelli, ou Bach nasVariações Goldberg, fragmentar e fazer aparecer pequenas partí-culas para novos ritornelos. Ritornelos que não estarão maisatados às forças do passado e presente, como matéria ou for-ma, mas a outras forças. De onde surgem tais partículas? Éaqui que podemos falar uma primeira vez em forças que estão

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no futuro. Estão no futuro porque são improváveis, nada dopresente ou do passado me ajudam a deduzi-las. São tais partí-culas que chamamos de material composicional, e o desman-che da forma e da matéria, o modo deste desmanche, já é tam-bém uma força do futuro, ou que conecta com o futuro. Aocontrário do que se ensina nas academias de criação, nunca secompõe com a forma musical ou com a matéria sonora, mascom partículas improváveis que, se foram um dia forma e ma-téria, o foram por pouco tempo. Trabalhar diretamente sobreo tema, fazer um tema em uma tonalidade qualquer, usandonotas de certo modo previstas, este é o jogo de algumas can-ções populares. Daí a canção popular só conhecer a recorrência,a reiteração direta, ficando o jogo de partículas para a poesiaou para a harmonia improvável, como em Tom Jobim.

40.No ritornelo o que volta não é o elemento, não é a forma nema sonoridade. Muito embora aquilo que volte se confunda comtais aspectos da música, o que volta é a potência de fazer músi-ca, a potência de fazer e desfazer lugares, potência de escuta. Eaqui, o loop do DJ pode até se parecer com um fazer lugar,aparecer como ritornelo, isto antes daquela fase do loop emque o que volta se torna a cadeia, a casa fechada. Compor umritornelo é também compor uma cela. Um quarto não só abri-ga, ele obriga e impõe uma dimensão. Daí a necessidade deromper o quarto. Quebrar as amarras do quarto e percorrerumas de suas linhas maleáveis. E achar a saída só pode ser feitode um modo: experimentando. Não há saída prevista em umacela, para a cela é improvável que algo escape. Uma idéia depossibilidade está associada à cela, mas uma idéia de impossível,de improvável, de virtual está associada ao plano de fuga.

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41.Pensar o ritornelo é assim partir desses pequenos giros, volteios,ladainhas de pequenos grãos, fazendo a música andar passo apasso, fazendo com que as casas sejam construídas e abandona-das, ou destruídas. E, sendo tudo passo a passo, não é mais damemória que estamos falando quando, por ventura, reencon-tro algo, mas de um simples encontro. Reencontrar um tema,reencontrar um elemento, sem necessidade de apelar para umamemória comparativa; sem a necessidade de chamar um catá-logo sonoro numa semiótica mal digerida. Canto de pássaro.

42.Tomando a proposição de Deleuze na aula sobre o galope, so-bre os saltos de um ponto a outro, sem preparação, linhas defuga traçadas às pressas, vincos forçados, tem-se que nem sem-pre a música é feita de momentos tranqüilos. Criar lugares étambém criar locais de instabilidade, criar zonas de turbulên-cia; terrenos que muitas vezes podem ser a interseção de doisou mais terrenos; momentos em que o ouvinte e o composi-tor, e, por que não, também o intérprete, se vê atraído pormais de uma força, por mais de um eixo: harmonia vagante.Esses terrenos instáveis podem surgir de tais mixagens, ou aindada alternância rápida de lugares, como nas bricolagens, comono Sacre de Stravinsky.

43.Não seria importante deixar claro de que música estou falandoaté aqui? Falsa questão. Seria melhor perguntar-se como pen-sar a música independentemente da matéria, e dizer “poucointeressa de que música estou falando”. Afinal de contas, po-demos ouvir Beethoven, Brahms, Villa-Lobos, François Bayle,

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Noel Rosa, Ligeti, Chiquinha Gonzaga, Vivaldi, a todos comum mesmo interesse, independente da matéria sonora ou mes-mo das formas musicais que a articulam. O que estou queren-do dizer com isto é que, quando ouvimos música, quando es-tamos compondo, a materialidade do som, as formas que estesom adquire, são o que menos concorre a uma musicalidade.Estes elementos são apenas aquilo que tornamos, através demanipulações, materiais expressivos, e que são esses materiaisexpressivos que compõem o quadro de forças que nos faz sen-tir numa ou noutra casa, num ou noutro terreno. Lembrandoainda que os animais demarcam seus territórios, que nossosfilhos o fazem deixando a cama desarrumada, espalhando brin-quedos pelo quarto, e que nós o fazemos deixando um casacorecostado na cadeira da sala (demarcação de território quemuitas vezes pode resultar em rusgas de casais). Eis aqui o casa-co, os brinquedos, as folhas de capim: matéria transformada emmaterial expressivo que acaba nos dizendo em que casa estamos.

44.Muitas das análises musicais depositam na matéria e na forma aessência da música. Mas esta essência é apenas aquilo que nos édado como um senso comum, aquilo que está o mais próximode nós, dado por uma época, por um lugar; um colorido har-mônico qualquer, um aspecto rítmico, um tipo de instrumen-tação. Ou seja, trabalhar com música eletrônica não é melhordo que trabalhar com música acústica, escrever para percussãonão é diferente do que escrever para órgão; fazer uma fuga nãoé diferente de fazer uma composição de forma livre ou com-pacta como nas bagatelas de Beethoven. Não é a matéria sono-ra, nem a forma que conduzem a escuta. Ninguém, a não ser ogrande pedagogo e seu fiel aluno, ouve uma música tentando

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captar sua forma sonata e perceber as nuances entre aquelaforma e a sonata autêntica (aliás, “a inexistente”). Arrisco mes-mo dizer que: o que ouvimos, e o que conduz nossa escuta nãoestá tanto assim na materialidade ou na forma, mas justamentenaquilo que estaria nos entremeios da forma; ouvir a músicaseria assim simplesmente deixar-se levar por lugares que sefazem, por momentos que tornam uma matéria em materialexpressivo e cujas forças nos ajudam a fazer conexões (aquifalo de quaisquer conexões: lembrar de um lugar, imaginaruma imagem, ouvir uma sonoridade, conectar um som comoutro, ouvir um desenho, uma proporção, um significado qual-quer) e, de tempos em tempos, ser chacoalhado por um corte,por uma mudança de lugar; ou ainda ficar em uma casa cons-tante imutável, como quando ouvimos as “viagens ao centrodo som” do compositor Giacinto Scelsi; quando ouvimos ummantra ou um canto tibetano.

45.Vale então trilhar um caminho que me faça compreender porque a música independe do som que é produzido para que sejacaracterizada como música. Parece muito simples dizer quealgo é música, definindo-a conceitualmente, no entanto istoseria simplesmente assumir que as coisas funcionam por umconvencimento imposto (com a força da teoria, a força da com-provação, com a força dos números, com a força do mercadoe da imposição). Esta abordagem é excessivamente abstrata e,como tal, estéril. Seria o mesmo que aceitar que é preciso sem-pre alguém que diga “música” para que haja música, ou entãoacreditar que qualquer coisa pode ser “música”.

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46.Muito se falou de uma “musicalidade” a qual teria sido esqueci-da entre os anos do pós-guerra e a década de 1970; uma musi-calidade que foi deixada de lado para a vitória de uma outrateórica, de cunho estrutural. A análise equivocada da forma, aforma como imperativo musical, reduziu a música a um qua-dro limitado de relações formais: a forma tomada comoenquadramento (frame) formal. Como tabela de proporções eseqüenciamento. No fundo, a música reduzida ao seqüencia-mento. Vem daí o reverso da moeda que passou a creditar amusicalidade ao objeto, ao som. Então, limitada ao objeto, aosom, a escuta diria mais respeito apenas àquilo que pertenceao nível da percepção, e toda uma categoria semiótica é cha-mada a agir para distinguir sons musicais daqueles não musi-cais, sons contextualizados em música e sons contextualizadosem falas, ruídos urbanos, motores etc…

47.É claro que as transposições nem sempre são simples, e seriaum pouco caolho ver as coisas assim, mas lendo uma carta deÁlvaro de Campos ao Mestre Caeiro, me veio uma idéia. “Di-rão, é verdade, que o que é individual não deve constituir arte,porque os outros não sentirão. É um disparate. Logo que umacoisa se pode exprimir por palavras, outra pessoa, se não éestúpida ou de outra ordem de sensibilidade – e vive (…) –,pode senti-la”. Sei que quanto à música haverá muita objeção àtransposição do tipo: “o que se dá com notas, ou com sons…”nem o som, nem as notas, ou as melodias constituem lingua-gem no sentido da linguagem verbal. Mas, vejamos bem. Sevocê pode ouvir uma paisagem, sem se perguntar os nomesdas coisas, sem tentar entender se vai chover ou não, se vem

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vindo alguém ou não, que passarinho é aquele que canta, en-tão poderá adentrar qualquer paisagem sonora. A não ser quese perca o caminho para buscar sempre e sempre um significa-do, uma explicação, ou que se venha de marte, a música é tãopaisagem quanto o som de uma rua. E juntar, intercalar, justa-por, destacar sons é atividade simples que qualquer um faz aqualquer momento. Por que ouvir apenas melodias e ritmosse posso ouvir paisagens melódicas e personagens rítmicas?

48.Nada impede ninguém de ouvir a não ser a surdez ou o distan-ciar-se do som. Mas, para este movimento de ouvir, precisoacionar algum julgamento moral que, no mais das vezes, mudade tempos em tempos, ou chamar um juízo mais simples, quepoderia me dizer se aquilo que estou ouvindo está movendocoisas que fazem bem ou não, e só. Disto nunca se sabe. Nuncase sabe o que uma música vai mover, pois o que ela move sãopotências do futuro, não sendo estas dedutíveis do passado oudo presente. E isto que escrevo aqui tanto vale para aquele que senega a ouvir a dita música contemporânea, quanto ao erudito quenão chega a ouvir a música pop… diria que há nos dois casos umamais valia da surdez.

49.Não é o ouvinte que vai ao futuro. O ouvinte está no presentebrincando com o passado: é a matéria tornada material, grãosem forma ou de forma transiente, que “vai ao futuro” e traz,naquilo que é o plano de composição, forças que ainda não nostinham sido reveladas. São essas forças que não estão no passa-do nem no presente que tomaram Jean Genet de assalto, fa-zendo-o ter a sensação de que uma toalha sobre uma cadeira

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não tivesse peso, e que se a cadeira fosse retirada a toalha fica-ria ali suspensa e imóvel, como se uma fosse apenas anexada àoutra sem que nada as relacionasse.

50.Valeria aqui pensar em um outro elemento, nem som nemestrutura, um elemento expressivo, aquele que levaria a per-cepção ao seu colapso absoluto, deixando-a como simples eta-pa de um processo cujo objeto é a sensação: ouvir não o som,mas aquilo que não está no som, que está no ouvir, aquilo queestá no escutar, que está em operar cortes, em operar territó-rios, em desmantelá-los. A esta escuta de objetos que suben-tende uma outra escuta chamarei de micro-escuta, ou de escu-ta das fendas, das articulações. Em seus escritos sobre arte,9 opintor Paul Klee observa que a expressividade de uma seqüên-cia, a dramaticidade de algo não está relacionada aos objetossimbólicos empregados, o que podemos aqui transpor parapensarmos quanto a um trecho musical. Não são os objetos osresponsáveis isolados pela produção de sentido; eles não dis-param nada; a não ser que estejam em um plano de consistên-cia, ou plano de composição no qual teçam a trama que dese-nha um território qualquer e sobre o qual traçam suas própriaslinhas de fuga, ou os grandes saltos. Fica assim a expressivida-de diretamente ligada aos pontos de corte, às juntas. Os cortespodendo ser aqueles grandes cortes, que separam blocos, ouaqueles microcortes que limitam o início e o fim de um deter-minado objeto-sonoro ou musical. Não se limitando, ainda maisuma vez, a cortes notáveis pela simples percepção (o golpeduro que interrompe do forte e interpõe o fraco, o denso e o

9 Klee, Paul - La Pensée Creatrice. Dessain et Tolra: Paris. 1977; eHistoire Naturelle Infinie. Dessain et Tolra: Paris. 1970.

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rarefeito, o luminoso e o escuro etc…), mas sim, incluindo ocorte que desenhava um quadro conceitual e que repentina-mente é desfeito por outro conceito (um corte na poesia, umcorte em um outro campo, pré-delineado, de significados,como o do triste-alegre etc.):

51.“…

você está num bondee de repenteuma gaivota

passa ao lado.”

Heitor Ferraz, “A cidade navega”Hoje como ontem ao meio-dia

52.Compor um primeiro gesto:

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Ele já é um ritornelo, já existe nele um pequeno ritornelo.Algumas coisas voltam, outras desaparecem. Poderia parar poraqui. Mas é só um primeiro ritornelo. Ainda funcional. Umpassatempo: passar então a rabiscar mais, brincar com o ritor-nelo. Passear pela minha nova casa. Desenhar seus novos cô-modos etc.

O que foi feito aqui? Uma brincadeira. Escolheu-se a estraté-gia de repetir e de depois alternar o que se repete com algumacoisa que venha de outro lugar. Mesmo que esta coisa seja umpouco parecida com o que vinha antes. Um novo desenho,uma espécie de losango, logo seguido de uma retomada doprimeiro gesto com algumas de suas partes desfeitas. É nova-mente a volta de um elemento externo. Um rondó? Poucoimporta dar nomes a seqüências, a não ser que queiramos osnomes como referências. Neste pequeno desenho, o que são osdois elementos externos? Pequenas escapadas ao gesto original.Mas o jogo prossegue.

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Talvez pudesse omitir. Mas, como brinco de narrar uma gêne-se, entre esta etapa e a anterior algumas coisas não deram cer-to e um jogo de espelhamento, como um reflexo na água, foiabandonado e deixado de lado. Veio então esta outra etapa.Mais um retângulo ao lado direito, um outro logo abaixo, umquadrado, e de repente uma escapada: uma seqüência de qua-drados embutidos, que volta mais uma vez em uma seqüênciade triângulos embutidos, depois uma série de triângulos. Oque veio antes do quê? Não interessa muito, interessa é verque houve uma escapada, uma nova linhagem de personagensque se apresentou e que talvez sobrevenha, talvez não, umritornelo particular.

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53.Como em um improviso de Tarkos:

“on a un petit bibon un bidon d’huile sur la table unpetit bidon vide un petit bidon normal normalement

sur la table avec du vide dedans il est fermé mais il estvide si on regarde dedans le petit bidon il y a du vide

on n’a rien on regarde sur la table et on voi un petit bidonqui ne deborde pas de la table le petit bidon reste bien a sa place

il ne bouge pas il ne deborde pas comme une grandemasse blanche qui viendrai par dessu la table et qui viendraideborder la table et qui viendrai se mettre dessous la table

il reste au dessu de la table il est totalement vide il nese passe rien

[…]”

Christophe Tarkosle petit bidon10

54.É claro que nem todo processo de criação segue um mesmocaminho. Mas há sempre um eixo transiente, em torno do qualrodamos. Depois de definidos alguns terrenos, nos movemos,descobrimos seus segredos e inventamos outros. Até que, sabe-se lá por quê, um outro eixo, também tão maleável quanto oprimeiro, e de força variável, se faz presente. Força de repulsãoou força de atração. Abalos, voltar para o ponto de partida.Desenhar uma forma com antecedência que, aparentemente,

10 Esta transcrição do poema-improviso de Tarkos (disponível on-line eno CD Expressive, le petit bidon da edition cactus) foi realizada com base nanotação de seus poemas no livro PAN, sobretudo no poema “Les Nuages”.

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nos leve para um outro caminho. A forma, o desenhar a for-ma, tudo isto é um eixo transiente. Ela é apenas um material,um tanto daquilo que utilizaremos para desenhar a composição.

55.

“Caótico, cósmico (em evolução), cósmico (em estado evoluído),cósmico em estado bruto (massa cósmica evoluída)”

Paul Klee, “Éléments fondamentaux de la théorie de la forme”La Pensée Créatrice

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56.Se imagino o objeto-sonoro como um quadro de traços perti-nentes que possibilitam a formação de um bloco, que vai deum corte sensível a outro e cuja expressividade é justamentedelimitar e delinear o objeto, os microcortes apareceriam as-sim não apenas no plano horizontal, melódico, ou seqüencialda música, mas também no plano vertical, fazendo distinguirpequenos objetos: como a distinção do objeto-musical notasem um acorde. O que delimita tais objetos, a sua representa-ção prévia. O acorde surge da junção de notas, portanto, conhe-cendo-se as notas em separado é possível se refazer a escuta decada nota em um acorde.

57.Fazer a casa e não simplesmente tomar a casa como pronta,como casa abstrata. No plano de composição, diferente do pla-no de organização, não é preciso ter estado em casa antes parapoder viver nela. No plano de composição, nada esteve ali, eleé sempre trilhado pela primeira vez. O seu material, que nãose confunde com a matéria (o som) e nem se opõe à forma(abstração da matéria), se revela durante o percurso. No planode composição não há caminho: o caminho se faz ao caminhar.O material, assim como os seres pré-individuais imaginadospor Duns Scott, se faz em um momento singular, ele é umaespécie de encruzilhada que dispara a sensação de alguma forçae logo se desfaz. A composição deste campo é a estratégia docompositor para criar suas pequenas armadilhas, suas peque-nas direções e dimensões, criar uma casa passo a passo, edesfazê-la em golpes bruscos ou lentos, quebras que fazemaparecer as forças que os articulam em um material que é purocoágulo de tempo e espaço. Uma interseção, uma série de en-

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11 Imagem retirada de Lancastre, Maria José de. Fernando Pessoa – umafotobiografia. S. Paulo: Civilização Brasileira.

cruzilhadas como Pessoa rascunhou por gráficos na Brasileiraao falar de Uma Antologia do Interseccionismo para Cortes-Rodrigues e Sá-Carneiro:

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Uma idéia de música

58.Um pouco de “fenomenologia Schaeffereana”. Em seu Traitéedes objets musicaux,12 Pierre Schaeffer distingue dois planosdeterminantes para a escuta musical do século XX, aquela quefoi arrancada das salas de concerto para dentro dos rádios e“gramofones”: o plano da sonoridade e o da musicalidade. Aodistinguir estes dois terrenos, Schaeffer quer clara a idéia deque tradicionalmente música e sonoridade se confundem. Naverdade Schaeffer desfaz um novelo, reenovelado em meadosda década de 1970 com as audiopartituras e a noção restritivade que uma musicalidade correta seria aquela sempre atada aoque o ouvido percebe: o que se supõe como som – um empi-rismo um tanto quanto fora de foco. A idéia de Schaeffer nãose confunde com as audio-partituras, se bem que alguns dosseus adeptos falem de objeto sonoro numa acepção talvez umpouco fraca. Ao invés de reduzir a música à percepção auditi-va, a proposição de Schaeffer foi a de identificar um espaço quelhe permitisse pensar a composição musical a partir do som, enão mais a partir de uma escuta de atribuições ou abstrações oude uma redução à audição.

59.Para propor o que chamaria de uma escuta concreta, uma mú-sica concreta, Schaeffer identifica no Traitée uma musicalidadetradicional constituída de duas faces: de um lado, é música

12 Schaeffer, Pierre. Tratée des Objets Musicaux. Paris: Seuil, 1966.

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tudo aquilo que venha de um instrumento musical ou algo pa-recido; de outro, a idéia de música estaria relacionada a abstra-ções que propunham a musicalidade como um jogo de rela-ções sonoras, determinando a priori quais aquelas relações per-tinentes ao musical. Desenhando um quadro simples com qua-tro entradas distintas, Schaeffer separa quatro modos de escu-ta que teriam fundamentações praticamente discordantes, oudistantes. Ouïr: ouvir uma coisa sonora qualquer; como quan-do ouço e atribuo o nome de um instrumento a um som. Écouter:perceber uma história energética; alguém que ouve um som ereconhece nele um movimento de algo que se espalha, ou quevem do nada, ou que corta o ar com força, e assim por diante,desenhando com isto toda uma cena do som sendo produzido.Entendre: relacionar-se com este som de modo a dele extrairfamílias, grupos, características, um modelo para o catalogador.Comprendre: a escuta das relações, escuta simbólica; escutar amorte, escutar a matemática, escutar os afetos, os povos dis-tantes… tudo em código, com leituras compartilháveis entremuitos de nós humanos.

60.Ora, quatro escutas, mas de fato todas pertencentes a umamesma classe. Todas elas permeadas pela representação quefazemos daquela força sem nome, difusa, com que nos relacio-namos antes de dizer que percebemos algo. Síntese do diver-so. Reunião, redução, de modo a tornar aquela sensação ma-nipulável, falável, narrável. Mas existe algo aí na leitura deSchaeffer, algo que, se não interessa de todo a uma categoriza-ção semiótica precisa, vem forjar um instrumento composi-cional. E, como tal, sua potência é diretamente proporcional àsua falta.

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61.Com suas categorias, a fenomenologia de Schaeffer mostra oquanto e por onde a escuta tradicional se fecha: ora ao instru-mento, ora à energia, ora às categorias, ora aos símbolos, pro-porções e significados afetivos ou culturais. O que Schaefferdistingue em suas categorias é a música do ocidente e suas vi-cissitudes. Pensemos em Bach, em Vivaldi, em Mozart. Seuinstrumento de composição é a partitura, mas esta dialoga quaseque obrigatoriamente com o instrumento musical. O que istovem a dizer? Eles ouviam um instrumento – ouïr. Uma energiaou a história de sua energia ao tocar tais instrumentos (sejarealmente tocando ou apenas uma lembrança indireta) – écoute.É da relação com esta memória energética que então podiamextrair seu quadro de material composicional – entendre. Escu-tar acordes, gestos, encadeamentos preferidos, melodias, so-noridades. Eis o material, e é dele que se vai à abstração, noque passa então a agir todo um diálogo com sua gente, comseu povo. Toda uma política – comprendre.

62.Schaeffer distingue ao menos duas modalidades de escuta. Pri-meiro, a escuta banal, ou cotidiana, aquela que atribui a musi-calidade ao som dos instrumentos, aos significados musicaisou ainda às brincadeiras de proporção entre notas musicais.Esta escuta também recebeu comentários, talvez mais jocosos,por parte do compositor John Cage em suas Lectures onNothing.13 Em segundo lugar, a escuta técnica, aquela que per-mitia extrair um material composicional a partir de uma histó-ria energética. O problema, localiza Schaeffer, está nos bura-

13 Cage, John. AYear From Monday. Connecticut: Wesleyan Univ. Press,1969.

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cos de uma composição que se funda em escutas que saltam deum canto a outro de suas categorias, deixando de lado etapasantes importantes. Deste modo, há escutas que tomam porponto de partida uma tipologia indo direto à sua abstração fi-nal. Ou ainda, é possível saltar direto da relação som-fontesonora para o último grau de abstração, sem considerartipologia ou história energética: “um som de oboé ou corne-inglês para uma cena de patos, marrecos e gansos”. Posso tam-bém saltar algumas escutas e tomar como ponto de partida anota musical, voando direto às abstrações (atualmente, é co-mum também compositores que saltam direto para a tipomor-fologia do objeto sonoro, proposta por Schaeffer, como se fosseum a priori categórico do som). A escuta que fica para trás é ado “solfejo”, aquela em que apenas através da experimentaçãorevelava-se uma possível história energética – a energia do to-car, ou a energia do som gravado –, para só então seguir umatipologia e uma abstração simbólica.

63.O que é possível entrever nos escritos de Schaeffer é um me-canismo não de eleger “o que é” e “o que não é” música, mas denotar os limites para certas musicalidades: uma primeira vezlimitada às fontes sonoras instrumentais (“música é tudo aqui-lo que está sendo tocado por um instrumento musical de for-ma correta”), uma segunda vez a objetos específicos definíveiscomo notas, ou como ataques notáveis em uma partitura (agru-pados em enunciados significantes, seja sintática ou semantica-mente). São tais limites que estão por trás de toda música es-tratificada, de todo o senso comum musical. Talvez algo quenão nos interesse muito falar aqui, visto que não nos permitempensar como novas musicalidades poderiam brotar desses mio-los rígidos de tradições. Se está no instrumento sonoro a le-

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gitimação de ser ou não musical, neste mesmo limite abre-seuma fenda quando alguém se lança em uma improvisação li-vre. Do mesmo modo, sempre que uma teoria fixa uma musi-calidade, outras podem advir de alguns desvios ou loucurasdesta teoria, como toda aquela nascida da idéia de que “músicaé igual a sons organizados” (como o fez a música eletrônicafundada nas normas do serialismo que elevara algumas sonori-dades e gestos à categoria de musicais). Até mesmo no queestá estratificado encontramos nossas brechas, fendas por ondeos hábitos escapam em um embate com um caos exterior que vembagunçar toda a harmonia anterior.

64.Na música do ocidente a presença da notação permitiu pulardireto às categorizações do entendre, direto ao a priori categóri-co da escuta. É som o que é nota musical (terminologia aindaempregada por diversos autores, sobretudo aqueles que privi-legiam as alturas, as notas, como primeira relevância de umdado musical – redução que favoreceu a proliferação de cor-rentes analíticas as mais variadas: das análises dodecafônico-seriais às análises estruturais de Schenker, Allan Forte e FelixSalzer). Mas é preciso lembrar que não existiu um compositorassim tão estúpido, que reduzisse sua música apenas às notas eàs teorias que as rondam. Há sempre um piano, há sempre umestúdio de música eletroacústica, um violino, uma flauta, umpedaço de bambu, ou uma folha de capim. Há sempre umahistória energética. E, se em algum momento a etapa do solfejofoi esquecida, por alguma fase de loucuras experimentais, elasurtiu em resultados. Vem daí todo o gestual sonoro-instru-mental advindo dos blocos de notas abstratos dos serialistas:nuvens, constelações, varreduras de campo, compósitos so-noros etc. Não bastasse esta brecha, há sempre uma vida e umproblema composicional que vão além das restrições teóricas.

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65.Deste modo destitui-se de nexo afirmações do tipo “é musicalo que se quer ouvir como música” ou ainda “é música o que seliga ao som”. Pois ouvir como música implica uma cadeia deidéias e noções que forçosamente passam por tradições e hábi-tos de escuta e produção. As musicalidades estariam por trásda ação de colocar sons em relação e atribuir valores específi-cos para sons específicos: sons musicais, sons não musicais,instrumentos musicais e ruídos não musicais. Com a cadeia dosolfejo desmontada, muito do que se tem por música poucotem a ver com som. O solfejo tradicional não se fundamentanos sons. Não há nada que fale de sons em uma partitura e,quando falamos dos quatro parâmetros do som, não estamosfalando de sons, e sim de notas musicais, quatro parâmetrosdas notas musicais: a altura, a intensidade, o timbre e a dura-ção. Falamos então de um solfejo sem memória que salta aquelaetapa entre o écouter e o entendre. A nota musical muito poucoguarda da escuta da história energética de um som. De umlado, se relaciona com o sistema de notação do canto, um me-canismo de memorização, de outro, com um dispositivo me-cânico de reprodução de sons em instrumentos. Tanto numquanto noutro, a nota submete o som a certas regras: manteruma homogeneidade quando modulado e submeter-se facil-mente a esta modulação, numa seqüência que vai das freqüênciasmais lentas às mais rápidas, i.e. uma escala que vai do grave aoagudo. Vem daí a dificuldade atual que temos em escrever comnotas uma determinada sonoridade, faltam-nos recursos, e,quando trabalhamos com instrumentos musicais, não é a so-noridade que notamos, mas dispositivos de disparo de sons,com o que nossas partituras traduzem muito pouco o som queestamos procurando fazer.

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66.Pode parecer confuso, mas a escuta tradicional (escuta do nomedo instrumento, do significado das notas, das melodias, dasharmonias…) lida em sentido inverso resultaria no passo deSchaeffer para fundar uma música concreta. Ou seja, partirnão mais da nota musical, mas da sonoridade, considerandotodas as etapas da escuta, sem pular nenhum modo de pensar osom. Buscar tanto regras quanto noções de ordenação de ma-terial, buscar tudo a partir do que se ouve, a partir das sonori-dades quase que ainda sem nome. Dar nome assim como se dáconcrescência a algo. Ou seja, não se relacionar com o somapenas como fenômeno de percepção, mas sobretudo comoacontecimento de preensão. Em uma música concreta o somganha forma e materialidade ao mesmo tempo em que é ouvido,preendido. Uma composição sem a priori. É assim que Schaefferdistingue ainda uma “escuta musicista”, aquela que distinguedetalhes de ataque, detalhes de timbres, arcadas, toques, so-pro, empostação de voz etc., de uma “escuta musical” que sóescuta relações entre notas e significados. E liberta o som tam-bém da dualidade entre uma escuta técnica e uma escuta teóri-co-analítica, para propor uma música que funda técnica e teo-ria na preensão de seu objeto: escuta técnica e teoria que par-tam do próprio objeto sonoro e não que a ele sejam acopladas.

67.Se ao distinguir sonoridade de musicalidade Schaeffer busca,num segundo momento, uma outra musicalidade advinda dasonoridade (mais precisamente nos “livros IV e V” do Traité),vale aqui um cuidado: não basta ser sonoro para ser música.Não só nem tudo o que é simplesmente sonoro é musical – oque aparentemente é obvio – como nem tudo o que é sonoro

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é passível de se tornar musical com um simples jogo de organi-zação e concatenação de elementos. De certo modo, Schaefferpropõe esta volta: repensar o que é sonoro, definir um objetomusical a partir de um objeto sonoro, e depois, através de eta-pas de experimentação – no sentido de manipular –, investireste objeto de elementos passíveis a serem concatenados, coor-denados, conectados. A diferença entre a proposta de Schaeffere a da música estratificada das escolas de música é que Schaeffertoma o sonoro como ponto de partida e não mais a musicalida-de pré-definida. Busca o musical que existiria no sonoro livredas relações pré-dadas de perfis melódicos, figurações rítmi-cas, estruturas harmônicas… e precisamos pensar além, livreaté mesmo de suas tipomorfologias propostas no “livro V” deseu Traité... um erro de percurso na liberação do som, uma vezque abre espaço a uma estratificação da própria escuta. Encon-trar traços conectáveis no próprio objeto sonoro, na sua den-sidade, nos seus dados espectrais, na sua rugosidade, em tudoaquilo que do sonoro se faz sensível à audição seria sua estraté-gia de fundar a cada momento uma nova musicalidade, poisnão estaríamos falando do som como forma ou matéria, masde um material sonoro que torna sensíveis certas relações,idéias, ou seja, forças de conexão.

68.A tarefa a que se propõe Schaeffer é quase impossível se pensadado lugar d’A Música. Primeiro, imagina uma escuta longe dasfontes, a escuta acusmática: escuta do som sem referências ex-ternas e que se desfaz dos intrumentos-referência (primeiro tra-ço da musicalidade tradicional a ser desfeito). Depois, imaginauma escuta que suspenda qualquer conceito dado a priori. Mascomo afastar um julgamento, um processo de categorização,quando ainda se pensa a música como sons organizados? A

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tipomorfologia que elabora e expõe no Traité, propondo umagradação de objetos sonoros, acaba servindo como base compo-sicional, como base classificatória a priori, praticamente elimi-nando (uma vez mais) a potência de primazia da escuta frenteaos conceitos. Não ter dado o passo que rompesse com o impe-rativo do fenômeno permitiu que a tipomorfologia de Schaefferlogo fosse compreendida como uma “nova teoria das notas”,novos nomes dados aos sons, passo fácil à forja de ferramenta detrabalho para catalogação e sistematização sonora. Com suatipomorfologia, o objeto sonoro de Schaeffer deixa seu caráteracontecimental para tornar-se mais uma ferramenta de repre-sentação de fenômenos sonoros.

69.No fim, o belo musical abstrato encontra-se com o concretosonoro de Schaeffer. A curva se fecha sobre o ponto de parti-da. Um distingue, com base num eco distante da idéia de mú-sica especulativa e música prática, o belo formal do belo sim-bólico, e o outro distingue o abstrato da fonte, e posterior-mente o abstrato do concreto. Passos no entanto marcados porum mesmo jogo: a supressão do solfejo (tão caro a Schaeffer).

70.Pensando a partir de Schaeffer, no momento em que nos pro-pomos a ouvir algo como música, o senso-comum nos diz queo caminho não é o de fazer revelar, o de tornar sonoro, mas ode encontrar traços de semelhança com uma idéia pré-molda-da de música em uma paisagem ou foco sonoro. Mesmo mol-dada a partir de um objeto sonoro, a composição, a que cha-maremos por plano de composição, resume-se deste modo aum plano de organização: passagem direta da tipologia, da no-

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menclatura, à organização. “Partir de um som mais granuladoe lentamente encaminhá-lo a uma massa menos granulada, au-mentar e diminuir densidades, estabelecer pequenos cortes paramudar planos” são pequenos elementos de organização, mes-mo que advindos do som, e mesmo que presentes em grandescomposições musicais, mas não caracterizam o que iremos cha-mar aqui de um plano de composição. Um plano de composi-ção é bem mais do que um plano de organização.

71.Poderia voltar aqui à questão inicial: no que reside a musicali-dade? Se ela não se reduz facilmente à identificação de umafonte como musical quando ela trabalha com alturas definidas,ou à redução da escuta de sons a quadros de relações formais,será que ela se reduziria a uma mera estratégia de organização?

72.Se são diversas as músicas, se são diversas suas versões, diver-sas suas variáveis, por que me propor a responder o que vem aser música, ou mesmo o que define o musical? Poderia fazerum estudo e rastrear uma constante: seria o som a constanteda música, ou o movimento de pequenos ritornelos que o somdesenha? Mas não se trata de rastrear constantes, elas não de-terminam uma música. Edgard Varèse nos deixou uma ima-gem para pensarmos tal questão: Intégrales – não se trata deprocurar uma constante, mas de ater-se ao diferencial. De umamúsica a outra opera um fator diferencial, uma variável quegera variações, e não versões de uma música correta. Idéias demúsica não existem mais do que temporária e parcialmente.Perguntar se uma música é ou não correta não cabe na idéia dediferencial, embora coubesse na idéia de uma constante: man-

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ter uma constante. Ou seja, manter sempre um traço de iden-tidade que garanta sucesso nas empreitadas pretendidas comomusicais.

73.“[…]

All music is what awake from you when you are reminded by the instruments,

It is not the violin and the cornets, it is not the oboe nor the beating drums, nor the

score of the baritone singer singing his sweet romanza, nor that of the men’s

chorus, nor that of the women’s chorus,It is near and farther than they.

[…]”

Walt Withman, “A song for occupations”,Leaves of Grass

74.O que é musicalidade, o que é música, o que torna algo emmúsica é resultado da ação de uma operação diferencial sobreaquilo que chamamos de história, de culturas, vidas etc. A cadamomento, a cada parte operam musicalidades e tais musicali-dades ligam modos de escuta e modos de performance os maisdiversos (considerando-se sempre a escuta como um dos pla-nos de performance). Lembro, no entanto, que quero apenasfazer da questão um campo de problemas, um ponto de parti-da para pensar a música, ou melhor, para pensar os espaços decomposição. Colocar-me em um campo problemático cujaresposta difusa seja a abertura de espaço de composição de uma

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outra, e ainda outra música – e quem sabe alguma análise mu-sical que nos “faça escuta” e não que nos “faça escutar”. Colo-car-me no campo problemático equivale assim dispor-se aodiferencial, a fazer variáveis e tornar o conceito cada vez maisinstável e aparentemente sem permanência. Não se trata, comodisse antes, de responder questões. Não há nada para se “deci-frar” na música – como se houvesse algo cifrado, algum segre-do que nos permitisse adentrar o Olympo da criação para delesermos os bons pretendentes. Apenas fazer escutas.

75.Visto que não há por que definir, ou como cercar o que é mú-sica, ao menos nos resta um ponto em comum: a música desti-na-se aos ouvidos. Deleuze constrói uma imagem interessan-te: assim como a pintura coloca os olhos em toda parte, a mú-sica colocaria ouvidos em toda parte. Porém, é preciso lem-brar que isto não significa dizer que “a música é para ser ouvi-da”. Ela coloca ouvidos, os afetos de um ouvido, em toda par-te. E então Xenakis ouve as estruturas arquitetônicas; põe ou-vidos em um algoritmo, assim como pode pôr ouvidos em umaestrutura, em uma narrativa. E privilegiar os ouvidos naquiloque chamamos de uma escuta não significa privilegiarmos osom. O som, o objeto-sonoro, só duramente tornou-se objetoda música. Diria até que tão duramente quanto o ingresso da“estrutura” no pensamento musical. Mas, no final das contas,Dalapiccola colocou ouvidos na forma da cruz… a cruz dese-nhada pela notação musical bem no meio da partitura. Cagecolocou ouvidos nos desenhos de constelações lançadas sobreo papel pautado.

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76.“Fazer escuta”. Tomar a escuta como acontecimento que se fazjunto à mudança da pressão de ar, ao que chamamos de som.Isto difere de “fazer escutar”, ou “fazer-se escutar”, emitir umapalavra de ordem, definida por padrões dados de antemão,que determinam o ato de escutar como um ato de representare interpretar algo que se dá fora dele. Presos aos fenômenos,aos sons, suas fontes, seus significados, suas conotações e de-notações, custamos a notar que “tonal, modal, atonal não sig-nificam mais quase nada”, de que “não existe senão a músicapara ser arte como cosmos e traçar as linhas virtuais da varia-ção infinita” como observou Deleuze. Já estava na hora de aban-donarmos por um tempo o par matéria-forma propondo-noso par material-força. O que vêm a dizer tais frases? Estivemostodo este tempo presos às ferramentas, a modos de dar coesãoaos fluxos de sensação que temos. Demos nomes às coisas, esobre esses nomes montamos nossas afirmações e nossos siste-mas. Foi necessário dar nome às coisas, foi necessário criarsistemas e a conotá-los com traços de temores e crenças. Da-dos os nomes, foram diversos os modos de articulação quecada sistema trouxe à tona. Com isso, como nos fala Nietzscheem Humano,demasiado humano, “calculamos inevitavelmente comalgumas grandezas falsas” e é por elas serem “no mínimo cons-tantes” e porque “os resultados da ciência adquirem perfeitorigor e confiança nas suas relações mútuas” que “podemos con-tinuar a construir em cima deles”.14 Estamos assim justamentemontados sobre um emaranhado de pequenos “erros” (repre-sentações temporárias da natureza, vida, mundo) e que, aofalarmos de música, vale notarmos esta transitoriedade e pre-

14 Nietzsche, Friedrich. Humano Demasiado Humano. Trad. bras. PauloCésar de Souza, S. Paulo: Cia das Letras, 2002.

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cariedade das ferramentas. Adotar uma ferramenta é fazer es-cutar. Já o fazer escuta é de outra ordem; nele compreende-mos que as ferramentas se fazem no embate com o campo detrabalho. Fazer escuta é vincular, conectar pontos disparata-dos para a natureza e as coisas. Viver o acontecimento enquan-to acontece, diria o filósofo Peter Pál Pelbart de um modomais elegante e rápido.

77.Voltamos a Schaeffer. Qual o pulo cego que uma música comoa serialista, ou as mais abstratas experimentações computacio-nais realizaram? Ouço um som, dele extraio o quê? Uma escu-ta de pequenos detalhes, um solfejo. A partir do solfejo identi-fico gradações e imprimo sobre este solfejo um tanto de rela-ção humana, processo este que François Châtelet chama deracionalização. É a partir deste solfejo mais meticuloso queelaboro então a etapa de composição. Tudo interligado, docomeço ao fim: “o menino e a folha de capim”; cortar um pe-daço de capim, levá-lo à boca, fazer som com ele, adestrar ohábito de fazer o som, e ao mesmo tempo ir tecendo um planocom isto, plano cheio de cortes, interrupções, pequenas se-qüências de causa-efeito. O pulo cego da música exagerada-mente serial e pautada nas notas seria a ausência do solfejo.Nele perde-se a fatura do som, ou seja, o modo de jogo ins-trumental. Daí a ilusão da década de 70 de que seria necessáriorestaurar a ilusão do sonoro: audiopartituras.

78.Um primeiro passo a dar é então o de afastar qualquer traçoque ligue a idéia de música à noção de fonte sonora, de mate-rial sonoro, ou de pensamento musical. Por que tal posição?

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Primeiro porque, limitado ao material e ao pensamento, esta-ria sempre tratando de um a priori, e este a priori não me per-mitiria ver a música como um fato em movimento. Além domais, sempre que se define a música a partir de um destes da-dos, fica limitada a possibilidade mesma de invenção de músi-cas. Segundo, porque, como compositor, o interesse está maisnaquele dado que desenhe a música, sem estar atado a umatradição, mas também sem estar fincado em uma idéia como ade unidade, de princípio unificador, ou mesmo a de variação –idéias para as quais nem todas as produções musicais são con-dizentes (e que mais falam do recurso abstrato de unificação ecoerência do que da coexistência e consistência de um fatomusical). Mas, ao mesmo tempo, pensar a música é não selivrar de tais idéias.

79.São diversos os artigos e trabalhos que buscam atrelar a músicaa um jogo de significados, personagens que viram temas, pai-sagens que viram fraseados, misticismos que viram códigosharmônicos (por exemplo, a idéia de maçonaria em Mozart).Esses elementos que em muito alimentaram e alimentam com-positores não são a garantia da música, não são a garantia deque algo vá funcionar em uma música. Ou seja, uma semióticada música não conduzirá um estudante a aprender o difícil ofí-cio de compor uma música e submeter o ouvido de alguém aela. Não existe uma fórmula que dê garantias aos pretendentesda boa cópia da música original, da música ideal.

80.Em sua filosofia da diferença, ou do acontecimento, Deleuzetece uma seqüência infindável de conceitos e idéias gravitando

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em torno de um ponto que chama de a “repetição do diferen-te”. Esta frase, aparentemente sem nexo – afinal, em que con-siste repetir o diferente? –, condensaria muito do pensamentode Deleuze. Dizemos falta de nexo porque associamos a idéiade diferença à de semelhança: quem difere, difere algo de algo,e repetir seria articular-se com o contrário da semelhança.Aprendemos desde pequenos (o que sem dúvida respira a filo-sofia de Platão e Aristóteles, a retórica medieval, o métodocartesiano, o que não vem ao caso por ser nosso senso co-mum) que, quando algo se repete, é o semelhante de algo quejá passou uma vez que é repetido. Repetir é retomar algo quejá passou, é submeter-se ao passado e notar semelhanças, iden-tidades, analogias e diferenciações de gênero, espécie, famí-lia. Como posso pensar então a repetição do diferente? O pri-meiro passo é pensar o diferente em si mesmo. Um diferenteque vai e volta. Mas o que é um diferente em si, sem que fique-mos em um jogo conceitual ou mesmo terminológico? Semque se funde uma outra metafísica? De súbito é preciso dizerque não se repete o diferente no patamar da matéria ou daforma (do concreto ou do conceitual). Se repito algo nestepatamar, esta repetição sempre compreende um mesmo, umasérie de semelhanças, de identificações, de analogias, e nãoestou mais falando do diferente em si. Ou seja, digo que algo édiferente sempre com relação a algum igual que não se deucomo tal. Concebo assim idéias como a de original e cópia, eainda aquela das más cópias. Em uma de suas muitas passagensbreves, mais precisamente em Péricles eVerdi: a filosofia de FrançoisChâtelet, uma pequena frase que a uma primeira ou segunda leitu-ra quase passa desapercebida: Deleuze nos fala em “repetir a con-dição”, repetir a condição do diferente. Repetir não “o diferente”,localizável na matéria e nas formas, mas a potência de deixar livrea diferença: a condição do diferente. Repetir a potência de tornarsensível uma força em um material: repetir o futuro.

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81.Por que me ater à idéia de diferencial que havia exposto antes?O que ela tem a trazer para este exercício de pensar a música?A primeira razão diz respeito ao material da música. Me atenhoainda ao sonoro, o sonoro alertado por Pierre Schaeffer, masde outro modo. Não se diz mais que é música aquilo que ésonoro, mas sim que fazer música é tornar sonoro forças nãosonoras: forças de crescimento, forças de conexão humana,forças de guerra, forças táteis, forças visuais etc. Mas falar tam-bém é operar neste terreno. Cabendo então uma distinção.Existe uma dimensão musical da fala, e esta é justamente aque-la em que o sonoro se dá como concrescência, como preensãode uma força, e não como representação através da palavra edas frases.

82.O diferencial não está na matéria, nem na forma, está sim emuma ação, uma ação que é um fator livre, um fator incontrola-do, um fator imprevisível, virtual. Pensar assim é o oposto depensar no ciclo de tabus da arte do século XX, em que cadanova música foi, e ainda o é para alguns compositores, umtabu a ser evitado. O ciclo do diferente não se confunde comeste ciclo da novidade. Trazer à tona sempre uma novidade éeleger sempre um velho. O “bom novo” vem em lugar do“mal velho”, ou do “aceitável velho”. Falar do diferencial é ca-minhar no sentido oposto a este jogo que mais nos faz lembraro conto “Casa Tomada” de Julio Cortázar – no conto deCortázar os personagens fecham portas e portas fugindo de“uns sons”, até que não haja mais portas a serem fechadas e seenclausuram em um único cômodo da casa.

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83.Fechar, fechar, fechar, se este é o rumo de uma “angústia dainfluência”, não é o rumo do diferencial. Não se trata de bus-car o novo, mas de manter, na música, o ato de tornar sonorasas forças não sonoras – bem como na pintura, tornar visuais asforças não visuais. Manter a máquina da atualização de musicali-dades virtuais em operação. Tornar sonoro aquilo que não eradedutível do presente ou do passado. Tornar sonoro o futuro.

84.É comum a questão, sobretudo no jovem compositor: “quetipo de música é esta que eu nunca ouvi antes?” E a resposta aele confunde-se com a idéia de novo, de fazer o novo. Confu-são entre novidade e uma coisa totalmente diferente que é a deconectar-se com as forças diferenciais do futuro, aquilo que,na pintura, Francis Bacon esperava a cada novo quadro quecomeçava: ser surpreendido. Alguém me faz ouvir algo quenunca ouvi antes e de repente toda uma comunidade, todo umpovo e sua vida, se abre virtualmente à minha frente. Faltavaum povo e este povo talvez seja aquele daquela música quenunca ouvi antes. Este novo, a “novidade em si”, quando é quesurge? Quando alguma das dimensões, das múltiplas dimen-sões sem medida, daquilo que chamo de música é levado aolimite e colocado a grunhir baixinho, ou em um grito. Quan-do uma linha que não estava presente se põe a ligar duas di-mensões que estavam desligadas. Messiaen fala de ligar o cos-mo à terra, o grande canion às estrelas. Fazer soar uma peque-na seqüência de cencerros como se fosse o som das estrelas(aquele som que não conhecemos nem como matéria nem comoforma), fazer soar as estrelas como se fossem seqüências tilin-tantes (como em Cartas Celestes de Almeida Prado). Outroscompositores fizeram linhas entre o inferno e os sons graves, o

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choro e a sonoridade das vozes, o movimento das chamas deuma vela e o movimento de frases melódicas. O próprio movi-mento, aquilo que acontece aos olhos quando algo sai de umlugar e vai para outro, até mesmo isto que chamamos de movi-mento é uma força não sensível que foi preciso tornar sonora.

85.Não se trata do novo que é em relação a um velho. Este surgeface a uma forma e a uma matéria já constituídas como velhas.Não é tampouco perseguir, tornar sonoras forças não sonorastomando a fórmula de pensar como se fosse a fórmula mágicade fazer. Não é todos os dias que nasce uma idéia, nem mesmoum conceito, e muito menos uma força se torna sonora. Faça-mos então nossos ritornelos. O que vem a ser o ritornelo? Nãoestamos mais falando da simples barra de repetição que encon-tramos em abundância no barroco e no classicismo. Mas tam-bém não devemos deixar tal idéia tão de lado como poderiaparecer. Não falamos de repetição material, mas de repetiçãode uma potência. Ao falar de ritornelo, Deleuze sobrepõe trêsaspectos: o curso-recurso, a ladainha, o canto reiterado dospássaros, o movimento de eleger um eixo; a fuga do territó-rio, o desenho das linhas de fuga; e a demarcação, o desenhodo território advindo do movimento em torno do eixo.

86.Continuo pensando não “a música, o que ela é?”, mas “a músi-ca, com quem ela é?”, “o que pode a música?”. Muito se falasobre o significado da música. Mas valeria aqui um parêntese,para, prosseguindo, deixar de lado esta copla música-significa-do ou música-sentido e questões como “quem causa o sentido:o compositor ou o ouvinte? até onde o compositor atua, até

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onde o ouvinte interage?” O ato de fazer escuta não passa per-to de tais pontos. Qualquer música é um problema de escuta(“ouvidos em todo o corpo”). Uma música é banal quando nãochega a constituir-se em um problema e é aí que aparentemen-te o que se passa é um jogo de decodificação de uma simbologiaqualquer. Cada vez que a escuta se faz, que ouvidos são colo-cados em qualquer lugar (e bem mais do que só dois ouvidos!)toda uma gama de forças passa a incidir como uma tempestadede raio neste ponto de escuta. Algumas forças já vêm sob osolhos do passado. De um lado as possibilidades abstratas quebuscam tornar-se reais, de outro tudo aquilo que é imprevisível,que ainda não ganhou espaço no mundo abstrato, ou que, seganhou, não se acreditava como tal naquela escuta. E desteimprevisível, que não está presente como abstração, mas comouma realidade que simplesmente será atualizada ao tornar-sesensível, nada pode ser dito. É aí, neste imprevisível, que moraa sensação, que mora aquilo que vimos Francis Bacon chamarde “ser surpreendido”. Como se um material emergisse e fi-zesse sensível uma força para logo se desfazer; imagem da ondaque se desfaz no mesmo momento em que torna sensível aforça do vento. Uma sensação: algo se põe em ressonância emnosso corpo, essa superfície movediça da qual não sabemosmuito. Em suma, um acidente.

87.Façamos então nossos ritornelos. Pensar na repetição sem quenela se esteja condenado ao mesmo; a mesma matéria, a mes-ma forma. A idéia de ritornelo não faz apenas uma curta men-ção à música, ao jogo do círculo, mas sim, coloca na linha retado tempo o próprio ciclo. Nota-se aqui que, ao se eleger umeixo, faz-se presente a matéria e o material, e que estes, osmesmos que servem de eixo, trazem sobre si as linhas sobre as

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quais se sai deles, pois é sobre este eixo e não fora dele queadvém a escapada. O que quero dizer é que são aqueles mes-mos elementos que usamos para compor um campo, um do-mínio, um plano, que serão atraídos para fora dele, atraídospor outro plano, servindo como linha de escapada, como pon-to de salto para fora do plano. Componho uma figura melódi-ca, e é desta mesma figura que saltará um gesto, uma textura,uma relação qualquer com a vida, e que aparentemente nãotem nada a ver com a figura melódica. E esse eixo é importan-te, esses elementos me fazem pensar em outra dimensão darepetição do diferente. Não se trata apenas de repetir e dife-renciar, mas de criar a potência da repetição do diferente e dobloqueio ao igual, ao semelhante, ao mesmo. Mas como sairdeste plano um tanto quanto conceitual e levar tudo isto para aescrita musical?

88.O que dizer se fazer música é simplesmente colocar em movi-mento o diferencial da música, aquela função que irá resultarem música, em variável de música, esta idéia inexistente, sócalculável após a última música ter sido realizada? Só seria pos-sível encontrar este diferencial depois de a última música tersido composta. Só aí seria possível encontrar aquilo que inte-graria a série toda de disparates, série em que cada música éum disparate, um corte, uma diferença. Ou seja, não se tratade uma série de músicas umas diferentes das outras, nem demusicalidades diferenciadas face a uma identidade original ouideal não alcançada, mas de uma ação do diferente em si. Éneste jogo diferencial que fazer música é fazer com que forçaspossam emergir de modo sensível em um material. Que forçassão essas? As forças do tempo, do espaço; forças de gravidade,força centrípeta e centrífuga, forças de conexão… as quais não

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retornam nem na forma, nem na matéria ou no conceito, ape-nas reaparecem sempre travestidas em um material que as fazsensíveis.

89.Criar uma seqüência de sons, colocar uma frase sonora depois,ou sobre a outra, não traz em si nenhuma garantia de que oque se fez foi música, nem de que se fez a repetição do diferen-te. Repetir a condição do diferente: que condição é essa? Re-petir o jogo de tornar sensíveis, sabe-se lá como, as forças quenão são sensíveis. Poderia dizer que Debussy torna sensível aforça de algo que se quebra sobre uma superfície ao compor osprimeiros compassos de sua Suite Bergamasque. E como ele mes-mo disse em “pourquoi j’ai écrit Pélleas” em abril de 1902 emseu Monsieur Croche: “Quero dar à música uma liberdade queela tenha talvez mais do que em qualquer outra arte por nãoestar tão limitada a uma reprodução mais ou menos exata danatureza, mas à correspondência entre Natureza e Imaginação.”

90.Pensemos em uma “idéia de música”, uma idéia de música apriori para garantir o que é e o que não é música; o que está nocentro do conceito e o que está na sua borda. Não é bem assimque se ouve e que se diz que algo é ou não música, mesmosendo este o ponto de vista de alguns autores: “A idéia deMúsica”. Se fosse sempre necessário uma idéia de música a prioripara que se garantisse a eficácia, ou a musicalidade de algo,todos os textos produzidos pela pena de Boulez, Stockhausen,Berio, e todos os números da Musique en jeu teriam sido o sufi-ciente para garantir a eficácia da música de concerto ocidentaldos anos 1960 e 1970.

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91.Volto à minha principal questão: o que garante o musical? Setomar de uma definição de musicalidade a priori limita o traba-lho de pesquisa, pois interpõe uma afirmação inconteste quenão nos levaria a nada, atrelar também a música a tudo aquiloque resulte de seqüências de sons não é suficiente. Até mesmoquando pensamos em uma música dos sons das ruas o percursoé o inverso. Não se trata de ouvir as ruas e falar simplesmente“isto é música porque assim eu quero”, mas de ouvir e pensar oquanto tal escuta revela algo de musical. Não se trata de sim-plesmente abrir as janelas e gritar “escute!” como nos propôsJohn Cage. Onde estariam as linhas que demarcam territóriosmusicais e que ao mesmo tempo trariam aquela que é a potên-cia da música: a de tirar, ejetar o ouvinte do território firme,indo fixá-lo em estados totalmente transientes de escuta. Ou-vir os sons que entram pela janela não é encadear sonoridadesdas ruas: ruídos, gritos de ambulantes, bate-estacas reiterante…signos sonoros, ou para usar uma definição de Merleau Ponty:“invólucros vazios”,15 mas de fazer das sonoridades das ruas,fazer deste ponto um eixo e buscar nele o ponto de salto, alinha de fuga, que me retira da escuta cotidiana e me lança naescuta da diferença, na escuta de um espaço liso sem âncorasou amarras.

92.Compor não é da mesma ordem de ordenar, se encadear, deamarrar. Penso a música passando longe de qualquer idéia deorganização. Ou seja, não se trata nem de organizar sons, nemmesmo notas ou gestos musicais. Todos esses recursos produ-

15 Merleau-Ponty, Maurice. La Prose du Monde. Paris: Gallimard, 1969.(Trad. bras. Paulo Neves. S. Paulo: Cosac&Naify. 2002).

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ziram em compositores menos habilidosos uma música enfa-donha, cujo lugar não é o tempo, mas um arquivo (falo dosmenos habilidosos, pois falar de grandes nomes resulta sem-pre em uma leitura falsificada, o que eles fizeram suporta-seindependentemente de suas teorias, de suas idiossincrasias:criticar o dodecafonismo não significa criticar Schoenberg ouBerg, o mesmo vale se criticarmos o minimalismo, não será deSteve Reich que estaremos falando e assim por diante). Esmiu-çando um pouco mais o que deixei solto neste parágrafo, diriaque a música, o que chamamos de musicalidade, não é um cam-po puro, mas um espaço atravessado por domínios distintosde escuta, lugares em que nossos sentidos são chamados a agirde modos bastante distintos. Ouvir um som, ser atraído poreste algo que chamamos de som não é uma ação puramenteauditiva. Nós vemos sons, sentimos a textura de sons, senti-mos a pressão de sons em nossos ouvidos e em nossos órgãos,mas sentimos também seu cheiro, vemos os instrumentos queos produziram, sentimos a ação de um movimento de um cor-po sobre outro. Tudo isto o que chamamos de sonoro. Mas,no plano da música, aquilo a que chamamos de escuta é maisdo que sonoro. Ouvimos os sons discretos em notas, ou seja,o som marcado por pequenas inflexões as quais somos capazesde reproduzir cantando, assobiando, tocando um instrumen-to. E, ao ouvirmos notas, vemos as mesmas notas; as vemosnos nossos dedos tamborilando um teclado imaginário; as ve-mos numa partitura, as dispomos de baixo para cima forman-do escalas, e com isso desenhamos pequenas relações entrenotas, o que chamamos de frases musicais. E ainda vamos alémem nossas escutas. Não ouvimos apenas os sons, as relaçõesentre notas, ou ainda as relações entre sons (sons que se repe-tem ou sons que se transformam), escutamos tudo aquilo quevem com os sons. Não temos como ser surdos às relações queos sons tecem com nossas vidas; um grito, um chamado, um

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choro, um pedido, a voz humana, uma lembrança qualquer,uma paisagem sonora. E assim vai.

93.Tomando mais uma vez a noção de ritornelo, esta se caracteri-za pelo movimento de eleger um eixo, de traçar um espaço emvolta deste eixo, de deixar com que alguns elementos seestratifiquem, com que se crie a consistência necessária paratornar expressivos tais elementos, para então, revelando aqui-lo que é próprio da música, traçar uma linha vertiginosa quequase desfaz tudo: um corte, um acidente, uma sensação qual-quer que não estava ali antes.

94.Veja bem que o ritornelo não é o vai e volta, não é a repetiçãode um elemento. Ele compreende reiterações, jogos de vai evem, mas este é o modo com que ele escolhe um centro, fundaum centro e desenha o seu lugar. A música, sobretudo aquelachamada de tradicional, compreende tal jogo constantemen-te: o compositor escolhe um centro, não uma tonalidade, masum núcleo melódico-harmônico-rítmico-timbrístico. Ou seja,ele escolhe um eixo em torno do qual lentamente desenha oseu território, aquele lugar que leva o ouvinte a notar a cons-trução de uma casa, a construção de um quadro de relações.Álbum para a juventude de Schumann: um pequeno modo dededilhar o piano que se repete gradualmente, conectando pas-so a passo cada um dos pequenos módulos que transitam porentre regiões harmônicas, desenhando uma pequena teia. Nãoé diferente da aranha que nos movimentos de vai e vem tecesua teia, de Penélope tecendo seu manto, ou de Teseu estican-do o fio de Ariane. Este é o desenhar do território. Mas a mú-

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sica não consiste apenas em desenhar territórios. Me limito adesenhar territórios nas cantigas de ninar, nas cantigas de roda,nas danças, nos jogos de sedução: brincadeiras que consistemem enredar um alvo. A música pode também ser desenhada demodo a compreender cortes, desenhos imediatos, instantâne-os, linhas de fuga que me fazem notar a turbulência de umoutro território que se aproxima e que se choca contra umprimeiro: uma modulação, um segundo tema, um corte vio-lento, um jogo de alternâncias – Adágio, KV540 de Mozart;Sagração da Primavera e a primeira das Três peças para quarteto decordas de Stravinsky. Linhas de fuga plantadas em um primeiroterritório e que fazem a escuta cambalear, como quando deum jogo de figuras melódicas, de repente ouve-se uma textu-ra, uma idéia sonora, e o exemplo mais rápido aqui é o doinício do Concerto de BrandemburgoVI de Bach.

95.Em algumas anotações de aula de Deleuze, trazidas a públicono artigo “A propósito de um curso do dia 20 de março de1984: ritornelo e galope”, a compositora Pascale Criton anotaque “o ritornelo seria o conteúdo da música, e tal conteúdo ain-da não seria musical”16. O que vejo nesta passagem é a oportu-nidade de pensarmos a música como sendo aquele lugar emque, ao mesmo tempo em que somos lançados para dentrodela, somos lançados para fora. Mas o que nos lança para forasão aqueles elementos que foram empregados na própria com-posição do espaço musical, e que, nesta sua força de lançarpara fora, é imprescindível uma força que nos prenda, que nos

16 Criton, Pascale. “A propósito de um curso do dia 20 de março de1984: Ritornelo e Galope”, in: Alliéz, E. (org.). Gilles Deleuze: Umavida filosófica. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000.

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leve para dentro, que trace a consistência do plano. Ou senãosucumbiríamos numa seqüência de sensações desconexas; nadaque uma audioteca não pudesse cumprir. Se para ser músicabasta ser uma seqüência de sons, bastaria imaginar uma audio-teca sonorizada. Mas as audiotecas não dispõem seus arquivosem planos de composição, em planos de consistências, e simem estratos de organização, em ordenações numéricas parafácil utilização dos usuários.

96.Imagino alguém que foi chamado para organizar uma bibliote-ca. Tomado de uma vontade forte ele passa a compor com abiblioteca. Esquece-se da funcionalidade e, da esquerda para adireita os livros passam a seguir uma ordem cromática, indodos livros mais acinzentados aos de tons puros, cumprindo aordem do arco-íris. A esta agrega uma segunda, formando pe-quenos subciclos. Pequenos ciclos cinza-tons puros são feitose refeitos, segundo uma ordem numérica que só permite aousuário uma previsão parcial e provisória dos ciclos. Ciclos decinco livros, oito livros, treze livros, assim por diante; na or-dem crescente, decrescente, pequenos saltos. Até que interfe-re toda uma mudança de foco da seqüência (uma desterritoria-lização, diriam Deleuze e Guattari). Atraído pelo formato dasletras que compõem as lombadas, o ciclo de cores é subita-mente abandonado e inicia-se toda uma outra lógica. Assim,ao consultar a biblioteca, o usuário seria levado a experimen-tar uma série de sensações, de saltos, passagens graduais, mu-danças de orientação; das cores às letras, à ordem alfabética,aos títulos, nomes de autores, dimensão dos livros etc. Umpoema, uma música, uma pintura… de biblioteca. Um planode composição e não um plano de organização. Mesmo as or-

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dens aqui teriam perdido toda sua força funcional e ganho umadimensão expressiva.

97.Não se pode esquecer de uma coisa, ou melhor, não podemosconfundir as coisas: traçar o território não é organizar. Não échegar em um lugar e determinar os processos. Uma criançalarga sua mochila na sala, uma gata espalha seus pelos pela casa,enquanto o gato deixa rastros de cheiro, nada foi organizadopara que se fizesse um território. Isto distingue duas idéias.Compor preenchendo e organizando um espaço desorganiza-do, ou espaço vazio, com uma visão qualquer a priori, um pla-no, um esquema. E compor tecendo um território como setece uma linha de fuga, como quem foge. É o que o pintorFrancis Bacon chamava de diagramas. Incorrer em um aciden-te, encontrar ao acaso um ponto, achar um lugar no meio damata; um lugar já preenchido, um lugar cheio daquilo que é osenso comum e que nos exige um bom senso, e simplesmentebuscar nosso próprio canto desfazendo este bom senso. Tecerlogo de cara a linha de fuga, fazer logo de cara um modo desair dali e imprimir uma marca. Não se trata nunca de um es-paço vazio. A partitura em branco não é o espaço vazio, ela é játoda preenchida, ela já está toda atravessada de sensos comunse da exigência do bom senso que se quer o único modo deascendermos à boa cópia de um ideal, de pretendermos ao postomais alto, ao posto mais próximo ao ideal. Bacon fala distocom relação à tela. Falamos com relação à partitura, ou qual-quer outro espaço de composição (penso aqui nas diversas ilhasde montagem computacional para a música… todo um qua-dro de idéias de música já predeterminado com o qual se deba-ter). O espaço já foi traçado, já há a marca, o sinal expressivode alguém por ali. Daí que o território vai se constituir pela

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sua linha de fuga antes de mais nada. Ele é a tentativa de traçaruma saída. Bacon fala em um acidente, valer-se de um aciden-te. Deixar que algo venha à mente, e que se torne um centro,um ponto frágil como eixo; organizar em torno deste pontouma pose (“allure”) calma e estável; e desta mesma posturaextrair uma linha que nos leve a outro ritornelo, outro eixo,outra pose, outro território. A composição não surge de umcentro predeterminado, de um plano de organização.

98.Na composição de um ritornelo, remetendo em parte ao ter-mo de Deleuze, talvez seja possível buscar um modo de com-posição que nos afaste de musicalidades tradicionais, tal qualdescreveu Schaeffer, das quais podia-se extrair as garantias di-versas de musicalidade: a) a garantia de que a musicalidadeestaria associada ao simples fato de aquele amontoado de so-noridades serem geradas a partir das indicações de um compo-sitor a um instrumentista, com gestos específicos e com sono-ridade também específicas deste instrumento chamado demusical; b) a musicalidade garantida pela crença de que fazermúsica é “pôr sons em relação”, ou seja, relacioná-los enquan-to objeto, organizar os sons, gerar um rol de sonoridades quetransitam umas às outras, que se entrecortam etc…; c) a cren-ça em que aquilo que garante a sobrevida de uma música são ostraços de unidade formal, os traços de um desenvolvimentoetc.; d) a garantia extraída de modelos já aceitos de antemão.

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Caminantes no hay camino...el camino se hace al caminar

99.“O ritornelo seria o conteúdo da música, e tal conteúdo aindanão seria musical; o ritornelo capta forças e afetos, lugares emomentos, intensidades de infância: “os sinos do vilarejo”, “ospequenos caminhos gramados”, “um pássaro”, “o trem” vão setornar motivos musicais e retornarão. São também estados develocidades ligados a afetos: acelerações, suspensões, desace-lerações, paradas; ou ainda expressões rítmicas, a chuva, o re-lógio, ou formas sonoras expressivas, a caminhada, a persegui-ção, as rondas, as cavalgadas”. Anota Pascale Criton a aula deDeleuze sobre o ritornelo em 20 de março de 1984.

100.Poderia aqui estar falando de qualquer música, de qualquercomposição musical – desde aquelas que compõem o vastorepertório da música de concerto às encantadoras canções deTom Jobim. Um giro sobre um centro. Que centro? Aqueleque nos atrai, aquele no qual nos perdemos por um tempo, emtorno do qual fazemos uma casa. Para, vez após vez, buscar aporta de saída, cair do degrau da escada da porta da cozinha.

101.É isto que podemos ver muitas vezes na poesia, um giro emtorno de um centro. Não a métrica do verso, mas um outro

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jogo escondido. A rima é muito mais do que um eco a passosprevisíveis, ela pode ser um giro ao redor de um eixo. QuantoWithman escreve seus Leaves of Grass (Folhas da Relva) é o giroque ele descreve. Mas não mais o giro previsível, o giro cons-tante e formalmente reiterado. O giro em Withman, assimcomo em Beethoven, assim como em Brahms, é um giro “lou-co”, irregular. Os ciclos irregulares, como em “Salut au Mon-de!”. Cada linha é marcada não por um eco final, uma rima,mas por uma marca inicial, um ponto de início em torno doqual gira o ritornelo.

102.“[…]

I see the tracks of the railroads of the earthI see them in Great Britain,

I see them in EuropeI see them in Asia and in Africa.

I see the electric telegraphs of the earth

I see the filaments of the news of the wars, deaths, losses, gains, passions, of my race.

I see the long river-stripes of the earth[…]”

Walt Withman,“Salut au Monde!”,Leaves of Grass

103.Em Withman é como se estivéssemos ouvindo o improviso dojazzista. É como se a cada momento a frase recomeçasse, comoem uma música dançante de festa popular. Ciclos, ciclos, ci-

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clos. A idéia do jazz reaparece em Cortázar: La prosa delObservatorio. Ou em Ana Cristina Cesar, muitos de seus poemasem Luvas de Pelica. Um canto de pássaro, retornando a cada novomomento a seu ponto nuclear, seu eixo de partida.

104.O giro é mais do que apenas um aspecto da música; é um as-pecto de musicalidade que atravessa uma grande área de vida.

105.Um giro na música tibetana, nos mantras indianos, nas músi-cas rituais dos Tukano, ou ainda nas canções dos Kaapor. Faltaainda alguma coisa… Está aqui o afeto de um tempo liso, umreloj del viento como nos ajuda a imaginar Miró com sua peque-na escultura. Relógio impulsionado pela irregularidade, pelasalternâncias de velocidade e tensão do vento. Ou um relógiode mecanismo instável, que a cada minuto acrescenta ou sub-trai minutos aleatoriamente. Um tempo liso, de determinadoafeto, mas falta-me o salto. Lembro que Deleuze fala da faltado salto na idéia de ritornelo. Falta o salto, o corte no Cristalde Tempo, guardando a imagem do cristal musicalmente tãocara a Varèse e seu Hiperprisme. A ação da música não é só deviver e percorrer o território, é também a de desfazer o terri-tório, de tirar o giro de seu centro e lançá-lo sabe-se lá onde. Éo corte. Fazer o território é quase que a fatalidade da música.Toda música começa fazendo um território. Daí as proposi-ções todas que atravessam a música desde finais do século XIXem evitar a repetição, a reiteração direta de elementos. Masdaí também uma armadilha para a música que viria pelo séculoXX afora. Evitar a reiteração direta, mas tomando o cuidadopara não se ficar sem casa nenhuma, ou de não se ficar com

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uma casa abstrata: nem melódica, nem rítmica, mas intelec-tual e abstrata.

106.Fazer o ritornelo, fazer a casa, mas atravessá-lo pelo corte. Emseus escritos sobre arte, Paul Klee fala sobre o potencial dra-mático de uma linha. Onde está este potencial? Naquilo querepresenta? Não, ele está no salto que proporciona, na expe-riência de corpo que envolve. Diante do salto, o olho tem dese mexer, o ouvido precisa se readaptar, o corpo se recurvar etomar nova forma; a mão tropeça em uma ranhura e ganhanova aderência, o pensamento muda de lugar. Seja no ver, noouvir, no rastejar com o corpo, no roçar a mão, existe aí umaexperiência de um corpo sendo arrastado para fora de um lu-gar: o hábito. A exigência de tomar uma nova posição, novaforma… Eis o potencial dramático, ele está no corte que alinha sofre e não totalmente nos significados que um ou outroritornelo possa captar. É com meus ritornelos que capto osruídos à minha volta, alguém que fala, um pássaro que canta,uma idéia numérica que me ronda, uma frase que não pára desoar. Com esses jogos de significados eu poderia também mevaler do salto, do corte.

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107.

Paul Klee, Eclusas

“... a justaposição de fortes contrastes engendra uma expres-são cheia de força. A introdução de um modo de ligação

entre esses contrastes afasta uns aos outros e enfraquece aexpressão. Saltos de grande envergadura resultam de uma

força mais importante que saltos de média envergadura. Oscontrastes secundários enfraquecem a força de expressão,

mesmo se justapostos sem ligação. A introdução de uma liga-ção conduz um enfraquecimento por enriquecimento e que-

da de tensão”.

Paul Klee, “30 de janeiro de 1922”La pensée créatrice

108.Numa seqüência de poemas curtos de Adília Lopes, o corte nocampo daquilo que acreditamos serem significados. Conteú-dos simples, relações diretas, e cortes totalmente dispersantes,abrindo a porta do poema para fora do que poderia pura e

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simplesmente descrever. São inversões, paradoxos, mudançasde situação e ambiente, artifícios e artifícios, mas sempre comomolas de um corte, de um salto, de uma potência expressiva.

109.trecho de “Op-art”

“1A poetisa é Marta

e é Mariamas a máquina de costura

encravoue Jesus hoje não passou

4Tenho 32 anos

nunca fui a um enterroe também nunca fui

a Algarve[…]”

trecho de “Meteorológica”“[…]

Vi namoradospossíveis

foram boisforam porcos

e eu paviose pérolas

[…]”

Adília Lopes,Antologia

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110.

Lembrando as primeiras versões deste desenho tosco, páginasatrás: o que aconteceu agora, o desenho visto em sua evoluçãono tempo? Um corte. Uma série de cortes. De onde vierammais e mais espaços achureados? De onde vieram os ornamen-tos na base, e a linha de pequenos gravetos com círculos notopo da segunda linha de baixo para cima? Um corte na se-qüência que vinha sendo desenhada anteriormente. Mas, e omaterial para isto tudo? O material é aquilo que temos à mão.Para tornar uma força sensível nos valemos de um material,um punhado de “matéria investida de relação humana”. O ma-terial é sempre de um coletivo, ele não é nunca individual,aliás, nem teríamos mesmo como pensar em um individualneste campo, respondendo à questão que se coloca Mário deSá-Carneiro, “serei uma nação? ter-me-ia volvido em um país?”em Céu em Fogo. É por isto que as referências são aquilo quenunca falta. O material é o ponto de cruzamento em que amatéria é ultrapassada. Se a matéria se submete à forma, se elase diz representável em uma superfície, codificada de maneira

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sólida, não é bem este o caso do material. As linhas, os quadra-dos, triângulos, manchas, de um desenho não são quaisquerlinhas redutíveis a um nome, são aquela linha, aquele triângulo,aquelas manchas, naquele papel, naquele dia, hora, lugar. O ma-terial mantém sua relação com a matéria, um mergulho até oselementos invisíveis da matéria, como observa Merleau-Pontyem A Prosa do Mundo. Com isto não se trata de uma construção,mas de um plano de composição cuja guia não é a ordenação,mas a composição de um bloco de sensação: uma encruzilha-da. Não se faz música com uma matéria, mas sim buscandofazer ou refazer um material, reencontrar a sensação de umaforça que foi possível através de um material. O que seria estematerial? Ele é aquilo que tenho à mão, mas que por estar àmão já está atravessado de relações, um ponto de cruzamentomutante, instável. Poderia dizer que o material é a madeira, apedra-sabão, os santos, a igreja, o renascimento para Aleijadi-nho; é a tinta, a paisagem, o azul e o amarelo, os pincéis, aspessoas, toda a pintura de Milliet para Van Gogh. Mas acres-centaria: é aquele pedaço da madeira, aquele pedaço de papel,naquele dia e não qualquer outro a qualquer hora. Algumasnotas repetidas lentamente construindo um acorde estranho,toda a música de Vivaldi. É aquilo que está à mão, e do que,não se sabe bem porque, se gosta e retorna como gesto. Elemesmo já sendo um corte, um crivo, uma moldura que fazcruzar algumas linhas que antes não se notava que passavampor ali. E compor é então, ao invés de elencar códigos e maiscódigos, apenas desenhar um lugar com um material, deixarclaras as forças, ou melhor, fazer cortes para que fiquem soltosos fios que puxam forças. Tudo de modo a fazer da leitura e daescuta não mais o papel do detetive nem do professor, mas ode simplesmente “puxar fios” ao invés de “decifrar”, como nosdiria a poeta Ana Cristina Cesar, na leitura de Annita Costa em

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O texto louco de Ana C.: a poesia que a mídia não leu, pontos deconexão com o futuro, com o que ainda não está delineado ouprovado.17

111.Que forças são essas das quais estou falando? Klee se refere àsforças da natureza, forças como a centrípeta, a centrífuga, aforça da gravidade, força de crescer, força do vento e outrosvetores, forças que conectam coisas, as quais não enxergamosnem ouvimos, apenas sentimos. Os compositores espectraisfranceses, o que fazem eles? Fazem ouvir uma força interna dosom, o seu espectro, as junções e disjunções de seus parciais. Eassim vai…

112.“deixar de ficar aqui parado e me sentar ao piano e começar atocar algo e escrever uma linha ou outra depois atender aotelefone e daí escrever uma carta para alguém ler um trabalhoinfernal ler outro trabalho infernal e ir a uma reunião imaginá-ria terminar um projeto e daí escrever mais uma linha de mú-sica e tocar mais um pouco enfiar a mão nos bolsos e dar umdinheiro à empregada para comprar alguma coisa imensamen-te necessária para o almoço acender uma lâmpada porque fi-cou escuro apagar a lâmpada por que não é tão necessário as-sim e sair de casa para tomar um café ou quem sabe ir dar umavolta no parque encontrar com alguém ter mil idéias e compormuitas muitas músicas andando pelo parque querer voltar paracasa para registrar tudo voltar e tomar um banho terminar o

17 Malufe, Annita Costa (2003). O texto louco de Ana C.: a poesia que amídia não leu. Dissertação de mestrado. PUCSP.

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banho e dar um cochilo e daí lembrar que é hora de ir jantar ouque é hora de ir dar aula ou que é preciso sair para uma novareunião infernal com algum estudioso sério das comunicaçõese ouvir no rádio do carro algum cantor fingindo que é moder-no e manifestando suas vontades de ter dinheiro vontade deter sucesso vontade de vender muitos discos e deixar o pai amãe o irmão satisfeitos e poder convencer algumas meninas deque aquilo sim é que é música aquilo sim é que é cantar e vocêali desligando o rádio infernal do carro e parando porque final-mente chegou onde tinha que chegar e chegando lá ter mais emais idéias de uma música que talvez seja escrita um dia sabe-se lá quando mas é claro que será escrita quando você tivertempo e vai ter tempo depois de ler todas as teses que tem queler depois de ler as dissertações e aprovar e desaprovar alunosem cerimoniais de qualificação e de defesa e em comissões debolsistas e logo lembrar que tudo aquilo não pode ser feitoporque tem um projeto importante a ser levado adiante. Umalinha de fuga; sair do centro e entrar a todo tempo em umanova ciranda, em uma nova cantiga de roda, em um novo rit-mo circular que crava um centro, que se vale de uns movi-mentos e de algumas coisas que estão ali por perto (jogar amochila na poltrona da sala depois largar uma calça amarrotadana maçaneta do banheiro e sair por aí deixando marcas e mar-cas) tudo de modo a contracenar o centro, o giro e os outroscentros e outros giros que nos levam a um novo centro umnovo giro”.

113.Compor um ritornelo, compor uma cela. Um quarto que nãosó abriga, mas obriga, impõe uma dimensão. É preciso rom-per o quarto, quebrar as amarras do quarto e percorrer umasde suas linhas maleáveis. E achar a saída só pode ser feito de

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um modo: experimentando. Não há saída prevista em uma cela,para a cela é improvável que algo escape. Uma idéia de possi-bilidade está associada à cela, e também uma idéia de impossí-vel, de improvável, de virtual está associada ao plano de fuga.Mas cabe distinguir esta possibilidade daquela abstrata. Umapossibilidade abstrata existe cada vez que eu penso em algo,que quero algo, que tomo um caminho previsível, e esperoque este se realize tal qual abstratamente imaginava. O planoda composição, aquele plano desenhado pelo material e deli-mitado pela moldura (mesmo que não haja moldura… e que amoldura seja cada linha, cada figura), este não é uma abstração.Pelo contrário, ele já é real, é por ele que passarei, é por eleque a escuta passará enquanto a música for tocada. É claro quesempre há o espaço para o acidente, o não previsível. Mas oplano está desenhado ao menos em parte. As paredes da celaestão ali.

114.Debussy faz seus ritornelos de um modo bastante interessantenos Preludes. Logo na segunda das peças deste livro, o compo-sitor desenha não uma simples casa, mas uma casa já cheia decorredores e cômodos que se intercambiam. São três persona-gens, um ritornelo a três, que desenham não só os lugares,como também suas margens de saltos. A mesma idéia aparecede outra maneira no Sacre de Stravinski, ou melhor, na análiseque Olivier Messiaen faz desta peça.18 No último movimento,na Danse Sacrale, Messiaen localiza dois personagens que se al-ternam. Um deles parado, uma figura que ocupa um espaçofixo de tempo, testemunha do movimento de uma segunda,

18 Messiaen, Olivier. Traité d’ornitologie, temps et couleur 1942-1992,tomo II. Paris: Leduc, 1994.

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cujo espaço de tempo que ocupa é variável. Outros persona-gens aparecerão margeando o personagem-testemunho. De-senhando o território com mais de um personagem, faz-se comque cada um deles sirva como força de corte, modo de saltarou simplesmente passar de um território a outro. Mas nemsempre os personagens precisam estar aparentes: nas linhas tor-tuosas do corte de um tronco de árvore desenhados porHundertwasser ou no crescimento multilateral estudado porKlee, há mais de um personagem ali. Há no mínimo uma linhae uma força que retorce tais linhas. Atratores e repulsores queretorcem um fraseado. A presença de uma nota central, emtorno da qual gira uma melodia, a presença de mais de umanota central em torno das quais uma ou mais linhas melódicasse entrelaçam e se entreatraem.

115.

“Volumes em crescimento multilateral:crescimento em corte transversal (1, 2),

corte longitudinal (3).”

Paul Klee, “27 de fevereiro de 1922”Lá Pensé Créatrice

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116.Voltando a falar do corte, indo de fato em fato, de corte emcorte, a música não se tornaria uma simples seqüência extensi-va de eventos, um jogo de simples justaposição quase que re-estabelecendo o velho jogo da causalidade? É o que vemos acon-tecer em algumas análises-descrições musicais. Falo aqui maisprecisamente da descrição da obra Ionisation, de Varèse, feitapor Slonimski, apresentada juntamente à primeira edição dapartitura. Sem ter muito o que dizer quanto à estrutura for-mal, quanto às relações já tradicionais entre as notas, os rit-mos, as sonoridades, Slonimski basta-se em descrever, em ali-nhavar o que acontece passo a passo, narrando a seqüência. Ofato é que Varèse leva ao colapso os instrumentos descritivosda análise musical mesmo hoje em dia.

117.Existe um campo de composição. As coisas não estão soltas.Mesmo havendo um ouvinte, um leitor ou seja lá quem for,existe um lugar e ele não é qualquer lugar. Damos nomes aalguns desses lugares: Nona Sinfonia de Beethoven é mais o nomede um lugar do que uma referência a um autor, época ou seja oque for. É em um campo de composição que estão inscritosaquele rasgo nos espaços sonoros-visuais-táteis-olfativos-etc.no qual um tanto de matéria estava interligado, um tanto deforma se deixa entrever, tudo elevado a material-forças, masaptos a ganharem novamente o seu lugar em um campo con-creto, ganhar corpo. O compositor é totalmente responsávelpelo plano de composição que cria. E, finalmente, depois devolteios e volteios, o que vem a ser o plano de composição? Oque estou querendo falar com isto?

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118.“Vi que não há Natureza,Que Natureza não existe,

Que há montes, vales, planícies,Que há árvores, flores, ervas,

Que há rios e pedras,Mas que não há um todo a que isso pertença,

Que um conjunto real e verdadeiroÉ uma doença das nossas idéias.

A Natureza é partes sem um todo.[…]”

Alberto Caeiro, “poema XLVII”O Guardador de Rebanhos

119.“Somos cinco amigos, certa vez saímos um atrás do outro deuma casa, logo de início saiu o primeiro e se pôs ao lado do

portão da rua, depois saiu o segundo ou melhor: deslizouleve como uma bolinha de mercúrio, pela porta, e se colo-cou não muito distante do primeiro, depois o terceiro, emseguida o quarto, depois o quinto. No fim estávamos todos

formando uma fila, em pé. As pessoas voltaram a atençãopara nós, apontaram-nos e disseram: ‘os cinco acabam desair daquela casa’. Desde então vivemos juntos; seria uma

vida pacífica se um sexto não se imiscuísse sempre. Ele nãonos faz nada, mas nos aborrece, e isso basta: por que é que

ele se intromete à força onde não querem saber dele? Não oconhecemos e não queremos acolhê-lo. Nós cinco também

não nos conhecemos um ao outro; mas o que entre nós cincoé possível e tolerado não o é com o sexto. Além do mais

somos cinco e não queremos ser seis. E se é que esse estar

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junto constante tem algum sentido, para nós cinco não tem,mas agora já estamos reunidos e vamos ficar assim; não que-

remos, porém, uma nova união justamente com base nasnossas experiências. Mas como é possível tornar tudo isso

claro ao sexto? Longas explicações significariam, em nossocírculo, quase uma acolhida, por isso preferimos não expli-

car nada e não o acolhemos. Por mais que ele torça os lábios,nós o repelimos com o cotovelo; no entanto, por mais que o

afastemos, ele volta sempre”.

Kafka, “Comunidade”Narrativas do Espólio19

120.Retomo um pouco o que já foi dito antes. No plano de compo-sição opero diretamente com o que posso chamar de material(Deleuze substitui o par matéria-forma do fenômeno pelomaterial-força da sensação), a matéria investida de relaçõeshumanas. Existe algo entre o espaço que percorro, onde memexo e o espaço em que outro corpo se mexe, este algo, estaturbulência me perturba, perturba também um outro, e eume ponho em contato com ela, ou nos pomos ambos os cor-pos em contato com ela, estamos aí investindo aquela existên-cia, aquela perturbação sem nome, de uma relação humana.Quando o compositor escreve sua música ele se vale de coisas,se vale de formas musicais, se vale de blocos sonoros, de acor-des, até mesmo de alguns acordes cheios de nomes, ou demelodias cheias de história (eu uso um piano e ali está toda ahistória da música tocada no piano, como disse Cortázar a res-peito de Prossezion de Stockhausen), este é o material. Agora, o

19 Trad. bras. Modesto Carone. S.Paulo: Cia das Letras. 2002.

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que fazer com o material? Tecer um plano de composição,tornar sensível, com este material, aquilo que não é sensível.Tornar sensível ali, em uma sala de concerto, a violência domar; tornar sensíveis ali, em um acorde extremamente grita-do e dissonante, o ciúme e a perda; tornar sensível, ali em umfone de ouvidos, o frio gélido do corpo de um filho morto, ofrio gélido da lápide; tornar sensível… tornar sonoras as for-ças não sonoras, esta é a forma de Klee trazida para a música.

121.Não é o ouvinte que faz a música: “abra a janela e ouça: músi-ca”. Cage não estava querendo dizer isto, com sua frase eleestava apontando para a sua própria música. Abra a janela eouça uma música de ruídos, de ruídos que, se antes eram ape-nas matéria voltada à percepção, Cage transformou em mate-rial para tornar sensível a força antes não sensível do silêncio.O ouvinte não faz música (sei que isto dói aos ouvidos demo-cratas), ele ouve, ele faz escuta. Mas o compositor tambémnão faz ouvir (por mais que isto doa àqueles que gostariam depastorear ovelhas), ele apenas compõe um plano. Compor édesenhar um lugar, preestabelecer o que tem por lá, pôr algu-mas pedras, umas passagens, umas saídas, criar umas ranhurasque possam, quem sabe, atrapalhar uma visão que era clara. Eeste é o plano de composição pelo qual se passeia. A cada mú-sica um plano, a cada quadro um plano, a cada livro, poema,peça teatral, escultura, dança, sempre um novo plano. E asescutas, elas não são diferentes a cada vez que ouvimos atémesmo uma mesma música? Sim, são diferentes, o plano é cheiode acidentes e o modo como caminhamos por ele é que é sem-pre outro, não são as mesmas coisas que as forças nos fazemconectar. O jogo de conectar é o jogo de fazer escuta; é arazão da diferença. Se existe algo no plano que me permita

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compor ou ouvir antevendo relações, passam também sobre oplano os acidentes que insistem a cada momento.

122.“NÃO BASTA abrir a janela

Para ver campos e rio.Não é o bastante não ser cegoPara ver as árvores e as flores

É preciso também não ter filosofia nenhuma.Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.

Há só cada um de nós, como uma cave.Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;

E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.”

Alberto Caeiro,Poemas Inconjuntos

123.Descrever uma música é outra forma de passear, ou de refazerum passeio pelo plano. Refazer a seqüência… um caminhoque se faz ao caminhar: “a peça começa assim, com um som tale depois vai alargando e depois segue para outro lugar e depoisbifurca e depois aparece um solo e depois o solo se dilui edepois e depois e depois… vêm uns clusters e depois uma coi-sa rítmica para cortar tudo...” A seqüência pode ser de sons(objetos sonoros assim ou assado), ou de notas (objetos musi-cais: acordes, frases, gestos…). Se há um perigo, ele está jus-tamente em restaurar o par matéria-forma, enevoando nova-mente as forças. Pois o material, do material pouco se podefalar. Por quê? O material, mesmo sendo localizável, “posso

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trabalhar com o material tal ou qual”, ele não se basta em aqui-lo que se vê nele mesmo. O material é um ponto de cruza-mento entre indivíduos-coisas: idéias, lugares, histórias, es-tratégias, cantos de pássaros, lembranças, fragmentos deobjetos, saídas momentâneas etc. Ele é atravessado por aci-dentes e, como lembra Francis Bacon, não se refaz um acidente.

124.Lembro aqui da imagem para pensar o intersecionismo dese-nhada por Fernando Pessoa. Cada ponto é um entrecruzamen-to de linhas. De onde vêm tais linhas? Que linhas são essas? Sãolinhas do futuro. Não são dedutíveis do presente ou do passado.

125.O compositor francês Gerard Grisey falava no problema do cor-te. Fazer um corte é um grande problema para o compositorespectral porque faz com que se ouça o imediatamente antece-dente, recolocando a duração à qual o ouvinte se submetia à se-qüência passado-presente-futuro. A música espectral tem sua for-ça justamente no continuum, na duração dentro deste continuum,um tempo de eternidade, que não veio de lugar nenhum e nãoparece ir a lugar algum, não havendo sucessão de coisas, mas sim-plesmente uma modulação lenta e que se quer imperceptível comotal. Para Grisey, o corte salienta o momento, salienta a matéria elhe dá uma forma. Ouvir a força da deformação do som na dura-ção impede a presença do corte, do jogo expressivo. Mas, comoenfrentar o corte numa estratégia que não se limite a evitar, mas ase valer? O fato é que a seqüência na música é apenas uma fatalida-de. O problema do compositor estando em desenhar o tempo enão em seguir o tempo ou se colocar no tempo. E que tudo isto seagrava quando trabalhamos com um personagem só. Mesmo dis-

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pondo de modo linear uma contracena de dois ou mais persona-gens, a linearidade não se faz tão fácil assim.

126.

“nota il moto del liuello dell’acqua, il quale fa a uso de’capelli, che ànno due moti, de’ quali l’uno attende al peso

del uello, l’altro al liniamento delle volte […] una parteattende al inpeto del corso principale, l’altro attende al moto

incidente e reflesso”.

Leonardo da Vinci,Manuscritos de Windsor

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127.Visto que o tempo é seu principal problema, a composiçãomusical teve na forma um de seus pontos de parada. O que é aforma? Não passa de um contorno, de um mapa em que estãoinscritos os principais pontos de mudança de um percurso. Amúsica começa assim ou assado, depois passa para uma segun-da fase contrastante, retoma alguns de seus elementos (temas,harmonias, frases curtas, acordes) e tece com isto uma espéciede desenvolvimento, para depois voltar à primeira e segundafases. O que distingue esta descrição daquela de um simplesencadeamento de fatos e coisas? Aqui a forma atribui funções equalidades a cada parte e cada elemento. Ser contrastante, de-senvolver, retomar, são papéis que agregam uma coisa e outraem um plano de organização. Mas se olharmos com calma umapartitura de Beethoven, Mozart ou Haydn, ou mesmo Brahms,esta forma não diz grandes coisas. Ela é a moldura, um proble-ma a menos para o compositor. Ou mesmo um espaço parapequenas querelas de época. É nos entremeios desta forma queo compositor deposita seu trabalho. É definindo cada um dosmomentos, fazendo seus pequenos ritornelos que ele desenhaos lugares. É preciso desenhar esses momentos dos quais fala-mos antes. Elas não são meros espaços a serem preenchidos.Na ótica da forma, os pontos de mudanças aparentemente sãoalguns poucos, mas temos pontos de mudança a cada momento.Cabe ao compositor fazer com que seu material se estabilize,com que se desenhe lugares e com que esses lugares sejam desfei-tos, ora bruscamente, ora lentamente, ora de maneira enganosa.

128.Para se desfazer, ou ao menos amenizar a importância da forma,seria um pouco falho recorrer aqui a uma crítica simplesmente

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moral e teórica. O compositor André Boucourechliev, em seupequeno livro Le Langage Musical, apresenta talvez os elemen-tos suficientes para afastar esta posição muitas vezes reiteradanos debates musicais do séc. XX.20 Teoricamente a forma évista como um esqueleto, como uma bandeja metálica de re-feitório cujas subdivisões devem ser preenchidas, mas de quê?A resposta mais conhecida é de que ela deva ser preenchida deelementos que tornem clara a própria forma. A tarefa de com-por passa assim a ser a de destacar um objeto, e depois debuscar um outro que lhe faça contraste, e depois de desenvolvê-lo, tudo didaticamente elaborado para deixar a forma clara. Apresença do professor. No entanto, o pensamento moldado naforma não fala de uma coisa: o que dá vida a cada momento, acada instante da peça? Não são poucos os compositores quenaufragam na tentativa de tornar a forma clara e deixam delado a ação mais desafiadora de tornar sensível uma força espe-cífica que sonoramente ainda não é sensível. A forma não é oobjeto da composição, ela é apenas a moldura que não nosdeixa naufragar de um outro lado: na lama do indiscernível.De um modo um tanto quanto esquemático, pode-se dizer quea música do séc. XX viu dois movimentos: de um lado a aten-ção à forma, a armadura; de outro a atenção ao objeto, a massainforme. A atenção à forma desfez a atenção, antes relevante,dada ao fluxo e aos elementos de consistência de uma obra, jáa atenção ao objeto fez esquecer a importância de uma moldu-ra abrindo-se para o perigo de se cair em alguns modelos tãorebatidos quanto às formas mais simples da música tonal: par-tir de sons longos e lentamente ir fazendo deles sons curtos;partir de sons separados e lentamente aproximá-los; partir desons de aspecto mais rugoso e ruidoso e lentamente conduzir a

20 Boucourechliev, André. Le Langage Musical. Paris: Fayard. 1993.

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sons de altura definida. Abrindo mão da forma, toda uma mú-sica eletroacústica toma a forma mais simples como modelo.O dégradé como modelo da boa forma.

129.Um diálogo com a forma foi proposto por diversos composi-tores. Igor Stravinsky no Sacre: construir pequenos ritornelosirregulares que partem de algo bastante simples e são levados aum ponto de grande complexidade e instabilidade para, comum grande corte, começar o ciclo mais uma vez; fazer isto poralgumas vezes, mas sempre trair a previsão fácil com pequenosentrechoques e descaminhos. E Edgard Varèse, que fazia comque a forma nascesse da própria manipulação de seu material:“um apito de navio” retomado pelas diversas fórmulas que eleforjava como a do diferencial, a do crescimento dos cristais ou ado hiperprisma.

130.Retomando Varèse hoje em dia, para tecer um ritornelo e dei-xar que a forma aflore como necessidade e como contorno, épossível simplesmente se começar sem um projeto formal; as-sumir a cada passo estratégias de interferência; assumir a pró-pria forma como interferência; tentar uma nova estratégia, aoinvés de seguir o curso passado-presente-futuro, pensar a mú-sica como um poema fixo, fora do tempo, com uma forma quecresce de dentro para fora – é a própria forma que se buscafazer sensível, esta seqüência temporal que começa fora dolugar. Passo aqui a falar um pouco de uma composição, ou deuma estratégia de composição que venho empregando. Nestepequeno brinquedo de girar a idéia, tomar como ponto de par-

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tida um acidente, um gesto qualquer que não deixa de quererse impor, alguma coisa daquelas que saem quando sentamos aopiano para improvisar. Depois, ainda como quem improvisa,descobrir o que decompõe este gesto, e girar dentro dele. Fa-zer variações, ou simplesmente replicar o gesto como umavassoura que, ao passar, deixa-se aderir por pequenos frag-mentos de outras coisas também acidentais que vieram se fazerpresentes. Por vezes deixar mesmo que o gesto seja quase quedestruído por um outro gesto, por outros elementos que nadatêm a ver com ele e que não o deixam retornar com seus tra-ços de semelhança. Estratégias de articulação: de articular oquê? O tempo e a sonoridade. Não é muito diferente do queacontece nas primeiras quatro páginas da Sagração da Primavera,de Stravinsky.

131.Compor é situar-se entre duas brincadeiras: o gesto de tocarum instrumento, cantarolar uma frase, e uma estratégia de ar-ticulação. Mesmo quando o compositor quer narrar algo, aocompor uma ópera, ele é tragado pela estratégia de articula-ção, pelo seu ritornelo – do qual nasce seu artesanato. O jogode narrar perde a sua funcionalidade e torna-se então expressi-vo. Vem daí talvez o desconforto de ouvir composições que sequiseram apenas descritivas: de compositores cujos nomes nemmais nos lembramos... Strauss não descreve, ele é arrastadopelas estratégias, pela fuga, pelo jogo dançante, pela composi-ção do tema não-cantável do super-homem (uma melodia demais de quatro oitavas), ou ainda pela composição do grandecluster diatônico da sua Sinfonia Alpina. E assim vai. Mas ou-tros compositores descrevem: primeiro os caçadores, depoisos pássaros, depois sei lá, e depois mais coisas. E então? Tudo

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é enfadonho. Ou ainda aqueles que narram uma estrutura (maisenfadonhos ainda): primeiro o som sem os primeiros harmô-nicos, depois sem os segundos harmônicos, depois etc. A es-tratégia não é o assunto, ela é só estratégia. O jogo das fugasde Bach não é a forma da fuga. Esta já está garantida. Bach nemprecisa mais se preocupar, ele brinca com a forma, mas o jogoestá em fazer e desfazer o tempo, compor e decompor os ci-clos. Ser tragado por uma estratégia de articulação que nãoestá nem no tema, nem na forma, mas na seqüência dos objetos,nos cortes, nas escapadas... aliás, é como se tudo acontecessenas escapadas. É ali que o compor “compõe”, é ali que ele lançao momento mais decisivo de sua arte.

132.Para um compositor do barroco ou do classicismo, ou mesmodo romantismo, a forma não é o problema. A forma existe,ela já está garantida, e justamente por estar garantida é que elaé totalmente remodelável, é que ela não é o tema, muito em-bora as composições tomassem nomes de formas: sonatas, pre-lúdios, fugas.

133.um gesto &uma estratégia de articulação &uma série de escapadas, não previstas pelo primeiro ritornelo,nem pelo gesto.Poderia colocar assim a fórmula do ritornelo.

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134.

“[…] Como um prelúdio, o movimento começa em A comdezessete, cai verticalmente com todo seu peso com um valorde vinte e três, se abre descrevendo um grande ângulo para adireita com treze, sobe mais uma vez verticalmente com três,vira em ângulo reto para a esquerda com quinze e termina no

ponto Z (as cifras devendo ser compreendidas do ponto devista qualitativo e não quantitativo). […]”

Paul Klee, “30 janeiro de 22”La Pensée Creatrice

135.“não acreditar em nada em nadaque reluz em nada que persiste

não nada é só belo e de nadagarante acreditar não persisteo lugar em que a mão pousoucom carinho fere agora a mão

que tocaesta cinza de cacos

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vinda do fundo de um armáriocomo uma fênix disforme sem

nem mesmo cacos acreditar em quêem nada ora acreditar por quê”

Marcos Siscar, “Sobre uma taça de cristal”Metade da arte

136.Digamos que o poema “Sobre uma taça de cristal” de MarcosSiscar carrega uma música dentro de si. Digo “uma música” enão de uma possível tradução em música: uma sonoridade,uma forma musical etc. O poema de Siscar põe em ressonân-cia certas musicalidades. São diversas músicas e talvez seja pos-sível fazer aflorar uma delas. Uma idéia de ritornelo. Didatica-mente, poderíamos desenhar algo que correspondesse ao poe-ma, com formas e notas… por que não? Uma transposição.Porém, a convergência da transposição é quase sempre expli-cativa, como se houvesse uma idéia, uma forma, uma sonori-dade ou algo do gênero para ser explicado. Há algo mais, opoema deixa claras as forças que o dispararam, não há um pla-no profundo a ser revelado por um texto paralelo, uma melo-dia, uma ornamentação. É interessante a idéia de Siscar, poisexiste um rondel (como ele mesmo nomeia outro de seus poe-mas). Um giro de palavras, sonoridades, significados, longas ebreves. Um giro que vem embaralhar um sentido simples dafrase, pois não é difícil recompor cada frase de seu poema:“não acreditar em nada, em nada que reluz, em nada que per-siste etc”. No entanto, isto não vem ao caso, pois, ao embaralharsuas frases com um simples recurso de enjembement, as palavrastornam-se blocos de um jogo de permutação. Ao invés da con-vergência, a divergência, ou disjunção. As frases se desfazem

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para dar lugar a um sentido que não pertence ao universo darepresentação de uma realidade ou de uma idéia. O sentidovem na superfície, vem na forma de um tempo, de um pulsoestranho, de significados que se esfacelam. O poema de Siscardesenha com suas permutações conjuntos de palavras, comespaço para escapadas, momentos em que o tempo se alongasobre palavras que não estavam previstas no quadro inicial.Numerando cada bloco de palavras, tal idéia ficaria clara aosolhos: uma escala cumulativa, de 1 a 17, com pequenos retor-nos ao ponto original, como se a palavra “nada” funcionassecomo eixo polar de um primeiro ritornelo. Vem daí uma es-pécie de musicalidade. Acordes escolhidos ao acaso, lentamenteconstituem ciclos e pequenas famílias sobre um tempo camba-leante, mas desenhando sempre um rondel, um ritornelo, umacantilena. Aqui estaria a forma e as forças, a moldura e suacarne.

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Em um Livro das Sonoridades,por que não descrever?

137.“Debaixo de seu chapéu verde

você esconde os olhoso rosto

enquanto vasculha na areia da praiaalgum palito de sorvete

alguma conchaalgo que possa rapidamente ser transformado

pelas palavras que acabam de chegar[…]”

Heitor Ferraz, “Francisco”

138.Nem mesmo nas cartas que Van Gogh escrevia ao irmão Théoele deixava de ser pintor. Em cada uma de suas pequenas des-crições ele tenta furiosamente preender a paisagem nas suaspalavras, na cadeia de palavras, depois de já ter passado pelomesmo embate ao dar consistência e permanência a um fluxode sensações em um ou mais quadros e desenhos. Não se tratade perceber a paisagem e de representá-la em uma tela, emum desenho, mas de fazer aparecer as forças da sensação dapaisagem ao fazer-se do desenho, da pintura, das frases queparecem cumprir a simples tarefa de descrever. A palavra éaqui também um material no qual se fazem sensíveis as forças

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não sensíveis da paisagem, a preensão de um mundo. Palavrasque acabam de chegar, como que pela primeira vez.

139.“Raspei um grande estudo pintado, um jardim das oliveiras,

com uma figura de Cristo azul e laranja, um anjo amarelo.Um chão vermelho, colinas verdes e azuis. Oliveiras com

troncos violetas e carmins, com folhagens verdes, cinzas eazuis. Céu limão”.

Van Gogh, 6 de julho de 1888

140.Dias e dias arrastando na leitura das “Cartas de Van Gogh aThéo”. Não seria por menos, agora, descrever uma de minhaspeças lembrando a descrição que Van Gogh faz de seus qua-dros. Em suas cartas o pintor descrevia ao irmão seus quadros,o mundo, as pessoas, as paisagens, livros, as cortinas de seuquarto em Saint-Remy, tudo como se fosse quadros. Jogos decor e espaço… Eu, de minha parte, queria conseguir fazer omesmo com a música e criar com uma carta, no ouvir das pes-soas, tantos sons quanto Van Gogh causou de luz, cor, movi-mento, sensações de intensidade e profundidade em suas cartas.

141.Descrevendo Em torno da pedra à maneira de uma carta.21

“O título não diz nada. Apenas algumas pedras e sonoridadesde eco de quando subimos nelas ou as contornamos pela base.

21 Em torno da pedra é uma obra orquestral inédita que escrevi no ano de 2002.

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Pedra Selada; subi aquele pedregulho em julho de 1999. Co-mecei a partitura vendo a montanha da janela de uma pousada.Terminei a peça aos pés da Serra de São José para onde volteino mesmo julho de 1999, depois de quase 15 anos sem estarpor ali. Voltei para lá em 2000, 2001, 2002 e me preparo paravoltar ainda mais uma vez. Foi ali que dei o passo definitivopara a partitura que fechei finalmente em novembro do mes-mo ano.

O início original da peça foi mudado, como sempre costumofazer... prolongar um pouco mais o início do primeiro rascu-nho! Afinal de contas, nos rascunhos anoto fluxos, depois éque controlo e regulo o tempo. Na versão final, o início é umjogo tilintante: violinos e flautins no agudo em fortíssimo, re-alçados por um quarteto de claves distribuídas pelo palco.Pererécas, grilos, só o metal escondido da pedra. Soa um pou-co o inferno sonoro do anoitecer na beira da mata e do batidoseco da madeira cortada. Apenas sonoridades. Talvez um gritode angústia? Mas para que definir se este grito agudo é logocortado de vez e bruscamente por um quase sussurro cantadopela viola e depois pelo violoncelo. Uma voz rouca que ressoaa pancada dos contrabaixos. Para cada nova vez a ressonânciado contrabaixo foi desenhada de outra maneira, como se ba-tendo palma ouvisse meu eco e girasse o corpo fazendo o eco acada vez com novo colorido. Ora mais longo, ora mais curto;ora sonoro, ora sussurrado; ora brilhante, ora fosco. Essas pan-cadas graves, que não param, vão se espaçando e é como se umnovo quadro de sonoridades fosse aberto. São pequenos e fal-sos ciclos: o som monocromático e agudo dos cortes secos, asressonâncias policromadas, uma espécie de harmonia etéreaquase muda (ainda com a presença dos cortes). Após esse pe-queno trecho, volta o grito agudo reforçado pela percussãometálica e reverberante de tantãs e gongos tailandeses. O re-

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torno dura pouco, não mais do que seis segundos. Ele se dásobre uma planície em ‘pppp’ quase imóvel; apenas pequenasmudanças de intensidade e tonalidade de coloridos. O sussur-rante também volta e mais uma vez parece que se trata de umciclo, mas não é, ele logo estanca e dá lugar a um dueto deoboés. Uma melodia dura, de métrica irregular, algo que po-deria lembrar Varèse, mas só de longe. A mudança de cores ésempre rápida, em três compassos estamos já em um solo deflautim, tendo passado por outras mudanças mais rápidas decolorido instrumental. E, quando se muda uma instrumenta-ção, não é só de cores que se pode falar, é também de espaço.Cada instrumento projeta seu som de uma maneira diferente,e cada região da tessitura do instrumento tem projeções dife-rentes. Então, mudar de instrumento é também mudar o lu-gar em que o som aparece, o lugar em que ecoa na sala o modocomo se projeta: omnidirecional, direcional frontal ou lateraletc... Voltando ao flautim, ele é algum canto de pássaro estra-nho que me veio à cabeça. Talvez as corruíras do brejo que meperseguem desde 1986, e que não consegui evitar de empre-gar em diversas músicas seja para flauta, piano, ou mesmo parapercussão. Esta melodia desfaz o lugar da planície e passeiasobre os cortes secos-ressoantes dos contrabaixos. Mas o pas-seio é curto. Tudo nesta peça dura pouco. Após uma passagempelo oboé, tudo se perderá em um ‘tutti’, o sussurro se torna-rá uma série de ventanias, ressonância de um batuque estranhodos contrabaixos… até um novo corte aberto a uma nuvemetérea da sonoridade quase que eletrônica dos sons multifônicosde flautas, clarone e tuba. É de dentro desta sonoridade quedeverá nascer uma nova e longa melodia, um segundo pássaroou um segundo grupo de corruíras. Ela mudará de timbre ain-da mais rápido do que aconteceu com a primeira melodia. Oem torno é todo em ‘ppp’, acordes que poderiam lembrar al-guns céus de Van Gogh: o laranja da lua mingüante atravessa-

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do por pinceladas de verde-limão, chegando ao azul das coli-nas que se desfaz nos tons de verde das oliveiras… um casal denamorados em azul e amarelo-ouro. É de dentro da melodiasem fim que nasce também o próximo “intermezzo”: notasreiteradas nas cordas.

Já que Em torno da pedra é um grande diário. Fechado um diasegue outro: outra paisagem, mas que realça o colorido sono-ro anterior. Blocos de acordes de sopros, gongos tailandeses,um tilintar tibetano, atravessam do agudo ao grave por trêsvezes até se desfazer em um grito grave e forte, pesado. Umrugido que bem poderia vir da terra, como o fez Grisey noinício de seus Partiels. Segue agora minha vontade frustrada deter reescrito e reouvido a Sagração, mas com outras cores, ou-tras harmonias, outras melodias. Mais cortes e uma nova me-lodia em contraponto ao grave. Aliás, vejo que os cortes atra-vessam a peça toda. Quase uma histeria do grito seco. Comonas paisagens da primeira parte, o rugido grave muda semprede cor, ganha luminosidade até que é cortado de vez: inter-rompido não pelo batido seco dos contrabaixos, mas pela mãoleve de uma linha estática. Ela vem uma primeira vez impon-do-se, deixará que tudo volte ao que era, mas voltará aindamais até que se imponha como fundo estático, plataforma deuma última melodia, tocada pelo contrabaixo… ou quasecontrabaixo, porque tudo é transformado fazendo com que osom do instrumento deixe de ter suas características costu-meiras e se torne um modulador de sonoridades. Mas não queriaparar por aqui, o que se passa antes do final do contrabaixo.De cortes em cortes, para quem gosta de reencontros, voltamos ruídos de vento, a ventania dos sopros ecoando asmatica-mente o desenho rítmico grave de contrabaixos e percussão: énovamente o reloj del viento de Miró. Mas isto não está aí à toa.Me justifico… nada está à toa, mesmo que tenha sido lançado

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à toa e por acidente. As varreduras agudo-grave dos sopros –de colorido ocre e madeira – , o rugido agora colorido da terratocado por metais e percussão, o agudo longo que acabara decortar, suspender o tempo por seis segundos, o pássaro inter-mitente, tudo volta em um contraponto intenso. É a parte rít-mica da peça: acordar o público! Tudo gira em pequenos ci-clos irregulares, cada coisa com seu tempo, como ouvi umavez os pássaros cantarem em uma reserva florestal: ciclos irre-gulares. Mas, como sempre, não consigo ficar muito tempo acompor a mesma coisa. O material é abandonado a um novocorte, uma longa sonoridade em ‘ppp’ entrecortada pelos con-trabaixos secos do início, até que, monocromática, sirva defundo ao solo que ora ouço como angustiado, ora comotranqüilo, do ‘contrabaixo’ solo”.

142.Me pergunto: descrever uma peça, não seria o mesmo quecodificar uma escuta? Não. É claro que as palavras empregadassão signos, mas não se está fazendo aqui uma semiótica, ouuma tradução no sentido lato do termo. O texto não repre-senta a música. Ele ecoa a música. Ele ressoa com a música.Ele a re-apresenta, e não a representa. Já falei antes de minhaatração pela música de Vivaldi, e pela força que seus jogos deafeto trazem. Mas é necessário deixar claro que a operação deVivaldi é a de tornar sensíveis pelo som forças que não sãosensíveis pelo som, ou que não se limitam a ele. No mar revol-to de Vivaldi – pois não se trata de qualquer mar – as ondasnão são de água, são de escalas musicais realizadas com grandevelocidade. No mar revolto de Vivaldi, o mar não é visual,tátil, nem mesmo apenas sonoro, ele é musical. Suas partículasestão dispersas, sem uma síntese a priori que as contenha. Edispersas elas misturam o visual, o sonoro, o tátil, o olfativo,

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os conceitos, as idéias, as imagens. Não se trata de traduzir omar em uma orquestra, mas de desfazer o mar e tudo que ro-deia a visão do mar; colocar tudo em um liquidificador e batera ponto de desfazer a forma e a matéria possíveis, para reinvesti-las em um campo virtual a ser atualizado. Atualização esta queformará blocos entre sonoro, visível, tátil, conceitual, ideal;entre o vivido e o transcendente, de modo a resultar em algoque não poderá ser capturável, analisável, mas apenas repetívelna escuta. É neste ponto que uma escuta deixa de ser vistacomo um jogo de decodificar signos e passa a ser um jogo deproduzir signos, como se fosse pela primeira vez. O ato decompor sendo não o de codificar, mas também o de produzirsignos e lançá-los a um campo indeterminado.

143.Descrevendo Tinnitus de Rodolfo Caesar (quase à maneira deGenet sobre Giacometti):22

“Existe um momento em que todos os homens se assemelham.Genet fala nisto quando narra seu encontro com um passagei-ro de roupas amarfanhadas no metrô, quando fala dos auto-retratos de Rembrandt ou mesmo das esculturas de Giacometti.Ao modo de Genet arrisco-me a imaginar este ponto em queos homens todos se assemelham: nas horas em que dormem enão sonham. Por um tempo não existem e não sabem disto.Quando Genet fala das esculturas de Giacometti, de como sedirigem aos mortos; ao falar da solidão que é comum aos ho-mens, esta solidão que é da morte, penso nesta situação que édormir sem sonhar. Sempre que se dorme, se dorme só. Uma

22 Tinnitus é uma composição eletroacústica do compositor brasileiroRodolfo Caesar, realizada em 2003.

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solidão da qual não nos damos conta. Um zumbido no ouvido,um pequeno som constante nos diz que é chegado o silêncio eque existe uma distância entre nossos sons e os outros sons.Rodolfo Caesar compôs Tinnitus pensando nisto, neste peque-no ruído que ao mesmo tempo diz o silêncio. Sabemos atémesmo que não somos os únicos a ouvir aquele zumbido, masele nunca deixa de ser nosso em nossa solidão. É o zumbidoque desenha o espaço ao nosso redor e dá as coordenadas dedistância.

Em um dia chuvoso chego à sua casa para uma visita sem aviso.Nada de inoportuno, uma visita apenas para convidar para umavolta pela Lapa e talvez almoçarmos todos juntos. Rodolfo meatende com um jeito calmo. Lembra dos grilos, dos sapos e mon-ges tibetanos, comenta uma forte dor de garganta. Uma roupaacinzentada. O almoço fica para o dia seguinte.

Na primeira vez em que ouvi Tinnitus foi como se me revelassetodo um mundo que eu conhecia mas não daquela maneira.Uma suspensão do começo ao fim. Estavam suspensos o tem-po e meu juízo do mundo. Um grande sono, pequenos sobres-saltos… o ronco, os sapos, os cachorros latindo, galos nosquintais de Santa Tereza. Não sei como, eu ouvia Schubertouvindo sons eletronicamente transformados. Eu podia tercerteza de conhecer aquele afeto, mesmo que não soubessenomeá-lo. E ele existia em Schubert e o que eu ouvia não tinhanada a ver com as melodias, os acordes, mas com a música deSchubert.

Algumas pessoas têm esta calma e despojamento que nos le-vam a um misto de inveja e admiração. Talvez seja isto e estejaaí a calma e surpresa de Tinnitus.

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Tentei refazer a peça de Rodolfo Caesar compondo uma peçacurta para piano solo. Tudo sem conhecer os segredos eletrô-nicos que depois fiquei conhecendo a partir de um texto defácil acesso divulgado pelo compositor.

A viagem dos mortos da qual fala Genet sobre Giacometti.Fazer uma arte que não se destina aos vivos mas aos mortos,mortos que nunca foram vivos, ou vivos apenas o suficientepara que os esqueçamos. Tinnitus e Ranap Gaô são um poucodisto. Quando ouvimos vamos até lá onde é sermos mortos evoltamos com calma. Diria mais, que as peças do ciclo do Livrodos Mortos de Caesar são estátuas, daquelas compridas de Gia-cometti. Só que deitadas como se fossem partituras. Talveztatear umas dessas estátuas corresponda a ouvir Tinnitus.

Expressei-me mal? Não sei. Mas, de onde vêm esses sons? Ocompositor fala de todo um processo de filtragens. Mas é cla-ro que esconde alguma coisa. Até mesmo finge nos ensinar afazer igual. É como se estivéssemos nos elevando lentamentesobre uma paisagem… Acordar lentamente e vestir a primeiraroupa acinzentada que encontrar.

Diversas vezes acordei de madrugada e ouvi ao fundo aqueleruído grave de toda cidade acordando lentamente, e por sobreaquele som distante e indistinto algum pássaro, uma lavadeira,água correndo, um galo, um cachorro. Klee dizia que devería-mos partir de algo simples, algo da terra que, pulverizado, nosconectaria ao cosmo, às forças que estão no futuro e que desco-nhecemos. Daí ser difícil falar do que se sente quando se ouve,se lê ou vê tais forças se manifestando em um material. Nemmelodias nem ritmos, é com pequenos sons que se faz música.”

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144.Desenhando Tinnitus de Rodolfo Caesar (quase ao modo deGiacometti)

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Descrevendo a segunda peça de Três Instantes de Willy Correa deOliveira:23

“Existiria uma regra em que todas as notas se atrairiam. Comose elas tivessem vontades próprias. Umas atrairiam outras se-gundo algumas regras, alguma coisa que parecesse com o sis-tema solar, ou uma metáfora do átomo. Cada som é compostode parciais. Qualquer fenômeno vibratório implica uma ondaprincipal, de maior intensidade e subdivisões diversas, peque-nas ondas, e o som não foge a este princípio. Associando aprimeira idéia – de que as notas se atrairiam – com a segunda –de que cada som é composto por uma série de sons parciais –

23 Três instantes é um conjunto de peças para piano do compositor bra-sileiro Willy Correa de Oliveira, composto em 1977.

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passa a ser possível imaginarmos um mecanismo em que asnotas se atrairiam segundo sua familiaridade. Um mecanismo depolarizações. Ora, pode-se dizer que isto está embutido em gran-de parte do que chamamos de pensamento harmônico da músicaocidental. E não foram poucos os compositores que fizeram destemecanismo um patamar para imaginar suas composições.

Por vezes aceito, por vezes simplesmente rejeitado ou aban-donado, já no final do século XX, no Brasil, o mecanismo apa-rece refeito. Uma teoria encontrada quase que em um baú.Um livro pouco conhecido de um teórico francês reavivariaesta idéia de um mecanismo de atração entre as notas nas obrasdo compositor Willy Correa de Oliveira.

Fazer da música um exagero do método, um exagero do apa-relho, como no mergulho solitário do responsável pelo apare-lho da Colonia Penal de Kafka. Não é só do aparelho imaginadopor Kafka que podemos pensar. O próprio Willy (os composi-tores brasileiros são geralmente chamados pelo primeiro nome,diferentemente dos europeus e norte-americanos!) iria dar umadica de seu pequeno fetiche ao escrever sobre Manoel Dias deOliveira e imaginar que este compositor teria sido um relojoeiro.

Quando Willy compunha suas peças, na década de 1970, eramrelógios que ele imaginava. Cada nota atrairia a outra, cadafamília de notas atrairia toda uma outra família, e assim o pe-queno relógio funcionaria sem problema. Quase que andariasozinho sem depender de um ouvinte ou de o que quer queseja. Desses relógios talvez aquele que mais se assemelhe a umcristal seja mesmo a pequena peça incrustada como segunda peçado ciclo de Três Instantes para piano solo.

Uma curta seqüência de notas serve como um eixo, um cabi-deiro, no qual ficam suspensas famílias e mais famílias de no-

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tas, umas afirmando sua familiaridade, outras negando tudo etentando criar pequenas rotas de fuga. Para cada nota-eixo umgrupo, uma família, um contraponto ou um choque de famí-lias – cada grupo com um número diferente de notas, todastocadas com a mesma duração tal qual um grande colar de pé-rolas em que para cada pérola negra estaria associado um nú-mero determinado de pérolas brancas. Um colar todo irregu-lar, mas que flui o tempo todo com a mesma intensidade, comuma mesma medida: uma pequena metralhadora de notas.Existe uma força, a força da gravidade. A gravidade aparecenas notas. Existe uma centrífuga e uma centrípeta, e as notasque giram são atraídas ou não pelo centro.

O fluxo é contínuo e, qual um prelúdio bachiano, tudo corre eganha consistência na continuidade, ganha consistência nas famíli-as que se repetem, no colorido das duas mãos correndo sempresobre as mesmas notas separadas por oitavas cada vezdistintas…tudo tão irregular quanto regular.”

146.Descrevendo uma peça de Adhemar Campos Filho.

“A peça foi concebida e toda escrita praticamente em uma sónoite junto com o vento assobiando por entre as pequenas ruas eos uivos perdido, dos lobos guarás... ou seriam cachorros assus-tados com o nascer da lua? Tudo lhe veio de uma só vez. A intro-dução, os primeiros acordes, e o timbre daquele instrumento,mais real do que quando ele escrevia para a banda da cidade.

Foi assim que ele me contou sobre sua peça para piano solo,enquanto eu admirava os arabescos da partitura. Tudo come-çava com três acordes. Um modo estranho de escrever desfa-zia a certeza do timbre do instrumento que o ocidente amar-

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rou e escravizou ao temperamento de suas escalas e arpejos.Ora uma, ora outra, as notas dos acordes deixavam-se soarsolitárias, descrevendo curvas no som. Pouco restava do somde piano que eu conhecia, tratava-se de um gamelão balinêssem dúvida.

Aquela música refletia suas manhãs de domingo, momentosem que ele procurava anotar tudo que fosse sonoro como quempega uma vibração no ar. Uma tarefa difícil mas que lhe deu ahabilidade de anotar a sonoridade dos sinos da igreja, exercícioque acabava de ter seu resultado quando muitos anos depoistentara retomar todas aquelas sonoridades em sua peça parapiano. Os acordes atacados à meia força e a permutação dasnotas que deixava ressoar. Os acordes, estes, dizia nunca tê-los ouvido antes. E aí repousava seu mistério. De onde vinhamaquelas notas e aqueles sons que pareciam fugir à gama do pia-no? O que imprimia aquele traço tão desconhecido e ao mes-mo tempo familiar?... ou seria o contrário?

De um modo geral aquela mágica toda era resultado da mate-mática; quase uma crença. Permutações, interpolações, cálcu-los de intersecções, mas o que se ouvia... era quase que ‘eletrô-nico’. Além do mais, o modo de combinar mão esquerda edireita desafinava o piano, se é que podemos falar assim. Ogamelão agora parecia-se mais com barras de ferro batidas,grades metálicas raspadas, cercas de aramado tangidas por ins-trumentos metálicos.

Ouvíamos tudo aquilo, ali, olhando para a partitura, e buscan-do em alguns objetos da sala as sonoridades que ressoavam naescrita. Passamos assim toda aquela noite numa conversa regadaa muito café, cheiro de papel velho, e o ar levemente movidopelo respirar de suas filhas que dormiam no quarto que davapara a “sala da cozinha”.

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Pude ouvir aquela peça por toda aquela noite, até a hora emque voltei para a casa de pensão onde estava alojado. No diaseguinte sobrevinham ainda impressões sonoras e fortes im-pressões composicionais, numa escuta quase que surda… quan-do, então, ele me disse que havia destruído a partitura: ‘nãoera aquilo!’ Aquele som não era ainda o que perseguia, e sabiaque não o conseguiria alcançar. Justo agora que a peça tinhaaté nome: O Gamelão del Rey, por Adhemar Campos Filho”.

147.Por que livro das sonoridades? Talvez isto sirva como conclu-são deste pequeno livro. A idéia do livro das sonoridades sur-giu como sendo uma composição musical escrita em texto.Um pouco na lembrança do fez que Willy Correa de Oliveiraquando escreveu sobre Manoel Dias de Oliveira.24 Escreverpequenas cenas, cartas, buscar entre escritores, poetas, passa-gens que atualizassem pequenas escutas musicais. Algumas pas-sagens foram selecionadas, outras foram escritas. Por fim fi-cou melhor a idéia dispersa e não resolvida de um livro dassonoridades, do que o livro propriamente esperado. Tudocomo Van Gogh que narra ao irmão o quadro que ele raspara,ou na conversa que tive com o maestro Adhemar Campos,compositor e regente da banda da cidade de Prados em MinasGerais, quando me narrou uma peça que estava escrevendo,tudo com grande entusiasmo, mas que no dia seguinte, ao lheperguntar sobre a peça, respondeu-me: “rasguei aquilo, nãoestava conseguindo chegar onde queria”. O plano de composi-ção é isso: um verdadeiro campo de batalha.

23 Oliveira, Willy Correa de. “O multifário Capitam Manoel Dias deOliveira”. Separata da Revista Barroco 10. Belo Horizonte. 1978/79.

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148.Sobre a morte das artes. É comum a cada vez algum pensadorfalar na morte de arte. Talvez poderia aqui falar de novo. Masnão apontar a morte como o drama do fim. A morte da músicadiz respeito ao seu renascimento. Atrelada à ciência, a arteconheceu um caminho, o de imaginar que suas componentesseriam analisáveis por uma razão redutível. Foi esta a idéia deque cada parte, cada nota musical, cada sonoridade, cada en-cadeamento, deveria ser parte funcional de um todo lógico oude um quadro significante – colocando o espaço de análise nosignificado. Mas neste caminho não há saída, ou são poucas assaídas. A música deverá sempre buscar traduzir, ou seja, re-presentar algo, para o que lhe falta a adequabilidade própria dalíngua falada – mas que até mesmo esta apresenta de modofalho. A linguagem da comunicação põe de lado o ruído. Ou-vir o ruído na linguagem é sempre dispersar-se. Se ouço o ru-ído e esqueço de reduzi-lo a um código estou sempre pondoem risco a minha vida. Mas isto se dá no cotidiano sígnico,onde há sempre a produção de um signo o qual deve restrin-gir-se a um quadro significante para que eu entenda o que estáse passando: alguém anuncia que vai dar um tiro e eu precisoentender a palavra de ordem para fugir. Mas esta idéia nãosobrevive na música. Uma música que canta a morte. É preci-so o morto, é preciso a cena completa para que a música cantea morte – mesmo que a cena seja aludida… mas não serão ossons a fazer isto. O caso é que, traduzida pela palavra, traduzidapelas análises que depositam valores em cada parte da música,

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é na forma de palavra que ela sobrevive. Traduzida em pala-vra, não devemos esquecer de todo o discurso que Nietzscheretoma sobre as palavras, sobre os nomes. Os nomes são gran-dezas que podem tornar-se falsas. Primeiro porque subenten-dem que algo possa ocorrer várias vezes como se deu em umaprimeira vez. Segundo, porque tentam desembaralhar as cau-sas e os efeitos das coisas. Será sempre através de uma grande-za falsa que calcularemos nossas constantes necessárias, razãopela qual as ciências podem adquirir um rigor. Traduzida en-tão em palavras, a música adquire um falso rigor, aparente-mente permanente, e corre o risco de por ela ser substituída.A música do século XX sofre deste estigma, não porque se falede música, isto sempre aconteceu, mas porque a música agoraé substituída pela fala sobre a música. Todo jovem compositorse pergunta, ou é perguntado pelo seu professor, qual a idéiade sua composição, qual a idéia que quer deixar clara em suapeça. As respostas são ora a de deixar clara uma idéia formal,estrutural, ora de deixar clara uma idéia qualquer relacionávela uma paisagem, uma sonoridade, um estado de alma. Substi-tuída a música pelo discurso sobre a música, não se compõemais diretamente na música, mas compõe-se antes um discur-so necessário para legitimizar uma música. A resposta para quemnão se encontrou ouvindo algo é sempre a mesma: “você nãoentendeu nada!”. E isto vale até mesmo para o menos “intelec-tualizado” dos roqueiros. Mesmo fora do âmbito das vanguar-das, do experimentalismo, a idéia de que a música diz algo e deque algo precisa ser compreendido é o que impera. Daí suamorte. Pois não há nada a ser compreendido nem ser dito,apenas a ser cantado, e este algo não existe aqui neste mundoque percebemos, mas naquele mundo que ainda não percebe-mos e que o artista insiste em nos fazer ver, ouvir, sentir.

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149.Para morrer basta ter um nome. O que morre é a dureza donome. O fim da arte é sempre o fim daquela arte restrita a umnome. O fim daquela música específica. Mas não há como sefalar da morte do vir-a-ser da arte. E a arte é este lugar em queo vir-a-ser do homem ganha visibilidade, sonoridade, sensibi-lidade, em um material. Merleau Ponty, escrevendo sobre artee linguagem, deixou claro como tal questão é falsa e mal colo-cada, pois não há sequer como se dizer que uma obra de arteespecífica esteja terminada, porque ela está sempre no futuro,espaço do que não é provável ou dedutível do presente ou dopassado.

150.Não sei se neste livro consegui encerrar alguma coisa. Tenteinão tecer juízos, mas não foi tarefa fácil. Gostaria de ter conse-guido narrar um processo composicional, mas certamente nãoesgotei esta tarefa, e nem poderia ter esgotado. Reiterei idéias,nomes, citações, imagens, tudo como quem compõe, semapontar em nenhum momento um lugar de parada. Por vezesescreve-se um livro para que se fixe ao menos um momentode parada, é para isto que servem os manuais. Não conseguifazer isto, não se trata de um ponto de parada, mas de umponto mutável e ficaria contente apenas com a resposta sim-ples de alguém que, lendo algumas linhas, tenha se instigado aler alguns dos textos citados, a ouvir alguns dos compositorescomentados, ou a ver alguns dos pintores que nortearam estaescritura.

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151.Um repertório mínimo. Deveria ter desde o início falado emum repertório mínimo. De músicas, livros, pinturas, escultu-ras, poesias, contos… Não acredito mais que tenha sido ne-cessário. Um repertório mínimo é aquele que não temos e quedevemos construir passo a passo.

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152.Entrevistando um candidato a compositor, perguntei-lhe so-bre suas composições. Ele prontamente me apresentou umasérie de pequenas peças, cada uma segundo um receituário teó-rico qualquer, mas todos muito importantes. Li as peças comatenção, mas algo me incomodava. Faltava alguma coisa ali?Teoricamente tudo estava correto, mas faltava algo. Pergunteientão por que ele compunha música. O que mais lhe atraía emmúsica? Quais suas referências, aquilo que ele mais gostava deouvir, e assim por diante. Nada, nenhum compositor em es-pecial, nenhuma música. Havia nele uma grande apatia quantoà música, mas um interesse enorme em ser aprovado comocompositor.

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