Livro Gestao Publica Sociedade

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Gesto pblica e sociedade: fundamentos e polticas pblicas de economia solidria volume I

di A. Benini Maurcio Sard de Faria Henrique T. Novaes Renato Dagnino (Organizadores)

Gesto pblica e sociedade: fundamentos e polticas pblicas de economia solidria volume I

1 edio Outras Expresses So Paulo 2011

Copyright 2011, Outras Expresses Reviso: Maria Elaine Andreoti e Marina Tavares Digitalizao: Amancio L. S. dos Anjos Capa, projeto grfico e diagramao: Krits Etdio Impresso: Cromosete

Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) G393 Gesto pblica e sociedades: fundamentos e polticas de economia solidria / di Benini...[et al] (organizadores).-1.ed.--So Paulo : Outras Expresses, 2011. 480 p. : il., tabs. Indexado em GeoDados http://www.geodados.uem.br ISBN 978-85-6442-105-9 1. Gesto pblica - Fundamentos. 2. Polticas pblicas Economia solidria. I. Benini, di, org. II. Ttulo. CDD 350 Bibliotecria: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

Secretaria Nacional da Economia Solidria (Senaes) Ministrio do Trabalho e Emprego www.mte.gov.br

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorizao da editora. 1 edio agosto de 2011

EDITORA OUTRAS EXPRESSES Rua Abolio, 201 Bela Vista CEP 01319-010 So Paulo SP Fone: (11) 3105-9500 / 3522-7516 / Fax: (11) 3112-0941 www.expressaopopular.com.br [email protected]

sumrioApresentao Introduo Parte 1: Problemticas do(s) Mundo(s) do Trabalho Globalizao, Estado, neoliberalismo e desigualdade social no Brasil Adilson Marques Gennari Gesto da subjetividade e novas formas de trabalho: velhos dilemas e novos desafios Felipe Silva 21 7 11

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Sistema Orgnico do Trabalho: uma perspectiva de trabalho associado a partir das prxis de Economia Solidria 71 di A. Benini A autogesto e o novo cooperativismo Claudio Nascimento Autogesto e Tecnologia Social: utopia e engajamento Las Fraga Em busca de uma pedagogia da produo associada Henrique T. Novaes e Mariana Castro Parte 2: Fundamentos da Gesto Pblica Algumas notas sobre a concepo marxista do Estado capitalista no sculo XX Henrique T. Novaes 169 91 101 125

Os grilhes da Gesto Pblica: o processo decisrio e as formas contemporneas de dominao patrimonialista di A. Benini, Elcio Benini e Henrique T. Novaes Notas sobre a formao histrica do Brasil e seus desafios contemporneos a contribuio de Caio Prado Jnior e Florestan Fernandes Fabiana Rodrigues e Paulo Alves de Lima Filho A poeira dos mitos: revoluo e contrarrevoluo nos capitalismos da misria Paulo Alves de Lima Filho e Rogrio Macedo

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Parte 3: Desenhos e tipos de polticas pblicas para a Economia Solidria Conceitos e ferramentas para a anlise de Poltica Pblica Milena P. Serafim e Rafael Dias Gesto Social e Gesto Pblica: interfaces, delimitaes e uma proposta Renato Dagnino A Economia Solidria no Governo Federal Paul Singer 305

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A Economia Solidria no Governo Federal: intersetorialidade, transversalidade e cooperao internacional 413 Maurcio Sard de Faria e Fbio Sanchez Polticas Pblicas de Economia Solidria breve trajetria e desafios Valmor Schiochet Polticas Pblicas e Economia Solidria: elementos para a agenda de uma nova rede de proteo social di A. Benini, Elcio Benini Sobre os autores 443

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apresentao

Na ltima dcada, o campo da Economia Solidria conquistou um importante espao social no Brasil, que vem se materializando no crescimento do nmero de empreendimentos econmicos solidrios nos mais diversos setores da produo, comercializao, consumo e finanas baseados na autogesto, na cooperao e na solidariedade. Igualmente relevantes so as iniciativas de construo de redes de cooperao e cadeias produtivas solidrias, evidenciando o potencial de crescimento da Economia Solidria a partir de estruturas orgnicas, pautadas por idnticos princpios e critrios de eficcia. A expanso da Economia Solidria encontrou significativo apoio nos movimentos sociais, urbanos e rurais, que incluram nas suas estratgias o desenvolvimento de iniciativas de produo dos meios de vida ancoradas no trabalho associado e na autogesto da produo. Tal projeo da Economia Solidria no Brasil encontrou ressonncia no Estado brasileiro, sobretudo nos governos democrtico-populares que inseriram na agenda pblica o trabalho associado, formulando e implementando polticas pblicas voltadas ao apoio e fomento aos empreendimentos solidrios. A partir

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Gesto pblica e sociedade: fundamentos e polticas pblicas de Economia Solidria

de iniciativas pioneiras em prefeituras e governos estaduais, realizadas desde, pelo menos, a dcada de 1990, as polticas pblicas de Economia Solidria alcanaram o governo federal com a eleio do presidente Lula em 2002, com a criao da Secretaria Nacional de Economia Solidria, no mbito do Ministrio do Trabalho e Emprego. Ao lado de importantes organizaes ou articulaes dos atores do campo da Economia Solidria, os gestores de polticas pblicas de Economia Solidria tiveram um papel significativo na criao da Senaes nos seus oito anos de existncia, participando ativamente dos espaos institucionais de elaborao e controle social da poltica em nvel federal, e como gestores de polticas nos planos estadual e municipal. A Rede de Gestores de Polticas Pblicas de Economia Solidria, instituio que cristaliza a experincia desse perodo, contribuiu para a disseminao das polticas de Economia Solidria em centenas de municpios e governos estaduais, nas cinco regies do pas. Seja atuando diretamente na formao de gestores, seja trocando experincias, sistematizando e publicizando as metodologias utilizadas, os resultados obtidos e os entraves institucionais que persistem, a Rede de Gestores foi parceira estratgica da Senaes na ampliao do espao da Economia Solidria no Estado brasileiro. Neste momento em que se inicia uma ao nacional para a Formao de Gestores Pblicos em Economia Solidria, em nvel de especializao, executado em parceria entre a Universidade Federal do Tocantins e a Universidade Estadual de Campinas, o que se pretende possibilitar que as polticas voltadas ao trabalho associado, coletivo e autogestionrio alcancem um novo patamar, fortalecendo seus princpios e suas organizaes, disseminando as metodologias e estratgias at aqui adotadas e que possibilite o surgimento de novas formulaes e diretrizes que permitam avanar na luta por um novo modelo de desenvolvimento para o pas.

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Apresentao

Parte integrante deste projeto, a publicao do primeiro volume do livro Gesto pblica e sociedade: fundamentos e polticas pblicas de Economia Solidria uma contribuio para a reflexo crtica e militante sobre as potencialidades das polticas pblicas de apoio Economia Solidria em nosso pas.

Departamento de Estudos e Divulgao Secretaria Nacional de Economia Solidria

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introduo

Esta coletnea de artigos a primeira de um conjunto de dois volumes que compem parte do material didtico utilizado na terceira edio do curso de especializao Gesto Pblica e Sociedade, lanado em parceria com a Secretaria Nacional de Economia Solidria (Senaes), do Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE), atravs de Edital Pblico do ano de 2010. Voltado formao de servidores ou gestores pblicos e representantes dos movimentos sociais que atuam ou pretendem atuar nas polticas de Economia Solidria, autogesto e cooperativismo, o curso fruto de uma articulao entre professores da UFT (Universidade Federal do Tocantins) e do Grupo de Anlise de Polticas de Inovao da Universidade Estadual de Campinas (Gapi/Unicamp), visando apoiar e fortalecer as aes no campo das polticas pblicas de Economia Solidria, autogesto e cooperativismo. Em um formato pioneiro, o curso ser realizado concomitantemente em dez cidades-polo (Porto Alegre, Curitiba, Campinas, Belo Horizonte, Campo Grande, Braslia, Palmas, Belm, Salvador e Recife), com a pretenso de formar 400 servidores pblicos ou gestores. Com a concluso e aprovao dentro dos

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critrios estabelecidos, os gestores recebero o ttulo de ps-graduao Lato Sensu em Gesto Pblica e Sociedade. Situando-se na vertente da Administrao Pblica Societal (Paula, 2005)1, em linhas gerais, o curso alinha-se perspectiva de democratizao do Estado brasileiro e da necessidade de construo de um novo modelo de desenvolvimento para o pas. Pretende qualificar as aes e polticas pblicas voltadas ao apoio e fomento ao trabalho associado, coletivo e autogestionrio que constituam um novo modo de produo e reproduo da vida social, para alm do capital. Pressupe que as polticas pblicas efetivas requerem mecanismos institucionais de participao e controle social, conferindo o protagonismo populao nos assuntos pblicos. O curso tem como foco a gesto das polticas pblicas em Economia Solidria e como contexto as mltiplas problemticas que afligem a sociedade contempornea. Seu objetivo, no mdio prazo, a melhoria do processo de elaborao e implementao das polticas pblicas e sua efetividade social e poltica no apoio e fortalecimento do trabalho associado. Dentre os temas a serem abordados, destacam-se os limites e possibilidades das cooperativas e associaes diante do modo de produo capitalista, a avaliao de polticas pblicas, a pedagogia do trabalho associado, a reforma agrria e urbana, a tecnologia social e a poltica cientfica e tecnolgica necessrias para o desenvolvimento social; as especificidades do Brasil e o carter capitalista do Estado brasileiro, a construo da histria da esfera pblica no Brasil; as contradies do sistema jurdico brasileiro, a mundializao do capital e seu impacto nas polticas pblicas; a formao da agenda governamental e aspectos do planejamento pblico; a formulao e execuo dos progra1

PAULA, A. P. P. de. Por uma nova gesto pblica. So Paulo: Editora Fundao Getlio Vargas, 2005.

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Introduo

mas e polticas pblicas relacionados Economia Solidria, entre outros. Resultado de uma parceria entre pesquisadores engajados nas lutas pela emancipao na Amrica Latina, o curso pretende se diferenciar das propostas gerencialistas e tecnicistas, que disseminam as teorias do New Public Management no contexto latino-americano e naturalizam o Estado capitalista e a sociedade de classes, impedindo a auto-organizao dos trabalhadores. Diferencia-se tambm de cursos que se orientam ao treinamento de tecnocratas destinados a operar a mquina do Estado herdado pela ditadura civil-militar e pelo neoliberalismo que impedem aquela emancipao; ao contrrio, ele visa a formao dos gestores que devero efetuar a difcil transio para o Estado necessrio, que atenda as necessidades dos movimentos sociais. O curso est estruturado em mdulos integrados que pretendem colocar os gestores, servidores pblicos e representantes dos movimentos sociais em contato com professores de diversas reas do conhecimento, permitir a teorizao dos problemas da sociedade de classes contempornea em perspectiva histrica e o desenvolvimento de aes e projetos no campo da autogesto e da Economia Solidria. Tudo isso no sentido de fazer com que os estudantes possam melhor abordar as situaes-problema atinentes ao seu contexto profissional, e que, entre eles, socializem as suas experincias e seus conhecimentos. E, por fim, que possam atuar no sentido de realizar uma atividade de trabalho desalienante capaz de ajudar os trabalhadores a resolverem os problemas cotidianos e de longo prazo da produo associada. O curso de especializao em Gesto Pblica e Sociedade fruto das lutas histricas dos trabalhadores/as, dos movimentos sociais e dos trabalhadores pblicos professores, pesquisadores, gestores e intelectuais que vislumbram uma Amrica Latina autodeterminada, onde a produo seja realizada para a satisfao das necessidades humanas, onde os produtores livremente

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associados possam alcanar graus crescentes de autogoverno e de controle da produo e reproduo da vida. O curso se distribui ao longo de 320 horas, sendo 288 horas de atividades presenciais, em aulas s sextas-feiras e sbados uma vez por ms, e 72 horas de atividades a distncia, via TelEduc (software livre desenvolvido pela Unicamp). Conta com mais de 30 professores, dez coordenadores de turma e dez monitores que atuam em cada um dos polos. O Curso est composto por 16 mdulos: 1) Estado, Reforma do Estado e Polticas Pblicas; 2) Gesto e Avaliao de Polticas Pblicas; 3) Espao Pblico e Processo Decisrio; 4) Tpicos avanados de Planejamento; 5) Anlise Crtica da Teoria Organizacional; 6) Projetos e Polticas Pblicas em Economia Solidria; 7) A Economia Solidria como estratgia de desenvolvimento; 8) Tecnologia Social e Poltica Cientfica para a Economia Solidria; 9) Poltica Habitacional e Reforma Urbana; 10) Pedagogias da Produo Associada; 11) Aspectos Jurdicos da Gesto Pblica; 12) Histria e Sociologia do Cooperativismo e da Autogesto; 13) Realidade Brasileira; 14) Metodologia de Pesquisa e do Ensino Superior; 15) Tpicos Especiais em Polticas Pblicas de Economia Solidria; 16) Seminrios de Pesquisa Apresentao do Trabalho de Concluso de Curso No 16 mdulo, o Trabalho de Concluso de Curso (TCC) ser apresentado de forma monogrfica, com orientao de um

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Introduo

dos professores/as do curso, em seo pblica atravs de banca, assumindo o orientador a coordenao da banca. Mesmo que os nomes dos mdulos tentem dar uma ideia de conjunto ao curso, acreditamos que o mais importante o contedo crtico que ser dado por uma equipe de professores bastante articulada, mas certamente com suas particularidades metodolgicas, diferenas analticas e reflexes com a devida autonomia, enriquecendo, dessa forma, o debate e a produo socializada de conhecimentos. A esse respeito, vale lembrar o que aponta Luiz Carlos de Freitas na apresentao do livro organizado por Moisey Pistrak 2 . Ali ele observa que um dos limites da prtica pedaggica crtica brasileira acreditar que basta transmitir contedo crtico aos educandos que os problemas educacionais estaro resolvidos. Concordamos que melhor disseminar contedo crtico em vez de contedos conservadores, mas nosso objetivo vai alm disso. Nesse sentido, estamos atentos para a necessidade de transformar as relaes sociais hierrquicas e de subordinao que ainda mantm os processos pedaggicos com contedo crtico. Na preparao do curso, estiveram presentes nossas preocupaes acerca de como o sistema do capital que se perpetua nas corporaes, no Estado etc. contribui para que a escola condicione as pessoas para o trabalho subordinado, para o egosmo e para a hierarquia; e com o fato de que o avano da pedagogia da qualidade total inspirada no toyotismo, apesar das propostas de participao, trabalho coletivo, interdisciplinaridade etc., no abalou a educao subordinada. Sistemas educacionais que apontem para o que Mszros chama educao para alm do capital devem ter como uma de suas bases o desenvolvimento da autogesto e o trabalho coletivo, sempre dentro de uma es2

Freitas, L. C. A luta por uma pedagogia do meio: revisitando o conceito. In: Pistrak, M. M. A Escola-Comuna. So Paulo: Expresso Popular, 2009.

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Gesto pblica e sociedade: fundamentos e polticas pblicas de Economia Solidria

tratgia de transcendncia do trabalho alienado. Dessa forma, a experincia e o papel de professores capazes de atuar como mediadores do processo de construo dos conhecimentos necessrios prtica social e poltica emancipada poderiam ser melhor aproveitados. No vamos aqui descrever e resumir os trabalhos, muitos deles originais, contidos nesta coletnea. Vamos apenas nos referir a alguns dos que consideramos essenciais para a compreenso dos desafios associados Economia Solidria. Entre eles, a necessidade de superao do Estado capitalista e a potencializao das suas contradies, a transcendncia do trabalho alienado e a construo de uma sociedade para alm do capital. Entre os temas, profundamente interligados, que sero abordados, destacamos: a) a anlise da mundializao do capital, o neoliberalismo e a concentrao de renda no Brasil; b) as novas formas de trabalho advindas com a reestruturao produtiva e a coexistncia com formas tayloristas; c) as propostas para um novo sistema orgnico do trabalho; d) a contribuio do marxismo para a pesquisa do Estado capitalista de uma forma totalizante e no mecanicista; e) o processo decisrio e as formas contemporneas de dominao patrimonialista e as propostas para a construo de uma gesto pblica afeita s necessidades dos movimentos sociais que contribua para uma governana autogestionria; f) as especificidades da formao histrica brasileira, os momentos de ascenso das lutas populares e a regresso histrica que estamos vivenciando; g) os conceitos e ferramentas para a anlise das polticas pblicas; g) as crticas gesto social; h) os momentos e ideias decisivos para a compreenso da autogesto em perspectiva histrica; i) o surgimento da Economia Solidria e das polticas pblicas de Economia Solidria transversais, intersetoriais e de cooperao latino-americana, com especial destaque para as aes estimuladas pela Secretaria Nacional de Economia Solidria nos lti-

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Introduo

mos nove anos; j) a possibilidade de constituio de uma nova rede de proteo social para a Economia Solidria; k) o papel da educao no e para o trabalho associado; e, por ltimo, mas no menos importante, l) a relao entre autogesto e tecnologia social e a necessidade de construo de uma poltica cientfica e tecnolgica para a Economia Solidria. Os trabalhos aqui reunidos sero utilizados como textos de apoio nos mdulos do curso. No obstante, os professores e gestores podero sugerir textos complementares, utilizar filmes, realizar debates em grupo e outros instrumentos pedaggicos. Alguns textos, tais como os correspondentes ao mdulos A Economia Solidria como Estratgia de Desenvolvimento, Base Jurdica da Gesto Pblica, Poltica Habitacional e Reforma Urbana, Espao pblico e processo decisrio, bem como aqueles relativos s experincias de polticas municipais e estaduais de Economia Solidria, autogesto e cooperativismo no campo e na cidade sero dados a conhecer no volume II. Nosso esforo para a elaborao desta coletnea ser bem recompensado se ele puder contribuir como ponto de partida para um processo formativo pautado pela dialogicidade, pela participao e pelo protagonismo dos servidores pblicos e gestores nos momentos presenciais e a distncia que o curso lhes ir proporcionar. Lembrando as palavras do professor Paul Singer, quando diz que a Economia Solidria em si um ato pedaggico, pretendemos contribuir para que a formao em polticas pblicas de Economia Solidria possa partir de uma pedagogia da autogesto. E para que os princpios da Economia Solidria, como a autogesto, a cooperao, a democracia e a solidariedade possam ser vivenciados pelos servidores pblicos e gestores no seu percurso formativo. Finalmente, queremos solicitar a sua ajuda para que novas geraes de gestores que seguirem a que inicia este curso possam contar com materiais que avancem em qualidade e consistn-

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Gesto pblica e sociedade: fundamentos e polticas pblicas de Economia Solidria

cia nas discusses sobre o tema. Esperamos de voc, leitor, uma ateno especial para os equvocos e pontos obscuros que os dois volumes contm. Boa leitura. di Benini Maurcio Sard de Faria Henrique T. Novaes Renato Dagnino

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parte 1 problemticas do(s) mundo(s) do trabalho

Globalizao, estado, neoliberalismo e desigualdade social no brasilAdilson Marques Gennari

aspectos do neoliberalismoO objetivo deste captulo apresentar alguns aspectos dos novos contornos que a sociedade brasileira vem assumindo desde os anos 1990 sob a poltica econmica e social cuja orientao geral o iderio neoliberal e, concomitantemente, problematizar a complexa questo do desemprego estrutural e do crescimento desmesurado do exrcito industrial de reserva, e, por fim, tecer alguns comentrios sobre as novas orientaes de poltica social de tipo focada e neoliberal em curso. O estudo apresentado pelo historiador ingls Perry Anderson (1995) bastante ilustrativo a respeito dos contornos gerais de tal poltica e demonstra, com clareza, como os chamados neoliberais, desde a obra O caminho da servido de F. Hayek escrito em 1944 passaram a defender enfaticamente que o problema da crise do capitalismo estava nos sindicatos e no movimento operrio que corroa as bases do capitalismo ao destruir os nveis de lucros das empresas. Anderson (1995, p. 11) observa que a proposta neoliberal, desde o seu nascedouro, era manter o Estado forte, sim, em sua

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capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais(...). A estabilidade monetria deveria ser a meta suprema de qualquer governo. A poltica neoliberal foi inaugurada no Chile, no perodo do ditador Pinochet, entretanto, foi na Inglaterra de Margareth Thatcher que ganhou seus contornos mais definitivos e acabados, para depois transformar-se em paradigma dos organismos de regulao internacional como FMI e Banco Mundial. O programa econmico do governo Thatcher, segundo Perry Anderson (1995, p. 11), previa pelo menos a seguinte receita: a) contrair a emisso monetria; b) elevar as taxas de juros; c) diminuir os impostos sobre rendimentos altos; d) abolir os controles sobre fluxos financeiros; e) criar desemprego massivo; e) aplastar as greves; f) elaborar legislao antissocial; g) cortar gastos pblicos; e finalmente h) praticar um amplo programa de privatizao. Na Amrica Latina, o chamado iderio neoliberal encontrou sua mais acabada expresso e sistematizao no encontro realizado em novembro de 1989 na capital dos Estados Unidos, que ficou conhecido como Consenso de Washington. As principais diretrizes de poltica econmica que ali emergiram abrangiam, segundo Batista (1995, p. 27), as seguintes reas: 1) disciplina fiscal; 2) priorizao dos gastos pblicos; 3) reforma tributria; 4) liberalizao financeira; 5) regime cambial; 6) liberalizao comercial; 7) investimento direto estrangeiro; 8) privatizao; 9) desregulao das relaes trabalhistas; 10) propriedade intelectual. Os objetivos bsicos das propostas do Consenso de Washington eram, por um lado, a drstica reduo do Estado e a corroso do conceito de Nao; por outro, o mximo de abertura importao de bens e servios e entrada de capitais de risco. Tudo em nome de um grande princpio: o da soberania absoluta do mercado autorregulvel nas relaes econmicas tanto internas quanto externas (Batista, idem, p. 27).

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aspectos do processo de globalizaoO processo de globalizao capitalista foi originariamente detectado por Karl Marx e apontado no Manifesto Comunista (1980, p. 12) da seguinte maneira: impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vnculos em toda parte. Pela explorao do mercado mundial, a burguesia imprime um carter cosmopolita produo e ao consumo em todos os pases. Para desespero dos reacionrios, ela retirou indstria sua base nacional. O que entendemos nos dias atuais por globalizao referese a fenmenos relativos reordenao capitalista que foi sendo desenvolvida com medidas concretas de poltica econmica, como uma determinada resposta crise estrutural capitalista da dcada de 1970. Segundo Chesnais (1997, p. 13-14) a partir de 1978, a burguesia mundial, conduzida pelos norte-americanos e pelos britnicos, empreendeu em proveito prprio, com maiores e menores graus de sucesso, a modificao internacional, e a partir da, no quadro de praticamente todos os pases, das relaes polticas entre as classes. Comeou ento a desmantelar as instituies e estatutos que materializavam o estado anterior das relaes. As polticas de liberalizao, desregulamentao e privatizao que os Estados capitalistas adotaram um aps o outro, desde o advento dos governos Thatcher em 1979 e Reagan em 1980, devolveram ao capital a liberdade, que havia perdido desde 1914, para mover-se vontade no plano internacional, entre pases e continentes. Podemos afirmar com segurana que uma das escolas de pensamento burgus mais influentes no debate mundial e acadmico a chamada escola sociolgica reflexiva, construda principalmente pelas penas de Giddens, Beck e Lash (2000). Na interpretao de Ulrich Beck (2000), aps a queda do muro de Berlim,

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transitamos de uma modernizao simples para uma modernizao reflexiva na qual os sujeitos da ao passam a ser os novos movimentos sociais, tais como o feminismo, o movimento ecolgico e, principalmente, a ao dos indivduos, num chamado processo de individuao propiciado pelas mudanas da produo rgida fordista para a produo flexvel. Tudo isto se d num ambiente, ou numa sociedade do risco na qual todas as aes dos indivduos reflexivos esto eivadas dos perigos de uma sociedade de alta tecnologia. Scott Lash (2000), por seu turno, entende que em Giddens e em Beck a agncia vai se libertando da estrutura, na medida em que vai avanando a produo flexvel, o que torna possvel a reflexibilidade do sujeito. Entretanto, Lash (2000) problematiza o surgimento de um massivo proletariado McDonalds e questiona como seus membros podero ser reflexivos, ou seja, lana a ideia do surgimento de um operariado de perdedores da reflexividade com a seguinte questo: o que se passa com todas essas novas posies que foram rebaixadas a um nvel inferior ao da clssica classe operria? (Lash, 2000, p. 115) Isto posto, Lash (2000, p. 115) apresenta a ideia de que novas desigualdades emergem no capitalismo globalizado. Para ele, para explicar estas desigualdades sistemticas do nosso globalizado capitalismo de informao, assim como as desigualdades sistemticas entre naes centrais e perifricas, devemos () discutir as condies estruturais da modernidade. Nesta perspetiva, para o autor, o que sustenta as estruturas sociais no mundo contemporneo ou seja, na reflexividade uma teia de redes globais e locais de estruturas de informao e de comunicao. Assim, as oportunidades de vida, isto , o que decidir quem sero os ganhadores e os perdedores no mundo contemporneo, depende da posio dos sujeitos em relao ao modo de informao. Ao contrrio da superada produo capitalista de tipo fordista, na produo reflexiva h um contexto simultneo

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de fluxo de conhecimento e fluxo de informao que formam a base da produo, dando ensejo ao surgimento de uma nova classe operria reflexiva em contraste com a velha classe operria fordista. O que caracteriza a nova classe operria reflexiva, segundo Scott Lash (2000), que ela trabalha dentro das estruturas de informao e comunicao (C&I). Nestas estruturas, as mercadorias so produzidas e so produtos de um misto de informao e materialidade, na medida em que a acumulao de capital cada vez mais, simultaneamente, acumulao de informao, de smbolos e de imagens. A mutao nas estruturas de produo foi acompanhada pari passu por mudanas nas estruturas sociais. Neste aspecto, verifica-se o aumento da pequena burguesia (classe mdia) e a retrao da classe operria. Segundo Lash (2000, p. 124), a nova classe operria reflexiva,est paradigmaticamente associada s estruturas de informao e comunicao (C&I) de trs formas: como consumidores recentemente individualizados; como utilizadores de meios informatizados de produo e como produtores de bens de consumo, (...) que funcionam como meios de produo e de consumo dentro das estruturas I & C.

Se tanto a nova classe mdia quanto a nova classe operria esto articuladas e so formadas nas novas estruturas de C&I e, portanto, so os vencedores da nova modernidade reflexiva, ento quem so os pobres, os miserveis, os desempregados de longa durao, os operrios aqum da velha classe operria fordista, os moradores dos guetos e das periferias esquecidas pela nova sociedade de informao? O raciocnio de Lash (2000) encaminha-se para esta indagao e a resolve com a utilizao da teoria da subclasse de W. J. Wilson. Para Lash (2000), emerge das profundezas da nova modernidade uma terceira classe social de perdedores da reflexividade, ou seja, surge tambm uma nova

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classe baixa composta por pobres, moradores dos guetos, setores polarizados e excludos da sociedade da informao. O que os caracteriza a excluso do acesso s estruturas de I & C, que agravada pelo fato do prprio Estado moderno tambm pertencer a tais estruturas e, portanto, ser um ente ausente dos bairros e dos guetos onde vive a nova classe baixa ou o operariado McDonalds. J para o pensamento social crtico, o atual processo de globalizao capitalista aprofunda tambm as contradies prprias relao social capital. Segundo Mszros (1997, p. 152),o capital necessita expandir-se apesar e em detrimento das condies necessrias para a vida humana, levando aos desastres ecolgicos e ao desemprego crnico, isto , destruio das condies bsicas para a reproduo do metabolismo social. (...) Um sistema de reproduo no pode se autocondenar mais enfaticamente do que quando atinge o ponto em que as pessoas se tornam suprfluas ao seu modo de funcionamento.

Neste sentido, Mszros (Idem, p. 153) conclui sua anlise afirmando que a nica alternativa hegemnica hegemonia do capital aquilo que Marx chamou de produtores associados, instaurando a sua prpria ordem quando ainda s existem como personificao do trabalho. Nesse sentido, Mszros (2002) entende que somente um vasto movimento de massas radical e extra-parlamentar pode ser capaz de destruir o sistema de domnio social do capital e instaurar uma nova ordem sociometablica na qual se privilegiaria o modo socialista de controle por meio da autogesto dos produtores associados.

estado e neoliberalismo no brasilA classe dominante brasileira nunca teve dvidas quanto ao seu carter cosmopolita. Sempre agiu como parte indissolvel

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dos interesses da burguesia mundial. No atual processo de globalizao capitalista, sob a gide da financeirizao nos anos de 1990, tal caracterstica ficou ainda mais evidente, por exemplo, em todo o processo de privatizao e de transferncias gigantescas de valores para os credores. A classe dominante brasileira confunde-se com a classe dominante global, posto que a prpria personificao do capital financeiro internacional. Abordando a questo, Darcy Ribeiro (1995, p. 248) entende que na origem do fracasso das maiorias est o xito das minorias em seus desgnios de resguardar velhos privilgios por meio da perpetuao do monoplio da terra, do primado do lucro sobre as necessidades e da imposio de formas arcaicas e renovadas de contingenciamento da populao ao papel de fora de trabalho superexplorada. Ao defender seus interesses, num momento de enfraquecimento do movimento operrio internacional, a classe dominante desencadeou, a partir de todo o processo de globalizao capitalista (e de sua ideologia neoliberal) um crescimento sem paralelo do exrcito industrial de reserva, lanando milhares de brasileiros no desemprego, na misria, na prostituio infantil e na mais bestial escalada da violncia urbana e rural, criando assim, estruturalmente, uma massa crescente de miserveis cidados do mundo, que a contra face do propalado cidado do mundo (com seu notebook, seu aparelho celular, seu carro importado, seu dinheiro de plstico etc.). No atual processo de transformao do capitalismo, em sua fase de crise estrutural, paralelo ao mito do mercado que tudo resolve, desenvolve-se o mito do cidado globalizado autnomo, como nas teses de Giddens, Back e Scott Lash (teses que abordaremos mais adiante). No Brasil, a ideologia neoliberal, em grande medida, funcionou como moldura da superestrutura ideolgica de dominao, pois concretamente vivenciamos um processo bonapartista ou, na acepo de Florestan Fernandes (1981), uma autocracia

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burguesa institucionalizada, na medida em que o executivo, sob a equipe de Collor e FHC, governou atravs do expediente da edio de medidas provisrias que, via de regra, se tornaram permanentes por fora de manobras polticas do executivo ou simplesmente porque no seria vivel voltar atrs aps ter sido posta em prtica um conjunto de medidas, por exemplo, da abrangncia e impacto social do Plano Real. A poltica econmica externa brasileira nos anos 1990 caracterizou-se pela aplicao de toda a agenda neoliberal. Tal agenda ancora-se basicamente na retrica de que o mercado o mais eficiente organizador da sociedade (Hayek, 1977). Parece plausvel afirmar que a implementao continuada da poltica econmica de talhe neoliberal pelos governos brasileiros, nos anos 1990, estaria reconfigurando as bases da acumulao de capital no Brasil, de modo a criar um novo padro de acumulao, fundado num novo patamar de subordinao ao capital financeiro internacional, cuja caracterstica principal no apenas a tendncia estrutural ao estrangulamento externo. Soma-se velha tendncia, o crescimento exponencial dos sedimentos profundos do exrcito industrial de reserva. Na periferia colonial agrrio-exportadora escravista e, posteriormente, de capitalismo industrial internacionalizado e subordinado, a formao da populao excedente, ou na acepo de Marx, do exrcito industrial de reserva, assume a forma de uma estrutural e secular economia de subsistncia que vive nos interstcios da economia agrrio-exportadora e, posteriormente, assume o aspecto de uma especfica informalidade no processo de industrializao. Na origem dos trabalhadores pobres e despossudos do sculo XXI, h uma longa trajetria que tem incio na populao escrava e nos trabalhadores da economia de subsistncia cujo incio se confunde com a prpria atividade colonizadora e com a introduo do trabalho escravo. Segundo Delgado (2004, p. 14),

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esse setor de subsistncia sobreviveu abolio da escravatura, entre outros fatores, por ser um subsistema independente do escravismo e, de certa forma, ser tambm autnomo relativamente monocultura exportadora embora no o seja em relao ao regime fundirio vigente.

As mazelas herdadas pelo povo brasileiro so perversas. Segundo o estudo de Delgado (2004, p. 16),a sociedade que se forja no Brasil depois da abolio carrega no seu mago duas questes mal resolvidas do sculo anterior: as relaes agrrias arbitradas pelo patriciado rural, mediante a lei de Terras (1850), profundamente restritiva ao desenvolvimento da chamada agricultura familiar; e uma lei de libertao dos escravos que nada regula sobre as condies de insero dos exescravos na economia e na sociedade ps-abolio.

Ainda nos termos de Delgado (Idem, p. 25), em 1980, ao fim do ciclo de expanso de cerca de cinquenta anos de industrializao e urbanizao intensivas, o setor formal do mercado de trabalho (empregados com carteira assinada e autnomos contribuintes, mais funcionrios pblicos e empregadores) atingiu o pico de absoro da Populao Economicamente Ativa (PEA) 55,6% , enquanto no mesmo ano o setor de subsistncia, acrescido do emprego informal e dos desempregados, correspondia a 43,4% da PEA. Paradoxalmente, esta parcela da populao tende a crescer na fase do capitalismo globalizado e de servios, mantendo um exrcito de pobres e miserveis que convivem no interior de uma das economias mais ricas do mundo, como a brasileira, na qual cerca de 77% das famlias no setor de agricultura familiar vivem no chamado setor de subsistncia. Delgado conclui quetal sociedade de grandes proprietrios de terra e de poucos homens assimilados ao chamado mercado de trabalho inaugurou

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o sculo XX impregnada pela desigualdade de oportunidades e pelas condies de reproduo humana impostas esmagadora maioria dos agricultores no proprietrios e trabalhadores urbanos no inseridos na economia mercantil da poca (Delgado, p. 17).

No Brasil, no incio dos anos 1990, o governo Collor de Mello tratou de implementar uma poltica econmica e uma poltica externa que seguia de perto as recomendaes e diretrizes do chamado Consenso de Washington, qual seja, de privatizaes e de liberalizao econmica, tanto no que tange aos fluxos de capitais quanto aos fluxos de mercadorias. Segundo Filgueiras (2000, p. 84), com o governo Collor de Mello e seu plano econmico, assistiu-se a uma ruptura que marcou definitivamente a trajetria do desenvolvimento do Brasil. Pela primeira vez, para alm de uma poltica de estabilizao, surgiu a proposta de um projeto de longo prazo, que articulava o combate inflao com a implementao de reformas estruturais na economia, no Estado e na relao do pas com o resto do mundo, com caractersticas nitidamente neoliberais. No entanto, esse projeto, conduzido politicamente de maneira bastante inbil, acabou por se inviabilizar naquele momento. O fenmeno Collor representou o processo de coroamento da institucionalizao poltica que era um dos imperativos da revoluo de 1964. Collor se colocara como a alternativa segura para os representantes da ordem contra a ascenso de Luiz Incio Lula da Silva, que, na poca, poderia significar a origem de mudanas polticas, econmicas e sociais dada sua ligao com os movimentos populares. importante notar que o presidente Fernando Collor de Mello recebeu significativo apoio de determinados setores empresariais. Segundo Oliveira (1992, p. 147), Collor est envolvido por um crculo do poder duplamente mortfero, os anis do poder econmico e do poder poltico. So os que encheram suas sacolas de generosas contribuies para

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a campanha e cobram na forma de privilgios nas licitaes. So os que lhe do apoio no Congresso e cobram nos favores para suas empresas ou de seus mestres. Deram apoio porque sabiam que ele era um falsificador da ira popular e cidad e reforam o apoio quando percebem que o falsificador se isola cada vez mais, acuado pelo crescimento da opinio pblica. uma dialtica infernal. Chamam-se indiscriminadamente empreiteiras, banqueiros, ACM, Bornhausen, Fiuza, Odebrecht, OAS, Rede Globo, Roberto Marinho, Tratex, Cetenco, Votorantim; a lista seria infindvel, pois so corretores que, como de praxe nos bons negcios, tambm enriquecem. No final da dcada de 1980, o governo brasileiro deu incio reforma comercial com a eliminao dos controles quantitativos e administrativos sobre as importaes somado proposta de reduo tarifria. Para Rego (2000, p. 184), a abertura da economia brasileira intensificou-se a partir de 1990. O esgotamento do modelo de substituio de importaes e a crescente desregulamentao dos mercados internacionais contriburam para uma reestruturao da economia brasileira, influenciada pela reduo das tarifas de importao e eliminao de vrias barreiras no tarifrias. A tarifa nominal mdia de importao, que era de cerca de 40%, em 1990, foi reduzida gradualmente at atingir seu nvel mais baixo em 1995, 13%. Nesse sentido, no governo Collor teve incio o mais radical processo de abertura comercial j registrado desde pelo menos a chamada mudana do eixo dinmico, nos anos 1930, brilhantemente descrita por Celso Furtado em sua obra Formao econmica do Brasil. As alquotas mdias passaram de 30,5% em 1989 para 32,2% em 1990. Baixaram para 25,3% em 1991 e reduziram, mais ainda, para 20,8% em 1992, ltimo ano de governo efetivo de Collor de Mello que sofreu processo de impeachment em outubro de 1992, devido s denncias de corrupo num ambiente de completo fracasso do Plano Collor II.

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Com a ascenso de Fernando Henrique Cardoso presidncia da Repblica, atravs de uma aliana do PSDB com o PFL, o processo de liberalizao e privatizao realmente foi intensificado. A poltica econmica em relao ao setor externo passou a ser um elemento central de toda a poltica do governo, na medida em que a poltica de estabilizao, reconhecida pelo Governo como aspecto mais importante no curto prazo e, na medida em que tem na ncora cambial seu aspecto decisivo, alm da ncora salarial (via desindexao) tornou deliberadamente a poltica econmica externa e toda a poltica governamental refm dos ingressos do capital financeiro internacional. Tecendo um balano do processo brasileiro nos anos 1990, o estudo de Mattoso (2001, p. 30) concluiu que, efetivamente, a abertura comercial indiscriminada, a ausncia de polticas industriais e agrcolas, a sobrevalorizao do real e os elevados juros introduziram um freio ao crescimento do conjunto da economia e uma clara desvantagem da produo domstica diante da concorrncia internacional. A reao das empresas, dada a menor competitividade diante dos concorrentes externos foi imediata: aceleraram a terceirizao de atividades, abandonaram linhas de produtos, fecharam unidades, racionalizaram a produo, importaram mquinas e equipamentos, buscaram parcerias, fuses ou transferncia de controle acionrio e reduziram custos, sobretudo da mo de obra. Tal processo socioeconmico foi ilustrado atravs dos dados apresentados pela pesquisa das taxas de desemprego na regio metropolitana de So Paulo (PED), elaborados pelo convnio Seade/Dieese, MTE/FAT, em que podemos observar que a taxa de desemprego total saltou de 8,7% em 1989 para 13,2% em 1995 e para 19,3% em 1999, ilustrando com veemncia que nada menos de 1,715 milho de pessoas estavam sem emprego em 1999. No mbito de toda a federao, os dados referentes ao desemprego aberto brasileiro apresentados pelo IBGE nos

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informam que o desemprego mais do que dobrou na dcada, saltando de 3,64% em 1989 para 8,01% em 1999. A brutal elevao do desemprego (conforme tabela abaixo) e o paralelo processo de precarizao das relaes do trabalho reacenderam a discusso acerca da categoria clssica exrcito industrial de reserva. Diversos autores apontam, com efeito, a fragmentao do mercado de trabalho entre um ncleo produtivo com assalariados a tempo integral e maiores perspectivas de progresso e uma massa de trabalhadores com enquadramentos precrios como o elemento estruturante do mundo laboral moderno. Na verdade, sob o imperativo da flexibilidade, num contexto de concorrncia global e de mundializao do capital, evidencia-se a chamada subproletarizao tardia, eufemisticamente associada por alguns a uma lgica de informalizao das relaes laborais. Deste subproletariado tardio fariam parte dois subgrupos: a) o dos assalariados com competncias menos especializadas, facilmente disponveis no mercado de trabalho e, por isso, com taxas elevadas de rotatividade e menos oportunidades de progresso na carreira; b) o dos trabalhadores com vnculos laborais precrios.evoluo da taxa de desemprego no brasil Ano 1990 4,3% 1995 4,6% 2000 7,1% 2005 9,8% 2007 9,3% 2008 7,9% 2009 8,1%

Fonte: CEPALSTAT, 2009.

Neste sentido, no Brasil, a precariedade do trabalho est bastante associada ao trabalho na chamada economia informal. Esta forma no est ligada necessariamente reduo da proteo social, como no caso de alguns pases europeus, mas, principalmente quelas atividades que so desenvolvidas sem, ou margem, de toda regulamentao advinda do Estado. De fato, parte substancial do contingente de trabalhadores informais est ligada chamada superpopulao relativa ou exrcito industrial de reserva.

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A categoria exrcito industrial de reserva, de Karl Marx, tem sido objeto de discusses e de vrias interpretaes. Evidentemente, faz-se necessria uma anlise emprica acurada das mudanas no comportamento da parcela da classe trabalhadora que se torna suprflua para a prpria acumulao de capital. Nesse sentido, os dados apresentados pela pesquisa empreendida pelo Dieese (2001) contribuem para avanar na anlise das novas configuraes que vem assumindo o exrcito industrial de reserva hoje. Em outros termos, podemos verificar que a distncia entre o nmero de pessoas aptas ao trabalho e o nmero de trabalhadores que conseguem emprego tende a crescer. Isto evidencia uma grande contradio da atualidade e uma caracterstica das novas formas que as relaes sociais vm assumindo, uma vez que os novos contingentes de pessoas da classe trabalhadora no conseguem emprego e, assim, pem em questo a prpria base da atual sociedade, que necessita de trabalhadores assalariados para a extrao da mais-valia. Esta nova configurao das relaes sociais, que se d sob a determinao da revoluo tecnolgica em curso, foi determinada pela luta de classe, ou como reao da classe dominante internacional queda da taxa de lucro, derivada das conquistas histricas da luta dos trabalhadores. A reao da classe dominante evidentemente tentar elevar a taxa de explorao e isto somente possvel atravs da elevao da produo de mais-valia relativa, conquistada graas ao aumento da composio orgnica do capital impulsionada pelo aumento relativo dos investimentos em novas tecnologias ou bens de capital. Assim, as contradies sociais, ou a luta entre as classes, desencadeou uma revoluo tecnolgica sem precedentes, pois agora trata-se de uma revoluo tcnica baseada nos conhecimentos informacionais e na robtica, muito mais racionalizadoras de fora de trabalho do que as revolues anteriores, criando-se a falsa ideia de uma sociedade do conhecimento, sem contradies e sem produo de mais-valia, enfim, sem trabalho e sem capital.

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Tais avaliaes irracionais (no sentido lukacsiano, pois desconsideram a realidade histrica), que vm, por exemplo, de intelectuais respeitados, como Toni Negri e Andr Gorz, se esquecem de lies antigas de Karl Marx, nas quais a categoria trabalho se define pelo dispndio de energias fsicas, psicolgicas, ou seja, formas imateriais se materializam no trabalho social, nica maneira possvel de se produzir mercadorias. Uma das caractersticas essenciais do novo padro de acumulao brasileiro se refere, portanto, a uma questo estrutural central. O exrcito industrial de reserva s pode ser entendido, nica e exclusivamente, como um fenmeno global. Os pases do centro da acumulao, por concentrarem e centralizarem o capital financeiro global, concentram os sedimentos superiores do exrcito industrial de reserva (flutuante) que se refere principalmente aos trabalhadores que se reciclam e voltam ao mercado de trabalho. J os pases subordinados, como que num gradiente, vo concentrando os sedimentos mais profundos do exrcito industrial de reserva, ou seja, a parte latente, mas principalmente a superpopulao estagnada, que segundo Marx (1980, p. 746) constitui parte do exrcito de trabalhadores em ao, mas com ocupao totalmente irregular. Mas a maior contradio atual que o sedimento mais profundo o que mais se desenvolve por todo o globo terrestre, na medida em que o crescimento econmico (que raramente ocorre) passa a ser economizador de fora de trabalho. Cresce em nmero de pessoas e, portanto, desenvolve-se o que Marx (Idem, p. 746747) chamou de o mais profundo sedimento da superpopulao relativa [que] vegeta no inferno da indigncia, do pauperismo. (...) So notadamente os indivduos que sucumbem em virtude de sua incapacidade de adaptao, decorrente da diviso do trabalho. No campo da poltica econmica neoliberal adotada, a necessidade permanente e crescente de Investimentos Diretos Estrangeiros (IDE) apenas a expresso fenomnica do processo cujo fundamento a absoluta e deliberada subordinao do es-

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pao nacional, empreendida pela classe dominante brasileira, acumulao financeira internacional do capital, da qual beneficiria direta, posto que scia. A substituio estrutural do chamado trip de financiamento da acumulao (capital nacional + capital internacional + investimentos do Estado) base do nacional desenvolvimentismo por um outro tipo de configurao estrutural baseado fundamentalmente no capital financeiro internacional, cria novas formas de subordinao, com uma substancial reduo das margens de liberdade decisrias tanto no que tange elaborao da poltica econmica (conjuntura), quanto no que se refere s polticas de fomento e desenvolvimento de mais amplo flego (reformas estruturais). Entretanto, possvel afirmar que, no fundo, as aes do Estado se ampliam, mas obviamente no sentido da regulao para a transferncia do fundo pblico em proporo crescente para o financiamento do setor privado, vis vis reproduo da fora de trabalho. Em sua sugesto, o professor Francisco de Oliveira matou a charada do Estado no sculo XX, ao sugerir que o Estado (o fundo pblico) transformou-se em pressuposto geral da acumulao de capital. Parece que as consequncias mais imediatas da implantao de tal estratgia no Brasil so: 1) crescimento do desemprego estrutural e conjuntural (segundo dados do prprio IBGE, o Brasil ocupa a segunda posio no mundo em maior nmero de desempregados); 2) eliminao de parcela considervel da indstria de capital nacional, via falncias ou incorporaes; 3) desarticulao ou destruio do chamado setor produtivo estatal via privatizaes; 4) crescimento do deficit pblico a patamares comprometedores da prpria estratgia; 5) crescimento da dependncia externa em funo do crescimento do deficit em contas correntes (oriundo agora do deficit comercial estrutural que se somou ao histrico deficit na conta de servios, caracterstico de pases subordinados); 6) manuteno das profundas desigual-

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dades sociais e regionais, tais como nveis intolerantes de concentrao da propriedade e da renda; 7) reduo dos gastos sociais nas reas prioritrias que atingem a maioria da populao tais como sade, educao, transporte urbano e moradia, em funo do ajuste dos gastos pblicos, que via de regra devem ser usados para o ajuste de rota em direo propalada modernizao do parque produtivo como necessidade da nova agenda competitiva, ou simplesmente para atender as remuneraes do capital financeiro, como na recomendao explcita do FMI. Nessa nova fase de subordinao estrutural, temos a aparncia da impossibilidade de formulao de uma poltica econmica independente, na medida em que os sujeitos histricos no comando da poltica econmica, leia-se PSDB, direcionaram toda a poltica econmica e a prpria acumulao de capital, sua face monetria, e a formao do fundo pblico num sentido caudatrio dos interesses do grande capital financeiro internacional. Assim, a globalizao capitalista e a abertura econmica que lhe peculiar aprofundam o processo de internacionalizao e subordinao da economia brasileira num patamar jamais verificado em todo o processo de acumulao ampliada do capital no Brasil. Esse processo definido pelos seus defensores como modernizao, eufemismo para o novo processo de acumulao de capital cujo eixo a acumulao financeira, com suas empresas em rede. No limite, os pases da periferia do sistema, com destaque para o processo brasileiro, passam a viver um processo de permanente tendncia ao estrangulamento externo acompanhado de remessa de vultuosas massas de mais-valia para os pases centrais. Basta uma verificao emprica nas contas do balano de pagamentos do Brasil e dos histricos e gritantes indicadores sociais que apresentam o Brasil entre os pases com maior concentrao de renda, com grande endividamento externo, com gritantes ndices de desemprego e, enfim, com uma lamentvel posio no ranking do ndice de desenvolvimento humano (IDH).

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neoliberalismo, desigualdade e poltica social no governo lula da silvaCom a ascenso de Luiz Incio Lula da Silva presidncia da Repblica em 2002, a poltica neoliberal se manifestar principalmente em duas frentes: em primeiro lugar pela manuteno da arquitetura macroeconmica dos governos anteriores, principalmente no que tange poltica de criao de superavits primrios e poltica de juros elevados no quadro de uma obsesso pela estabilidade monetria. Em segundo lugar, pelo aprofundamento de polticas sociais de tipo focalizada, como o Prouni e principalmente seu carro chefe: o programa Bolsa Famlia. No perodo recente, notam-se porm algumas mudanas positivas. Ao analisar os dados de 1981 a 2007, verifica-se que nesta ltima dcada houve uma melhora nos indicadores de concentrao e desigualdade de renda, tais como proporo de pobres na populao total, pessoas que se apropriam da renda equivalente ao 1% mais rico, ndice de Gini e ndice de Theil, razo entre a renda dos 10% mais ricos e dos 40% mais pobres. A evoluo do ndice de Gini, apresentado na Tabela 1, demonstra uma certa melhoria na sociedade brasileira, conquistada na ltima dcada.tabela 1. ndice de Gini no brasil Anos 1990 2001 2008 ndice de Gini 0,627 0,639 0,594

Fonte: Anurio Estatstico da Cepal (2010)

No entanto, o que se nota que, a despeito de tal comportamento, a sociedade brasileira ainda se encontra entre as

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mais desiguais do mundo. As tendncias de descida do ndice de Gini no apontam para mudanas estruturais no perfil da distribuio de renda e na reduo das desigualdades sociais no pas. Os patamares de pobreza e desigualdade ainda esto distantes dos desejveis para a promoo da justia social e do bem-estar. A despeito da queda percentual, uma sociedade em que o 1% mais rico se apropria de 20,50% da renda, enquanto os 50% mais pobres se apropriam de apenas 14,74%, ainda uma sociedade extremamente injusta do ponto de vista social. Segundo a avaliao de Pochmann (2004, p. 53), os ricos no Brasil, uma nfima parcela mais rica da populao, no superior a 10%, apropria-se de mais de 2/3 da riqueza nacional desde o sculo XVIII. E isso no foi alterado significativamente at os dias de hoje. sobre tal realidade que incidiram, na ltima dcada (1999-2009), grandes mudanas nas estruturas econmicas e sociais, concomitantes s polticas econmicas e sociais de cunho neoliberal. No Brasil, pelo menos desde 2004 at o final desta dcada, os dados disponveis da populao abaixo da linha da pobreza demonstram uma melhora sensvel, devido a um conjunto de aes de poltica social como, por exemplo, o programa Bolsa Famlia, a poltica de elevao do salrio-mnimo acima dos ndices de inflao, bem como a incluso de pessoas idosas nos programas de aposentadoria, poltica de crdito para setores de baixa renda, polticas para reduo das desigualdades de gnero, entre outras. O Programa Bolsa Famlia considerado um programa de grande xito na medida em que contempla aproximadamente 11 milhes de famlias pobres, ou aproximadamente um quarto da populao brasileira.

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tabela 2. pessoas em situao de pobreza e de extrema pobreza brasil Ano 1990 2001 2003 2005 2007 2008 % 48 37,5 38,7 36,3 30,0 25,8

Fonte: Anurio estatstico Cepal (2010) (adaptado)

De fato, somente nos anos 1990 medidas efetivas de resposta aos problemas da pobreza foram tomadas, como por exemplo, a criao, no governo de Fernando Henrique Cardoso, de programas como o Programa de Erradicao do Trabalho Infantil, Agente Jovem, Sentinela, Bolsa Escola, Bolsa Alimentao e Auxlio Gs. (Weissheimer, 2006, p. 28). O passo seguinte se deu no governo Lula da Silva com a integrao de vrios programas, dando ensejo ao programa Bolsa Famlia. Institudopela Medida Provisria n. 132, em novembro de 2003, o Bolsa Famlia um programa federal de transferncia direta de renda destinado s famlias em situao de pobreza (renda mensal por pessoa de R$ 60,00 a R$ 120,00) e de extrema pobreza (com renda mensal por pessoa de at R$ 60,00) (Weissheimer, 2006, p. 25).

Isto posto, o programa Bolsa Famlia foi idealizado com dois objetivos:combater a misria e a excluso social, e promover a emancipao das famlias mais pobres. Uma das novidades do programa em relao a iniciativas similares anteriores foi a unificao de todos os benefcios sociais do governo federal (bolsa escola, bolsa alimentao, carto alimentao e auxlio gs) em um nico programa (Weissheimer, 2006, p. 25).

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Para receber o benefcio, as famlias devem cumprir algumas condicionalidades, como por exemplo:as famlias devem participar de aes no acompanhamento de sade e do estado nutricional dos filhos, matricular e acompanhar a frequncia escolar das crianas no ensino fundamental e participar de aes de educao alimentar. Com base nas informaes do cadastro nico elaborado pelas prefeituras, o MDS seleciona as famlias a serem beneficiadas. (...) A Caixa Econmica Federal o agente operador do cadastro e do pagamento dos benefcios (Weissheimer, 2006, p. 26).

Sendo um programa de carter nacional, sua administrao possui tambm o mbito nacional, sendo gerido pelo Ministrio de Desenvolvimento Social e Combate Fome. Para viabilizar seu funcionamento em um pas continental, foram institudas parcerias com as outras esferas de governo, principalmente os Estados e os municpios. O relativo sucesso do Programa Bolsa Famlia em minorar o sofrimento de milhes de pessoas miserveis esconde, via de regra, alguns novos problemas que tais polticas sociais deste tipo trazem. Um dos aspectos a considerar que tais polticas focalizadas implicam o abandono ou a substituio de polticas universais, consideradas muito dispendiosas, por polticas focadas que muitas vezes deixam de fora um contingente no desprezvel de milhares de pessoas que no se encaixam nas exigncias para os programas focados e no dispem de acesso a polticas universais de seguridade social, permanecendo assim margem. Segundo a anlise acurada de Anete Ivo (2008, p. 29)1:1

A obra faz uma anlise detalhada das teorias que deram substrato s polticas sociais e elabora uma crtica acurada atual forma de poltica social focalizada.

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os dados positivos observados na queda dos indicadores das desigualdades em favor das camadas mais pobres tm por base a renda do trabalho. Significam, especialmente, que a renda dos mais pobres cresceu num ritmo mais elevado que a renda dos estratos de trabalhadores com renda mdia ou alta. O resultado dessa relao, no entanto, expressa tambm queda da renda mdia do trabalho, que, em 2006, ainda no havia recuperado o valor de 1996. Por outro lado, a relao entre a renda funcional do trabalho e a renda dos ativos inverte sua posio, apresentando queda da participao do trabalho em relao aos ganhos de capital, que passa de 56%, em 1993, para 45,3%, em 2003, mantendo-se num patamar estvel desde ento. Isto significa que, apesar de o Brasil ter melhorado os indicadores das desigualdades, no alterou o seu padro da concentrao de renda e, portanto, o conflito redistributivo opera-se fundamentalmente, na base da pirmide social, entre trabalhadores mdios e aqueles com rendimentos mais altos e os setores mais pobres da sociedade.

Alm disso, as informaes e dados veiculados recentemente na grande imprensa, oriundos das agncias e ministrios governamentais do Brasil, demonstram que os recursos despendidos pelo programa bolsa famlia so insuficientes para retirar a populao da extrema pobreza:Segundo o terceiro levantamento realizado pelo Ministrio de Desenvolvimento Social e Combate Fome, em setembro de 2009, a renda mediana de 65% dos beneficirios do programa de auxlio inferior a R$ 70, valor usado pelo governo para caracterizar a linha de extrema pobreza. 22

Valor On Line. Disponvel em: http://g1.globo.com/economia-e-negocios/ noticia/2010/05/bolsa-familia-nao-livra-a-maioria-da-extrema-pobreza.html, acesso em 14-06-2010. Segundo este artigo, no Nordeste, onde vive metade dos beneficirios (6,2 milhes de famlias), o Bolsa Famlia fez a renda mdia sair de R$ 40,07 para R$ 65,29. No Norte, cerca de 1,28 milho de famlias teve a renda elevada de R$ 41,65 para R$ 66,21. J no Sul, onde essa correlao maior, a renda familiar dos beneficirios saiu de R$ 64,01 para R$ 85,07.

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Neste contexto, como afirma Francisco de Oliveira (2006, p. 37), as polticas assistencialistas, () so na verdade polticas de funcionalizao da pobreza. na medida em que no ocorre um efetivo processo de distribuio da renda entre as classes (no se toca na renda da parcela mais rica da sociedade) e, nem tampouco, toca-se na secular estrutura fundiria, via reforma agrria, que seria uma forma privilegiada para se promover a transformao estrutural da sociedade brasileira, no sentido de dirimir a tradicional pirmide de concentrao de renda no Brasil. Cabe ressaltar, guisa de concluso, que toda poltica social de transferncia de renda sempre bem-vinda; entretanto, um real processo de distribuio de renda e do poder no poder prescindir da efetivao das histricas bandeiras populares em prol da reforma agrria, da reforma urbana e da socializao dos meios de produo, caso contrrio a efetiva justia social continuar morando no vasto campo utpico da necessidade histrica da construo da globalizao socialista.

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Globalizao, Estado, neoliberalismo e desigualdade social no Brasil

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Gesto da subjetividade e novas formas de trabalho: velhos dilemas e novos desafiosFelipe Luiz Gomes e Silva

a repugnncia dos operrios ao trabalho esmigalhado, intenso e repetitivoEste texto tem por objetivo tornar evidente alguns aspectos fundamentais que so inerentes ao trabalho repetitivo realizado na indstria metal-mecnica, em especial na automobilstica. Como sabido, esta ltima, principalmente aps a introduo da esteira transportadora, enfrenta a repugnncia dos operrios ao trabalho alienado, fragmentado e intenso. Como demonstra a histria do capitalismo, a tentativa de engajar a fora de trabalho por meio dos incentivos salariais no eliminou a repugnncia dos operrios aos mtodos tayloristas e fordistas de controle do processo de trabalho. No ano de 1914, para manter 14 mil operrios trabalhando na fbrica, H. Ford precisava admitir 53 mil por ano, somente aps a introduo do estmulo salarial (The Five Dollar-Day) conseguiu que a rotao de pessoal declinasse para 6.508. Os conflitos entre o capital e a classe operria passam a moldar, no decorrer das lutas de resistncia, novas formas de gesto da subjetividade que buscam a adeso dos trabalhadores ao processo de produo de mercadorias.

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O absentesmo, o turnover, o trabalho mal feito e at a sabotagem tornaram-se as chagas da indstria automobilstica americana: Fortune, revista mensal da elite empresarial, que descreve com certo requinte de pormenores essas manifestaes da resistncia operria a mtodos organizacionais e de dominao que no mudaram desde o incio do taylorismo. (...) O turnover, isto , a mobilidade voluntria dos trabalhadores que mudam de emprego em busca de condies de trabalho mais favorveis, um tormento para os capitalistas. A taxa mdia na Ford, em 1969, foi de 25%, representados essencialmente pelos operrios mais jovens (...) Alguns desses operrios deixam seus cargos, estranha um chefe de oficina, no meio dia, sem ir buscar o pagamento. (...) As baixas de produtividade exprimem a resistncia dos trabalhadores explorao. Essa resistncia, que se manifesta pela quebra dos ritmos, pela sabotagem dissimulada, pelo aumento de peas falhadas, crtica para o patronato (Pignon e Querzola, 1980, p. 94-95).

A filsofa e educadora Simone Weil (1975), em uma conferncia realizada para um auditrio operrio, no ano de 1937, j havia revelado a especificidade dos denominados mtodos de racionalizao (coero) do trabalho. A gnese da resistncia da classe operria ao mtodo taylorista de racionalizao do trabalho explica-se, em parte, pela pretenso do capital em empregar a cincia na matria viva, isto , nos seres humanos. Para Braverman (1981), a racionalidade da organizao do trabalho taylorista-fordista caracteriza-se pelo desejo do capital em transformar os homens em perfeitas mquinas. Enquanto a esteira mecnica, relquia brbara, transporta peas e componentes, os proletrios, em postos fixos, realizam movimentos intensos e repetitivos, a degradao do trabalho no sculo XX levada ao extremo. Portanto, a crise da linha de montagem fordista inerente sua natureza; mesmo com a introduo da esteira mecnica, o trabalho humano continua sendo o elemento dominante, isto , a qualidade e a produtividade continuam dependendo, em parte,

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da vontade do trabalhador coletivo. Esta estreita relao entre os aspectos subjetivos do processo de trabalho (motivao) e a produtividade material, alm de revelar a especificidade dos sistemas produtivos organizados nos moldes fordistas, evidencia tambm as origens de sua permanente crise, latente ou manifesta. Desta forma, estamos diante de um caso muito especial de administrao de recursos humanos, isto porque, em face da constante rejeio da classe operria ao trabalho degradado, desqualificado, repetitivo e intenso, surgem continuamente, para alm das tticas dos incentivos salariais, novos estratagemas gerenciais que buscam a construo da adeso do comportamento humano ao processo de produo fordista: o condicionamento e a docilidade humana. A docilidade dos operrios ser facilitada com a introduo das polticas neoliberais, a mundializao do capital, o crescimento da superpopulao relativa e o desemprego. Afirma Loc Wacquant:A regulao da classe operria pelo que Pierre Bourdieu chama de a mo esquerda do Estado, simbolizada pelos sistemas pblicos de educao, sade, seguridade e habitao, foi substituda nos Estados Unidos ou suplementada na Europa ocidental por regulaes a partir de sua mo direita, ou seja, a polcia, as cortes e o sistema prisional, que esto se tornando cada vez mais ativos e intrusivos nas zonas inferiores do espao social (2003, p. 73).

O desenvolvimento do capitalismo ocorre em espaos historicamente constitudos, os sistemas produtivos convivem com uma grande heterogeneidade de formas organizacionais, vrias maneiras de organizar e de precarizar o trabalho. A forma toyotista de explorao do trabalho flexvel, por exemplo, que no elimina a tarefa fragmentada e repetitiva, convive com avanados processos de produo automatizados e, tambm, com a extrao da mais-valia absoluta.

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o suplcio da execuo de um trabalho esmigalhado, o simulacro de vida: o que mudou? possvel perceber, em significativas expresses de linguagem, a raiz da permanente crise do processo de trabalho taylorista-fordista. Diz, por exemplo, um operrio que trabalha na linha de montagem: a execuo de um trabalho esmigalhado torna-se um suplcio (Friedmann, 1981). Para muitos trabalhadores, somente o refgio do hbito construdo pela regularidade dos gestos manuais repetitivos possibilita algum alvio para o sofrimento humano. Na defesa de certo nvel de bem-estar, preciso que o trabalhador execute as tarefas numa cadncia que no demande muita assiduidade da ateno; felizmente, poder trabalhar pensando em outra coisa (esprito deriva) evita que a racionalizao (coero) do processo de produo seja total, perfeita.Esse sistema produziu a monotonia do trabalho. Dubreilh e Ford dizem que o trabalho montono no penoso para a classe operria. (...) Se realmente acontece que com esse sistema a monotonia seja suportvel para os operrios, talvez o pior que se possa dizer de um tal sistema. Certo que a monotonia do trabalho comea sempre por ser um sofrimento; se chega ao hbito, custa de uma diminuio moral. Na verdade, ningum se acostuma a isso, a menos que se possa trabalhar pensando em outra coisa. Mas, ento, preciso trabalhar num ritmo que no exija muita assiduidade da ateno de que a cadncia do trabalho precisa. (Weil apud Bosi, 1979, p. 124).

Mas a cincia da administrao avana e no d trguas, persegue, sem descanso, novas teorias (ideologias) que permitam ao chefe da oficina tudo conhecer; preciso integrar o esprito do trabalhador ao processo de produo, isto , alcanar o controle total do ser humano. A busca de uma perfeita racionalizao/servido que evite o desenvolvimento de prticas

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defensivas (o devaneio, esprito deriva, os boicotes, as greves selvagens) ser, para o infortnio dos seres humanos, o privilegiado tema de pesquisa das cincias comportamentais estadunidenses e, em especial, da psicologia aplicada administrao. A tentativa de capturar a subjetividade humana via estmulos salariais, incentivos psicolgicos, falsa participao, propagandas mercadolgicas no de hoje. Desde a conhecida Experincia de Hawthorne realizada na Western Electric em Chicago, na Amrica do Norte, nos anos de 1927 a 1932, em uma linha de montagem de peas de telefones que a teoria da administrao ressalta a importncia da motivao psicolgica para a construo da lealdade dos trabalhadores para com a empresa. O movimento de relaes humanas na indstria pioneiro na defesa da utilizao dos incentivos simblicos como forma de estimulao e de condicionamento da conduta operria. Por exemplo, a Sala de Terapia de Tenses Industriais, constituda por uma equipe de psiclogos conselheiros, tinha como funo primordial assegurar uma organizao que operasse sem atritos (smooth-working) e com o mximo de rendimento (Friedmann, 1981). Na realidade, ao pretender que os operrios acreditem que so responsveis pelas chamadas tenses industriais, o papel da psicologia tem sido o de negar as origens sociais, polticas e econmicas dos conflitos de classe. Desejam os gestores que os operrios sejam transformados em perfeitas mquinas, isto , que a adaptao psicofsica se realize sem resistncias e imperfeies. A adaptao psicofsica ao intenso ritmo da produo prejudica o corpo e a mente dos operrios e das operrias. Exige, constantemente, um particular dispndio de energia nervosa que provoca um novo tipo de fadiga humana (Gramsci, 1978). Em relao a esse novo tipo de fadiga, as falas dos operrios e das operrias que reproduzem gestos estereotipados so ricas em revelao. A sensao do corpo anestesiado e do entorpeci-

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mento fsico rompe com a noo de tempo; a vida humana no passa de um simples arremedo, um simulacro. como um longo deslizar glauco, do qual se desprende, depois de certo tempo, uma espcie de sonolncia ritmada por sons, choques, clares, ciclicamente repetidos, regulares. A msica informe da linha de montagem, o deslizar das carcaas cinzentas de chapas brutas, a rotina dos gestos: sinto-me progressivamente anestesiado. O tempo para. (...) como uma anestesia progressiva: poderamos contentarmo-nos com o torpor do nada e ver passar meses talvez anos, por que no?(...) O verdadeiro perigo comea quando se suporta o choque inicial, o entorpecimento. Da esquecer at mesmo a razo da prpria presena na fbrica e satisfazer-se com o milagre de sobreviver. Habituar-se. Habituarmo-nos a tudo, ao que parece. Evitar choques, proteger-se contra tudo que incomoda. Negociar com o cansao. Refugiar-se num simulacro de vida (Linhart, 1986, p. 12; 43).

O longo trecho anteriormente citado um claro testemunho do sofrimento humano que tem como causa inconteste o trabalho alienado e degradado. Recentemente, como resultado de suas pesquisas cientficas, Dejours (1987) revela que o sofrimento, a ansiedade e o medo dos trabalhadores na linha de montagem fordista derivam de um ritmo imposto pela gerncia que exige uma elevada carga psicossenssorial motora. Assim ele se expressa:A ansiedade responde ento aos ritmos de trabalho, de produo, velocidade e, atravs destes aspectos, ao salrio, prmios, s bonificaes. A situao de trabalho por produo completamente impregnada pelo risco de no acompanhar o ritmo imposto e de perder o trem (Dejours, 1987, p. 73).

A constante rejeio da classe operria ao trabalho degradado e a acirrada competio mundial impulsionam a crise (crise aberta) do sistema de produo taylorista-fordista, locus

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privilegiado do trabalho desqualificado e repugnante. Esses assalariados reivindicam com as greves selvagens mudanas fundamentais na forma de organizao do trabalho. Segundo C. Dejours (1987), as expresses abaixo as cadncias infernais e abaixo a separao do trabalho intelectual e manual representam nitidamente uma total recusa dos proletrios insuportvel degradao fsica e mental provocada pela intensificao do ritmo de produo. So lutas realizadas no interior da indstria automobilstica que apontam para a autonomia e emancipao da classe operria, para a autogesto do processo produtivo.Essas greves selvagens confirmam a escolha de 1968 como referncia histrica. Greves selvagens e greves de operrios no qualificados eclodem espontaneamente, muitas vezes margem das iniciativas sindicais. Elas rompem a tradio reivindicativa e marcam a ecloso de temas novos: mudar a vida, palavra de ordem fundamentalmente original, dificilmente redutvel, que mergulha o patronato e o Estado numa verdadeira confuso, pelo menos at a atual crise econmica, que tende a atenuar as reivindicaes qualitativas (...) Palavras de ordem como abaixo as cadncias infernais, abaixo a separao do trabalho intelectual e manual, mudar a vida atacam diretamente a organizao do trabalho (Dejours, 1987, p. 24-25).

A resistncia absentesmo, boicotes, greves selvagens, esprito deriva e a acirrada competio pelos mercados nacionais e internacionais justificam os altos dispndios com os estratagemas gerenciais que buscam, para alm da adaptao psicofsica do operrio ao ritmo da esteira, o envolvimento espiritual e mental (engajamento estimulado) dos proletrios com o trabalho alienado e fragmentado. Os trabalhadores precisam ser participativos, leais e motivados, ou seja, escravos contentes. Aps pesquisas realizadas em programas de engajamento estimulado, revela Alves:

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A General Motors chegou a pagar trs mil dlares por hora para um grande psiclogo desenvolver a programao dos cursos de treinamento para o trabalho participativo e para elaborar o material didtico a ser usado. O importante aqui enfatizar que os cursos visam, como prioridade, mudar a identidade do trabalhador para que ele passe a ver a empresa com novos olhos. Ao invs de ficar sempre vendo conflitos entre a classe trabalhadora e os patres, so levados a pensar que possvel ter um relacionamento amigvel, de famlia, e chegar a acordos consensuais (1987 p. 42).

Nos Estados Unidos, a burocracia sindical aceita o programa participativo conhecido como UAW-Ford Employee Involvement, mas as greves selvagens questionam e lutam contra o acordo de cpula. Segundo Bernardo (2000), a caracterstica fundamental dessas lutas operrias, as greves selvagens, era a sua inovao em termos de combate e de propostas organizativas. Essas lutas, com suas estratgias de recusa explorao do trabalho, datam de 1950 (mais cedo em alguns pases da URSS) at o incio de 1980. Os operrios as conduziam, fora da burocracia sindical, as assembleias e as comisses de trabalhadores decidiam o encaminhamento. Ao exercitarem o controle direto sobre os combates movimento autnomo colocaram em pauta, durante a dcada de 1960 e 1970, no a mera propriedade formal dos meios de produo. A questo central para os proletrios era a estrutura organizacional, isto , puseram em pauta o poder burocrtico e a heterogesto das fbricas. Um artigo publicado no New York Times em 23 de agosto de 1973 denuncia claramente a crise dos processos de trabalho organizados nos moldes taylorista-fordistas. Por exemplo, a empresa Fiat Motor Company, em Roma, teve nada menos que 21 mil funcionrios ausentes em uma segunda-feira e o absentesmo mdio era de 14 mil trabalhadores por dia. Desta forma, avana a constante necessidade de motivar os operrios para o trabalho fragmentado e intenso, a ideologia gerencial cria novas formas de engajar e administrar (controlar) a recusa operria.

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novamente a intensificao do trabalho repetitivo e o engajamento estimuladoComo resposta crise aberta do taylorismo-fordismo, surge, na segunda metade do sculo XX, no Japo, o sistema de produo em massa flexvel (Just in time/Kanban/CCQ/Kaizen/Multiskill). Sistema este que desenvolve uma nova maneira de gerenciar a fora de trabalho, que leva intensificao do ritmo de produo a padres extremos (management by stress), uma vez que adiciona, ao gesto repetitivo dos operrios, o engajamento total. A sociloga Danile Linhart revela que a estratgia da empresa flexvel consiste em dominar a conscincia dos trabalhadores, induzindo la mentalit des pompiers (mentalidade dos bombeiros): sempre prontos e em alerta para realizarem tarefas repetitivas com a qualidade e a produtividade requeridas pelo capital (apud Santon, 1999). Segundo C. Dejours:O autocontrole japonesa constitui um acrscimo de trabalho e um sistema diablico de dominao autoadministrado, o qual supera em muito os desempenhos disciplinares que se podiam obter pelos antigos meios convencionais de controle (Dejours, 1999, p.49).

Na New United Motor Manufacturing Inc. Califrnia (EUA), os ciclos de trabalho so muito curtos, o incio e o trmino de uma tarefa multifuncional dura 60 segundos (Womack, Jones, Roos, 1992). Na empresa Suzuki, em Kosai (Japo), o operrio desenvolve uma sequncia de movimentos fsicos em um ritmo que cadenciado pelo som de msica sinttica; ele monta, em um estado mental quase hipntico, um automvel de porte mdio a cada 58 segundos (Ocada, 2002). Segundo a experincia de um jornalista brasileiro que trabalhou como arubaito (trabalho temporrio e precrio) na Kubota, no Japo fbrica de tratores e de implementos agrcolas , as tarefas so pesadas e repetitivas. Ele executava quatro tarefas

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diferentes (cargo enriquecido) e recebia remunerao de 12 reais por hora; mas no tinha carteira assinada, no ganhava 13 salrio e tampouco fundo de garantia. Assim ele se expressa:Eu apertava parafusos, empurrava mquinas para a linha de produo, buscava peas, levava caixas vazias para o depsito. Quanto mais trabalhava, mais ouvia hayaku (mais depressa). Fiz uma coisa imperdovel nas relaes trabalhistas locais: reclamei do abuso e sugeri mudanas. O sistema japons detesta queixas e abomina mudanas (Higobassi, p. 109, 1998).

Mesmo diante dessas evidncias empricas, alguns pesquisadores, tais como Womack et al. (1992) e Hirata (1998), defendem a tese de que a tarefa polivalente desempenhada pelos operrios japoneses supera a ciso entre o trabalho manual e intelectual, isto , requalifica o processo de trabalho. Na verdade, o exerccio da multifuncionalidade (multiskill) tem gerado um trabalhador pluriparcelar, engajado, flexvel e proativo, ou seja, extremamente explorado pelo capital. Com a introduo dos crculos de trabalho, da reduo dos estoques amortecedores e do princpio da melhoria contnua (kaizen), aprofundase, na realidade, o processo de alienao do trabalho: a apropriao pelo capital do denominado saber tcito da classe operria. De acordo com Nonaka (1991), com a introduo do Sistema JIT/Kanban e dos crculos de trabalho, determinados conhecimentos (saberes tcitos) deixam de ser monoplio de alguns poucos operrios e so incorporados organizao pela gesto da empresa, isto , ao total domnio do capital. Dessa forma, emerge da uma nova configurao organizacional que, aliada ao enfraquecimento dos direitos trabalhistas e coero direta do mercado sobre a subjetividade humana, permite uma (re)definio da forma de explorao da fora de trabalho. Para Pierre Bourdieu (1998), a precariedade das relaes de trabalho gera uma nova forma de opresso: a gesto racional dos

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recursos humanos por intermdio da insegurana e do medo, a flexplorao. Essa coero denominada de regime hegemnico desptico por Burawoy (1990) ou de new regime of subordination por Garrahan et al. (1994). Alguns dos resultados da aplicao dessas novas tcnicas gerenciais so as doenas e as mortes provocadas pela overdose de trabalho (Carvalho, 1995; Dejours, 1987).No Japo, interessante estudo do Dr. Tetsuro Kato demonstra que a fora humana empregada tem vivenciado um fenmeno denominado karoshi, ou seja, morte por excesso de trabalho. Tecnicamente, aplica-se esse termo sociomdico para descrever doenas, em geral cardiovasculares, ocasionadas pelo dispndio desumano de horas e energia fsica e psquica nas atividades produtivas. Esse estilo de consumo da fora de trabalho est sendo denominado de sete s onze porque os empregados saem de casa s sete da manh e somente retornam ao lar s onze horas da noite (Carvalho, 1995, p. 22).

importante ressaltar que o discurso gerencial da qualidade, produtividade e multifuncionalidade transcende o mundo fabril e contamina todos os espaos sociais, em especial as instituies educacionais e universitrias, terceirizando, assim, tarefas e funes pblicas. A opresso da classe operria no local do trabalho traduzse em sofrimentos prolongados; na luta pela transio social e superao do modo de produo capitalista, no basta coletivizar as fbricas; necessria uma luta diria pela construo de uma nova forma de organizao e gesto, ou seja, pela apropriao real das foras produtivas (Bihr, 1998).1 Simone Weil havia percebido que a superao da explorao do trabalho pode conviver com a opresso do operrio se a1

Publicou o jornal China Daily que uma operria chinesa, aps trabalhar 24 horas em uma fbrica no sul da China, morreu por exausto (2005).

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organizao da produo no for democratizada, assim, preciso superar o trabalho esmigalhado e repugnante.Se amanh os patres forem expulsos, se as fbricas forem coletivizadas, nada vai mudar quanto a este problema fundamental: o que preciso para extrair o maior nmero possvel de produtos, no necessariamente o que pode satisfazer aos homens que trabalham na fbrica (apud Bosi, 1975, p.12).

O trabalho fragmentado e intenso no privilgio dos operrios fabris que operam na indstria automobilstica sob o regime toyotista. Nas empresas de computao, a produo-padro definida para os digitadores e digitadoras exige, em mdia, 18 mil toques por hora, isto , operrio de escritrio deve dar cinco toques no teclado a cada segundo, speed as skill (Soares, 1988). As teleoperadoras de empresas de telemarketing devem respeitar o tempo mdio de atendimento (tempo mdio para passar uma informao) de cerca de 29 segundos. As operrias trabalham, em geral, seis horas sentadas com 15 minutos para tomar caf e cinco para ir ao banheiro; o ritmo e o controle das tarefas so to intensos que no permitem a existncia de relaes interpessoais. Muitas organizaes padronizam a fala e inclusive a entonao da voz, nos controles das atividades esto includos os scripts e os fluxogramas de atendimento. Em 1997, existiam 151 mil trabalhadores no setor de telemarketing, no ano de 1999 foram criados mais 90 mil novos postos (uma elevao de 46,15%); nos anos seguintes o crescimento se manteve; em 2001 havia 450 mil operadores e operadoras (Nogueira, 2006). Como sabemos, para F. W. Taylor, o homem deveria ser gerenciado como uma mquina desta forma contratou Carl Barth, famoso matemtico, para calcular os intervalos de descanso necessrios para um dia timo de trabalho; a administrao cientfica exigia, alm dos incentivos monetrios, o respeito Lei da

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Fadiga. Mas nos canaviais do Brasil o trabalho intenso, fragmentado e repetitivo realizado sem intervalos para o descanso, o dia timo de trabalho estabelecido pelo capital sem o reconhecimento das contribuies da cincia taylorista, o boia-fria, sem reposio das energias fsicas, potssio, calorias, consumido durante o processo produtivo (poda da cana) como carvo, simples matria-prima. Segundo o estudo (Centro de Referncia de Sade do trabalhador Universidade Metodista de Piracicaba), em dez minutos, o boia-fria derruba 400 kg de cana, desfere 131 golpes de podo e faz 138 flexes de coluna no dia, ele desfere 3.792 golpes e faz 3.994 flexes. comum ter picos de 200 batimentos por minuto em repouso uma pessoa tem 50 a 60 (Coissi, Folha de S. Paulo, 2008, C1). De acordo com notcias recentes publicadas nos jornais, no perodo de um ano faleceram 10 trabalhadores por exausto, o karoshi do canavial, de 2004 a 2008 foram 20 mortos.2 Para a sociloga Maria Aparecida de Moraes e Silva, os tra