LIVRO - JOÃO CARLOS CORREIA - O ADMIRÁVEL MUNDO DAS NOTICIAS

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Joo Carlos Correia

O admirvel Mundo das NotciasTeorias e Mtodos

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Livros LabCom www.livroslabcom.ubi.pt Srie: Estudos em Comunicao Direco: Antnio Fidalgo Design da Capa: Madalena Sena Paginao: Filomena Matos Covilh, UBI, LabCom, Livros LabCom 2011 ISBN: 978-989-654-068-5 Ttulo: O admirvel Mundo das Notcias: Teorias e Mtodos Autor: Joo Carlos Correia Ano: 2011

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ndiceIntroduo 1 Conceitos fundamentais 1.1 As funes do jornalismo nas sociedades contemporneas . . . 1.2 A importncia dos estudos jornalsticos . . . . . . . . . . . . 1.2.1 Algumas etapas dos estudos jornalsticos . . . . . . . 1.2.2 Tendncias dos estudos jornalsticos . . . . . . . . . . 1.3 Delimitao do objecto da disciplina: a notcia em sentido amplo 1.4 Caractersticas do enunciado jornalstico . . . . . . . . . . . . 1.5 Objectivos da Teoria da Notcia . . . . . . . . . . . . . . . . . O discurso das notcias 2.1 Linguagem e jornalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2.2 A notcia como discurso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2.3 Os estudos de enquadramento . . . . . . . . . . . . . . . . 2.4 A funo mitolgica das notcias . . . . . . . . . . . . . . . 2.5 A notcia como narrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2.6 Jornalismo: entre saber cognitivo e saber narrativo . . . . . . 2.7 Anlise de contedo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2.8 As notcias: abordagem semiolgica. Do signo ao discurso . 2.9 As linguagens do Webjornalismo: um novo corpo de anlise com novos desaos tericos e metodolgicos . . . . . . . . 1 13 13 15 16 27 28 30 39 43 43 44 49 55 57 63 64 69

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A produo social das notcias 79 3.1 As variveis condicionantes da aco noticiosa . . . . . . . . 79

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3.5 3.6 3.7 3.8 3.9

Factores relacionados com a aco pessoal: do gatekeeper cognio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O factor organizacional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O newsmaking e as rotinas jornalsticas . . . . . . . . . . . 3.4.1 As tipicaes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.4.2 Riscos das rotinas e tipicaes . . . . . . . . . . . As relaes com as fontes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.5.1 Prossionalizao das fontes . . . . . . . . . . . . . Factores de natureza econmica . . . . . . . . . . . . . . . Factores polticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Factores de natureza cultural . . . . . . . . . . . . . . . . . As teorias das notcias: uma sntese . . . . . . . . . . . . . 3.9.1 A produo social de notcias online: notas para uma pesquisa futura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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O Prossionalismo Jornalstico 4.1 A problemtica do prossionalismo jornalstico . . . . . . 4.2 O estudo do jornalismo e a sociologia das prosses . . . . 4.3 O jornalismo como comunidade interpretativa, campo ou sistema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4.4 Os valores jornalsticos e a norma da objectividade . . . . 4.4.1 A Controvrsia da objectividade . . . . . . . . . . 4.5 Os saberes comuns . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4.6 Os critrios de noticiabilidade . . . . . . . . . . . . . . . 4.6.1 Valores-notcia (2): tipologia de Ericson, Baranek, Chan, Mauro Wolf e Nelson Traquina . . . . . . . 4.7 Novos problemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Os Efeitos das notcias 5.1 A importncia da Teoria dos Efeitos . . . . . . . . . . . . . 5.2 Abordagens clssicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.2.1 Teoria Crtica e cultura de massa . . . . . . . . . . . 5.2.2 Os estudos culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.3 A presena das teorias funcionalistas na mass communication research . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.3.1 O Funcionalismo e os media . . . . . . . . . . . . . ii

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A eccia dos efeitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.4.1 Os efeitos totais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.4.2 Os efeitos limitados: Lazarsfeld e a emergncia do paradigma dominante . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.4.3 Os efeitos vericados: activao, reforo e converso 5.4.4 Os usos e graticaes . . . . . . . . . . . . . . . . 5.4.5 Crtica do paradigma dominante e emergncia de novas tendncias da pesquisa . . . . . . . . . . . . . . 5.4.6 A evoluo da Pesquisa . . . . . . . . . . . . . . . .

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Bibliograa

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IntroduoA disciplina de Teoria da Notcia no contexto dos cursos de Cincias da ComunicaoHoje, o jornalismo encontra-se em crise no sentido abrangente do termo: a crise pode ser entendida como dce de legitimidade de um determinado campo de especializao, mas tambm pode ser olhada como tempo de mudana e de recongurao de muitos dos seus padres estilsticos, discursivos e organizacionais. Este Manual no pode ser imune a este contexto, at porque ele se torna um elemento que estrutura muita da reexo actualmente produzida. A Teoria da Notcia no pode alhear-se do ambiente em que os estudos sobre jornalismo evoluem tal a dimenso e natureza das interrogaes que se avolumam sua volta. A reexo sobre o jornalismo conheceu nos nais de anos 70 e nos princpios dos anos 80, em Portugal, um primeiro passo no sentido da sua expanso e desenvolvimento. Este resultou da especial ateno que nesse perodo foi conferida por parte das Universidades ao fenmeno da comunicao. Neste contexto, sob a natural inuncia de vrios contributos epistemolgicos, originou-se um laboratrio conceptual em que era ntida a necessidade de tactear percursos, processo este em que a democratizao do ensino superior, o apelo terico que o fenmeno comunicacional despertava e o aparecimento de novas universidades claramente facilitavam. Isto , as condies institucionais e cientcas convergiram no sentido da formao de um modelo novo, embora fortemente devedor de continentes epistemolgicos pr-existentes.

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Numa fase posterior, comeam a emergir hoje algumas tendncias que apontam para a estabilizao de objectos de pesquisa na qual conuem, sem rupturas dramticas, muitas das reexes tericas ensaiadas no perodo anterior. Este fenmeno de crescimento e implantao de estudos direccionados para o jornalismo fez-se sentir no aparecimento de imprensa universitria e especializada, na formao de grupos de trabalho nas sociedades cientcas nacionais e internacionais, na realizao de congressos e de reunies, no nmero de teses de Doutoramento e dissertaes de Mestrado, no aparecimento de projectos de investigao nesta rea e, nalmente, no aparecimento de Cursos de 2 Ciclo especicamente dirigidos para o jornalismo.Decorrem destes contributos um surto editorial e uma ambio de pesquisa bastante evidente ao nvel da produo cientca, em reas como a histria do jornalismo, a representao de identidades, o prossionalismo jornalstico, o jornalismo como discurso, o jornalismo online ou webjornalismo1 e a anlise das interfaces entre jornalismo e poltica (McNair, 2006). Mais recentemente, acompanhando um conjunto de alteraes no sistema comunicativo que adiante analisaremos, surgiram uma srie de novas reexes respeitantes justamente s mutaes conhecidas no campo jornalstico. Destacam-se aqui as reexes sobre o Jornalismo Cvico e sobre o chamado Jornalismo do Cidado, as quais, em vertentes dspares, se interrogaram sobre a funo e a misso dos jornalistas propondo mudanas substanciais em relao sua apreciao (Anderson, Dardenne e Killenberg, 1994; Charity, 1995; Rosen 1996; Black, 1997; Eksterowicz e Roberts, 2000; Friedland, 2003, Gillmor, 2004; Hass, 2007). A estes novos percursos de investigao somaram-se numerosas anlises sobre o impacto das tecnologias na produo noticiosa. Estas anlises debruam-se, por sua vez, sobre as alteraes textuais e discursivas, as mudanas organizacionais e a transformao das formas de relacionamento com as audincias ocorridas sob o impacto das novas tecnologias (Hall, 2000; Diz Noci, 2001; Ward, 2002; Bruns, 2003; Diz Noci e Salaverria, 2003; Boczkowski, 2005; Filak e Quinn, 2005; McAdams, 2005; Salaverria, 2005; Allan, 2006; Kolodzy, 2006; Friend e Singer, 2007; Canavilhas, 2008; Briggs, 2009). Decorreram daqui um conjunto de pesquisas que se repercutem no estudo do1 Ambos os termos parecem ter aceitao na literatura, embora parea que o termo webjornalismo deva ser usado preferencialmente para um jornalismo que adoptou um discurso especco para a sua adaptao e integrao no universo digital, no se limitando transposio e colocao de material pr-existente.

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jornalismo. Tratam-se de alteraes de natureza cientca e acadmica que marcam os estudos jornalsticos. A estas alteraes tericas h a adicionar alteraes sociais, alteraes no sistema poltico e alteraes de diversa ordem no sistema comunicativo. Ao lado das alteraes vericadas na reexo desenvolvida no campo acadmico, h, com efeito, que recensear, ainda, um conjunto de alteraes sociais que, directa ou indirectamente, se repercutem nas condies de funcionamento do campo jornalstico. Veja-se, a propsito, a mudana das fronteiras tradicionais que delimitam o pblico do privado (com consequncias decisivas para a apario de novos critrios de noticiabilidade ou valores-notcia) e o aumento do pluralismo e da fragmentao que se continua a vericar e at a aprofundar nas sociedades complexas as quais confrontam o jornalismo com a diversicao dos seus pblicos e audincias. Simultaneamente, tambm as interfaces entre a vida cvica e o campo jornalstico nunca conheceram um escrutnio to intenso. Hoje, constantemente se invoca a legitimidade de decises em nome do apoio da opinio pblica e do consentimento dos governados. Essa legitimidade passa pelo desempenho de um conjunto de funes atribudas imprensa constantemente citadas, nomeadamente o controlo e a vigia sobre o ambiente sociopoltico, de modo a divulgar desenvolvimentos que se repercutam, positiva ou negativamente, sobre o bem-estar dos cidados (Blumer e Gurevitch, 1995, pp. 97-98). O papel de watchdog baseado num ponto de vista que funda a relao entre polticos e jornalistas num conito de interesses e de legitimidades constantemente realado (Blumer e Gurevith, 1995, p. 27). Ao mesmo tempo, verica-se uma cultura envolvente em que o incumprimento desse papel de vigilncia por parte da imprensa denunciado. Simultaneamente, os discursos polticos necessitam de serem reproduzidos pelos media para obterem visibilidade, o que conduz a uma adequao crescente s necessidades organizacionais s estratgias discursivas e narrativas dos mass media. Assim, a cientizao da poltica implica o recurso a toda uma srie de agentes de comunicao com um especial conhecimento das lgicas do campo jornalstico que insistentemente procuram utilizar em seu favor: o caso dos spin-doctors (Serrano, 2010, pp. 92-93). Este fenmeno insere-se num movimento mais geral de prossionalizao das fontes, que veio tornar mais complexos os processos sociais de recolha e seleco

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(newsgathering e gakeeping) das notcias e, por conseguinte, os processos de construo da prpria realidade social (Pinto, 2000, p. 282). Neste ambiente de mutaes aceleradas, uma palavra deve ser dada s profundas modicaes que se do no sistema comunicativo como um todo, as quais produzem inevitveis repercusses no jornalismo: A) Constata-se uma mutao acelerada e de contornos difceis de prever das condies empresariais em que se desenvolve o mercado dos mass media. Nos nossos dias, esta tendncia inclui globalmente a constituio de grupos multimdia, nos quais as empresas procedem a investimentos simultneos na televiso, rdio, imprensa, internet, telemveis e meios digitais em geral. A concentrao da propriedade dos media pode induzir ameaas signicativas ao pluralismo jornalstico e impor-se como um constrangimento diversidade e como uma compulso para a uniformizao e reduo de contedos, alm de gerar fenmenos de auto-censura que produzem uma maior sujeio s directrizes exclusivamente empresariais em detrimento de opes editoriais (Sousa, 2004, p. 2). As novas alteraes estruturais da indstria meditica conduziram ao aumento do custo de produo, devido necessidade de reconverso tecnolgica, de grandes investimentos na rea do marketing, promoo e publicidade, da segmentao da oferta e da instaurao de uma concorrncia feroz (Correia, 1997, p. 70). Vericam-se, na rea da informao, necessidades crescentes de integrao multimdia em outros sectores das indstrias culturais para potenciar as possibilidades de promoo recproca e induzir retornos rpidos do investimento. Estas alteraes traduziram-se numa orientao dirigida para a luta pelas audincias com o aumento das soft news, na reduo signicativa de custos e na concentrao de um nmero maior de tarefas num nmero menor de trabalhadores. A questo que se levanta na integrao em grandes cadeias e conglomerados tem a ver com o efeito que a necessidade de retorno de investimento tem sobre o jornalismo praticado. B) Adicionalmente, observa-se a migrao de uma parte signicativa de diversas formas de comunicao pblica para os novos meios digitais, ao mesmo tempo que se concretiza o aparecimento, algumas vezes expewww.livroslabcom.ubi.pt

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rimental, outras vezes j consolidado, de novas formas de jornalismo. Assiste-se, assim, consolidao do webjornalismo e apario, por inuncia das novas tecnologias, de actividades designadas por parajornalsticas de que so exemplos os blogues, o jornalismo hiperlocal ou o jornalismo do cidado ou participativo (Schudson, 2003). O recente protagonismo do site da organizao Wikileaks (http:// wikileaks.org/) mostra como os media tradicionais no tm, de modo algum, o monoplio da circulao da informao no espao pblico. Tambm a adeso de meios clssicos ao jornalismo hiper-local est-se transformar numa interpelante forma de reectir sobre a natureza e evoluo do jornalismo, no que respeita a questes to importantes como a misso, funes, estatuto dos prossionais e formato e distribuio dos enunciados. Consolida-se a segmentao de alguns media clssicos com a democratizao do cabo e do satlite, a fragmentao do mercado com o pay per view television e a alterao radical que se adivinha das plataformas tradicionais de distribuio dos contedos. Simultaneamente, assiste-se previsvel modicao ou transformao de alguns formatos estabelecidos. Neste momento, fala-se bastante de convergncia e aprofundam-se as possibilidades de as narrativas jornalsticas atravessarem cada vez mais um conjunto de media diversicados com a televiso, a imprensa, a rdio, a internet e os telemveis a interagirem entre si. Consequentemente, assiste-se multiplicao de novas plataformas e de formatos que inuem decisivamente nas condies de exerccio da prosso jornalstica, tocando, inclusive, elementos tidos por adquiridos da sua identidade prossional, ideolgica e discursiva. Para os prximos anos, h a previso de uma convergncia cada vez maior dos servios de media e telecomunicaes e essas mudanas, alm de permitirem novas formas de participao cvica e democrtica, tambm acarretam desaos de regulao como sejam os que resultam da difuso de contedos nocivos e ilegais ou do acentuar da desigualdade no acesso informao. C) Quando se fala de uma crise de legitimidade do jornalista tradicionalLivros LabCom

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h a assinalar, tambm, a multiplicao mecanismos de interveno que pugnam pelo cumprimento dessas funes: observatrios, onbudsman e outras organizaes de vocao cvica. A acountabillity e a responsabilidade social dos media so conceitos que impulsionam um movimento de criticismo meditico (media criticism) e a multiplicao de experincias de media watching que dinamizam em simultneo funes de alfabetizao meditica e de aperfeioamento da actividade jornalstica. H vrios sistemas que contribuem para concretizao desses objectivos: 1 Assim, podemos ter sistemas que partem de iniciativas internas s instituies de comunicao: conselhos de tica, conselhos de redaco, espaos destinados correco de erros e cdigos de tica entre outros. 2 Outras iniciativas partem de instituies externas s instituies de comunicao: a existncia de media alternativos, pesquisas de opinio, observatrios de imprensa e organizaes no governamentais direccionadas para a qualidade dos media, campanhas de literacia e alfabetizao meditica, websites de discusso dos media, movimentos de cidados e agncia de reguladoras independente. No caso portugus, a regulao assegurada, em larga medida pela Entidade Reguladora de Comunicao (ERC) que pretende assegurar nas instituies o respeito pelos direitos e deveres constitucionalmente consagrados como a liberdade de imprensa, o direito informao, a independncia face aos poderes poltico e econmico e o confronto das diversas correntes de opinio. 3 Verica-se, ainda, a existncia de formas cooperativas: carta ao editor, associaes de leitores e espectadores, espaos de opinio e comentrio online, provedor, consultas aos leitores, painis de utilizadores, projecto de pesquisa das universidades que envolvem jornalistas, leitores e acadmicos, entre outros2 . D) Ao mesmo tempo, dentro sistema comunicativo, sente-se o uir de mltiplas correntes que contribuem para um crescente dce de legitimidade do jornalismo clssico.2

cf. Paulino, 2007, 97

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Por um lado, essas correntes decorrem de uma relativizao do papel do jornalista face inuncia da tecnologia. A digitalizao do sector solicita aos estudiosos do jornalismo e aos jornalistas um especial cuidado: uma certa perspectiva tecnocntrica tem servido para justicar a subordinao da formao jornalstica s transformaes tecnolgicas. Esta perspectiva traduz-se num centramento cada vez mais insistente na aquisio de competncias performativas em detrimento de competncias reexivas. Esta nfase nas competncias performativas segue, muitas vezes, um percurso unilateral e redutor que, no caso do jornalismo, se pode reectir num conceito de formao que se reduz aprendizagem do uso de ferramentas para produzir contedos. Este fenmeno de crise de legitimidade dos jornalistas est patente nas propostas que procuram atribuir produo noticiosa o carcter de um direito generalizvel a toda a cidadania. Um dos problemas que urge ter em conta a possibilidade de estas transformaes gerarem movimentos de desprossionalizao do exerccio do jornalismo. O conceito de desprossionalizao inclui um conjunto de factores: a evoluo tecnolgica que torna mais acessvel e difundido o exerccio das competncias prossionais j no apenas aos iniciados mas tambm aos leigos; a revalorizao progressiva dos saberes empricos, susceptveis de serem aprendidos por pessoas sem formao acadmica; a crtica crescente, por parte dos consumidores ao elitismo e impunidade de muitos prossionais e as reivindicaes progressivas dos pblicos no sentido de uma maior participao nas decises dos prprios prossionais (Fidalgo, 2008, p. 53). Neste sentido, uma das propostas de reforma do jornalismo que recentemente tem adquirido adeptos o Jornalismo do Cidado, por exemplo ou, de uma forma geral, os movimentos de jornalismo colaborativo que apreendem o esprito wiky pode ser a expresso prtica e intelectual de tendncias que reforam esta desprossionalizao ao insistir numa espcie de dicotomia entre os jornalistas e o publico como se esta fosse um confronto entre os cidados sensibilizados para a comunicao livre e sem restries e os jornalistas enquanto adversrios ou obstculos a essa liberdade (Moretzsohn, 2007, p. 264). Sem dvida que o Jornalismo do Cidado ou participativo pode suscitar muitas dvidas legtimas no que respeita s suas motivaes e qualidade, vericabilidade e abilidade do seu produto, mas um interpelante poderoso sobre o futuro do jornalismo e dos jornalistas. Em concluso, a disciplina de Teoria da Notcia deve tornar-se, tambmLivros LabCom

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ela, um diagnstico dos processos de mudana. Sem esquecer os conceitos bsicos, ela deve contribuir para uma pesquisa de nvel cientco sobre as transformaes referidas. Neste sentido, pugna-se pela conciliao entre a transmisso dos saberes estabelecidos e a abertura aos problemas novos.

O percurso de investigao pessoalEsta pesquisa insere-se num conjunto mais vasto de preocupaes do autor. No Mestrado, realizado em 1997 e publicado em livro com o ttulo Jornalismo e Espao Pblico, a reexo ento produzida passou pela descrio do modo como a imprensa opinativa presente no espao pblico burgus deu lugar ao jornalismo industrial da sociedade de massa, com o consequente aparecimento de caractersticas radicalmente diferentes: gneros jornalsticos novos (nomeadamente, a notcia em sentido cannico), direccionamento destes gneros para novos pblicos (os pblicos menos letrados das grandes cidades no lugar das elites iluminadas constitudas pelos publicistas e seus partidrios), aparecimento de novas tcnicas de redaco (nomeadamente, a emergncia da pirmide invertida e de uma forma particular de escrita conhecida pelo estilo jornalstico), a comercializao das mensagens como mercadorias, a introduo de novos temas em que a doutrinao poltico-partidria deu lugar despolitizao dos contedo e ao aparecimento das notcias de rosto humano centradas no crime, na vida social, nas actividades ldicas e de lazer e, nalmente, a introduo de novos conceitos estruturantes de uma cultura prossional emergente como seja o conceito central de objectividade jornalstica. Foi observada a importncia da imprensa regional e a possibilidade de esta contribuir para uma discusso colectiva dos assuntos pblicos que contribusse para a eventual estruturao do espao pblico regional. Na tese de Doutoramento apresentada em 2001 na Universidade da Beira Interior, intitulada Comunicao e Cidadania referiu-se ento: no interior do prprio processo de produo noticiosa, incluindo as respectivas rotinas, normas orientadoras e prticas discursivas que advm uma certa forma de abordar a realidade social. O jornalismo, desta forma, ao pretender dizer como o mundo , contribui para conformar o mundo social que diz limitar-se a relatar.

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[O discurso jornalstico] surge-nos como uma prtica institucional relacionada com uma certa congurao de sentido, pelo que constitui atitude ingnua analisar as notcias como espelho da realidade e no enquanto conguraes narrativas, dotadas de uma intriga que confere inteligibilidade e unidade a acontecimentos desligados entre si de acordo com a viso que prevalece na narrao do quotidiano. (Correia, 2004-b, p. 35) Ao longo deste trabalho, xaram-se algumas das preocupaes que viriam a ser desenvolvidas em trabalhos posteriores. Referimo-nos, nomeadamente, ao papel do jornalismo na construo social da realidade, a capacidade de agendamento dos meios jornalsticos e o conceito de relevncia, a especicidade do discurso jornalstico e a sua relao com as formas de conhecimento prprias do senso comum e da atitude natural, a dimenso narrativa do jornalismo, a anlise crtica do conceito de objectividade jornalstica, a orientao do discurso para acontecimentos facilmente personalizveis, a problemtica dos efeitos e da recepo das mensagens jornalsticas (Correia, 2004-b, pp. 184 189; 193-195; 206-207; 207-218). Quer o Mestrado e o Doutoramento quer os livros que deles decorreram eram testemunhos de duas preocupaes que se acentuaram: a) a natureza das transformaes efectuadas no discurso jornalstico, nomeadamente a importncia conferida s tipicaes e da importncia que as mesmas tinham para a noo de enquadramento (frame); b) as suas consequncias na representao dos fenmenos polticos e o consequente impacto deste discurso na vida cvica. Aps a realizao do Doutoramento, iniciou-se um percurso que passou pelo aprofundamento das questes associadas ao discurso jornalstico. A primeira fase passou por uma longa investigao em torno da Fenomenologia da Sociedade em que se procurou aprofundar a inuncia que essa teoria tinha na reexo sobre a notcia: essa inuncia comeava nos trabalhos de Alfred Schutz (1967, 1975, 1976 1975-b, 1995), tinha conquistado uma visibilidade notvel nas Cincias Sociais e Humanas com Peter Berger e Thomas Luckmann (1973), conhecera um signicativo impacto na Sociologia da Comunicao com Erving Goffman (1986) e, nalmente, produzira o seu impacto mais relevante na Teoria da Notcia atravs de David Atheyde (1976, 1985), de Gaye Tuchman (1978) e de Eric Saperas (1993), mantendo uma inuncia indirecta nos trabalhos de Jane Singer (2001, 1998) e de David DoLivros LabCom

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mingo (2006). Este percurso passou pela publicao em 2000 de um texto na Revista Comunicao e Linguagens intitulado O Poder do Jornalismo e a mediatizao do espao pblico. O texto abordava nomeadamente, o papel desempenhado pelas construes pr-tericas do senso comum e pelas tipicaes, termos cunhados pelo fenomenlogo Alfred Schutz, na construo social da realidade pelos jornalistas. No ano de 2002, num texto publicado na obra Comunicao e Poder, editada pela UBI nesse ano, analisou-se a importncia dos conceitos de relevncia e tipicao ao nvel da anlise dos efeitos dos media. Em Para uma teoria da comunicao: Schutz, Luhmann e a construo social da realidade (2004, p. 30), publicado na obra colectiva Teorias da Comunicao, a tentativa de aplicar a Fenomenologia da Sociedade ao campo da Teoria da Notcia foi objecto de um tratamento mais explcito: Um dos registos em que possvel descrever as relaes entre o saber e o poder (. . . ) aquele que enfatiza o jornalismo como construo social da realidade. Descortina-se na linguagem jornalstica a conformidade com o senso comum, com o saber partilhado por todos, tido por adquirido e socialmente aceite, fazendose um paralelo entre as atitudes imanentes discursividade praticada pela prosso jornalstica e a atitude natural. Em 2005 e 2006, os desenvolvimentos efectuados neste campo de investigao deram origem a vrios textos apresentados no Brasil, atravs de um trabalho aplicado ao Jornalismo Televisivo levado a efeito no mbito do Grupo de Trabalho de Telejornalismo em conjunto com Professores da Universidade Federal de Pernambuco, posteriormente publicados em livro (Correia, 2006; Correia e Vizeu, 2008). Neste sentido, a convergncia do jornalismo com o senso comum e a importncia conferida ao conceito de tipicao originou alguns estudos de caso em torno de representaes telejornalsticas de identidades. Em 2007-2008, sentiu-se a necessidade de procurar um estudo mais sistemtico do discurso jornalstico. Este estudo teve lugar no decurso da investigao levada a efeito nos Departamentos de Periodismo y de Comunicacin Audiovisual e de Traduccin y Filologa da Universidade Pompeu Fabra, procurando-se explorar alguns contributos da Anlise do Discurso ao campowww.livroslabcom.ubi.pt

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da notcia. Da resultou o livro Teoria e Crtica do Discurso Jornalstico: sobre Jornalismo e Representao Social, que foi publicado em 2008. Este texto aplica a anlise crtica do discurso ao discurso jornalstico, seguindo o modelo de estudos apresentado por Teun Van Dijk. Neste trabalho procura-se desenvolver uma articulao com os estudos de frame, neste caso aplicados tambm ao discurso jornalstico, seguindo as intuies da autora americana Gaye Tuchman, mais uma vez com inspirao sociofenomenolgica. Alis, este percurso esteve, nalmente, na origem da lio de Agregao na Universidade da Beira Interior a qual incidiu precisamente sobre o tema O Jornalismo e a Construo do Real: elementos para uma abordagem sciofenomengica da Teoria da Notcia. Nessa lio (2009- b), a preocupao fundamental apresentada foi a seguinte: Tendo em conta que o jornalismo lida com o imprevisto como critrio de noticiabilidade (newsworthiness) pelo que o acontecimento , por denio, tanto mais digno de relato quanto mais elevada a sua imprevisibilidade, como que os jornalistas instauram ordem e signicado num universo em constante mudana, em que a circunstncia da emergncia do que novo, contingente e aleatrio, uma possibilidade omnipresente? A pergunta remete, em ltima instncia, para um problema determinante da Teoria da Notcia: como que o jornalismo constri a realidade social? A resposta pergunta procurava, em larga medida, ser dada, mais uma vez, atravs do aprofundamento do conceito de enquadramento e de tipicao. Presentemente, as preocupaes que se desenvolvem dizem respeito articulao entre as questes da representao jornalstica e a chamada deliberao pblica. Ser que o modo de dizer e de proceder prprio do jornalismo compatvel com o aprofundamento dos processos de deliberao democrtica e com a representao da diversidade de vozes existentes? Esta questo serve de linha orientadora algumas investigaes recentes sobre o jornalismo, efectuadas, nomeadamente, no mbito da coordenao de projectos de Investigao.

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Captulo 1

Conceitos fundamentais1.1 As funes do jornalismo nas sociedades contemporneas

Qual o papel do jornalismo na sociedade contempornea? Na anlise da modernidade, atribui-se uma importncia crescente ao desenvolvimento dos media, designadamente quanto sua funo noticiosa ou informativa. De um modo relativamente genrico podemos dizer que o jornalismo desempenha uma tarefa fundamental no estabelecimento da agenda, formando a opinio pblica, impulsionando a formao de conhecimentos, reduzindo a complexidade social atravs da criao de temas comuns de conversao (Fontecuberta, 1993, pp. 35-36). Todavia, a misso do jornalismo varia em funo de diferentes teorias. Podemos aplicar ao jornalismo uma tipologia semelhante desenvolvida por Denis McQuail (2003, pp. 7-9) quanto s teorias da Comunicao de Massa. Segundo este autor podemos considerar a existncia de quatro tipos de teoria: 1. Teorias cientco-sociais Estas seriam uma armao geral sobre a natureza, trabalhos e efeitos do jornalismo, baseadas nas observaes sistemticas e objectivas dos jornais e de outros factores relevantes. O exemplo acima referido da caracterizao da funo do jornalismo empreendida por Fontecuberta corresponde a este tipo de teoria. Todavia, a 13

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diversidade das teorias cientcas sociais autoriza a dizer que encontraramos uma pluralidade de funes atribudas ao jornalismo em funo das vrias teorias disponveis. Por exemplo, na perspectiva do marxismo clssico, os jornais so propriedade da classe burguesa, agem no interesse desta classe, promovem uma falsa conscincia da classe trabalhadora e dicultam a produo de informao alternativa aquela que fornecida pelos grupo sociais (classes) dominantes. J numa perspectiva funcionalista, que d nfase ao equilbrio e coeso sociais, as funes dos jornais esto relacionadas com a) a busca da integrao e cooperao; b) a manuteno da ordem, controlo e estabilidade; c) adaptao mudana; d) mobilizao em torno de objectivos sociais comuns; e) gesto da tenso e f) continuidade da cultura e valores (McQuail, 2003, p. 81; p. 83) 2. Teorias normativas Este segundo tipo de teoria preocupar-se-ia em determinar ou prescrever como que os jornais devem actuar para que certos valores sociais sejam respeitados ou atingidos (McQuail, 2003, p. 8). Um exemplo tpico de teoria normativa consiste naquela que formulado por alguns estudiosos e seguidores do jornalismo pblico segundo a qual a primeira tarefa do jornalismo estimular o dilogo colectivo sobre assuntos que sejam objecto de uma preocupao comum no que diz respeito a um pblico democrtico (Pauly, 1994, p. xx). 3. Um terceiro tipo de conhecimento diria respeito s teorias operacionais que refere sobretudo s ideias prticas reunidas e aplicadas pelos prossionais no desempenho do seu trabalho. Tais ideias ajudam a seleccionar notcias, a relacionar-se com as fontes e a agradar s audincias. McQuail considera que este conhecimento merece o nome de teoria, porque padronizado e inuente no que respeita ao comportamento. 4. Por m, admite-se a existncia de uma teoria do senso comum, baseada na experincia quotidiana com o jornalismo. Permite-nos compreender como que, por exemplo, um meio interage com o nosso dia-a-dia. No se pretende discutir o conceito de teoria aqui reproduzido, nem discutir as diculdades que esta tipologia apresenta. Para uma teoria social crtica, a diferena entre a teoria cientca e a teoria normativa no evidente,www.livroslabcom.ubi.pt

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j que uma teoria cientca social de natureza crtica pode incluir elementos normativos. Todavia, considerando-se estar a trabalhar com uma espcie de tipologia ideal, dir-se- que o que se encontra mais frequentemente na Teoria da Notcia sero os dois primeiros tipos de teoria apresentados por McQuail: teoria cientca social e teoria normativa. Em volta de numerosos temas, vericaremos que a funo ou funes do jornalismo variam consoante as teorias apresentadas.

1.2

A importncia dos estudos jornalsticos

O estudo do jornalismo tornou-se uma empresa comum a acadmicos de todo o mundo, graas percepo de que as notcias (no sentido lato de enunciados jornalsticos) ajudam a congurar o modo como nos vemos a ns prprios, aos outros e ao mundo: A histria da pesquisa em comunicao to antiga quanto a curiosidade humana sobre as relaes sociais e a compreenso de que a linguagem e a comunidade so denidas pela linguagem. possvel identicar os interesses ocidentais na comunicao e na mdia, em especial, com a propagao da imprensa, com a instituio do jornal e com a ascenso do nacionalismo. Desse modo, o pensamento europeu sobre a comunicao social e a imprensa inicia-se j no sculo XVII, nos debates sobre a liberdade de expresso e a imprensa. (Hanno Ardt, 2006, p. 17)1 em larga medida graas ao trabalho noticioso que podemos falar em realidades partilhadas e na existncia de comunidades imaginrias, tornadas possveis atravs de signicados partilhados. Atravs da prtica diria e de consumo e discusso das prticas jornalsticas construmo-nos como sujeitos inseridos em contextos nacionais, locais e, cada vez mais, globais. No que respeita vida cvica, o jornalismo torna possvel a conversao entre os cidados e entre estes e os seus representantes, com vista realizao de alguns dos ideais democrticos modernos (Park, 2009; Anderson, 1983; Carey, 1989; Zelizer, 2004, p. 2; Wahl-Jorgensen e Hanitzsch 2009, p. 3).1

Foi mantido a distino entre a graa do portugus do Brasil e de Portugal.

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No contexto das actuais democracias, os jornalistas intervm decididamente na congurao do agir poltico, propondo e impondo uma agenda de questes, sobre as quais decorrem no poucos dos debates e das controvrsias politicamente relevantes. No possvel esquecer o papel dos media informativos na atraco da visibilidade sobre determinados temas, na denio e no fechamento da agenda de temas que polarizam a ateno dos receptores, no enquadramento dos temas de molde a connar os limites dentro dos quais se denem as controvrsias consideradas legtimas, na disseminao dos debates que permitem a natureza conversacional das sociedades democrticas.

1.2.1

Algumas etapas dos estudos jornalsticos

Wahl Jorgensen e Thomas Hanitzsch (2009, p. 5) consideram a existncia de quatro fases nos estudos jornalsticos. A primeira fase seria constituda por abordagens predominantemente normativas que tm entre os autores alemes alguns dos seus representantes mais signicativos. Existe hoje um relativo consenso de que a pr-histria dos estudos jornalsticos teve a sua origem na Alemanha do Sculo XIX. Esta ideia partilhada por autores como James Carey (2002), Hanno Hardt (2002; 2006) e Lffelholz (2008). Assim, pode-se identicar uma pr-histria dos estudos jornalsticos que pode ser encontrada nos tericos sociais alemes, nomeadamente no trabalho de Karl Marx, Albert Sche, Karl Knies, Karl Bucher, Ferdinand Tnnies e Max Weber (Hardt, 2002, p. 15). No que respeita aos estudos germnicos sobre jornalismo Hardt (2006, p. 19) enfatiza, em especial, o papel de Tnnies, Weber e Otto Groth como representantes do interesse das cincias sociais numa cincia da imprensa em ascenso constituda como rea de estudo independente (Zeitungwissnchaft). No que respeita a Max Weber, Murilo Kushik (2006, pp. 23-33) considera que, na sua ptica, o fenmeno da imprensa deve ser entendido no mbito da congurao da empresa capitalista, acompanhando o crescimento do jornalismo como uma actividade comercial regida pela aco racional com relao a ns. Simultaneamente, considera que os jornalistas escrevem ancorados por valores e ideologias polticas, pelo que no seriam imunes ao mbito da aco racional valorativa e ao questionamento tico-moral. O prprio Weber (2006,

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p. 38) no seu discurso efectuado no I Congresso da Sociedade Alem de Sociologia coloca algumas questes que considera fundamentais: O que signica o desenvolvimento capitalista no interior da prpria imprensa para a posio sociolgica da imprensa em geral, para o papel que desempenha na formao da opinio pblica? E mais adiante, Weber (2006, p. 43) questiona-se: O que a Imprensa traz para a conformao do homem moderno? (. . . ) Que inuncias exerce sobre os elementos culturais objectivos supraindividuais? Que deslocamentos se produzem com eles? O que destri e o que novamente criado no mbito da f e das esperanas colectivas, da sensao de viver (Lebensgefhl) como se diz hoje em dia , que possveis atitudes so destrudas para sempre, que novas atitudes so criadas? Esta segunda questo abrange uma srie de interpelaes de Weber sobre vrios temas entre os quais acerca da inuncia da imprensa sobre a leitura. Quanto a Tnnies, o seu trabalho mais citado para o mbito dos estudos jornalsticos Kritik der offentlichen Meinung (Crtica da Opinio Pblica). Segundo Tnnies, a constituio da opinio do pblico inuenciada pela cincia e pelas artes, elementos da vida mental que ele considera que passaram a ser mediados pela imprensa. Logo, a reforma e o futuro da opinio do pblico est associada reforma e ao futuro da imprensa o qual passa pelos seguintes elementos: a) fundao em todas as cidades de um jornal independente pelos homens mais escolarizados e educados; b) disponibilizao de um espao destinado aos partidos para publicitao dos seus eventos; c) independncia face aos anunciantes; d) publicao exclusiva de anncios de empresas dedignas; e) acesso das vozes do povo ao jornal; f) excluso do sensacionalismo g) imparcialidade dos artigos principais; f) manuteno de uma rede de correspondentes autnoma independente das agncias noticiosas consideradas dependentes de interesses capitalistas e nanceiros (Spichal, 2006, pp. 57-58- 61; pp. 76-81). Em vrios trechos do seu livro, Kritik der offentlichen Meinung (2006; 2006-b), Tnnies associa o aparecimento da escrita em geral e da imprensa em particular formao da sociedade por oposio comunidade (2006-b,Livros LabCom

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pp. 86-87), considera a Imprensa como o meio mais importante de fazer com que as pessoas sejam ouvidas, entendidas e respeitadas atravs da opinio pblica (2006-b, p. 100) e confere especial interesse ao papel da notcia na gerao das discusses pblicas (2006-b, p. 93). Simultaneamente, revela a sua preocupao com a independncia do jornalismo (2006 b, p. 122) e com a sua subordinao aos interesses comerciais dos anunciantes (2006-b, p. 131). Um terceiro autor estudado Otto Groth, autor de Die Zeitung (O jornal), publicado em quatro volumes e de Die Geschichte der deuteschen Zeitungwissenchaft (A Histria da Cincia Jornalstica Alemo), obra em sete volumes, dos quais o primeiro tinha o titulo de O Poder Cultural Impercebido2 . Na obra, Groth prope-se desenhar os princpios de uma cincia jornalstica, dos quais a psicologia social, a sociologia e a cincia literria seriam auxiliares (Marenkhe, 2006, pp. 156-157; p. 159). Groth (2006, p. 189) arma: Se quisermos uma cincia cultural prpria dos jornais e das revistas, precisamos perguntar primeiramente a partir da sua unidade interior e constatar os nossos problemas e conceitos de acordo com ela, mas no pesquisar, por exemplo, os contedos polticos ou histricos ou os produtos literrios dos jornais e das revistas. Esses objectos j so perseguidos pelas outras cincias ou poderiam e deveriam ser perseguidos por elas, e para a cincia jornalstica, os resultados a serem assim obtidos s entram em cogitao secundariamente; neste sentido aquelas cincias sero cincias auxiliares da cincia jornalstica autnoma e particular. A histria poltica constata os acontecimentos poltico-histricos acerca dos quais os jornais e as revistas tambm relatam e dos quais participam; a histria da literatura investiga, na perspectiva esttica que lhe prpria, os produtos literrios presentes nos jornais e nas revistas; a administrao de empresas se ocupa das formas empresariais gerais das quais tambm as editoras de jornais e de revistas tm de se servir; e a sociologia precisa de pesquisar os fenmenos sociais em cujo surgimento e realizao tambm tem uma participao recproca, muitas vezes decisiva.2

Ttulo da traduo brasileira.

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Os resultados dessas cincias so, ento, avaliados para a cincia jornalstica (assim como esta tambm coloca seus resultados disposio de outras cincias, tornando-se sua indispensvel cincia auxiliar). Mas, exclusivamente, a ideia, a essncia, a natureza da obra a igualdade de seu sentido, de seus lados percebidos como essenciais, de suas propriedades e caractersticas constantes e da estrutura dessas unidades e o que est associado a elas devem ser o essencial para a cincia jornalstica, isto , devem ser o elemento importante que a fundamenta, e nessas coisas ela tem seu prprio objecto, seu prprio mtodo, e nelas se funda seu sistema. A pesquisa delas constitui a cincia da cultura: cincia jornalstica.3 Nesta cincia, Groth desenha um verdadeiro programa de pesquisa: [a cincia jornalstica] no pergunta a respeito do contedo, do teor do jornal ou da revista, a respeito do aspecto qualitativo do contedo; no pergunta, principalmente, o que esse contedo concreto quer dizer, se ele est de acordo com o que aconteceu efectivamente, que efeito teve sobre o acontecimento e coisas semelhantes. No caso da matria de um jornal sobre o transcorrer de uma batalha, o pesquisador da cincia jornalstica no pergunta que valor tem essa matria para o conhecimento dos diferentes factos da batalha, se ela acrescenta fatos novos aos j conhecidos ou obriga a revis-los essas so perguntas da pesquisa histrica , mas ele quer saber como a matria chega ao jornal, que tipo de pessoas devem ter participado directamente e indirectamente da sua publicao, que caminho a matria percorreu at chegar redaco do jornal, quanto tempo levou (Groth citado por Marenkhe, 2006, p. 162).4 Para alm da reexo germnica sobre o jornalismo impossvel esquecer o contributo da reexo americana no perodo similar. Entre outros, pode referir-se quatro nomes essenciais: John Dewey, Walter Lippman, Robert Park3 4

Manteve-se a graa brasileira. Manteve-se a graa especca do portugus do Brasil.

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e Edward Ross. A obra de Robert Park inclui-se nos trabalhos da Escola de Chicago constituda por pesquisadores que, entre os anos de 1915 e 1940, se dedicaram uma investigao sociolgica sobre fenmenos caracteristicamente urbanos e sobre as relaes interculturais emergentes no mbito da cidade moderna, nomeadamente as que decorrem do impacto da imprensa. Robert Park fundamentou grande parte do seu estudo sobre jornalismo na anlise do tipo de conhecimento que lhe prprio, baseando-se, para tal, na distino j formulada por William James entre conhecimento de familiaridade e conhecimento sobre. O conhecimento de familiaridade advm do uso e do costume e no de uma investigao formal e sistemtica. Nestas circunstncias, conseguimos conhecer as coisas no apenas atravs dos sentidos, mas atravs da resposta do nosso organismo, como um todo. Conhecemos as coisas, neste caso, como coisas a que estamos habituados, num mundo ao qual estamos ajustados (Park, 2009, p. 38). Contrastando com este tipo de conhecimento, encontramos outro que James designa por conhecimento sobre. Este um conhecimento formal, racional e sistemtico. (Park, 2009: 39). Estas duas formas de conhecimento, aos olhos de Park, no so rigidamente estanques e apresentam-se num contnuo onde todos os tipos de conhecimento tm o seu lugar. Neste contnuo, as notcias tm o seu lugar prprio, afastando-se mais do conhecimento prprio das cincias fsicas e aproximando-se mais da histria, na medida em que lida com acontecimentos. Porm, distinguem-se tambm da histria porque lidam, em geral, com acontecimentos isolados, no procurando estabelecer relaes causais entre eles, apresentando-os sob a forma de incidentes independentes e no sob a forma de uma histria contnua (Park, 2009, pp. 41-42). Park estabelece uma relao entre a natureza do conhecimento jornalstico e a formao da opinio pblica levantando uma hiptese que se contrape s concepes dos media como instrumento de manipulao do pblico. A notcia s existe se atingir o interesse do pblico, relativizando o poder dos meios de comunicao como promotores exclusivos da importncia dada aos acontecimentos: "a notcia deixa de ser notcia logo que a tenso suscitada desaparece e assim que a ateno pblica tenha sido dirigida para outro aspectowww.livroslabcom.ubi.pt

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do meio, sucientemente novo ou excitante, capaz de captar a sua ateno (Park, 2009, p. 42). Esse interesse denominado por Park como uma espcie de "tenso"que garante a permanncia ou no da notcia. Porm, esta relativizao do poder manipulativo dos media no minimiza a sua capacidade de agendar os temas de controvrsia pblica: na base da interpretao de acontecimentos presentes, isto de notcias, que a opinio pblica se constitui (Park, 2009, p. 43). A notcia, como props Robert Park, tem para aquele que a recebe um carcter eminentemente pragmtico. A notcia o material que torna possvel a aco poltica, alm de desempenhar um papel muito importante na economia. As notcias aparecem sob a forma de pequenas comunicaes, independentes entre si, que podem ser fcil e rapidamente compreendidas. De facto, as notcias desempenham as mesmas funes para o pblico do que a percepo para o indivduo: o que quer dizer que mais do que informar, orientam pblico, transmitindo em cada notcia e no conjunto das notcias o que se passa. Isto acontece sem qualquer esforo por parte dos jornalistas em interpretar os acontecimentos que relata, a no ser na medida em que os torna mais compreensveis e interessantes. (Park, 2009: 43) A funo das notcias orientar o mundo e o homem na sociedade actual. Se esta funo for cumprida, a sanidade dos indivduos e a permanncia das sociedades tende a ser preservada (Park, 2009: 49). Walter Lippmann foi um dos mais inuentes intelectuais americanos do sculo XX, destacando-se como jornalista poltico, comentador inuente e consultor de vrias administraes e tambm como um proeminente terico. Em Public Opinion (2004) Lippmann demonstra como as pessoas usam esquemas cognitivos designados por esteretipos para formar as suas opinies: o mundo demasiado complexo e necessrio conhecer mais pessoas mais aces, instituies e acontecimentos do que seria possvel abarcar com a nossa prpria experincia vivida Logo temos que recorrer a amostras e trat-las como tpicas (2004). A obra analisa como as pessoas constroem as suas representaes da realidade social e de que forma essas representaes so afectadas tanto por factores internos como externos. Segundo Lippmann, tais representaes que ele classica como pictures inside the heads exercem uma funo de orientao, guiando o indivduo e ajudando-o a lidar comLivros LabCom

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a complexidade do ambiente externo. Simultaneamente, funcionam como barreiras ou defesas que ajudam o indivduo e o grupo a proteger os seus valores, os seus interesses, as suas ideologias, em suma, a sua posio numa rede de relaes sociais. Trata-se de uma reexo sobre os limites humanos no reconhecimento do ambiente exterior e no subsequente processamento de informao. Nesse sentido, os esteretipos responderiam a uma economia de esforo na compreenso do ambiente, apesar de o autor reconhecer a natureza rgida, generalizadora e exagerada destes esquemas cognitivos. complexidade crescente do mundo moderno soma-se a apatia das massas no dotadas das competncias necessrias para participar directamente das questes do Estado e da formao do governo. A verdade acerca dos assuntos distantes complexos no evidente em si prpria e as exigncias necessrias reunio e tratamento de informao so complexas e dispendiosas. Para se obviar a esta situao, apresenta-se um modelo realista democrtico baseado na representao poltica e na competncia tcnica das elites, reservandose Imprensa o papel de canal de comunicao entre as elites governantes e o pblico. Em Public Opinion, diagnostica-se a importncia fundamental desempenhada pela imprensa, embora numa perspectiva crtica. Ao longo do captulo IV, Lippman debrua-se sobre o tempo e ateno necessrios em cada dia para obterem a informao necessria sobre os assuntos pblicos. No captulo V analisam-se as limitaes da linguagem em geral e da linguagem jornalstica em particular para poder resumir, sumariar de uma forma adequada e correcta os assuntos do Estado. Na parte VII do livro intitulada The Newspapers, entre as limitaes da Imprensa refere-se a dependncia das audincias (ver em especial, todo o captulo XXI, The Buying People); a orientao das rotinas jornalsticas para ngulos das questes que despertem o interesse das mesmas audincias; a necessidade de espao e de tempo para um jornalista desenvolver um ponto de vista menos convencional; a dependncia de convenes e no de padres objectivos que orientam as escolhas do que ser impresso, aonde ser impresso, que espao e que nfase ser dada notcia. Deste diagnstico resulta a ideia segundo a qual as notcias no so a verdade e entre ambas tem que ser estabelecida uma distino clara (2004). Assim, enquanto a funo das notcias assinalar um acontecimento, a funo da verdade trazer luz os factos escondidos, relacion-los uns com os outros e construir uma imagem da realidade que permita ao homem agir (2004). A exactido das notcias depende da preciso com que um acontecimentowww.livroslabcom.ubi.pt

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possa ser registado. A no ser que o acontecimento seja de uma natureza que possam ser medido, especicado, nomeado, qualquer relato jornalstico est sujeito aos acasos e preconceitos da observao. Verica-se que apenas numa pequena parte de todo o campo do interesse humano, o corpo da verdade e das notcias coincide. H apenas uma pequena parte de conhecimento exacto que no requer competncias ou formao especial para lidar com ele. O resto ca discrio do jornalista. Logo, as notcias so encaradas como algo de demasiado frgil para suportar o nus de serem o rgo de uma democracia participada, uma tendncia que, aos seus olhos, era considerada impensvel. Nesse sentido, Lippmann propunha a formao de uma classe especializada que seria composta por especialistas e servidores pblicos a quem competiria iludir o principal problema da democracia, o ideal impossvel do "cidado omnicompetente": a co intolervel e inoperacional de que cada um de ns tem de adquirir uma opinio competente acerca de todos os assuntos pblicos (2004). John Dewey, outro importante pensador, respondeu a Lippmann com uma recenso crtica elogiosa onde considerava que o autor tocava nalguns dos problemas mais importantes da teoria democrtica. Em The Public and its Problems (1927/2004) reconhece as diculdades de participao das pessoas no processo democrtico: O tamanho, a heterogeneidade e a mobilidade das populaes urbanas, o imenso capital requerido e o carcter tcnico dos problemas de engenharia que se colocam esgotam rapidamente a direco do votante mdio (. . . ) A ramicao dos temas face ao pblico to intricada, as questes tcnicas implicadas so to especializadas, os detalhes so to numerosos e variveis que o pblico no se pode identicar nem manter como tal durante muito tempo. (Dewey, 2004, p. 131) Apesar deste diagnstico, Dewey considera que a democracia no deve ser connada ao esclarecimento de uma elite, e sublinha a importncia da deliberao no processo de deciso poltica. Embora no ponha em causa a pretenso de Lippman segundo a qual a pesquisa social e o planeamento de polticas possam ser levados a efeito por peritos, acrescenta que todos os factos relevantes dessa pesquisa e das polticas propostas deve continuar a serLivros LabCom

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um assunto pblico. No necessrio que a maioria tenha as competncias e o conhecimento para levar a efeito as investigaes no plano do social e do poltico; o que requerido que a maioria seja capaz de julgar a aplicao dos conhecimentos detidos por outros em assuntos de interesse colectivo. A sua concepo de publicidade (publicity) identica-se com um processo de persuaso, discusso, convico e intercmbio de ideias (Dewey, 2004, p. 30). A democracia funcionar, assim, apenas com base na revitalizao do esprito comunitrio e pblico, para a qual contribui de modo decisivo a existncia da comunicao, a qual se arma como ideia chave no no sentido unidireccional de transmisso, mas antes no sentido de compartilhar, de tomar parte, de participar num processo de intercmbio comum mtuo (Dewey, 2004, p. 15). John Dewey considera que os jornais ajudam a formar o pblico: ajudam as comunidades a debater, a moldar e a formar os seus valores e um horizonte de signicado em que os em que os actores cvicos tomam as suas decises. Assim, possvel um uso da Imprensa que ajude a produzir um autntico pblico organizado e articulado necessrio para a democracia, desde que o mesmo uso esteja altura da necessidade de revitalizar o dilogo, envolver-se na conversao e no debate (Dewey, 2004, p. 173). Finalmente, comungando uma srie de problemas j aqui apresentados, Edward Ross apresenta um diagnstico crtico do sensacionalismo protagonizado pela Yellow Press. Apesar de o jornalismo e a instituio jornalstica ganharem um papel cada vez mais relevante na vida publica, Ross considera que a imprensa passa a sujeitar-se cada vez mais s exigncias de grandes empresrios e polticos, tornando-se refm de um processo que se verica, por exemplo, na supresso de notcias importantes para o pblico e na publicao de outras cujo contedo estivesse voltado para interesses das empresas e homens de poder. Este processo directamente relacionado com um diagnstico da decadncia social analisada pelo autor (Wahl Jorgensen e Hanitzsch, 2009, p. 5). Uma segunda fase de estudos que Wahl Jorgensen e Thomas Hanitzsch (2009, p. 5) classicam de empirical turn virada emprica surge nos Estados Unidos centrada nas estruturas e processos da produo noticiosa e na anlise dos agentes envolvidos. Numa primeira fase, esta pesquisa teve um perl direccionado para uma orientao prossionalizante e concentrou-se m torno da fundao da revista cientca Journalism Quarterly em 1924. Uma das personalidades chave do perodo foi Willard Bleyer (Universidade de Wiswww.livroslabcom.ubi.pt

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consin) que, no primeiro nmero do jornal, esquematizou as directivas fundamentais da futura pesquisa jornalstica. Blayer ter desempenhado um papel decisivo iniciando uma era de pesquisas que encaravam o jornalismo como objecto de estudo acadmico e criando um minor doutoral em estudos jornalsticos em programas doutorais pr-existentes em cincia poltica e sociologia. Na Europa (em Portugal, na Dinamarca ou no Reino Unido), a educao jornalstica decorreu fora da academia, dentro de organizaes noticiosas em que os jornalistas eram treinados atravs de cursos de curta durao, com uma orientao predominantemente pragmtica e direccionada para a aquisio de competncias exclusivamente prossionais. A partir dos anos 50, o estudo emprico do jornalismo recebeu um mpeto renovado quando a pesquisa em Mass Communication oresce nos Estados Unidos. Este impulso proveio de disciplinas como a sociologia, a cincia poltica e a psicologia mas foi protagonizada por guras de grande estatura cientca como Paul Lazarsfeld, Carl Hovland, Eliuh Katz, Kurt Lewin e Harold Lasswell. Esta inuncia solidicou os elementos empricos desta forma de abordagem e pesquisa, baseandose em mtodos como sejam as sondagens destinadas a avaliar o impacto dos media. Este modelo de estudos dirigiu-se tambm para a anlise dos agentes e prticas jornalsticas e seus valores prossionais. Surgiu assim o modelo do gatekeeper (White, 1993), a teoria organizacional (Warren Breed, 1993), as teorias dos valores-notcia (Galtung e Ruge, 1993), a teoria do agendamento (McCombs e Shaw, 2000). Esta fase consagra alguns dos mais importantes clssicos dos estudos jornalsticos. Uma terceira fase apontada como sendo decisivamente inuenciada por diversos percursos das cincias sociais e humanas. A abordagem centra-se num compromisso com a anlise crtica das convenes e rotinas jornalsticas, as ideologias e culturais ocupacionais e prossionais e ainda pelo uso de conceitos direccionados para o estudo do texto, como sejam os conceitos de framing e de narrativa, ao qual se adiciona uma anlise de crescente importncia do elemento popular das notcias. Esta ateno crescente aos assuntos culturais surgiu lado a lado com a adaptao de metodologias qualitativas, com realce para pesquisas etnogrcas e de anlise do discurso. Entre alguns dos investigadores identicveis com esta abordagem contam-se Gaye Tuchman (1978), David Altheyde (1976, 1985), Herbert Gans (1979, 2003), Philip Schlesinger (1993), Peter Golding (1979), James Carey (1989), Stuart Hall (1977, 1993, 2002), John Hartley (1991), Barbie Zelizer (2003, 2004), ElizaLivros LabCom

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beth Bird e Robert Dardenne (1993), Michael Schudson (1978, 1988, 2003), entre outros. Uma quarta fase apontada como Global Comparative Turn, ou seja a emergncia de pesquisa internacional comparada motivada pelas mudanas polticas e pelas novas tecnologias da comunicao. Assim, a pesquisa jornalstica torna-se cada vez mais um empreendimento internacional resultante da colaborao entre vrios investigadores provenientes de vrias comunidades cientcas. Wahl Jorgensen e Hanitzsch (2009: 7) realam. a propsito, a importncia que os jornais de lngua inglesa, nomeadamente com um peso de acadmicos norte americanos (com destaque para o Journalism & Mas Communication Quartely) continuam a ter no campo dos estudos jornalsticos. Destacam a importncia de associaes internacionais como sejam a International Association for Media and Communication Research (IAMCR) e a International Communication Association (ICA) na internacionalizao e diversicao dos estudos e referem as revistas cientcas Journalism: Theory, Practice and Criticism, Journalism Studies e Journalism Practice como exemplo de uma tentativa de introduzir uma maior diversidade internacional nas Comisses Editoriais. s associaes citadas deve acrescentar-se a European Communication Research and Education Association (ECREA). Por outro lado, se esta fase dos estudos de facto caracterizada por uma maior internacionalizao, importa destacar esforos desenvolvidos no espao lusfono com a presena de acadmicos portugueses na Sociedade Brasileira de Pesquisadores de Jornalismo e a publicao de textos seus na revista Brazilian Journalism Research, bem como a presena brasileira nos Congressos da Sociedade Portuguesa de Comunicao e em muitos centros portugueses (Centro de Investigao Media e Jornalismo, Centro de Estudos em Comunicao e Sociedade, Laboratrio de Comunicao e Contedos Online) e nas respectivas revistas e coleces. Destaque-se ainda que a dcada de 50 j fora marcada por estudos sobre a circulao da informao ao nvel mundial (Fernsworth, 1954; Cutlip, 1954: McNelly, 1959), uma investigao comparativa dos jornais empreendida por Jacques Kayser, estudos comparativos dos jornais efectuados pela UNESCO que culminariam no anos 70 com o debate acerca da dependncia do Terceiro Mundo em relao ao uxo informativo do Primeiro Mundo (Traquina, 2000, p. 17).

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1.2.2

Tendncias dos estudos jornalsticos

Barbie Zelizer (2004), num estudo conhecido sobre as relaes entre os estudos jornalsticos e a academia, identicou cinco tipos de pesquisa acadmica que incidem sobre o jornalismo: sociologia, histria, estudos lingusticos, cincia poltica e anlise cultural. Quanto pesquisa sociolgica, destacou-se na existncia de importantes trabalhos etnogrcos sobre as salas de redaco (Tuchman, 1978; Gans, 1979; Fishman, 1980), enfatizando a importncia das rotinas e das tipicaes bem como as interaces entre os membros da comunidade jornalstica. Estes estudos descobriram a importncia de normas, prticas, rotinas e identicaram a existncia de padres institucionais e organizacionais de funcionamento (Epstein, 1973; Breed, 1993). Algumas destas normas so invocadas de uma forma similar a uma ideologia prossional (Tuchman, 1978; Gitlin, 1980; Glasgow Media Group, 1976, 1980). A pesquisa histrica divide-se em trabalhos de importncia diversa; memrias, biograas e histrias de organizaes noticiosas; a histria de determinados perodos da imprensa centrados, por exemplo, na imprensa romntica de opinio, na imprensa popular ou penny press (ex. Schudson, 1978) ou em estudos de grande flego que se debruam sobre a constituio de um Estado Nao ou o surgimento do jornalismo. A pesquisa inuenciada pelos estudos lingusticos deve uma considervel inuncia Anlise Crtica do Discurso, sendo de destacar trabalhos especialmente dirigidos imprensa como os de Allan Bell e Peter Garrett (Bell, 2001; Bell e Garrett, 2001) Van Dijk (1988, 1991, 1998, 2005) e Roger Fowler (2005). Destaque-se tambm o considervel esforo efectuado em torno dos estudos sobre enquadramento (veja-se a propsito, Reese, Gandy e Grant, 2001). A cincia poltica deteve-se largamente sobre as relaes entre os jornalistas e os seus pblicos e as questes associadas cidadania. Verica-se a existncia de trabalho sobre o papel dos media nos diferentes sistemas (Siebert, Peterson e Schramm, 1956), a anlise sistmica das relaes entre polticos e jornalistas (Blumer e Gurevitch, 1995), relaes entre fontes polticas e jornalistas (Sigal, 1973). Mais recentemente, h toda a vasta bibliograa sobre jornalismo pblico como sejam as que resultam dos trabalhos de Rosen (1996) e de Eksterowicz e Roberts (2000). Finalmente, a anlise cultural do jornalismo inuenciada pela correnteLivros LabCom

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dos Estudos Culturais britnicos e americanos, os primeiros interessados na interseco dos estudos jornalsticos com os fenmenos de poder e dominao social (Hall, 1992, 2002; Hartley: 1991; 1992) e os segundos identicados com os fenmenos do poder e da hegemonia mas tambm com os problemas de signicado, identidade de grupo e mudana social (Steiner, 1992; Kellner: 2001). Nesta rea destaca-se a primeira incurso signicativa dos estudos culturais no jornalismo online: Online News, de Stuart Allan (2006). A sistematizao efectuada por Barbie Zelizer identica algumas tendncias mas, apesar da sua utilidade na legitimao dos estudos jornalsticos como campo acadmico, tem sido criticada pelo facto de se centrar na pesquisa anglo-saxnica e pelo facto de olhar o jornalismo atravs de perspectivas tericas e metodolgicas exteriores ao campo jornalstico embora com contributos importantes para o mesmo. Designadamente, lhe imputada o desconhecimento de contributos provenientes de vrios pases que compreendem o jornalismo como disciplina, com objecto prprio, metodologias especcas e bibliograa especializada, como seja a linha inspiradora que orienta autores como Groth e Robert E. Park; a ausncia da reviso da literatura da quase totalidade dos autores de fora do mundo anglo-americano e, inclusive, de algumas obras de referncia de norte-americanos e ingleses; e, nalmente, a insistncia numa concepo de interdisciplinaridade que descura a possibilidade de o prprio estudo do jornalismo ser uma disciplina cientca (Machado, 2006). Trata-se de uma controvrsia que estrutura muita da discusso actual sobre estudos jornalsticos e originou alguma produo que visa justamente armar, consolidar e autonomizar o jornalismo como campo de estudos.

1.3

Delimitao do objecto da disciplina: a notcia em sentido amplo

Os estudos jornalsticos referem-se normalmente ao termo notcia em sentido amplo, isto tudo aquilo que um jornal publica. J a notcia em sentido estrito ou tcnico refere-se ao gnero cannico que designa um texto com as seguintes caractersticas: informativo e centrada nos factos; caracterizado pela existncia de um ttulo, de subttulos, de um pargrafo inicial chamado lead onde se procura responder a seis questes consideradas fundamentais (O qu? Quem? Quando? Onde? Como? Porqu?) das quais as duas ltimas podemwww.livroslabcom.ubi.pt

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ser respondida no pargrafo seguinte; estruturado por um mtodo chamado pirmide invertida que apresenta os factos por uma ordem decrescente de importncia e organizado em blocos, de tal modo que, idealmente, a subtraco de qualquer um destes a partir do m do texto no dever perturbar a leitura do que restar. O termo notcia , pois, no sentido lato, aplicvel s comunicaes apresentadas periodicamente sobre aquilo que possa ser novo, actual e interessante para a comunidade humana. A notcia, no seu estrito sentido, constitui um gnero especco de entre o conjunto dos vrios gneros jornalsticos. A forma cannica das notcias existe sobretudo nas agncias, nas chamadas notcias brevese o gnero que ganhar importncia nalgumas formas de jornalismo online, devido s necessidades impostas pela actualizao permanente das notcias, pela necessidade de captar ateno e de poupar tempo. Porm, apenas uma parte da produo informativa ou noticiosa, mesmo quando nos referimos aos tradicionais gneros jornalsticos. Fazendo um breve levantamento do conceito de notcia, d-se conta que o que prevalece na disciplina de Teoria da Notcia a sua denio em sentido amplo. Dovifat (1954, p. 51) dene notcia (1954: 51) como uma comunicao sobre factos novos que ocorrem na luta do homem e da sociedade pela existncia. Martnez de Sousa (1992, p. 325) refere-se a notcia como publicao e divulgao de um facto. Jos Ortega e Costales (1996, p. 48) considera que notcia todo o acontecimento actual, interessante e comunicvel. Jorge Pedro de Sousa (2000) arma que uma notcia um artefacto lingustico que representa determinados aspectos da realidade, resulta de um processo de construo onde interagem factores de natureza pessoal, social, ideolgica, histrica e do meio fsico e tecnolgico, difundida por meios jornalsticos e comporta informao com sentido compreensvel num determinado momento histrico e num determinado meio scio-cultural, embora a atribuio ltima de sentido dependa do consumidor da notcia. Martinez Albertos (1978) dene notcia como um facto, verdadeiro, indito ou actual de interesse geral que se comunica a um pblico que se pode considerar massivo, uma vez que foi recolhido, avaliado e interpretado pelos sujeitos promotores que controlam um meio utilizado para a sua denio. Rodrigo Alsina (1996, p. 195) dene notcia como uma representao

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social da realidade quotidiana produzida institucionalmente que se manifesta na construo de um mundo possvel. Urabayen (1993, p. 20) conclui que notcia todo o facto da actualidade susceptvel de interessar a um nmero amplo de pessoas e que chega ao pblico de uma maneira regular e peridica, por meio de palavras e de imagens, ou seja da imprensa escrita ou audiovisual. Segundo Michael Schudson (2003, p. 6), notcia o que publicamente notvel dentro de um enquadramento de natureza social e cultural que inclui uma certa compreenso, varivel de comunidade para comunidade, do que ser pblico e ser notrio. Ou seja, o produto da actividade jornalstica de tornar pblico (2003, p. 12). Da mesma forma, Molotch e Lester (1993), Schlesinger (1993), Tom Koch (1990) identicam notcias como o produto da actividade noticiosa dos media, com vista a fornecer informao aos interessados sobre factos inobservados. Concorda-se, pois, com Anabela Gradim (2000, p. 57) quando distingue entre notcia em sentido estrito e notcia em sentido amplo: Notcia , pois, em princpio, tudo aquilo que um jornal publica; mas, em sentido tcnico, enquanto gnero, a denio de notcia mais restritiva. Desde logo, a expresso Teoria da Notcia refere-se sobretudo a uma teoria do jornalismo. Quando falamos assim de notcia, englobamos diversos registos discursivos do jornalismo: notcia, reportagem, entrevista, artigo de opinio e editorial (Ponte, 2004). Da mesma maneira, a dimenso estratgica do conceito de notcia encara a notcia como todo o enunciado jornalstico. Esta opo aquela que interessa teoria do jornalismo enquanto teoria que procura explicar as formas e os contedos do produto jornalstico (Sousa, 2002). Em suma, a notcia enquanto gnero no sentido estritamente tcnico apenas uma das formas de relato jornalstico. Por isso, a Teoria da Notcia ganhou sobretudo o seu estatuto de disciplina autnoma como uma anlise da natureza, produo, recepo e efeitos dos enunciados jornalsticos em sentido lato e no no sentido estritamente tcnico de um gnero com as caractersticas atrs referidas.

1.4

Caractersticas do enunciado jornalstico

No sentido geral, a notcia sinnimo de enunciado jornalstico. De acordo com esta perspectiva, assinalamos certas componentes do jornalismo noticiwww.livroslabcom.ubi.pt

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oso que podem ser detectados como comuns aos enunciados que se reclamam como jornalismo: a) O enunciado jornalstico implica um compromisso com a busca rigorosa e sistemtica da verdade. O jornalismo um sistema que atua no ramo da verdade. Os seus produtos se oferecem como verdadeiros, tendo a sua verdade garantida por procedimentos bem codicados de veracidade e certicao. (Gomes, 2009, p. 12) Isto no signica que o acontecimento que deu origem notcia seja uma realidade objectiva. Marconi Oliveira da Silva diz a propsito: O relato jornalstico no um acto de descrever ou dizer de forma directa, determinada e precisa um facto emprico acontecido no mundo exterior, mas um acto de apresentao de uma realidade que se constitui inclusive com a participao activa do leitor (. . . ) isso no equivale a dizer a que imprensa mente, inventa ou diz inverdades. Signica apenas que os nossos discursos so condicionados pelos limites de nossos modos de dizer, ou seja, so construes do mundo dentro de certos limites impostos pelos nossos jogos de linguagem. (Oliveira da Silva, 2006, p. 8) Na verdade, nunca h uma descrio completa da realidade seno muitas, todas diferentes, cada uma das quais diferente segundo os critrios em que o autor do enunciado se baseou para a seleco das suas informaes, que distines e valorizaes efectuou e a partir de que perspectiva, com que interesses e com que objectivos abordou o tema (Simon citado por Rodrigo Alsina, 1999, p. 44). O que se pretende, efectivamente, dizer que o enunciado jornalstico um acto de fala regido pelo princpio da veracidade, o qual se expressa do seguinte modo: ningum fala com seriedade ou com pretenso de ser levado a srio se no assumir implicitamente o compromisso, diante dos seus interlocutores, de que os argumentos que apresenta so, por eles, considerados verdadeiros (Gomes, 2009, p. 10). Neste sentido, indiscutvel que o enunciado jornalstico tem que ser formulado por algum que possui uma pretenso de veracidade: O jornalismo uma actividade integralmente afectado pela norma da veracidade (. . . ) NoLivros LabCom

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h notcia sobre o qual no se imponha legitimamente uma obrigao de veracidade; alis, s notcia um ato verbal que comporte uma pretenso de ser verdadeiro (Gomes, 2009, p. 11). b) O enunciado jornalstico , tambm, actual, no sentido em que se refere a acontecimentos que ocorreram normalmente h pouco tempo e transportam alguma espcie de urgncia no seu conhecimento: o que se acaba de produzir, anunciar ou descobrir (Fontecuberta, 1993, p. 16). Para que uma informao seja notcia preciso que seja recente e imediatamente transmitida, isto que decorra o mnimo prazo de tempo possvel entre o acontecimento e a sua difuso. Neste sentido, a actualidade jornalstica constituda por uma srie de factos recentes ou imediatos que se difundem atravs dos meios de comunicao. Tal actualidade no existe nos factos independente dos meios que os reportam. resultado de um processo que a constri e que instaura a sua vigncia desde o perodo que comea com a publicao de uma informao numa edio e a edio seguinte. Por isso, a actualidade de um dirio no idntica de um semanrio nem a actualidade de um jornal generalista idntica de um jornal desportivo (Fontecuberta, 1993, p. 22). O enunciado jornalstico deve ser possuidor de novidade e o seu contedo deve constituir, na medida do possvel, um sobressalto na realidade quotidiana. Porm, parte da actualidade e da urgncia atribuda necessidade de conhecimento do evento determinada pela acelerao introduzida pelos prprios media. Assim, a actualidade no resulta apenas de uma qualidade intrnseca dos fenmenos mas da forma como as qualidades do acontecimento so percebidas pelos media. Ser, pois, mais coerente falar de uma actualidade jornalstica. No se pode, porm, ser imune ao fetiche da velocidade que marca o jornalismo. Se virmos numa dimenso mais vasta, a histria do seu surgimento a histria de uma poca em que a ideia de novo ganha um novo estatuto. O jornalismo do perodo moderno inicia os seus passos com o alvor das cidades, da civilizao mercantil e da expanso monetria. Nas suas conguraes mais recentes, atingiu a sua maturidade na altura em que surgia uma mentalidade cultural favorvel velocidade: a era da reprodutibilidade tcnica. A imprensa trabalha sobre o signo da velocidade: narrativas breveswww.livroslabcom.ubi.pt

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e um discurso que reproduz a urgncia. Nesse sentido, uma caracterstica essencial da informao a sua relao com o tempo: a informao perecvel uma vez pronunciada. O tema j fora abordado por Park: As notcias, como forma de conhecimento, no esto primeiramente focadas sobre o passado ou sobre o futuro, mas sim sobre o presente o que tem sido descrito pelos psiclogos como presente ilusrio. O que se pretende aqui signicar como presente ilusrio sugerido pelo facto de as notcias, como os editores da imprensa comercial bem sabem, serem um bem extremamente perecvel. As notcias mantm esse estatuto apenas at chegarem s pessoas para quem tm interesse noticioso. Uma vez publicadas e o seu interesse reconhecido, as notcias passam histria. (Park, 2009: 42) Porm, actualidade no necessariamente novidade. Como explica Fidalgo (2004): Por actualidade entende-se a caracterstica de o jornal informar sobre o que actual, presente, momentneo, novo. Contudo, actual no o mesmo que novo. Actual signica que algo acontece no tempo presente. Trata-se de uma relao temporal do mundo objectivo, de uma relao entre o momento do acontecimento e o momento presente do sujeito. A novidade, em contrapartida, no propriamente um conceito temporal, mas apenas signica que o sujeito no sabia disso. novo tudo o que o sujeito desconhecia e que passa a conhecer. c) O enunciado jornalstico ainda marcado por outra caracterstica relacionada com a temporalidade. O enunciado jornalstico dotado de periodicidade, no sentido no de regularidade (isto de um discurso que se formula atravs de edies que tendem a ser apresentadas com intervalos idnticos entre si), mas no sentido de um discurso que se actualiza em edies. A periodicidade tem de ser entendida no como uma repetio mecnica, mas como uma estratgia para aproximar na medida do possvel a notcia ao acontecimento e essa estratgia comum s vrias formas materiais que o jornal pode revestir. Esta actualizaoLivros LabCom

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tende a ser cada vez mais rpida. A periodicidade tem como ideal atingir o objectivo da simultaneidade do acontecimento e da notcia. Mais marcante para a periodicidade jornalstica a simultaneidade e no a regularidade Neste sentido, periodicidade e actualidade so ans. O ideal de uma e outra seria a simultaneidade entre os dois momentos. (Fidalgo, 2004, p. 4; p. 7) Presentemente, as tendncias introduzidas pelas novas rotinas televisivas, pela introduo do digital, pelo jornalismo online do um novo signicado quer temporalidade quer actualidade. Com a proliferao de canais e de suportes gera-se uma busca de simultaneidade entre o momento do acontecimento e o momento do sujeito: a proliferao do modelo CNN com notcias 24 sobre 24 horas, a possibilidade de actualizao permanente introduzida pelo jornalismo online e o uso dos telemveis para transmitirem individualmente informao sobre o acontecimento to depressa este se produza, a relao do jornalista com a dimenso temporal ganha um signicado cada vez mais relevante. d) A relevncia um problema central do jornalismo e a sua problemtica articula-se e colide com a universalidade entendida como caracterstica da realidade ideal do jornalismo concebida por Otto Groth e discutida por Fidalgo (2004). Segundo Groth, o mundo objectivo no consiste s de coisas, mas tambm, e sobretudo, de homens e da sua aco social e cultural. Alm das coisas, fazem parte desse mundo objectivo factos, opinies, intenes, ideias, valores de outras pessoas e de grupos de pessoas. Saber destes factos, ideias e valores, indispensvel ao homem a m de poder harmonizar a sua conduta com o mundo sua volta. Assim, a tendncia para a universalidade do enunciado jornalstico pode expressar-se nesta ideia: tudo o que suscita a curiosidade, o interesse do homem, tudo o que pode lev-lo a uma tomada de posio, est includo eo ipso num possvel contedo do jornal (Groth citado por Fidalgo, 2004, p. 5). A necessidade de dirigir a nossa ateno para um mundo complexo onde se vericam muitos acontecimentos num uir constante constitui o reverso da ambio de universalidade que motiva o jornalismo. Os estudos de Walter Lippman sobre a ateno e a necessidade de recorrer a imagens mentais para classicar a realidade; as teorias sobre o agendamento (McCombs e Shaw, 1972) e sobrewww.livroslabcom.ubi.pt

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a tematizao (Luhmann, 2009), isto necessidade de denir temas sobre os quais incide a nossa ateno para tornar a discusso possvel, as teorias sobre o enquadramento (frame) reectem, anal, a mesma preocupao: a forma como a nossa ateno direccionada pelos media sobre uma parte da realidade. Ou seja, jornais, revistas e rdios tm uma quantidade limitada de espao e de tempo, pelo que s uma fraco das notcias do dia acaba por ser publicada. o processo de edio orientado pelos valores notcia que acaba por fazer com que a ateno do pblico seja orientada e convocada para certos assuntos considerados de maior importncia do dia. Logo, a notcia, apesar da sua vocao para a universalidade, sempre uma escolha sobre o que importante: Potencialmente universal, o jornal acaba por se concretizar e particularizar consoante os interesses dos sujeitos que dele se servem como meio de lidar com os seus mundos objectivos. (Fidalgo, 2004, p. 5) As estruturas e sistemas de relevncias variam consoante as culturas, as comunidades, os grupos e os indivduos pelo que a identicao dos problemas e dos interesses e, consequentemente, a relevncia dos assuntos, tambm , ela prpria, varivel. Por isso, cada sociedade, cada comunidade tm conceitos distintos de acontecimento, e, portanto, o contedo dos meios reecte o conceito dominante de notcia vigente em cada sociedade em determinado perodo da sua histria. O jornalismo no procede, pois, seleco dos factos apenas em funo de uma qualidade a relevncia dos factos que seria evidente em si, independente das condies sociais e histricas e dos interesses dos agentes sociais envolvidos. O jornalismo vai destacar aqueles fatos que mais relevam os valores e crenas da sociedade naquele momento histrico (Oliveira da Silva, 2006, p. 94). Por exemplo, as notcias sobre a sade parecem extraordinariamente relevantes sob o ponto de vista do nosso bem-estar individual. Porm, a superabundncia de notcias sobre o tema no transforma estes enunciados como algo dotado em si de uma relevncia autoevidente em funo de todos os tempos e de todos os lugares. A sua relevncia resultado de uma sociedade mais confortvel, mais receosa da morte, mais obcecada com o prolongamento de uma certa cultura juvenil. Isto , pode haver formaes culturais em que a relevncia destes temas seja menor. A verdade que a importncia destas notcias aumentou na medida em que a esperana de vida aumentou e, consequentemente, cresceu a necessidade deLivros LabCom

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atender necessidade de cuidados mdicos de sectores da populao cada vez mais envelhecidos. Assim, ter que se ter em conta que a relevncia um conceito til mas resulta de processos conituais e de contextos sociocognitivos. Depende de processos conituais porque o jornalismo um dos protagonistas essenciais em denir o que relevante em cada momento o agendamento, a tematizao e, de certo modo, o framing so, justamente, processos em que se fazem sobressair temas e quais os esquemas interpretativos que se podem aplicar a esses temas considerados relevantes. Assim, o reconhecimento da capacidade dos media em tornar relevantes os temas e em denir estes esquemas torna-se o mbil de uma luta insanvel por parte de vrios agentes interessados: assessorias de comunicao, Relaes Pblicas, movimentos sociais, partidos polticos. A relevncia depende tambm de contextos sociocognitivos porque h sistemas de relevncia variveis em formaes culturais diversas, sendo que diferentes formaes culturais estruturam a percepo do que importante. Esta reexo no exclui os prprios fait-divers e as notcias sociais. Estas tornamse relevantes no contexto do jornalismo, em determinadas formaes scioculturais ou em determinadas especialidades do jornalismo. Assim faz sentido lembrar que a nossa maneira de ver as coisas uma combinao daquilo que se encontra e daquilo que se espera ver. Um bom exemplo deste facto o caso da manifestao de Londres contra a Guerra do Vietname, cuja cobertura foi estudada por Halloran, Elliott e Murdock citada por Gmis, onde a expectativa da violncia fez a cobertura incidir sobre os poucos aspectos violentos do evento (Gmis, 1991, p. 70). O conceito de relevncia tambm ganha neste momento uma recongurao substancial mediante os contributos desenvolvidos pelos novos media. A personalizao das notcias e a possibilidade de o utilizador introduzir ltros que lhe permitem seleccionar quais as informaes a que deseja ter acesso tem um signicado fundamental para a evoluo do conceito no mbito da teoria da notcia. e) O enunciado jornalstico pblico num triplo sentido: 1 Circula em espaos de acessibilidade geral e a todos abertos em

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relao aos quais no existe habilitao prvia para a sua frequncia. 2 considerado como possuindo um interesse colectivo. 3 Renega a ideia de segredo ou de sabedoria privada ou especializada, no sentido em que baseia a sua actividade na divulgao do saber e na simplicidade dos enunciados. Em relao ao primeiro ponto, parece haver uma certa evidncia: nas condies construdas pela modernidade, o discurso jornalstico acessvel a todos. A identicao moderna entre o adjectivo pblico e o interesse colectivo, presente no segundo sentido, mais difcil de discernir. Para Bobbio (2000), a melhor denio de democracia a que se refere ao poder em pblico, isto , ao fato de que as decises de governantes devem ser tornadas pblicas aos governados. Essa uma das principais diferenas entre um governo democrtico e um governo autocrtico, elegendo-se a comunicao pblica como actividade essencial s sociedades democrticas. A relao entre democracia e jornalismo torna-se mais visvel quando lembramos que a sociedade democrtica formada por cidados, e no sbditos, e que o direito informao inerente cidadania. A noo moderna de legitimidade e a aplicao do princpio da publicidade implicam que as decises do poder sejam escrutinadas e legitimadas. O prprio af dos poderes em apresentar motivos aceitveis para as suas decises signica que existe um ambiente colectivo que exige que as decises implicam o consentimento e a legitimidade dos pblicos. A legitimidade uma categoria que tem a ver com a aceitabilidade e o consentimento de prticas ou decises pblicas mesmo que tomadas por instncias privadas. Logo, esta denio de publico implica a referncia explcita a um elemento normativo que remete para as teorias da responsabilidade social da imprensa (Benito, 1995, p. 96). A premissa a de que o jornalismo uma actividade de forte vnculo social e que jamais se pode desligar do interesse e da vocao pblica. Porm, altamente duvidoso, por exemplo, que este conceito de interesse pblico possa dizer respeito a todo o jornalismo, por exemplo, vida privada de celebridades. Neste sentido, o conceito de interesse pblico pode no ter a ver necessariamente com a curiosidade das audincias. A a noo de pblico deixa de ser articulada com a questo da legitimidade e com o principio democrtico da publicidade para passar a estar associada de entretenimentoLivros LabCom

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partilhado por todos, revelando sobrevivncias de conceitos pr-modernos de pblico: por exemplo, a ideia de pblico como representao do poder hoje transferida para a representao do estatuto ou para noes que lhe so prximas como sejam celebridade e notoriedade. Neste sentido, um elemento que merece especial discusso o desenvolvimento de uma cultura de celebridades, largamente assente nos media e que proporcionou considerveis progressos no avano da fuso entre informao e entretenimento. A proliferao de formatos que asseguram a fugacidade de alguns escassos minutos de fama, a multiplicao de concursos que do relevo pblico a talentos desconhecidos, a alterao dos critrios de notoriedade clssicos (j no apenas o talento desportivo mas, tambm, a excentricidade e o escndalo como factores de sucesso meditico) alimentam o jornalismo dirigido para o mercado e contribuem para o nmero crescente de soft-news. J a ltima forma de classicar o discurso jornalstico como pblico est articulado com a ideia de acessibilidade, embora referindo-se ao seu contedo. O jornalismo um saber exotrico que procura conferir maior acessibilidade a saberes especializados. Esotrico diz-se de todo o ensinamento secreto e misterioso, ministrado a um crculo restrito e fechado de ouvintes, discpulos ou iniciados. Exotrico, pelo contrrio, expressa o ensinamento passvel de ser ministrado ao grande pblico e no somente a um grupo selecto de alunos, discpulos especializados ou iluminados. Signica, assim, o que externo, aquilo que acessvel pessoa comum; que se torna pblico, exterior ao crculo dos especialistas e das elites intelectuais. Os saberes exotricos abrem ao conhecimento dos leigos e das pessoas vulgares. O jornalismo tem este trao de busca da acessibilidade, de divulgao, que constitui uma das suas mais acentuadas marcas epistemolgicas. Esta concepo remete-nos para a distino entre Knowledge About e Knowledge of . Como j se viu, enquanto o primeiro se dene como formal e analtico, sistem