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EDUARDO KENEDY IVO DA COSTA ROSÁRIO MARIANGELA RIOS ANA BEATRIZ ARENA BETHANIA MARIANI LUCÍLIA SOUSA ROMÃO VANISE MEDEIROS SILMARA DELA SILVA ORGANIZAÇÃO ROBERTO PAES 1ª edição rio de janeiro 2013

Livro Proprietário - Análise Textual

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analise textual

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  • EDUARDO KENEDYIVO DA COSTA ROSRIOMARIANGELA RIOSANA BEATRIZ ARENABETHANIA MARIANILUCLIA SOUSA ROMOVANISE MEDEIROSSILMARA DELA SILVA

    ORGANIZAO ROBERTO PAES

    1 edio

    rio de janeiro 2013

  • Conselho editorial bethania sampaio correia mariani, magda ventura,

    mariangela rios de oliveira, paula caleffi, roberto paes de carvalho ramos,

    rosaura de barros baio

    Organizador do livro roberto paes de carvalho ramos

    Autores dos originais eduardo kenedy nunes areas (captulo 1), ivo da costa

    rosrio (captulo 2), mariangela rios de oliveira e ana beatriz arena (captulo

    3), bethania sampaio correia mariani e luclia maria sousa romo (captulo 4),

    vanise gomes de medeiros e silmara cristina dela da silva (captulos 5 e 6)

    Projeto grfico e desenho didtico paulo vitor fernandes bastos

    Redao final e desenho didtico roberto paes de carvalho ramos

    Reviso lingustica aderbal torres bezerra

    Com a colaborao de daniela ferreira reis, flavia oliveira tefilo da silva,

    jarclen thas teixeira ribeiro

    Site de apoio ao projeto editorial andr renato fernandes lage, danielle

    vilar goulart dos santos, rafael de freitas alvarez jourdan, tainara oliveira

    da rocha e thiago lopes amaral.

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou

    transmitida por quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e

    gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso

    escrita da Editora. Copyright seses, 2013.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (cip)

    l755 Lngua, uso e discurso: entremeios e fronteiras

    Roberto Paes [organizador].

    Rio de Janeiro: Editora Universidade Estcio de S, 2013.

    128 p

    isbn: 978-85-60923-05-2

    1. Lngua portuguesa, estudo e ensino 2. Linguagem 3. Texto

    4. Discurso 5. Comunicao escrita I. Ttulo.

    cdd 469.09

    Diretoria de Ensino Fbrica de Conhecimento

    Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus Joo Ucha

    Rio Comprido Rio de Janeiro rj cep 20261-063

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  • Sumrio

    Prefcio 7

    1. Linguagem, sociedade e cognio 9

    A linguagem humana 10Linguagem e lngua 12Lngua = fenmeno cognitivo e sociocultural 15Aquisio da linguagem 17Formas e funes lingusticas 21Arbitrariedade 24Iconicidade 25A linguagem humana em ao 27A enunciao 30Funo referencial x metfora 32Para concluir 33

    2. Lngua e variao lingustica 35

    Papel e status dos interlocutores na comunidade lingustica 36Propsitos da lngua: exemplificando pela modalizao 37Transformaes na trajetria da lngua: mudana e variao 38Variao lingustica 39Por que a mesma lngua , tambm, diferente? 40Explorando mais o tema: variaes dialetais 42

    Variao diatpica (dialetal) 42Variao diastrtica (sociocultural) 42

    Lngua padro e lngua culta 44Lngua culta 47E as outras formas de uso? 48Preconceito e poder no uso da lngua 49

    3. Linguagem, unidade e diversidade 53

    Lngua vernacular 55Propriedades do texto falado 57Propriedades do texto falado: a fragmentao 58Propriedades do texto falado: a situacionalidade 59Propriedades do texto falado: a reiterao 61Propriedades do texto escrito 62Propriedades comuns da fala e da escrita 65

  • 4. Gnero, tipologia e sentido 69

    O gnero discursivo 72Do gnero para o funcionamento do discurso 75Tipologia discursiva 77

    Discurso ldico 77Discurso polmico 79Discurso autoritrio 79

    Situaes de oralidade 80Homofonia 81Das tramas orais para a anlise da conversao 82Linguagem em contextos miditicos: o caso do blog 85Blog e jornalismo 86

    5. Texto: coeso e coerncia 89

    Referncia e referenciao 91Da referncia para a coeso 93Coeso referencial endofrica 95Coeso por elipse 96Coeso sequencial 97Organizao da estrutura textual 99Argumentao e texto argumentativo 101Argumentao e ironia 104Intertextualidade 105

    6. Texto, discurso e interpretao 109

    Do texto ao discurso 113Retomando o conceito: condies de produo 116O no-dito e os sentidos 121O no-dito e o silncio 124O dizer e o j-dito 125Sujeito e sentido 127

  • 7

    Prefcio

    Durante muito tempo, atrevo-me a dizer que estivemos trabalhando a lngua, as situaes de lingua-

    gem, de forma quase esttica, enfatizando somente um aspecto da lngua: o aspecto formal ou a for-

    ma de prestgio, como hoje denominada essa formalidade da lngua. Essa denominao, na verdade,

    parece ser a mais adequada, j que a referida forma extremamente considerada e serve como determi-

    nante de um bom falar e de saber se comunicar. Ser que assim?

    Diversas atividades nos mostram a lngua sendo utilizada de forma extremamente verstil, no s em

    relao a vocabulrio especfico e forma de falar de cada regio mas tambm em relao s situaes

    com as quais nos deparamos. Bem, estamos falando de atividades de linguagem que, como tais, pressu-

    pem a existncia de sujeitos para se efetivarem. Logo, estamos falando de interaes sociais, troca de

    mensagens, e os sujeitos que atuam nesses cenrios so diferentes, porque tm formaes diferentes,

    histrias diferentes, experincias diferentes. Isso nos d enormes possibilidades de trocarmos mensa-

    gens de vrias maneiras, o que no significa que, necessariamente, teremos comunicaes superiores a

    outras. Claro que podemos, sim, ter comunicaes mais claras, mais organizadas que outras.

    Na busca de melhor entendimento dessa questo, diria que a conscincia da necessidade de ade-

    quao das mensagens funciona como fator de fundamental importncia para o bom andamento da

    interao. Melhor dizendo, cada situao necessita de adequao da linguagem, o que inclui forma-

    lidade, informalidade e semiformalidade. Essa imagem fica mais clara quando falamos de festas: al-

    gumas exigem roupas a rigor, outras, como festas ou reunies com amigos, jantares ou almoos com

    familiares, por exemplo, permitem roupas e cores diferentes. Enfim, para cada situao, concordamos

    que h uma vestimenta adequada. Pois bem, o mesmo se d com a organizao de nosso discurso, de

    modo que adquirir o aspecto formal da lngua tambm faz parte das habilidades do falante.

    Dito isso, podemos anunciar o objetivo deste livro: focalizar a linguagem em movimento, dando n-

    fase formalidade e semiformalidade atravs de vrias possibilidades de organizao do discurso e

    prticas textuais, sem desconsiderar o potencial lingustico de cada um.

    Mas como fazer isso? Trabalhando com a habilidade de leitura e a produo escrita, refletindo sobre

    a relao dos elementos que compem o texto, pois este tomado como ponto de partida por ser lugar

    de interao, de interpretao e produo de mensagens, onde h produo de sentido. Entendemos que

    trabalhar atividades de linguagem focalizando a lngua em movimento potencializar as habilidades dos

    leitores, enfatizar um comportamento maduro em relao ao uso lingustico, podendo, com isso, au-

    xiliar na tarefa de desfazer preconceitos e alargar a noo de lngua algo muito maior que, essencial-

    mente, as regras gramaticais. Estas, juntamente com contextos socioculturais que integram a noo de

    mundo de cada um, constituem esse fenmeno que possibilita diversas formas de comunicao.

    Celebramos, juntamente com os autores que fizeram parte do incio dessa conquista, o nasci-

    mento de um livro que pretende conduzir reflexo de assuntos urgentes em termos de lingua-

    gem, mesmo considerando que alguns assuntos ou conceitos, pela prpria dificuldade de trata-

    mento que trazem, no so muito acessveis.

    Se a leveza com que pretendemos tratar tais assuntos for percebida e digerida por voc, tere-

    mos dado um grande passo.

    rosaura de barros baio

  • Linguagem, sociedade e cognio

    eduardo kenedy

    1

  • 10 captulo 1

    A linguagem humana

    A linguagem humana um fenmeno impressionante. Ela se faz pre-

    sente em quase todos os momentos da vida de uma pessoa: desde o

    seu nascimento, quando recebe um nome e inserida em uma comu-

    nidade de fala, at a maturidade, quando transita diariamente pelos

    complexos sistemas de comunicao e interao social modernos.

    Concretizada em uma das milhares de lnguas hoje existentes no

    mundo, a linguagem humana nos surpreende porque capaz de fazer

    muito a partir de pouco.

    A posse da linguagem, com seu ilimitado poder expressivo, faculta

    aos humanos a organizao e a veiculao de pensamentos, ideias, con-

    ceitos, valores e, dessa forma, insere cada indivduo que domina (pelo

    menos) uma lngua no dinmico e intenso fluxo comunicativo das socie-

    dades contemporneas. Com efeito, os poucos sonsdalinguagem oral

    podem ser substitudos por algumas letras em um sistema de escrita ou

    por centenas de sinais em uma lnguadesurdos sem que, com isso, o

    poder mobilizador da linguagem seja significativamente alterado. Seja

    na fala, na escrita ou na sinalizao, a experincia humana se faz rica e

    ilimitada com a linguagem e pela linguagem.

    Para que voc tome conscincia da complexidade social e cogni-

    tiva subjacente a um simples ato da linguagem humana, pense no

    seguinte exemplo:

    Um homem caminha distrado pela cidade, aproveitando os momentos que ainda lhe

    sobram de seu horrio de almoo. Subitamente, ele se d conta de que pode estar

    atrasado para o retorno ao trabalho e diz para si mesmo, com aquela voz interna e

    silenciosa que, muitas vezes, ordena os nossos pensamentos: Devo estar atrasado!.

    Com essa impresso, o homem se dirige a um transeunte e pergunta:

    Com licena. O senhor pode me informar as horas?

    O transeunte, por sua vez, compreende o estado mental de seu interlocutor

    sua inteno de ser informado a respeito do horrio e busca o comportamento

    adequado para a situao: olha para o relgio de pulso e dele retira a informao

    necessria, que codificada na frase-resposta:

    So doze e trinta!

    A aparente banalidade de um evento como esse esconde sob si

    um fenmeno extraordinrio: a interao entre a mente humana e a

    CURIOSIDADE

    CURIOSIDADE

    Lngua de surdos:

    O Brasil possui a Lngua Brasileira de Sinais (libras). Ao contrrio do que muitos pensam, a libras no uma gestualizao da lngua portuguesa; na verdade, uma lngua parte. Tanto que, em Portugal, a lngua de sinais diferente da brasileira.

    Sons da linguagem:

    com base em apenas trs ou quatro dzias de sons que ns, falantes de uma lngua natural qualquer como o portugus, por exemplo , consegui-mos dominar dezenas de milhares de palavras, as quais, quando combinadas entre si de maneira ordenada, permi-tem-nos a produo e a compreenso de um nmero potencialmente infinito de frases e textos.

    EXEMPLO

    Linguagem, sociedade e cognio1

  • captulo 1 11

    realidade sociocultural na tarefa de produzir e compreender estru-

    turas e significados lingusticos. Podemos no nos dar conta, mas,

    na comunicao humana, o indivduo que fala executa trabalho so-

    ciocognitivo muito complexo. Ele deve codificar os seus pensamen-

    tos e as suas ideias em palavras, que, por sua vez, devem ser combi-

    nadas entre si em frases, as quais, por fim, so pronunciadas para

    um interlocutor em um dado contexto discursivo.

    Da mesma forma, a tarefa do indivduo que compreende tambm

    engenhosa: ele deve decodificar os sons da fala que lhe so dirigidos

    no ato do discurso, de modo a identificar palavras e frases para, assim,

    conseguir interpretar os pensamentos e as ideias de seu colocutor.

    Ora, podemos perguntar: como os humanos fazem isso? De que maneira essa

    sequncia de codificao e decodificao de formas e significados lingusticos

    ocorre? Pense bem, pois as respostas para essas perguntas no so nada

    fceis ou simples.

    Lembre-se de que as estruturas das frases e dos textos nas lnguas

    naturais so, geralmente, muito complexas. Mesmo se analisssemos

    uma frase simples, como O senhor pode me informar as horas?,

    encontraramos nela regras de ordenao de palavras, concordncia,

    regncia, seleo de pronomes Enfim, verificaramos a existncia

    de uma suntuosa maquinaria gramatical a servio da comunicao e

    da interao social.

    Entretanto, a despeito de toda essa complexidade, ns, huma-

    nos, somos capazes de produzir e compreender frases e textos com

    extrema facilidade. Em uma conversa qualquer, produzimos e com-

    preendemos dezenas, centenas, milhares de enunciados, um aps

    o outro, em uma velocidade incrivelmente rpida, muitas vezes me-

    dida em milsimos de segundo.

    Em circunstncias normais, fazemos isso de maneira inconsciente e sem esforo

    cognitivo aparente. Ora, como somos capazes disso? De que maneira nossas

    mentes se tornam aptas a estruturar nossos pensamentos em frases e textos

    codificados em sons, socialmente compartilhados?

    Ao formularmos essas perguntas, acreditamos ter despertado em

    voc a conscincia do complexo mundo sociocognitivo que se escon-

    de sob cada uso cotidiano que fazemos da linguagem. De fato, espe-

    ramos ter tambm aguado o seu interesse pelos estudos lingusti-

    cos. Voc deve saber que encontrar respostas para tais perguntas

    tarefa das cinciasdalinguagem.

    REFLEXO

    REFLEXO

    CURIOSIDADE

    Cincias da linguagem:

    Essas cincias vm alcanando um extraordinrio desenvolvimento ao longo das ltimas dcadas e, assim, muitos segredos a respeito da estrutura e do funcionamento das lnguas naturais esto sendo rapidamente revelados. Algumas dessas descobertas sero apresentadas a voc neste livro.

  • 12 captulo 1

    Neste captulo inicial, vamos aprender alguns conceitos funda-

    mentais e indispensveis ao estudo da linguagem. Comearemos

    pelas noes de linguagem e lngua. Os termos parecem se referir a

    conceitos aproximados, mas teremos uma seo inteira para enten-

    dermos que se trata, na verdade, de duas realidades diferentes. Com

    base no que estudaremos sobre a noo de lngua, seguiremos para

    a seo em que diferenciaremos a dimenso cognitiva da dimenso

    sociocultural da linguagem. Aprenderemos que uma lngua sempre

    existe simultaneamente no interior do indivduo que a fala e no seio

    da sociedade em que esse indivduo se encontra inserido, sendo, por

    isso, um fenmeno sociocognitivo (ou cognitivossocial).

    Logo em seguida, trataremos do fantstico fenmeno da aquisio

    da linguagem. Vamos analisar alguns aspectos da rdua tarefa das crian-

    as, que, de maneira inconsciente e compulsria, devem criar em suas

    mentes uma verso do sistema lingustico que a elas se revela indireta-

    mente na fala das pessoas que as circundam.

    Tambm teremos, neste captulo, uma seo dedicada s diferenas

    entre as formas e as funes lingusticas. Estudaremos para que serve a

    linguagem humana e como ela d conta de seus diversos ofcios.

    Por fim, apresentaremos os principais fatos imbricados no uso da

    linguagem pelos indivduos adultos que, em tempo real, precisam pro-

    duzir e compreender frases e textos, codificando e decodificando men-

    talmente informaes nas diversas formas de comunicao e expres-

    so que se tornam possveis pela lngua. Esperamos que voc tenha

    apreciado esse roteiro, pois nossa viagem pelo mundo da linguagem

    est apenas comeando!

    Linguagem e lngua

    FerdinanddeSaussure foi um importante linguista franco-suo que

    ainda hoje considerado o pai das modernas cincias da linguagem.

    Foi Saussure quem formulou, explicitamente e com grande clareza,

    uma importante distino entre aquilo que compreendemos por

    linguagem e por lngua. Vamos entender do que se trata.

    De acordo com Saussure, a lngua no se confunde com a linguagem,

    pois somente uma parte determinada e essencial dela (1916: p.17).

    O que o mestre genebrino nos ensina nessa passagem que a lingua-

    gem um fenmeno muito mais geral e abrangente do que uma ln-

    gua. Comparada com a linguagem, diz-nos Saussure, uma lngua pos-

    sui um carter muito mais especfico.

    Na verdade, alguns animais chegam a possuir sistemas de lin-

    guagem impressionantemente complexos, como o caso das abe-

    lhas. As abelhas possuem um complicado sistema de dana em zi-

    guezagueado que permite a indicao da direo e da distncia em

    que se encontra uma fonte de nctar que tenha sido descoberta por

    AUTOR

    CURIOSIDADE

    Ferdinand de Saussure:

    Saussure (1857-1913) considerado o pai da Lingustica.

    Nascido na Sua, seu pensamento exerceu grande influncia na Litera-tura e nos Estudos Culturais, princi-palmente para o desenvolvimento do Estruturalismo no sculo xx.

    Linguagem:

    Para entender melhor isso, pensemos no seguinte: voc acha que animais no humanos, como cachorros, gatos, maca-cos, pssaros etc., possuem algum tipo de linguagem? A resposta um tanto bvia: claro que sim. A maior parte dos animais possui algum sistema de co-municao que permite a expresso de seus estados internos e a interao com o seu ambiente. Embora as mensagens que ces e gatos possam transmitir se-jam um tanto limitadas (com seus rudos caractersticos, com a posio do corpo, do rabo e com a emisso de certos odores), no h dvidas de que se trata de um tipo de linguagem que permite a comunicao tanto entre os membros daquelas espcies animais quanto entre eles e os seres humanos.

    Por exemplo, se voc possui um co ou gatinho, certamente capaz de perceber o tipo de latido (ou miado) que ele produz quando est com fome, com dor, quando se sente em perigo ou est alegre.

  • captulo 1 13

    alguma delas. As abelhas que, durante alguns minutos, observam a

    abelhinha que localizou o nctar danar para l e para c, chacoa-

    lhando o seu corpo de maneira frentica, so capazes de entender

    a informao que est sendo transmitida e, logo ao fim da dana,

    rumam para a fonte do nctar com bastante preciso. Ora, esse

    exemplo ilustra, claramente, a existncia de uma linguagem dos

    animais, ou, mais precisamente, a linguagem especfica de cada

    espcie animal em particular.

    Voc j deve ter entendido que a linguagem um conceito bas-

    tante abrangente, que se refere a todo e qualquer sistema de comu-

    nicao e expresso. por isso que podemos falar em linguagem

    dos animais, linguagem das cores, linguagem dos cheiros, lin-

    guagem corporal, linguagem da arte (incluindo a linguagem da

    dana, linguagem da moda) etc.

    Pois bem, se linguagem qualquer sistema de comunicao e ex-

    presso, ento o que uma lngua? Com efeito, lngua um tipo espe-

    cfico de linguagem, como o prprio Saussure j havia dito. Afinal, uma

    lngua tambm um sistema de comunicao e expresso e, assim,

    uma forma de linguagem. Acontece que a lngua uma forma singular

    de linguagem, com caractersticas prprias que a distinguem de todas

    as demais linguagens animais ou humanas no verbais.

    Voc deve estar se perguntando que caractersticas so essas.

    Trata-se de dois fatores sociocognitivos muito importantes. Veja-

    mos cada um deles a seguir.

    O primeiro fator que distingue uma lngua humana qualquer

    como o portugus, o ingls ou o xavante dos demais sistemas de lin-

    guagem a existncia de um lxico.

    No lxico, encontramos uma coleo de formas (significantes) que

    so associadas, sistematicamente, a certos contedos (significados).

    Assim, por exemplo, em portugus, possumos o significante [kaza]

    (representado na escrita pela grafia casa) que ser sempre associa-

    do ao significado [tipo de moradia] todas as vezes que usarmos essa

    palavra. Tambm temos no lxico de nossa lngua o significante [a],

    sufixo presente ao fim da forma [menina], ao qual est associado o

    significado [pessoa do sexo feminino]. Da mesma maneira, temos o

    significante da expresso [dar uma mozinha] que se associa, em ln-

    gua portuguesa, ao significado [oferecer ajuda].

    O nmero total de palavras e expresses existentes em um lxico

    bastante varivel de lngua para lngua. Pois bem, nos sistemas ge-

    rais de linguagem, no existe nada parecido com o lxico das lnguas

    humanas. Afinal, quantos tipos de latido, miado ou canto podem ser

    discriminados pelos ces, pelos gatos ou pelos pssaros? Quantas

    palavras poderamos transmitir com a linguagem corporal, com a

    linguagem dos cheiros ou pela dana? Ainda que consigamos catalo-

    gar um grande nmero delas, no encontraramos algo to organiza-

    do, sistemtico e vasto como o lxico de uma lngua.

    CONCEITO

    CURIOSIDADE

    Lxico:

    O lxico pode ser compreendido como o conjunto de palavras e expresses que so socialmente compartilhadas pelos falantes de uma dada lngua.

    Nmero:

    A ttulo de ilustrao, saiba que um falante escolarizado do portugus do Brasil domina, pelo menos, 50.000 itens, sem contar as formas flexionadas das palavras (como as diversas expresses do verbo estudar: estudo, estuda, estudamos, estudava, estudarei, estudaria etc.), mas os dicionrios da lngua portuguesa chegam a registrar de 200.000 a 400.000 palavras. Trata-se de nmeros bem impressionantes, no?

  • 14 captulo 1

    O segundo fator que distingue uma lngua dos demais tipos de

    linguagem o mais importante: as lnguas humanas possuem um

    sistemacombinatrio, que chamamos gramtica.

    O interessante que, se o nmero de itens existentes em um lxico

    qualquer j consideravelmente grande, ele no quase nada quando

    pensamos no nmero de expres-

    ses que o sistema combinatrio

    de uma lngua pode gerar utili-

    zando suas regras computacio-

    nais. De fato, o nmero de frases

    e textos que podemos construir

    em uma lngua ao combinarmos

    lxico e gramtica ilimitado.

    Se compararmos as lnguas

    humanas com os sistemas mais gerais de linguagem (humanos ou

    animais), poderemos deduzir que a principal diferena entre eles

    a recursividade tambm denominada infinitude, criatividade

    ou produtividade , que existe somente nas lnguas.

    Neste momento, voc talvez tenha curiosidade de saber se existe

    algum tipo animal no humano que possua lngua (e no apenas

    linguagem). Muito bem, os cientistas ainda no conseguiram regis-

    trar nenhuma espcie de vida, alm dos humanos, que use algum

    sistema de comunicao remotamente parecido com uma lngua

    natural. Por tudo o que at hoje sabemos, somente ns, humanos,

    conseguimos usar um sistema de linguagem com recursividade.

    por isso que as lnguas parecem ser um verdadeiro patrimnio da humanidade,

    algo que nos distingue, claramente, de todas as formas de vida conhecidas pela

    cincia. A posse da linguagem, na forma de uma lngua, de fato uma das carac-

    tersticas mais distintivas e mais importantes do homo sapiens.

    No obstante, existem muitos cientistas que vm tentando ensi-

    nar uma lngua humana a animais inteligentes, como os chimpanzs

    e algumas espcies de papagaios e de golfinhos.

    No entanto, alegar que macacos ou papagaios so realmente

    capazes de aprender e usar uma lngua humana um flagrante e

    descomunal exagero, o qual se motiva muito mais por questes

    ideolgicas (por exemplo, conferir maior importncia ao aprendi-

    zado sociocultural em oposio natureza biolgica humana na

    aquisio de conhecimento) do que lingusticas.

    Quando falamos uma lngua, somos capazes de produzir e compreender um nmero infinito de frases e textos.

    CONCEITO

    CONCEITO

    Sistema combinatrio:

    Esse sistema capaz de combinar entre si, de maneira ordenada e contro-lada por regras, as unidades do lxico, de modo a construir expresses, como as frases e os textos. Por exemplo, o lxico do portugus possui unida-des como casa, bonita, comprar, voc, mais, porm, a gramtica dessa lngua que permitir a criao de expresses complexas como que casa mais bonita voc comprou!.

    Recursividade:

    A recursividade justamente a capa-cidade de criar um nmero infinito de frases e textos com base no nmero finito de palavras existentes no lxico. A recursividade emerge, portanto, da combinao entre os dois compo-nentes fundamentais de uma lngua: o lxico e o sistema combinatrio

    (gramtica).

    RESUMO

  • captulo 1 15

    No link abaixo, voc ver um exemplo que registra as tentativas de ensino de

    lnguas entre espcies.

    Voc provavelmente ficar encantado com as proezas lingusticas desse animal

    rarssimo e genial. Mas acreditamos que no ficar convencido de que ele, de fato,

    aprendeu a usar uma lngua e que demonstra domnio de um lxico e de um sis-

    tema combinatrio. O mximo que podemos dizer que esse adorvel bichinho

    capaz de aprender, aps intensos anos de treinamento, um sistema de linguagem

    bastante complexo e avanado, inspirado no lxico das lnguas humanas algo

    fantstico que, por si s, j merecedor de destaque cientfico.

    At o momento, com efeito, a linguagem, na forma de um sistema

    combinatrio que opera recursivamente sobre um lxico, um fenme-

    no identificado somente na espcie humana e ainda irreproduzvel nos

    sistemas de inteligncia artificial desta segunda dcada do sculo xxi.

    Muito bem, agora que voc j sabe distinguir linguagem e lngua,

    fique atento s expresses linguagem ou linguagem humana. Mui-

    tas vezes, essas expresses querem dizer lngua (lxico e gramtica)

    e no apenas linguagem (qualquer sistema de comunicao). bem

    verdade que podemos usar esses termos de maneira um tanto livre e

    mais ou menos metafrica, no dia a dia ou mesmo ao longo de um livro

    mais especializado como, de fato, j o fizemos e tornaremos a fazer

    aqui , mas, sempre que necessrio, devemos distinguir tais conceitos.

    Lngua = fenmeno cognitivo e sociocultural

    As lnguas humanas so uma autntica maravilha do mundo natu-

    ral e sociocultural. Talvez voc j se tenha dado conta de que, desde

    que estejam inseridos em um ambiente de interao social, todos

    os indivduos saudveis, de todos os tempos da histria e de todas

    as culturas humanas, desenvolvem, de maneira natural e espont-

    nea, a habilidade de produzir e compreender oralmente palavras,

    frases e textos na lngua de seu ambiente.

    Por exemplo, uma criana que nasa no Brasil desenvolver, j

    nos primeiros anos de vida, a capacidadelingustica de produo e

    MULTIMDIA

    Alex Papagaio cinza africano

    que conseguia comunicar-se

    usando vrias palavras do ingls.

    Capacidade lingustica:

    Essa capacidade permanecer na mente da criana no curso de sua vida saudvel e ser modificada, na adoles-cncia e na vida adulta, de acordo com suas experincias particulares.

    CURIOSIDADE

  • 16 captulo 1

    compreenso de enunciados em portugus, em uma de suas moda-

    lidades socioculturais se no o portugus, ento, uma das lnguas

    minoritrias do pas (por exemplo, uma lngua indgena) , que ser,

    assim, a lngua ambiente dessa criana.

    Como maravilha do mundo natural e sociocultural, o fenme-

    no das lnguashumanas comporta necessariamente duas dimen-

    ses: uma dimenso individual e mental e uma dimenso coleti-

    va e sociocultural.

    O influente linguista norte-americano NoamChomsky formu-

    lou dois importantes conceitos para dar conta da diferena entre

    a dimenso individual e psicolgica das lnguas e a sua dimenso

    social e cultural. Chomsky props que a dimenso mental e cog-

    nitiva do fenmeno da linguagem seja sintetizada pelo conceito

    de Lngua-i, em que i significa interna, individual. J a dimenso

    sociocultural das lnguas denominada por Chomsky como Ln-

    gua-e, em que e quer dizer externa, extensional. Vejamos melhor

    esses conceitos.

    A noo de Lngua-e corresponde, grosso modo, ao que comu-

    mente se interpreta como lngua ou idioma no senso comum. Por

    exemplo, o portugus uma Lngua-e no sentido de que esse fen-

    meno sociocultural, histrico e poltico que compreende um con-

    junto de sons, palavras, regras gramaticais e um sistema de escrita

    que, juntamente, permitem a comunicao e a interao entre os

    seus falantes. Trata-se de um fenmeno supraindividual, na verdade,

    exterior ao indivduo.

    A noo de Lngua-i, por sua vez, corresponde ao conjunto

    de habilidades mentais que permitem ao indivduo a produo

    e a compreenso de um nmero potencialmente infinito de ex-

    presses na sua lngua ambiente. Uma Lngua-i diz respeito,

    portanto, quilo existente no interior da mente das pessoas, que

    lhes faculta a aquisio e o uso cotidiano de uma lngua natural.

    Nesse sentido, entende-se que uma lngua seja parte do sistema

    cognitivo humano.

    Uma Lngua-i uma faculdade psicolgica ou, por assim dizer, um

    rgo mental. Todo indivduo humano sem deficincias neuropsicol-

    gicas graves capaz de manipular, em sua lngua, diversos recursos

    gramaticais e textuais que veiculam significados do indivduo para o

    mundo exterior e desse para a conscincia do indivduo. Essa compe-

    tncia cognitiva para a manipulao das estruturas e dos significados

    da linguagem individual e inconsciente. a ela que nos referimos

    com o conceito de Lngua-i.

    s vezes, quando pensamos sobre a linguagem humana, precisa-

    mos ter clareza se estamos discutindo aspectos cognitivos ou aspec-

    tos socioculturais da lngua ou mesmo se estamos considerando

    ambos os aspectos em interao. Fique, portanto, sempre atento a

    esse particular.

    CONCEITO

    Lnguas humanas:

    Sempre que ocorre o fenmeno lin-guagem humana, temos, de um lado, o indivduo particular que possui a capaci-dade mental de produzir e compreender expresses lingusticas e, do outro, a sociedade em que esse indivduo se insere, a qual lhe forneceu no s os contextos de uso da linguagem em interao com outros humanos mas tambm os sons e as palavras necess-rios expresso verbal.

    AUTOR

    Noam Chomsky:

    Avram Noam Chomsky (1928) um linguista americano, conside-rado uma das figuras

    acadmicas mais proeminentes (durante 12 anos, foi o cientista vivo mais citado em trabalhos cientficos no mundo). conhecido como o pai da Lingustica Moderna, especialmente por sua Teoria da Gramtica Universal.

  • captulo 1 17

    muito importante que voc compreenda que uma lngua , ao mesmo tempo, um

    fenmeno cognitivo e individual (uma Lngua-i) e um fenmeno coletivo e sociocul-

    tural (uma Lngua-e). Embora nem sempre usemos os termos chomskianos, essa

    dualidade est l inevitavelmente todas as vezes em que falamos sobre as lnguas.

    Aquisio da linguagem

    Para que voc compreenda a dramtica situao sociocognitiva em

    que se encontra um beb na fase de aquisio da linguagem, vamos

    liberar a imaginao com a seguinte histria fantstica:

    Suponha que voc seja abduzido por aliengenas. Voc acordaria em uma galxia

    distante, cercado de criaturas diferentes, cujos comportamentos voc no com-

    preende. Apesar de toda a estranheza inicial, no lhe seria difcil notar que tais

    criaturas possuem uma espcie de orifcio em sua extremidade superior (algo

    como uma boca), de onde certos sons so regularmente emitidos.

    Com um pouco de observao, voc consegue perceber que esses estra-

    nhos seres parecem se comportar de alguma maneira relacionada aos sons que

    trocam entre si. Por exemplo, voc v um ser alto emitindo sequncias de sons

    enquanto um baixinho o observa. Ao final da produo de sons, o baixinho se

    desloca no espao, toma um objeto para si e o leva at o alto, como se tivesse

    cumprido um pedido ou uma ordem.

    Para voc, parecer coerente concluir que os sons compartilhados entre es-

    ses aliengenas sejam uma espcie de sistema de comunicao e, para conseguir

    descobrir o que aconteceu consigo, onde est, quem so essas criaturas etc., voc

    ter de aprender a usar esse sistema. Tal tarefa no ser nada fcil, pois voc no

    contar com nenhum professor de aliengena para terrqueos, nenhum livro ou

    curso preparatrio e, alm disso, o aparente sistema de comunicao usado por

    aquelas criaturas no semelhante a nenhum outro que voc j tenha visto antes...

    Se voc conseguiu compreender o quo dramtica seria essa situa-

    o, est apto a entender que a aquisio da linguagem pelos bebs e

    pelas crianas um autntico milagre do mundo biocultural. Note bem:

    os bebs chegam a um mundo completamente desconhecido, retirados

    que foram do aconchegante tero materno. Esse mundo povoado por

    seres estranhos ao beb (os seres humanos) cujo comportamento pare-

    ce estar estreitamente relacionado aos sons que todos trocam entre si.

    Tais sons mais parecem ao beb uma grande confuso, um continuum

    de rudos quase indecifrveis. Afinal, como um beb poderia identificar,

    no fluxo da fala humana, onde um som termina e o outro comea?

    Idioma:

    Quando dizemos que o russo a lngua da Rssia ou que o chins a lngua da China, entendemos lngua como esse fenmeno desincorporado dos falantes, a Lngua-e. Da mesma forma, essa lngua se refere a um fenmeno cuja existncia externa s pessoas e, nesse caso, do qual elas devem se apropriar: as lnguas do ambiente.

    Uma criana nascida no Paraguai pro-vavelmente aprender a falar espanhol e guarani, ou seja, as lnguas do ambiente.

    Bebs:

    J ao nascer, os bebs parecem ser muito espertos e, para eles, no difcil deduzir que os sons emitidos pelas cria-turas que o circundam constituem, na verdade, um sistema de comunicao.

    CURIOSIDADE

    CURIOSIDADE

    EXEMPLO

    RESUMO

  • 18 captulo 1

    Talvez tenha sido em razo disso que o famoso psiclogo de Har-

    vard, o canadense StevenPinker, denominou tal fenmeno como instin-

    to para a linguagem: um beb humano rapidamente compreende que

    precisa dominar esse sistema para descobrir o que os seres ao seu redor

    dizem e tambm para que ele prprio possa dizer alguma coisa e comu-

    nicar-se com as outras pessoas.

    Mas bebs e crianas esto, em grande parte, quase sozinhos no

    interior de suas mentes durante a odisseia pela descoberta e pelo do-

    mnio da lngua do seu ambiente. Eles no possuem um professor

    particular de lngua humana para bebs recm-nascidos e, o que

    mais grave, o seu crebro ainda um protocrebro, ou seja, apenas

    um rascunho do potente processador de informaes que o crebro

    de um indivduo maduro.

    Usamos a palavra milagre para descrever a aquisio da lingua-

    gem pelos bebs e pelas crianas porque, apesar de todas as dificul-

    dades que descrevemos, os pequenos humanos conseguem dominar

    a lngua de seu ambiente, para a compreenso e a produo da lin-

    guagem, com extrema eficincia e em um intervalo de tempo incrivel-

    mente pequeno, que no ultrapassa trs ou quatros anos.

    As crianas pequenas sequer parecem fazer esforo cognitivo

    para adquirir a sua lngua materna. De fato, a aquisio da lingua-

    gem muito mais algo, que simplesmente, acontece com os bebs e

    com as crianas e no algo que elas faam deliberadamente com o

    seu pequeno crebro em formao.

    A par de ser um fenmeno sociocognitivo extraordinrio, a aquisio da lngua

    do ambiente (ou das lnguas do ambiente, no caso das comunidades bilngues ou

    multilngues) um dos eventos mais importantes na vida de um ser humano. Esse

    fenmeno , ao mesmo tempo, a porta de entrada para as relaes sociais huma-

    nas, que so quase sempre mediadas pela linguagem, e a janela para o aperfei-

    oamento cognitivo individual, uma vez que grande parte da cognio humana se

    utiliza da linguagem como instrumento de desenvolvimento e de complexificao.

    Na verdade, o que chamamos de aquisio da linguagem um fen-

    meno duplo que envolve a aquisio de dois diferentes tipos de habili-

    dades sociocognitivas. Vejamos isso com mais detalhes.

    Um tipo particular de aquisio da linguagem aquele que denomina-

    mos aquisio em sentido amplo ou aquisio da linguagem lato sensu. Em

    seu sentido amplo, adquirir linguagem significa apropriar-se das habilida-

    des de comunicao, expresso e interao social. Esse tipo de aquisio

    demanda dos bebs e das crianas a absoro dos aspectos mais gerais

    da linguagem, tais como a interao sociocomunicativa, a organizao de

    conceitos e de pensamentos, e envolve, tambm, o desenvolvimento das

    noes de autoconscincia e de individualidade nas relaes humanas.

    AUTOR

    Steven Pinker:

    Steven Arthur Pinker nasceu em Montreal (1954), linguista e psiclogo da Universi-

    dade de Harvard. Escreve sobre lingua-gem e cincias cognitivas e foi nomeado uma das 100 pessoas mais influentes pela revista Times.

    RESUMO

  • captulo 1 19

    O outro tipo de aquisio da linguagem muito mais especfico e,

    por isso mesmo, denomina-se aquisio em sentido restrito ou aquisio

    da linguagem stricto sensu. Em seu sentido restrito, adquirir linguagem

    significa apropriar-se do lxico e do sistema combinatrio existentes na

    lngua do ambiente.

    Esse tipo de aquisio demanda dos bebs e das crianas a habi-

    lidade de discriminao perceptual e de articulao intencional de

    toda a maquinaria gramatical necessria ao funcionamento da ln-

    gua. Na aquisio stricto sensu, a criana adquire, de fato, o aparato

    lingustico formal que estar a servio das interaes sociais e da or-

    ganizao cognitiva do indivduo em desenvolvimento.

    Se voc j entendeu a diferena entre aquisio da linguagem

    lato sensu e stricto sensu, podemos, agora, falar um pouco mais so-

    bre a aquisio em sentido restrito.

    Um dos fatos mais intrigantes a respeito do processo de aquisio

    do lxico e do sistema combinatrio da lngua do ambiente que ele

    parece ser universal. As fases pelas quais passam os bebs e as crian-

    as durante a aquisio stricto sensu so muito semelhantes em todas

    as culturas do mundo, seja qual for a lngua do ambiente e o nvel de

    inteligncia geral da criana. Isso quer dizer que todas as crianas

    parecem atravessar as mesmas etapas nos mesmos estgios de de-

    senvolvimento biolgico, desde o nascimento at o domnio comple-

    to da lngua, estejam onde estiverem, em qualquer classe social e sob

    qualquer tipo de cultura.

    No obstante, o grande salto qualitativo na produo lingustica

    dos bebs ocorre aos 12 meses, quando eles j so capazes de produ-

    zir suas primeiras palavras reconhecveis como tais. Essas so, na ver-

    dade, mais do que simplesmente palavras, pois sempre assumem o

    valor de uma frase completa inserida em um contexto discursivo. In-

    dependente da lngua do ambiente, as primeiras palavras produzidas

    por uma criana so sempre monossilbicas e seguem uma estrutura

    [consoante + vogal]. Em pouco tempo, essa estrutura vai tornando-se

    cada vez mais complexa e caminha em direo complexidade exis-

    tente na fala adulta.

    Por exemplo, uma criana brasileira pode dizer algo como b para significar uma

    frase inteira, como olhe, a bola, conforme o contexto permita compreender. Pou-

    cos meses depois, b ganhar complexidade fonolgica e tomar a forma con-

    vencional de bola. O mesmo fenmeno pode ser observado com as centenas

    de outras palavras que as crianas adquirem durante essa fase, que os linguistas

    nomeiam de fase holofrstica.

    Com pouco menos de 24 meses, as crianas j atingem a fase de

    duas palavras (tambm chamada de fase sintagmtica). Nessa etapa de

    Universal:

    Na aquisio da linguagem lato sensu, a criana adquire, na verda-de, os fundamentos da interao entre os humanos: os valores e as aes imbricados nos usos da linguagem, a prpria noo de si, a percepo do(s) outro(s), os modos de interagir social-mente e assim por diante.

    J ao nascer, todas as crianas nor-mais balbuciam no ritmo da sua lngua ambiente. Na verdade, algumas pesqui-sas recentes descobriram que o choro de bebs recm-nascidos transcorre conforme o ritmo e a melodia da lngua que a circunda (Wermke et al., 2011). Esses fatos parecem indicar que a aquisio da linguagem tem incio ain-da no tero materno, quando aspectos sonoros da lngua do ambiente (como o ritmo, a entoao e o acento) j pare-cem ser discriminados pelo feto.

    CURIOSIDADE

    Seu beb chora em que lngua?

    Roberto Lent ufrj

    MULTIMDIA

    EXEMPLO

  • 20 captulo 1

    seu desenvolvimento lingustico, frases com estruturas do tipo sujei-

    to e predicado semelhantes s dos adultos comeam a ser produzidas

    pelos bebs. So frases como qu pap, mais colinho, meia pa-

    pai e banho no. O interessante que os enunciados produzidos

    pelos bebs durante a fase sintagmtica no so apenas uma combi-

    nao entre duas palavras soltas. Pelo contrrio, tal como ocorre na

    fase holofrstica, essas palavras tambm assumem o valor de um ato

    comunicativo completo, cuja interpretao dependente do contex-

    to interacional e comunicativo.

    Por volta dos 30 meses de vida, as crianas j conseguem criar

    frases com extenso ilimitada, compostas por trs, quatro, seis,

    nove, dez palavras... Interessantemente, ao longo dessa fase, cha-

    mada de fase telegrfica, artigos, preposies, conjunes e pro-

    nomes esto ainda ausentes na fala infantil. Com efeito, at o ter-

    ceiro ano de vida, as palavras que as crianas inserem em frases e

    textos so sempre itens de contedoreferencial, como substantivos,

    adjetivos e verbos.

    possvel dizer que, por volta dos 4 anos de vida, a lngua que uma

    criana domina para a produo e para a compreenso da linguagem

    indistinguvel da lngua de um adulto. As nicas diferenas, claro,

    dizem respeito aos aspectos lingusticos que envolvem letramento,

    escolarizao e certas regras de comportamento social que se desen-

    volvem posteriormente, na adolescncia e na vida adulta.

    Contedo referencial:

    As partculas gramaticais (como a preposio, por exemplo), que pos-suem contedo puramente formal, s emergem na fala das crianas, de modo consistente, a partir dos 36 meses de vida embora haja intensas variaes individuais sem causa aparente regis-tradas pelos cientistas.

    CURIOSIDADEAQ

    UISI

    O

    DA LI

    NGUA

    GEM

    PRIMEIROS MESES

    DE 12 A 24 MESES

    DE 24 A 36 MESES

    1) Fase inicial a criana se comunica pelo choro (dor, fome, frio etc.);2) 6 semanas choros diferenciados e sons guturais/primitivos. quando aparecem as primeiras vogais;3) 18 semanas aparecem as primeiras consoantes (p, b, k, g) e o balbucio;4) At os 8 meses o balbucio se caracteriza pelo dobramento de slabas (mama, p. ex.) e pela imitao de sons produzidos por adultos.

    1) Utilizao das primeiras palavras, ainda sem o mesmo formato das pronunciadas por adultos (pap, p. ex.);2) Reconhecimento de nomes de alguns objetos, compreenso de ordens simples;3) Vocabulrio passa de 50 palavras e a aquisio de novos vocbulos diria;4) Produo de frases curtas (qu pap, p. ex.);5) Adaptao das palavras aos sons que conhece (como tapu para chapu, p. ex.).

    1) Uso constante de linguagem telegrfica;2) Utilizao de partculas gramaticais (artigo, preposio etc.);3) Forte expanso do vocabulrio;4) Distino de singular/plural, masculino/feminino;5) Produo de todos os fonemas;6) Tomada de conscincia quanto ao ritmo de fala, entonao (frases interrogativas, p. ex.).

  • captulo 1 21

    Infelizmente, parece exis-

    tir um fim para o perodo da

    aquisio da linguagem. Isto

    , os humanos no podem ad-

    quirir a lngua do ambiente

    to rapidamente e sem esfor-

    o em qualquer momento de

    sua vida, da infncia velhi-

    ce. O neurocientista alemo

    Eric Lenneberg denominou

    perodo crtico (ou idade crti-

    ca) a fase de desenvolvimento

    fsico e cognitivo humano no

    limite da qual a aquisio da

    linguagem deve acontecer.

    H muitas discusses

    sobre qual seria o fim des-

    sa fase, mas, como existem

    muitas variaes individuais no desenvolvimento humano, no pos-

    svel defini-lo com preciso. A maioria dos estudiosos aponta a puber-

    dade, por volta dos 12 ou 13 anos, como o momento em que a janela

    automtica para a aquisio da linguagem se fecha.

    A partir de ento, a aquisio da linguagem no mais possvel, e

    tudo o que podemos fazer para dominar uma (nova) lngua aprend-la

    por meio de estudos formais em escolas ou cursos de idioma. A linha

    divisora entre aquisio e aprendizado justamente a idade crtica.

    Formas e funes lingusticas

    Muito bem, j sabemos diferenciar linguagem e lngua, compreende-

    mos as dimenses cognitiva e sociocultural de uma lngua natural e te-

    mos noo da pequena epopeia que cada ser humano atravessa, em ten-

    ra infncia, ao longo da aquisio da(s) lngua(s) de seu ambiente. Mas e

    se perguntassem a voc para que serve uma lngua (como o portugus),

    qual seria a sua resposta? Muito provavelmente, voc diria algo como

    "para permitir a comunicao entre as pessoas". Em essncia, tal res-

    posta est correta. Contudo, a pergunta mais complexa do que parece,

    de tal modo que preciso esmiu-la um pouco mais. Faamos isso.

    A questo paraqueserveumalngua pressupe dois conceitos fun-

    damentais: (1) as lnguas possuem um conjunto de formas e (2) cada

    uma dessas formas serve para algum fim, isto , cada forma lingusti-

    ca possui uma dada funo ou um conjunto de funes. As formas exis-

    tentes em uma lngua podem ser tambm denominadas estrutura.

    Quando estudamos lingustica e falamos dos aspectos formais de

    uma lngua, estamos fazendo referncia exatamente a essa aparato

    O conceito de aquisio ope-se ao de aprendizado porque a aquisio da linguagem ocorre na infncia de maneira espontnea, natural e mesmo involuntria, enquanto o aprendizado de lnguas estrangeiras demanda do adolescente e do adulto esforo consciente e instruo mais ou menos formal.

    AUTOR

    Eric Lenneberg:

    Eric Heinz Lenneberg (1921-1975), alemo, foi um linguista e neurocientista pionei-

    ro nos estudos de aquisio da lingua-gem e psicologia cognitiva, em especial do inatismo. Curiosamente, residiu no Brasil durante sua adolescncia, quando sua famlia fugia do nazismo.

    CONCEITO

    Estrutura:

    Trata-se da superfcie ou do meio concreto, material, pelo qual uma lngua se realiza nos atos de fala humanos. Por exemplo, uma palavra (como casa) e uma estrutura sinttica (como esta minha casa) so ilustraes de formas que usamos quando produzimos e com-preendemos enunciados em uma lngua.

    o automvel derrapou

    Det N

    SN SV

    V

    F

  • 22 captulo 1

    estrutural que precisamos utilizar para que a lngua tome vida em um

    ato lingustico qualquer. Por outro lado, sabemos que as formas de

    uma lngua no existem por si mesmas. Com efeito, a razo de ser de

    cada forma lingustica desempenhar determinada funo.

    Para que voc entenda melhor a dualidade entre forma e funo,

    veja o quadro a seguir:

    OCORRNCIA FORMA

    FONTICA

    PROSDIA

    VOZ VERBAL

    FORMAO DE PALAVRAS

    FUNO

    a) Ex.: forma [s]

    b) Ex.: forma [f]

    c) Ex.: forma [m]

    a) Ascendente

    b) Descendente

    Acrscimo de sufixo

    diminutivo

    Ex.: [casa], [casinha]

    a) Voz ativa

    Ex.: Joo cometeu erros

    b) Voz passiva

    Ex.: Erros foram

    cometidos

    Contraste na significao

    a) [sorte]

    b) [forte]

    c) [morte]

    a) Formular pergunta

    Joo saiu?

    b) Formular declarao

    Joo saiu!

    a) Demonstrar afeto

    b) Demonstrar desprezo

    a) Destacar o

    responsvel

    b) Esconder o

    responsvel

    Uma forma lingustica (um som, uma entonao, um

    sufixo, uma voz verbal etc.) a maneira pela qual uma

    dada funo se realiza materialmente na lngua.

    Se voc compreendeu o que so formas e funes lingusticas, tal-

    vez possa, agora, repensar a sua resposta questo paraque serve

    umalngua(comooportugus)? Na verdade, as formas existentes em

    uma lngua se prestam a inmeras funes. No possvel descre-

    ver todas elas neste captulo, mas podemos dizer a voc que, em sua

    maioria, as funes a que se destinam as formas lingusticas so emi-

    nentemente comunicativas.

    por isso que importantes estudiosos, como o j citado Steven

    Pinker, acreditam que as lnguas servem para a comunicao huma-

    na. No obstante, cientistas no menos ilustres, como o tambm j men-

    cionado Noam Chomsky, um dos linguistas mais influentes de todos os

    tempos, destacam outras funes lingusticas que so to importantes

    CURIOSIDADE

    Funo:

    O escritor Graciliano Ramos (1892-1953) compreendeu isso perfeitamente ao

    afirmar que A palavra no foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer. No caso, o dizer da palavra justamente a sua funo. Em outras palavras, uma forma lingustica no existe seno para provocar algum efeito de significado ou de sentido, isto , uma forma no existe seno pela sua funo.

  • captulo 1 23

    ou ainda mais vitais do que a comunicao, tais como a organizao do

    pensamento e a criao do conhecimento individual.

    Isso quer dizer que, ainda que a comunicao possa ser a primeira

    e mais fundamental fun-

    o das lnguas, no pode-

    mos desprezar as outras

    funes, tais como a meta-

    cognitiva, isto , a funo

    de organizao do pensa-

    mento, e a instrumental,

    ou seja, a funo de ad-

    quirir e organizar outros

    tipos de cognio, como o

    conhecimento matemti-

    co, o conhecimento sobre

    a Histria, o conhecimento sobre as relaes sociais etc.

    Atento natureza comunicativa das lnguas, KarlBhler foi um

    dos primeiros a tentar sintetizar, de maneira esquemtica, as corre-

    laes entre linguagem e comunicao. Foi ele que destacou que os

    usos da linguagem pressupem (1) um emissor, (2) uma mensagem e

    (3) um destinatrio.

    Esse modelo tripartido de comunicao se tornou mais complexo na

    anlise do linguista russo RomanJakobson, que introduziu as noes de

    (4) referente, de (5) canal comunicativo e de (6) cdigo lingustico.

    desse modelo de Bhler e Jakobson que se derivam as famosas

    funes da linguagem, que so amplamente estudadas no ensino es-

    colar: (1) a funo emotiva, em que o emissor da mensagem se des-

    taca; (2) a funo potica, em que a prpria mensagem transmitida

    destacada; (3) a funo conativa, na qual o destinatrio da mensa-

    gem assume a funo central; (4) a funo referencial, em que o re-

    ferente o foco da comunicao; (5) a funo ftica, em que o canal

    comunicativo meramente testado e (6) a funo metalingustica,

    em que se estabelece quando o prprio cdigo lingustico (a lngua) o

    fator de destaque na comunicao.

    Na realidade, as funes lingusticas, entendidas como as funes que determi-

    nadas formas podem desempenhar nos usos da lngua, so muito mais nume-

    rosas do que essas seis. Todavia, tal modelo parece ser um bom caminho para

    comearmos a entender as funes comunicativas e expressivas que as formas

    da linguagem humana podem desempenhar.

    Se voc for uma pessoa curiosa, talvez tenha pensado: ser que exis-

    te alguma relao natural entre determinada forma e sua respectiva

    funo? Ou ser que formas e funes lingusticas so associadas de

    De fato, muitas vezes, ns, humanos, usamos a lngua internamente, em voz alta ou em silncio, como se falssemos com o nosso prprio eu e isso, claro, no pode ser considerado literalmente comunicao.

    AUTOR

    AUTOR

    Karl Bhler:

    Karl Bhler (1879-1963), linguista e psiclogo alemo, sistematizou as

    funes da linguagem tomando como ponto de partida a representao caracterstica, por excelncia, da lngua.

    Roman Jakobson:

    Roman Osipovich Jakobson (1896-1982) foi um pensador rus-so que se tornou um

    dos mais renomados linguistas de todos os tempos, cujos conceitos ainda so usados e pesquisados. Jakobson esteve no Brasil nos anos 1970.

    RESUMO

  • 24 captulo 1

    uma maneira um tanto imprevisvel que precisam ser memorizadas

    pelos falantes de determinada comunidade? Boa pergunta.

    Na verdade, esse um questionamento milenar que remonta

    antiga Grcia clssica. Os filsofos gregos que se dedicavam ao es-

    tudo da linguagem dividiam-se, basicamente, entre os analogistas e

    os anomalistas. Em termos muito simples, os analogistas afirmavam

    que as formas da linguagem eram anlogas s suas funes e era so-

    mente em razo da passagem do tempo que, para as novas geraes

    de falantes, a analogia entre forma e funo deixava de ser percebida.

    Por seu turno, os anomalistas sustentavam que as relaes entre

    forma e funo sempre foram totalmente acidentais e improvisadas,

    um verdadeiro acordo social tacitamente estabelecido entre os falan-

    tes de uma lngua humana. Contemporaneamente, a controvrsia

    entre analogistas e anomalistas reanalisada na oposio iconicida-

    de versus arbitrariedade. Vejamos o que isso.

    Arbitrariedade

    Dizer que uma forma est arbitrariamente associada a uma funo signi-

    fica assumir que no possvel deduzir espontaneamente a que funo

    determinada forma se presta. Sendo assim, torna-se preciso aprender e

    memorizar, caso a caso, a correspondncia entre cada forma e sua respec-

    tiva funo em uma dada lngua, tal como apregoavam os anomalistas.

    A Escola de Atenas uma das mais famosas pinturas do renascentista italiano Rafael e representa a Academia de Plato. Foi pintada entre 1509 e 1510 sob encomenda do Vaticano.

    IMAGEM

  • captulo 1 25

    Um bom exemplo disso a relao existente entre o significante

    (forma) e o significado (contedo) de cada uma das palavras do lxico

    do portugus. S sabemos que a forma [kaza] (que escrevemos casa)

    deve ser associada ao contedo [tipo de moradia] porque aprendemos

    isso durante a aquisio da linguagem. Mas a relao entre forma e

    contedo nessa palavra totalmente arbitrria, isto , no natural ou

    motivada por algum princpio lgico.

    Isso tanto verdade que, em outras lnguas, o mesmo significa-

    do (contedo) pode ser codificado por outro significante (forma), tal

    como o termo house, que em ingls a forma correspondente do

    contedo [tipo de moradia].

    Por exemplo, a aparncia fsica

    de uma casa no se assemelha

    em nada forma [kaza], em portu-

    gus, ou forma [hauz], em ingls.

    Com efeito, a lngua portuguesa,

    no curso de sua histria, poderia

    ter escolhido arbitrariamente qual-

    quer outra forma para expressar o

    conceito [tipo de moradia]. A esco-

    lha por [kaza] foi arbitrria.

    Vejamos outros exemplos de ar-

    bitrariedade entre forma e funo.

    Em lngua portuguesa, a forma

    de entonao ascendente ao fim

    da frase desempenha a funo de

    formular perguntas. Dizemos que

    a relao entre essa forma e essa funo arbitrria porque no h

    nada natural entre uma subida meldica e a expresso de pergun-

    tas. Trata-se de uma associao arbitrria que todos os falantes do

    portugus precisam aprender e memorizar.

    Tambm a sequncia sujeito > verbo > objeto (svo) uma for-

    ma arbitrria de codificar, em uma dada frase, a relao entre um

    agente, uma ao e um paciente. Embora a ns, falantes de portu-

    gus, parea razovel pensar em codificar os participantes de uma

    ao na ordem quem fez o que a quem, no existe nada que torne

    essa ordem mais natural do que outra: trata-se, novamente, de

    uma arbitrariedade.

    Iconicidade

    Pelo que expusemos, voc talvez j possa deduzir que a iconicidade o

    justo oposto da arbitrariedade. Sendo assim, uma forma icnica quan-

    do reflete, com clareza, a funo a que se destina, conforme pensavam

    os analogistas. Um rpido exemplo pode bem ilustrar o conceito.

    Em outras palavras, ao afirmarmos que uma forma arbitrria em relao sua funo, estamos dizendo que no existem semelhanas entre o feitio de determinada forma e o seu respectivo contedo.

    Sequncia:

    De fato, a maioria das lnguas do mundo apresenta a ordenao sujeito > objeto > verbo (sov) e, assim, codifica na frase os participantes de uma ao na sequncia quem fez a quem o qu, em outro tipo de seleo arbitrria. A ttulo de curiosidade, o japo-ns uma lngua sov; o mandarim, svo.

    CURIOSIDADE

  • 26 captulo 1

    Imagine que uma pessoa lhe tenha apresentado desculpas por

    determinado incmodo. Essa pessoa teria discursado por um lon-

    go tempo, mas, ao fim e ao cabo, no teria dito nada que, de fato,

    reparasse o problema. Voc poderia descrever a tediosa conversa

    com essa pessoa dizendo algo como Fulano falou, falou, falou e

    no disse nada. Ora, nessa frase a repetio do verbo falar pra-

    ticamente um cone, isto , um representao evidente do fato de a

    pessoa ter falado repetidamente. Trata-se, portanto, de uma forma

    (um verbo repetido) que, com clareza, reflete a sua funo (indicar

    a repetio de um ato).

    Outro exemplo de iconicidade o alongamento de vogais que

    podemos usar em determinada palavra quando queremos enfati-

    zar o tamanho ou a durao de algo. Se voc quer dizer que alguma

    coisa exageradamente grande, pode dizer algo como Era muito

    graaaaaaaaaaande. Mais uma vez, a forma (alongamento da vogal)

    reflete, claramente, sua funo. Tambm no plano do lxico, na re-

    lao entre significante e significado, existem casos de iconicidade.

    Trata-se das famosas onomatopeias: palavras cuja forma se asseme-

    lha ao contedo representado.

    As relaes icnicas entre forma e funo so bastante regula-

    res, tanto que h muitos estudiosos, no por acaso denominados

    funcionalistas, que defendem a ideia segundo a qual as formas exis-

    tentes nas lnguas, em grande medida, refletem as funes a que se

    destinam. A motivao funcional para a existncia de certas formas

    pode ser, de fato, encontrada em todos os domnios de uma lngua,

    tal como vemos nos seguintes exemplos do portugus:

    Onomatopeias:

    A forma tique-taque possui uma ex-presso fontica parecida com o som das batidas de um relgio. Da mesma maneira, miar um verbo inspirado na forma acstica do miado dos gatos.

    Tim-tim um substantivo que, iconi-camente, representa o som produzido pelo rpido toque entre taas quando se faz um brinde.

    CURIOSIDADE

    EXEMPLO

    Fonologia

    Pense na palavra sussurrar que se parece com os sons emitidos quando algum su... ssu... rra.

    Morfologia

    Pense, por exemplo, nas palavras compos-tas, como saca-rolha, guarda-roupa, cujas funes so rapidamente dedutveis pela anlise de suas formas constituintes.

    Semntica

    Lembre-se de expres-ses como p-da-me-sa ou brao da cadei-ra, que transferem para objetos a estrutura do corpo humano e, assim, iconicamente, permitem a codificao formal de suas funes.

    Sintaxe

    Tal como se v na famo-sa sequncia atribuda ao romano Jlio Csar, Vim, vi e venci, que re-flete, de forma icnica, a sequncia temporal com que os atos se de-ram: o general primeiro veio, depois, viu para, enfim, vencer.

    Se voc est curioso para saber quem vence a batalha entre analogis-

    tas e anomalistas, saiba que temos, aqui, um empate tcnico. As lnguas

    humanas esto repletas de casos claros de arbitrariedade e casos eviden-

    tes de iconicidade. Ambos os fenmenos so encontrados em todas as

    lnguas quando cotejamos formas e funes.

  • captulo 1 27

    Com efeito, a anlise mais interessante que os cientistas da lingua-

    gem vm apresentando ao longo dos ltimos anos interpretar a rela-

    o entre arbitrariedade e iconicidade em uma espcie de continuum,

    isto , como uma sequncia gradual de vrias etapas que separam um

    extremo de arbitrariedade, de um lado, e um extremo de iconicidade

    de outro mais ou menos como representamos a seguir:

    [+ icnico] [+/- icnico] [+/- arbitrrio] [+ arbitrrio]

    Sendo assim, no devemos pensar que as relaes entre forma e

    funo em uma lngua sejam sempre uma questo de tudo ou nada; ou

    temos arbitrariedade ou temos iconicidade. A escalaridade parece ser

    uma boa chave para entendermos a dualidade forma e funo. Pense, por

    exemplo, que, no uso de uma lngua como o portugus, podemos desli-

    zar rapidamente da forma dos substantivos para a forma dos adjetivos,

    dependendo da funo de um item no interior de um contextosinttico.

    Em suma, voc deve ter em mente que a gradincia no mapeamen-

    to entre formas e funes lingusticas ocorre de maneira generalizada

    tanto no lxico quanto na gramtica de uma lngua.

    A linguagem humana em ao

    Para finalizarmos este captulo, passemos a descrever e analisar

    alguns fenmenos sociocognitivos que ganham vida todas as vezes

    em que colocamos a lngua em ao nas inmeras tarefas comuni-

    cativas e interacionais de nossa vida cotidiana. Antes de iniciarmos

    essa anlise, devemos explicitar que existem duas modalidades fun-

    damentais no uso da linguagem humana: a produo e a compreen-

    so. Alm disso, no podemos nos esquecer de que, em sociedades

    letradas, como o caso da maior parte das comunidades brasilei-

    ras, a lngua pode se realizar pelo canal oral ou pelo canal escrito.

    Sendo assim, as quatro habilidades sociocognitivas envolvidas no

    uso de uma lngua natural so a produo oral, a compreenso oral,

    a produo escrita e a compreenso escrita.

    Comecemos pela produo lingustica. Essa habilidade demanda

    do falante (ou do escritor) uma srie de tarefas cognitivas que se ar-

    ticulam dinamicamente ao contexto social da interao lingustica.

    Por exemplo, para produzir a fala (ou a escrita), uma pessoa deve,

    primeiramente, selecionar de sua memria de longo prazo os itens

    lexicais que expressaro os conceitos que deseja veicular no ato de

    linguagem. Essa seleo de palavras na mente o que os psicolin-

    guistas chamam de planejamento de fala ou planejamento conceitual.

    Vejamos como isso ocorre.

    Contexto sinttico:

    Vemos isso acontecer na clebre ci-tao de Memrias Pstumas de Brs Cubas, de Machado de Assis: em [um autor defunto], autor substantivo e defunto adjetivo, mas, em [um defunto autor], defunto substantivo e autor adjetivo. Do mesmo modo, formas como furado podem ser analisadas como adjetivos ou como verbos (na forma de partic-pio), dependendo de sua funo na frase, tal como vemos acontecer em isso papo furado versus a roupa foi furada pelo alfinete, respectivamente. Na verdade, mesmo certas formas verbais, dependendo de sua funo na frase, podem ser reanalisadas como substantivos, tal como acontece na expresso sala de jantar.

    EXEMPLO

  • 28 captulo 1

    Esquematicamente, podemos representar a produo lingustica oral pela sequncia

    ilustrada a seguir:

    Plano Conceitual Seleo Lexical Combinao Sinttica Expresso Fontica

    Voc deve ter notado que acabamos de descrever a produo da fala fazendo com

    que ela parecesse semelhante produo da escrita. Pelo que sugerimos, a diferena

    entre essas duas modalidades residiria no simples fato de que, na escrita, usaramos

    grafemas para representar a expresso fontica do texto. No entanto, essa descrio ,

    na verdade, uma supersimplificao.

    De fato, a produo oral muito diferente da produo escrita. De uma maneira bem re-

    sumida, podemos dizer que as pessoas, quando escrevem, esto muito mais conscientes do

    uso que fazem da linguagem, sendo, por isso mesmo, bem mais atentas e vigilantes tanto em

    relao ao que dizem quanto em relao a como dizem.

  • captulo 1 29

    A tomada de conscincia e a vigilncia, comuns na produo es-

    crita, esto em flagrante contraste com o carter mais espontneo e

    automtico da fala natural. No por outra razo que a escrita fluen-

    te, tpica das pessoas bem escolarizadas e treinadas nessa arte, de-

    manda muitos anos de aprendizado formal, desde a alfabetizao at

    o letramento profundo na vida adulta.

    Por sua vez, a produo fluente da fala emerge j em crianas bem

    pequenas e se torna visvel em qualquer conversa oral entre humanos,

    independente da escolarizao ou do letramento dos sujeitos falantes.

    Portanto, atente para essa ressalva: apesar de os mecanismos bsicos envolvi-

    dos na produo oral e escrita serem semelhantes, falar e escrever so fenme-

    nos sociocognitivos dramaticamente diferentes.

    No eixo da compreenso lingustica, o ouvinte (ou leitor) deve per-

    ceber as formas manifestadas no sinal da fala (ou da escrita) de seu

    interlocutor para, ento, acessar, em sua memria de longo prazo, os

    contedos por elas evocados. Podemos dizer que a compreenso o

    espelho invertido da produo. Vejamos por qu.

    Na produo lingustica, comeamos com um plano conceitual.

    Esse plano nos leva a dizer certas coisas por meio de dadas palavras,

    as quais so inseridas nas frases que

    conduzem os textos. J na compreen-

    so da linguagem, tudo comea pela

    deteco, nos textos, dos elementos

    do ato lingustico, tais como frases e

    palavras. com base na identificao

    desses elementos que se torna poss-

    vel compreender o plano conceitual e

    os valores comunicativos que move-

    ram a produo do interlocutor.

    Mais uma vez, as semelhanas en-

    tre oralidade e escrita esto aqui exa-

    geradas. No caso, a especificidade da

    compreenso da escrita diria respeito, de maneira muito simplifica-

    da, apenas decodificao ortogrfica (leitura) que faria a funo da

    percepo fontica.

    Infelizmente, no podemos tratar de tantos detalhes no espao li-

    mitado deste captulo, mas, se voc estiver interessado em compreen-

    der as mincias que diferenciam oralidade e escrita, sugerimos a leitu-

    ra do excelente livro Osneurniosdaleitura (2012), do neurocientista

    francs Stanislas Dehaene.

    Para sintetizar o que acabamos de dizer sobre a produo e a compre-

    enso lingustica, a figura a seguir parece ser um bom recurso didtico.

    RESUMO

    Na realidade, porm, a compreenso lingustica pela leitura muito mais complexa do que a decodificao ortogrfica sugere.

    Os neurnios da leitura:

    Segundo o autor, as pesquisas realizadas pela psicologia cognitiva experimental comprovaram o centro de reconhecimento da palavra escrita no crebro. Tal descoberta afeta profundamente as metodologias em-pregadas nas escolas, que devero rever suas abordagens.

    LEITURA

  • 30 captulo 1

    A B

    Note que as setas que correm da esquerda para a direita indicam que o plano

    conceitual presente na mente de A transformado na informao lingustica vei-

    culada para B. Por sua vez, B recebe essa informao lingustica e, rapidamen-

    te, consegue interpretar os conceitos ali representados. A figura interessante,

    tambm, porque, nela, podemos perceber que a produo e a compreenso da

    linguagem so automaticamente intercambiveis no fluxo da fala normal. Pelas

    setas que correm da direita para a esquerda, notamos que, agora, B quem produz

    a informao lingustica que ser veiculada para A.

    A enunciao

    Na dinmica da produo e da com-

    preenso da linguagem, o intercm-

    bio de posies entre aquele que fala

    e aquele que ouve d origem ao fen-

    meno conhecido como enunciao.

    Na enunciao, a pessoa que pro-

    duz a fala (ou a escrita) o enunciador

    a primeira pessoa do discurso. J a

    pessoa que compreende a fala (ou a escrita) o enunciatrio a segunda

    pessoa do discurso, a quem a fala (ou a escrita) se destina. Chamamos

    de terceira pessoa, ou de no pessoa em um termo interessante formu-

    lado pelo linguista francs mileBenveniste , os objetos e as pessoas

    sobre os quais falamos (ou escrevemos) durante a enunciao.

    Em termos lingusticos e comunicativos, interessante notar que,

    na enunciao explcita na produo da linguagem, as chamadas

    pessoas do discurso (os pronomes pessoais que voc, certamente,

    conhece das aulas de portugus) so, justamente, categorias lingus-

    ticas que indicam a figura da primeira pessoa (eu, ns), da segunda

    pessoa (voc, vocs) e da terceira pessoa (ele, ela, eles, elas e todas as

    expresses referenciais, como os substantivos).

    EXEMPLO

    A enunciao deve ser compreendida como o ato de criao de um enunciado lingustico.

    AUTOR

    mile Benveniste:

    mile Benveniste (1902-1976) foi um linguista francs, cuja principal obra, Probl-

    mes de linguistique gnrale, ressalta a ideia de ocorrncia de dois planos de enunciao o da histria e o do dis-curso , atravs dos quais demonstra a oposio entre a no pessoa (terceira) e as pessoas (eu-tu).

  • captulo 1 31

    com base na existncia do enunciador, do enunciatrio e dos referentes do

    discurso que diversas expresses lingusticas so colocadas sob perspectiva du-

    rante a enunciao.

    Por exemplo, pronomes como [meu/minha/nosso/nossa] indicam

    a posse de algo em relao primeira pessoa do discurso, enquanto

    pronomes como [seu/seus/sua/suas] indicam a posse relativa segun-

    da pessoa, e expresses como [dele/deles/dela/delas] denotam a posse

    da terceira pessoa. Na verdade, mesmo o espao ocupado pelas pessoas

    do discurso posto em perspectiva durante a enunciao. Assim, ter-

    mos como [aqui/este] indicam o espao da primeira pessoa, enquanto

    [a/esse] denotam o espao da segunda pessoa, e [l/aquele] apontam

    o espao do referente, o lugar da terceira pessoa.

    De maneira muito interessante, o prprio tempo que utilizamos

    quando produzimos e compreendemos a linguagem s assume algu-

    ma interpretao coerente quando colocado sob perspectiva duran-

    te a enunciao. Desse modo, sabemos que [ontem] um termo que

    denota um momento anterior ao tempo da enunciao, ao passo que

    [hoje] indica o momento que coincide com a criao do enunciado,

    enquanto [amanh] marca um tempofuturo que acontecer depois

    de a enunciao ter sido concluda.

    Para que voc tenha uma boa noo de como pessoa, espao e tempo so ca-

    tegorias lingusticas cujas referncia e interpretao dependem, crucialmente, da

    enunciao, imagine que voc esteja andando pelo centro de sua cidade, quando, de

    repente, encontra um bilhete que flutua em sua direo.

    Como pessoa curiosa, voc abre o bilhete e encontra a seguinte mensagem:

    Eu estive aqui hoje. Ora, voc ser capaz de compreender o significado bsico

    dessas expresses (afinal, possvel depreender do bilhete que algum esteve

    em algum lugar, em algum dia), mas no ser possvel identificar o sentido do

    enunciado, justamente porque voc no participou da enunciao e, portanto,

    no conseguir encontrar o referente da primeira pessoa (eu) nem poder deduzir

    o lugar (aqui) que ela ocupava ao produzir o bilhete, tampouco descobrir qual foi

    o tempo presente (hoje) naquela enunciao.

    Algo totalmente diferente aconteceria se o bilhete contivesse uma frase como

    A presidente Dilma esteve na Prefeitura do Rio de Janeiro em 04 de maio. Nesse

    caso, a identificao referencial da pessoa, do espao e do tempo do enunciado

    no so totalmente dependentes do contexto estabelecido na enunciao. Sabemos

    apenas que a produo dessa frase ocorreu depois da visita da Presidente Prefei-

    tura e deduzimos isso em funo do tempo verbal passado expresso em esteve.

    ATENO

    EXEMPLO

    Tempo futuro:

    Por que a frase Fiado, s amanh engraada? Pela perspectiva da enun-ciao, esse dizer, na prtica, torna a venda a crdito impossvel: o amanh, seja quando for lido, sempre desloca para o dia posterior e assim por dian-te, ad infinitum.

    CURIOSIDADE

  • 32 captulo 1

    Das pessoas do discurso que so acionadas sempre que usamos a lin-

    guagem para a produo e a compreenso, a mais curiosa, em termos

    cientficos, a terceira. Como dissemos, a terceira pessoa , na verdade,

    a no pessoa, isto , a ausncia da primeira e da segunda pessoas. Tra-

    ta-se doreferentediscursivo de um dado uso da lngua.

    A funo referencial , muitas vezes, considerada a mais pro-

    eminente dentre as funes da linguagem, j que os humanos ti-

    picamente usam a lngua para falar do mundo, seus objetos, suas

    aes e pessoas. Todavia, a proeminncia da funo referencial

    pode nos passar a falsa ideia de que a linguagem humana, quando

    colocada em ao, seja essencialmente referencial. bem verdade

    que muitos usos lingusticos so objetivos, isto , focam-se no obje-

    to (terceira pessoa) de maneira puramente referencial. Entretanto,

    grande parte da experincia lingustica humana metafrica. Vejamos

    o que isso quer dizer.

    Funo referencial x metfora

    Nossa tradio escolar se esfora para nos fazer crer que o uso co-

    tidiano e comum da linguagem seja referencial, isto , somos ensi-

    nados que, quando produzimos e compreendemos a fala e a escrita,

    fazemos referncias a coisas e pessoas de maneira mais ou menos

    objetiva. A linguagem metafrica seria, ento, caracterstica dos usos

    lingusticos mais elaborados e artsticos, como a poesia e os roman-

    ces. Essa ideia reforada quando, na escola, estudamos as figuras

    de linguagem e ficamos com a impresso de que elas s acontecem

    nos textos literrios.

    Na verdade, o uso metafrico da linguagem no exclusividade da

    arte. Com efeito, todos os seres humanos comuns, no dia a dia, tambm

    utilizam metforas ao produzir enunciados lingusticos. Por exem-

    plo, quando dizemos

    alguma coisa como

    Decidirei se vou ca-

    sar ou no s mais

    frente ao longo da

    minha vida estamos

    fazendo referncia a

    uma realidade tem-

    poral (a passagem

    da vida) por meio de

    uma categoria espa-

    cial (a localizao no

    espao frente). Quando produzimos frases assim, estamos, na

    verdade, cruzando domnios de sentidos para fazer referncia quilo

    que queremos dizer.

    CONCEITO

    Referente discursivo:

    O j citado linguista Roman Jackob-son havia destacado a existncia da no pessoa ao batizar com o termo referencial a funo da linguagem que privilegia a terceira pessoa como o referente do discurso.

    No exemplo, estamos transferindo propriedades do espao para fazer referncia noo de tempo. Precisamente esse o princpio de toda a linguagem metafrica: a transferncia de domnios de significados.

  • captulo 1 33

    A linguagem metafrica , na verdade, generalizada nos usos lingusticos. Podemos di-

    zer que ela a regra, e no a exceo, quando produzimos e compreendemos a linguagem

    humana. Um uso de linguagem estritamente objetivo e referencial raro. S o encontra-

    mos em abundncia no discurso cientfico das reas da natureza, como a Fsica, a Qumica

    e a Biologia. Mesmo em outras reas da cincia, como a Economia, encontramos fartos

    exemplos de linguagem metafrica em frases como O mercado est aquecido, Os preos

    esto nas alturas, Esperamos uma queda brusca na taxa de juros etc. Para os cidados

    comuns, em seu cotidiano lingustico, a metfora muito mais do que uma mera figura de

    estilo: ela um produtivo recurso natural de pensamento e de linguagem.

    Para concluir

    Neste primeiro captulo, comeamos nossa pequena incurso pelo fantstico e complexo mun-

    do da linguagem humana. Aprendemos, aqui, diversos conceitos importantes, como a dife-

    rena entre linguagem e lngua, a distino entre Lngua-i e Lngua-e, as noes e as fases da

    aquisio da linguagem, a oposio entre formas e funes lingusticas e os fundamentos da

    linguagem em ao. Nosso objetivo, ao longo do captulo, foi apresentar a voc uma viso pano-

    rmica dos principais temas e figuras do estudo cientfico da linguagem, o qual tem em conta a

    interao dinmica entre sociedade e cognio. Voc ter boas oportunidades de ampliar seus

    conhecimentos sobre o assunto ao consultar os vdeos e os livros que indicamos. Bons estudos!

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    IMAGENS DO CAPTULOp. 11 Cloud Tainara Oliveira Estcio

    p. 12 Ferdinand de Saussure Autor desconhecido Wikimedia . cc

    p. 12 Nice dog Michael Sagmller stock.xchng

    p. 15 Quatro Paulo Vitor Bastos Estcio

    p. 16 Noam Chomsky Duncan Rawlinson Wikimedia . cc

    p. 17 Bandeira do Paraguai Domnio pblico

    p. 18 Steven Pinker Charles Gauthier charlesgauthier.com

    p. 19 Bebs Paulo Vitor Bastos Estcio

    p. 20 Pequeno Paulo Vitor Bastos Estcio

    p. 20 Mdio Paulo Vitor Bastos Estcio

    p. 20 Grande Paulo Vitor Bastos Estcio

    p. 21 Eric Lenneberg Autor desconhecido

    p. 22 Graciliano Ramos Autor desconhecido Wikimedia . cc

    p. 23 Karl Bhler Autor desconhecido cmu

    p. 23 Roman Jakobson Autor desconhecido Wikimedia cc

    p. 24 A Escola de Atenas Rafael Sanzio Wikimedia cc

    p. 26 Champagne Chin Chin Roger Kirby stock.xchng

    p. 29 Os neurnios da leitura Stanislas Dehaene

    p. 30 mile Benveniste Autor desconhecido Jacket Magazine

    p. 31 Fiado Tainara Oliveira . Estcio

    CHOMSKY, N. O conhecimento da lngua. Sua natureza, origem e uso. Lisboa: Caminho, 1986.

    DEHAENE, S. Os neurnios da leitura. Par: Pense, 2012.

    PINKER, S. O instinto da linguagem: como a mente cria a linguagem. So Paulo: Martins Fontes, 2003.

    SAUSSURE, F. [1916]. Curso de lingustica geral. So Paulo: Cultrix, 2004.

    WERMKE, K. et al. Cry Melody in 2 Month Old Infants With and Without Clefts. The Cleft Palate-Craniofacial Journal,

    v. 48, n. 3, p. 321330, 2011.

  • Lngua e variao lingustica

    ivo da costa do rosrio

    2

  • 36 captulo 2

    Neste captulo, vamos discutir as relaes entre lngua e usurios da

    lngua. Para iniciar a abordagem desse assunto, leia o texto a seguir:

    No tenho sabena,

    pois nunca estudei,

    apenas eu sei

    o meu nome assin.

    Meu pai, coitadinho,

    vivia sem cobre

    e o fio do pobre

    no pode estud.

    Voc j conhecia esse texto? Consegue reconhecer o estilo de escrita des-

    se poeta? Quem escreveu esses versos foi Antnio Gonalves da Silva,

    mais conhecido como Patativa do Assar, um dos mais aplaudidos poetas e

    compositores brasileiros, reconhecido inclusive internacionalmente.

    primeira vista, voc deve ter estranhado a linguagem empregada

    pelo poeta. Afinal, h vrias palavras e construes que no esto em

    conformidade com a ortografia oficial da lngua portuguesa, ou seja,

    com a linguagem exigida, por exemplo, pelas gramticas normativas.

    Voc acha que, por conta disso, Patativa do Assar falava errado? Existe

    uma maneira certa de falar e escrever? So essas questes, entre ou-

    tras, que vamos discutir neste captulo.

    Papel e status dos interlocutores na comunidade lingustica

    A lngua , sem dvi-

    da, o meio mais efi-

    caz de comunicao

    entre as pessoas. Por

    meio da lngua, os seres humanos, de todos os tempos e lugares,

    estabeleceram e estabelecem relaes sociais de diferentes manei-

    ras. Sendo assim, podemos afirmar que o uso da lngua reflete, em

    parte, a estruturao de uma dada sociedade.

    AUTOR

    Antnio Gonalves da Silva:

    Patativa de Assar (Assar, ce, 1909-2002) alfabetizou-se

    aos 12 anos e, a partir de ento, come-ou a fazer repentes e poemas. O nome Patativa faz referncia a uma ave amaznica de canto triste e meldico. Antnio Gonalves da Silva escreveu diversos livros, tambm foi nomeado cinco vezes Doutor Honoris Causa em universidades brasileiras.

    O uso da lngua elemento fundamental para a construo da sociedade.

    Lngua e variao lingustica2

  • captulo 2 37

    Em outras palavras, s existem as lnguas porque existem seres humanos que as

    falam em sociedade, com propsitos diversos. E, ao estabelecer relaes sociais

    no trabalho, na escola, na igreja, no sindicato, na conversa informal e em vrias

    outras instncias , a lngua vai se moldando s necessidades comunicativas dos

    falantes e ao contexto da fala.

    De fato, as mudanas na sociedade costumam provocar mudanas tam-

    bm nos sistemaslingusticos, pois todas as lnguas naturalmente existem

    no seio de uma sociedade, que a (re)processa e a (re)elabora continuamente.

    Propsitos da lngua: exemplificando pela modalizao

    At o momento estamos falando de aspectos relacionados lngua e

    sociedade. Para comear a aprofundar o tema, traremos uma breve

    noo sobre modalidade, que o ajudar a entender como o falante

    utiliza a lngua para se relacionar com o contexto que o cerca.

    Entende-se por modalidade os recursos da lngua utilizados para expressar a

    atitude do locutor, nos contedos, em relao ao interlocutor. H dois tipos prin-

    cipais de modalidades: a epistmica e a dentica.

    Na modalidade epistmica, com base no grau de conhecimento que

    possui, um falante expressa sua atitude em relao verdade ou falsi-

    dade do contedo de seu enunciado. Os valores epistmicos podem ser de

    certeza, probabilidade ou possibilidade. Vamos a um exemplo?

    RESUMO

    RESUMO

    EXEMPLO

    Sistemas lingusticos:

    Com o advento da tecnologia, por exemplo, muitas pessoas inseriram em seus vocabulrios palavras at ento inexistentes ou de pouca frequncia de uso. Assim, caminhando pela rua ou conversando, comum ouvirmos que Fulano acessou a web, torpedos foram trocados, novos tablets foram lanados, d um google para ver etc.

    CURIOSIDADE

    O estudante foi aprovado na disciplina.CERTEZAo locutor se compromete com a veracidade da informao

    O estudante deve ter sido aprovado na disciplina. PROBABILIDADEo uso de deve condiciona a verdade, o locutor infere que tenha ocorrido

    O estudante pode ter sido aprovado na disciplina.POSSIBILIDADEo locutor no assume compromisso em relao verdade

  • 38 captulo 2

    Na modalidade dentica, um locutor exprime juzos, procurando

    agir sobre o seu interlocutor, impondo, proibindo ou autorizando a

    realizao de algo em um tempo necessariamente posterior ao dis-

    curso. Estabelece-se uma relao hierrquica entre locutor e interlo-

    cutor. Tradicionalmente, a modalidade dentica divide-se em valores

    de obrigao e valores de permisso. Veja:

    Saia daqui, agora!Agora, voc no vai sair.

    O valor modal de obrigao ocorre quando o locutor impe ou probe a realizao de uma ao ao interlocutor.

    S sai, se terminar antes. Se terminar, voc pode sair.

    O valor modal de permisso ocorre quando o locutor define e/ou oferece escolhas ao interlocutor para realizar uma ao.

    A modalidade, tanto epistmica quanto dentica, serve para aten-

    der, como vimos, a necessidades comunicativas. Afinal, informar,

    descrever, contar, ordenar, permitir, proibir, impor etc. so aes

    tpicas veiculadas pelas lnguas humanas. Elas dependem da situao

    comunicativa e, muitas vezes, da intencionalidade do falante.

    Usamos a lngua no s para nos comunicarmos e articularmos informaes

    mas tambm para agirmos sobre nossos interlocutores e at mesmo para con-

    trolar o nvel de comprometimento ou de verdade usado nas declaraes que

    fazemos cotidianamente.

    Transformaes na trajetria da lngua: mudana e variao

    Esse processo de adap-

    tao da lngua aos

    propsitos do falante,

    que no est restrito

    somente modalida-

    de, provoca dois fenmenos naturais atestados em todos os lugares e em

    todos os tempos. Trata-se da mudana e da variao lingustica (iremos

    enfatizar a variao ao longo deste captulo).

    EXEMPLO

    RESUMO

    Mudana:

    A expresso vossa merc, como sabemos, no mais utilizada no portugus atual. Atualmente utiliza-mos o pronome voc para substituir essa expresso. Portanto, houve um processo de mudana, transformando, ao longo do tempo, a expresso vossa merc em voc.

    CURIOSIDADE

    Por mudana, devemos entender as transformaes sofridas pelas lnguas ao longo do tempo.

  • captulo 2 39

    Pesquisadores vm estudando j h muito tempo essas transfor-

    maes na trajetria da lngua, gerando um nmero bastante expres-

    sivo de publicaes acerca desse assunto. Esses estudos, que tm

    como objetivo analisar as mudanas da lngua ao longo do tempo,

    so chamados estudos diacrnicos. Veja o exemplo a seguir:

    Este rrey Leyr n ouue filho, mas ouue tres filhas muy fermosas e amaua-as

    mujto. E huu dia ouuve sas rrazoes com ellas e disse-lhes que lhe dissessem

    uerdade quall dellas o amaua mais.

    Voc conseguiu ler o texto anterior? Qual foi a sua sensao? Se voc ima-

    gina que se trata de um texto antigo, acertou! Esse texto, cujo ttulo Lenda do

    Rei Lear, datado do sculo XIII ou XIV. Ele serve para ilustrar como a lngua

    muda ao longo do tempo, basta verificar como era a escrita sculos atrs

    Variao lingustica

    Voltando ao exemplo dado

    no incio deste captulo, no

    poema de Patativa do Assa-

    r vimos palavras como

    sabena, assin e estud.

    Voc deve ter percebido que, no portugus formal, gramatical, essas

    palavras equivalem a sabedoria, assinar e estudar. A est a ideia de va-

    riao, que pode ser compreendida como a face heterognea da lngua.

    Assim, da mesma forma como Patativa do Assar utiliza a forma saben-

    a para se referir a sabedoria, h outras formas que variam, e no somente

    em termos de ortografia, mas inclusive em termos vocabulares. Cariocas,

    por exemplo, falam chuva fina enquanto paulistas falam garoa. O portugus

    doBrasil utiliza o termo nibus, enquanto em Portugal falam autocarro.

    O tpico da variao, devido sua relevncia, chegou a ser poeti-

    zado pelos modernistas brasileiros. ManuelBandeira, por exemplo,

    foi um crtico do modo artificial como alguns brasileiros tentavam

    imitar os estilos lusitanos, nas primeiras dcadas do sculo xx:

    A vida no me chegava pelos jornais nem pelos livros

    Vinha da boca do povo na lngua errada