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Livros da autora publicados pela...Livros da autora publicados pela Galera Record Série Fallen Volume 1 – Fallen Volume 2 – Paixão Volume 3 – Tormenta Volume 4 – Êxtase

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Livros da autora publicados pelaGalera Record

Série FallenVolume 1 – FallenVolume 2 – Paixão

Volume 3 – TormentaVolume 4 – Êxtase

Apaixonados – Histórias de amor de Fallen

Série Teardrop Volume 1 – Lágrima

TraduçãoRyta Vinagre

1ª edição

2013

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NAPUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DELIVROS, RJ

K31LKate, Lauren, 1981-

Lágrima [recurso eletrônico] /Lauren Kate ; tradução Ryta Vinagre. -1. ed. - Rio de Janeiro : Galera Record,2013.

recurso digital (Teardrop ; 1)Tradução de: TeardropFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital

EditionsModo de acesso: World Wide Web

ISBN 978-85-01-10138-9 (recursoeletrônico)

1. Romance americano. 2. Livros

eletrônicos. I. Vinagre, Ryta. II. Título.III. Série.

13-06112CDD: 813

CDU: 821.111(73)-3

Título original em inglês:Teardrop

Text copyright © 2013 by Lauren Kate

Publicado originalmente por Delacorte Press,um selo da Random House Children’s Books,divisão da Random House, Inc.

Direitos de tradução negociados com InkhouseMedia LLC e Sandra Bruna Agencia Literária,S. L.

Todos os direitos reservados. Proibida areprodução, no todo ou em parte, através dequaisquer meios. Os direitos morais do autorforam assegurados.

Composição de miolo da versão impressa:Abreu’s System

Texto revisado segundo o novo AcordoOrtográfico da Língua Portuguesa.

Direitos exclusivos de publicação em línguaportuguesasomente para o Brasil adquiridos pela

EDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ –20921-380 – Tel.: 2585-2000,que se reserva a propriedade literária destatradução.Produzido no Brasil

ISBN 978-85-01-10138-9

Seja um leitor preferencial Record.Cadastre-se e receba informações sobrenossos lançamentos e nossas promoções.

Atendimento e venda direta ao leitor:[email protected] ou (21) 2585-2002.

Para Matilda

É tão misterioso, o país das lágrimas.ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY,

O PEQUENO PRÍNCIPE

PRÓLOGO

PRÉ-HISTÓRIA

Então foi assim:O poente âmbar e sombrio. A

umidade puxando o céu vagaroso. Umúnico carro chegando à ponte SevenMile, na direção do aeroporto emMiami, para um voo que não seria

apanhado. Uma onda aberranteerguendo-se na água a oeste das Keys,encrespando-se num monstro quedesconcertaria os oceanógrafos nosnoticiários da noite. Trânsito parado naboca da ponte por homens com trajes deoperários encenando um bloqueiotemporário na rua.

E ele: o menino no barco de pescaroubado, 100 metros a oeste da ponte.Sua âncora foi baixada. O olhar sedemora no último carro com permissãode atravessar. Ele está ali há uma hora,esperaria apenas mais alguns minutos

para observar — não, parasupervisionar a tragédia iminente, paragarantir que desta vez tudo desse certo.

Os homens vestidos de operárioschamavam a si mesmo de Semeadores.O menino no barco era também umSemeador, o mais novo dentro dalinhagem familiar. O carro na ponte eraum Chrysler K 1988 champanhe com320 mil quilômetros rodados noodômetro e um retrovisor grudado comfita adesiva. Era dirigido por umaarqueóloga, uma ruiva, uma mãe. Apassageira era sua filha, uma menina de

17 anos de New Iberia, Louisiana, e ofoco dos planos dos Semeadores. Filhae mãe estariam mortas em minutos... Seo menino não atrapalhasse tudo.

O nome dele era Ander. Eletranspirava.

Estava apaixonado pela menina docarro. Então aqui, agora, no calorbrando de um fim de primavera naFlórida, com garças azuis perseguindogarças menores e brancas por um céu deopala negra e a quietude da água a suavolta, Ander tinha uma decisão a tomar:cumprir as obrigações para com sua

família ou...Não.A decisão era mais simples que

isso:Salvar o mundo ou salvar a menina.O carro passou pelo primeiro de

sete marcos de distância da longa pontepara a cidade de Marathon, nas FloridaKeys centrais. A onda dos Semeadoresestava apontada para o quatro, passandoum pouco do meio da ponte. Mesmo umaleve queda na temperatura, navelocidade do vento, na tessitura doleito marinho podia alterar a dinâmica

da onda. Os Semeadores tinham de estarpreparados para uma adaptação. Podiamfazer isso: forjar uma onda do marusando sopro antediluviano, depoislargar a fera no local exato, como umaagulha em um prato de toca-discos,soltando uma música infernal. Elespodiam até se safar. Ninguém podejulgar um crime sem saber quem ocometeu.

A criação de ondas era um elementodo poder cultivado pelos Semeadores, oZéfiro. Não era um domínio sobre aágua, mas sim a capacidade de

manipular o vento, cujas correntes eramuma poderosa força sobre o mar. Anderfoi criado para reverenciar o Zéfirocomo uma divindade, embora suasorigens fossem obscuras: nasceu numaépoca e em um lugar dos quais osSemeadores mais velhos não falavammais.

Por meses, falaram apenas de suacerteza de que vento certo sob a águacerta teria potência suficiente para matara menina certa.

O limite de velocidade era de 60quilômetros por hora. O Chrysler ia a

cem. Ander enxugou o suor da testa.Uma luz azul clara brilhava dentro

do carro. De pé no barco, Ander nãoconseguiu ver os rostos. Só via duascoroas de cabelo, globos escuros contrao apoio dos bancos. Ele imaginou amenina ao telefone, mandando torpedosa uma amiga sobre as férias com a mãe,fazendo planos para ver a vizinha comsardas salpicadas nas faces ou aquelemenino com quem ela se encontrava, oúnico que Ander não suportava.

A semana toda ele a observou lendona praia o mesmo livro de capa

desbotada, O velho e o mar. Ele aestudou virar as páginas com aagressividade lenta de um tédio terrível.Ela faria o último ano da escola nooutono. Ander sabia que ela havia sematriculado em três matérias avançadas;uma vez ele ficou num corredor de umamercearia e ouviu através das caixas decereais enquanto ela conversava arespeito disso com o pai. Ele sabia oquanto ela morria de medo de cálculo.

Ander não ia à escola. Mas eleestudava a menina. Os Semeadores oobrigaram a isto, a persegui-la. E agora

ele era um especialista.Ela adorava noz-pecã e noites de

céu claro, quando podia ver as estrelas.Tinha uma postura horrível à mesa dejantar, mas, quando corria, parecia voar.Fazia as sobrancelhas com uma pinçadecorada com pedras; vestia a antigafantasia de Cleópatra da mãe todo ano,no Halloween. Jogava Tabasco em tudoque comia, corria 1 quilômetro emmenos de quatro minutos, tocava oviolão Gibson do avô sem habilidadealguma, mas com muita alma. Pintavabolinhas nas unhas e nas paredes do

quarto. Sonhava em sair do pântano e irpara uma grande cidade como Dallas ouMemphis, tocando músicas em baresescuros com noites de microfone aberto.Amava a mãe com uma paixão intensa eindestrutível que Ander invejava e seesforçava para compreender. Usavacamisetas sem manga no inverno,moletons para ir à praia, tinha medo dealtura, mas adorava montanha-russa epretendia jamais se casar. Não chorava.Quando ria, fechava os olhos.

Ele sabia tudo sobre ela. Iriagabaritar todas as questões em uma

prova sobre suas complexidades. Ele aobservava desde o 29 de fevereiro emque ela nasceu. Todos os Semeadores avigiavam. Ele a observava desde antesde ele ou ela saberem falar. Eles nuncase falaram.

Ela era a vida dele.Ele tinha de matá-la.A menina e sua mãe estavam com as

janelas abertas. Os Semeadores não iamgostar disso. Ele tinha certeza de que umdos tios fora encarregado de mexer nasjanelas enquanto mãe e filha jogavamcartas em uma cafeteria de toldo azul.

Mas Ander uma vez viu a mãe damenina meter uma vareta no reguladorde voltagem de um carro com bateriaarriada e conseguir ligá-lo. Viu a meninatrocar um pneu no acostamento daestrada num calor de 37 graus e maltranspirar uma gota. Elas sabiam fazercoisas, essas mulheres. Mais motivospara matá-la, diria seu tio, guiando-osempre a defender a linhagem dosSemeadores. Mas nada que Ander vissena menina o assustava; tudo aumentavaseu fascínio.

Braços bronzeados se penduravam

pelas janelas do carro enquanto elaspassavam pelo segundo marco dedistância. Tal mãe, tal filha — os pulsosse torcendo no ritmo de alguma músicano rádio que Ander queria poder ouvir.

Ele se perguntou qual seria o cheirode sal em sua pele. A ideia de estarperto o suficiente para respirar o cheirodela o pegou numa onda de prazervertiginoso que encapelou em náusea.

Uma coisa era certa: ele jamais ateria.

Ander caiu de joelhos no banco. Obarco se balançou sob seu peso,

estilhaçando o reflexo da lua nascente.Depois balançou de novo, mais forte,indicando uma perturbação em algumlugar na água.

A onda se formava.Ele só precisava olhar. Sua família

deixara isso muito claro. A onda bateria;o carro voaria sobre a ponte com ela,como uma flor se derramando sobre abeira de uma fonte. Elas seriam varridaspara as profundezas do mar. E só.

Quando a família tramou tudo nacasa de férias alugada e dilapidada emKey West, com a “vista para o jardim”

de uma viela com mato, ninguém faloudas ondas subsequentes que levariammãe e filha para a inexistência. Ninguémmencionou a lentidão com que umcadáver se decompunha na água fria.Mas Ander teve pesadelos a semanatoda com o destino do corpo da menina.

A família dele disse que depois daonda tudo estaria acabado e Anderpoderia ter uma vida normal. Não foiisso que ele disse que queria?

Ele simplesmente tinha de garantirque o carro ficasse submerso por temposuficiente para que a menina morresse.

Se por acaso — aqui os tios começarama se soltar — mãe e filha de algum modose soltassem e subissem à superfície,Ander teria de...

Não, sua tia Khora disse alto obastante para silenciar a sala cheia dehomens. Ela era a coisa mais próximaque Ander tinha de uma mãe. Ele aamava, mas não gostava dela. Isso nãoia acontecer, disse ela. A onda queKhora produziria seria forte. Ander nãoteria de afogar a menina com as própriasmãos. Os Semeadores não eramassassinos. Eram intendentes da

humanidade, preveniam o apocalipse.Estavam gerando um ato divino.

M a s era assassinato. Naquelemomento, a menina estava viva. Tinhaamigos, uma família que a amava. Tinhauma vida pela frente, possibilidadesabrindo-se como galhos de carvalho nocéu infinito. Tinha um jeito de deixartudo ao redor espetacular.

Não agradava a Ander pensar se umdia ela poderia fazer o que osSemeadores temiam que fizesse. Adúvida o consumia. Enquanto a onda seaproximava, ele pensou em deixar que o

levasse também.Mas se quisesse morrer, teria de sair

do barco. Teria de soltar as alças naponta da corrente chumbada a suaâncora. Por mais forte que fosse a onda,a corrente de Ander não se romperia;sua âncora não seria puxada para o leitomarinho. Era feita de oricalco, um metalantigo considerado mítico pelosarqueólogos modernos. A âncora em suacorrente era uma das cinco relíquiasdessa substância preservadas pelosSemeadores. A mãe da menina — umarara cientista que acreditava em coisas

cuja existência não podia provar —teria trocado toda a carreira peladescoberta de apenas uma delas.

Âncora, lança e atlatl*, vasolacrimatório e a pequena arca entalhadaque emitia um brilho verde esobrenatural — eram o que restava desua linhagem, do mundo de que ninguémfalava, do passado que os Semeadorestinham como única missão reprimir.

A menina nada sabia dosSemeadores. Mas saberia de ondevinha? Poderia determinar suas origenscom a rapidez com que ele identificava

a própria, no mundo perdido no dilúvio,no segredo ao qual ele e ela estavamintrinsecamente ligados?

Chegou a hora. O carro seaproximou do quarto marco. Ander viu aonda surgir contra o céu que escureciaaté que sua crista branca não podia maisser confundida com uma nuvem. Ele aviu subir lentamente, 5 metros, dez, umamuralha de água deslocando-se paraelas, negra com a noite.

Seu ronco quase tragou o grito queveio do carro. O grito não parecia odela, mais o da mãe. Ander estremeceu.

O som indicava que elas haviam vistoenfim a onda. As luzes de freio seacenderam. Depois o motor se acelerou.Tarde demais.

A tia Khora cumprira com a palavra;construíra a onda com perfeição. Elacarregava um sopro de citronela — otoque de Khora para mascarar o odor demetal queimado que acompanhava afeitiçaria do Zéfiro. De extensãocompacta, a onda era mais alta que umprédio de três andares, com um vórticeconcentrado em seu ventre fundo e umaaba de espuma que quebraria a ponte

pela metade, mas deixaria a terra dosdois lados intacta. Faria seu trabalho deforma limpa e, mais importante, comrapidez. Mal haveria tempo para que osturistas parassem na boca da ponte,pegassem os telefones e começassem afilmar.

Quando a onda se quebrou, seucorpo estendeu-se pela ponte, depoisrecuou sobre si mesma até se chocar nocanteiro central 3 metros à frente docarro, exatamente como planejado. Aponte rangeu. A pavimentação vergou. Ocarro girou no meio do redemoinho. Seu

chassi foi inundado. Apanhado pelaonda, ele cavalgou a crista e depoisdisparou da ponte em um declive feitode mar furioso. Ander viu o Chryslercapotar na face da onda. Enquanto ocarro oscilava para baixo, ele ficouhorrorizado com o que via pelo para-brisa. Lá estava ela: o cabelo louro-escuro se movendo e subindo. O perfilsuave, como uma sombra lançada poruma vela. Braços se estendendo para amãe, cuja cabeça bateu no volante. Seugrito cortou Ander como vidro.

Se isto não tivesse acontecido, tudo

poderia ter sido diferente. Masaconteceu:

Pela primeira vez na vida, ela olhoupara ele.

As mãos de Ander escorregaram dasalças da âncora de oricalco. Seus pés seergueram do chão do barco de pesca.Quando o carro bateu na água, Ander jánadava para a janela aberta da menina,lutando com a onda, invocando cadagrama da força ancestral que fluía porseu sangue.

Era guerra, Ander contra a onda. Elao golpeava, jogando-o contra o fundo

arenoso do golfo, esmurrando-lhe ascostelas, enchendo seu corpo dehematomas. Ele cerrou os dentes enadou através da dor, do recife de coralque lacerava a pele, pelos cacos devidro e lascas de para-choque, pelasgrossas cortinas de algas. Sua cabeçasubiu à superfície, e ele ofegou, tomandoar. Viu a silhueta retorcida do carro —que depois desapareceu sob um mundode espuma. Ele quase chorou ao pensarque não chegaria a tempo.

Tudo se aquietou. A onda se retraiu,coletando os destroços, arrastando o

carro. Deixando Ander para trás.Ele tinha uma chance. As janelas

estavam acima do nível da água. Assimque a onda voltasse, o carro seriaesmagado. Ander não sabia explicarcomo seu corpo tinha emergido da águanem patinado pelo ar. Ele saltou na ondae estendeu a mão.

O corpo dela era rígido como umjuramento. Seus olhos escuros estavamabertos, agitando-se em tons de azul.Escorria sangue pelo pescoço enquantoela se virava para ele. O que ela via? Oque ele era?

A pergunta e seu olhar paralisaramAnder. Naquele momento deperplexidade, a onda se enroscou emvolta dos dois, e perdeu-se uma chancecrucial: ele teria tempo de salvar apenasuma delas. Sabia o quanto aquilo eracruel. Mas, movido pelo egoísmo, nãopodia deixá-la ir.

Pouco antes de a onda explodirsobre eles, Ander pegou sua mão.

Eureka.

Nota:* Atlatl é uma espécie de propulsor usado para

aumentar a velocidade de um projétil (lança,azagaia, dardo etc.). (N. do E.)

1

EUREKA

No silêncio da salinha de espera bege, oouvido ruim de Eureka tiniu. Ela omassageou — um hábito desde oacidente que a deixara meio surda. Nãoadiantou nada. Do outro lado da sala,uma maçaneta girou. Uma mulher de

blusa branca e fina, saia verde-oliva ecabelo louro muito elegante puxado paracima apareceu no espaço iluminado.

— Eureka? — Sua voz baixacompetia com o borbulhar de umaquário que exibia um escafandrista deplástico néon enterrado até os joelhosem areia, mas não mostrava sinais deconter peixe algum.

Eureka olhou a sala vazia, querendoinvocar outra Eureka invisível queassumisse seu lugar naquela hora.

— Sou a Dra. Landry. Entre, porfavor.

Desde o segundo casamento do pai,quatro anos antes, Eureka sobreviveu auma armada de terapeutas. Uma vidaregida por três adultos que nãoconcordavam em nada se provou maisproblemática que outra regida por dois.O pai duvidava da primeira analista,uma freudiana conservadora, quase tantoquanto a mãe odiava o segundo, umpsiquiatra de pálpebras baixas quedistribuía embotamento emcomprimidos. Então Rhoda, a novaesposa do pai, entrou em cena,resolvendo experimentar a psicóloga da

escola, o acupunturista e a especialistaem gestão da raiva. Mas Eureka insistiuna condescendente terapeuta familiar,em cujo consultório o pai nunca sesentiu parte da família. Na verdade, elade certo modo gostava da últimapsiquiatra, que sugerira um internatodistante, na Suíça — até que a mãetomou conhecimento e ameaçou levar opai aos tribunais.

Eureka notou os calçados de courocinza-claro e sem cadarços da novaterapeuta. Tinha se sentado num sofádiante de muitos pares de sapatos

parecidos. As médicas usavam essetruque: tiravam os sapatos no início dasessão, recolocavam os pés neles paraindicar seu fim. Todos devem ter lido omesmo artigo tedioso que afirmava queo Método do Sapato era mais brandopara o paciente do que simplesmentedizer que o tempo acabou.

A sala era intencionalmentetranquilizante: um sofá de couro marrome comprido encostado numa janela compersiana, duas poltronas de frente parauma mesa de centro com uma tigeladaquelas balas de café embrulhadas em

dourado, um tapete com pegadas decores diferentes. Um aromatizador deambiente deixava tudo com cheiro decanela, mas Eureka não se importavacom isso. Landry sentava-se em uma daspoltronas. Eureka jogou a bolsa no chãoproduzindo um ruído alto — os livros daescola eram uns tijolos —, depois arriouno sofá.

— Lugar legal — disse ela. —Devia ter um daqueles pêndulos combolas prateadas balançando. Meu últimomédico tinha um. Talvez um purificadorde água com torneira quente e gelada.

— Se quiser água, tem um jarro napia. Será um prazer...

— Deixa pra lá. — Eureka já haviadeixado escapar mais do que pretendiafalar pela próxima hora. Estava nervosa.Respirou fundo e reergueu os muros.Lembrou a si mesma que era estoica.

Um dos pés de Landry se soltou dosapato cinza, depois ela usou o dedãocom meia-calça para libertar ocalcanhar do outro sapato, revelandounhas marrons. Com os dois pésenfiados sob as coxas, Landry apoiou oqueixo na palma da mão.

— O que a trouxe aqui?Quando Eureka se via presa numa

situação ruim, a mente voava até loucosdestinos que não tentava evitar. Elaimaginou um comboio atravessando umaparada de boas-vindas no centro deNew Iberia, escoltando-a com estilo atéa terapia.

Mas Landry parecia sensata,interessada na realidade da qual Eurekaansiava por escapar. O Jeep vermelhode Eureka a trouxera. O trecho de 110quilômetros de estrada entre esteconsultório e sua escola a trouxera — e

cada segundo avançava para outrominuto durante o qual ela não estava denovo na escola, no aquecimento para aprova de corrida cross-country datarde. A má sorte a trouxera até ali.

Ou seria a carta do AcadiaMermilion Hospital, declarando quegraças a sua recente tentativa desuicídio, a terapia não era opcional, masobrigatória?

Suicídio. A palavra tinha um ar maisviolento do que a tentativa havia sido.Na noite anterior ao início do último anodo ensino médio, Eureka simplesmente

abriu a janela e deixou que as cortinasbrancas e finas soprassem para ela ao sedeitar na cama. Tentou pensar em algoanimador sobre o futuro, mas sua mentesó rolava para trás, aos momentos dealegria perdidos que nunca mais poderiater. Ela não podia viver no passado,então concluiu que não podia viver.Ligou o iPod. Engoliu o que restava doscomprimidos de oxicodona que o paiguardava no armário de remédios, porconta da dor das vértebras fundidas nacoluna.

Oito, talvez nove comprimidos; ela

não os contou ao jogar na garganta.Pensou na mãe. Pensou em Maria, mãede Deus, em quem Eureka havia sidocriada acreditando que intercederia portodos na hora da morte. Eureka sabia osdogmas católicos quanto ao suicídio,mas acreditava em Maria, cujamisericórdia era imensa, que podiaentender que Eureka perdera tanto quenada havia a fazer além de se render.

Ela despertou numa emergência friade hospital, presa a uma maca eengasgada com o tubo de uma bombagástrica. Ouviu o pai e Rhoda brigando

no corredor enquanto uma enfermeira aforçava a beber um carvão líquidomedonho para restringir as toxinas queeles não conseguiram limpar de seucorpo.

Como não sabia o que exatamentedizer para sair dali mais cedo —“Quero viver!”, “Não tentarei isso denovo” —, Eureka passou duas semanasna ala psiquiátrica. Nunca se esqueceriado absurdo de pular corda ao lado deuma imensa mulher esquizofrênicadurante a ginástica, de comer aveia coma universitária que não tinha cortado os

pulsos fundo o bastante e cuspia na carados enfermeiros que tentavam lhe dar oscomprimidos. De algum modo, 16 diasdepois, Eureka se arrastava para a missamatinal antes do primeiro tempo daEvangeline Catholic High, onde BellePogue, uma aluna do último ano daOpelousas, parou-a na porta da capelacom um “Você deve se sentir abençoadapor estar viva”.

Eureka olhou feio nos olhos clarosde Belle, levando a garota a ofegar,fazer o sinal da cruz e correr para obanco mais distante. Nas seis semanas

que se seguriam a sua volta aoEvangeline, Eureka parou de contarquantos amigos perdeu.

A Dra. Landry pigarreou.Eureka encarou o teto rebaixado.— Você sabe por que estou aqui.— Gostaria de ouvir você mesma

colocar isso em palavras.— A mulher de meu pai.— Está tendo problemas com sua

madrasta?— Rhoda marcou hora. Por isso

estou aqui.A terapia de Eureka virou uma das

causas da esposa do pai. Primeiro foilidar com o divórcio, depois o luto pelamorte da mãe, agora analisar a tentativade suicídio. Sem Diana, não havianinguém que intercedesse por Eureka,que desse um telefonema e demitisse acharlatã. Eureka ainda se imaginavapresa nas sessões com a Dra. Landry aos85 anos, tão ferrada quanto estava hoje.

— Sei que a perda de sua mãe temsido difícil — disse Landry. — Comoestá se sentindo?

Eureka se fixou na palavra perda,como se ela e Diana tivessem sido

separadas numa multidão e logo sereencontrariam, apertariam as mãos eandariam até o restaurante mais próximonas docas para comer mariscos fritos,seguindo em frente como se nuncativessem se separado.

Naquela manhã, do outro lado damesa de café, Rhoda mandou um torpedoa Eureka: Dra. Landry, 15h. Havia umlink para compartilhar o compromissocom a agenda de seu celular. QuandoEureka clicou no endereço doconsultório, um pin no mapa marcava aMain Street em New Iberia.

— New Iberia? — Sua voz falhou.Rhoda engoliu parte do suco verde

de aparência horrível.— Achei que ia gostar disso.New Iberia era a cidade onde

Eureka nascera e fora criada. Era olugar que ela ainda chamava de lar, ondemorou com os pais pela parte intacta desua vida, até que os dois se separaram, amãe se mudou, e o andar confiante dopai começou a parecer um arrastar depés, como aquele dos caranguejos azuisno Victor’s, onde ele antigamente erachef.

Isso foi na época do Katrina e dofuracão Rita, que veio logo em seguida.A antiga casa de Eureka ainda estava lá— ela soube que agora abrigava outrafamília —, mas, depois dos furacões, opai não quis dedicar tempo nem emoçãopara consertá-la. Então se mudaram paraLafayette, a 25 quilômetros e 35 anos-luz de casa. O pai aceitou um empregode cozinheiro no Prejean’s, que eramaior e muito menos romântico que oVictor’s. Eureka mudou de escola, o quefoi um porre. Antes que se desse conta,o pai tinha esquecido a mulher, e os dois

mudavam-se para uma casa grande emShady Circle. Pertencia a uma mandonade nome Rhoda. Ela estava grávida. Oquarto novo de Eureka ficava no final docorredor de uma creche em construção.

Então, não, Rhoda, Eureka nãogostava que a nova terapeuta ficasse emNew Iberia. Como podia dirigir até asessão e voltar a tempo do treino?

O treino era importante, não sóporque Evangeline disputaria com suarival, a Manor High. Hoje era o dia queEureka prometeu à treinadora quetomaria a decisão, de ficar ou não na

equipe de corrida.Antes da morte de Diana, Eureka

tinha sido nomeada primeira capitã.Depois do acidente, quando teve forçasfísicas suficientes, os amigosimploraram que corresse em algumasprovas amistosas de verão. Mas a únicacorrida que ela teve de ir lhe deuvontade de gritar. Calouros estendiamcopos de água saturada de piedade. Atreinadora atribuiu a lentidão de Eurekaao gesso que envolvia seus pulsos. Eramentira. Seu coração não estava mais nacorrida. Não estava na equipe. Seu

coração estava no mar com Diana.Depois dos comprimidos, a

treinadora lhe levou balões, quepareciam absurdos no quarto estéril daala psiquiátrica. Eureka nem mesmo tevepermissão de ficar com eles depois queterminou o horário de visita.

— Estou fora — disse Eureka.Estava constrangida por ser vista com ospulsos e tornozelos amarrados à cama.— Diga a Cat que pode ficar com meuarmário.

O sorriso triste da treinadora sugeriaque depois de uma tentativa de suicídio,

as decisões de uma menina pesavammenos, como pessoas na lua.

— Eu passei por dois divórcios e abatalha de uma irmã com o câncer —disse a treinadora. — Não estou dizendoisso só porque você é a menina maisrápida da equipe. Estou falando porquetalvez correr seja a terapia de queprecisa. Quando estiver se sentindomelhor, me procure. Vamos conversarsobre esse armário.

Eureka não sabia por que haviaconcordado. Talvez não quisessedecepcionar mais uma pessoa. Ela

prometeu tentar entrar em forma para acorrida contra a Manor aquele dia, fazermais uma tentativa. Antigamente elaadorava correr. Antigamente adorava aequipe. Mas isso tudo foi antes.

— Eureka. — A Dra. Landryincitou. — Pode me contar algo de quese lembre do dia do acidente?

Eureka examinou o teto brancotelado, como se pudesse lhe pintar umapista. Lembrava-se tão pouco doacidente que não fazia sentido abrir aboca. Havia um espelho na outra parededo consultório. Eureka levantou-se e se

postou diante dele.— O que você vê? — perguntou

Landry.Vestígios da menina que ela fora: as

mesmas orelhas como pequenas portasde carro abertas, com o cabelo metidoatrás, os mesmos olhos azul escuros dopai, as mesmas sobrancelhas que serebelavam se ela não as domassediariamente — tudo ainda estavapresente. Entretanto, pouco antes destasessão, duas mulheres da idade de Dianapassaram por ela no estacionamento,cochichando. “Nem a própria mãe a

reconheceria.”Era uma frase feita, como muitas

coisas que diziam sobre Eureka em NewIbe r i a : Ela pode discutir com amuralha da China e vencer. Édesafinada feito uma taquara rachada.Corre mais que um velocista naOlimpíada. O problema com as frasesfeitas é a facilidade com que saem pelalíngua. Aquelas mulheres não pensavamna realidade de Diana, que reconheceriaa filha em qualquer lugar, a qualquerhora, independentemente dascircunstâncias.

Treze anos de escola católicaensinaram a Eureka que Diana a olhavado Paraíso e a reconhecia agora. Ela nãose importaria com a camiseta estampadacom a capa do álbum Joshua Tree,rasgada, por baixo do cardigã da escolada filha, as unhas roídas ou o buraco nodedão do pé esquerdo de seus sapatosde lona de forro xadrez. Mas ficariairritada com o cabelo.

Nos quatro meses depois doacidente, o cabelo de Eureka foi dolouro-escuro virgem a um vermelhosereia bem vivo (o tom natural da mãe),

ao branco oxigenado (ideia de sua tiaMaureen, dona de um salão de beleza),ao preto corvo (que finalmente pareciacombinar) e até a atuais e interessantesmechas ombré nas pontas. Eureka tentousorrir para o reflexo, mas o rostoparecia estranho, como a máscara dacomédia pendurada na parede da sala dasua aula de teatro no ano passado.

— Fale-me de suas lembrançaspositivas mais recentes — pediu Landry.

Eureka arriou de novo no sofá. Deveter sido aquele dia. Deve ter sido o CDdo Jelly Roll Morton no som e o agudo

medonho da mãe encontrando com opróprio agudo medonho de Eurekaenquanto elas cantavam e seguiam decarro com as janelas abertas por umaponte que nunca atravessaram. Ela selembrava de rir da letra engraçada ao seaproximarem do meio da ponte.Lembrava-se de ver a placa branca eenferrujada passar num borrão — marcoquatro.

Depois, o esquecimento. Um buraconegro escancarado até ela despertar numhospital de Miami com o courocabeludo lacerado, o tímpano esquerdo

estourado (que nunca se curariainteiramente), um tornozelo torcido, ospulsos gravemente quebrados, milhematomas...

E sem mãe.O pai estava sentado na beira da

cama. Ele chorou quando ela voltou a si,o que deixou os olhos dele ainda maisazuis. Rhoda lhe entregou lenços. Osmeio-irmãos de 4 anos de Eureka,William e Claire, fecharam os dedinhosmacios nas partes de sua mão que nãoestavam engessadas. Ela sentiu o cheirodos gêmeos antes mesmo de abrir os

olhos, antes de saber que havia alguémali ou que estava viva. Eles tinham ocheiro de sempre: sabonete Ivory enoites estreladas.

A voz de Rhoda era firme quandoela se curvou sobre a cama e colocou osóculos vermelhos no alto da cabeça.

— Você sofreu um acidente. Vaificar bem.

Contaram-lhe sobre o vagalhãoassustador que se ergueu do mar comoum mito e varreu da ponte o Chrysler damãe. Contaram sobre os cientistasprocurando na água um meteoro que

pudesse ter causado a onda. Contaramdos operários, perguntaram se Eurekasabia como ou por que o carro delas foio único a ter permissão de atravessar aponte. Rhoda falou em processar opoder público, mas o pai fez um gestod e deixa pra lá. Eles perguntaram aEureka sobre sua milagrosasobrevivência. Esperaram que elapreenchesse os hiatos sobre comoterminou na margem sozinha.

Como Eureka não conseguiaresponder, eles lhe contaram da mãe.

Ela não ouvia, não ouvia nada

realmente. Estava agradecida que ozumbido no ouvido tragasse a maiorparte dos sons. Às vezes ainda gostavaque o acidente a tivesse deixado meiosurda. Ela olhou o rosto de pele maciade William, depois o de Claire,pensando que ajudaria. Mas elespareciam ter medo dela e isso doeu maisque os ossos quebrados. Então elaencarou o que estava além deles,relaxou o olhar na parede off-white edeixou que ficasse ali pelos nove diasque se seguiram. Ela sempre dizia àsenfermeiras que seu nível de dor era

sete numa escala de dez, garantindo quereceberia mais morfina.

— Talvez você sinta que o mundo éum lugar muito injusto — tentou Landry.

Será possível que Eureka aindaestava nesta sala com esta mulhercondescendente paga para interpretá-lamal? Isto sim era injusto. Ela imaginouos sapatos cinza de Landry subindo docarpete como que por mágica, pairandono ar e girando, como os ponteiros dehora e minuto de um relógio, até que ahora acabasse e Eureka pudesse correrpara a prova.

— Pedidos de ajuda como o seu emgeral resultam de sentimentosincompreendidos.

“Pedido de ajuda” era o jargão depsiquiatra para “tentativa de suicídio”.Não era um pedido de ajuda. Antes deDiana morrer, Eureka achava que omundo era um lugar incrivelmenteempolgante. A mãe era uma aventura.Notava coisas em uma caminhadasimples que a maioria das pessoasdeixaria passar umas mil vezes. Ela riaalto e com mais frequência que qualquerum que Eureka conhecesse — em certas

ocasiões isso constrangeu Eureka, mashoje ela descobria sentir mais falta doriso da mãe que de qualquer outra coisa.

Juntas, foram ao Egito, à Turquia e àÍndia, viajaram de barco pelas ilhasGalápagos, tudo como parte do trabalhode Diana como arqueóloga. Uma vez,quando Eureka foi visitar a mãe numaescavação no norte da Grécia, perderamo último ônibus de Trikala e pensaramque passariam a noite lá — até queEureka, com 14 anos, parou umcaminhão de azeite e elas pegaramcarona de volta até Atenas. Ela se

lembrava do braço da mãe no dela, asduas sentadas na traseira do caminhão,em meio aos tonéis pungentes quevazavam azeite de oliva, sua voz baixamurmurando: “Você consegue achar umjeito de sair de um fosso na Sibéria,garota. Você é uma companheira deviagem do caramba.” Era o elogiopreferido de Eureka. Ela pensava nissocom frequência quando estava numasituação da qual precisasse escapar.

— Estou tentando fazer uma conexãocom você, Eureka — disse a Dra.Landry. — As pessoas mais próximas de

você tentam fazer essa conexão. Pedi asua madrasta e a seu pai pararegistrarem algumas palavras quedescrevessem a mudança em você. —Ela pegou um bloco marmorado na mesaao lado de sua poltrona. — Quer ouvir oque eles disseram?

— Claro. — Eureka deu de ombros.— Pode meter a faca.

— Sua madrasta...— Rhoda.— Rhoda chamou você de “fria”.

Disse que o resto da família “pisa emovos” perto de você, que você é

“reclusa e impaciente” com seus meio-irmãos.

Eureka se retraiu.— Eu não sou... — Reclusa? Quem

ligava para isso? Mas impaciente comos gêmeos? Seria verdade? Ou era outrodos truques de Rhoda?

— E meu pai? Deixe-me adivinhar...“Distante”, “carrancuda”?

Landry virou a página no bloco.— Seu pai a descreve, sim, como

“distante”, “estoica”, “uma noz dura dequebrar”.

— Ser estoica não é ruim.

Desde que aprendera sobre oestoicismo grego, Eureka aspiravamanter suas emoções sob controle.Agradava-lhe a ideia da liberdadeconquistada pelo controle de seussentimentos, escondê-los de modo quesó ela pudesse ver, como uma mão decartas. Num universo sem Rhodas edoutoras Landrys, o pai a chamar de“estoica” teria sido um elogio. Eletambém era um estoico.

Mas essa expressão da noz dura aincomodou.

— Que tipo de noz suicida quer ser

quebrada? — resmungou ela.Landry baixou o bloco.— Você tem outros pensamentos

suicidas?— Eu estava me referindo às nozes

— disse Eureka, exasperada. — Estavame colocando em oposição a uma nozque... Deixa pra lá. — Porém era tardedemais.

Ela deixou escapar a palavra com S,o que equivalia a dizer “bomba” numavião. As luzes de alerta se acenderiamdentro de Landry.

É claro que Eureka ainda pensava

em suicídio. E, sim, ela refletia sobreoutros métodos, sabendo principalmenteque não podia tentar o afogamento —não depois de Diana. Uma vez viu umprograma que mostrava como ospulmões se enchem de sangue antes damorte de um afogado. Às vezes elafalava de suicídio com o amigo Brooks,a única pessoa em quem podia confiar eque não a julgaria, não contaria nada aopai ou coisa pior. Ele ficou sentado naextensão do telefone, mudo, quando elaligara algumas vezes para falar sobre oassunto. Ele a fez prometer que ela

conversaria com ele sempre quepensasse nisso, então eles conversavammuito.

Mas ela ainda estava ali, nãoestava? O impulso de sair deste mundonão era tão incapacitante como foiquando Eureka engoliu aquelescomprimidos. A letargia e a apatiasubstituíram seu impulso de morte.

— Meu pai por acaso falou que eusempre fui assim? — perguntou ela.

Landry baixou o bloco.— Sempre?Eureka virou a cara. Talvez nem

sempre. É claro que nem sempre. Ascoisas foram ensolaradas por algumtempo. Mas quando ela estava com 10anos, os pais se separaram. Não se podeencontrar o sol depois disso.

— Alguma chance de você me daruma receita de Xanax? — O tímpano deEureka zumbia de novo. — Se não, istoparece uma perda de tempo.

— Você não precisa demedicamentos. Precisa se abrir e nãoenterrar essa tragédia. Sua madrastadisse que você não fala com ela nemcom seu pai. Você não mostrou interesse

em conversar comigo. E com os amigosda escola?

— Cat — disse Eurekaautomaticamente. — E Brooks. — Elafalava com eles. Se um deles estivessesentado na poltrona de Landry, a essaaltura Eureka estaria até rindo.

— Bom. — O que a Dra. Landryqueria dizer era: “Até que enfim.” —Como eles descreveriam você após oacidente?

— Cat é capitã da equipe de corridacross-country. — Eureka pensou nasemoções confusas e loucas na expressão

da amiga quando soube que ela ia sair,deixando em aberto a vaga de capitã. —Ela disse que eu fiquei lenta.

Agora Cat estaria no campo com aequipe. Era ótima em fazê-los rendernos treinos, mas nem tanto nas preleções— e a equipe precisava de estímuloverbal para enfrentar a Manor. Eurekaolhou o relógio. Se corresse assim queaquilo acabasse, poderia chegar àescola a tempo. Era isso que queria, né?

Quando levantou a cabeça, a testa deLandry estava franzida.

— Esta seria uma coisa muito

grosseira de se dizer a uma menina queestá de luto pela perda da mãe, nãoacha?

Eureka deu de ombros. Se Landrytivesse senso de humor, se conhecesseCat, entenderia. A amiga estavabrincando, na maior parte do tempo.Estava tudo bem. Elas se conheciamdesde sempre.

— E... Brooke?— Brooks — disse Eureka.Ela o conhecia desde sempre

também. Ele era um ouvinte melhor quequalquer um dos psiquiatras em que

Rhoda e o pai desperdiçavam odinheiro.

— Brooks é menino? — O blocovoltou, e Landry escrevia alguma coisa.— Vocês são apenas amigos?

— Que importância tem isso? —rebateu Eureka. Uma vez, quase que poracidente, ela e Brooks namoraram, noquinto ano. Mas eram crianças. E elaestava um trapo com a separação dospais e...

— Às vezes o divórcio provoca umcomportamento nas crianças, dificultaque busquem os próprios

relacionamentos amorosos.— Nós tínhamos 10 anos. Não deu

certo porque eu queria ir nadar quandoele queria andar de bicicleta. Comocomeçamos a falar nisso?

— Me diga você. Talvez você possafalar com Brooks sobre sua perda. Eleparece ser alguém de quem você podegostar profundamente, se você sepermitir sentir.

Eureka revirou os olhos.— Calce seus sapatos, doutora. —

Ela pegou a bolsa e se levantou do sofá.— Tenho de correr.

Correr da sessão. Correr de volta àescola. Correr pelo bosque até ficar tãocansada que não nada doesse. Talvez atécorrer de volta à equipe que antigamenteela amava. A treinadora podia ter razãonuma coisa: quando Eureka ficavadeprê, era bom correr.

— Verei você na próxima terça? —chamou Landry.

Mas àquela altura a terapeuta jáfalava com uma porta fechada.

2

OBJETOS EMMOVIMENTO

Correndo por um estacionamentoesburacado, Eureka apertou o controleremoto da chave para destrancar Magda,seu carro, e sentou no banco domotorista. Passarinhos amarelos

cantavam em uma faia no alto; Eurekaconhecia de cor seu canto. O dia eracálido e ventoso, mas ficar sob oslongos braços da árvore manteve ointerior de Magda frio.

Magda era um Jeep Cherokeevermelho, herança de Rhoda. Era novodemais e vermelho demais paracombinar com Eureka. Com os vidrosfechados, não se podia ouvir nada dolado de fora, e isto fazia Eurekaimaginar que dirigia um túmulo. Catinsistiu que o nome do carro fosseMagda, assim pelo menos o Jeep

serviria para fazer rir. Não era tão legalquanto o Lincoln Continental azul-clarodo pai de Eureka em que ela aprendeu adirigir, mas pelo menos tinha um sommatador.

Ela plugou o telefone e sintonizou naestação de rádio escolar on-line KBEU.Tocava as melhores músicas dasmelhores bandas indies locais todo diaútil depois das aulas. No ano anterior,Eureka havia sido DJ da estação; tinhaum programa chamado Tédio no Bayounas tardes de terça-feira. Elesreservaram o horário para ela este ano,

porém ela não queria mais. A meninaque costumava tocar antigos improvisosd e zydeco e mash-ups recentes eraalguém de quem ela mal se lembrava enão poderia tentar ser de novo.

Abrindo as quatro janelas e o tetosolar, Eureka correu a lista para amúsica “It’s Not Fair”, dos FaithHealers, uma banda formada por unsgarotos da escola. Eureka sabia todas asmúsicas. O baixo incomum impelia suaspernas mais rápido nas corridas e foi omotivo para ela desencavar o velhoviolão do avô. Aprendeu sozinha alguns

acordes, mas não tocava desde aprimavera. Não conseguia imaginar amúsica que faria agora que Diana estavamorta. O violão acumulava poeira nocanto de seu quarto, debaixo da pequenaimagem de Santa Catarina de Siena, queEureka afanou da casa da avó Sugarquando esta morreu. Ninguém sabiaonde Sugar conseguira o ícone. Desdeque Eureka se entendia por gente, apintura da padroeira da proteção contrao fogo ficava pendurada acima doconsolo da lareira da avó.

Seus dedos batiam no volante.

Landry não sabia do que estava falando.Eureka sentia coisas, coisas como...Irritação por ter perdido outra hora emoutro consultório de terapia idiota.

Havia outras: o medo frio sempreque passava de carro numa ponte, aténas mais curtas. Uma tristeza debilitantequando se deitava insone na cama. Umpeso nos ossos cuja origem precisavaidentificar a cada manhã quando odespertador do telefone tocava.Vergonha por ter sobrevivido e Diananão. Fúria por algo tão absurdo terlevado sua mãe.

Inutilidade por querer se vingar deuma onda.

Inevitavelmente, quando se permitiaseguir as andanças de sua mente triste,Eureka terminava na inutilidade. Ainutilidade a irritava. Então dava umaguinada, concentrava-se em coisas quepodia controlar — como voltar aocampus e à decisão que a aguardava.

Nem Cat sabia que Eureka talvezaparecesse. A corrida de 12 quilômetroscostumava ser o melhor evento deEureka. Seus colegas de equipereclamavam, mas, para Eureka, era

rejuvenescedor cair na zona hipnótica deuma longa corrida. Uma parte de Eurekaqueria disputar com as garotas daManor, e uma parte maior dela queriafazer qualquer coisa que não fossedormir por meses.

Jamais daria essa satisfação aLandry, mas Eureka se sentiainteiramente incompreendida. Aspessoas não sabiam o que fazer com umamãe morta, muito menos com a filhaviva e suicida. Seus robotizadostapinhas nas costas e apertos no ombrodeixavam Eureka sentindo-se estranha.

Ela não conseguia entender ainsensibilidade necessária para alguémdizer “Deus deve ter sentido falta de suamãe no Paraíso” ou “Isto pode fazer devocê uma pessoa melhor”.

Esse grupo de garotas da escola, quenunca deu pela presença dela, passou emsua caixa de correio, depois que Dianamorreu, para deixar uma pulseira deamizade bordada com pequenoscrucifixos. No início, quando seencontrava com elas na cidade sem apulseira, Eureka evitava seus olhos. Masdepois que tentou se matar, isso não foi

mais problema. As meninas viravam acara primeiro. A piedade tinha limites.

Até Cat só recentemente haviaparado de chorar quando via Eureka.Ela assoava o nariz, ria e dizia “Eu nemgosto da minha mãe e enlouqueceria se aperdesse”.

Eureka havia enlouquecido. Mas sóporque não se despedaçou e chorou, nãose atirou nos braços de qualquer um quetentasse abraçá-la nem se cobriu depulseiras feitas em casa, as pessoaspensavam que ela não estava sofrendo?

Ela sofria todo dia, o tempo todo,

com cada átomo de seu corpo.Você consegue achar um jeito de

sair de um fosso na Sibéria, garota. Avoz de Diana a encontrou quando elapassava pelo Bait Shack caiado deHerbert e virava à esquerda na estradade cascalho ladeada por altos caules decana-de-açúcar. A área dos dois ladosdeste trecho de 5 quilômetros da estradaentre New Iberia e Lafayette era umadas coisas mais bonitas nas trêsparóquias: enormes carvalhos fincando-se no céu azul, campos elevadospontilhados de mirta silvestre na

primavera, um único trailer de tetoplano sobre estacas a cerca de 400metros da estrada. Diana adorava estaparte da viagem a Lafayette. Chamava-ade “o último suspiro do campo antes dacivilização”.

Eureka não usava aquela estradadesde a morte de Diana. Entrou neladespreocupadamente, sem pensar quedoeria, mas de repente não conseguiarespirar. Todo dia uma nova dor aencontrava. Apunhalava-a, como se opesar fosse o fosso do qual ela não viacomo sair até morrer.

Ela quase parou o carro para sair ecorrer. Quando estava correndo, nãopensava. A mente ficava mais clara, osbraços dos carvalhos a envolviam comsua felpuda barba-de-velho, e ela eraapenas pés golpeando, pernas ardendo,coração batendo, braços bombeando,mesclando-se nas trilhas até se tornaralgo muito distante.

Pensou na prova. Talvez pudessecanalizar o desespero para alguma coisaútil. Se conseguisse voltar à escola atempo...

Na semana anterior, o último gesso

pesado que teve de usar nos pulsosquebrados (o direito teve tantas fraturasque precisou ser recomposto três vezes)finalmente foi serrado. Ela odiou usar acoisa e estava louca para vê-loretalhado. Mas, naquela ocasião, quandoo ortopedista jogou o gesso no lixo e adeclarou curada, parecia uma piada.

Eureka parou numa placa de parenum cruzamento na estrada vazia, egalhos de loureiro curvavam-se numarco sobre o teto solar. Ela arregaçou amanga verde do cardigã da escola.Girou o pulso direito algumas vezes,

examinando o braço. A pele era brancacomo a pétala de uma magnólia. Acircunferência do braço direito pareciater encolhido à metade do tamanho doesquerdo. Era uma aberração. Davavergonha em Eureka. Depois ficou comvergonha da vergonha que sentia. Elaestava viva; a mãe não...

Pneus cantaram atrás dela. Umapancada forte abriu seus lábios numgrito de choque enquanto Magda eraarremetida para a frente. O pé de Eurekapisou no freio. O airbag brotou comouma medusa. A força do material áspero

picou-lhe as bochechas e o nariz. Suacabeça bateu no descanso do banco. Elaofegou, o ar foi arrancado dela enquantocada músculo do corpo se contraía. Obarulho de metal triturado fez a músicano rádio soar sinistramente nova. Eurekaouviu por um momento, escutando a letra“sempre injusto” antes de perceber quehaviam batido nela.

Seus olhos se abriram de repente, eela se jogou para a maçaneta da porta,esquecendo-se de que estava com ocinto de segurança. Quando levantou opé do freio, o carro avançou até que ela

o estacionou num solavanco. Eladesligou Magda. Suas mãos se debatiamsob o airbag que murchava. Estavadesesperada para se libertar.

Uma sombra caiu sobre seu corpo,dando-lhe uma estranha sensação dedéjà vu. Alguém estava do lado de fora,olhando para dentro.

Ela levantou a cabeça...— Você — sussurrou ela

involuntariamente.Nunca tinha visto o garoto. A pele

era branca como o braço engessado, masos olhos eram turquesa, como o mar em

Miami, o que a fez pensar em Diana. Elasentiu tristeza nas profundezas daquelesolhos, como sombras no mar. O cabeloera louro, não muito curto, meioondulado no alto. Ela sabia que haviamuitos músculos por baixo da camisabranca. Nariz reto, queixo quadrado,lábios grossos — o garoto parecia PaulNewman no filme preferido de Diana, Oindomado, só que pálido demais.

— Você podia me ajudar! — Ela seouviu gritar com o estranho.

Ele era o cara mais gato com quemjá gritara na vida. Podia não ser o mais

gato que tinha visto. Sua exclamação ofez pular, depois estender a mão pelaporta aberta enquanto os dedos delafinalmente achavam a fivela do cinto.Ela cambaleou para fora do carro semelegância alguma e caiu de quatro nomeio da estrada de terra. Gemeu. Seunariz e bochechas doíam da queimadurado airbag. O pulso direito latejava.

O garoto se agachou para ajudá-la.Os olhos eram de um azulimpressionante.

— Deixa pra lá.Ela se levantou e tirou a poeira da

roupa. Rolou o pescoço, que doía, masnão era nada se comparado com seuestado depois do outro acidente. Eurekaolhou a picape branca que bateu nocarro dela. Depois olhou o garoto.

— Qual é o seu problema? —gritou. — Placa de pare!

— Desculpe. — A voz dele erasuave e melodiosa. Ela não sabia se elese lamentava mesmo.

— Você pelo menos tentou parar?— Eu não vi...— Não viu um carro vermelho e

grande bem na sua frente? — Ela girou

para examinar Magda. Quando viu osdanos, xingou de um jeito que toda aparóquia poderia ouvir.

A traseira parecia um acordeãotocando zydeco,* afundada até o bancode trás, onde a placa do carro agoraestava encravada. O vidro traseiro foraespatifado; os cacos pendiam de seuperímetro como pingentes feitos de gelo.Os pneus traseiros estavam torcidos delado.

Ela respirou fundo, lembrando-se deque o carro era de qualquer modo osímbolo de status de Rhoda, não algo

que ela adorasse. Magda estava ferrada,não havia dúvida alguma. Mas o queEureka faria?

Faltavam trinta minutos para aprova. Mas 15 quilômetros até a escola.Se não aparecesse, a treinadora pensariaque Eureka estava dando um bolo.

— Preciso dos dados do seu seguro— disse ela, finalmente se lembrando dafrase que o pai martelou na filha pormeses antes de ela tirar a carteira.

— Seguro? — O garoto meneou acabeça e deu de ombros.

Ela chutou um pneu da picape. Era

antiga, provavelmente do início dosanos 1980, e ela podia tê-la achadolegal, se não tivesse acabado de amassarseu carro. A carroceria se abriu, mas apicape nem mesmo estava arranhada.

— Inacreditável. — Ela fuzilou ocara com os olhos. — Seu carro nãosofreu nada.

— Esperava o quê? É um Chevy —disse o garoto, com um sotaque afetadodo interior, citando um comercial muitoirritante que esteve no ar por toda ainfância de Eureka. Era outra das coisasque as pessoas diziam e não

significavam nada.Ele soltou um riso forçado,

examinando o rosto dela. Eureka sabiaque ficava vermelha quando estava comraiva. Brooks a chamava de Esplendordo Bayou.

— O que eu esperava? — Ela seaproximou do garoto. — Eu esperavapoder entrar num carro sem ter minhavida ameaçada. Esperava que aspessoas na estrada ao meu redortivessem algum mínimo senso das leisdo trânsito. Esperava que o cara quebateu na minha traseira não fosse tão

metido a besta.Eureka estourou perto demais dele e

logo percebeu. Agora os dois estavam acentímetros de distância, e ela precisouesticar o pescoço para trás, o que doía,para olhar naqueles olhos azuis. Ele era15 centímetros mais alto que Eureka,que tinha 1,70 metro.

— Mas acho que eu esperavademais. Essa sua lata-velha nem aomenos tem seguro.

Eles ainda estavam muito perto pornenhum outro motivo além de Eurekapensar que o garoto se afastaria. Ele não

se afastou. Sua respiração fazia cócegasna testa de Eureka. Ele tombou a cabeçade lado, olhando-a atentamente,examinando-a com mais intensidade doque ela estudava para as provas. Piscoualgumas vezes e depois, bem devagar,ele sorriu.

Enquanto o sorriso se espalhavapelo rosto dele, algo palpitou dentro deEureka. A contragosto, ela desejousorrir também. Não fazia sentido. Elelhe sorria como se fossem velhosamigos, como Brooks e ela dariamrisadinhas se um deles batesse no carro

do outro. Mas Eureka e aquele garotoeram completos estranhos. Ainda assim,quando o sorriso largo dele resvaloupara um riso suave e íntimo, as bordasdos lábios de Eureka também setorceram para cima.

— Por que está sorrindo? — Elapretendia repreendê-lo, mas saiu comouma risada, o que a deixou espantada,depois chateada. Ela virou a cara. —Esqueça. Não fale nada. Minhamaladrasta vai me matar.

— Não foi sua culpa. — O garotoestava radiante, como se tivesse

acabado de ganhar o prêmio Nobel dosCaipiras. — Você não pediu por isso.

— Ninguém pede — resmungou ela.— Você parou na placa de pare. Eu

bati em você. Sua madrasta vai entender.— É óbvio que você não teve o

prazer de conhecer Rhoda.— Diga a ela que eu vou cuidar do

carro.Ela o ignorou, voltando ao Jeep para

pegar a mochila e retirar o telefone dosuporte do painel. Primeiro ligou para opai. Apertou o número de discagemrápida 2. A discagem rápida 1 ainda

chamava o celular de Diana. Eureka nãosuportaria mudar isso.

Sem surpreender em nada, o telefonedo pai simplesmente ficou tocando.Quando ele terminava seu longo turno,mas antes de sair do restaurante, tinha depreparar cerca de 3 milhões de quilosde frutos do mar fervidos, então as mãosdeviam estar cobertas de antenas decamarão.

— Garanto a você — dizia o garotoao fundo —, vai ficar tudo bem. Vouarrumar tudo. Olha, meu nome é...

— Shhh. — Ela ergueu a mão,

girando o corpo para longe dele eparando na beira do campo de cana-de-açúcar. — Você perdeu minha atençãono “É um Chevy”.

— Desculpe. — Ele a seguiu, ossapatos esmagando os grossos caules decana perto da estrada. — Me deixeexplicar...

Eureka rolou a lista de contatos parapegar o número de Rhoda. Raramenteligava para a mulher do pai, mas agoranão tinha alternativa. O telefone tocouseis vezes antes de entrar a mensageminterminável do correio de voz.

— A única vez que eu realmentequero que ela atenda!

Ela discou de novo para o pai,depois mais uma vez. Tentou o de Rhodamais duas vezes antes de guardar otelefone no bolso. Olhou o sol caindonas copas das árvores. Suas colegas deequipe agora estariam vestidas para acorrida. A treinadora estaria olhando oestacionamento, procurando pelo carrode Eureka. Seu pulso direito aindalatejava. Ela cerrou os olhos de dor aoapertar o pulso no peito. Não havia oque fazer. E começou a tremer.

Encontre um jeito de sair do fosso,garota.

A voz de Diana soou tão perto queEureka ficou tonta. Arrepios subirampelos braços, e algo ardeu no fundo dagarganta. Quando abriu os olhos, ogaroto estava parado bem à frente.Olhava-a com uma preocupação sincera,como Eureka olhava os gêmeos quandoum deles adoecia pra valer.

— Não — disse o garoto.— Não o quê? — A voz tremia

enquanto lágrimas inesperadas seacumulavam nos cantos dos olhos. Eram

intrusas, toldando sua visão perfeita.O céu trovejou, reverberando dentro

de Eureka como faziam os maiorestemporais. Nuvens negras rolavam pelasárvores, fechando o céu com um tumultocinza-esverdeado. Eureka se preparoupara um temporal.

Uma única lágrima transbordou docanto do olho esquerdo e estava prestesa escorrer pelo rosto. Mas antes queconseguisse...

O garoto ergueu o indicador,estendeu-o em sua direção e apanhou alágrima na ponta do dedo. Muito

lentamente, como se segurasse algoprecioso, afastou dela a gota salgada,levando ao próprio rosto. Apertou-a nocanto do olho direito. Depois piscou e agota sumiu.

— Pronto — sussurrou ele. — Nadade lágrimas.

Nota:*Zydeco é um tipo de música do sul daLousiana, que mistura melodias da músicafrancesa a música caribenha e blues. (N. do E.)

3

DESOCUPAÇÃO

Eureka tocou os cantos dos olhos com opolegar e o indicador. Piscou e selembrou da última vez que tinhachorado...

Foi na noite de véspera dadevastação do furacão Rita, em New

Iberia. Numa noite quente e úmida nofinal de setembro, algumas semanasdepois de o furacão Katrina atingir acidade... E as frágeis barragens docasamento dos pais de Eureka tambémnão resistiram e foram inundadas.

Eureka tinha 9 anos. Passara umincômodo verão aos cuidados de um dospais de cada vez. Se Diana a levavapara pescar, desaparecia no quartoassim que chegavam em casa, deixandoo pai escamando e fritando o peixe. Se opai comprasse ingressos para o cinema,Diana mudava de planos e outra pessoa

ficava com seu lugar.Os primeiros verões dos três

velejando por Cypremort Point, com opai colocando algodão-doce da feiraestadual na boca de Eureka e de Diana,pareciam um sonho de que Eureka malconseguia se lembrar. Naquele verão, aúnica coisa que os pais fizeram juntosfoi brigar.

A grande briga ficou fermentandopor meses. Os pais sempre discutiam nacozinha. Algo na calma do pai ali,mexendo e ferventando reduçõescomplexas, parecia provocar Diana.

Quanto mais quentes ficavam as coisasentre eles, mais utensílios de cozinhaDiana quebrava. Quando o furacão Ritaatingiu a cidade, só restavam três pratosno armário.

A chuva caiu forte lá pelo anoitecer,mas não tão forte a ponto de tragar abriga no primeiro andar. Ela começaraquando uma amiga de Diana lhesofereceu uma carona no furgão quedirigia para Houston. Diana queriadesocupar a casa; o pai queria enfrentara tempestade. Eles já haviam tido amesma discussão umas cinquenta vezes,

sob céus de furacão ou sem nuvens.Eureka alternava entre enterrar o rostonum travesseiro e apertar o ouvido naparede para escutar o que os paisdiziam.

Ela ouviu a voz da mãe: “Vocêpensa o pior de todo mundo!”

E o pai: “Pelo menos eu penso!”Depois veio o barulho de vidro se

quebrando no piso frio da cozinha. Umodor pungente e salgado subiu e Eurekaentendeu que Diana tinha quebrado osvidros de quiabo em conserva que o paiguardava no peitoril da janela. Ela ouviu

palavrões, depois mais quebradeira. Ovento gemia fora da casa. O granizochocalhava as janelas.

— Não vou ficar parada aqui! —exclamou Diana. — Não vou esperarpara me afogar!

— Olhe lá fora — disse o pai. —Não pode sair agora. Seria pior.

— Não para mim. Nem para Eureka.O pai se calou. Eureka o imaginou

olhando a mulher, que estaria em umestado de ebulição que ele nuncapermitia a seus molhos. Ele sempredizia a Eureka que o único calor que se

usa quando se ama um molho era ofervilhar mais suave. Mas Diana nuncase deixava temperar.

— Fale! — gritou ela.— Você ia querer sair, mesmo que

não tivesse furacão algum — disse ele.— Você foge. Você é assim. Mas nãopode desaparecer. Tem uma filha...

— Levarei Eureka.— Você tem a mim. — A voz do pai

tremia.Diana não respondeu. As luzes se

apagaram, acenderam-se, depois seapagaram para sempre.

Na frente da porta do quarto deEureka, havia o patamar da escada quedescia à cozinha. Ela se esgueirou deseu quarto e se segurou no corrimão.Olhou os pais acenderem velas egritarem a respeito de quem seria aculpa por eles não terem mais delas.Quando Diana colocou um castiçal noconsolo da lareira, Eureka notou a malaflorida, recheada, ao pé da escada.

Diana se decidira por ir emboraantes que a briga sequer tivessecomeçado.

Se o pai ficasse e a mãe partisse, o

que aconteceria com Eureka? Ninguémdisse a ela para fazer as malas.

Ela odiava quando a mãe saía parauma semana inteira de escavaçãoarqueológica. Aquilo parecia diferente,banhado em um brilho doentio deeternidade. Ela caiu de joelhos eencostou a testa no corrimão. Umalágrima deslizou pelo rosto. Sozinha noalto da escada, Eureka soltou um soluçodolorido.

Uma explosão de vidro quebradosoou acima dela. Eureka se abaixou ecobriu a cabeça. Espiando por entre os

dedos, viu que o vento tinha empurradoo canto de um galho grande do carvalhono quintal pela janela do segundo andar.Choveu vidro em seu cabelo. Jorrouágua pelo talho na vidraça. A camisolade algodão de Eureka ficou ensopadanas costas.

— Eureka! — gritou o pai, correndoescada acima.

Mas antes que conseguisse alcançá-la, veio um estranho rangido do hallabaixo. Enquanto o pai girava paralocalizar a origem, Eureka viu a portado armário do boiler explodir das

dobradiças.Uma corrente de água jorrou de

dentro do armário pequeno. A porta demadeira girou de lado como umajangada levada por uma onda. Eurekaprecisou de um instante para perceberque o boiler tinha rachado ao meio, queseu conteúdo transformava o hall numabanheira gigante. Canos sibilavam aolançar jatos pelas paredes, retorcendo-se como cobras enquanto cuspiam. Aágua ensopou o carpete, batia noprimeiro degrau da escada. A força dovazamento chegou às cadeiras da

cozinha. Uma delas derrubou Diana, quetambém corria na direção de Eureka.

— Só vai piorar — gritou Dianapara o marido.

Ela tirou a cadeira do caminho e seendireitou. Quando olhou para Eureka,uma estranha expressão cruzou seurosto.

O pai estava no meio da escada. Seuolhar disparava entre a filha e oesguicho do boiler, como se nãosoubesse do que cuidar primeiro.Quando a água jogou a porta arrancadado armário na mesa de centro da sala de

estar, o espatifar do vidro fez Eurekapular. O pai lançou a Diana um olhar deódio que atravessou o espaço entre elescomo um raio.

— Eu lhe disse que devíamos terchamado um encanador de verdade emvez do idiota do seu irmão! — Elelançou a mão para Eureka, cujo lamentoelevava-se a um gemido rouco. — Váreconfortá-la.

Mas Diana já empurrara o marido,abrindo caminho na escada. Ela pegouEureka nos braços, espanou o vidro deseu cabelo e a carregou para o quarto,

longe da janela e da árvore invasora. Ospés de Diana deixavam pegadasencharcadas no carpete. O rosto e asroupas estavam ensopados. Ela sentouEureka na antiga cama de baldaquino e asegurou rudemente pelos ombros. Umaintensidade selvagem enchia seus olhos.

Eureka fungou.— Estou com medo.Diana olhou a filha como se não

soubesse quem ela era. Depois a palmade sua mão voou para trás, e ela bateuem Eureka, com força.

Eureka paralisou no meio do

gemido, pasma demais para se mexer ourespirar. Toda a casa pareciareverberar, ecoando o tapa. Diana securvou para mais perto. Seus olhos secravaram nos da filha. Ela falou no tommais grave que Eureka ouviu na vida:

— Nunca, jamais volte a chorar.

4

CARONA

A mão de Eureka foi ao rosto enquantoela abria os olhos e voltava à cena docarro batido e ao garoto desconhecido.

Ela jamais havia pensado naquelanoite. Mas agora, na estrada quente edeserta, sentia a ardência da palma da

mão materna em sua pele. Foi a únicavez que Diana bateu nela. A única vezque assustou Eureka. Elas não voltarama falar nisso, mas Eureka nuncaderramou outra lágrima — até agora.

Não era a mesma coisa, disse a simesma. Aquelas lágrimas foramtorrenciais, vertidas quando os pais sesepararam. O impulso repentino dechorar por um Jeep amassado já seretirava para dentro dela, como se nuncativesse vindo à tona.

Nuvens velozes formavam grumosno céu, fervilhando um cinza

desagradável. Eureka olhou ocruzamento vazio, o mar de cana-de-açúcar alta e loura margeando a estradae a clareira ampla e verde depois dalavoura; tudo era imobilidade e espera.Ela tremia, instável, como aconteciadepois de correr por uma longa trilhanum dia quente sem beber água.

— O que aconteceu agora? — Ela sereferia ao céu, a sua lágrima, aoacidente, tudo que se passara desde queela o encontrou.

— Talvez uma espécie de eclipse —disse ele.

Eureka virou a cabeça para que oouvido direito ficasse mais perto dele,para assim ouvi-lo com clareza.Detestava o aparelho auditivo a que tevede se adaptar depois do acidente. Nuncao usava, enfiara sua caixa em algumlugar no fundo do armário e dissera aRhoda que lhe dava dor de cabeça. Elase acostumou a virar a cabeçasutilmente; a maioria das pessoas nemnotava. Mas o garoto parecia perceber.Ele se aproximou mais do ouvido bom.

— Parece que agora acabou. — Suapele clara brilhava na escuridão

peculiar. Eram só 16h, mas o céu estavaescuro como na hora que antecede onascer do sol.

Ela apontou o próprio olho, depois odele, destino de sua lágrima.

— Por que você...?Eureka não sabia como fazer a

pergunta; era bizarra demais. Ela oolhou atentamente, seus jeans escuros ebonitos, o tipo de camisa branca que nãose vê nos meninos da região. Os sapatossociais marrons estavam engraxados.Ele não parecia ser dali. Mas as pessoasdiziam o mesmo de Eureka o tempo todo

e ela era nascida e criada em NewIberia.

Ela examinou o rosto dele, o formatodo nariz, como as pupilas se alargavamsob seu olhar atento. Por um momento,estas feições pareciam se toldar, comose Eureka o estivesse vendo debaixo daágua. Ocorreu-lhe que se pedissem paradescrever o garoto no dia seguinte,talvez não se lembrasse de seu rosto.Esfregou os olhos. Lágrimas idiotas.

Quando o olhou novamente, asfeições entraram em foco, acentuadas.Belas feições. Não tinham nada de

errado. Ainda assim... A lágrima. Elanão havia feito isso. O que deu nela?

— Meu nome é Ander. — Eleestendeu a mão educadamente, como seum minuto antes não tivesse enxugado oolho de Eureka num gesto íntimo, comose não fosse a coisa mais estranha e sexyque alguém fizera na vida dela.

— Eureka.Ela apertou sua mão. Qual das

palmas estava suando, a dela ou a dele?— Onde arranjou um nome assim?As pessoas dali supunham que

Eureka tinha sido batizada com o nome

de uma cidadezinha bem ao norte deLouisiana. Deviam pensar que os paisescapuliram para lá num fim de semanade verão no velho Continental do pai,parando para passar a noite quandoficaram sem gasolina. Ela jamais contoua verdadeira história a ninguém, só aBrooks e Cat. Era difícil convencer aspessoas de que aconteciam coisas alémdo que elas já sabiam.

A verdade era que a mãe de Eureka,quando engravidou ainda adolescente,fugiu da Louisiana o mais rápido quepôde. Foi de carro para o oeste no meio

da noite, violando escandalosamentetodas as rígidas regras dos pais, eterminou numa comunidade hippie pertodo lago Shasta, na Califórnia, lugar queo pai ainda chamava de “o vórtice”.

Mas eu voltei, não foi? Diana riaquando ainda era jovem e amava o pai.Sempre volto.

No oitavo aniversário de Eureka,Diana a levou até lá. Passaram algunsdias com os velhos amigos da mãe nacomunidade, jogando baralho e bebendosidra de maçã — turva e integral.Depois, quando começaram a se sentir

no interior demais — o que aconteciarapidamente com os cajuns —, foram decarro ao litoral e comeram ostras queestavam salgadas, frias e exibindopedaços de gelo grudados nas conchas,como aquelas com que as crianças dobayou eram criadas. No caminho paracasa, Diana pegou a rodovia litorâneapara a cidade de Eureka, apontando nabeira da estrada a clínica onde a filhahavia nascido, oito anos antes, num 29de fevereiro.

Mas Eureka não falava de Dianacom qualquer um porque a maioria das

pessoas não compreendia o milagrecomplexo que sua mãe havia sido e eradoloroso se esforçar para defenderDiana. Então ela guardava tudo para si,criando um muro entre ela, o mundo epessoas como aquele garoto.

— Ander não é um nome que seouve todo dia.

Os olhos dele baixaram, e elesouviram um trem indo para o oeste.

— Nome de família.— Quem é o seu pessoal?Ela sabia que se parecia com todos

os outros cajuns* que pensavam que o

sol nascia e se punha em seu bayou.Eureka não pensava assim, jamais, mashavia algo naquele cara que lhe dava aimpressão de ter aparecidoespontaneamente ao lado do canavial.Parte de Eureka achava isso empolgante.Outra parte — a parte que queria seucarro consertado — estava angustiada.

Rodas de carro revirando o cascalhoatrás deles fizeram Eureka virar acabeça. Quando viu o reboqueenferrujado parar num solavanco a suascostas, ela gemeu. Através do para-brisaquebrado, ela mal conseguia enxergar o

motorista, mas toda a New Iberiareconhecia o reboque de CoryContravenção.

Nem todos o chamavam assim — sóas mulheres dos 13 aos 55 anos, quasetodas já tendo lutado com os olhos oumãos errantes dele. Quando não estavarebocando carros ou dando em cima demulheres casadas ou menores de idade,Cory Marais estava no pântano:pescando, catando caranguejos, virandolatas de cerveja, absorvendo aputrescência reptiliana do charco nospenhascos de sua pele queimada de sol.

Ele não era velho, mas parecia arcaico,o que tornava seus avanços ainda maisarrepiantes.

— Precisa de reboque? — Eleapoiou um cotovelo na janela de seucaminhão cinzento. Um bloco de tabacode mascar se alojava no interior dabochecha.

Eureka não tinha pensado em chamarum reboque — provavelmente porqueCory era o único na cidade. Não sabiacomo os encontrara. Eles estavam numaestrada secundária por onde malpassava alguém.

— Você é clarividente ou coisaassim?

— Eureka Boudreaux e suas tiradasengraçadinhas. — Cory olhou de soslaiopara Ander, como se buscasse apoiopara a esquisitice de Eureka. Masquando viram mais atentamente o garoto,os olhos de Cory se estreitaram e suaabordagem mudou. — Você é de fora?— perguntou ele a Ander. — Essegaroto bateu em você, Reka?

— Foi um acidente. — Eureka seviu defendendo Ander. Ficavaincomodada quando os moradores

pensavam que era Cajuns contra oMundo.

— Não foi o que o velho Big Jeanfalou. Fio ele quem avisou que vocêprecisava de reboque.

Eureka fez que sim, tendo a perguntarespondida. Big Jean era um viúvobonzinho e idoso que morava na cabanaa cerca de 400 metros daquela estrada.Tinha uma esposa diabólica chamadaRita, mas ela havia morrido há cerca deuma década e Big Jean não se aguentoumuito bem sozinho. Quando o furacãoRita passou pelo bayou feito um trator, a

casa de Big Jean foi duramente atingida.Eureka ouviu sua voz rouca dizer, vintevezes, “A única coisa pior que aprimeira Rita foi a segunda Rita. Umaficou na minha casa, a outra a derrubou”.

A cidade o ajudou a reconstruir acabana, e, embora ficasse a quilômetrosda praia, ele insistia em cercar o lugartodo em palafitas de 6 metros,resmungando “Aprendi a lição, aprendia lição”.

Diana costumava levar tortas semaçúcar para Big Jean. Eureka ia com elae tocava seu velho jazz Dixieland de 78

rotações. Eles sempre se gostaram.Da última vez que ela o viu, seu

diabetes havia piorado, e ela sabia queele não descia aquela escada comfrequência. Tinha um filho adulto quelhe levava mantimentos, mas na maiorparte do tempo Big Jean ficavaempoleirado na varanda, na cadeira derodas, vendo as aves do pântano pelobinóculo. Devia ter visto o acidente echamado o reboque. Ela olhou para suacabana elevada e viu seu braçoacenando de roupão.

— Obrigada, Big Jean! — gritou

ela.Cory já saíra do caminhão e atrelava

Magda ao reboque. Vestia uma calçabaggy escura e camisa de basquete. Seusbraços eram sardentos e imensos. Ela oobservou prender os cabos ao chassi deseu carro. Ressentiu-se do assovio baixoque ele soltou quando avaliou os danosna traseira de Magda.

Ele fazia tudo devagar, menosenganchar o reboque, e pela primeiravez Eureka ficou grata por Cory morarperto. Ela ainda tinha esperanças deconseguir chegar à escola a tempo para

a corrida. Faltavam vinte minutos eainda não decidira se disputaria a provaou desistiria.

O vento farfalhava o canavial. Eraquase fauchaison, a época da colheita.Ela olhou para Ander, que a observavacom uma concentração que a fez sesentir nua, e se perguntou se eleconhecia a região tão bem quanto ela, sesabia que dali a duas semanasapareceriam agricultores em tratorespara cortar a cana pela base, deixandoque crescesse por mais três anos noslabirintos por onde as crianças corriam.

Ela se perguntou se Ander tinha corridopor aqueles campos como a própriaEureka e cada criança do bayou. Teriapassado as mesmas horas ouvindo ofarfalhar árido de seus caules dourados,pensando que não havia som mais lindono mundo do que a cana amadurecendo?Ou Ander só estava de passagem?

Depois que o carro de Eureka estavabem preso, Cory olhou a picape deAnder.

— Precisa de alguma coisa, garoto?— Não, senhor, obrigado. — Ander

não tinha o sotaque cajun, e suas

maneiras eram formais demais para ointerior. Eureka se perguntou se Coryalgum dia na vida fora chamado de“senhor”.

— Muito bem, então. — Coryparecia melindrado, como se Anderfosse ofensivo de modo geral. —Vamos, Reka. Precisa de uma caronapara algum lugar? Como o salão debeleza? — Ele riu, apontando o cabelomanchado dela.

— Cala a boca, Cory. — “Beleza”parecia “feiura” em sua boca.

— Estou brincando. — Ele estendeu

a mão para puxar seu cabelo, masEureka se retraiu. — O estilo dasmeninas hoje é assim? É bem... Beminteressante. — Ele uivou, depois virouo polegar para a porta do carona de seucaminhão. — Tá certo, maninha, suba nacabine. Nós, cajundas, precisamos nosunir.

O linguajar de Cory era nojento. Seucaminhão era nojento. Uma olhada pelajanela aberta disse a Eureka que ela nãoqueria uma carona naquilo. Haviarevistas obscenas por toda parte e sacosgordurosos de torresmo no painel. Um

aromatizador de hortelã estavapendurado no retrovisor, encostadonuma imagem de Santa Teresa. As mãosde Cory estavam pretas da graxa doeixo. Ele precisava do tipo de lavagemde alta pressão reservada para castelosmedievais manchados de fuligem.

— Eureka — disse Ander. — Euposso lhe dar uma carona.

Ela se viu pensando em Rhoda,perguntando-se o que ela diria seestivesse ali sentada de terno executivoe ombreiras, sussurrando no ouvido deEureka. Nenhuma opção constituía o que

a mulher do pai chamaria de “decisãosensata”, mas pelo menos Cory era umfenômeno conhecido. E os reflexosrápidos de Eureka podiam manter asmãos do sujeito horripilante no volante.

Mas havia Ander...Por que Eureka estava pensando nos

conselhos Rhoda e não nos de Diana?Ela não queria ser parecida em nadacom Rhoda. Queria ser muito mais comoa mãe, que nunca falava de segurança oujulgamentos críticos. Diana falava depaixão e sonhos.

E ela se fora.

E era só uma carona até a escola,não uma decisão transformadora.

Seu telefone zumbia. Era Cat:Deseje-nos sorte para a Manor comerpoeira. Toda a equipe sente sua falta.

A corrida aconteceria em 18minutos. Eureka pretendia desejar sortea Cat pessoalmente, independentementede ela decidir se correria ou não. Elaassentiu de leve para Ander — tudobem — e aproximou-se da pick-up.

— Leve o carro ao Sweet Pea’s,Cory — disse ela da porta do carona. —Meu pai e eu o pegaremos lá depois.

— Como quiser. — Cory entrou nocaminhão, irritado. Fez um gesto com acabeça para Ander. — Cuidado comesse sujeito. Ele tem uma cara que euqueria esquecer.

— Tenho certeza de que vai —murmurou Ander, enquanto abria a portado motorista.

O interior de sua picape eraimaculado. Devia ter uns trinta anos,mas o painel brilhava como se tivessesido polido à mão. O rádio tocava umamúsica antiga de Bunk Johnson. Eurekadeslizou para o banco de couro macio e

colocou o cinto.— Eu já devia estar de volta à

escola — disse ela, enquanto Anderligava o carro. — Pode passar por lá?Será mais rápido se você pegar as...

— Estradas secundárias, eu sei. —Ander virou à esquerda na estrada deterra sombreada que Eureka consideravaseu atalho. Ela olhou enquanto elepisava no acelerador, dirigindo comfamiliaridade pela estrada ladeada demilho que quase ninguém usava.

— Eu vou para a Evangeline High.Fica na...

— Woodvale com Hampton — disseAnder. — Eu sei.

Ela coçou a testa, perguntando-se derepente se aquele cara era da mesmaescola, se ele se sentou atrás dela naaula de inglês por três anos seguidos oucoisa assim. Mas ela conhecia cada umdos 266 alunos de sua pequena escolacatólica de ensino médio. Pelo menos,conhecia-os de vista. Se alguém comoAnder fosse da Evangeline, elacertamente saberia. Cat com toda certezaficaria caidinha por ele, e assim,segundo as leis das melhores amigas,

Eureka teria decorado o aniversáriodele, seu destino preferido nos fins desemana e a placa do carro.

Então, de que escola ele era? Emvez de ter um monte de adesivos depara-choque ou a parafernália demascotes no painel, como a maioria doscarros da galera de escolas públicas, apicape de Ander era despojada. Umsimples quadrado de alguns centímetrosde largura preso no retrovisor. Tinha umfundo prata metalizado e mostrava umbonequinho palito azul segurando umalança apontada para o chão. Ela se

curvou para examinar, notando quetrazia a mesma imagem dos dois lados.Tinha cheiro de citronela.

— Aromatizador — disse Ander,enquanto Eureka sentia seu cheiro. —Dão no lava-jato.

Ela se recostou no banco. Andernem mesmo tinha uma mochila. Narealidade, a bolsa roxa e estufada deEureka estragava a limpeza da picape.

— Nunca vi um cara com um carrotão imaculado. Não tem dever de casa?— Ela brincou. — Livros?

— Sei ler livros — disse ele

rispidamente.— Tudo bem, você é alfabetizado.

Desculpe.Ander franziu a testa e aumentou a

música. Parecia distante até elaperceber que a mão dele tremia ao giraro dial. Ele sentiu que ela notava e voltoua cerrar a mão no volante, mas davapara perceber: o acidente também oabalara.

— Gosta deste tipo de música? —perguntou ela, enquanto um búteo-de-cauda-vermelha percorria o céu cinzentodiante deles, procurando o jantar.

— Gosto de coisas antigas.Sua voz soou baixa, insegura,

enquanto ele fazia outra curva aceleradapela estrada de cascalho. Eureka olhou orelógio e notou com prazer que talvezrealmente chegasse a tempo. Seu corpoqueria aquela corrida; ajudaria aacalmá-la antes de enfrentar o pai eRhoda, antes de ter de dar a notícia doferro-velho amassado chamado Magda.A treinadora ganharia o mês se Eurekacorresse hoje. Talvez ela pudessevoltar...

Seu corpo foi jogado para a frente

quando Ander pisou no freio. O braçodele disparou pela cabine da picapepara segurar o corpo de Eureka nobanco, como o braço de Dianacostumava fazer, e foi um susto: a mãodele nela.

O carro guinchou numa freadaabrupta, e Eureka viu o motivo. Anderpisou no freio para não atropelar um dosmuitos esquilos que entremeavam, comoo sol, as árvores da Louisiana. Elepareceu perceber que seu braço ainda aprendia no banco. A ponta de seus dedosapertava a pele abaixo do ombro de

Eureka.Ele deixou a mão cair. Prendeu a

respiração.Os irmãos gêmeos de 4 anos de

Eureka uma vez passaram o verãointeiro tentando pegar um daquelesesquilos no quintal. Eureka sabia que osanimais eram rápidos. Eles seesquivavam de carros várias vezes pordia. Ela nunca viu ninguém pisar nofreio para não atropelar um deles.

O animal também parecia surpreso.Ficou petrificado, espiando pelo para-brisa por um instante, como se quisesse

agradecer. Depois disparou pelo troncocinzento de um carvalho e sumiu.

— Ora, seu freio funciona muitobem. — Eureka não conseguiu se conter.— Que bom que o esquilo escapou como rabo intacto.

Ander engoliu em seco e pisou noacelerador de novo. Lançou longosolhares de esguelha a ela —descaradamente, não como os meninosda escola, que eram mais furtivos nasencaradas. Ele parecia procurar pelaspalavras.

— Eureka... Desculpe.

— Pegue a esquerda aqui — disseela.

Ele já estava entrando à esquerda naestrada estreita.

— Não, é sério, eu queria poder...— É só um carro. — Ela o

interrompeu. Os dois estavam tensos.Ela não devia ter implicado com ele porcausa do esquilo. Ele tentava ser maiscauteloso. — Vão consertar no SweetPea’s. De qualquer modo, o carro não égrande coisa para mim. — Ander seapegou ao que Eureka dizia, e elapercebeu que parecia uma mimadinha de

escola particular, o que não era. —Pode acreditar, estou agradecida por tercomo me deslocar. Mas sabe, é só umcarro, só isso.

— Não.Ander abaixou a música enquanto

eles entravam na cidade e passavampelo Neptune’s, a horrível lanchoneteonde os alunos da Evangeline seencontravam depois da escola. Ela viuumas meninas de sua turma de latimtomando refrigerante em copos de papelvermelho e se encostando na grade,conversando com uns caras mais velhos

de óculos escuros e cheios de músculos.Ela deu as costas a eles para seconcentrar na rua. Eles estavam a duasquadras da escola. Logo ela estaria foradaquela picape e correria para ovestiário, depois para o bosque. Elasupôs que isso significava que tinha sedecidido.

— Eureka.A voz de Ander a alcançou,

interrompendo seus planos de vestir ouniforme o mais rápido possível. Elanão trocaria as meias, só vestiriao short, tiraria a blusa...

— Eu quis me desculpar por tudo.Tudo? Eles pararam na estrada dos

fundos da escola. Do lado de fora,depois do estacionamento, a pista eradesgastada e antiga. Um aro de terraacidentado e sem pavimentação cercavaum campo de futebol melancólico,marrom e sem uso. A equipe de corridacross-country se aquecia ali, mas suasprovas aconteciam no bosque depois dapista. Eureka não conseguia imaginarnada mais tedioso que correr sem pararpor uma pista. A treinadora sempretentava convencê-la a se juntar à equipe

de revezamento na temporada deprimavera, mas que sentido tinha correrem círculos, sem chegar a lugar algum?

O resto da equipe já estava vestido,fazendo alongamentos ou se aquecendonos trechos retos da pista. A treinadoraolhava feio para a prancheta, certamenteperguntando-se por que ainda não tinhatirado o nome de Eureka da lista. Catgritava com duas alunas do penúltimoano que desenharam alguma coisa emmarcador preto nas costas do uniforme— motivo pelo qual Cat e Eurekacostumavam ouvir broncas quando

tinham a mesma idade.Ela soltou o cinto de segurança.

Ander pedia desculpas por tudo? Eleestava se referindo à batida no carro, éclaro. Nada mais que isso. Porque comoele podia saber de Diana?

— Tenho de ir — disse ela. —Estou atrasada para minha...

— Corrida cross-country. Eu sei.— Como sabia disso? Como você

sabia de todos os...Ander apontou o emblema do cross-

country da Evangeline no bordado nalateral da bolsa de Eureka.

— Ah.— E também — Ander desligou o

motor —, porque eu sou da equipe daManor.

Ele contornou a frente da picape eabriu a porta do carona. Ela saiu,embasbacada. Ele lhe entregou suabolsa.

— Obrigada.Ander sorriu e correu para a lateral

do campo, onde estava reunida a equipeda Manor High. Olhou por sobre oombro, com malícia brilhando nosolhos.

— Você vai perder.

Nota:* Como são chamados os descendentes dosacadianos no sul da Louisiana. Os cajuns têmcultura própria, principalmente a variadamúsica popular e famosa culinária. (N. do E.)

5

SAÍDA DE ROMPANTE

Cat Estes tinha um jeito todo pessoal dearquear a sobrancelha esquerda eestacionar a mão no quadril que Eurekasabia que significava fofoca. Sua melhoramiga tinha sardas grandes e escurassalpicadas pelo nariz, um espaço

charmoso entre os dentes da frente,curvas em todos os lugares que Eurekanão tinha e cabelo com luzes em trançasgrossas.

Cat e Eureka moravam no mesmobairro, perto do campus. O pai de Catera professor de estudos afro-americanos na universidade. Cat e oirmão mais novo, Barney, eram osúnicos alunos negros da Evangeline.

Quando Cat viu Eureka — de cabeçabaixa, correndo da picape de Ander,tentando não ser vista pela treinadora—, concluiu o sermão que dava nas

alunas do segundo ano que violavam ouniforme. Eureka ouviu sua ordem àsmeninas para fazerem cinquenta flexõessobre os nós dos dedos antes de passarrodando por elas.

— Abram o mar, por favor! —gritou Cat, enquanto avançava por umgrupo de calouros que encenavam umabatalha com copos de papel triangulares.

Cat era uma velocista; pegou obraço de Eureka antes que ela seenfiasse no vestiário. Nem mesmoestava sem fôlego.

— Voltou para a equipe?

— Eu disse à treinadora quecorreria hoje — respondeu Eureka. —Não quero estardalhaço.

— Claro. — Cat fez que sim. —Mas temos outras coisas para conversar.

A sobrancelha esquerda se elevou auma altura impressionante. A mãodeslizou para o quadril.

— Quer saber do cara da picape —adivinhou Eureka, abrindo a pesadaporta cinza do vestiário e empurrando aamiga para dentro.

O lugar estava vazio, mas apersistente presença do calor e dos

hormônios de tantas adolescentes erapalpável. Armários entreabertosderramavam, no piso caramelo deladrilho, secadores de cabelo, caixas decosméticos manchadas de base edesodorantes azuis. Vários objetos docódigo de vestimenta leniente daEvangeline jaziam arbitrariamente porcada superfície. Eureka não tinha estadoali naquele ano, mas podia imaginartranquilamente como a saia havia voadopor aquela porta de armário no meio deuma conversa sobre uma horrível provade religião, ou como aqueles sapatos

foram desamarrados enquanto alguémcochichava com uma amiga sobre umJogo da Garrafa no sábado anterior.

Eureka antigamente adorava asfofocas do vestiário; era parte tãoessencial de pertencer à equipe quantocorrer. Hoje estava aliviada por setrocar num vestiário vazio, mesmo queisto significasse que precisavase apressar. Ela largou a bolsa e tirou ossapatos aos chutes.

— Hummm, é, quero saber do carada picape. — Cat tirou o short decorrida e a camisa polo da bolsa de

Eureka, prestativa. — E o que houvecom seu rosto? — Ela gesticulou para osarranhões que o airbag fez na maçã dorosto e no nariz de Eureka. — É melhorter uma história prontinha para atreinadora.

Eureka virou a cabeça totalmentepara baixo para puxar o cabelocomprido num rabo de cavalo.

— Eu já disse a ela que tinha horacom a médica e podia me atrasar umpouco...

— Se atrasar muito. — Cat estendeuas pernas nuas pelo banco e alcançou os

sapatos, alongando-se bem. — Esqueça.E a história com o Monsieur Gatão?

— Ele é um idiota — mentiu Eureka.Ander não era idiota. Era incomum,difícil de entender, mas não idiota. —Ele bateu no meu carro numa placa depare. Estou bem — acrescentourapidamente. — Só estes arranhões. —Passou o dedo pela bochecha sensível.— Mas Magda sofreu perda total. Tivede chamar o reboque.

— Ai, não. — Cat franziu a cara. —Cory Contravenção? — Ela não era deNew Iberia; morara a vida toda na

mesma casa linda em Lafayette. Masainda assim passava bastante tempo nacidade natal de Eureka para conhecer oelenco local de personagens.

Eureka assentiu.— Ele me ofereceu uma carona, mas

eu não ia...— De jeito nenhum. — Cat entendia

a impossibilidade de se sentar ao ladode Cory no caminhão. Ela estremeceu,balançando a cabeça de modo que astranças bateram no rosto. — Pelo menoso Batidão... Podemos chamá-lo deBatidão? Pelo menos ele te deu uma

carona.Eureka meteu a blusa pela cabeça e

a prendeu no short. Começou a amarraros cadarços dos tênis.

— O nome dele é Ander. E nãoaconteceu nada.

— “Batidão” soa melhor. — Catespremeu filtro solar na mão e passou deleve no rosto de Eureka, tomandocuidado com os arranhões.

— Ele é da Manor, por isso metrouxe aqui. Vou correr contra ele daquia alguns minutos e provavelmente voume dar mal porque não fiz aquecimento.

— Ahhhh, isso é tão estimulante. —De repente Cat estava em seu própriomundo, gesticulando sem parar. — Estouvendo a adrenalina alta da corrida setransformando numa ardente paixão nalinha de chegada. Estou vendo suor.Estou vendo vapor. O amor que “superadistâncias”...

— Cat — disse Eureka. — Chega.Por que as pessoas estão tentando mearranjar alguém hoje?

Cat seguiu Eureka para a porta.— Eu tento te arrumar alguém todo

dia. Que sentido tem viver sem

namorar?A melhor amiga de Eureka era tão

inteligente e durona — Cat era faixa azulem caratê, falava francês nativo comuma pronúncia invejável e haviaconseguido uma bolsa no verão anteriorpara um acampamento de biologiamolecular na LSU — quanto umaromântica exaltada. A maioria dosalunos da Evangeline não sabia o quantoela era inteligente porque a obsessãopor meninos tendia a obscurecer estefato. Ela se encontrava com garotos acaminho do banheiro no cinema, não

tinha um sutiã que não fosse todo derenda e realmente tentava juntar todomundo que conhecia o tempo todo. Umavez, em Nova Orleans, Cat até tentouunir dois sem-teto na Jackson Square.

— Peraí... — Cat parou e tombou acabeça de lado para Eureka —, quemmais está tentando te descolar alguém?Essa é minha especialidade.

Eureka apertou a barra de metal paraabrir a porta e saiu para o fim de tardeúmido. Nuvens baixas e cinza-esverdeadas ainda cobriam céu. O arparecia ansioso por uma tempestade. A

oeste, havia um bolsão sedutor declaridade onde Eureka podia ver o solbaixando de mansinho, transformando alasca de céu sem nuvens num tom escurode violeta.

— Minha incrível nova psiquiatraacha que estou a fim de Brooks — disseEureka.

Na ponta do campo, o apito datreinadora reuniu o resto da equipedebaixo das traves de futebolenferrujadas. A equipe visitante daManor se reunia na outra extremidade.Eureka e Cat teriam de passar por eles,

o que deixou Eureka nervosa, mas elaainda não vira Ander. As meninascorreram para sua equipe, pretendendopassar despercebidas por trás do grupo.

— Você e Brooks? — Cat fingiusurpresa. — Estou chocada. Querodizer, simplesmente estou... Bem,pasma, é isso que estou.

— Cat. — Eureka usou seu tomsério, o que fez Cat parar de correr. —Minha mãe.

— Eu sei. — Cat abraçou Eureka e aapertou. Tinha os braços magricelas,mas seus abraços eram fortes.

Elas pararam na arquibancada, duaslongas filas de bancos enferrujados decada lado da pista. Eureka ouvia atreinadora falando de ritmo, da provaregional no mês seguinte, de encontrar aposição certa no arco de largada. SeEureka fosse capitã, estaria falando coma equipe sobre esses temas. Sabia comofazer a preleção pré-corrida atédormindo, mas não imaginava ficarparada diante de ninguém, dizendoalguma coisa com tanta convicção.

— Você ainda não está pronta parapensar em meninos — disse Cat, os

lábios colados no rabo de cavalo deEureka. — Cat idiota.

— Não comece a chorar. — Eurekaapertou Cat com mais força.

— Tá legal, tá legal. — Cat fungou ese afastou. — Sei que você detestaquando choro.

Eureka se encolheu.— Eu não detesto quando você...Ela se interrompeu. Seus olhos

pegaram os de Ander quando o rapazsaía do vestiário dos visitantes do outrolado da pista. O uniforme dele nãocombinava muito com o dos outros

garotos — a gola amarela pareciadescorada; os shorts eram mais curtosque os usados pelos outros. O uniformeparecia datado, como aqueles das fotosdesbotadas de equipes cross-country dopassado que ocupavam as paredes doginásio. Talvez fosse herança de umirmão mais velho, mas parecia o tipo decoisa que se compra no Exército daSalvação depois que um garoto se formae a mãe dele limpa seu armário paraabrir mais espaço para os sapatos.

Ander observava Eureka, alheio atodo o resto: sua equipe na ponta do

campo, nuvens prenhes baixando no céu,que olhar peculiar era aquele. Ele nãoparecia perceber que era incomum. Outalvez não se importasse.

Eureka se importou. Baixou osolhos, corando. Recomeçou a correr.Lembrou-se da sensação da lágrima seacumulando no canto do olho, o toquesurpreendente do dedo de Ander nalateral de seu nariz. Por que ela chorouna estrada naquela tarde quando nemchegou perto de chorar no enterro daprópria mãe? Ela não chorou quandoeles a trancaram num sanatório por duas

semanas. Não chorava desde... a noiteem que Diana a esbofeteou e saiu decasa.

— Epa — disse Cat.— Não olhe pra ele — murmurou

Eureka, certa de que Cat se referia aAnder.

— Ele quem? — cochichou Cat. —Estou falando da Feiticeira ali. Não semeta, e talvez ela não nos veja. Nãoolhe, Eureka, não...

É impossível não olhar quandoalguém diz para não olhar, mas umaespiada rápida fez com que Eureka se

arrependesse.— Tarde demais — murmurou Cat.— Boudreaux.O sobrenome de Eureka pareceu

estremecer como uma onda de choquepelo campo.

Maya Cayce tinha a voz grave de umadolescente. Podia enganar, até que sevia seu rosto. Alguns nunca serecuperavam inteiramente dessaprimeira encarada. Maya Cayce eraextraordinária, com cabelos pretos edensos que caíam em ondas largas até acintura. Era famosa por seu andar

acelerado pelos corredores da escola,assim como por sua surpreendenteelegância magra, graças a pernas que seestendiam por décadas. A pele macia ebrilhante abrigava dez das mais lindas ecomplexas tatuagens que Eureka já haviavisto — inclusive uma trança de trêsplumas diferentes descendo pelo braço,um pequeno retrato no estilo camafeu damãe no ombro e um pavão dentro de umapena de pavão abaixo da clavícula — e,todas desenhadas por ela mesma e feitasem um lugar chamado Electric Ladyland,em Nova Orleans. Ela era do último

ano, patinadora, diziam os boatos queera Wicca, transcendia todos osgrupinhos, contralto no coro, campeãestadual de hipismo e odiava EurekaBoudreaux.

— Maya. — Eureka assentiu, masnão reduziu o ritmo.

Em sua visão periférica, Eurekasentiu Maya Cayce surgir da beira daarquibancada. Viu o borrão preto damenina dando longas passadas paraparar diante dela.

Eureka derrapou para evitar umacolisão.

— Sim?— Onde ele está? — Maya usava

um micro vestido, preto e delicado, commangas extralongas e extralargas, eestava sem maquiagem, salvo por umacamada de sombra preta. Ela bateu aspestanas.

Procurava por Brooks. Sempreprocurava por Brooks. Como podiaainda estar pendurada no amigo maisantigo de Eureka depois de terem saídoduas vezes no ano anterior era um dosmistérios mais inescrutáveis da galáxia.Brooks era o típico vizinho bonzinho.

Maya Cayce era fascinante. Aindaassim, de algum modo, ela era doidapelo garoto.

— Eu nem o vi — disse Eureka. —Não notou que estou na equipe cross-country e que estamos prestes acomeçar uma corrida?

— De repente a gente ajuda você aperseguir Brooks depois. — Cat tentoupassar por Maya, que era no mínimo 30centímetros mais alta que ela, com seussapatos plataforma de salto quinze. —Ah, peraí, não. Esta noite estou ocupada.Estou matriculada num seminário da

web. Desculpe, Maya, você está sozinhanessa.

Maya ergueu o queixo, parecendorefletir se tomaria aquilo como umaofensa. Se você examinasse bem cadaum de seus traços pequenos e lindos, elana verdade parecia ter bem menos de 17anos.

— Prefiro trabalhar sozinha. —Maya Cayce olhou para Cat de narizempinado. Seu perfume cheirava apatchouli. — Ele disse que ia dar umapassada aqui, e pensei que a Circo dosHorrores aí... — apontou para Eureka

— ... podia saber.— Não.Eureka se lembrava agora de que

Brooks era a única pessoa com quemconfidenciara sobre o acordo com atreinadora. Ele não disse a ela quepretendia vir à corrida, mas seria umdoce da parte dele se viesse. Um doceaté que se acrescentasse Maya Cayce àreceita; aí a coisa azedava.

Enquanto Eureka passava por elacom um esbarrão, algo bateu em suacabeça, atrás, pouco acima do rabo decavalo. Devagar, ela girou o corpo e viu

a palma da mão de Maya Cayce seretrair. O rosto de Eureka ardeu. Suacabeça doía, mas o orgulho ferido era opior.

— Tem alguma coisa que queira medizer Maya, talvez na minha cara?

— Ah. — A voz rouca de MayaCayce se abrandou, adocicando-se. —Tinha um mosquito na sua cabeça. Sabeque eles transmitem doenças e se juntamem água parada.

Cat bufou, pegando Eureka pela mãoe puxando-a para o campo. Gritou porsobre o ombro:

— Você transmite malária, Maya!Chame a gente quando conseguir umpalco pra se apresentar.

O triste era que Eureka e Mayaantigamente eram amigas, antes decomeçarem na Evangeline, antes deMaya entrar na puberdade como um anjode cabelos pretos e sair como uma deusagótica inacessível. Antigamente eramduas meninas de 7 anos fazendo teatrono acampamento de verão dauniversidade. Elas trocavam de almoçotodo dia — Eureka trocava sempestanejar os sanduíches de peru

elaborados do pai pelos de pasta deamendoim e geleia no pão branco deMaya. Mas duvidava de que a menina selembrasse daquilo.

— Estes! — O grito estridente vierada treinadora Spence, e Eureka oconhecia muito bem.

— Vamos lá, treinadora —respondeu Cat, com ânimo.

— Adorei sua preleção — gritou atreinadora para Cat. — Da próxima vez,procure estar um pouco mais presente,sim? — Antes que pudesse ralhar maisainda, a treinadora viu Eureka ao lado

de Cat. Sua careta se abrandou, mas avoz, não. — Que bom que veio,Boudreaux — disse ela em meio àscabeças voltadas dos outros alunos. —Bem a tempo de uma foto rápida para oanuário antes da corrida.

Os olhos de todos estavam emEureka. Ela ainda parecia vermelha desua interação com Maya, e o peso detantos olhares a deixou claustrofóbica.Alguns colegas de equipe cochichavamsobre como Eureka era azarada. Garotosque antes eram seus amigos agora tinhammedo dela. Talvez nem a quisessem de

volta.Eureka se sentiu enganada. Uma foto

de anuário não fazia parte do acordocom a treinadora. Ela viu o fotógrafo,um homem em seus 50 anos com umrabo de cavalo preto e curto, montandoum aparato imenso de flash. Imaginou-setendo de se espremer numa das filas comos outros alunos, a luz forte caindo emseu rosto. Imaginou a foto sendoimpressa em trezentos anuários, asfuturas gerações folheando o livro.Antes do acidente, Eureka nuncapensava duas vezes antes de posar para

uma câmera; o rosto se contorcia emsorrisos, risinhos e beijos mandados atodos os amigos do Facebook e doInstagram. Mas agora?

A permanência desta única fotoimplicaria que Eureka se sentiria umaimpostora. Teve vontade de fugir. Tinhade sair da equipe agora mesmo, antesque houvesse qualquer documentação deque ela pretendia correr aquele ano.Imaginou a mentira no currículo doensino médio — Clube de Latim, equipede corrida cross-country, uma lista dematérias avançadas. Culpa de

sobrevivente, uma atividadeextracurricular em que Eureka de fatoinvestiu, não aparecia em lugar algumnesse arquivo. Ela enrijeceu para nãoficar evidente que estava tremendo.

A mão de Cat estava em seu ombro.— Qual é o problema?— Não posso aparecer nesta foto.— Mas por quê?Eureka deu alguns passos para trás.— Simplesmente não posso.— É só uma foto.Os olhos de Eureka e de Cat

ergueram-se ao céu enquanto o estalo

pesado de um trovão sacudiu o campo.Uma muralha de nuvens se abriu sobre apista. Começou um temporal.

— Perfeito! — gritou a treinadorapara o céu.

O fotógrafo correu para proteger oequipamento com um blazer fino de lã.A equipe em volta de Eureka seespalhou como formigas. Através dachuva, Eureka encontrou os olhos de açoda treinadora. Ela balançou lentamente acabeça. Desculpe, queria dizer, destavez realmente estou saindo.

Apanhados na tempestade, alguns

alunos riam. Outros gritavam. Instantesdepois, Eureka estava ensopada. Noinício a chuva caía fria em sua pele, masdepois de se encharcar, seu corpo seaqueceu, como acontecia quandonadava.

Ela mal conseguia enxergar o outrolado do campo. Mantos de águapareciam cotas de malha. Um apitotriplo soou do grupo de alunos daManor. A treinadora Spence apitoutambém. Era oficial: a tempestadevencera a corrida.

— Voltem todos para dentro! —

berrou a treinadora, mas a equipe jácorria para o vestiário.

Eureka chapinhou pela lama.Perdera Cat de vista. Na metade docampo, algo brilhou no canto do seuolho. Ela se virou e viu um meninoparado ali sozinho, de cabeça erguida,olhando a torrente.

Era Ander. Ela não entendia comoconseguia enxergá-lo com clarezaquando o mundo em volta tinha setransformado nas cataratas do Niágara.Depois percebeu algo estranho:

Ander não estava molhado. A chuva

caía em cascatas em volta dele, batendona lama a seus pés. Mas o cabelo, asroupas, as mãos e o rosto estavam tãosecos quanto antes, quando ele parou naestrada de terra e estendeu a mão parasua lágrima.

6

ABRIGO

Quando Cat deixou Eureka em casa, achuva diminuíra de um dilúvio para umaguaceiro. Pneus de caminhão na estradaprincipal atrás de seu bairro sibilavamno asfalto molhado. As begônias docanteiro de flores do pai estavam

pisoteadas. O ar era úmido e carregadodo sal do tampão sul de Lafayette, ondea fábrica de Tabasco produzia seutempero.

Da soleira da porta, Eureka acenoupara Cat, que respondeu com duasbuzinadas. O velho Lincoln Continentaldo pai estava na entrada. O Mazdavermelho cereja de Rhoda, felizmente,não estava.

Eureka girou a chave na fechadurade bronze e empurrou a porta, quesempre emperrava quando chovia muito.Era mais fácil abrir de dentro, onde se

podia sacudir a maçaneta de um jeitoespecífico. De fora, era precisoempurrar como um quarterback defutebol americano.

Assim que entrou, tirou aos chutesos tênis ensopados e as meias,percebendo que o resto da família tiveraa mesma ideia. Os tênis com Velcro dosmeio-irmãos estavam jogados pelo hall.Suas meias pequenininhas pareciamemboladas como rosas pisadas. Oscadarços desamarrados das pesadasbotas pretas do pai deixaram serpentescurtas de lama pelo piso de mármore,

deslizando para onde ele as atirara naentrada da saleta. Capas de chuvapingavam de seus ganchos de madeirapresos à parede. A azul-marinho deWilliam tinha um forro reversível decamuflagem; a de Claire era violeta-claro, com apliques de flores brancas nocapuz. A capa drapeada de borrachapreta do pai era herança do tempo dopai dele como membro dos FuzileirosNavais. Eureka acrescentou sua capa dechuva cinza ao último gancho na fila ejogou a bolsa no banco antigo de Rhodana entrada. Sentiu o brilho da TV na

saleta, o volume baixo.A casa tinha cheiro de pipoca — o

lanche preferido dos gêmeos à tarde.Mas o pai chef de Eureka não preparavanada com simplicidade. A pipoca deleexplodia de óleo de trufas e parmesãoralado ou pretzels fatiados e flocosmastigáveis de caramelo. Hoje a fornadatinha cheiro de curry e amêndoastorradas. O pai se comunicava melhorpela comida do que pelas palavras.Criar alguma coisa majestosa na cozinhaera seu jeito de demonstrar amor.

Ela encontrou os gêmeos aninhados

em seus lugares de sempre no enormesofá de camurça. O pai, de roupas secas— short cinza e camiseta branca —,dormia na ponta comprida do sofá em L.As mãos estavam cruzadas sobre opeito, e os pés, descalços, virados parafora, apontados para cima como pás. Umleve ronronar saía de seu nariz.

As luzes estavam apagadas, e atempestade do lado de fora deixava tudomais escuro que o de costume, mas umfogo moribundo crepitava na salaaquecida. Um antigo Price Is Rightpassava na Game Show Network —

certamente não era um dos trêsprogramas de meia hora para paisendossados pelas revistas que Rhodaassinava, mas nenhum deles diria nada arespeito.

Claire estava sentada ao lado dopai, um triângulo de pernas curtas nocanto do sofá, os joelhos estendidos desua malha laranja, os dedos e os lábiosdourados do curry. Parecia um algodão-doce, uma comoção de cabelos lourosmuito claros empilhados no alto dacabeça com uma tiara amarela. Tinha 4anos e se divertia muito vendo TV, mas

nada mais. Tinha o queixo da mãe e ocerrava como Rhoda fazia quandoterminava de argumentar sobre algumacoisa.

Ao lado dela no sofá estavaWilliam, com os pés pairando acima dochão. O cabelo castanho-escuroprecisava de corte. Ele soltavabaforadas de ar pela lateral da bocapara tirar os cabelos dos olhos. Foraisso, estava imóvel, as mãos cruzadasem uma xícara elegante no colo. Eranove minutos mais velho que Claire,cauteloso e diplomata, sempre ocupando

o menor espaço possível. Havia umapilha torta de cartas na mesa de centroao lado da tigela de pipoca, e Eurekasabia que ele estivera praticando unstruques de mágica que aprendeu numlivro da biblioteca publicado nos anos1950.

— Eureka! — Ele cantarolou aossussurros, deslizando do sofá paracorrer até ela. Eureka pegou o irmão nocolo e o rodou, segurando sua nucaainda molhada na mão.

Alguém podia pensar que Eureka seressentiria dessas crianças por terem

sido o motivo para o pai se casar comRhoda. Quando os gêmeos eram doisfeijõezinhos dentro de Rhoda, Eurekajurou que nunca ia querer nada comeles. Os dois nasceram no primeiro diade primavera, quando Eureka tinha 13anos. Eureka assustou o pai, Rhoda e asi mesma se apaixonando no instante emque segurou a mãozinha de cada bebê.

— Estou com sede — disse Claire,sem tirar os olhos da TV.

Claro que eram irritantes, masquando Eureka estava no fundo do poçoda depressão, os gêmeos conseguiam

lembrá-la de que ela servia para algumacoisa.

— Vou pegar leite para você.Eureka baixou William, e os dois

foram à cozinha. Serviu três copos deleite da geladeira arrumada de Rhoda,onde nenhum Tupperware se arriscava aficar sem rótulo, e colocou para dentro olabradoodle ensopado, Squat, que estavano quintal. Ele sacudiu o pelo, atirandoágua enlameada e folhas pelas paredesda cozinha.

Eureka olhou para ele.— Eu não vi isso.

De volta à saleta, acendeu a pequenaluminária de madeira acima da lareira ese recostou no braço do sofá. O paiparecia jovem e bonito dormindo;lembrava mais o pai que ela veneravaquando criança que o homem com quemlutava para se relacionar nos cinco anosdesde que ele se casara com Rhoda.

Ela se lembrou de tio Travispuxando-a de lado, voluntariamente, nocasamento do pai.

— Você pode não estar louca deansiedade para dividir seu papai comoutra pessoa — disse ele. — Mas um

homem precisa de cuidados e Trentonficou sozinho por muito tempo.

Eureka tinha 12 anos. Não entendeuo que Travis quis dizer. Ela sempreestava com o pai, então como ele podiaficar sozinho? Naquele dia, ela nemestava consciente de não querer que elese casasse com Rhoda. Agora tinhaconsciência disso.

— Oi, pai.Os olhos azuis se abriram, e Eureka

registrou o medo neles quando ele seassustava, como se ele tivesse sidolibertado do mesmo pesadelo que ela

vinha tendo nos últimos quatro meses.Mas eles não falavam dessas coisas.

— Acho que dormi — murmurouele, sentando-se e esfregando os olhos.Pegou a tigela de pipoca, estendendo aela como se fosse uma saudação, comoum abraço.

— Eu notei — disse ela, jogando umpunhado na boca. Na maioria dos dias, opai trabalhava em turnos de dez horas norestaurante, começando às 6h.

— Você ligou mais cedo —comentou ele. — Desculpe por não teratendido. Tentei assim que saí do

trabalho. — Ele piscou. — O que houvecom seu rosto?

— Não é nada. Só um arranhão. —Eureka revirou os olhos e atravessou asaleta para pegar o celular na bolsa.Tinha duas chamadas perdidas do pai,uma de Brooks e cinco de Rhoda.

Ela estava tão cansada que pareciater feito a corrida naquela tarde. Aúltima coisa que queria era reviver oacidente de hoje com o pai. Ele semprefoi protetor, mas, desde a morte deDiana, passava muito dos limites.

Chamar a atenção do pai para o fato

de que havia gente lá fora que dirigiacomo Ander podia fazer com que elerevogasse permanentemente o uso dequalquer carro por ela. Eureka sabia quetinha de abordar o assunto, masprecisava fazê-lo da maneira certa.

O pai a seguiu para o saguão. Paroua alguns passos e embaralhou as cartasde William, encostando-se numa dascolunas que escoravam o teto de falsoafresco que nenhum deles suportava.

O nome dele era Trenton MichelBoudreaux Terceiro. Tinha uma magrezaacentuada que transmitiu aos três filhos.

Era alto, de cabelo louro-escuro eriçadoe um sorriso que podia encantar umaserpente. Só um cego não perceberia queas mulheres davam mole para ele.Talvez o pai tentasse fazer-se de cegopara isso — ele sempre fechava osolhos quando ria desses avanços.

— Cancelaram a corrida com achuva?

Eureka fez que sim.— Sei que você estava ansiosa por

ela. Lamento.Eureka revirou os olhos porque

desde que o pai se casou com Rhoda,

basicamente não sabia nada dela.“Ansiosa por” não era mais umaexpressão que Eureka usasse para coisaalguma. Ele nunca entendeu por que elahavia deixado a equipe.

— Como foi seu... — O pai olhoupor sobre o ombro para os gêmeos,absortos na descrição de Bob Barker dobarco a motor obsoleto que seuconcorrente poderia ganhar. — Seu...compromisso de hoje?

Eureka pensou na chateação de ficarsentada no consultório da Dra. Landry,inclusive o noz dura de quebrar do pai.

Fora outra traição; agora, tudo com o paiera assim. Como ele pôde ter se casadocom aquela mulher?

Mas Eureka também entendia:Rhoda era o contrário de Diana. Eraestável, prática, não ia a lugar algum.Diana o amava, mas não precisava dele.Rhoda precisava tanto dele que talvezfosse uma espécie de amor. O paiparecia mais leve com Rhoda que semela. Eureka se perguntou se ele chegou aperceber que isso lhe custava aconfiança da filha.

— Me diga a verdade — disse o

pai.— Por quê? Até parece que me

queixar com você vai me tirar de algumacoisa. Não neste mundo.

— Foi tão ruim assim?— De uma hora para outra você se

importa? — rebateu ela.— Docinho, é claro que eu me

importo. — Ele estendeu a mão, mas elase afastou num safanão.

— Fique de docinho com eles. —Eureka gesticulou para os gêmeos. —Posso me virar sozinha.

Ele lhe entregou o baralho. Era para

aliviar o estresse. E ele sabia que elapodia fazer com que as cartas voassementre as mãos como passarinhos. Obaralho estava flexível por conta dosanos de uso e quente peloembaralhamento. Sem que se desseconta, as cartas começaram a zunir entreos dedos de Eureka.

— Seu rosto. — O pai examinou asabrasões nas maçãs do rosto.

— Não é nada.Ele tocou a face da filha.Ela acalmou as cartas voadoras.— Tive um acidente enquanto

voltava para a escola.— Eureka. — A voz do pai se

elevou, e ele a segurou nos braços. Nãoparecia ter raiva. — Você está bem?

— Estou ótima. — Ele a apertavademais. — Não foi minha culpa. Umcara bateu em mim numa placa de pare.Por isso liguei mais cedo, mas já cuideide tudo. Magda está no Sweet Pea’s.Está tudo bem.

— Pegou os dados do seguro dosujeito?

Até esse momento, Eureka teveorgulho de si mesma por lidar com o

carro sem que o pai precisasse levantarum dedo para ajudar. Ela engoliu emseco.

— Não exatamente.— Eureka.— Eu tentei. Ele não tinha seguro.

Mas disse que ia cuidar de tudo.Vendo a expressão do pai tensa de

decepção, Eureka percebeu como haviasido idiota. Nem sabia como entrar emcontato com Ander, não tinha ideia dequal era seu sobrenome ou se ele lhe deuseu nome verdadeiro. Não havia comoele pagar as despesas do conserto do

carro.O pai travou os dentes, como fazia

quando tentava controlar otemperamento explosivo.

— Quem é esse garoto?— Ele disse que o nome dele era

Ander.Ela baixou o baralho no banco da

entrada e tentou se retirar para a escada.Os formulários de aplicação para asuniversidades a esperavam na mesa.Embora Eureka tivesse decidido quequeria tirar o ano seguinte de folga,Rhoda insistia que ela se candidatasse à

UL, onde podia ganhar uma bolsa comofamiliar de uma docente. Brooks tambémtinha preenchido a maior parte de umformulário on-line para a Tulane — afaculdade dos sonhos dele — em nomede Eureka. Ela só precisava assinar aúltima página impressa, que a olhavafeio há semanas. Não podia encarar afaculdade. Mal conseguia encarar opróprio reflexo no espelho.

Antes que subisse o primeirodegrau, o pai a pegou pelo braço.

— Ander de quê?— Ele é da Manor.

O pai pareceu piscar para afastar umpensamento ruim.

— O que realmente importa é quevocê esteja bem.

Eureka deu de ombros. Ele nãoentendeu. O acidente de hoje não adeixou mais ou menos legal do que nodia anterior. Ela odiava que a conversacom ele parecesse uma mentira.Antigamente contava tudo a ele.

— Não se preocupe, Lulinha. — Ovelho apelido parecia forçado saindodos lábios do pai. Sugar inventouquando Eureka era um bebê, mas o pai

não a chamava assim havia uma década.Ninguém mais a chamava de Lulinha, sóBrooks.

A campainha tocou. Uma figura altaapareceu pela porta de vidro fosco.

— Vou ligar para a seguradora —disse o pai. — Você atende à porta.

Eureka suspirou e destrancou a portada frente, sacudindo a maçaneta paraabri-la. Olhou o garoto alto na varanda.

— E aí, Lulinha.Noah Brooks — conhecido de todos

de fora da família simplesmente comoBrooks — perdera o forte sotaque do

bayou quando começou o nono ano emLafayette. Mas quando chamava Eurekapor seu apelido, ainda soava comoSugar antigamente: suave, apressado ealegre.

— E aí, Barril de Pólvora.Ela respondeu no automático,

usando o apelido de criança que Brooksangariou pelo ataque de birra que deu nafesta de aniversário de 3 anos. Dianacostumava dizer que Eureka e Brookseram amigos desde o útero. Os pais deBrooks moravam ao lado da casa dospais de Diana, e quando a mãe de

Eureka era jovem e engravidara haviapouco, passava algumas noites sentadanas toras da lateral da varanda jogandocartas com a mãe de Brooks, Aileen, queestava com dois meses de gestação.

Ele tinha um rosto estreito, umbronzeado perpétuo e, ultimamente, umesboço de barba no queixo. Seus olhoscastanho-escuros combinavam com ocabelo que quase ultrapassava os limitesdo código de vestimenta da Evangeline eque caiu pelas sobrancelhas quando elelevantou o capuz da capa de chuvaamarela.

Eureka notou um curativo grande natesta de Brooks, quase coberto pelafranja.

— O que aconteceu?— Nada demais. — Ele olhou os

arranhões no rosto dela, arqueando assobrancelhas com a coincidência. — Evocê?

— Idem. — Ela deu de ombros.Os alunos da Evangeline achavam

Brooks misterioso, o que fez dele objetode admiração de várias garotas com opassar dos anos. Todos que o conheciamgostavam dele, mas Brooks evitava a

turma popular, que não achava bacananada além de jogar futebol. Ele fizeraamizade com os garotos da equipe dedebates, mas ficava principalmente comEureka.

Brooks era seletivo com seus afetos,e Eureka sempre foi a principalreceptora. Às vezes ela o via nocorredor, brincando com uma turma demeninos, e quase não o reconhecia —até que ele a localizava e saía para lhecontar tudo sobre seu dia.

— E aí — ele ergueu a mão direitalevemente —, olha só quem tirou o

gesso.Na luz do lustre do hall, Eureka de

repente ficou envergonhada de seu braçomagricela e estranho. Parecia umpintinho. Mas Brooks não via nada deerrado nisso. Não a olhou de um jeitodiferente depois do acidente — nemdepois da ala psiquiátrica. Quando elaficou trancada no Acadia Vermilion,Brooks ia visitá-la todo dia,contrabandeando doces de noz-pecã nobolso do casaco. A única coisa que elechegou a dizer sobre o que acontecerafoi que era mais divertido ficar com ela

fora de uma cela acolchoada.Era como se ele pudesse ver Eureka

para além das mudanças na cor docabelo, da maquiagem que ela agorausava como uma armadura, da carrancapermanente que exibia para a maioriadas pessoas. Para Brooks, era bom selivrar do gesso, e não algo negativo. Elesorriu.

— Vamos fazer uma queda debraço?

Ela lhe deu um tapa.— Brincadeirinha. — Ele pôs os

tênis ao lado dos dela e pendurou a capa

de chuva no mesmo gancho que Eurekausava.

— Venha, vamos ver a tempestade.Assim que Brooks e Eureka

entraram na saleta, os gêmeoslevantaram a cabeça da TV e saltaramdo sofá. Se havia uma coisa que Clairegostava mais que a televisão, eraBrooks.

— Boa noite, família Harrington-Boudreaux. — Brooks se curvou para ascrianças, chamando-as por seu ridículosobrenome com hífen, que soava comoum restaurante muito caro.

— Brooks e eu vamos procurarcrocodilos na água — disse Eureka,usando sua frase código.

Os gêmeos morriam de medo decrocodilos, e era o jeito mais fácil deevitar que os seguissem. Os olhosverdes de William se arregalaram.Claire recuou, pousando os cotovelos nosofá.

— Querem vir? — Brooks aacompanhou na brincadeira. — Osgrandes se arrastam pela terra quando oclima está assim. — Ele estendeu osbraços o máximo que pôde para sugerir

o tamanho do crocodilo fantasma. —Eles podem viajar também. A 60quilômetros por hora.

Claire deu um gritinho, com o rostobrilhando de inveja.

William puxou a manga de Eureka.— Promete que vai contar pra gente

se achar um?— Claro que sim. — Eureka mexeu

no cabelo do menino e seguiu Brookspara fora da saleta.

Eles passaram pela cozinha, onde opai estava ao telefone. Ele olhoucalculadamente para Brooks, acenou e

deu as costas para ouvir melhor o agenteda seguradora. O pai era simpático comas amigas de Eureka, mas os meninos —até Brooks, que estava por ali desdesempre — traziam à tona seu ladocauteloso.

Do lado de fora, a noite estavatranquila, a chuva constante silenciavatudo. Eureka e Brooks vagaram para obalanço branco, que era coberto pelodeque do segundo andar. Ele rangeu sobo peso dos dois. Brooks chutava de levepara impelir o balanço, e eles viram asgotas de chuva morrerem no canteiro de

begônias. Para além das plantas, haviaum pequeno quintal com a armação deum balanço que o pai construíra noverão anterior. Depois desta, um portãode ferro batido se abria para o bayoutorcido e marrom.

— Desculpe por ter faltado à suacorrida hoje — disse Brooks.

— Sabe quem mais se lamentou?Maya Cayce. — Eureka encostou acabeça na almofada gasta queacolchoava o banco. — Ela estavaprocurando por você. E ao mesmotempo me lançando feitiços. Garota

talentosa.— Sem essa. Ela não é tão ruim

assim.— Sabe como a equipe de corrida a

chama? — perguntou Eureka.— Não estou interessado nos nomes

dados por pessoas que têm medo dequalquer um que seja diferente. —Brooks se virou para examiná-la. — Etambém não achei que isso interessariavocê.

Eureka bufou porque ele tinha razão.— Ela tem ciúme de você —

acrescentou Brooks.

Isso nunca ocorreu a Eureka.— E por que Maya Cayce teria

ciúme de mim?Brooks não respondeu. Mosquitos

enxameavam a lâmpada acima deles. Achuva deu uma parada, depois voltou emuma brisa deliciosa que umedeceu orosto de Eureka. As copas molhadas daspalmeiras no quintal ondularam parareceber o vento.

— E qual foi seu tempo hoje? —perguntou Brooks. — Um recordepessoal, sem dúvida, agora que não temmais o gesso. — Pelo modo como ele a

olhava, Eureka sabia que ele esperavapela confirmação de que voltara àequipe.

— Zero ponto zero zero segundo.— Você saiu mesmo? — Ele

parecia triste.— Na verdade, a prova foi

cancelada pela chuva. Você deve ternotado o temporal de hoje, né? Umascinquenta vezes mais forte que este?Mas, sim — ela chutou o chão davaranda para balançar mais o banco —,eu também saí.

— Eureka.

— Como foi que não viu atempestade, aliás?

Brooks deu de ombros.— Tive prática de debate, então saí

da escola tarde. Depois, quando estavadescendo a escada do prédio de artes,fiquei tonto. — Ele engoliu em seco,parecendo quase constrangido emcontinuar. — Não sei o que aconteceu,mas acordei ao pé da escada. Umcalouro me encontrou ali.

— Você se machucou? — perguntouEureka. — Foi isso que aconteceu comsua testa?

Brooks tirou o cabelo da testa paraexpor um quadrado de gaze de 5centímetros. Quando tirou o curativo,Eureka ofegou.

Ela não estava preparada para veruma ferida daquele tamanho. Era funda,rosa berrante, quase um círculo perfeito,mais ou menos do tamanho de um dólarde prata. Anéis de pus e sangue pordentro conferiam-lhe a aparência de umatora de sequoia.

— O que você fez, mergulhou numabigorna? Você simplesmente caiu, donada? Isso é de dar medo. — Ela

estendeu a mão para devolver a franjacomprida à testa dele e olhou melhor oferimento. — Devia procurar ummédico.

— Estou um passo à frente de você.Passei duas horas na emergência graçasao garoto em pânico que me encontrou.Disseram que eu estava hipoglicêmicoou uma porcaria dessas.

— E isso é grave?— Não. — Brooks pulou do banco,

puxando Eureka para fora da varanda,entrando na chuva. — Venha, vamosapanhar um crocodilo.

O cabelo molhado de Eureka batianas costas, e ela gritava, rindo ao correrda varanda com Brooks, descendo apequena escada para o quintal gramado.A grama era alta e fazia cócegas em seuspés. Os irrigadores estavam desligadosna chuva.

O quintal em volta deles erapontuado por quatro carvalhos imensos.Samambaias alaranjadas, cintilando dasgotas de chuva, encordoavam os troncos.Eureka e Brooks estavam sem fôlegoquando pararam no portão de ferro eolharam o céu. Onde as nuvens

clareavam, a noite era estrelada, eEureka pensou que não havia ninguém nomundo que a fizesse rir mais queBrooks. Imaginou um domo de vidrobaixando do céu, selando o quintal comoum globo de neve, capturando os doisnaquele momento para sempre, com achuva caindo eternamente e nada comque se preocupar além das estrelas e damalícia nos olhos de Brooks.

A porta dos fundos se abriu, e Clairemostrou a cabeça loura.

— Reka — chamou. A luz davaranda fazia suas bochechas redondas

brilharem. — O crocodilo tá aí?Eureka e Brooks partilharam um

sorriso no escuro.— Não, Claire. É seguro sair.Com extrema cautela, a menina foi

na ponta dos pés até a beira do capacho.Curvou-se para a frente e colocou asmãos em concha em volta da boca paraprojetar a voz.

— Tem gente na porta. Um garoto.Ele quer falar com você.

7

REUNIÃO

— Você.Eureka pingava no mármore da

soleira, encarando o menino que haviabatido em seu carro. Ander tinha vestidonovamente a camisa branca bem passadae os jeans escuros. Deve ter pendurado a

camisa sem um vinco no vestiário;ninguém fazia isso na equipe dela.

De pé na varanda de treliça aoanoitecer, Ander parecia ter vindo deoutro mundo, um mundo onde suapresença não estava sujeita ao clima.Ele parecia independente da atmosferaque o cercava. Eureka ficou sem graçapelo cabelo embaraçado, os pésdescalços e sujos de lama.

O jeito com que suas mãos seentrelaçavam às costas acentuava alargura do peito e dos ombros. Suaexpressão era impenetrável. Ele parecia

prender a respiração. Isso deixouEureka nervosa.

Talvez fosse o turquesa de seusolhos. Talvez fosse o empenho absurdocom que evitou o desastre com oesquilo. Talvez fosse o modo como aolhava, como se visse algo que ela nemsabia se desejava ver em si mesma. Numinstante, esse garoto a conhecia. Ele afazia se sentir excessiva.

Como Eureka passou da fúria aoriso cúmplice antes mesmo de saber onome do garoto? Isso não era uma coisaque ela fizesse.

Os olhos de Ander eram calorosos eencontravam os dela. O corpo de Eurekaformigava. A maçaneta que ela seguravaparecia ter esquentado a partir dedentro.

— Como soube onde eu morava?Ele abriu a boca para responder,

mas então Eureka sentiu Brooks atrásdela na soleira. O peito dele roçou emsua omoplata enquanto ele pousava amão esquerda no batente. Seu corpo aabarcou. Ele estava tão molhado datempestade quanto Eureka. Olhou paraAnder por cima da cabeça da amiga.

— Quem é esse?O sangue sumiu da cara de Ander,

deixando fantasmagórica a pele jábranca. Embora seu corpo mal semexesse, todo o comportamento delemudou. O queixo se ergueu um pouco,fazendo com que os ombros recuassem 1centímetro. Os joelhos se curvaramcomo se ele estivesse prestes a pular.

Algo frio e venenoso se apoderoudele. Seu olhar gélido para Brooks fezEureka se perguntar se algum dia na vidavira um ódio daqueles.

Ninguém brigava com Brooks. As

pessoas brigavam com seus amigoscaipiras no Wade’s Hole nos fins desemana. Brigavam com o irmão dele,Seth, que tinha a mesma língua afiadaque metia Brooks em problemas, masnão tinha a inteligência que o livrava daencrenca. Nos 17 anos em que Eurekaconhecia Brooks, ele nem uma vez deuou recebeu um soco. Ele se aproximoumais dela, endireitando os ombros comose isso estivesse a ponto de mudar.

Ander passou os olhos acima dosolhos de Brooks. Eureka olhou porsobre o ombro e viu que a ferida aberta

de Brooks era visível. O cabelo que emgeral caía na testa estava molhado ejogado de lado. O curativo que ele abriudeve ter saído quando eles correram nachuva.

— Algum problema? — perguntouBrooks, colocando a mão no ombro deEureka com mais possessividade que decostume desde o único encontro deles,quando assistiram A fantástica fábricade chocolate no New Iberia Playhouseuma vez no quinto ano.

O rosto de Ander se contorceu. Elesoltou as mãos das costas, e por um

momento Eureka esteve certa que ele iaesmurrar Brooks. Ela deveria se abaixarou bloquear o golpe?

Em vez disso, ele estendeu a carteiradela.

— Você deixou isto na minhapicape.

A carteira de duas dobras era decouro marrom desbotado, e Diana acomprara numa viagem a Machu Pichu.Eureka perdia e encontrava a carteira —e suas chaves, os óculos escuros e ocelular — com uma regularidade queassombrava Rhoda, então não foi um

choque muito grande que a tivessedeixado no carro de Ander.

— Obrigada.Ela estendeu a mão para pegar a

carteira, e, quando as pontas de seusdedos se tocaram, Eureka estremeceu.Houve uma eletricidade entre eles queEureka torcia para Brooks não terpercebido. Ela não sabia de onde vinha;não queria desligá-la.

— Seu endereço estava na carteirade motorista, então pensei em vir aquidevolver — disse ele. — Além disso,escrevi meu telefone e o coloquei nela.

Atrás dela, Brooks tossiu no punho.— Por causa do carro — explicou

Ander. — Quando tiver um orçamento,me ligue. — Ele abriu um sorriso tãocaloroso que Eureka sorriu também, amenina mais boba da cidade.

— Quem é esse cara, Eureka? — Avoz de Brooks estava mais alta que onormal. Ele parecia procurar um jeito desacanear Ander. — Do que ele estáfalando?

— Ele, hummm, bateu na traseira domeu carro — murmurou Eureka,mortificada na frente de Ander como se

Brooks fosse Rhoda ou o pai, e não seuamigo mais antigo. Ela ficavaclaustrofóbica com ele parado sobre eladaquele jeito.

— Dei uma carona para ela até aescola — disse Ander a Brooks. — Masnão entendo o que isso tem a ver comvocê. Preferia que ela fosse a pé?

Brooks foi pego de guarda baixa.Um riso exasperado escapou de seuslábios.

E então Ander arremeteu para afrente, com o braço disparando sobre acabeça de Eureka. Pegou Brooks pela

gola da camiseta.— Há quanto tempo está com ela?

Quanto tempo?Eureka se encolheu entre eles,

assustada com a explosão. Do queAnder estava falando? Ela precisavafazer alguma coisa para neutralizar asituação. Mas o quê? Só percebeu quese recostava por instinto nafamiliaridade segura do peito de Brooksquando sentiu a mão dele em seucotovelo.

Ele nem piscou quando Ander oatacou.

— Tempo suficiente para saber quebabacas não fazem o gênero dela —respondeu em voz baixa.

Os três estavam praticamenteempilhados um por cima do outro.Eureka sentia a respiração dos dois.Brooks tinha cheiro de chuva e de toda ainfância de Eureka; Ander cheirava a ummar que ela nunca vira. Os dois estavamperto demais. Ela precisava de ar.

Ela olhou o garoto desconhecido epálido. Os olhares se encontraram. Elameneou a cabeça para Ander de leve,perguntando por quê.

Ouviu o farfalhar de seus dedossoltando a camiseta de Brooks. Anderdeu alguns passos rígidos para trás atéficar na beira da varanda. Eurekarespirou pela primeira vez no queparecia uma hora.

— Desculpe — disse Ander. — Nãovim aqui para brigar. Só queriadevolver suas coisas e deixar meucontato.

Eureka o observou se virar e voltarao chuvisco cinzento. Quando a porta dapicape bateu, ela fechou os olhos e seimaginou entrando no veículo. Quase

sentia o calor do couro macio abaixodela, quase ouvia o trompete de BunkJohnson, uma lenda local, no rádio. Elaimaginou a vista pelo para-brisaenquanto Ander dirigia sob o dossel decarvalhos de Lafayette para onde era suacasa. Queria saber como seria, de quecor eram os lençóis de sua cama, se amãe dele preparava o jantar. Mesmodepois do modo como ele agiu comBrooks, Eureka ansiava por voltaràquela picape.

— O psicopata vai embora —murmurou Brooks.

Ela observou as lanternas traseirasde Ander desaparecerem no mundo paraalém da rua.

Brooks massageava os ombros dela.— Quando podemos vê-lo de novo?Eureka sentiu o peso da carteira

abarrotada nas mãos. Imaginou Andervasculhando-a, vendo seu cartão dabiblioteca, a horrível foto da carteira deestudante, recibos do posto de gasolinaonde ela comprava montanhas deMentos, bilhetes de cinema deconstrangedores filmes de mulherzinhapara os quais Cat a arrastava em sessões

de 1 dólar, moedas intermináveis nabolsinha, algumas notas, se ela tivessesorte, um quarteto de fotos em preto-e-branco de cabine, ela com a mãe, tiradasnuma feira de rua em Nova Orleans umano antes de Diana morrer.

— Eureka? — disse Brooks.— Hein?Ele piscou, surpreso com a aspereza

na voz dela.— Você está bem?Eureka foi à beira da varanda e se

encostou à balaustrada de madeirabranca. Respirou o cheiro do arbusto

alto de alecrim e passou a palma da mãoem seus galhos, espalhando as gotas dechuva que se prendiam neles. Brooksfechou a porta de tela depois de passar.Aproximou-se dela, e os dois olharam arua molhada.

A chuva tinha parado. A noite caíasobre Lafayette. Uma meia lua douradaprocurava seu lugar no céu.

A vizinhança de Eureka era formadapor uma única rua — a Shady Circle —,que formava uma alça oblonga eterminava num beco curto. Todo mundoconhecia todo mundo, todos se

cumprimentavam, mas não se metiam navida dos outros como os moradores dobairro de Brooks em New Iberia. Suacasa ficava no lado leste da ShadyCircle, de fundos para um trecho estreitodo bayou. O jardim dava para outrojardim da rua, e, pela janela da cozinhada vizinha, Eureka via a Sra. LeBlanc,de batom e avental florido e apertado,mexendo alguma coisa no fogão.

A Sra. LeBlanc dava aula decatecismo na St. Edmond. Tinha umafilha alguns anos mais velha que osgêmeos, as quais ela vestia em roupas

chiques combinando com as delaprópria. As LeBlanc não tinham nada aver com o que Eureka e Dianacostumavam ser — a não ser, talvez, suaclara adoração mútua. Ainda assim, sódesde o acidente Eureka achava asvizinhas, mãe e filha, fascinantes.Olhava pela janela de seu quarto e viaas duas saindo para a igreja. Os rabosde cavalo altos brilhavam precisamenteda mesma maneira.

— Algum problema? — Brookscutucou o joelho dela com o dele.

Eureka se obrigou a olhá-lo nos

olhos.— Por que você foi tão hostil com

ele?— Eu? — Brooks achatou a mão no

peito. — Está falando sério? Ele... Eu...— Você estava atrás de mim como

um possessivo irmão mais velho. Podiater se apresentado.

— Estamos na mesma dimensão? Ocara me pegou como se quisesse mejogar na parede. Sem motivo algum! —Ele meneou a cabeça. — O que vocêtem? Está a fim dele ou coisa assim?

— Não. — Ela sabia que ficara

vermelha.— Que bom, porque na época do

baile da escola ele pode estar confinadonuma solitária.

— Tá legal, entendi. — Eureka lhedeu um leve empurrão.

Brooks fingiu cambalear para trás,como se tivesse sido empurrado commuita força.

— E por falar em criminososviolentos... — Ele se aproximou,pegando-a pela cintura e levantando-ado chão. Colocou-a sobre o ombro,como fazia desde que seu surto de

crescimento no quinto ano lhe dera 15centímetros a mais que o resto da turma.Rodou Eureka pela varanda até que elagritou para ele parar.

— Pare com isso. — Ela estava decabeça para baixo e esperneava. — Elenão é tão ruim.

Brooks a deslizou para o chão e seafastou. Seu sorriso desapareceu.

— Você está totalmente a fimdaquele retardado.

— Não estou. — Ela meteu acarteira no bolso do cardigã. Estavamorrendo de vontade de ver o telefone

dele. — Tem razão. Não sei qual é oproblema dele.

Brooks se recostou na balaustrada,batendo o calcanhar de um pé na pontado outro. Tirou o cabelo molhado dosolhos. Seu ferimento brilhava, laranja,amarelo e vermelho, como fogo. Elesficaram em silêncio até que Eurekaouviu uma música abafada. Seria a vozde Maya Cayce por cima de HankWilliams cantando I’m so lonesome Icould cry?

Ele tirou do bolso o celular quetocava. Eureka teve um vislumbre de

olhos provocantes numa foto da tela.Brooks silenciou a chamada e olhoupara Eureka.

— Não me olhe assim. Somos sóamigos.

— E todos os seus amigos gravamos próprios ringtones? — Ela queria terfiltrado o sarcasmo da voz, masescapou.

— Acha que estou mentindo? Queestamos namorando escondidos?

— Eu tenho olhos, Brooks. Se eufosse homem, também ficaria a fim dela.Não precisa fingir que ela não é

incrivelmente linda.— Tem alguma coisa um pouco mais

direta que queira dizer?Sim, mas ela não sabia o quê.— Tenho dever de casa para fazer.

— Foi o que disse, com mais frieza doque pretendia.

— É, eu também.Ele empurrou a porta com força para

abrir, pegou a capa de chuva e ossapatos. Parou na beira da varanda,como se estivesse prestes a dizer algumacoisa, mas viu o carro vermelho deRhoda acelerando na rua.

— Acho que vou me mandar —disse ele.

— A gente se vê. — Eureka acenou.Enquanto pulava da varanda, Brooks

gritou por sobre o ombro:— Pode parecer besteira, mas eu

queria um ringtone de você cantando.— Você detesta minha voz — disse

ela.Ele meneou a cabeça.— Sua voz é encantadoramente

desafinada. Não há nada em você que eupossa detestar.

Quando Rhoda pegou a entrada de

carros, usando os óculos de sol imensosembora a lua já estivesse no céu, Brookslhe abriu um sorriso exagerado eacenou, depois correu para o carro doinício dos anos 1990 — o Cadillacesmeralda e ouro, e traseira arriada,herdado da avó, que todo mundochamava de Duquesa.

Eureka começou a subir os degraus,na esperança de chegar ao segundoandar e estar atrás da porta fechada deseu quarto antes que Rhoda saísse docarro. Mas a mulher do pai era muitoeficiente. Eureka mal tinha fechado a

porta de tela quando a voz de Rhodaestourou noite adentro.

— Eureka? Preciso de ajuda.Eureka se virou devagar, pulando

amarelinha nos tijolos circulares queladeavam o jardim, depois parou apouca distância do carro de Rhoda.Ouviu o ringtone de Maya Cayce. Denovo. Alguém certamente não estavacom medo de parecer ansiosa demais.

Ela viu Brooks fechar porta daDuquesa. Não ouvia mais o toque docelular nem podia ver se ele haviaatendido.

Os olhos dela ainda seguiam aslanternas traseiras de Brooks quandouma pilha ensacada em plástico deroupas da lavanderia caiu em seusbraços. Tinha cheiro de química eaquela menta que é usada no caixa dobufê de comida chinesa. Rhoda passouas alças das sacolas de mantimentos nospróprios braços e pendurou a pesadapasta do laptop no ombro de Eureka.

— Estava tentando se esconder demim? — Rhoda ergueu uma sobrancelha.

— Se prefere que eu não faça meudever, posso ficar aqui fora a noite toda.

— Sei.Rhoda vestia um terninho com saia

salmão e saltos pretos, que conseguiamparecer ao mesmo tempodesconfortáveis e fora de moda. Seucabelo escuro estava torcido de um jeitoque sempre lembrava Eureka de umaqueimadura de atrito no braço. Ela eramuito bonita, e, às vezes, até Eurekapodia ver isso — quando Rhoda estavadormindo ou no transe de cuidar dosfilhos, os raros momentos em que seurosto relaxava. Mas na maior parte dotempo, Rhoda só parecia atrasada para

alguma coisa. Estava com o batomlaranja, que tinha se desgastadoenquanto ela dava aulas deadministração na universidade.Pequenos afluentes de laranja desbotadocorriam pelos vincos dos lábios.

— Eu te liguei cinco vezes. —Rhoda bateu a porta do carro com oquadril. — Você não atendeu.

— Eu tinha uma corrida.Rhoda apertou o botão de trancar no

controle remoto.— Mas parece que você só estava

de bobeira com Brooks. Sabe que tem

aula amanhã. O que houve com aterapeuta? Espero que não tenha feitonada que me constrangesse.

Eureka olhou os afluentes nos lábiosde Rhoda, imaginando que eram riachosenvenenados correndo de uma terracontaminada por alguma coisa bem ruim.

Ela podia explicar tudo a Rhoda,lembrá-la do clima daquela tarde, dizerque Brooks só passara ali por algunsminutos, então enaltecer os clichês daDra. Landry... Mas sabia que as duastambém teriam de discutir o acidente decarro muito em breve e Eureka

precisava armazenar energia para isso.Enquanto os saltos de Rhoda

estalavam na calçada de tijolos para avaranda, Eureka a seguiu, murmurando:

— Bem, obrigada, e como foi seudia?

No alto da escada da varanda,Rhoda parou. Eureka viu sua nuca sevirar para a direita e examinar a entradade carros onde acabara de estacionar.Depois se virou e a olhou feio.

— Eureka... Onde está meu Jeep?Eureka apontou para o ouvido ruim,

embromando.

— Desculpe. O que disse? — Nãopodia contar a história de novo, nãoagora, não a Rhoda, não depois de umdia como aquele. Estava tão vazia eexausta que parecia ter sofrido outralavagem gástrica. Ela desistiu.

— O Jeep, Eureka. — Rhoda bateu aponta do sapato na varanda.

Eureka fez uma marca na grama como dedão descalço.

— Pergunte a papai. Ele está ládentro.

Até as costas de Rhoda ficaramcarrancudas quando se virou para a

porta e a abriu.— Trenton?Enfim sozinha na noite úmida,

Eureka colocou a mão no bolso docardigã, pegando a carteira que Anderdevolvera. Olhou na dobra e viu umquadradinho de papel pautado entre suassete notas de 1 dólar. Ele tinha escritocuidadosamente em tinta preta:

Ander. Um número de telefone dacidade. E as palavras Me desculpe.

8

LEGADO

Eureka roía a unha do polegar, olhandoos joelhos que se sacudiam sob a mesade carvalho laqueada na sala dereuniões sob a luz fluorescente. Temiaaquela tarde de quinta-feira desde que opai tinha sido convocado a comparecer

no escritório de J. Paul Fontenot,advogado, em Southeast Lafayette.

Diana nunca disse que tinha umtestamento. Eureka não teria imaginadoque a mãe e advogados respirassem omesmo ar. Mas ali estavam eles, na salado advogado de Diana, reunidos paraouvir a leitura do documento,espremidos entre os outros parentesvivos de Diana — os tios de Eureka,Beau e Maureen. Ela não os via desde ofuneral.

O funeral não foi um funeral. Afamília chamou de memorial, porque não

tinham encontrado o corpo de Diana,mas todos em New Iberia chamaram ahora passada na St. Peter de funeral, porrespeito ou por ignorância. A fronteiraera nebulosa.

O rosto de Eureka estava cheio decortes na época, seus pulsos engessados,o tímpano berrava do acidente. Ela nãoouviu uma palavra do que disse o padree só saiu do banco quando todos osoutros passaram pela fotografiaampliada de Diana, encostada no caixãofechado. Iam enterrar o caixão semcorpo no jazigo comprado por Sugar

décadas antes. Que desperdício.Sozinha no santuário de tom

esmeralda, Eureka se aproximoudevagar da fotografia, examinando asrugas de sorriso em volta dos olhosverdes de Diana, recostada numa sacadana Grécia. Eureka tinha tirado a foto noverão anterior. Diana ria do bodelambendo sua roupa lavada, penduradapara secar no quintal abaixo.

Ele acha que ainda não é obastante, dissera Diana.

Os dedos engessados de Eureka derepente agarraram as bordas do porta-

retrato. Ela queria ter vontade de chorar,mas não sentia nada de Diana nasuperfície plana e reluzente da fotografa.A alma da mãe havia voado dali. Ocorpo ainda estava no mar — inchado,azul, mordiscado pelos peixes,assombrando Eureka toda noite.

Eureka ficou ali, sozinha, o rostoquente no vidro, até que o pai entrou etirou o porta-retrato de suas mãos. Eleas apertou com as próprias e a levoupara o carro.

— Está com fome? — perguntou,porque era com comida que o pai

consertava as coisas.Não houve jantar, como depois do

funeral de Sugar, a única outra pessoade quem Eureka era próxima que tinhamorrido. Quando ela faleceu, cinco anosantes, houve um funeral bem no estilojazz de Nova Orleans: música sombriade primeira a caminho do cemitério,depois alegre música de segunda tocadaa caminho da celebração, de sua vidaregada a Sazerac. Eureka se lembravade como Diana foi o centro das atençõesno funeral de Sugar, orquestrando umbrinde depois de outro. Lembrava-se de

pensar que não imaginaria lidar com amorte de Diana com tal segurança, pormais velha que estivesse ou mesmo nascircunstâncias mais tranquilas.

Por acaso, isso não importou.Ninguém queria celebrar a memória deDiana. Eureka passou o resto do diasozinha em seu quarto, encarando o teto,perguntando-se quando encontrariaenergia para se mexer de novo, tendoseu primeiro pensamentoverdadeiramente suicida. Pareciaespremida por pesos, como se nãoconseguisse ar suficiente.

Três meses depois, ali estava ela, naleitura do testamento de Diana, sem maisenergia que antes. A sala era grande eensolarada. Janelas de vidraças grossasdavam vista para apartamentos de maugosto. Eureka, o pai, Maureen e Beausentavam-se num canto da imensa mesa.Vinte cadeiras giratórias estavam vaziasdo outro lado da sala. Ninguém mais eraesperado além do advogado de Diana,que estava “num telefonema” quandoeles chegaram, segundo a secretária. Elacolocou copos de isopor com café fracodiante da família.

— Ah, querida, suas raízes! — A tiaMaureen estremeceu do outro lado damesa. Soprou o copo de café, bebendoum gole.

Por um momento, Eureka pensou queMaureen estivesse se referindo às raízesda família, as únicas com que Eureka seimportava naquele dia. Supunha que asduas coisas estavam interligadas; asraízes prejudicadas pela morte de Dianahaviam causado aquelas que apareciamofensivamente em seu cabelo.

Maureen era a mais velha dascrianças De Ligne, oito anos a mais que

Diana. As irmãs partilhavam a mesmapele orvalhada e o cabelo crespo eruivo, covinhas nos ombros, olhosverdes por trás de seus óculos. Dianaherdara muito mais classe; Maureentinha os seios amplos de Sugar e usavablusas de decotes perigosamente baixospara mostrar sua herança. Examinando atia do outro lado da mesa, ela percebeuque a principal diferença entre as irmãsera que a mãe de Eureka havia sidobonita. Podia-se olhar para Maureen ever uma Diana que não deu certo. Erauma paródia cruel.

O cabelo de Eureka estava molhadodo banho depois da corrida daquelatarde. A equipe fazia um circuito de 10quilômetros pelo bosque de Evangelinenas quintas-feiras, mas Eureka fez seutrajeto solitário pelo campus coberto defolhas da universidade.

— Nem suporto olhar para você. —Maureen estalou os dentes, olhando ocabelo de capacho molhado de Eurekavirar para a direita, dificultando que atia visse seu rosto.

— Idem — murmurou Eureka.— Querida, isto não é normal. —

Maureen meneou a cabeça. — Por favor.Vá ao American Hairlines. Eu lhe dareium trato. Por conta da casa. Somos dafamília, não somos?

Eureka olhou o pai, procurandoajuda. Ele tinha esvaziado o copo decafé e o fitava como se pudesse ler ofundo como folhas de chá. Pelaexpressão no rosto dele, não parecia queconseguia prever alguma coisa boa. Opai não ouviu uma palavra do que disseMaureen, e Eureka o invejou.

— Deixe, Mo — disse o tio Beau àirmã mais velha. — Há coisas mais

importantes que o cabelo. Estamos aquipor Diana.

Eureka não pôde deixar de imaginaro cabelo de Diana ondulandosuavemente debaixo da água, como o deuma sereia, como Ofélia. Ela fechou osolhos. Queria fechar sua imaginação,mas não podia.

Beau era o filho do meio. Eraarrojado quando jovem — cabelo pretoe sorriso largo, um retrato fiel do paique, quando se casou com Sugar,adquirira o apelido de Sugar Daddy.

Sugar Daddy morreu antes que

Eureka tivesse idade suficiente para selembrar dele, mas ela adorava ver suasfotos em preto e branco no consolo dalareira de Sugar, imaginando como seriasua voz, que histórias lhe contaria seainda estivesse vivo.

Beau parecia esgotado e era magro.Seu cabelo rareava atrás. Como Diana,não tinha emprego fixo. Viajava muito,de carona para a maioria dos lugares, ecerta vez, de algum modo, encontrouEureka e Diana em uma escavaçãoarqueológica no Egito. Ele herdou apequena fazenda de Sugar e Sugar

Daddy nos arredores de New Iberia,perto da casa de Brooks. Era ondeDiana ficava sempre que estava nacidade entre as escavações, entãoEureka também passou muito tempo lá.

— Como está a escola, Reka? —perguntou ele.

— Tudo bem. — Eureka tinhacerteza de que tomara bomba no teste decálculo aquela manhã, mas havia idobem na prova de geofísica.

— Ainda corre?— Sou capitã este ano — mentiu

ela, quando o pai levantou a cabeça.

Agora não era hora de divulgar quesaíra da equipe.

— Que bom. Sua mãe também é umacorredora rápida. — A voz de Beauentalou, e ele virou o rosto, como setenteasse decidir se deveria pedirdesculpas por ter usado o tempopresente na descrição da irmã.

A porta se abriu, e o advogado, oDr. Fontenot, entrou espremendo-se peloaparador para se colocar de pé diantedeles na cabeceira da mesa. Era umhomem de ombros arriados num ternooliva. Parecia impossível a Eureka que

a mãe tivesse conhecido aquele homem,menos ainda o contratado. Será que oescolhera ao acaso em uma listatelefônica? Ele não olhou ninguém nosolhos, apenas pegou uma pasta de papelpardo na mesa e folheou as páginas.

— Não conhecia bem Diana. — Suavoz era mansa e lenta, e havia um leveassovio na letra C. — Ela entrou emcontato comigo duas semanas antes desua morte para criar esta cópia de seutestamento.

Duas semanas antes de morrer?Eureka percebeu que teria sido na

véspera da viagem de avião que as duasfizeram para a Flórida. Estaria a mãetrabalhando no testamento enquantoEureka pensava que ela estava fazendoas malas?

— Não há muita coisa aqui — disseFontenot. — Havia um cofre no NewIberian Savings and Loan. — Elelevantou a cabeça, arqueando as grossassobrancelhas, e olhou pela mesa. — Nãosei se todos vocês esperavam mais.

Cabeças balançando de leve emurmúrios. Ninguém esperava sequer ocofre.

— Então, vamos a ele — disseFontenot. — Ao Sr. Walter Beau DeLigne...

— Presente. — O tio Beau ergueu amão como um estudante que ficou paratrás por quarenta anos.

Fontenot olhou o tio Beau, depoismarcou um quadrado no formulário emsuas mãos.

— Sua irmã Diana lhe deixa oconteúdo de sua conta bancária. — Eletomou nota rapidamente. — Subtraindoo dinheiro usado para as despesas dofuneral, há uma soma total de 6.413

dólares. Bem como esta carta. — Elepegou um pequeno envelope branco como nome de Beau escrito na letra deDiana.

Eureka quase ofegou ao ver a letrade grandes volteios da mãe. Queriaestender a mão e arrebanhar o envelopedos dedos de Beau, segurar algo que amãe tinha tocado tão recentemente. O tioficou aturdido. Meteu o envelope nobolso interno de sua jaqueta de courocinza e baixou os olhos para o colo.

— À Srta. Maureen Toney, nascidaDe Ligne...

— Sou eu, aqui. — A tia Maureenendireitou-se na cadeira. — Maureen DeLigne. Meu ex-marido, ele... — Elaengoliu em seco e ajeitou o sutiã. —Não importa.

— De fato. — O sotaque nasaladodo bayou de Fontenot fez com que aspalavras se estendessem infinitamente.— Diana desejava que tomasse possedas joias da mãe...

— Bijuterias, na maior parte. — Oslábios de Maureen se torceram enquantoela estendia a mão para pegar deFontenot a bolsinha aveludada com as

joias. Depois pareceu ouvir a si mesmae o absurdo que cometia. Deu umtapinha na bolsa como se fosse umbichinho de estimação. — Claro que temvalor sentimental.

— Diana também lhe legou o carro,mas, infelizmente, o veículo está — eleolhou brevemente para Eureka, depoispareceu desejar não ter feito isso —irrecuperável.

— Um problema a menos — disseMaureen a meia voz.

— Há também esta carta escrita porDiana — continuou Fontenot.

Eureka viu o advogado pegar umenvelope idêntico àquele dado a Beau.Maureen estendeu a mão pela mesa epegou o envelope. Meteu na cavernasem fundo de sua bolsa, onde colocavaas coisas que estava louca para perder.

Eureka odiava o advogado. Odiavaa reunião. Odiava a tia idiota ereclamona. Agarrou o tecido áspero dacadeira feia abaixo dela. Os músculosde suas omoplatas se retesaram em umnó no meio das costas.

— Agora — Srta. EurekaBoudreaux.

— Sim! — Ela deu um salto,esticando o pescoço para que o ouvidobom ficasse mais perto de Fontenot, quelançava um sorriso piedoso na suadireção.

— Seu pai está aqui como seuguardião.

— Estou.O pai se manifestou com a voz

rouca. E de repente Eureka ficou felizpor Rhoda ainda estar no trabalho, queos gêmeos estivessem aos cuidados davizinha, a Sra. LeBlanc. Por meia hora opai não tinha de fingir que não estava de

luto por Diana. Seu rosto parecia pálido,os dedos bem entrelaçados no colo.Eureka estava tão concentrada em simesma que nem considerou como o paiestaria reagindo à morte de Diana. Elaesgueirou a mão na direção da do pai e aapertou.

Fontenot pigarreou.— Sua mãe lega a você os três

seguintes itens.Eureka se curvou para a frente.

Queria os três itens seguintes: os olhosda mãe, o coração da mãe, os braços damãe bem apertados nela agora. Seu

próprio coração batia mais rápido, e oestômago revirava.

— Este saco contém um medalhão.— Fontenot retirou um saco de joias decouro azul da pasta e o deslizou comcuidado pela mesa até Eureka.

Os dedos de Eureka puxaram ocordão de seda que fechava o saco. Elacolocou a mão dentro dele. Sabia comoera o colar antes mesmo de tê-lo tirado.A mãe usava o medalhão com a face delápis-lazúli e pontos dourados o tempotodo. O pingente era um triângulo largo,cada lado com cerca de cinco

centímetros. O engaste de cobre eraazinhavrado de oxidação. O medalhãoera tão antigo e sujo que o fecho nãoabria, mas a reluzente cara azul erabonita o suficiente para que Eureka nãose importasse. O verso de cobre eramarcado por seis anéis sobrepostos,alguns em alto e outros em baixo relevo,que Eureka sempre achara semelhantesao mapa de uma galáxia distante.

Ela de repente se lembrou de que amãe não o usou na Flórida e Eureka nãoperguntou por quê. O que teria incitadoDiana a guardar o medalhão no cofre

antes de sua viagem? Eureka jamaissaberia. Fechou os dedos no medalhão,depois passou a longa corrente de cobrepela cabeça. Segurou o medalhão contrao coração.

— Também me orientou que vocêrecebesse este livro.

Um livro grosso de capa dura veio apousar na mesa diante de Eureka. Eraenvolto no que parecia um saco plástico,porém mais grosso que qualquer Ziplocque ela já vira. Ela tirou o livro daembalagem. Nunca o vira na vida.

Era muito antigo, encapado em

couro verde e rachado com sulcos nalombada. Havia a marca de um círculono meio da capa, mas estava tão gastoque Eureka não conseguia distinguir sefazia parte do desenho da capa ou erauma marca deixada por algum copohistórico.

O livro não tinha título, então Eurekasupôs ser um diário até abrir a capa. Aspáginas eram impressas numa língua queela não reconhecia. Eram finas eamareladas, feitas não de papel, mas deuma espécie de pergaminho. Aimpressão pequena e compacta era tão

desconhecida que seus olhos seesforçaram ao olhá-la. Parecia umamistura de hieróglifos com algodesenhado pelos gêmeos.

— Eu me lembro desse livro. — Opai se curvou para a frente. — Sua mãeo adorava, e nunca entendi por quê. Elao guardava na mesa de cabeceira,embora não o conseguisse ler.

— De onde ele veio? — perguntouEureka ao tocar as páginas de bordasirregulares.

Mais para o final, uma parte estavatão grudada que parecia ter sido

soldada. Lembrou a ela do queaconteceu com seu livro de biologiaquando ela deixou cair uma garrafa deCoca-Cola sobre ele. Eureka não searriscou a rasgar as páginas tentandosepará-las.

— Ela o conseguiu numa feira detrocas em Paris — disse o pai. — Nãosabia nada a respeito dele. Uma vez, deaniversário, paguei cinquenta pratas aum dos amigos arqueólogos dela parafazer uma datação por carbono. A coisanem mesmo tinha registro na escala.

— Deve ser falso — disse Maureen.

— Marcie Dodson... a garota do salão...foi a Nova York no verão passado.Comprou uma bolsa Goyard na TimesSquare e nem mesmo era verdadeira.

— Mais uma coisa para Eureka —interrompeu Fontenot. — Algo que suamãe chama de “aerólito”.

Ele deslizou uma arca de madeira dotamanho de uma caixinha de música.Parecia ter sido pintada havia muitotempo com um desenho complexo azul,mas a tinta desbotara e estava lascada.No alto da caixa havia um envelope decor creme com Eureka escrito na

caligrafia da mãe.— Também há uma carta para você.Eureka saltou na direção da carta.

Mas, antes de ler, passou um segundoolhando a caixa. Abrindo a tampa,encontrou uma massa de gaze tão brancaquanto um osso descorado, enrolandoalgo do tamanho de uma bola debeisebol. Ela a pegou. Pesada.

Um aerólito? Não sabia o que eraisso. A mãe jamais havia falado noassunto. Talvez a carta explicasse.Eureka tirou a carta do envelope ereconheceu o papel especial da mãe.

As letras em roxo no alto diziamFluctuat nec mergitur.

Era latim. Eureka tinha decorado dacamiseta da Sorbonne com que dormiana maioria das noites. Diana trouxe acamiseta para ela de Paris. Era o lemada cidade e da mãe também. “Jogadapelas ondas, ela não afunda.” O coraçãode Eureka inchou com a ironia cruel.

Maureen, que estiveraexperimentando sua herança, puxou daorelha um dos brincos de fecho deSugar. Depois o advogado disse algumacoisa, a voz suave de Beau se ergueu

para discutir, e o pai empurrou a cadeirapara trás — mas nada daquiloimportava. Eureka não estava mais comeles na sala de reuniões.

Ela estava com Diana, no mundo dacarta escrita à mão:

Minha preciosa Eureka,Sorria!Se estiver lendo isto,

imagino que seja algo difícil defazer. Mas espero que sorria —se não hoje, então em breve.Você tem um lindo sorriso,

espontâneo e animado.Enquanto escrevo estas

linhas, você está dormindo ameu lado em meu antigo quartona casa de Sugar — epa, deBeau. Hoje fomos de carro aoCypremort Point, e você nadoucomo uma foca com seu biquínide bolinhas. O sol estava forte,e ficamos com as mesmasmarcas de bronzeado nosombros esta tarde, comendofrutos do mar no cais. Deixeique você ficasse com uma

espiga de milho a mais, comosempre.

Você parece tão tranquila etão nova quando está dormindo,Eureka. É difícil acreditar quetenha 17 anos.

Você está ficando adulta.Prometo não tentar impedi-la.

Não sei quando lerá estacarta. A maioria de nós não éagraciada com o conhecimentode como nossa morte nosencontrará. Mas se esta cartachegar a você cedo demais, por

favor... Não deixe que minhamorte determine o curso de suavida.

Tentei criá-la para que nãohouvesse muito o que explicarnuma carta como esta. Sintoque nos conhecemos melhor doque quaisquer outras duaspessoas conseguiriam. É claroque ainda haverá coisas quevocê terá de descobrir sozinha.A sabedoria segura a vela daexperiência, mas você terá depegar essa vela e andar

sozinha.Não chore. Leve o que ama

de mim com você; deixe a dorpara trás.

Guarde o aerólito. Émisterioso, mas poderoso.

Use meu medalhão quandoquiser me ter por perto; talvezele o ajude a guiá-la.

E aproveite o livro. Eu seique o fará.

Com um profundo amor eadmiração,

Mamãe.

9

O GAROTO DE LUGARALGUM

Eureka segurava a carta com força.Reprimiu o possível sentimento que aspalavras da mãe quase a fizeram sentir.

Ao pé da página, a assinatura deDiana estava borrada. Na beira do

mamãe cursivo havia três círculosmínimos em relevo. Eureka passou odedo neles, como se fossem umalinguagem que só o toque lhe permitiriacompreender.

Ela não podia explicar como sabia:eram as lágrimas de Diana.

Mas a mãe não chorava. Se chorou,Eureka jamais vira. O que mais nuncasoube de Diana?

Lembrava-se com muita clareza damais recente viagem a Cypremort Point:no início de maio, as balsas seacotovelando contra a rampa, o sol

brilhando baixo no céu. Será que Eurekarealmente dormiu tão profundamentedepois disso para não ter ouvido a mãechorar? Por que Diana estava chorando?Por que escreveu a carta? Ela sabia queia morrer?

É claro que não. A carta dizia isso.Eureka queria gritar. Mas o impulso

passou, como um rosto marcado porcicatrizes em uma volta no trem-fantasma de um parque de diversões.

— Eureka.O pai estava de pé ao lado dela.

Estavam no estacionamento na frente do

escritório de Fontenot. O céu acima deleera de um azul-claro, com brancasbarras de nuvens. O ar era tão úmidoque sua camiseta parecia molhada.

Eureka ficou dentro da carta pelotempo que pôde, sem levantar a cabeçaao seguir o pai para fora da sala dereuniões, no elevador, pelo saguão, nocaminho para o carro.

— O que foi? — Ela se agarrava àcarta, temendo que alguma coisa alevasse.

— A Sra. LeBlanc vai cuidar dosgêmeos por mais meia hora. — Ele

olhou o relógio. — Podemos tomar umabanana split. Já faz algum tempo.

Eureka ficou surpresa ao descobrirque queria uma banana split do Jo’sSnow na esquina de sua igreja, a St.John. Era uma tradição deles antes deRhoda, os gêmeos, a escola, o acidente eas reuniões com advogados sobreheranças perturbadoras de mães mortas.

Uma banana split significava duascolheres, a mesa do canto ao lado dajanela. Significava Eureka na beirinhada cadeira, rindo das mesmas históriasque ouviu o pai contar umas cem vezes

sobre ser criado em New Iberia, ser oúnico menino a entrar num concurso denoz-pecã ou da primeira vez queconvidou Diana para jantar e ficou tãonervoso que seu flambado incendiou acozinha. Por um momento, Eurekadeixou que a mente viajasse àquela mesano Jo’s Snow. Ela se viu metendo acolher de sorvete na boca — umagarotinha que ainda considerava o paiseu herói.

Mas Eureka não sabia mais comoconversar com o pai. Por que contar aele como se sentia inválida? Se o pai

soltasse uma palavra errada a Rhoda,Eureka voltaria à vigilância suicida, semnem mesmo ter permissão de fechar aporta. Além disso, já havia o bastante nacabeça dele.

— Não posso — disse ela. —Tenho outra carona.

O pai olhou o estacionamento quasevazio como se ela estivesse brincando.

Ela não estava. Cat devia buscá-laàs 16h para estudar. A leitura dotestamento terminara cedo. Agora o paidevia esperar sem graça com ela até Cataparecer.

Procurando por Cat noestacionamento, o olhar de Eureka caiuna picape branca. Estava parada defrente para o prédio, sob um sicômorode folhas douradas. Alguém estavasentado no banco do carona, olhandobem à frente. Algo prateado brilhavapelo para-brisa.

Eureka semicerrou os olhos,lembrando-se do quadrado brilhante —aquele aromatizador incomum decitronela — pendurado no retrovisor deAnder. Ela não precisava ver de pertopara saber que era a picape dele. Ele

viu que ela havia visto. Não virou acara.

O calor tomou seu corpo. Suacamiseta parecia opressiva, as palmasdas mãos ficaram pegajosas. O que eleestava fazendo ali?

O Honda cinza quase atropelouEureka. Cat pisou no freio com umguincho áspero e baixou a janela.

— E aí, Sr. B? — chamou ela detrás dos óculos escuros em formato decoração. — Pronta, Reka?

— Como vai, Cat? — O pai bateuno capô do carro de Cat, que eles

chamavam de Mildew. — É bom verque ela ainda está em forma.

— Acho que nunca vai quebrar —gemeu Cat. — Meus netos vão dirigiresta lata-velha para meu enterro.

— Vamos estudar no Neptune’s —disse Eureka ao pai, indo para a portado carona.

O pai assentiu. Parecia perdido dooutro lado do carro, e isso deixouEureka triste.

— Fica para outro dia — disse ele.— E, Reka?

— Hein?

— Pegou tudo?Ela confirmou, dando um tapinha na

mochila que abrigava o livro antigo e aestranha arca azul. Tocou o coração,onde estava o medalhão. Ergueu a cartamanchada do choro de Diana, como umaceno.

— Chegarei em casa para o jantar.Antes de entrar no carro de Cat,

Eureka olhou por sobre o ombro, para avaga sob o sicômoro. Ander tinha idoembora. Eureka não sabia o que eramais estranho: que ele estivesse ali ouque ela desejasse que ele não tivesse

ido embora.— E como foi? — Cat abaixou o

volume do All things considered. Elaera a única adolescente que Eurekaconhecia que ouvia notícias e debatesem vez de música. Como podia paqueraruniversitários, era a justificativa de Cat,se não soubesse o que acontecia nomundo? — Você é a herdeira de umafortuna ou pelo menos de um pied àterre onde eu possa passar uns temposno sul da França?

— Não exatamente. — Eureka abriua mochila para mostrar a herança a Cat.

— O medalhão de sua mãe. — Cattocou a corrente no pescoço de Eureka.Ela estava acostumada a vê-la nopescoço de Diana. — Legal.

— Tem mais. Este livro antigo eesta pedra numa caixa.

— Pedra no quê?— Ela também escreveu uma carta.Cat parou o carro no meio do

estacionamento. Recostou-se no banco,apoiando os joelhos no volante, e virouo queixo para Eureka.

— Quer contar?Então Eureka leu a carta mais uma

vez, desta feita em voz alta, tentandomantê-la firme e procurando não ver asmanchas de lágrimas no final.

— Incrível — disse Cat quandoEureka terminou. Rapidamente enxugouos olhos, depois apontou o verso dapágina. — Tem alguma coisa escrita dooutro lado.

Eureka virou a folha de papel. Nãotinha percebido o pós-escrito.

PS: Sobre o aerólito... Embaixoda camada de gaze, há umartefato triangular trabalhado

em pedra. Algumas culturaschamam de flechas de elfo;acreditam que afastamtempestades. Os aerólitos sãoencontrados entre os restos dascivilizações mais antigas emtodo o mundo. Lembra aspontas de flecha quedesenterramos na Índia? Pensenelas como primas distantes.Não se sabe a origem desteaerólito em particular, o que otorna muito mais importanteàqueles que se permitem

imaginar as possibilidades. Eume permiti. Você fará o mesmo?

PPS: Só desembrulhe a gazequando precisar. Saberáquando chegar a hora.

PPPS: Saiba que a amo,sempre.

— Bem, isso explica mesmo a pedra —disse Cat de um jeito que sugeria queestava totalmente confusa. — Qual é a

história do livro?Elas examinaram as frágeis páginas

repletas de linha após outra de caligrafiaem uma língua indecifrável.

— O que é isto, linguagem marcianamedieval? — Cat semicerrou os olhos,virando o livro de cabeça para baixo. —Pelo visto minha tia-avó analfabetaDessie finalmente escreveu aqueleromance que vivia alardeando.

Uma batida na janela de Eurekaassustou as duas.

O tio Beau estava do lado de foracom a mão dentro do bolso do jeans.

Eureka achava que ele já tinha idoembora; ele não gostava de ficar emLafayette. Ela olhou em volta,procurando a tia Maureen. Beau estavasozinho. Ela baixou a janela.

O tio se curvou para dentro, com oscotovelos pousados no carro. Apontou olivro.

— Sua mãe. — A voz era aindamais baixa que o normal. — Ela sabia oque o livro dizia. Ela conseguia ler isso.

— O quê? — Eureka pegou o livroda mão de Cat e o folheou.

— Não me pergunte como — disse

Beau. — Eu a vi lendo uma vez etomando notas.

— Sabe onde ela aprendeu...— Não sei de nada além disso. Mas

o que seu pai disse sobre não serpossível ler... Eu queria que vocêsoubesse a verdade. É possível.

Eureka se curvou para dar um beijono rosto castigado do tio.

— Obrigada, tio Beau.Ele balançou a cabeça.— Vou para casa soltar os

cachorros. Dê uma passada na fazendaum dia desses, tá? — Ele fez uma curta

saudação às meninas enquanto ia parasua velha picape.

Eureka se virou para Cat, aninhandoo livro no peito.

— Então a pergunta é...— Como vamos traduzi-lo? — Cat

bateu as unhas prateadas no painel. —Na semana passada eu saí com umclassicista-veterinário que tem formaçãodupla na UL. Ele é só do segundo ano,mas talvez saiba.

— Onde conheceu esse Romeu? —Eureka não pôde deixar de pensar emAnder, mas nada que Ander tivesse feito

na presença de Eureka trazia a maisvaga semelhança de romance.

— Eu tenho um método. — Catsorriu. — Olho as listas de alunos domeu pai on-line, escolho os mais gatos eme posiciono estrategicamente no centroacadêmico depois que a aula termina. —Seus olhos escuros foram rapidamentepara Eureka e revelaram um raroconstrangimento. — Você nunca vaicontar isso a ninguém. Rodney pensa quenosso encontro foi puro acaso. — Elasorriu. — Ele tem trancinhas até aqui.Quer ver uma foto?

Enquanto Cat pegava o celular erolava pelas fotos, Eureka olhou onde apicape de Ander tinha estado. Imaginouque ainda estava ali e que Ander tinhatrazido Magda para ela, só que agora oJeep estava pintado de cobras, chamas eesmeraldas assimétricas.

— Um fofo, né? Quer que eu liguepara ele? Ele fala tipo 57 línguas. Se seutio estiver dizendo a verdade, a gentedevia traduzir.

— Talvez. — Eureka estavadistraída. Colocou o livro e o aerólitocom a carta da mãe na mochila. — Não

sei se estou disposta a isso hoje.— Claro. — Cat fez que sim. —

Você que manda.— É — murmurou Eureka, mexendo

no cinto de segurança, sem pensar naslágrimas da mãe. — Será que a gentepode não falar disso agora?

— Claro. — Cat engrenou o carro efoi para a saída do estacionamento. —Posso sugerir que a gente realmenteestude? Aquela prova sobre Moby Dicke nossas notas em queda livre podemtirar sua cabeça dessas coisas.

Eureka olhou pela janela e viu as

folhas de sicômoro dourado-clarasvoarem pela vaga deixada por Ander.

— O que me diz de nãoestudarmos...

— Não diga mais nada. Sou suaamiga. O que tem em mente, maninha?

— Bem... — Tinha realmentesentido mentir para Cat? Provavelmentenão. Eureka deu de ombros timidamente.— Uma passada no treino de cross-country da Manor?

— Ora, ora, Srta. Boudreaux. — Osolhos de Cat assumiram um brilhocativante, em geral reservado para caras

mais velhos. — Por que demorou tanto adizer?

A Manor era muito maior que aEvangeline e muito menos capitalizada.A única outra escola católica mista emLafayette, era há muito tempo a principalrival da Evangeline. O corpo estudantilera mais diversificado, mais religioso emais competitivo. Os alunos da Manorpareciam frios e agressivos a Eureka.Venciam os campeonatos distritais namaioria das modalidades esportivas e na

maioria dos anos, embora no anoanterior a Evangeline tivesseconquistado o estadual de cross-country. Cat estava decidida a manter otítulo este ano.

Assim, quando Cat parou noestacionamento dos atletas que se abriapara o bayou, foi como se estivessemcruzando as linhas inimigas.

Quando Eureka abriu a porta, Catfranziu a testa para a própria saia douniforme marinho até os joelhos.

— Não podemos sair vestidasassim.

— E quem liga? — Eureka saiu docarro. — Está com medo que pensemque os Evangelinos estão aqui parasabotar?

— Não, mas pode haver algunssarados malhando aí e estou umasenhorinha total com esta saia. — Elaabriu a mala do carro, seu armáriomóvel. Tinha uma pilha de estampascoloridas, muita Lycra e mais sapatosque uma loja de departamentos. — Medá cobertura?

Eureka protegeu Cat e ficou defrente para a pista. Passou os olhos pelo

campo, procurando sinais de Ander. Osol, porém, batia em seus olhos, e todosos meninos do cross-country pareciamigualmente altos e desengonçados dali.

— E então, decidiu ter umapaixonite. — Cat vasculhava a mala,resmungando consigo mesma sobre umcinto que tinha deixado em casa.

— Não sei se é exatamente isso —disse Eureka. Seria? — Ele apareceuumas noites atrás...

— Essa você não me contou.Eureka ouviu um zíper e deu uma

olhada no corpo de Cat brilhando com

alguma coisa.— Não foi nada. Deixei umas coisas

no carro dele, e ele foi devolver. Brooksestava lá. — Ela parou, pensando nomomento em que virou sanduíche entreos dois meninos à beira de uma briga.— As coisas ficaram bem tensas.

— Ander ficou estranho com Brooksou foi Brooks que ficou estranho comAnder? — Cat borrifou perfume nopescoço. Tinha cheiro de melão ejasmim. Cat era um microclima.

— Como assim? — perguntouEureka.

— É só que... — Cat pulava num pésó, fechando a alça do salto alto. —Sabe como é, Brooks pode ser bempossessivo com você.

— Sério? Se você acha... — Eurekase interrompeu, erguendo-serapidamente na ponta dos pés quando umlouro alto fez a curva da pista à frentedelas. — Acho que é Ander... Não. —Ela baixou os calcanhares no chão,decepcionada.

Cat assoviou, surpresa.— Nossa. Não acha que é

“exatamente” uma paixonite. Tá de

brincadeira? Você ficou arrasadaporque não era ele. Nunca te vi assim.

Eureka revirou os olhos. Recostou-se no carro e olhou o relógio.

— Ainda não se vestiu? São quase17h; eles devem começar o relaxamento.— Ela e Cat não tinham muito tempo.

— Não vai comentar meu visual?Quando Eureka se virou, Cat estava

com um vestido colado de estampa deoncinha, saltos agulha pretos e a boinade lince que elas compraram juntas noverão anterior em Nova Orleans. Elagirou, parecendo uma modelo de

taxidermista.— Chamo de Triple-Cat. — Ela fez

garras com as mãos. — Rraaur.— Cuidado. — Eureka apontou para

os alunos da Manor no campo. —Aqueles carnívoros podem devorarvocê.

Elas atravessaram o estacionamento,passando da fila de ônibus amarelos queesperavam para levar os alunos paracasa, da falange de bebedouros laranja edos calouros de pernas finas que faziamabdominais nas arquibancadas. Catrecebia assovios.

— E aí, mermão — ronronou elapara um garoto negro que a olhouquando passou correndo.

Eureka não estava acostumada a verCat com garotos negros. Ela seperguntou se esses meninos viam amelhor amiga como meio branca, comoos brancos da Evangeline viam Catcomo meio negra.

— Ele sorriu! — disse Cat. — Vouatrás dele? Acho que não dá para corrercom este vestido.

— Cat, estamos aqui procurandoAnder, lembra?

— Tá. Ander. Superalto. Magrelo...Mas não demais. Cachos lourosdeliciosos. Ander.

Pararam na beira da pista. EmboraEureka já tivesse corrido 10 quilômetrosaquela tarde, quando a ponta de seusapato tocou o cascalho vermelho, elateve o impulso de correr.

Elas olhavam a equipe. Meninos emeninas cambaleavam pela pista,correndo a diferentes velocidades.Todos usavam a mesma camisa polocom gola amarela e short de corridaamarelo.

— Esse não é ele — disse Cat, coma ponta do dedo seguindo os corredores.— E esse não é ele... Fofo, mas não éele. E esse cara certamente não é ele.— Ela franziu o cenho. — Queesquisito. Posso imaginar a aura que eleprojeta, mas é difícil me lembrar comclareza de seu rosto. Será que não vi tãode perto?

— Ele tem uma aparência incomum— disse Eureka. — Mas não no mausentido. Impressiona.

Os olhos dele são como o mar, elaqueria dizer. Os lábios são da cor dos

corais. A pele tem o tipo de poder quefaz um ponteiro de bússola pular.

Ela não o via em lugar algum.— Lá está Jack. — Cat apontou para

um varapau musculoso de cabelo preto,que tinha parado de se alongar na lateralda pista. — É o capitão. Lembra quandojoguei Sete Minutos no Paraíso com eleno inverno passado? Quer que eupergunte a ele?

Eureka fez que sim, seguindo oandar rebolado de Cat até o garoto.

— E aí, Jack. — Cat deslizou para aarquibancada acima daquela que Jack

usava para alongar a perna. — Estamosprocurando um cara de sua equipechamado Ander. Qual é o sobrenomedele, Reka?

Eureka deu de ombros.E Jack também.— Não tem Ander algum na minha

equipe.Cat estendeu as pernas, cruzando os

tornozelos.— Olhe, a gente teve aquela corrida

com vocês, a que foi cancelada porcausa da chuva dois dias atrás, e eleestava lá. Um cara alto, louro... Me

ajuda, Reka?Olhos de mar, ela quase soltou.

Mãos que podem pegar uma estrelacadente.

— Meio branco demais? — Elaconseguiu dizer.

— Meio não é da equipe. — Jackamarrou de novo o tênis e se endireitou,indicando que aquele encontro tinhaacabado.

— Você é meio um capitão demerda, se não conhece os nomes de suaequipe — disse Cat, enquanto ele seafastava.

— Por favor. — Eureka falou comuma sinceridade que fez Jack parar e sevirar. — Precisamos mesmo encontrá-lo.

O garoto suspirou. Voltou àsmeninas e pegou uma bolsa pretadebaixo da arquibancada. Tirou dela umiPad, então deu umas pancadas nele.Quando estendeu a Eureka, a tela exibiaa imagem de uma equipe cross-countryposando na arquibancada.

— As fotos do anuário são dasemana passada. Aqui tem todo mundoda equipe. Vê seu Xander aqui?

Eureka olhou atentamente afotografia, procurando o garoto queacabara de ver no estacionamento,aquele que bateu em seu carro, aqueleque ela não conseguia tirar da cabeça.Trinta jovens esperançosos sorriam paraela, mas nenhum deles era Ander.

10

ÁGUA E PODER

Eureka espremeu um pouco de filtrosolar de coco na palma da mão e passouuma segunda camada nos ombrosbrancos de William. Era uma manhãquente e ensolarada de sábado, entãoBrooks tinha levado Eureka e os gêmeos

à casa de veraneio da família emCypremort Point, na beira da baía deVermilion.

Todos que moravam no trecho sul doBayou Teche queriam ter um lugar noPoint. Se sua família não tinha ondeficar pelo corredor de 3 quilômetros dapenínsula perto da marina, você faziaamizade com quem tinha. Eram casas defim de semana, em grande parte umadesculpa para ter um barco, e iam depouco mais de um trailer estacionadonum terreno com grama a mansões demilhões de dólares erguidas sobre

pilastras de cedro, com rampasprivativas para barcos. Os furacõeseram comemorados com marcos em tintapreta na porta da frente das casas,denotando cada altura que a água atingia— Katrina 2005, Rita 2005, Ike 2008.

A casa dos Brooks era feita de ripasde madeira e teto de alumíniocorrugado, tinha petúnias em vasos elatas de café instantâneo desbotadas nospeitoris. Havia um píer de cedro nosfundos, que parecia interminável nastardes de sol. Eureka passara cem horasde felicidade ali fora, comendo doces de

noz-pecã com Brooks, segurando umavara de pescar de cana-de-açúcar, sualinha pintada de verde das algas.

O plano naquele dia era pescar oalmoço, depois comer umas ostras naBay View, o único restaurante dacidade. Mas os gêmeos ficaramentediados com a pesca assim que asminhocas desapareceram sob a águaturva, então todos largaram as varas eforam de carro ao trecho estreito depraia que dava na baía. Algumaspessoas diziam que a praia artificial erafeia, mas quando o sol brilhava na água,

a relva dourada ondulava ao vento, e asgaivotas grasnavam ao mergulhar paraos peixes, Eureka não conseguiaimaginar por quê. Ela afastou ummosquito da perna e olhou a quietudeescura da baía na beira do horizonte.

Era a primeira vez que chegavaperto de uma massa de água desde amorte de Diana. Mas, lembrou Eureka asi mesma, aquela era sua infância; nãohavia motivo para ficar nervosa.

William construía uma McMansãode areia, com os lábios franzidos deconcentração, enquanto Claire demolia

os progressos dele, ala por ala. Eurekapairou acima deles com o frasco deHawaiian Tropic, examinando seusombros, procurando o mais leve sinal derosado.

— Você é a próxima, Claire. —Seus dedos passaram a loção pela bordadas asas laranja da boia de William.

— Tá. — Claire se levantou com osjoelhos cobertos de areia molhada.Olhou o filtro solar e começou a correr,mas tropeçou na piscina da McMansãode areia.

— O furacão Claire ataca

novamente. — Brooks pulou parapersegui-la.

Quando voltou com Claire nosbraços, Eureka se aproximou com ofiltro solar. Ela se debatia, gritandoquando Brooks fazia cócegas.

— Pronto. — Eureka fechou a tampado frasco. — Está protegida por maisuma hora.

As crianças correram, abandonado aarquitetura de areia, para procurarconchas inexistentes na beira da água.Eureka e Brooks arriaram na manta,empurrando os sapatos na areia fria.

Brooks era uma das poucas pessoas quese lembrava de sempre se sentar do ladodireito de Eureka para que ela o ouvissequando ele falava.

A praia estava vazia para umsábado. Uma família com quatrocrianças sentava-se à esquerda, todosem busca da sombra gerada por umalona azul presa entre duas estacas.Pescadores esparsos percorriam amargem, suas linhas cortando a areiaantes que a água as lavasse. Maisadiante, um grupo de alunos dofundamental, que Eureka reconhecia da

igreja, jogava cordões de algas marinhasuns nos outros. Ela olhou a água baternos tornozelos dos gêmeos, lembrando-se de que a 6 quilômetros dali a ilhaMarsh mantinha ao largo as ondas maisaltas do golfo.

Brooks lhe passou uma lata suada deCoca-Cola do cesto de piquenique. Paraum garoto, Brooks era estranhamentebom na preparação de um piquenique.Sempre havia uma variedade debesteiras e comida saudável: fritas,cookies e maçãs, sanduíches de peru erefrigerantes. A boca de Eureka salivou

ao ver um Tupperware com uma sobrade camarão empanado da mãe dele,Aileen, por cima de arroz colorido. Elatomou um gole do refrigerante e seapoiou nos cotovelos, pousando a latafria entre os joelhos despidos. Umveleiro navegava a leste, longe, suasvelas manchando as nuvens baixas naágua.

— Eu devia te levar para velejarlogo — disse Brooks —, antes que otempo mude.

Brooks era ótimo marinheiro, aocontrário de Eureka, que jamais

lembrava para que lado girar osmanetes. Era o primeiro verão em queele pôde sozinho levar os amigos debarco. Ela velejou com ele uma vez emmaio, e pretendiam fazer isso todo fimde semana depois, mas então aconteceuo acidente. Ela tentava voltar a ficarperto da água. Tinha uns pesadelos ondeafundava no meio do mar mais escuro emais bravio, a milhares de quilômetrosde qualquer terra.

— Quem sabe no fim de semana quevem? — disse Brooks.

Ela não podia evitar o mar para

sempre. Fazia parte dela tanto quantocorrer.

— Da próxima vez, podemos deixaros gêmeos em casa — disse Eureka.

Ela se sentiu mal por trazê-los.Brooks já fizera mais do que devia,dirigindo 30 quilômetros ao norte parapegar Eureka em Lafayette, porque ocarro dela ainda estava na oficina.Quando ele chegou à casa de Eureka,quem pediu, implorou e deu pequenosataques para acompanhá-los? Brooksnão conseguiu dizer não falou. O pai quenão tinha problema, e Rhoda estava em

alguma reunião. Então Eureka passou ameia hora seguinte transferindo ascadeirinhas do Continental do pai para obanco traseiro do sedã de Brooks,lutando com vinte fechos diferentes ealças de enfurecer. Logo tinha as bolsasde praia, as boias que precisavam serenchidas e o snorkel que Williaminsistiu em pegar nos recessos maisdistantes do sótão. Eureka imaginou quenão havia tantos obstáculos quandoBrooks ficava com Maya Cayce. Elaimaginou torres Eiffel e mesas à luz develas postas com pratos de lagosta

pochê saltando de campos de rosasvermelhas sem espinhos sempre queBrooks saía com Maya Cayce.

— Por que eles deviam ficar emcasa? — Brooks riu, vendo Clairemodelar um bigode de algas emWilliam. — Eles adoram. Eu tenhocoletes salva-vidas para crianças.

— Porque sim. Eles são cansativos.Brooks pegou os empanados no

cesto. Apanhou um garfo, depois passouo pote a Eureka.

— Você ficaria mais cansada pelaculpa de não trazê-los.

Eureka se deitou na areia e pôs ochapéu de palha no rosto. Ele estavacerto de uma maneira irritante. SeEureka sequer se deixasse considerar oquanto já estava cansada de culpa,provavelmente ficaria presa na cama.Ela se sentia culpada pela distância quecriou do pai, pela onda interminável depânico que desencadeava na casa aotomar aqueles comprimidos, pelo Jeepamassado cujo conserto Rhoda insistiaem pagar para poder jogar a despesa nacara de Eureka.

Ela pensou em Ander e se sentiu

mais culpada ainda por ser ingênua aponto de acreditar que ele cuidaria docarro dela. Na tarde de ontem, Eurekafinalmente criou coragem para discar onúmero que ele colocou em sua carteira.Uma mulher de voz grossa chamadaDestiny atendeu e disse a Eureka quetinha acabado de acionar aquela linhatelefônica no dia anterior.

Por que ir de carro até sua casa sópara lhe dar um número falso? Por quementir sobre ser da equipe de cross-country da Manor? Como a encontrouno escritório do advogado e por que ele

sumiu de lá tão de repente?Por que a possibilidade de nunca

mais vê-lo enchia Eureka de pânico?Uma pessoa mentalmente sã

perceberia que Ander era esquisito. Estafoi a conclusão de Cat. Apesar de tudoque Cat suportava de seus várioshomens e garotos, ela não toleraria umamentira.

Tudo bem, ele mentiu. Mas Eurekaqueria saber por quê.

Brooks levantou a aba do chapéu depalha para olhar seu rosto. Ele rolou debruços ao lado dela. Tinha areia na face

bronzeada. Ela sentia o cheiro de sol emsua pele.

— O que se passa em minha cabeçapreferida? — perguntou ele.

Ela pensou em como se sentiu presaquando Ander pegou Brooks pela gola.Pensou na rapidez com que Brookssacaneou Ander depois daquilo.

— Não vai querer saber.— Por isso eu perguntei — disse

Brooks. — Porque não quero saber.Ela não queria contar a Brooks

sobre Ander — e não só pelahostilidade entre os dois. O segredo de

Eureka tinha a ver com ela, com aintensidade que Ander a fazia sentir.Brooks era um de seus melhores amigos,mas não conhecia esse lado de Eureka.Ela não conhecia esse lado. E isso nãopassaria.

— Eureka. — Brooks bateu umpolegar em seu lábio inferior. — O quefoi?

Ela tocou o meio do peito, onde omedalhão de lápis-lazúli da mãeassentava. Em dois dias, ela seacostumou com o peso no pescoço.Brooks estendeu a mão e encontrou seus

dedos no medalhão. Segurou-o e passouo dedo no fecho.

— Ele não abre. — Ela o soltou,sem querer que ele o arrebentasse.

— Desculpe. — Ele se encolheu,depois rolou de costas. Eureka olhou alinha de músculos em sua barriga.

— Não, eu é que peço desculpas. —Ela lambeu os lábios. Tinham gosto desal. — É porque é delicado.

— Você ainda não me contou comofoi no advogado — disse Brooks. Masnão a olhava. Encarava o céu, onde umanuvem cinzenta filtrava o sol.

— Quer saber se fiquei bilionária?— perguntou Eureka. Sua herança adeixara estupefata e triste, mas era umassunto mais fácil do que Ander. —Sinceramente, não sei bem o que Dianame deixou.

Brooks puxou uma folha de relvaque se projetava da areia.

— Como assim? Parece ummedalhão quebrado.

— Ela também me deixou um livronuma língua que ninguém consegue ler.Deixou algo chamado aerólito... Umabola de gaze arqueológica que eu não

devo desembrulhar. Escreveu uma cartaque diz que essas coisas sãoimportantes. Mas não sou arqueóloga;sou só a filha dela. Não tenho ideia doque fazer com tudo isso e me sintoidiota.

Brooks se mexeu na manta, e osjoelhos roçaram Eureka de lado.

— Estamos falando de Diana. Ela aamava. Se sua herança tem umpropósito, certamente não é para fazervocê se sentir mal.

William e Claire tinham ido à lonana praia e encontraram duas crianças

com quem podiam espirrar água. Eurekaficou agradecida por alguns momentos asós com Brooks. Não percebera o fardoque sua herança a fazia sentir e o alívioque seria dividir esse fardo. Ela olhou abaía e imaginou sua herança voandocomo pelicanos, sem precisar mais dela.

— Queria que ela tivesse mecontado sobre essas coisas quandoestava viva — falou ela. — Pensei quenão tivéssemos segredos.

— Sua mãe era uma das pessoasmais inteligentes do mundo. Se eladeixou uma bola de gaze, talvez valha a

pena investigar. Pense nisso como umaaventura. Era o que ela faria. — Elejogou a lata de refrigerante vazia nocesto de piquenique e tirou o chapéufedora. — Vou dar um mergulho.

— Brooks? — Ela se sentou eestendeu a mão para ele. Quando ele sevirou para ela, seu cabelo caiu nosolhos. Ela o empurrou de lado. Oferimento na testa estava se curando; sóhavia uma casca fina e redonda acimado olho. — Obrigada.

Ele sorriu e se levantou,endireitando o calção de banho azul, que

ficava bem em sua pele bronzeada.— Tranquilo, Lulinha.Enquanto Brooks ia para a água,

Eureka olhou os gêmeos e seus novosamigos.

— Vou acenar para você quandoestiver na arrebentação — disse ela aBrooks, como sempre fazia.

Havia uma lenda de um menino dobayou que se afogou na baía deVermilion numa tarde de fim de verão,pouco antes do poente. Num minuto, eleestava correndo com os irmãos,espirrando água nos baixios mais

distantes da baía; no outro — talvezpelo desafio — nadou para além daarrebentação e foi levado para o mar.Por causa disso, Eureka nunca seatreveu a nadar perto das boiasvermelhas e brancas da arrebentaçãoquando criança. Agora sabia que ahistória era uma mentira contada pelospais para manter as crianças com medoe seguras. As ondas da baía deVermilion mal podiam ser chamadas deondas. A ilha Marsh lutava com asverdadeiras como um super-heróiprotegendo sua metrópole.

— Estamos com fome! — gritouClaire, sacudindo areia do curto rabo decavalo louro.

— Meus parabéns. Seu prêmio é umpiquenique. — Eureka abriu a tampa docesto e espalhou os artigos para ascrianças, que correram para ver o quetinha ali.

Ela colocou canudinhos em duascaixas de suco, abriu vários sacos desalgadinhos e tirou qualquer evidênciade tomates do sanduíche de peru deWilliam. Não pensava em Ander por unsbons cinco minutos.

— Como está a gororoba? — Elamastigou uma batata chip.

Os gêmeos balançaram a cabeça, deboca cheia.

— Cadê o Brooks? — perguntouClaire, entre as dentadas que tirava dosanduíche de William, embora tivesse odela.

— Nadando. — Eureka passou osolhos pela água. Seus olhos estavamembaçados do sol. Ela disse queacenaria para ele; a essa altura ele deviaestar na arrebentação. As boias ficavama apenas uns 100 metros da praia.

Não havia muita gente nadando, sóos meninos do fundamental rindo dainutilidade de suas pranchas à direitadela. Eureka vira os cachos escuros deBrooks subirem e descerem na água, eos golpes longos de seu braçobronzeado a meio caminho daarrebentação — mas isso já fazia algumtempo. Eureka colocou a mão em conchasobre os olhos para bloquear o sol. Viua linha que dividia a água do céu. Ondeele estava?

Eureka se colocou de pé para teruma visão melhor do horizonte. Não

havia salva-vidas na praia, ninguémvigiava os nadadores distantes. Elaimaginou que podia enxergar parasempre — passando de Vermilion ao sulà baía de Weeks, à ilha Marsh e, alémdela, ao golfo, a Veracruz, no México,até as calotas de gelo perto do Polo Sul.Quanto mais olhava, mais escuro omundo ficava. Cada barco estavaabandonado e em frangalhos. Tubarões,serpentes e crocodilos se enfiavampelas ondas. E Brooks estava lá fora,nadando de peito, longe.

Não havia motivo para pânico. Ele

era um excelente nadador. Mas elaestava em pânico. Engoliu em seco como peito apertando-se, fechando-se.

— Eureka. — William encaixou amão na dela. — O que foi?

— Nada.Sua voz tremia. Ela precisava se

acalmar. Os nervos distorciam suapercepção. A água parecia mais batidaque antes. Uma lufada de vento passoupor ela, carregando o odor nebuloso eintenso de húmus e peixe-agulha. Alufada achatou as costas do caftã deEureka no corpo e espalhou as batatas

chips dos gêmeos na areia. O céutrovejou. Uma nuvem esverdeada roloudo nada e relinchou de trás dasbananeiras na curva oeste da baía.Espalhou-se pelo estômago a sensaçãodensa e enjoativa de algo ruim seformando.

E então ela viu a crista da onda.A onda escumou a superfície da

água, formando-se a 600 metros depoisda arrebentação. Rolava para eles emespirais tecidas. As palmas das mãos deEureka começaram a suar. Ela nãoconseguia se mexer. A onda adensava

para mais perto da praia como queatraída por uma força magnéticapoderosa. Era feia e irregular, alta edepois mais alta ainda. Inchou a 6metros, combinando com a altura daspilastras de cedro que sustentavam a filade casas no lado sul da baía. Como umacorda se desenrolando, investia para apenínsula de casas de veraneio, depoispareceu mudar de rumo. No ponto maisalto da onda, a camada de espuma virouum ponteiro para o meio da praia —para Eureka e os gêmeos.

A muralha de água avançava,

profunda em sua miríade de azul.Brilhava de diamantes de luz lapidadapelo sol. Pequenas ilhas de espumarolavam por sua superfície. Vastosredemoinhos giravam, como se a ondatentasse devorar a si mesma. Fedia apeixe podre e — ela respirou — vela decitronela?

Não, não tinha cheiro de vela decitronela. Eureka cheirou mais uma vez.Porém o cheiro estava em sua mente poralgum motivo, como se o conjurasse deuma lembrança de outra onda e nãosoubesse o que significava.

De frente para a onda, Eureka viuque se assemelhava àquela que cortou aponte Seven Mile na Flórida e todo omundo de Eureka. Até agora, não tinhase lembrado de como era. Dasprofundezas do urro daquela onda,Eureka pensou ter ouvido a últimapalavra da mãe:

— Não!Eureka tapou as orelhas, mas o grito

era de sua própria voz. Quandopercebeu isso, a determinação a tomou.Tinha o zumbido nos pés que indicavaque corria.

Ela já perdera a mãe. Não perderiao melhor amigo.

— Brooks! — Ela correu para aágua — Brooks! — Água espirrava emseus joelhos. Depois parou.

O chão tremeu da força da água dabaía se retirando. O mar se precipitavacontra suas panturrilhas. Ela se preparoupara o recuo. Enquanto o vagalhãopuxava para o golfo, arrancou a areiasob seus pés, deixando uma lama fétida,sedimento pedregoso e destroçosirreconhecíveis. Em volta de Eureka,feixes de algas marinhas jaziam

abandonados pelas ondas. Peixes sedebatiam na terra exposta. Caranguejoscorriam para acompanhar a água, emvão. Segundos depois, o mar tinha seretraído até a arrebentação. Brooks nãoestava em lugar algum.

A baía foi drenada, a águaacumulada na onda que ela sabia quevoltava. Os meninos largaram aspranchas e correram para a praia. Varasde pesca caíam abandonadas. Paispegavam os filhos, o que lembrouEureka de fazer o mesmo. Ela correupara Claire e William e meteu um gêmeo

debaixo de cada braço. Correu paralonge da água, pela relva cheia deformiga de fogo, passando pelo pequenopavilhão, entrando no calçamento quentedo estacionamento. Segurava firmementeas crianças. Eles pararam, formandouma fila com os outros espectadores.Olhavam a baía.

Claire chorava apertada pela cinturaem Eureka, que a segurava mais forte àmedida que a onda atingia um pico àdistância. A crista era espumosa, de umamarelo nauseante.

A onda se enroscou, borbulhando.

Pouco antes de se quebrar, seu ronco foitragado no silvo apavorante da crista.As aves silenciaram. Nenhum som foiemitido. Tudo observava a onda selançar para a frente e bater no leitolodoso da baía, atingindo a areia comviolência. Eureka rezou para que o piortivesse passado.

A água disparou adiante, inundandoa praia. Guarda-sóis foram arrancados,levados como lanças. Toalhas giravamem redemoinhos violentos, retalhadoscontra pedras arseniadas. Eureka viu seucesto de piquenique flutuar pela

superfície da onda e subir na relva. Aspessoas gritavam, correndo peloestacionamento. Eureka virava-se paracorrer quando viu a água cruzar a beirado estacionamento. Fluiu sobre seus pés,espirrou nas pernas, e ela sabia quenunca poderia vencê-la...

E de súbito, rapidamente, a onda seretraiu, saindo do estacionamento, devolta à relva, lavando quase tudo napraia e entrando na baía.

Ela soltou as crianças no calçamentomolhado. A praia estava em destroços.Cadeiras de armar flutuavam para o mar.

Barracas vagavam, virados pelo avesso.Lixo e roupas espalhavam-se por toda aparte. E no meio dos restos e da areiatomada por peixes mortos...

— Brooks!Ela correu até o amigo. O rosto dele

estava enfiado na areia. Em suaansiedade para alcançá-lo, tropeçou,caindo sobre seu corpo ensopado. Ela ovirou de lado.

Ele estava muito frio. Os lábiosazulados. Uma tempestade de emoçõessubiu no peito de Eureka, e ela estavaprestes a soltar um soluço...

Mas então ele rolou de costas. Deolhos fechados, ele sorriu.

— Ele precisa de ressuscitação? —perguntou um homem, abrindo caminhopela massa de gente que se reunia emvolta deles na areia.

Brooks tossiu, gesticulando umarecusa à oferta do homem. Olhou amultidão. Fitou cada pessoa como senunca tivesse visto nada parecido navida. Depois seus olhos se fixaram emEureka. Ela atirou os braços nele,enterrando o rosto em seu ombro.

— Tive tanto medo.

Ele acariciou suas costas, fraco.Depois de um instante, saiu do abraçopara se levantar. Eureka também seergueu, sem saber o que fazer, nauseadade alívio por ele parecer bem.

— Você está bem — disse ela.— Tá brincando? — Ele fez um

carinho no rosto dela e abriu um sorrisoencantadoramente inadequado. Talveznão estivesse à vontade com tanta gentepor perto. — Você me viu surfarnaquela merda?

Havia sangue em seu peito, do ladodireito do tronco.

— Você está machucado! — Ela ocontornou e viu quatro cortes emparalelo de cada lado das costas, juntoda curva da caixa torácica. O sanguevermelho escorria diluído na água domar.

Brooks se retraiu com os dedos delaem seu corpo. Sacudiu a água do ouvidoe olhou o que podia ver das costasensanguentadas.

— Arranhei numa pedra. Não sepreocupe com isso. — Ele riu e nãoparecia Brooks. Tirou o cabelo molhadoda cara com um golpe de cabeça, e

Eureka percebeu que o ferimento natesta estava vermelho vivo. A ondadevia tê-lo agravado.

Os espectadores pareciam certos deque Brooks ia ficar bem. O círculo emvolta deles se rompia enquanto aspessoas procuravam por suas coisaspela praia. Sussurros assombradossobre a onda corriam de lado a lado.

Brooks fez um high-five nos gêmeosque pareciam trêmulos.

— Vocês deviam ter ido lá comigo.A onda foi épica.

Eureka o empurrou.

— Ficou maluco? Não foi épica.Estava tentando se matar? Pensei quetinha ido depois da arrebentação.

Brooks ergueu as mãos.— Foi o que eu fiz. Olhei para você

para acenar... Ha!... Mas você pareciapreocupada.

Será que ela o perdeu enquantopensava em Ander?

— Você ficou embaixo da água parasempre. — Claire parecia não saber seficava assustada ou impressionada.

— Para sempre! O que acha que eusou? O Aquaman? — Ele arremeteu para

ela exageradamente, pegando longascorrentes de algas marinhas na areia ependurando no próprio corpo. Emseguida, perseguiu os gêmeos pela praia.

— Aquaman! — gritavam eles,fugindo e gritando.

— Ninguém escapa do Aquaman!Vou levar vocês para minha tocasubmarina! Vamos combater tritões comnossos dedos palmados e jantar sushi, aúnica comida no mar, em pratos decoral.

Enquanto Brooks rodava um dosgêmeos no ar e depois o outro, Eureka

viu o sol brincar em sua pele. Ela viu osangue afunilar nos músculos de suascostas. Viu que ele se virava e piscava,murmurando: Relaxe. Estou ótimo!

Ela olhou a baía. Seus olhosseguiram a lembrança da onda. O solarenoso abaixo dela se desintegrou emoutra batida da água, e ela tremeu,apesar do sol.

Tudo parecia frágil, como se tudoque ela amasse pudesse ser levado pelaságuas.

11

NAUFRÁGIO

— Eu não pretendia te assustar.Brooks estava sentado de lado na

cama de Eureka, com os pés descalçosapoiados no peitoril da janela. Elesenfim estavam a sós, parcialmenterecuperados do susto da tarde.

Os gêmeos foram para cama depoisde horas de um interrogatório minuciosode Rhoda. Ela ficou histérica naprimeira frase da história da aventura,culpando Eureka e Brooks pelos filhosficarem tão perto do perigo. O pai tentousuavizar as coisas com seu chocolatequente com canela. Mas, em vez de issoos unir, todos pegaram suas canecas elevaram para os próprios cantos dacasa.

Eureka bebia a dela na antigacadeira de balanço perto de sua janela.Olhava o reflexo de Brooks em seu

antigo armoire à glace, um guarda-roupade madeira com uma única porta e frenteespelhada que pertencera à mãe deSugar. Os lábios dele se mexeram, masEureka tinha a cabeça pousada na mãodireita, bloqueando o ouvido. Elalevantou a cabeça e ouviu a letra de“Sara”, do Fleetwood Mac, que Brookscolocara para tocar no iPod dela.

. . . In the sea of love, whereeveryone would love to drown.

But now it’s gone; they say itdoesn’t matter anymore...

— Disse alguma coisa? —

perguntou Eureka.— Você parecia chateada —

respondeu Brooks, meio alto demais. Aporta do quarto de Eureka estava aberta,como era a regra do pai quando elatrazia visitas, e Brooks sabia tão bemquanto ela que volume podiam usar paranão serem ouvidos no térreo. — Comose pensasse que a onda foi culpa minha.

Ele se reclinou entre os pilares daantiga cama dos avós de Eureka. Osolhos de Brooks eram da mesma cor denogueira da colcha que cobria o lençolbranco. Ele parecia disposto a qualquer

coisa — uma festa exclusiva, umaviagem pelo interior, nadar nas águasfrias até a beira do universo.

Eureka estava exausta, como se ela équem tivesse sido devorada e cuspidapor uma onda.

— É claro que não foi culpa sua. —Ela olhava fixamente a caneca. Nãosabia se estava chateada com Brooks. Seestava, não sabia por quê. Havia umadistância entre eles que em geral nãoexistia.

— Então o que foi? — perguntouele.

Ela deu de ombros. Sentia falta damãe.

— Diana. — Brooks disse o nomecomo se ligasse os dois acontecimentospela primeira vez. Até os melhoresmeninos podiam ser sem-noção. —Claro. Eu devia ter percebido. Você foitão corajosa, Eureka. Como conseguiulidar com aquilo?

— Eu não lidei, vamos ser sinceros.— Venha cá.Quando ela levantou a cabeça, ele

estava dando um tapinha na cama.Brooks tentava compreender, mas não

conseguia, não verdadeiramente.Entristeceu Eureka vê-lo tentar. Elameneou a cabeça.

A chuva batia na janela, criandolistras de zebra. A meteorologistapreferida de Rhoda, Cokie Faucheaux,previra sol em todo fim de semana, oque era a única coisa que parecia certa— Eureka estava contente por discordarde Rhoda.

Pelo canto do olho, ela viu Brooksse levantar da cama e se aproximar dela.Estendeu os braços num abraço.

— Sei que é difícil para você se

abrir. Você pensou que a onda de hojeia...

— Não diga isso.— Ainda estou aqui, Eureka. Não

vou a lugar algum.Brooks pegou suas mãos e a puxou.

Ela deixou que ele a abraçasse. A peledele era quente, o corpo, tenso e forte.Ela deitou a cabeça em sua clavícula efechou os olhos. Não era abraçada haviamuito tempo. Era maravilhoso, mas algoa incomodava. Ela precisava perguntar.

Quando Eureka se afastou, Brookssegurou sua mão por um momento antes

de deixá-la ir.— O jeito como você agiu quando

se levantou depois da onda... — disseela. — Você riu. Eu fiquei surpresa.

Brooks coçou o queixo.— Imagine chegar ali, colocando

todo o ar pra fora, e ver vinte estranhosolhando para você de cima... Entre elesum cara que já queria fazer um boca aboca. Que opção eu tinha além debrincar?

— Estávamos preocupados comvocê.

— Eu sabia que estava bem — disse

Brooks —, mas devia ser o único quesabia disso. Vi o quanto você estavaassustada. Não queria que pensasse queeu era...

— O quê?— Fraco.Eureka meneou a cabeça.— Impossível. Você é o Barril de

Pólvora.Ele sorriu e a despenteou com a

mão, o que levou a uma breve lutacorporal. Ela se esquivou sob o braçodele, pegou sua camiseta enquanto eleestendia a mão às costas para pegá-la no

colo. Logo ela o tinha numa chave debraço, encostado em sua cômoda, masentão, num movimento rápido, ele ajogou de costas na cama. Ela bateu notravesseiro, rindo, como sempre fazia nofinal de mil outras lutas com Brooks.Mas ele não ria. Seu rosto estavacorado, e ele ficou rigidamente paradoao pé da cama de Eureka, olhando-a decima.

— O que foi? — perguntou ela.— Nada. — Brooks virou a cara, e

o fogo de seus olhos pareceu minguar.— O que você disse que ia me mostrar,

que Diana te deu? O livro, aquela...pedra enigmática?

— Aerólito.Eureka escorregou da cama e se

sentou à mesa que tinha desde criança.Suas gavetas estavam tão cheias decoisas guardadas que não havia espaçopara o dever de casa nem para os livrose formulários de universidades, que elaempilhara e prometera a Rhoda quearrumaria. Mas o que irritava Rhodadeliciava Eureka, então as pilhas tinhamalcançado uma altura instável.

Da primeira gaveta, ela pegou o

livro que Diana lhe deixou, depois apequena arca azul. Colocou os doisobjetos na colcha. Com a herança entreos dois, ela e Brooks ficaram de pernascruzadas, um de frente para o outro.

Brooks estendeu primeiro a mãopara o aerólito, percebendo o fechodesbotado da arca, pegando em seuinterior a pedra coberta de gaze.Examinou-a de todos os ângulos.

Eureka viu seus dedos rolarem pelotecido branco.

— Não desembrulhe.— Claro que não. Ainda não.

Ela semicerrou os olhos para ele,pegou a pedra, surpresa de novo com opeso. Queria saber como era por dentro— e evidentemente Brooks também.

— Como assim, “ainda não”?Brooks piscou.— Eu me referia à carta de sua mãe.

Ela não disse que você saberia a horacerta de abrir?

— Ah. É. — Ela devia ter contadoisso a ele. Apoiou os cotovelos nosjoelhos, com o queixo nas palmas dasmãos. — Quem sabe quando será essahora? Nesse meio-tempo, muita coisa

pode acontecer.Brooks a fitava, depois baixou a

cabeça e engoliu do jeito que faziaquando estava sem graça.

— Deve ser preciosa, se sua mãedeixou para você.

— Eu estava brincando. — Eladevolveu a pedra à arca.

Ele pegou o livro de aparênciaantiga com uma reverência que Eurekanão esperava. Virou as páginas commais delicadeza que ela, o que a fez seperguntar se ela merecia aquela herança.

— Não sei ler isto — sussurrou ele.

— Pois é — disse ela. — Parece virde um futuro distante...

— Ou de um passado que não seconcretizou inteiramente. — Brooksparecia citar uma das brochuras deficção científica que o pai costumavaler.

Brooks continuou folheando o livro,no começo lentamente, depois maisrápido, parando numa parte que Eurekanão tinha descoberto. No meio do livro,o texto estranho e denso erainterrompido por intrincadas ilustrações.

— São xilogravuras? — Eureka

reconheceu o método pela aula que teveuma vez com Diana... Mas aquelasilustrações eram muito mais complexasque qualquer coisa que Eureka tenhasido capaz de entalhar em seu obstinadobloco de faia.

Ela e Brooks examinaram umaimagem de luta entre dois homens.Vestiam mantos felpudos forrados depeles. Grandes colares de pedraspreciosas caíam-lhes pelo peito. Umhomem tinha uma coroa pesada. Atrás deuma multidão de espectadores estendia-se uma cidade, pináculos altos de

prédios incomuns emoldurando o céu.Na outra página havia a imagem de

uma mulher com um manto igualmenteluxuoso. Estava de quatro na beira deum rio pontilhado de junquilhos altos eem flor. Um desenho de sombras denuvens cercava seu cabelo compridoenquanto ela olhava o próprio reflexo naágua. A cabeça estava baixa, entãoEureka não podia ver seu rosto, masalgo na linguagem corporal era familiar.Eureka sabia que ela estava chorando.

— Está tudo aqui — sussurrouBrooks.

— Isso faz sentido para você?Ela virou a página do pergaminho,

procurando mais ilustrações, mas emvez disso encontrou as bordas ásperas eirregulares de várias páginas rasgadas.Depois voltou ao texto incompreensível.Ela tocou as bordas irregulares perto dacapa.

— Olhe, parece que faltam algumaspáginas.

Brooks levou o livro para maisperto do rosto, semicerrando os olhospara o lugar onde estariam as páginasausentes. Eureka notou que havia outra

ilustração, no verso da folha da mulherajoelhada. Era muito mais simples queas anteriores: três círculos concêntricosno meio da página. Parecia o símbolo dealguma coisa.

Por instinto, estendeu a mão para atesta de Brooks, empurrando o cabeloescuro para trás. Seu ferimento eracircular, o que não pareciaextraordinário. Mas a casca ficou tãoirritada pela onda daquela tarde queEureka podia ver... anéis por dentro.Tinham uma estranha semelhança com ailustração do livro.

— O que está fazendo? — Eleafastou a mão dela, ajeitando o cabelo.

— Nada.Ele fechou o livro e apertou a mão

na capa.— Duvido que um dia você consiga

traduzir isto. A tentativa vai levar vocêa uma jornada dolorosa. Acha realmenteque haverá alguém em Podunk,Louisiana, que possa traduzir uma coisadesta magnitude? — Sua risada pareciacruel.

— Pensei que você gostasse dePodunk, Louisiana. — Os olhos de

Eureka se estreitaram. Brooks sempredefendia a cidade natal dos dois quandoEureka a criticava. — O tio Beau disseque Diana sabia ler isso, o que querdizer que deve haver alguém que saibatraduzir. Só preciso descobrir quem.

— Deixe-me tentar. Vou levar olivro esta noite e poupar você dessa dorde cabeça. Você não está preparadapara confrontar a morte de Diana, e ficofeliz em ajudar.

— Não. Não vou perder esse livrode vista. — Ela estendeu a mão para olivro, que Brooks ainda segurava. Teve

de arrancar das mãos dele. A capaestalou da tensão de ser puxada.

— Nossa. — Brooks soltou, ergueuas mãos e lançou um olhar que pretendiadizer a ela que estava sendomelodramática.

Ela virou o rosto.— Ainda não decidi o que vou fazer

com isso.— Tudo bem. — Seu tom se

abrandou. Ele tocou os dedos dela, ondeenvolviam o livro. — Mas se conseguirque seja traduzido — disse ele —, meleve com você, tá bem? Pode ser difícil

de digerir. Vai querer a presença dealguém de confiança.

O telefone de Eureka tocou na mesade cabeceira. Ela não reconheceu onúmero. Virou o celular para Brookscom um dar de ombros.

Ele estremeceu.— Pode ser Maya.— Por que Maya Cayce ligaria para

mim? Como essa garota conseguiu meunúmero?

Depois se lembrou: o celularquebrado de Brooks. Eles o encontrarampartido em dois na praia depois que a

onda caiu nele feito um piano. Eurekaestava distraída e deixou o celular emcasa naquela manhã, então ele estavaintacto.

Maya Cayce provavelmente ligoupara a casa de Brooks e pegou o númerode Eureka com Aileen, que deve ter seesquecido de como as meninas doensino médio podiam ser desagradáveis.

— Então? — Eureka estendeu ocelular a Brooks. — Fale com ela.

— Não quero falar com ela. Queroficar com você. Quero dizer... —Brooks esfregou o queixo. O telefone

parou de tocar, mas seu efeito, não. —Quero dizer, estamos juntos aqui, e nãoqueria ser distraído quando finalmenteestamos conversando do... — Ele parou,depois murmurou o que Eureka pensouser um palavrão. Ela virou o ouvidobom para Brooks, mas ele ficou emsilêncio. Quando ele a olhou, seu rostoestava vermelho de novo.

— Tem alguma coisa errada? —perguntou ela.

Ele meneou a cabeça. Curvou-separa mais perto dela. As molas embaixodos dois rangeram. Eureka baixou o

telefone e o livro, porque os olhos deleestavam diferentes — suaves nasbordas, de um castanho sem fundo —, eela sabia o que ia acontecer.

Brooks ia beijá-la.Ela não se mexeu. Não sabia o que

fazer. O olhar de ambos ficou fixodurante todo o caminho que ele fez atéos lábios dela. O peso de Brooks baixounas pernas de Eureka. Um leve suspiroescapou de seus lábios. A boca deBrooks era suave, mas as mãos eramfirmes, pressionando-a a lutar de outramaneira. Eles rolaram um no outro

enquanto a boca de Brooks se fechavana dela. Os dedos de Eureka seesgueiraram por sua camisa, tocando apele, lisa como pedra. A língua deleacompanhou a ponta da língua deEureka. Era sedosa. Ela arqueou ascostas, querendo ficar ainda mais perto.

— Isto é... — disse ele.Ela assentiu.— Certíssimo.Eles ofegaram, depois voltaram para

outro beijo. O histórico de beijos deEureka era de selinhos no Jogo daGarrafa, desafios, apalpadelas fracas e

passadas de língua do lado de fora dosbailes da escola. Isto estava a galáxiasde distância.

Aquele era Brooks? Parecia que elabeijava alguém com quem antigamenteteve um caso poderoso, do tipo queEureka nunca se permitiu desejar. Asmãos dele corriam por sua pele como seela fosse uma deusa voluptuosa, e não amenina que ele conhecia a vida toda.Quando foi que Brooks ficou tãomusculoso, tão sensual? Será que eraassim há anos e ela não tinha percebido?Ou um beijo podia, se dado

corretamente, metabolizar um corpo,iniciar um surto imediato decrescimento, tornando os dois tãorepentinamente maduros?

Ela se afastou para olhá-lo.Examinou seu rosto, as sardas e asmechas de cabelo castanho e viu que eleera alguém inteiramente diferente. Elaficou assustada e eufórica, sabendo quenão havia volta depois de tudo aquilo,em especial de algo assim.

— Por que demorou tanto? — A vozdela era um sussurro rouco.

— Para fazer o quê?

— Me beijar.— Eu... Bem... — Brooks franziu o

cenho, afastando-se.— Espere. — Ela tentou puxá-lo de

volta. Os dedos dela roçaram em suanuca, que parecia subitamente rígida. —Eu não quis estragar o clima.

— Existem motivos para eu teresperado tanto para beijar você.

— Por exemplo? — Ela queriaparecer animada, mas já se perguntava:era Diana? Eureka estava tão ferida queafugentava Brooks?

Aquele único momento de hesitação

foi o bastante para Eureka se convencerde que Brooks a via como toda a escola— uma aberração azarada, a últimagarota que qualquer cara normal iadesejar. Então ela soltou:

— Acho que você estava ocupadocom Maya Cayce.

O rosto de Brooks escureceu numacarranca. Ele ficou ao pé da cama, debraços cruzados. Sua linguagemcorporal era tão distante quanto alembrança do beijo.

— Isso é tão típico — disse ele,olhando para o teto.

— O quê?— Nem tudo pode ter a ver com

você... Tem de ser culpa de outrapessoa.

Mas Eureka sabia que tudo tinha aver com ela. E era tão doloroso saberisso que tentava encobrir com outracoisa. Transferência, teria informadouma de suas últimas cinco psiquiatras,um hábito perigoso.

— Tem razão... — disse ela.— Não seja condescendente comigo.

— Brooks não parecia seu melhor amigonem o garoto que ela beijou. Parecia

alguém que se ressentia de tudo nela. —Não quero ser apaziguado por alguémque acha que é melhor que todo mundo.

— Como é?— Você está certa. O resto do

mundo está errado. Não é assim?— Não.— Você despreza tudo num piscar

de olhos...— Não faço isso! — Eureka gritou,

percebendo que desprezara num piscarde olhos o argumento de Brooks. Elabaixou o tom e fechou a porta do quarto,sem se importar com as consequências

se o pai passasse por ali. Não podiadeixar que Brooks pensasse aquelasmentiras. — Eu não desprezo você.

— Tem certeza? — perguntou ele,com frieza. — Você até despreza ascoisas que sua mãe te deixou emtestamento.

— Isso não é verdade. — Eurekaestava obcecada por sua herança noite edia, mas Brooks nem a ouvia. Andavapelo quarto; a raiva fazia com queparecesse um possuído.

— Você gosta de ter Cat por pertoporque ela não nota quando você se

desliga dela. Não suporta ninguém dasua família. — Ele lançou a mão para asaleta no térreo, onde Rhoda e o paiviam o noticiário, mas agora certamenteestavam sintonizados na discussão noandar acima. — Você tem certeza de quecada terapeuta a que vai é idiota.Afastou toda a Evangeline porque dejeito nenhum alguém podia entender oque você estava passando. — Ele paroude andar e a olhou fixamente. — E eu.

O peito de Eureka doía como se elea tivesse esmurrado no coração.

— O que tem você?

— Você me usa.— Não.— Não sou seu amigo. Sou uma

caixa de ressonância para sua angústia edepressão.

— Você... Você é meu melhor amigo— gaguejou ela. — Você é o motivopara eu ainda estar aqui...

— Aqui? — disse ele, comamargura. — O último lugar na terraonde quer estar? Eu não passo de umprelúdio para o futuro, para sua vidareal. Sua mãe a criou para seguir seussonhos, e é só com isso que você se

importava. Não faz ideia do quanto osoutros gostam de você porque estáenvolvida demais consigo mesma. Quemsabe? Talvez você nem seja suicida.Talvez tenha tomado os comprimidospara chamar atenção.

A respiração de Eureka escapou dopeito como se ela tivesse caído de umavião.

— Eu me abri com você. Pensei queera o único que não me julgaria.

— É verdade. — Brooks meneou acabeça, enojado. — Você chama todomundo que conhece de crítico, mas já

pensou na babaca completa que você écom Maya?

— Claro, não vamos nos esquecerde Maya.

— Pelo menos ela se importa comos outros.

O lábio de Eureka tremeu. Umtrovão soou na rua. Ela beijava assimtão mal?

— Bem, se você já se decidiu —gritou Eureka —, ligue para ela! Fiquecom ela. O que está esperando? Peguemeu telefone e marque um encontro. —Ela jogou o telefone nele. Bateu no

peitoral em que ela nem acreditava quetinha posto a cabeça.

Brooks olhou o telefone como seavaliasse a proposta.

— Talvez eu ligue mesmo — disseele devagar, em voz baixa. — Talvez eunão precise tanto de você quanto pensa.

— Do que está falando? Tá desacanagem ou coisa assim?

— A verdade dói, né? — Ele bateu-lhe no ombro ao passar esbarrando nela.Escancarou a porta, depois olhou para acama, o livro e a pedra na arca.

— Deveria ir embora — disse ela.

— Diga isso a mais duas pessoas evai ficar completamente sozinha.

Eureka o ouviu descer a escada compassos fortes e sabia como ele estavanaquele momento, pegando a chave e ossapatos no banco de entrada. Quando aporta bateu, ela o imaginou marchandopara o carro na chuva. Ela sabia comoseu cabelo voava, que cheiro teria ocarro dele.

Brooks podia imaginá-la? Será quequeria vê-la espremida na janela,olhando a tempestade, engolindo aemoção e reprimindo as lágrimas?

12

NEPTUNE’S

Eureka pegou o aerólito e o jogou naparede, querendo esmagar tudo o queaconteceu desde que ela e Brookspararam de se beijar. A pedra deixouuma marca no reboco que ela pintou debolinhas azuis durante uma vida mais

feliz. Caiu com um baque ao lado daporta do armário.

Ela se ajoelhou para avaliar osdanos, o tapete persa de brechó maciosob as mãos. Não era uma marca tãofunda quanto a de dois anos antes,quando socou a parede ao lado do fogãoao discutir com o pai se podia faltar auma semana de aulas para ir ao Perucom Diana. Não era tão chocante quantoo haltere que o pai quebrou quandoEureka tinha 16 anos, gritando com eladepois de ela ter faltado a um empregode verão que ele lhe arrumou na

lavanderia Ruthie’s. Mas a marca erafeia o suficiente para escandalizarRhoda, que parecia pensar que orevestimento de gesso da parede nãopodia ser consertado.

— Eureka? — gritava Rhoda dasaleta. — O que você fez?

— Só um exercício que a Dra.Landry me ensinou! — berrou ela,fazendo uma careta que desejava queRhoda pudesse ver. Estava furiosa. Sefosse uma onda, faria continentesvirarem farelo como pão dormido.

Ela queria machucar alguma coisa

como Brooks a machucara. Pegou olivro em que ele ficou tão interessado,agarrou suas páginas abertas e pensouem rasgá-lo ao meio.

Encontre um jeito de sair do fosso,garota. A voz de Diana a encontrounovamente.

Os fossos eram pequenos, apertadose camuflados. Não se sabia ondeficavam até que não se conseguiarespirar e você precisava se libertar.Eles equivaliam à claustrofobia, que,para Eureka, sempre foi uma inimiga.Mas as raposas viviam em fossos;

criavam famílias ali. Soldados atiravamde dentro deles, protegidos de seusinimigos. Talvez Eureka não quisesseencontrar uma saída daquele ali. Talvezfosse uma raposa-soldado. Talvez essefosso de sua fúria fosse seu lugar nomundo.

Ela soltou o ar, relaxando o apertono livro. Baixou-o cuidadosamente, comse fosse um dos projetos de arte dosgêmeos. Andou até a janela, colocou acabeça para fora e procurou as estrelas.Elas colocavam os pés de Eureka nochão. Sua distância dava perspectiva

quando ela não podia ver nada além dador. Mas as estrelas não estavam no céude Eureka naquela noite. Escondiam-sepor trás de um manto de nuvenscinzentas e densas.

Um raio cortou a escuridão. Otrovão soou de novo. A chuva desceumais pesada, fustigando as árvores. Umcarro na rua passou por uma poça dotamanho de um lago. Eureka pensou emBrooks dirigindo para New Iberia, ondemorava. As estradas eram escuras eescorregadias, e ele saiu com tantapressa...

Não. Estava zangada com Brooks.Deu de ombros e fechou a janela,encostando a cabeça na vidraça.

E se o que ele disse fosse verdade?Ela não se achava melhor que

ninguém, mas agia como se pensasseassim? Com alguns comentáriosgrosseiros, Brooks tinha plantado aideia em Eureka de que o planeta todoestava contra ela. E naquela noite nemmesmo havia estrelas, o que tornavatudo ainda mais negro.

Pegou o telefone, bloqueou onúmero de Maya Cayce com um apertão

rabugento de três botões e mandou umtorpedo para Cat.

E aí?Tempo de merda, a amiga respondeu

de imediato.É, digitou Eureka devagar. Eu

também?Não que eu saiba. Por quê? Rhoda

está sendo Rhoda?Eureka podia imaginar Cat bufando

de rir no quarto iluminado por velas,com os pés na mesa enquanto perseguiafuturos namorados no laptop. Avelocidade da resposta de Cat

reconfortou Eureka. Ela pegou o livronovamente, abriu-o no colo e passou odedo pelos círculos da última ilustração,aquela que pensava espelhar o ferimentode Brooks.

Brooks está sendo Brooks , digitouela. Uma briga das feias.

Um segundo depois, o telefonetocou.

— Vocês dois brigam feito um casalde velhos — disse Cat assim que Eurekaatendeu.

Eureka olhou a marca na parede debolinhas. Imaginou um hematoma do

mesmo tamanho no peito de Brooks,onde ela jogou o telefone.

— Essa foi feia, Cat. Ele me disseque eu acho que sou melhor que todomundo.

Cat suspirou.— Por que ele quer transar com

você.— Você acha que tudo é sexo. —

Eureka não queria admitir que elestinham se beijado. Não queria pensarnisso depois do que Brooks disse. O quequer que tenha significado o beijo,estava tão enterrado no passado quanto

uma língua morta que ninguém maisfalava, mais inacessível que o livro deDiana. — Essa foi maior que isso.

— Olhe — disse Cat, mastigandoalguma coisa crocante, talvez Cheetos.— A gente conhece Brooks. Ele vaipedir desculpas. Darei a ele atésegunda-feira, no primeiro tempo.Enquanto isso, tenho boas notícias.

— Fale — disse Eureka, emborapreferisse ter puxado a coberta nacabeça até o dia do juízo final ou dafaculdade.

— Rodney quer conhecer você.

— Que Rodney? — Ela gemeu.— Minha ficada classicista, lembra?

Ele quer ver seu livro. Eu sugeri oNeptune’s. Sei que você já passou dafase do Neptune’s, mas aonde mais agente pode ir?

Eureka pensou em Brooks querendoestar com ela quando o livro fossetraduzido. Isso foi antes de ele explodircomo uma barragem numa enchente.

— Por favor, não fique aí sentada sesentindo culpada por Brooks. — Catpodia ser supreendentemente telepata.— Vista alguma coisa bonita. Rodney

pode levar um amigo. Vejo você noTune’s daqui a meia hora.

O Neptune’s era uma lanchonete nosegundo andar de um centro comercialem cima da Ruthie’s Dry Cleaners e deuma loja de videogames que aos poucosperdia clientela. Eureka pôs os tênis e acapa de chuva. Ela correu os 2quilômetros na chuva para não ter depedir ao pai ou a Rhoda um dos carrosemprestado.

No alto da escada de madeira, pelaporta de vidro escurecida, dava paraperceber que se encontraria pelo menos

duas dezenas de Evangelinos espichadossobre laptops e livros do tamanho decalços de porta. A decoração eravermelha-bala-de-maçã e gasta, comoum apartamento de solteiro. Um aromade sumidouro pendia como uma nuvemsobre sua mesa de sinuca torta e suamáquina de fliperama sem alavanca doMonstro da Lagoa Negra. O Neptune’sservia uma comida que ninguém pediaduas vezes, cerveja para universitários ecafé, refrigerante e clima suficiente paramanter os alunos do ensino médiozanzando por ali a noite toda.

Eureka antigamente era clienteconstante. No ano anterior até ganhou otorneio de sinuca — sorte deprincipiante. Mas não tinha voltadodesde o acidente. Não fazia sentido queum lugar ridículo como o Neptune’sainda existisse e Diana tivesse sidolevada embora.

Ela não percebeu que estavapingando água até entrar e olhoscarregados caírem nela. Torceu o rabode cavalo. Viu as tranças de Cat e foipara a mesa de canto onde elas semprecostumavam se sentar. O Wurlitzer

tocava “Hurdy Gurdy Man”, doDonovan, enquanto a NASCARcirculava na TV. O Neptune’s era omesmo de sempre, mas Eureka mudaratanto que podia ser o McDonald’s — ouo Gallatoire’s, em Nova Orleans.

Ela passou por uma mesa de líderesde torcida de idêntico ardor, acenoupara o amigo Luke da aula de geofísica,que parecia estar sob a impressão deque o Neptune’s era um bom lugar paraum encontro, e sorriu amarelo para umamesa de calouras da equipe de cross-country com coragem suficiente para

estar ali. Ouviu alguém resmungar “Nãoacho que ela teve permissão de sair dohospício”, mas Eureka viera a negóciose não para se importar com o que umagarota pensava dela.

Cat estava com um suéter roxocortado, jeans rasgados e a maquiagemmais leve que a média paraimpressionar universitários. Sua maisrecente vítima sentava-se ao lado delano banco de vinil vermelho rasgado.Tinha tranças louras e compridas e umperfil anguloso enquanto jogava paradentro da goela um gole de cerveja Jax.

Ele tinha cheiro de xarope de bordo —do tipo açucarado e falso que o pai nãousava. A mão dele estava no joelho deCat.

— E aí. — Eureka se sentou nobanco de frente para eles. — Rodney?

Ele era apenas alguns anos maisvelho, embora parecesse tãouniversitário, com o piercing no nariz eo moletom desbotado da UL, que Eurekase sentiu meio criança. Ele tinha cílioslouros e bochechas encovadas, narinascomo feijões de tamanhos diferentes.

Rodney sorriu.

— Vamos ver esse livro maluco.Eureka tirou o livro da mochila.

Limpou a mesa com um guardanapoantes de deslizá-lo até Rodney, cujaboca se esticava numa carrancaacadêmica intrigada.

Cat se curvou para a frente, seuqueixo no ombro de Rodney enquantoele virava as páginas.

— Ficamos olhando uma eternidadepara isso, tentando entender. Talvez sejado espaço sideral.

— Mais provavelmente do espaçointerior — disse Rodney.

Eureka observava como ele olhavaCat e ria, como parecia gostar de cadaobservação biruta que ela fazia. Eurekanão achava que Rodney fosseparticularmente atraente, então ficousurpresa com a pontada de ciúme queentrou de fininho em seu peito.

A paquera dele com Cat tornava oque acabara de acontecer entre ela eBrooks uma falha de comunicação naescala Torre de Babel. Ela olhou oscarros que rodavam pela pista na TV eimaginou que dirigia um deles, mas emvez de seu carro estar coberto de

anunciantes, era coberto pela línguainescrutável do livro que Rodney fingialer do outro lado da mesa.

Ela nunca devia ter beijado Brooks.Fora um erro descomunal. Eles seconheciam bem demais para tentarconhecer um ao outro ainda melhor. E jáhaviam rompido antes. Se era paraEureka se envolver amorosamente comalguém — o que, desde o acidente, elanão desejava nem a seu pior inimigo —,devia ser alguém que não soubesse nadadela, alguém que entrasse na relaçãoignorando suas complexidades e

defeitos. Ela não devia ficar com umcrítico pronto para se afastar de seuprimeiro beijo e ouvir que tudo nelaestava errado. Eureka sabia melhor queninguém que a lista era interminável.

Sentia falta de Brooks.Mas Cat tinha razão. Ele havia sido

um imbecil. Devia pedir desculpas.Eureka olhou o telefone discretamente.Ele não mandara mensagem alguma.

— O que acha? — perguntou Cat. —Podemos fazer isso?

O ouvido esquerdo de Eurekazumbiu. O que ela perdeu ali?

— Desculpe, eu... — Ela virou oouvido bom para a conversa.

— Sei o que está pensando — disseRodney. — Você acha que estoumandando você para alguma maluca daNova Era. Mas eu conheço latimclássico e vulgar, três dialetos daGrécia antiga e um pouco de aramaico.E estes escritos — e deu um tapinha napágina de texto denso — não se parecemcom nada que eu já tenha visto.

— Ele não é um gênio? — Cat deuum gritinho.

Eureka se apressou a acompanhá-

los.— Então acha que a gente devia

levar o livro a...?— Ela é meio excêntrica, uma

especialista autodidata em línguasmortas — disse Rodney. — Ganha avida lendo a sorte. Só peça a ela paradar uma olhada no texto. E não deixeque ela te roube. Ela vai respeitar maisvocê assim. Ofereça metade do que elapedir e concorde com um quarto amenos do preço original.

— Vou levar minha calculadora —confirmou Eureka.

Rodney estendeu o braço por Cat,tirou um guardanapo do dispenser eescreveu:

Madame Yuki Blavatsky, Greercircle,

321.

— Obrigada. Vamos procurar porela. — Eureka colocou o livro namochila e a fechou. Fez um gesto paraCat, que se despregou de Rodney emurmurou: Agora?

Eureka se levantou da mesa.— Vamos fazer um acordo.

13

MADAME BLAVATSKY

A loja de Madame Blavatsky ficava naparte mais antiga da cidade, não muitolonge da St. John. Eureka tinha passadoa mão na vitrine verde néon umas dezmil vezes. Cat parou o carro noestacionamento esburacado, e elas

ficaram diante da porta de vidro semplaca sob a chuva, batendo na antigaaldrava de bronze em forma de cabeçade leão.

Depois de alguns minutos, a porta seabriu, gerando um estardalhaço de sinosque tocavam da maçaneta de dentro.Uma mulher robusta com cabelo rebeldee frisado estava parada na entrada, asmãos nos quadris. De trás dela vinha umbrilho vermelho que escondia seu rostonas sombras.

— Está aqui para uma leitura?Sua voz era áspera e rude. Eureka

assentiu enquanto empurrava Cat para osaguão escuro. Parecia uma sala deespera de dentista depois do horário deexpediente. Uma única luminária decúpula vermelha iluminava cadeirasdobráveis e um revisteiro quase vazio.

— Eu leio mãos, cartas e folhas —disse Madame Blavatsky —, mas o cháé pago à parte. — Ela parecia ter uns 75anos, lábios pintados de vermelho, umaconstelação de sinais no queixo e braçosgrossos e musculosos.

— Obrigada, mas temos um pedidoespecial — disse Eureka.

Madame Blavatsky olhou o pesadolivro metido sob o braço de Eureka.

— Pedidos não são especiais. Ospresentes são especiais. Umas férias...Isso seria especial. — A velha suspirou.— Entrem em meu estúdio.

O vestido preto e grande deBlavatsky exalava o fedor de milcigarros enquanto ela levava as meninaspor uma segunda porta e entravam nasala principal.

Seu estúdio era ventoso, com umteto baixo e papel de parede preto comrelevo em preto. Havia um umidificador

no canto, uma caçarola vintage no altode uma estante perigosamenteabarrotada de livros e cem retratosvelhos e carrancudos pendurados emmolduras tortas na parede. Uma mesalarga sustentava uma avalancheparalisada de livros e papéis, um antigocomputador, um vaso de frésias roxasapodrecidas e duas tartarugas queestavam dormindo ou mortas. Gaiolasdouradas e elegantes pendiam de cadacanto da sala, com tantos passarinhosque Eureka perdeu a conta. Erampequenos, do tamanho de uma palma

aberta, com corpos magros verde-lima ebicos vermelhos. Trinavam sonora,melodiosa e incessantemente.

— Periquitos abissínios — anunciouMadame Blavatsky. —Excepcionalmente inteligentes. — Elapassou um dedo coberto de creme deamendoim pelas grades de uma dasgaiolas e riu como uma criança enquantoas aves voavam para bicar sua pele. Umdeles pousou em seu indicador por maistempo que os outros. Ela se aproximou,franzindo os lábios vermelhos esoltando ruídos de beijo para ele. Era

maior que os outros, com uma coroavermelha e um losango de penasdouradas no peito. — E o maisinteligente de todos, meu doce, tão docePolaris.

Enfim Madame Blavatsky se sentoue gesticulou para que as meninasfizessem o mesmo. Elas se sentaram emsilêncio num sofá baixo de veludo preto,afastando as vinte almofadas manchadase desiguais para abrir espaço. Eurekaolhou para Cat.

— Sim, sim? — Madame Blavatskyperguntou, pegando um cigarro

comprido e enrolado à mão. — Possosuspeitar do que vocês querem, masdevem perguntar, crianças. Há umgrande poder nas palavras. O universoflui delas. Usem-nas agora, por favor. Ouniverso espera.

Cat ergueu uma sobrancelha paraEureka e tombou a cabeça de lado nadireção da mulher.

— É melhor não irritar o universo.— Minha mãe me deixou este livro

de herança — disse Eureka. — Elamorreu.

Madame Blavatsky gesticulou com a

mão ossuda.— Duvido muito. Não existe morte,

tampouco vida. Só congregação edispersão. Mas isso é outra história. Oque você quer, criança?

— Quero que o livro dela sejatraduzido. — A mão de Eurekapressionava o círculo em relevo na capaverde do livro.

— Ora, dê-me aqui. Sou vidente,mas não consigo ler um livro fechado amais de 1 metro de mim.

Quando Eureka estendeu o livro,Madame Blavatsky o arrancou de sua

mão como se reclamasse uma bolsaroubada. Ela o folheou, parando aqui eali para resmungar alguma coisa consigomesma, metendo o nariz nas páginas comilustrações de xilogravura, sem darsinais de ter entendido ou não. Sólevantou a cabeça quando chegou àseção de páginas grudadas perto do finaldo livro.

Depois pegou seu cigarro e colocouum Tic Tac sabor laranja na boca.

— Quando foi que isso aconteceu?— Ela ergueu a parte das páginascoladas. — Você tentou secar depois de

ter derramado... O que é isso? — Elafarejou o livro. — Tem cheiro de Deathin the Afternoon. Você é nova demaispara beber absinto, sabia?

Eureka não sabia do que MadameBlavatsky falava.

— É uma desgraça. Talvez possaconsertar, mas exigirá um forno paramadeira e substâncias caras.

— Estava assim quando eu recebi— disse Eureka.

Blavatsky ajeitou os óculos de arode metal, baixando-os para a ponta donariz. Examinou a lombada do livro, a

primeira e a quarta-capa.— Por quanto tempo sua mãe o teve

me seu poder?— Não sei. Meu pai disse que ela

encontrou num brechó na França.— Tantas mentiras.— Como assim? — perguntou Cat.Blavatsky olhou por cima do aro dos

óculos.— Este é um tomo de família. Os

tomos de família ficam na linhagemfamiliar, a não ser que existamcircunstâncias extremamente incomuns.Mesmo nessas circunstâncias, é quase

impossível que um livro destes caia nasmãos de alguém que o venderia numbrechó. — Ela deu um tapinha na capa.— Isto não é coisa de mercado de troca.

Madame Blavatsky fechou os olhose tombou a cabeça para a gaiola sobre oombro esquerdo, quase como se ouvisseo canto dos periquitos. Quando abriu osolhos, fitou Eureka.

— Disse que sua mãe morreu. Mas eseu amor desesperado por ela? É umcaminho mais rápido para aimortalidade?

A garganta de Eureka ardeu.

— Se este livro era da minhafamília, eu saberia disso. Meus avós nãoguardavam segredos. A irmã e o irmãode minha mãe estavam presentes quandoo herdei. — Ela pensou na história dotio Beau, de Diana lendo o livro. —Eles não sabiam nada a respeito dele.

— Talvez não venha da família dospais de sua mãe — disse MadameBlavatsky. — Talvez ele a tenhaencontrado por um primo distante, umatia preferida. O nome de sua mãe poracaso era Diana?

— Como sabe disso?

Blavatsky fechou os olhos, tombou acabeça para a direita, para outra gaiola.Dentro dela, seis periquitos voaram parao lado da gaiola mais perto deBlavatsky. Trinaram alto, num staccatocomplexo. Ela riu.

— Sim, sim — murmurou, mas nãopara as meninas.

Depois tossiu e olhou o livro,apontando o canto inferior da terceiracapa. Eureka olhou os símbolos escritosem diferentes tons desbotados.

— Esta é uma lista de nomes dosproprietários anteriores do livro. Como

pode ver, foram muitos. Diz aqui que amais recente foi Diana. — MadameBlavatsky semicerrou os olhos para ossímbolos que reproduziam o nome damãe de Eureka. — Sua mãe herdou estelivro de alguém chamado Niobe, eNiobe o recebeu de certa Byblis.Conhece essas mulheres?

Enquanto Eureka meneava a cabeça,Cat se sentou reta.

— Você sabe ler isso.Blavatsky ignorou Cat.— Posso escrever seu nome no final

da lista, uma vez que o tomo agora é seu.

Sem cobrar a mais por isso.— Sim — disse Eureka, com

brandura. — Por favor. É...— Eureka. — Madame Blavatsky

sorriu, pegando uma caneta hidrográficae rabiscando alguns símbolos estranhosna página. Eureka olhou seu nome nalíngua misteriosa.

— Como você...— Isto parece a antiga escrita

magdaleniana — disse Blavatsky —,mas existem diferenças. As vogais estãoausentes. A ortografia é absurda!

— Magdaleniana? — Cat olhou para

Eureka, que também nunca ouvira falarnisso.

— Muito antiga — disse Blavatsky.— Encontrada nas cavernas pré-históricas do sul da França. Esta não éuma irmã do magdaleniano, mas talvezuma prima em segundo grau. As línguastêm árvores genealógicas complicadas,entendam... Casamentos mistos,enteados, até filhos bastardos. Háincontáveis escândalos na história daslínguas, muitos assassinatos, muitoincesto.

— Sou toda ouvidos — disse Cat.

— É muito raro encontrar um textodestes. — Madame Blavatsky coçouuma sobrancelha fina, fingindo um arcansado. — Não será fácil traduzir.

Um calor formigava na nuca deEureka. Ela não sabia se ficava feliz oucom medo, mas aquela mulher era achave para algo que ela precisavacompreender.

— Pode ser perigoso — continuouBlavatsky. — Conhecimento é poder; opoder corrompe. A corrupção trazvergonha e ruína. A ignorância pode nãoser uma bênção, mas talvez seja

preferível a uma vida na vergonha.Concorda?

— Não sei bem. — Eureka sentiaque Diana ia gostar de MadameBlavatsky. Teria confiado na tradutora.— Acho que prefiro saber a verdade,independentemente das consequências.

— E saberá. — Blavatsky abriu umsorriso misterioso.

Cat se curvou no sofá, segurando abeira da mesa da mulher.

— Queremos seu melhor preço. Semgracinhas.

— Vejo que trouxe sua gerente

financeira. — Blavatsky riu, puxou o are refletiu sobre o pedido de Cat. —Algo desta magnitude e complexidade...será muito exigente para uma idosa.

Cat ergueu a mão. Eureka torcia paraque ela não dissesse a MadameBlavatsky para falar logo.

— Sem papo furado, dona.— Dez dólares por página.— Vamos pagar cinco — disse

Eureka.— Oito. — Blavatsky beliscou outro

cigarro ente os lábios vermelhos,claramente gostando do ritual.

— Sete e cinquenta — Cat estalouos dedos — e as substâncias paraconsertar os danos ficam por sua conta.

— Não vai encontrar ninguém quepossa fazer o que faço. Eu podia pedirmil dólares por página! — Blavatskylimpou os olhos com um lençodesbotado e olhou Eureka com cuidado.— Mas você parece muito derrotada,embora tenha mais ajuda do queacredite. Saiba disto. — Ela parou. —Sete e cinquenta é um preço justo.Negócio fechado.

— E agora? — perguntou Eureka.

Seu ouvido zumbia. Quando oesfregou, por um momento pensou terouvido o tagarelar dos passarinhoschegando claramente por seu ouvidoesquerdo. Impossível. Ela balançou acabeça e notou que Madame Blavatskytinha percebido.

A mulher apontou para as aves.— Eles me disseram que ele está

observando você há muito tempo.— Quem? — Cat olhou a sala.— Ela sabe. — Madame Blavatsky

sorriu para Eureka.Eureka sussurrou:

— Ander?— Shhhh — arrulhou Madame

Blavatsky. — O canto de meusperiquitos é corajoso e auspicioso,Eureka. Não se incomode com coisasque ainda não pode entender. — Derepente girou na cadeira, ficando defrente para o computador. — Mandareias páginas traduzidas em lotes por e-mail, junto com um link da minha contaSquare para o pagamento.

— Obrigada. — Eureka escreveuseu e-mail, deslizando o papel para Catacrescentar o dela.

— Engraçado, né? — Cat entregou opapel a Madame Blavatsky com suasinformações. — Mandar por e-mail atradução de uma coisa tão antiga?

Madame Blavatsky revirou os olhoslacrimosos.

— O que você acha avançadoconstrangeria qualquer dos mestres daantiguidade. As capacidades delesultrapassavam amplamente as nossas.Estamos mil anos atrás do que elesrealizaram. — Blavatsky abriu umagaveta e pegou um saco de cenouraspequenas, quebrando uma ao meio para

dividir entre as duas tartarugas queacordavam na mesa. — Tome, Gilda —cantarolou. — Aqui, Brunhilda. Minhasqueridinhas. — Ela se curvou para asmeninas. — Este livro falará deinovações muito mais empolgantes doque o ciberespaço. — Ela empurrou osóculos pelo nariz e gesticulou para aporta. — Bem, boa noite. Não deixemque as tartarugas as mordam quandoestiverem saindo.

Eureka se levantou trêmula do sofáenquanto Cat pegava as coisas das duas.Eureka parou, olhando o livro na mesa.

Pensou no que a mãe faria. Dianapassara a vida toda confiando em seusinstintos. Se Eureka quisesse saber oque significava a herança, tinha deconfiar em Madame Blavatsky.Precisava deixar o livro ali. Não erafácil.

— Eureka? — Madame Blavatskyergueu um dedo pontudo. — Sabe o quedisseram a Creonte, não?

Eureka meneou a cabeça.— Creonte?— “O sofrimento é o mestre da

sabedoria.” Pense isso. — Ela respirou

fundo. — Meu Pai, que caminho vocêestá tomando.

— Estou num caminho? — disseEureka.

— Estamos ansiosas para ver suatradução — falou Cat, numa voz muitomais firme.

— Posso começar agora mesmo;talvez não. Mas não me incomodem. Eutrabalho aqui. — Apontou sua mesa. —E moro lá em cima. — Ela lançou opolegar para o teto. — E preservo minhaprivacidade. As traduções exigem tempoe vibrações positivas. — Ela olhou pela

janela. — Isso dá um bom tweet. Voutweetar essa.

— Madame Blavatsky — disseEureka antes de passar pela porta doestúdio. — Meu livro tem título?

Madame Blavatsky parecia distante.Sem olhar para Eureka, disse muitobaixinho:

— Chama-se O livro do amor.

De: [email protected]: [email protected]: [email protected]: Domingo, 6 de outubro de2013, 01h31

Assunto: primeira salva

Cara EurekaÀ custa de muitas horas

de concentração e foco,traduzi o que se segue.Procurei não tomarliberdades com a prosa,apenas tornar o conteúdoclaro como água para suafácil leitura. Espero queatenda às suasexpectativas...

Na ilha desaparecidaonde nasci, eu me chamavaSelene. Este é meu livro doamor.

Minha história é de umapaixão catastrófica. Vocêpode se perguntar se isto éverdade, mas todas ascoisas verdadeiras sãoquestionáveis. Aqueles quese permitem imaginar —acreditar — podemencontrar a redenção emminha história.

Devemos começar peloprincípio, num lugar que hámuito deixou de existir.Onde terminaremos... Bem,quem pode saber o finalantes que a última palavratenha sido escrita? Tudo

pode mudar com a últimapalavra.

No início, a ilha ficavapara além das Colunas deHércules, sozinha noAtlântico. Fui criada nasmontanhas, onde a magiaera tolerada. Diariamente,eu olhava um palácio que seassentava como umdiamante no vale banhadode sol bem abaixo.Contavam as lendas de umacidade com uma arquiteturaimpressionante, cascatasrodeadas de unicórnios edois príncipes

amadurecendo no interiordos muros de marfim docastelo.

O nome do príncipemais velho e futuro rei eraAtlas. Ele era famoso pelagalanteria, por seu gostopor leite de hibisco e pornunca fugir de uma lutacorporal. O príncipe maisnovo era um enigma, rarasvezes visto ou ouvido.Chamava-se Leandro edesde tenra idade descobriusua paixão pelas viagenspor mar às muitas colôniasdo rei pelo mundo.

Eu ouvia as outrasmeninas montanhesascontarem sonhos nítidos emque o príncipe Atlas ascarregava num cavaloprateado, tornando-asrainhas. Mas o príncipedormia nas sombras deminha consciência quandoeu era criança. Se soubesseentão o que sei agora,minha imaginação teria melevado a amá-lo antes quenossos mundos colidissem.Teria sido mais fácil assim.

Quando menina, nãoansiava por outra coisa que

não fossem as margensencantadas e arborizadasde nossa ilha. Nada meinteressava mais que meusparentes, que eramfeiticeiros, telepatas, filhosdas fadas, alquimistas. Euadejava por suas oficinas,aprendiz de tudo, exceto afofoca das bruxas — cujospoderes raras vezestranscendiam osmesquinhos ciúmes einvejas humanos, que elasnunca se cansavam de dizerque era isto o querealmente fazia o mundo

girar. Enchia-me dehistórias de meusancestrais divinos. Minhapreferida era de um tio quesabia projetar a mente pelooceano e habitar os corposdos homens e mulheresminoicos. Suas aventuraspareciam deliciosas.Naqueles dias, eusaboreava o gosto doescândalo.

Eu tinha 16 anos quandovagaram rumores do paláciopara as montanhas. Avescantavam que o rei tinhacaído vítima de uma

estranha doença. Elascantaram do rico prêmioque o príncipe Atlasprometeu a qualquer umque curasse o pai.

Eu nunca sonhei ematravessar a soleira dopalácio, mas uma vez cureia febre de meu pai comuma poderosa erva local.Assim, sob uma luaminguante, percorri os 40quilômetros até o palácio,com um cataplasma deartemísia numa bolsapendurada em meu cinto.

Os pretendentes a

curandeiros formavam umafila de 5 quilômetros naperiferia do castelo. Assumimeu lugar atrás. Um porum, os magos entravam;um por um saíam,indignados ouenvergonhados. Quando euera a décima na fila, asportas do palácio sefecharam. Uma fumaçapreta se retorceu daschaminés, indicando que orei tinha morrido.

Elevaram-se lamentosda cidade enquanto eu faziaminha triste jornada para

casa. Quando estava nomeio do caminho, sozinhaem um vale arborizado, deicom um rapaz de minhaidade ajoelhado sobre umrio cintilante. Estava até osjoelhos em um trecho denarcisos brancos, tãoimerso em pensamentosque parecia habitar outroreino. Quando vi que elechorava, toquei seu ombro.

“Está ferido, senhor?”Quando ele se voltou

para mim, a tristeza emseus olhos era dominadora.Compreendi-a, como sabia a

linguagem dos pássaros: eletinha perdido o que lhe eramais caro.

Estendi a cataplasmaem minha mão. “Queriapoder ter salvado seu pai.”

Ele caiu sobre mim,chorando. “Ainda pode mesalvar.”

O resto ainda virá,

Eureka. Aguarde.Beijocas,

Madame B, Gilda eBrunhilda

14

A SOMBRA

Terça-feira significava outra sessão coma Dra. Landry. O consultório daterapeuta em New Iberia não era oprimeiro lugar a que Eureka queriadirigir seu Jeep recém-consertado, masno frio impasse durante o café da manhã,

Rhoda encerrou a discussão com suahabitual frase de arrepiar a alma:

Enquanto morar na minha casa, vaiseguir minhas regras.

Ela deu a Eureka uma lista detelefones de suas três assistentes nauniversidade caso Eureka tivesseproblemas enquanto Rhoda estivesse emreunião. Elas não se arriscariam mais,disse Rhoda quando devolveu a chavedo carro a Eureka. A esposa do paiprovavelmente faria um eu te amoparecer ameaçador, mas Eureka nuncarecebeu esta ameaça de Rhoda.

Eureka estava nervosa por voltar ase sentar ao volante. Ela se transformounuma motorista hiperdefensiva, contandotrês segundos de espaço entre os carros,ligando o pisca-alerta meio quilômetroantes de fazer uma curva. Os músculosde seus ombros estavam com um nóquando chegou ao consultório da Dra.Landry. Ficou sentada em Magda sob afaia, tentado eliminar a tensão através darespiração.

Às 15h03, ela arriou no sofá daterapeuta. Estava com sua carrancasemanal.

A Dra. Landry usava outro par desapatos. Tirou aos chutes as sandáliaslaranja desajeitadas e que nuncaestiveram na moda.

— Conte as novidades. — A Dra.Landry meteu os pés descalços napoltrona, sob o corpo. — O queaconteceu desde que conversamos?

O uniforme de Eureka coçava.Queria ter feito xixi antes do início dasessão. Pelo menos não tinha de correrde volta à escola para o cross-countrydaquele dia. Até a treinadora a essaaltura desistira dela. Eureka iria devagar

para casa de carro, por estradas de terradiferentes, caminhos que não fossemfrequentados por meninos-fantasma. Elanão o veria, então ele não poderia fazê-la chorar. Ou roçar o dedo no canto doolho. Ou exalar um cheiro de mardesconhecido em que ela queriamergulhar. Ou ser o único por perto quenão sabia nada de catastrófico em suavida.

O rosto de Eureka estava quente.Landry tombou a cabeça de lado, comose notasse cada tom de escarlate queEureka adquiria. De jeito nenhum.

Eureka guardaria o aparecimento — edesaparecimento — de Ander para simesma. Estendeu a mão para uma dasbalas duras na mesa de centro e fez umestardalhaço com o papel daembalagem.

— Esta não era para ser umapergunta espinhosa — disse Landry.

Tudo era espinhoso. Eureka pensouem abrir o livro de cálculo e lutar comum teorema para passar o tempo. Talvezfosse obrigada a estar ali, mas não tinhade cooperar. Mas essa programaçãochegaria ao rádio de Rhoda, cujo

orgulho levaria a alguma idiotice, comoa revogação do carro, castigo em casaou outra ameaça sombria que nãopareceria absurda dentro das paredes desua casa, onde Eureka não tinha aliados.Ninguém com poder, de qualquer modo.

— Bem. — Ela chupou a bala. —Recebi a herança de minha mãe. — Istoera um prato cheio para a terapia. Tinhade tudo: significado simbólico profundo,história de família e a fofoca a que osterapeutas não resistiam.

— Imagino que seu pai váadministrar os fundos até que tenha

idade para isso, não?— Não é nada nesse estilo. —

Eureka suspirou, entediada, mas nãosurpresa com a suposição dela. —Duvido que minha herança tenha algumvalor monetário. Não existia valormonetário na vida de minha mãe. Sócoisas de que ela gostava. — Ela puxoua corrente no pescoço para erguer omedalhão de lápis-lazúli debaixo dablusa branca.

— Que lindo. — A Dra. Landry securvou para a frente, fingindo muito malo interesse pela peça desgastada. —

Tem uma imagem aí dentro?Sim, é uma imagem de um bilhão de

horas cobradas, pensou Eureka,imaginando uma ampulheta cheia deminúsculas Dras. Landrys em vez deareia escorrendo.

— Não abre — disse Eureka. —Mas ela usava o tempo todo. Havia maisdois objetos arqueológicos que achavainteressantes. Uma pedra chamadaaerólito.

A Dra. Landry balançou a cabeçavagamente.

— Deve fazer você se sentir amada,

saber que sua mãe queria que ficassecom essas coisas.

— Talvez. Também me confunde.Ela me deixou um livro antigo escritonuma língua arcaica. Pelo menos acheialguém que pode traduzir.

Eureka leu o e-mail da tradução deMadame Blavatsky várias vezes. Ahistória era interessante — ela e Catconcordavam com isso —, mas Eurekaachou tudo meio frustrante. Parecia tãodistante da realidade. Não entendiacomo podia ter algo a ver com Diana.

Landry com o cenho franzido,

meneava a cabeça.— Que foi? — Eureka ouviu a

própria voz se elevar. Isto queria dizerque ela estava na defensiva. Cometeu umerro falando no assunto. Pretendia ficarem território neutro e seguro.

— Você nunca vai saber das plenasintenções de sua mãe, Eureka. Esta é arealidade da morte.

Não existe morte... Eureka ouviuMadame Blavatsky tragar a voz daterapeuta. Só congregação e dispersão.

— Este desejo de traduzir um livroantigo parece infrutífero — disse

Landry. — Limitar suas esperanças auma nova ligação com sua mãe pode sermuito doloroso agora.

O sofrimento é o mestre dasabedoria.

Eureka já estava no caminho. Iafazer uma conexão entre o livro e Diana,só ainda não sabia como. Pegou umpunhado das balas nojentas, precisandomanter as mãos ocupadas. Sua terapeutaparecia Brooks, que ainda não tinha sedesculpado. Eles se evitavamtensamente nos corredores da escolahavia dois dias.

— Deixe que os mortos descansem— disse Landry. — Concentre-se nomundo de seus vivos.

Eureka olhou pela janela, vendo umcéu cuja cor era típica dos dias depoisde um furacão: de um azul contumaz.

— Obrigada por essa canja degalinha para a alma.

Ela ouviu Brooks buzinar algumacoisa desagradável em seu ouvido sobrecomo Eureka estava convencida de quetodos os terapeutas eram idiotas. MasLandry era mesmo! Eureka pensava empedir desculpas a ele, só para romper a

tensão. Mas sempre que o via, ele estavacercado por um muro de meninos,jogadores de futebol que ela nunca viracom ele antes daquela semana, sujeitoscujo precioso machismo costumava sero alvo das melhores piadas de Brooks.Ele a olhou nos olhos, depois fez umgesto obsceno que levou a roda degarotos a estourar de rir.

Ele fez Eureka estourar também, masde um jeito diferente.

— Antes que se precipite numatradução dispendiosa desse livro —disse Landry —, pelo menos pense nos

prós e nos contras.Não havia dúvida para ela. Eureka

ia continuar com a tradução do Livro doamor. Mesmo que acabasse por serpouco mais que uma história de amor,talvez a ajudasse a entender melhorDiana. Uma vez, Eureka perguntou comofoi quando a mãe conhecera o pai, comoela soube que queria ficar com ele.

Eu sentia que estava sendo salva,dissera Diana. Lembrou Eureka do que opríncipe da história disse a Selene:Você ainda pode me salvar.

— Já ouviu falar da ideia da

sombra, de Jung? — arriscou Landry.Eureka meneou a cabeça.— Algo me diz que estou prestes a

saber.— A ideia é de que todos temos uma

sombra, que compreende aspectosnegados do eu. Minha percepção é deque sua extrema apatia, suaindisponibilidade emocional, a cautelaque devo dizer que é palpável em você,tudo vem de um lugar central.

— E de onde mais viria?Landry a ignorou.— Talvez você tenha tido uma

infância em que lhe disseram parareprimir as emoções. Uma pessoa quefaz isso por tempo suficiente podedescobrir que aqueles aspectosnegligenciados do eu começam aborbulhar por todo o lado. Suasemoções reprimidas podem muito bemsabotar sua vida.

— Tudo é possível — disse Eureka.— Sugiro que minhas emoçõesreprimidas peguem uma senha.

— É muito comum — comentouLandry. — Em geral procuramos acompanhia de quem mostra aspectos que

reprimimos nas profundezas de nossasombra. Pense na relação de seus pais...Bem, seu pai e sua madrasta.

— Prefiro não pensar.Landry riu.— Se não confrontar sua apatia, ela

a levará ao narcisismo e ao isolamento.— Isto é uma ameaça?Landry deu de ombros.— Já vi casos assim. É uma espécie

de distúrbio de personalidade.Era exatamente assim que a terapia

inevitavelmente funcionava: reduzindoindivíduos a tipos. Eureka queria estar

fora daquelas paredes. Olhou o relógio.Só estava ali havia vinte minutos.

— Seu orgulho fica ferido ao ouvirque você não é única? — perguntouLandry. — Porque é um sintoma denarcisismo.

A única pessoa que entendia Eurekaestava espalhada pelo mar.

— Diga-me onde sua mente foiagora — disse Landry.

— St. Lucia.— Quer ir embora?— Vou fazer um acordo com você.

Eu nunca mais volto aqui, você cobra o

horário de Rhoda, e ninguém precisasaber de nada.

A voz de Landry endureceu:— Você cairá em si quando tiver 40

anos e estiver sem marido, sem filhos esem profissão, se não aprender a seenvolver com o mundo.

Eureka se levantou, querendo quefosse alguém como Madame Blavatskyna poltrona em vez da Dra. Landry. Asobservações intrigantes da tradutora lhepareceram mais criteriosas que qualquertagarelice diplomada que saía da bocada terapeuta.

— Seus pais pagaram por mais meiahora. Não saia por esta porta, Eureka.

— A mulher do meu pai pagou pormais meia hora — corrigiu ela. —Minha mãe é o Jantar de Sexta-feira dosPeixes. — Ela riu das palavras horríveisao passar por Landry.

— Está cometendo um erro.— Esta é sua opinião — Eureka

abriu a porta —, estou convencida deque estou tomando a decisão certa.

15

BLUE NOTE

— Acha que estou gorda? — perguntouCat na fila do almoço na quarta-feira.Eureka ainda não falara com Brooks.

Era dia de costeleta de porco frita, oponto alto gastronômico da semana deCat. Mas em sua bandeja havia um

morro amarronzado de alface retalhada,uma colherada de ervilha grudenta e umsaudável respingo de molho de pimenta.

— Mais uma baixa. — Eurekaapontou para a comida de Cat. —Literalmente. — Ela passou o cartão nocaixa para pagar pela costeleta e oachocolatado. Eureka estava farta depapo de dieta. Teria adorado encher umbiquíni como Cat.

— Eu sei que não estou gorda —disse Cat, enquanto percorria o labirintovertiginoso de mesas. — E você sabedisso, pelo visto. Mas será que Rodney

sabe?— É melhor que saiba. — Eureka

evitou os olhos das meninas do segundoano da equipe de corrida a quem Catsoprou um beijo com um ar superior. —Ele disse alguma coisa? E se dissesse,você ligaria?

Eureka desejou não ter dito aquilo.Não queria ter ciúme de Cat. Queria sera melhor amiga que ficava em transecom papo de dieta, namoro e segredosescusos dos outros alunos da turma. Emvez disso era amargurada e chata. Emagoada ao ter sido praticamente

desossada por Rhoda na noite anteriorquando saiu cedo do consultório deLandry. Rhoda ficou tão furiosa que nempensou em um castigo forte o bastante,que agora era iminente e mantinhaEureka tensa.

— Não, não é nada disso. — Catolhou de lado a mesa das veteranas decross-country, afastada do resto dorefeitório num nicho perto da janela.

Theresa Leigh e Mary Monteautinham dois lugares vagos ao lado delasno banco de metal preto. Elas acenarampara Cat, sorrindo inseguras para

Eureka.Desde que voltara à escola naquele

ano, Eureka almoçava com Cat do ladode fora, sob a imensa nogueira no pátio.A cacofonia de tantos alunos comendo,brincando, discutindo e vendendoporcaria para as excursões da igreja quetentavam financiar era demais paraEureka, que mal tinha saído do hospital.Cat nunca soltou um pio sobre sentirfalta da ação lá dentro, mas estremeceuquando Eureka foi para a porta dosfundos. Estava frio e tempestuoso, e Catvestia a opção de saia xadrez do

uniforme da Evangeline, sem meias.— Você odiaria ficar aqui dentro

hoje? — Cat apontou para os lugaresvagos na mesa de cross-country. — Vouvirar picolé lá fora.

— Tudo bem. — Mas parecia tersido condenada à morte enquantodeslizava no banco de frente para Cat,cumprimentando Theresa e Mary etentando fingir que a mesa toda não aencarava.

— Rodney não falou nada de meupeso. — Cat rodou um pedaço de alfacenuma poça de molho de pimenta. — Mas

é magrelo e me deixa nervosa pensarque talvez eu pese mais que meunamorado. Sabe como é. É difícil nãoprever as críticas futuras de alguém dequem você realmente gosta. Algo emmim um dia vai incomodá-lo, a questãoé...

— Que tamanho vai ter essa lista?— Eureka olhava a bandeja. Cruzou edescruzou as pernas, pensando emBrooks.

— Pense em seu cara misterioso —disse Cat.

Eureka puxou o elástico do cabelo,

depois levou o cabelo para cima numcoque idêntico ao que tinhadesmanchado. Sabia que o rosto estavarubro.

— Ander.— Você está vermelha.— Não estou. — Eureka sacudiu

Tabasco violentamente na comida quenem lhe dava mais apetite. Só precisavaafogar alguma coisa. — Nunca mais vouvê-lo.

— Ele vai voltar. Os homens sãoassim. — Cat mastigou um pedaço dealface lentamente, depois estendeu a

mão para roubar um naco da costeleta deEureka. Suas dietas eram experimentais,e aquela, felizmente, tinha terminado. —Tudo bem, então pense em Brooks.Quando você e ele estavam namorando...

Eureka gesticulou para Cat parar.— Não foi à toa que saí da terapia.

Não estou disposta a requentar meuromance do quinto ano com Brooks.

— Vocês ainda não se beijaram efizeram as pazes?

Eureka quase se engasgou com oachocolatado. Não contara a Cat sobre obeijo que parecia ter terminado a

relação com o mais antigo amigo. AgoraEureka e Brooks mal se olhavam.

— Ainda estamos brigados, se é oque quer dizer.

Ela e Brooks ficaram sentados portoda a aula de latim, as cadeiras batendouma na outra na apertada sala, sem seolhar nos olhos. Isso exigiuconcentração; Brooks em geral faziapelo menos três piadas da florestaprateada de pelos no peito do Sr.Piscidia.

— Qual é o problema dele? —perguntou Cat. — Em geral a

metamorfose de idiota a penitente dele émais rápida. Já são três dias inteiros.

— Quase quatro — disse Eurekaautomaticamente. Ela sentiu as outrasmeninas na mesa virarem a cabeça paraouvir. Ela baixou a voz. — Talvez elenão tenha problema algum. Talvez sejaeu. — Ela pousou a cabeça na dobra docotovelo na mesa e empurrou o arrozcolorido com o garfo. — Egoísta,arrogante, crítica, manipuladora, semconsideração...

— Eureka.Ela deslizou para cima ao ouvir a

voz grave dizer seu nome, como sepuxada por cordinhas de marionete.Brooks estava à cabeceira da mesa,olhando para ela. Seu cabelo caía portoda a testa, cobrindo os olhos. Acamisa era pequena demais nos ombros,o que era irritante de tão sexy. Elepassou pela puberdade cedo e era maisalto que os outros meninos da mesmaidade, mas parou de crescer no primeiroano. Estaria passando por um segundosurto de crescimento? Ele pareciadiferente, não só mais alto e mais forte.Não demonstrou timidez ao contornar a

mesa, embora as 12 ocupantes tivessemparado de falar para olhar para ele.

Brooks não tinha esse horário dealmoço. Devia ajudar no quarto período,e ela não via qualquer bilhete deconvocação azul em sua mão. O que elefazia ali?

— Desculpe — disse ele. — Euestava num abacate.

Cat bateu na própria testa.— Caraca, Brooks, isto é desculpa

que se apresente?Eureka sentiu os cantos da boca

formarem um sorriso. Uma vez, no ano

anterior, quando Eureka e Brooks viamTV depois da aula, eles entreouviram opai ao telefone dizendo estar abatido. Osgêmeos entenderam mal, e Claire foicorrendo a Eureka, perguntando por queo pai estava num abacate.

— Deve ser o caroço — disseraBrooks, e nasceu uma lenda.

Agora cabia a Eureka decidir seconcluía a piada e encerrava o silêncio.Todas as meninas na mesa a olhavam.Duas delas, Eureka sabia, tinham umaqueda por Brooks. Seria constrangedor,mas o poder da história partilhada atraía

Eureka.Ela respirou fundo.— Os últimos dias foram um caroço.Cat gemeu.— Vocês dois precisam ter o

próprio planeta.Brooks sorriu e se ajoelhou,

plantando o queixo na beira da mesa.— O almoço só tem 35 minutos,

Brooks — disse Cat. — Não é temposuficiente para todas as desculpas queprecisa pedir por todas as besteiras quedisse. Será que a raça humana vai existirpor tempo suficiente para você pedir

perdão por todas as idiotices...— Cat — cortou Eureka. — A gente

entendeu.— Quer conversar em algum lugar?

— disse Brooks.Ela assentiu. Levantando-se da

cadeira, Eureka pegou a bolsa e deslizoua bandeja na frente de Cat.

— Termine minhas costeletas,mendiga.

Ela seguiu Brooks pelo labirinto demesas, perguntando-se se ele tinhacontado a alguém a respeito da briga dosdois, do beijo. Assim que o caminho se

ampliou o suficiente para que elesandassem lado a lado, Brooks secolocou ao lado dela. Pôs a mão emsuas costas. Eureka não sabia o quequeria de Brooks, mas a mão dele nelaera legal. Ela não sabia em que períodoMaya Cayce tinha almoço, mas queriaque fosse agora, para a garota ver osdois saindo do refeitório juntos.

Eles passaram pelas portas laranja eandaram pelo corredor vazio. Seus pésecoavam em uníssono no piso delinóleo. Tinham o mesmo andar desdeque eram crianças.

Perto do final do corredor, Brooksparou e ficou de frente para ela.Provavelmente não pretendia parar nafrente do armário de troféus, mas Eurekanão pôde deixar de ver seu reflexo.Então, pelo vidro, viu o pesado troféud e cross-country que sua equipe tinhaganhado no ano anterior e, ao lado dele,um menor, de segundo lugar, dois anosantes, quando perderam a primeiraposição para a Manor. Eureka nãoqueria pensar na equipe que largara,nem em seus rivais — ou no garoto quementiu dizendo ser um deles.

— Vamos lá para fora. — Elaapontou com a cabeça para Brookssegui-la. — Mais privacidade.

O pátio pavimentado separava assalas de aula do centro de administraçãoenvidraçado. Era cercado de três ladospor construções, todas em volta de umaimensa nogueira coberta de musgo. Ascascas apodrecidas de nozes cobriam ogramado, emitindo um odor fecundo quelembrava Eureka de subir nos galhos danogueira da fazenda dos avós comBrooks quando era criança. Trepadeirasde jacinto se esgueiravam pelo barranco

da Sala da Banda, atrás deles. Colibrisdisparavam de flor e flor, provandonéctar.

Uma frente fria se aproximava. O arestava mais refrescante que pela manhã,quando ela saiu para a escola. Eurekapuxou mais o cardigã verde nos ombros.Ela e Brooks se recostaram na cascaáspera da árvore e olharam oestacionamento como se fosse uma vastaextensão de uma bela paisagem.

Brooks não disse nada. Olhou-a comcautela na luz do sol difusa sob o dosselde musgo. Seu olhar era tão intenso

quanto o que Ander lhe lançou dapicape, e quando ele foi à casa dela, eaté na frente do escritório do Sr.Fontenot. Foi a última vez que ela o viu— e agora Brooks parecia fazer umaimitação do garoto que odiava.

— Eu fui um imbecil aquela noite —disse Brooks.

— É, foi mesmo.Isso o fez rir.— Você foi um imbecil por dizer

aquelas coisas... Mesmo que tivesserazão.

Ela rolou para Brooks, o ombro dele

apertando a casca da árvore. Seus olhosencontraram o lábio inferior de Brooks enão conseguiram se mexer. Ela nemacreditava que o beijara. Não só umavez, mas várias. Pensar nisso deixava ocorpo zunindo.

Queria beijá-lo agora, mas foijustamente assim que eles seencrencaram antes. Então ela baixou oolhar até os próprios pés, olhando ascascas de noz espalhadas pela gramairregular.

— O que eu disse na outra noite nãofoi justo — começou Brooks. — Era

sobre mim, e não você. Minha raiva foisó um disfarce.

Eureka sabia que deveria revirar osolhos quando os meninos diziam que eracom eles, e não com ela. Mas tambémsabia que a declaração era verdadeira,mesmo que os meninos não soubessemdisso. Então deixou que Brookscontinuasse.

— Eu tenho sentimentos por você hámuito tempo.

Ele não titubeou ao dizer aquilo; nãodisse “hummm”, nem “eeeer”, nem “tipoassim”. Depois que as palavras saíram

de sua boca, ele não pareceu querersugá-las de volta. Ele sustentou o olhardela, esperou por sua resposta.

Uma brisa varreu o pátio, e Eurekaachou que poderia cair. Pensou noHimalaia, que Diana disse ser tãoventoso que nem acreditava que aspróprias montanhas não fossemderrubadas pelas correntes de ar. Eurekaqueria ter essa resistência.

Ficou surpresa com a facilidade comque as palavras de Brooks saíram. Emgeral eles eram francos um com o outro,mas jamais conversaram sobre essas

coisas. Atração. Sentimentos. Um pelooutro. Como podia ficar tão calmoquando dizia a coisa mais intensa quealguém podia falar?

Eureka imaginou dizer ela mesma aspalavras, como ficaria nervosa. Só que,quando se imaginava falando, aconteciauma coisa engraçada: o menino paradodiante dela não era Brooks. Era Ander.Era nele que ela pensava ao se deitar nacama à noite: eram os olhos turquesadele que lhe davam a sensação de queela caía pela mais serena e estonteantecachoeira.

Ela e Brooks não eram assim. Elesse confundiram outro dia quandotentaram fingir que eram. Talvez Brookspensasse que depois de beijá-la,precisava dizer que gostava dela, queficaria aborrecida se ele fingisse quenão significara nada.

Eureka imaginou o Himalaia e dissea si mesma que não ia cair.

— Não precisa dizer isso para fazeras pazes comigo. Podemos voltar a seramigos.

— Você não acredita em mim. —Ele suspirou e baixou os olhos,

murmurando algo que Eureka nãoentendeu. — Você tem razão. Talvezseja melhor esperar. Já esperei atéagora, o que é outra eternidade?

— Esperou pelo quê? — Elameneou a cabeça. — Brooks, aquelebeijo...

— Foi uma blue note. — Ela quaseentendeu exatamente o que ele quisdizer.

Tecnicamente, certo som podia sercompletamente errado, desafinado. Masquando você encontrava a blue note —ela conhecia o termo de vídeos no

YouTube que vira quando tentavaaprender violão — tudo parecia certo deum jeito surpreendente.

— Vai mesmo tentar se safar comuma metáfora ruim de jazz? — Eurekaimplicou com ele, porque, sinceramente,o beijo em si não havia sido errado.Podia-se até usar a palavra“miraculoso” para descrever aquelebeijo. As pessoas que se beijaram é queestavam erradas. Foi a linha quecruzaram.

— Estou acostumado a você nãosentir por mim o mesmo que eu sinto —

disse Brooks. — No sábado, nemacreditei que você podia...

Pare, ela queria dizer. Se elecontinuasse falando, Eureka ia começara acreditar, concluiria que eles deviamse beijar de novo, talvez comfrequência, definitivamente logo. Elanão parecia encontrar a própria voz.

— Então você fez aquela piadaperguntando por que demorei tanto,quando eu estava querendo beijar vocêdesde sempre. Surtei.

— Eu estraguei tudo.— Não, eu não devia ter desabafado

daquele jeito — disse Brooks. As notasde um saxofone na Sala da Bandaflutuaram para o pátio. — Eu magoeivocê?

— Vou me recuperar. Nós doisvamos, né?

— Espero que não tenha feito vocêchorar.

Eureka semicerrou os olhos paraele. A verdade era que ela esteve pertodas lágrimas ao vê-lo ir embora,imaginando que ele procuraria confortodireto na casa de Maya Cayce.

— Você chorou? — perguntou ele

de novo. — Chorou?— Não fique se gabando. — Ela

tentou dizer com leveza.— Tive medo de ter ido longe

demais. — Ele parou. — Sem lágrimas.Que bom.

Ela deu de ombros.— Eureka. — Brooks a puxou num

abraço inesperado. Seu corpo estavaquente contra o vento, mas ela nãoconseguia respirar. — Não seriaproblema algum se você desmoronasse.Sabe disso, né?

— Sei.

— Todo mundo da minha famíliachora até em anúncios patrióticos. Vocênem chorou quando sua mãe morreu.

Ela o empurrou, as palmas das mãosno peito dele.

— O que isso tem a ver com agente?

— A vulnerabilidade não é a piorcoisa do mundo. Você tem onde seapoiar. Pode confiar em mim. Estou aquise precisar de um ombro, de alguémpara emprestar um lenço.

— Não sou feita de pedra. — Elapassara para a defensiva de novo. — Eu

choro.— Não chora, não.— Chorei na semana passada.Brooks ficou chocado.— Por quê?— Você quer que eu chore?Os olhos de Brooks tinham certa

frieza.— Foi quando bateram no seu

carro? Eu devia saber que você nãochoraria por mim.

Seu olhar a prendia, deixando-aclaustrofóbica. O impulso de beijá-lopassou. Ela olhou o relógio.

— A sineta vai tocar.— Só daqui a dez minutos. — Ele

parou. — Nós somos... Amigos?Ela riu.— Claro que somos amigos.— Quero dizer, somos só amigos?Eureka esfregou o ouvido ruim.

Tinha dificuldade de olhar para ele.— Não sei. Olhe, tenho uma

apresentação sobre o soneto 64 nopróximo tempo. Preciso ver minhasanotações. “O tempo virá e levará meuamor” — disse ela, num sotaquebritânico que pretendia fazê-lo rir. Não

fez. — Estamos numa boa de novo —continuou ela. — É o que importa.

— É — respondeu eleautomaticamente.

Eureka não sabia o que ele queriaque ela dissesse. Eles não podiam sairde um beijo para discutir de novo ebeijar. Eram ótimos como amigos.Eureka pretendia que continuasse assim.

— E aí, a gente se vê depois? — Elaandou para trás, de frente para ele, aopartir para a porta.

— Espere, Eureka. — Brookschamou seu nome assim que as portas se

abriram e alguém esbarrou nas costasdela.

— Não sabe andar? — perguntouMaya Cayce. Ela deu um gritinho ao verBrooks.

Era a única conhecida de Eureka quepodia deixar a intimidaçãoinstantaneamente de lado. Também era aúnica pessoa cuja calça da Evangelinecabia em seu corpo como uma luvaobscena.

— Aí está você, gato. — Mayaarrulhou para Brooks, mas olhava paraEureka, rindo com os olhos.

Eureka tentou ignorá-la.— Ia dizer mais alguma coisa,

Brooks?Ela já sabia a resposta.Ele pegou Maya quando ela jogou

seu corpo no dele num abraço de filmepornô. Os olhos de Brooks mal eramvisíveis na coroa de cabelos pretosdela.

— Deixe pra lá.

16

INOPORTUNO

Como todo aluno da Evangeline, Eurekafez meia dúzia de excursões ao Museude Ciência de Lafayette, na JeffersonStreet. Quando era criança, isso amaravilhava. Não conhecia outro lugaronde podia encontrar pedras da

Louisiana pré-histórica. Embora tivessevisto as pedras umas cem vezes, namanhã de quinta-feira embarcou noônibus da escola com a turma degeofísica para observá-las pelacentésima primeira vez.

— Esta deve ser uma exposiçãolegal — disse seu amigo Luke, quandoeles desceram a escada do ônibus epegaram a calçada antes de entrar nomuseu.

Ele apontou a faixa anunciandomensagens das profundezas em caracteresbrancos e trêmulos que faziam com que

as palavras parecessem estar debaixo daágua.

— É da Turquia.— Tenho certeza que os curadores

daqui vão achar um jeito de estragarisso — rebateu Eureka.

A conversa com Brooks no diaanterior havia sido tão frustrante que elanão podia deixar de descontar em cadaespécime do sexo masculino.

Luke tinha cabelo ruivo e a peleclara e brilhante. Eles jogavam futeboljuntos quando eram mais novos. Ele erauma pessoa genuinamente legal que

passou a vida toda em Lafayette, feliz econtente. Ele olhou Eureka por ummomento, talvez se lembrando de queela foi à Turquia com a mãe e que a mãeagora estava morta. Mas não disse nada.

Eureka se voltou para dentro,olhando o botão opalescente na blusa daescola como se fosse um artefato deoutro mundo. Ela sabia que Mensagensdas Profundezas devia ser uma ótimaexposição. O pai levara os gêmeos paraver quando foi inaugurada duas semanasantes. Eles ainda tentavam fazer com queela brincasse de “naufrágio” com eles na

saleta, usando almofadas do sofá ecabos de vassoura.

Eureka não podia culpar William eClaire por sua insensibilidade. Narealidade, apreciava isso. Eram tantossussurros cautelosos perto de Eurekaque um tapa na cara, como umabrincadeira chamada “naufrágio” oumesmo a explosão de Brooks outranoite, era renovadora. Eram cordasjogadas a uma menina que se afogava, ooposto dos suspiros de Rhoda e suasbuscas no Google por “distúrbio deestresse pós-traumático em

adolescentes”.Ela esperou na frente do museu com

a turma, cobertos de umidade, até que oônibus de outra escola chegasse paraque os docentes começassem a excursão.Os colegas de turma se apertavam emvolta dela num aglomerado sufocante.Ela sentiu o cheiro de xampu demorango de Jenn Indest, ouviu arespiração ofegante de febre do feno deRichard Carp e quis ter 18 anos e umemprego de garçonete em outra cidade.

Eureka jamais confessaria, mas àsvezes ela pensava que merecia uma nova

vida em outro lugar. As catástrofes eramcomo dias de doença que a pessoa deviapoder passar do jeito que quisesse.Eureka queria levantar a mão, anunciarque estava muito, mas muito doente, edesaparecer para sempre.

A voz de Maya Cayce surgiu em suacabeça: Aí está você, gato.

Ela queria gritar. Queria correr,atropelar qualquer colega de turma entreela e o bosque do Parque Municipal deNew Iberia.

O segundo ônibus parou noestacionamento. Meninos da Ascension

High, com blazers marinho de botõesdourados, encheram a escada e pararamperto dos alunos da Evangeline. Elesnão se misturavam. A Ascension era ricae uma das escolas mais difíceis daparóquia. Todo ano havia um artigo nojornal sobre alunos entrando para aVanderbilt, Emory ou outro lugarelegante. Eles tinham a fama de nerds ereservados. Eureka nunca pensou muitona reputação da Evangeline — tudo emsua escola lhe parecia muito comum.Mas enquanto os olhos da Ascensionpercorriam Eureka e os colegas de

turma, ela se viu sendo reduzida aoestereótipo, qualquer que fosse, que osmeninos convenceram a si mesmos quecombinava com a Evangeline.

Ela reconheceu um ou dois meninosda Ascension da igreja. Alguns de suaturma acenaram para uns poucos daturma deles. Se Cat estivesse ali,cochicharia comentários obscenos sobreeles — como os meninos da Ascensioneram “bem dotados”.

— Bem-vindos, estudantes —chamou a jovem docente do museu.Tinha o cabelo castanho-claro e curto e

usava calça larga caramelo, e uma pernaestava enrolada até o tornozelo. Seusotaque fanhoso do bayou conferia à vozo caráter de uma clarineta. — Meu nomeé Margaret, sua guia. Hoje estão aquipara uma aventura impressionante.

Eles seguiram Margaret para dentro,tiveram as mãos carimbadas com o selodos LSU Tigers para mostrar quepagaram e se reuniram no saguão. Umafita adesiva marcava a fila no carpeteonde eles deveriam esperar. Eurekaficou o mais para trás que pôde.

Projetos de arte de papelão

desbotavam nas paredes de concreto. Acurva visível do planetário lembrouEureka do show de lasers do Pink Floydque viu com Brooks e Cat no último diado primeiro ano. Levou um saco dapipoca com chocolate do pai, Cat afanouuma garrafa de vinho vagabundo doestoque dos pais, e Brooks tinhacomprado máscaras de carnaval paraeles. Os três riram pelo show todo, maisque os universitários chapados atrásdeles. Era uma recordação tão feliz queEureka tinha vontade de morrer.

— Um pouco de contexto. — A

docente se virou para o lado contráriodo planetário e acenou para que osalunos a seguissem. Eles passaram porum corredor mal iluminado que tinhacheiro de cola e congelados LeanCuisine, depois pararam diante deportas de madeira fechadas. — Osartefatos que estão prestes a verchegaram a nós de Bodrum, na Turquia.Alguém sabe onde isso fica?

Bodrum era uma cidade portuária nocanto sudoeste do país. Eureka nuncaesteve lá; foi uma das paradas que Dianafez depois que se despediram com um

abraço no aeroporto de Istambul eEureka pegou o avião para a América,para o início das aulas. Os postais queDiana mandou dessas viagens eramtingidos de uma melancolia que fez comque Eureka se sentisse mais próximaainda da mãe. Elas nunca eram tãofelizes separadas quanto eram juntas.

Como ninguém levantou a mão, adocente pegou um mapa laminado de suabolsa e o estendeu no alto. Bodrumestava marcado com uma grande estrelavermelha.

— Há trinta anos — disse Margaret

—, mergulhadores descobriram osdestroços do navio Uluburun a 10quilômetros da costa de Bodrum.Calcula-se que os restos que veremoshoje tenham quatro mil anos. —Margaret olhou os alunos, torcendo paraalguém ficar impressionado.

Ela abriu as portas de madeira.Eureka sabia que a sala de exposiçãonão era muito maior que uma sala deaula, então eles teriam de se espremerali. Ao entrarem no silêncio azulado daexposição, Belle Pogue entrou na filaatrás de Eureka.

— Deus mal tinha feito a terra 6 milanos atrás — murmurou Belle.

Ela era presidente dos HollyRollers, um clube de patinadorescristãos. Eureka imaginou Deuspatinando pelo esquecimento, passandopor destroços de navios a caminho doJardim do Éden.

As paredes da sala de exposiçãoforam cobertas de uma rede azul,sugerindo o oceano. Alguém tinhacolado estrelas-do-mar de plástico paraformar uma borda perto do chão. Umaparelho de som portátil tocava sons

marinhos: água borbulhando, oocasional grito de uma gaivota.

No meio da sala, um refletorbrilhava do teto, iluminando o destaqueda exposição: a reconstituição de umnavio. Assemelhava-se a algumasjangadas que as pessoas usavam peloCypremort Point. Era feito de tábuas decedro, e seu casco largo se curvava nofundo, exibindo uma quilha na forma debarbatana. Perto do leme, aprotuberância baixa de uma galé eracoberta por um teto plano com telhas.Cabos de metal sustentavam o navio a

30 centímetros do chão, de forma que oconvés pairava pouco acima da cabeçade Eureka.

Os alunos iam para a esquerda oudireita para dar a volta no navio, eEureka escolheu a esquerda, passandopor um mostruário de altos vasos deterracota estreitos e três imensasâncoras de pedra pontilhadas deazinhavre.

Margaret agitava o mapa laminado,chamando os alunos para o outro ladodo navio, onde encontraram um cortetransversal do leme. O interior estava

aberto, como uma casa de bonecas. Omuseu o mobiliara para sugerir comodevia ter sido antes de afundar. Haviatrês níveis. O inferior era o depósito —lingotes de cobre, engradados degarrafas de vidro azul, mais dos vasosde terracota de gargalo longo aninhadosem pé em leitos de palha. No meio haviauma fila de catres, junto com tonéis degrãos, comida de plástico e vasilhamescom duas alças para beber. O andar decima era um convés aberto, guarnecidopor alguns metros de amurada de cedro.

Por algum motivo, o museu tinha

vestido espantalhos em togas e osposicionou no leme com um telescópioque parecia antigo. Eles olhavam comose os presentes no museu fossem baleiasentre as ondas. Quando alguém da turmade Eureka riu dos espantalhosmarinheiros, a docente estalou o mapalaminado para chamar sua atenção.

— Mais de 18 mil artefatos foramrecuperados dos destroços e nem todossão reconhecíveis aos olhos modernos.Considerem este. — Margaret ergueuuma fotocópia em cores de uma cabeçade carneiro finamente entalhada que

parecia ter sido quebrada no pescoço.— Vejo vocês se perguntando onde estáo resto do corpo desse sujeitinho? —Ela parou para olhar os estudantes. —Na verdade, o pescoço oco eraintencional. Alguém pode me dizer qualera seu propósito?

— Uma luva de boxe. — Uma vozde menino gritou de trás, incitandooutras risadinhas.

— Uma especulação bem pugilista.— Margaret acenou com a ilustração. —Na realidade, este é um cálice de vinhocerimonial. Agora, isso não faz vocês se

perguntarem...— Não mesmo — gritou a mesma

voz de trás.Eureka olhou a professora, a Srta.

Kash, que se virou incisivamente para avoz, então soltou uma fungadela deindignação aliviada quando teve certezade que não vinha de um de seus alunos.

— Imaginem uma civilização futuraexaminando alguns artefatos que vocêsou eu podemos deixar para trás —continuou Margaret. — O que aspessoas pensariam de nós? Como nossasmais brilhantes inovações... nossos

iPads, painéis solares, cartões decrédito... pareceriam a geraçõesdistantes?

— Os painéis solares são da Idadeda Pedra comparados com o que foicriado antes. — A mesma voz do fundo.

Madame Blavatsky tinha dito algoparecido, sem o tom petulante. Eurekarevirou os olhos e mudou o peso docorpo, mas não se virou. O aluno degeofísica avançada da Ascension láatrás claramente tentava impressionaruma garota.

Margaret deu um pigarro e fingiu

que as perguntas retóricas não eraminoportunas.

— O que nossos descendentesdistantes diriam de nossa sociedade?Vamos parecer avançados... ouprovincianos? Alguns de vocês podemestar olhando estes artefatos, achando-osvelhos ou ultrapassados. Até, eu meatrevo a dizer, chatos.

Crianças concordaram. Maisrisadinhas. Eureka não pôde deixar degostar das âncoras e vasos de terracotaantigos, mas os espantalhos mereciamser afogados.

A docente se atrapalhou ao calçarum par de luvas bancas, do tipo queDiana usava quando lidava com osartefatos. Depois pegou uma caixa aseus pés e dali tirou um entalhe demarfim. Era um pato em tamanho natural,muito detalhado. Ela virou o pato para aplateia e usou os dedos para separar asasas, expondo uma bacia oca e limpapor dentro.

— Tan-taaaan! Caixa de cosméticoda Idade do Bronze! Observem ahabilidade artesanal. Alguém pode negaro refinamento com que foi feito? Isto tem

milhares de anos!— E essas algemas da Idade do

Bronze aqui?A mesma voz zombou do fundo da

sala. Estudantes se empurraram para vero inoportuno insistente. Eureka nãodesperdiçou energia.

— Parece que seus artesãosrefinados tinham escravos — continuouele.

A docente ficou na ponta dos pés esemicerrou os olhos para o fundo escuroda sala.

— Este é um tour guiado, meu

jovem. Há uma ordem nas coisas.Alguém tem alguma pergunta para fazeraí atrás?

— Os tiranos de hoje também sãoótimos artesãos — continuou o garoto,divertindo-se.

Sua voz começava a parecerfamiliar. Eureka se virou. Viu o topo dacabeça loura se virando de frente,enquanto todos os outros olhavam paratrás. Ela se esgueirou à beira do grupopara ver melhor.

— Já basta. — A Srta. Kash orepreendeu, olhando com desdém os

funcionários da Ascension, como seestivesse admirada de nenhum delessilenciar o estudante.

— Sim, faça silêncio, senhor, ou váembora — vociferou Margaret.

Então Eureka o viu. O garoto alto epálido no canto, na beira do facho doholofote, as pontas do cabelo louro eondulado iluminadas. Seu tom e osorriso irônico eram despreocupados,mas os olhos faiscavam com algo maissombrio.

Ander usava a mesma camisa brancabem passada e jeans escuros. Todos o

olhavam. Ele encarava Eureka.— É o silêncio que causa a maioria

dos problemas da humanidade — disseele.

— Está na hora de você ir embora— falou Margaret.

— Já terminei. — Ander falou tãobaixo que Eureka mal o escutou.

— Que bom. Agora, se não seimporta, explicarei o propósito destaviagem ancestral no mar — disseMargaret. — Os antigos egípciosestabeleceram uma rota comercial,talvez a primeira...

Eureka não ouviu o resto. Ouvia seucoração, que trovejava. Esperou que osoutros alunos desistissem de uma novaintromissão e voltassem a cabeça para adocente; depois contornou o grupo atéAnder.

Os lábios dele estavam fechados, eera difícil imaginar que tivessempronunciado os comentários irritantesque a atraíram até ele. Ander lhe abriuum leve sorriso, a última coisa que elaesperava. Ficar bem perto dele dava emEureka, mais uma vez, a sensação deestar no oceano — independentemente

da borda de estrelas-do-mar, osespantalhos-marinheiros e o CD deOcean Breeze saindo dos alto-falantes.O mar estava em Ander, era sua aura.Nunca na vida pensou em usar umapalavra como “aura”. Ele fazia com queimpulsos pouco característicosparecessem naturais nela, como respirar.

Ela se colocou à esquerda dele, osdois de frente para a docente, ecochichou pelo canto da boca:

— Você não é da Ascension.— A docente acha que sou da

Condenscension. — Ela ouviu o sorriso

em sua voz.— Também não é da equipe de

corrida da Manor.— Nada escapa a você.A voz de Eureka queria se elevar. A

compostura dele a irritava. Onde elesestavam, a poucos passos do grupo eperto da beira do holofote, a luz erabaixa, mas qualquer um que se virassepodia ver os dois. Os professores ealunos ouviriam se não mantivesse oscochichos baixos e firmes.

Era estranho que outros nãoestivessem encarando Ander. Ele era tão

diferente! Ele se destacava. Mas malnotavam sua presença. Aparentemente,todos supunham que Ander era de umaescola diferente, então seucomportamento não interessava. Suasintromissões eram um artefato esquecidoque Margaret estava deliciada em deixarperdido no mar.

— Sei que você não é da Evangeline— disse Eureka entre dentes.

— Nem para educação nem paradiversão.

— Então o que está fazendo aqui?Ander se virou para ela.

— Procurando por você.Eureka piscou.— Você tem um jeito bem

perturbador de fazer isso.Ander coçou a testa.— Tive de exagerar. — Ele parecia

arrependido, mas Eureka não tinhacerteza. — Podemos ir a algum lugarpara conversar?

— Não exatamente. — Elagesticulou para o grupo da excursão. Elae Ander estavam a pouco mais de 1metro dos outros alunos. Não podiam irembora.

O que ele queria dela? Primeiro oacidente de carro, depois aparecer nacasa dela, depois segui-la até oescritório do advogado, agora isso?Sempre que ela o encontrava, era umainvasão de privacidade, a travessia dealgum limite.

— Por favor — insistiu ele. —Preciso falar com você.

— Tá, eu também precisei falar comvocê quando meu pai recebeu a conta doconserto do carro. Lembra disso? Sóque quando liguei para o número quevocê elegantemente me deu, atendeu

alguém que nunca ouviu falar de você...— Deixe-me explicar. Vai querer

saber as coisas que tenho pra contar.Ela puxou a gola da blusa, apertada

demais no pescoço. Margaret dizia algoa respeito do dote de uma princesaafogada. A massa de alunos começava ase deslocar para alguns mostruários devidro do lado direito da sala.

Ander pegou a mão dela. Seu toquefirme e a pele macia a fizeram tremer.

— É sério. Sua vida está...Ela puxou a mão.— Basta eu dizer uma palavra a

qualquer professor aqui, e você seráalgemado por assédio.

— Vão usar algemas de bronze? —brincou.

Ela o olhou feio. Ander suspirou.O resto da excursão se deslocou a

um mostruário. Eureka não teve oimpulso de se juntar a eles. Ansiava etemia ficar com Ander ao mesmo tempo.Ele pôs as mãos nos ombros dela.

— Livrar-se de mim será um erroenorme. — Ele apontou por cima dacabeça para uma placa de saída acesa emeio encoberta por um leve tecido azul,

de modo que só se lia ida. Ele estendeu amão. — Vamos.

17

TOCANDO A SUPERFÍCIE

Passando pela porta abaixo da placa desaída, depois por um corredor curto eescuro, Ander levou Eureka para outraporta. Eles nada falaram. Seus corposestavam próximos. Era mais fácil do queela esperava segurar a mão de Ander —

cabia na dela. Algumas mãossimplesmente cabem em outras. Isso afez pensar na mãe.

Quando Ander estendeu a mão paraa maçaneta da segunda porta, Eureka oimpediu.

Ela apontou uma faixa vermelha queatravessava a porta.

— Vai disparar o alarme.— Como acha que entrei? — Ander

abriu a porta. Não soou alarme algum.— Ninguém vai nos pegar.

— Você é muito seguro de si.O queixo de Ander se retesou.

— Você não me conhece muito bem.A porta se abria a um gramado que

Eureka nunca viu na vida. Dava para umlago circular. Do outro lado do lagoficava o planetário, um anel de janelasde vidro escurecidas pouco abaixo deseu domo. Eureka parou na beira de umcurto ressalto de concreto, pouco depoisda saída. Arrastou a ponta do sapato nagrama.

— Quer conversar?Ele olhava o lago escorregadio de

musgo emoldurado por carvalhos. Osgalhos se enroscavam para baixo como

dedos nodosos de bruxas querendo tocaro chão. Um musgo alaranjado pendiacomo aranhas em teias verdes. Como amaior parte da água estagnada nestaregião da Louisiana, mal se podia ver olago com todos os flottants de charcotrêmulo, o musgo, os nenúfares e plantasaquáticas de flores roxas formando umtapete por sua superfície. Ela sabiaexatamente como seria o cheiro ali —abundante, fétido, moribundo.

Ander andava na direção da água.Não gesticulou para ela o seguir, masEureka o fez. Ao chegar à beira do lago,

ele parou.— O que isto está fazendo aqui? —

Ele se agachou diante de um trecho dejunquilhos brancos e cremosos na beirada água. As flores faziam Eureka pensarna variedade dourada-clara que seamontoava pela caixa de correio de suaantiga casa em New Iberia todo anoperto de seu aniversário.

— Os junquilhos são comuns poraqui — disse ela, embora já tivessepassado da época das flores emtrompete ficarem tão firmes e frescas.

— Não os junquilhos — disse

Ander. — Narcisos.Ele passou os dedos pelo caule fino

da flor. Pegou um da terra e se levantoupara que a flor ficasse na altura dosolhos de Eureka. Ela percebeu otrompete amarelo-manteiga no meio. Adiferença das pétalas mais externas decor creme era tão leve que era precisoolhar bem de perto para ver. Por dentrodo trompete, um estame de ponta pretatremeu na brisa repentina. Anderestendeu a flor, como se quisessepresenteá-la a Eureka. Ela levantou amão para recebê-la, lembrando-se de

outro junquilho — outro narciso — quevira recentemente: na imagem emxilogravura da mulher chorosa do livrode Diana. Ela pensou numa frase dotrecho que Madame Blavatsky tinhatraduzido, sobre Selene encontrar opríncipe ajoelhado perto do rio em umcanteiro de narcisos.

Em vez de lhe entregar a flor, Anderesmagou as pétalas no punho fechado etrêmulo. Arrancou o caule e o jogou nochão.

— Ela fez isso.Eureka deu um passo para trás.

— Quem?Ele a olhou como se tivesse se

esquecido de sua presença ali. A tensãoem seu queixo relaxou. Os ombros seergueram e baixaram com umamelancolia resignada.

— Ninguém. Vamos nos sentar.Ela apontou um banco próximo,

entre dois carvalhos, provavelmenteonde os funcionários do museu vinhamalmoçar nos dias em que não estavaúmido demais. Pelicanos pardos emnidificação vagavam pelo caminho quelevava ao lago. Suas penas brilhavam

por causa da água musguenta. Os bicoslongos se curvavam como cabos deguarda-chuva. Eles se dispersaramquando Eureka e Ander se aproximaram.

De quem Ander estava falando? Oque havia de errado com as flores quecobriam o lago?

Enquanto Ander passava pelo banco,Eureka perguntou:

— Não queria se sentar?— Ali tem um lugar melhor.Ele apontou uma árvore que ela não

tinha visto. Os carvalhos da Louisianaeram famosos por seus galhos

retorcidos. A árvore na frente da St.John era a mais fotografada do Sul. Estecarvalho no jardim deserto do museu eraexcepcional. Era um nó maciço comgalhos tão entortados que parecia otrepa-trepa mais complicado do mundo.

Ander arrastou-se por uma teia degalhos largos e tortos — passando porcima de um, abaixando-se sob outro, atéque pareceu desaparecer. Eurekapercebeu que havia um segundo bancosecreto abaixo do dossel emaranhado degalhos. Ela viu parcialmente Anderchegar lá com agilidade, sentar-se e

apoiar os cotovelos no encosto.Eureka tentou seguir a rota que ele

fez. Começou bem, mas, depois dealguns passos, ficou entalada. Era maisdifícil do que parecia. Seu cabelo seembolou no nó de um galho. Ramosafiados cutucavam seu braço. Elapressionou, tirando o musgo do rosto.Estava a menos de 30 centímetros daclareira quando chegou a um impasse.Não conseguia enxergar como avançarou voltar.

O suor se formou na linha doscabelos. Encontre sua saída do fosso,

garota. Por que estava num fosso, antesde tudo?

— Aqui. — Ander estendeu a mãopelos galhos emaranhados. — Por aqui.

Ela pegou sua mão pela segunda vezem cinco minutos. O aperto era firme equente e ainda cabia no dela.

— Pise ali. — Ele apontou umbolsão de terra coberta de húmus entredois galhos curvos. O sapato de Eurekaafundou no solo úmido e macio. —Depois deslize o corpo por aqui.

— Tudo isso vale a pena?— Vale.

Irritada, Eureka entortou o pescoçopara o lado. Girou os ombros, depois osquadris, deu mais dois passoscautelosos, abaixou-se sob um galho —e estava livre.

Ela se endireitou, colocando-sedentro da laguna do carvalho. Escura ereservada, era do tamanho de umpequeno gazebo. Erasurpreendentemente bonito. Duaslibélulas apareceram entre Eureka eAnder. Suas asas azuis ardósia setoldaram; depois os insetos pararam,iridescentes, no galho.

— Viu? — Ander se sentounovamente.

Eureka olhou os galhos queformavam um denso labirinto em voltadeles. Não conseguia enxergar o lago dooutro lado. Por baixo, a árvore eramágica, de outro mundo. Ela seperguntou se mais alguém sabia destelocal ou se o banco passoudespercebido por gerações, desde que aárvore o tirou de vista.

Antes de se sentar, procurou a saídamais rápida. Não podia ser por ondetinha entrado.

Ander apontou um espaço nosgalhos.

— Aquela pode ser a melhor saída.— Como sabia o que eu estava...— Você parece nervosa. É

claustrofóbica? Eu prefiro ficar isolado,reservado. — Ele engoliu em seco, e suavoz baixou. — Invisível.

— Gosto de espaços abertos. — Elamal conhecia Ander, e ninguém sabiaonde ela estava.

Então, por que veio? Qualquer umdiria que era idiotice. Cat lhe daria ummurro na cara por isso. Eureka refez

mentalmente seus passos. Não sabia porque tinha aceitado a mão dele.

Ela realmente gostava de olhar paraele. Gostava da sensação de sua mão ede ouvir sua voz. Gostava de como eleandava, alternando cautela e confiança.Eureka não era uma garota que faziacoisas porque um cara gato dizia parafazer. Mas ali estava ela.

O lugar que Ander apontara pareciaser o maior espaço entre os galhos. Elase imaginou investindo para lá, correndopara o bosque depois do lago, correndoaté a ilha Avery.

Ander girou no banco. Seu joelhoroçou na coxa de Eureka. Ele o afastourapidamente.

— Desculpe.Ela olhou a própria coxa, depois o

joelho dele.— Meu Deus do céu — brincou ela.— Não, desculpe por ter roubado

você para cá.Ela não esperava por isso. As

surpresas a confundiam. A confusãotinha o histórico de torná-la cruel.

— Quer acrescentar oestacionamento do advogado? E sua

chegada muito sutil na placa de pare?— Também. Você tem razão. Vamos

completar a lista. O número desligado.Não fazer parte da equipe de corrida.

— De onde tirou aquele uniformeridículo? Acho que esse foi meu toquepreferido. — Ela queria parar de sersarcástica. Ander parecia sincero. Masse sentia nervosa por estar ali edescontava isso de uma maneira ruim.

— Venda de garagem. — Ander seabaixou e passou os dedos na relva. —Tenho uma explicação para tudo, naverdade. — Pegou uma pedra achatada e

redonda e limpou a terra de suasuperfície. — Tem uma coisa que eupreciso te dizer, mas fico meacovardando.

Eureka olhou as mãos dele polindo apedra. O que ele podia ter medo dedizer a ela? Será que ele... Será queAnder gostava dela? Poderia ver alémde seu sarcasmo e enxergar o mosaicoda garota despedaçada que ela era pordentro? Será que ele esteve pensandonela como ela pensava nele?

— Eureka, você corre perigo.O jeito como foi dito, numa

precipitação relutante de palavras, fezEureka parar. Os olhos dele eramdesvairados e preocupados. Eleacreditava no que dizia.

Ela puxou os joelhos até o peito.— O que quer dizer?Num movimento suave, Ander se

retesou e jogou a pedra. Ela disparou deum jeito impressionante pelos espaçosentre os galhos. Eureka viu a pedrasaltar pelo lago. Esquivou-se denenúfares, samambaias e manchas demusgo verde. De algum modo, sempreque roçava a superfície, a água era

clara. Foi impressionante. A pedrasaltou por uns 100 metros pelo lago ecaiu na margem lodosa do outro lado.

— Como fez isso?— É seu amigo Brooks.— Ele não faria uma pedra saltar

assim nem que a vida dele dependessedisso. — Ela sabia que Ander não sereferia a isso.

Ele se curvou para mais perto. Suarespiração fez cócegas no pescoço deEureka.

— Ele é perigoso.— Qual é o problema de vocês? —

Ela entendia por que Brooks sepreocupava com Ander. Ele era seuamigo mais antigo, cuidava dela, eAnder era um estranho bizarro que derepente apareceu em sua porta. Mas nãohavia motivo para Ander ficarpreocupado com Brooks. Todo mundogostava de Brooks. — Ele é meu amigodesde que respirei pela primeira vez.Acho que posso lidar com Brooks.

— Não pode mais.— Certo, a gente brigou outro dia.

Já fizemos as pazes. — Ela parou. —Mas isso nem é da sua conta.

— Sei que você pensa que ele é seuamigo...

— Penso porque é a verdade. —Sua voz ficava diferente sob o dossel deárvores. Ela parecia ter a idade dosgêmeos.

Ander se abaixou para pegar outrapedra. Escolheu uma boa, limpou eentregou a ela.

— Quer tentar?Ela pegou a pedra da mão dele.

Sabia jogar de uma maneira que fizessesaltar. O pai a ensinara. Ele era bomnisso, muito melhor que ela. Fazer

pedras saltarem na água era um jeito depassar o tempo no sul, um meio demarcar a ausência do tempo. Para serbom nisso, você precisava praticar, mastambém precisava desenvolver ahabilidade de identificar as pedrascertas na margem. Tinha de ser fortepara se sair bem, mas também precisavade graça, de uma leveza de toque. Elanunca havia visto um lançamento como ode Ander. Isso a irritava. Ela jogou apedra na água sem se incomodar emmirar.

A pedra não passou pelo ramo mais

próximo do carvalho. Ricocheteou numgalho e rolou de lado em um arco,parando perto de seu pé. Ander selevantou, pegando a pedra. Seus dedosroçaram o sapato de Eureka.

Novamente ele fez a pedra dançarpelo lago, ganhando velocidade,navegando por trechos absurdos entrecada salto. Caiu ao lado da primeira, dooutro lado do lago.

Eureka teve uma ideia.— Maya Cayce contratou você para

me afastar de Brooks?— Quem é Maya Cayce? —

perguntou Ander. — O nome me parecefamiliar.

— Talvez eu apresente vocês.Poderiam discutir técnicas de assédio...

— Não estou assediando você. —Ander a interrompeu, mas seu tom nãoera convincente. — Estou observandovocê. Há uma diferença.

— Prestou atenção no que vocêdisse?

— Você precisa de ajuda, Eureka.O rosto dela se avermelhou. Apesar

do que sugerira sua montanha deterapeutas passados, Eureka não

precisava de ajuda de ninguém desdeque os pais se divorciaram anos antes.

— Quem você pensa que é?— Brooks mudou — disse Ander.

— Ele não é mais seu amigo.— E quando essa metamorfose

aconteceu, pode me dizer?Os olhos de Ander se encheram de

emoção. Ele parecia relutar empronunciar as palavras.

— No sábado passado, quandovocês foram à praia.

Eureka abriu a boca, mas estava semfala. Aquele cara a esteve espionando

ainda mais do que ela sabia. Arrepiossurgiram em seus braços. Ela viu umcrocodilo erguer a cabeça verde eachatada na água. Estava acostumadacom crocodilos, é claro, mas nunca sesabia quando um deles, mesmo o queparecia mais preguiçoso, podia atacar.

— Por que acha que vocês brigaramnaquela noite? Por que acha que eleexplodiu depois que se beijaram? OBrooks que você conhece... Seu melhoramigo teria feito isso? — As palavrasde Ander saíram precipitadamente,como se ele soubesse que, se parasse,

ela o faria se calar.— Já chega, esquisitão. — Eureka

se levantou. Tinha de sair dali de algumjeito.

— Por que motivo Brooks pediudesculpas dias depois da briga? Por quedemorou tanto? É assim que um amigose comporta?

Na beira do dossel de galhos,Eureka cerrou os punhos. Deu-lhe umasensação sórdida imaginar o que Anderteria de fazer para saber de tais coisas.Ela ia colocar grades nas janelas,conseguir uma ordem de restrição.

Queria poder empurrá-lo por aquelesgalhos até as mandíbulas do crocodilo.

Mas ainda assim...Por que Brooks levou tanto tempo

para se desculpar? Por que agia de umjeito estranho desde que fizeram aspazes?

Ela se virou, ainda querendoalimentar o crocodilo com Ander. Mas,vendo-o agora, sua mente discordava docorpo. Ela não podia negar. Queriacorrer dele — e para ele. Queria jogá-lono chão — e cair sobre ele. Queriachamar a polícia — e que Ander

soubesse mais coisas dela. Queria nuncamais vê-lo. Se nunca mais o visse, elenão podia lhe fazer mal e seu desejodesapareceria.

— Eureka — disse Ander, em vozbaixa. Com relutância, ela virou oouvido bom para ele. — Brooks vaimachucá-la. E não é o único.

— Ah, é? E quem mais está nessa?A mãe dele, Aileen?

Aileen era a mulher mais doce deNew Iberia — e a única mulher que elaconhecia cuja doçura não era feita desacarina. Aileen usava saltos para lavar

os pratos, mas deixava o cabelo ficarnaturalmente grisalho, o que aconteceucedo, criando sozinha dois meninos.

— Não, Aileen não está envolvida— disse Ander, como se fosse incapazde reconhecer o sarcasmo. — Mas estápreocupada com Brooks. Na noitepassada, procurou drogas no quartodele.

Eureka revirou os olhos.— Brooks não usa drogas, e ele e a

mãe têm uma relação ótima. Por que estáinventando tudo isso?

— Na verdade, os dois brigaram aos

gritos ontem à noite. Todos os vizinhosouviram; pode perguntar a um deles, senão confia em mim. Ou pergunte a simesma: por que mais a mãe dele ficariaacordada a noite toda assandobiscoitos?

Eureka engoliu em seco. Aileenassava coisas quando estava aborrecida.Eureka teve a prova disso umas cemvezes quando o irmão mais velho deBrooks entrou na adolescência. Oinstinto deve ter vindo do mesmo lugarque levava o pai dela a nutrir a tristezacom sua culinária.

E aquela manhã mesmo, antes de asineta tocar, Brooks distribuiu umTupperware de biscoitos de creme deamendoim no corredor, rindo quando aspessoas o chamavam de filhinho damamãe.

— Não sabe do que está falando. —Ela queria dizer: como sabe dessascoisas? — Por que está fazendo isso?

— Porque posso impedir Brooks.Posso ajudá-la, se você me deixar.

Eureka meneou a cabeça. Era obastante. Estremeceu ao se abaixar entreos galhos e abrir caminho aos

empurrões, quebrando ramos earrancando o musgo. Ander não tentouimpedi-la. Pelo canto do olho, ela o viuse preparar para atirar outra pedra.

— Você era bem mais fofo antes decomeçar a falar comigo — gritou ela —,quando era só um cara que bateu no meucarro.

— Acha que eu sou fofo?— Não acho mais! — Ela se

embolava nos galhos, batendo com ódioem tudo pelo caminho. Cambaleou,cortou o joelho, empurrou.

— Quer uma ajuda?

— Me deixe em paz! Agora e parasempre!

Enfim ela se lançou pela camadafinal de galhos e parou, trôpega. O arfrio afagou seu rosto.

Uma pedra zuniu pelo espaço entreos galhos que seu corpo tinha criado.Roçou a água três vezes, como ventofarfalhando seda; depois ricocheteoupara cima, no ar. Voou cada vez maisalto... e bateu numa vidraça doplanetário, onde deixou um buracogrande e irregular. Eureka imaginoutodas as estrelas artificiais dentro do

lugar girando para o céu cinzento everdadeiro.

No silêncio que se seguiu, Anderfalou:

— Se eu te deixar em paz, você vaimorrer.

18

PÁLIDA ESCURIDÃO

— Eu me sinto uma dedo-duro — disseEureka a Cat, na sala de espera dadelegacia de Lafayette naquele fim detarde.

— É só por precaução. — Catestendeu o tubo curto de Pringles da

máquina automática, mas Eureka nãoestava com fome. — Vamos dar umadescrição de Ander, ver se cola. Nãoquer saber se eles já têm uma ficha docara? — Ela chocalhou a lata paradeslizar mais fritas e mastigou,contemplativa. — Ele fez uma ameaçade morte.

— Ele não fez uma ameaça demorte.

— “Se eu te deixar em paz, você vaimorrer?” Ele não está aqui agora e vocêestá viva, né?

As duas meninas olharam a janela

do outro lado como se lhes ocorresse aomesmo tempo que Ander poderia estarobservando. Era quinta-feira, na hora dojantar. Eureka levou menos de cincominutos, depois de deixar Anderdebaixo do carvalho, para contar portelefone e sem fôlego os detalhes de seuencontro a Cat. Agora se arrependia deter aberto a boca.

A delegacia era fria e tinha cheirode café choco e isopor. Além de umamulher negra e corpulenta que asencarava do outro lado da mesa comexemplares espalhados da

Entertainment Weekly de três Brad Pittsatrás, Eureka e Cat eram as únicas civisali. Depois do pequeno saguãoquadrado, teclados estalavam de dentrode cubículos. Havia manchas de água norevestimento de gesso do teto. Eurekaencontrou dinossauros e campeõesolímpicos de corrida em suas formas denuvem.

O céu era azul marinho com nuvenscinzentas mosqueadas. Se Eureka ficassefora muito mais tempo, Rhoda agrelharia com os filés que preparavauma noite por semana, quando o pai

trabalhava no turno do jantar doPrejean’s. Eureka odiava esses jantares,ocasião em que Rhoda sondava tudo queEureka não queria falar — tudo mesmo.

Cat lambeu os dedos, jogando a latade Pringles no lixo.

— Conclusão, você tem uma quedapor um psicopata.

— Foi por isso que me trouxe àpolícia?

Cat ergueu um dedo como umaadvogada.

— Que conste nos autos que a ré nãocontesta a alegação de psicopatia.

— Se ser estranho fosse crime, nósduas deveríamos nos entregar, já queestamos aqui.

Ela não sabia por que defendiaAnder. Ele havia mentido sobre Brooks,admitiu tê-la espionado, fez ameaçasvagas sobre ela estar em perigo. Podiaser o suficiente para dar queixa, masparecia um erro. Não foi o que Anderdisse que era perigoso nele. O perigosoera o modo como a fazia se sentir...emocionalmente descontrolada.

— Por favor, não amarele agora —disse Cat. — Eu disse a meu amigo Bill

que vamos dar um depoimento. Nós nosconhecemos em minha oficina decerâmica na noite passada. Ele já achaque sou artística demais... Não querodar bolo e provar que ele tem razão.Assim nunca mais vai me convidar parasair.

— Eu devia saber que esta era umatrama sexual. O que houve com Rodney?

Cat deu de ombros.— Hummmm.— Cat...— Olhe, você dá uma descrição

básica, eles vão fazer uma pesquisa. Se

não aparecer nada, a gente dá o fora.— Não sei se a polícia de Lafayette

tem o banco de dados de criminososmais confiável do mundo.

— Não diga isso na frente de Bill.— Os olhos de Cat ficaram sérios. —Ele é novo na polícia e é muitoidealista. Quer fazer do mundo um lugarmelhor.

— Dando em cima de uma garota de17 anos?

— Nós somos amigos. — Catsorriu. — Além do mais, você sabe quemeu aniversário é no mês que vem. Ah,

olhe... Lá está ele. — Ela se levantounum salto e começou a acenar,despejando sedução como maionese numsanduíche.

Bill era um jovem negro, alto edesajeitado, de cabeça raspada, umcavanhaque fino e uma cara de bebê. Erafofo, a não ser pela pistola presa nocinto. Piscou para Cat e acenou para asmeninas irem a sua mesa num canto dafrente da sala. Ainda não tinha seupróprio cubículo. Eureka suspirou eseguiu Cat.

— E então, qual é a história,

senhoras? — Ele se sentou em umacadeira verde-escura de rodinhas. Haviaum pote de Cup Noodles vazio na mesa;outros três estavam na lixeira ao ladodele. — Alguém está incomodandovocês?

— Na verdade, não.Eureka mudou o peso do corpo,

evitando o compromisso de se sentar emuma das duas cadeiras dobráveis. Nãogostava de estar ali. Ficava nauseada dofedor de café velho. Os policiais quezanzaram perto dela nos dias depois doacidente de Diana tinham uniformes

surrados com esse cheiro. Ela queria irembora.

O nome de Bill no crachá diziamontrose. Eureka conhecia Montroses emNew Iberia, mas o sotaque de Bill eramais Baton Rouge que bayou. Elatambém sabia, na verdade tinha certezade que Cat praticava mentalmente suaassinatura Catherine L. Montrose, comofazia com todos eles. Eureka nem mesmosabia o sobrenome de Ander.

Cat puxou uma das cadeiras paraperto da mesa de Bill e se sentou,plantando um cotovelo no apontador

elétrico, deslizando um lápissedutoramente para dentro e para fora.Bill pigarreou.

— Ela está sendo modesta — disseCat sobre o pulso da máquina. —Alguém a assedia.

Bill lançou o olhar de policial paraEureka.

— Cat disse que um amigo seuadmitiu que a está seguindo.

Eureka olhou para Cat. Não queriafazer aquilo. Cat acenava, estimulando-a. E se ela tivesse razão? E se Eureka odescrevesse e algo terrível aparecesse

na tela? Mas, se nada aparecesse, ela sesentiria melhor?

— O nome dele é Ander.Bill pegou um bloco espiral numa

gaveta. Ela o viu escrever o nome emtinta azul.

— Sobrenome?— Não sei.— É aluno da escola?Ela corou a contragosto.O sino preso à porta da delegacia

tilintou. Um casal mais velho entrou nosaguão. Sentaram-se nos lugares queEureka e Cat ocuparam há pouco. O

homem vestia calça e suéter cinza; amulher, um vestido slip com umacorrente de prata pesada. Eles eramparecidos, os dois magros e pálidos;podiam ser irmãos, possivelmentegêmeos. Cruzaram as mãos no colo aomesmo tempo e olhavam à frente. Eurekateve a sensação de que podiam ouvi-la,o que a deixou ainda mais constrangida.

— Não sabemos o sobrenome dele.— Cat se aconchegou mais perto deBill, com os braços expostosesparramados na mesa. — Mas ele élouro, cabelo meio ondulado. — Ela

imitou o cabelo de Ander com a mão. —Né, Reka?

Bill repetiu “meio ondulado” eescreveu, o que constrangeu Eurekaainda mais. Ela nunca teve tanta certezade estar perdendo tempo.

— Ele tem uma velha picape branca— acrescentou Cat.

Metade da paróquia tinha velhaspicapes brancas.

— Ford ou Chevy? — perguntouBill.

Eureka se lembrou da primeira coisaque Ander disse a ela, e de que contou

isso a Cat.— É uma Chevy — disse Cat. — E

tem um desses desodorizadorespendurados no retrovisor. Prateado. Né,Reka?

Eureka olhou as pessoas queesperavam no saguão. A mulher negraestava de olhos fechados, os pésinchados em sandálias na mesa decentro, uma lata de Fanta na mão. Amulher de cinza olhava para o lado deEureka. Seus olhos eram azuis claros, acor de olhos extremamente rara que sepode ver de longe. Lembravam a Eureka

os olhos de Ander.— Um Chevy branco é um bom

começo. — Bill sorriu com carinho paraCat. — Mais algum detalhe de quepossam se lembrar?

— Ele é um gênio em lançar pedrasna água — disse Cat. — Talvez moreperto do bayou, onde pode praticar otempo todo.

Bill riu baixinho.— Estou ficando com ciúme desse

sujeito. De certo modo, espero nuncaencontrá-lo.

Então somos três, pensou Eureka.

Quando Cat disse, “Ele tem a peleclara e olhos azuis”, Eureka ficou farta.

— Já chega — disse ela a Cat. —Vamos embora.

Bill fechou o bloco.— Duvido que haja informação

suficiente aqui para uma busca. Dapróxima vez que virem esse garoto, meliguem. Tirem uma foto dele no celular,perguntem o sobrenome dele.

— Nós desperdiçamos seu tempo?— Cat virou o lábio para baixo numminibeicinho.

— Nunca. Estou aqui para servir e

proteger — disse Bill, como se tivesseacabado de pegar o Talibã inteiro.

— Vamos tomar um sorvete debanana. — Cat se levantou,espreguiçando-se tanto que sua blusasaiu um pouco da saia, mostrando umafaixa de pele macia e morena. — Quervir?

— Obrigado, mas estou de serviço.Ainda vou ficar de serviço por um bomtempo. — Bill sorriu, e Eureka teve asensação de que isso foi dirigido a Cat.

Elas acenaram uma despedida eforam para a porta, para o carro de

Eureka, para casa, onde a esperava umacoisa conhecida como Rhoda. Aopassarem, o casal mais velho selevantou das cadeiras. Eureka reprimiuo instinto de pular para trás. Relaxe.Eles foram para a mesa de Bill.

— Posso ajudá-los? — Eurekaouviu Bill perguntar às costas dela. Deuuma última olhada no casal, mas só viu aparte de trás grisalha das cabeças.

Cat pegou o braço de Eureka.— Bill... — Ela cantarolou com

desejo ao empurrar a barra de metal daporta.

O ar estava frio e cheirava comouma lixeira incendiada. Eureka queriaestar enroscada na cama, de portafechada.

— Bill é legal — disse Cat, quandoelas atravessavam o estacionamento. —Não é?

Eureka destrancou Magda.— Ele é legal.Legal o bastante para fazer a

vontade delas — e por que as levou asério? Elas não deviam ter ido à policia.Ander não era um caso de assédioevidente. Ela não sabia o que ele era.

Ele estava do outro lado da rua, depé, olhando para ela.

Eureka ficou paralisada ao se sentarno banco do motorista e olhar pelajanela. Ele se recostou no tronco de umcinamomo, de braços cruzados. Cat nãopercebeu. Mexia na franja pelo espelhodo para-sol do carro.

A uns 10 metros, Ander pareciafurioso. Sua postura era rígida. Os olhoseram tão frios quanto na hora em quepegou Brooks pela gola. Deveria sevirar e correr de volta à delegacia paracontar a Bill? Não, Ander teria ido

embora no momento em que ela passassepela porta. Além disso, também tinhamedo de se mexer. Ele sabia que elaprocurou a polícia. O que faria arespeito?

Ele a encarou por um momento,depois baixou os braços. Partiu derompante pelo arbusto que margeava oestacionamento do Rei dos Donuts, dooutro lado da rua.

— Tem vontade de ligar o carroainda este ano? — perguntou Cat,estalando os lábios com gloss.

No instante que Eureka olhou para

Cat, Ander desapareceu. Quando elavoltou a olhar o estacionamento, estavavazio, a não ser por dois policiaissaindo da loja de donuts com sacos paraviagem. Eureka soltou a respiração; deua partida em Magda; ligou o aquecedorpara espantar o frio, o ar úmido quetinha baixado como uma nuvem dentrodo carro. Não queria mais sorvete debanana.

— Tenho de ir para casa — disseela a Cat. — É noite de Rhoda nacozinha.

— Então vocês todos têm de sofrer.

— Cat entendia, ou pensava entender.Eureka não queria discutir o fato de queAnder sabia que elas tinham acabado detentar entregá-lo.

Pelo espelho do para-sol, Catpraticava os melhores momentos dasexpressões matadoras que acabara deusar com Bill.

— Não desanime — disse ela,enquanto Eureka saía do estacionamentoe pegava o retorno para a Evangeline,onde Cat tinha deixado o próprio carro.— Só espero estar com você na próximavez em que o vir. Vou arrancar a

verdade dele. Extraí-la à força.— Ander sabe mudar de assunto

quando o tema é ele mesmo — disseEureka, pensando que ele sabia aindamelhor como desaparecer.

— Que adolescente não quer falarde si mesmo? Ele não é páreo para Cat.— Ela aumentou o rádio, depois mudoude ideia e abaixou tudo. — Nemacredito que ele disse que você correperigo. É tipo, “Hummm, devo começarcom o eficiente O Paraíso sabe queperdeu um anjo? Não, vou matar agarota de susto mesmo”.

Elas passaram por algumas quadrasde sobrados dilapidados; rodaram peloquiosque drive-thru de daiquiri, ondeuma garota metia os peitões pela janelae entregava copos de isopor tamanhogalão a meninos de calça arriada. Issoera paquerar. O que Ander fez aquelamanhã, e pouco tempo antes, do outrolado da rua, era diferente.

— Ele não está dando em cima demim, Cat.

— Ah, sem essa — soltou Cat. —Você sempre, tipo desde que tinha 12anos, tem esse ar de garota sexy e deprê

que os caras acham irresistível. Você éo tipo de doida com que todo cara querestragar a vida.

Agora elas tinham saído da cidade,entrando na estrada ventosa que levava àEvangeline. Eureka abriu a janela.Gostava do cheiro daquela estrada ànoite, como chuva caindo no jasmim defloração noturna. Grilos cantavamantigas canções no escuro. Eladesfrutava da combinação de ar frioroçando em seus braços e o calorsoprando nos pés.

— E por falar nisso — disse Cat —,

Brooks me interrogou a respeito de seu“estado emocional” hoje.

— Brooks parece meu irmão —falou Eureka. — Sempre foi protetor.Talvez esteja um pouco mais intensodesde Diana e... todo o resto.

Cat apoiou os pés no painel.— É, ele perguntou sobre Diana, só

que — ela parou — foi estranho.Elas passaram por estradas de terra

e ferrovias antigas, cabanas de torasvedadas com lama e musgo. Garçotasbrancas se deslocavam pelas árvoresescuras.

— O quê? — disse Eureka.— Ele chamou de... Lembro porque

ele disse isso duas vezes... “Oassassinato de Diana”.

— Tem certeza? — Eureka e Brooksconversaram mil vezes sobre o quehouve e ele nunca tinha usado aexpressão.

— Eu lembrei a ele da ondaaberrante — disse Cat, e Eureka engoliuo gosto amargo que vinha sempre queouvia essas palavras. — Depois eleficou todo, “Bem, exatamente: ela foiassassinada por uma onda aberrante”.

— Cat deu de ombros enquanto Eurekaparava no estacionamento da escola, aolado do carro de Cat. — Isso me deuarrepios. Tipo quando ele se fantasioude Freddy Krueger três anos seguidos noHalloween.

Cat saiu do carro, depois olhou paraEureka, esperando que ela risse. Mas ascoisas que antigamente eram engraçadastinham escurecido e as coisas quecostumavam ser tristes agora pareciamabsurdas, então Eureka não sabia maiscomo reagir.

De volta à estrada principal, indo

para casa, faróis iluminaram oretrovisor de Eureka. Ela ouviu a buzinafraca de Cat enquanto seu carro davauma guinada para a esquerda paraultrapassá-la. Cat jamais criticaria acautela com que Eureka dirigiaultimamente — mas também não ficariaempacada na traseira dela. O motorroncou, e as lanternas traseiras de Catdesapareceram numa curva.

Por um momento, Eureka seesqueceu de onde estava. Pensou emAnder atirando as pedras e quis queDiana ainda estivesse viva para que

Eureka pudesse lhe contar sobre ele.Mas ela se foi. Brooks colocou a

questão com muita simplicidade: umaonda a assassinou.

Eureka viu a curva fechada à frente.Tinha passado por ela de carro umas milvezes. Mas enquanto seus pensamentosvagavam, a velocidade do carroaumentou e ela entrou na curvaacelerada demais. Seus pneusesbarraram nos sulcos do canteirocentral por um instante, antes de elaendireitar o carro. Ela piscourapidamente, como se tivesse acordado

assustada. A estrada era escura; nãohavia luzes de rua nos arredores deLafayette. Mas o que era...?

Ela semicerrou os olhos. Algobloqueava a estrada. Será que Catestava de brincadeira? Não, os faróis deEureka revelaram um sedã Suzuki cinzaatravessado no meio da estrada.

Eureka pisou no freio. Não seria osuficiente. Girou o volante para adireita, por uma vala rasa. Magda paroucom o capô 1 metro e meio para dentrodo canavial.

O peito de Eureka ofegava. O cheiro

de borracha queimada e escapamentolhe deu ânsias de vômito. Havia algomais no ar — o cheiro de citronela,estranhamente familiar. Eureka tentourespirar. Quase bateu naquele carro.Quase sofreu seu terceiro acidente emseis meses. Ela pisou no freio a 3 metrosde distância e provavelmente destruiu oalinhamento. Mas estava bem. O outrocarro estava bem. Ela não bateu emninguém. Ainda podia chegar em casa atempo para o jantar.

Quatro pessoas apareceram nassombras do outro lado da estrada.

Passaram pelo Suzuki. Seguiam nadireção de Magda. Aos poucos, Eurekareconheceu o casal grisalho dadelegacia. Havia outros dois com eles,também vestidos de cinza, como se oprimeiro casal tivesse se multiplicado.Ela podia vê-los com muita clareza noescuro: o corte do vestido da mulher dadelegacia; a linha dos cabelos dohomem que era novo no grupo; os olhosclaros, muito claros da mulher queEureka não vira antes.

Ou tinha visto? De algum modo, eleslhe pareciam conhecidos, como uma

família que você vê pela primeira veznum reencontro de ex-alunos. Havia algotangível no ar em volta daquele grupo.

E então ela percebeu: eles não eramsó pálidos. Eles cintilavam. A luzdelineava a beira de seus corpos, ardiade seus olhos. Os braços eramentrelaçados como elos de uma corrente.Caminhavam próximos, e, ao fazeremisso, parecia que o mundo todo sefechava sobre Eureka. As estrelas nocéu, os galhos das árvores, a própriatraqueia. Ela não se lembrava de terestacionado o carro, mas ali estava. Não

lembrava como voltar a dirigir. A mãosacudia a alavanca de câmbio. Omínimo que podia fazer era fechar osvidros.

E então, no escuro atrás de Eureka,uma picape roncou na curva. Seus faróisestavam apagados, mas as luzes seacenderam quando o motorista pisou noacelerador. Era um Chevy branco e sedirigia diretamente para eles, mas naúltima hora deu uma guinada, errandoMagda por pouco...

E mergulhou no Suzuki.O carro cinza se entortou em volta

do para-choque da picape, depoisdeslizou para trás, como se estivesse nogelo. Rolou uma vez, aproximando-se deMagda, Eureka e o quarteto de pessoascintilantes.

Eureka se abaixou sob o painelcentral. Seu corpo se sacudia. Ela ouviuo baque do carro caindo capotado, opara-brisa esmagado. Ouviu os pneus dapicape cantando, depois silêncio. Omotor da picape morreu. Uma portabateu. Passos esmagaram cascalho noacostamento. Alguém batia no vidro deEureka.

Era Ander.A mão dela tremia ao abrir o vidro.Ele usou os dedos para forçar o

vidro para baixo mais rapidamente.— Saia daqui.— O que está fazendo aqui? Você

acabou de bater no carro daquelaspessoas!

— Você precisa sair daqui. Eu nãomenti para você mais cedo.

Ele olhou por sobre o ombro aestrada escura. As pessoas de cinzadiscutiam perto do carro. Olharam paraAnder com olhos cintilantes.

— Deixe-nos! — gritou a mulher dadelegacia.

— Deixem-na em paz! — gritouAnder em resposta, friamente. E quandoa mulher riu, Ander colocou a mão nobolso do jeans. Eureka viu o clarão deprata em seu quadril. No início pensouque fosse uma arma, mas Ander sacavaum estojo prateado mais ou menos dotamanho de uma caixa de joias. Apontoupara as pessoas de cinza. — Para trás.

— O que é isso na mão dele? —perguntou o homem mais velho,aproximando-se do carro.

Atrás dele, o outro falou:— Certamente não é o...— Vocês a deixarão em paz —

avisou Ander.Eureka ouviu a respiração de Ander

sair acelerada, a tensão em sua voz.Enquanto ele mexia no fecho da caixa,um ofegar saiu do quarteto na estrada.Eureka percebeu que eles sabiamexatamente o que havia na caixa — eisso os apavorava.

— Criança — alertou um doshomens maldosamente. — Não abuse doque não compreende.

— Talvez eu compreenda.Devagar, Ander abriu a tampa. Um

brilho verde ácido emanava de dentroda caixa, iluminando seu rosto e oespaço escuro ao redor. Eureka tentoudiscernir o conteúdo, mas a luz verdeem seu interior era quase ofuscante. Umodor pungente e indistinto atingiu suasnarinas, dissuadindo-a de dar umaolhada mais atenta.

Os quatro que estiveram avançandoagora davam vários passos rápidos paralonge. Olhavam a caixa e a luz verdecom um temor doentio.

— Não pode tê-la se estivermosmortos — disse uma voz de mulher. —Sabe disso.

— Quem são essas pessoas? —disse Eureka a Ander. — O que temdentro da caixa?

Com a mão livre, ele pegou Eurekapelo braço.

— Estou implorando. Saia daqui.Você precisa sobreviver. — Elecolocou a mão dentro do carro, onde ade Eureka estava rígida no câmbio.Apertou os dedos dela e engrenou a ré.— Pise no acelerador.

Ela fez que sim, apavorada, depoisdeu a ré desajeitadamente, voltando aoponto de origem. Dirigiu no escuro e nãose atreveu a olhar para trás, para a luzverde que pulsava pelo espelhoretrovisor.

De: [email protected]: [email protected]: [email protected]: Sexta-feira, 11 de outubro de2013, 12:40hsAssunto: segunda salva

Cara Eureka,Voilà! Agora estou

acelerando e devo teroutras passagens para vocêamanhã. Começo a meperguntar se este seria umantigo romance de sexo eviolência. O que acha?

O príncipe tornou-se rei.Choroso, empurrou a pirafunerária em brasa do paino mar. Depois as lágrimassecaram, e ele me imploroupara ficar.

Com uma reverência,meneei a cabeça. “Devoretornar a minhasmontanhas, voltar a meulugar com minha família. Lá

é o meu lugar.”“Não”, disse Atlas

simplesmente. “Seu lugaragora é aqui. Você ficará.”

Embora estivesseinquieta, não podia recusara ordem de meu rei.Enquanto a fumaça do fogosacrificial clareava,espalhou-se pelo reino: ojovem rei Atlas tomara umanoiva.

E assim foi: soube queeu seria rainha porintermédio de um boato.Ocorreu-me que as bruxasfofoqueiras talvez tivessem

falado a verdade.Se o amor verdadeiro

tivesse entrado na história,eu teria trocado feliz minhavida na montanha por ele.Ou, se sonhasse com poder,talvez pudesse terdesprezado a falta de amor.Eu tinha aposentos luxuososno palácio, onde cadadesejo meu era atendido. Orei Atlas era bonito —distante, mas não cruel.Mas, quando se tornou rei,falava menos comigo e apossibilidade de um diaamá-lo começou a bruxulear

como uma miragem.Foi marcada a data do

casamento. Atlas ainda nãohavia me feito a proposta.Fiquei confinada a meusaposentos, uma prisãoesplêndida cujas grades deferro eram recobertas develudo. Sozinha em meuquarto de vestir numanoitecer, pus o vestido denoiva e a lustrosa coroa deoricalco que usei quando fuiapresentada ao reino.Lágrimas idênticas seacumulavam em meusolhos.

“As lágrimas combinamainda menos com você doque uma coroa comum”,disse uma voz atrás demim.

Virei-me e vi uma figurasentada nas sombras.“Pensei que ninguémpudesse entrar.”

“Vai se acostumar comseus equívocos”, disse afigura nas sombras. “Você oama?”

“Quem é você?”,perguntei. “Venha à luz,onde eu possa vê-lo.”

A figura se levantou da

cadeira. A luz das velasacariciava suas feições. Eleme parecia familiar, comose fosse um fragmento desonho.

“Você o ama?”, repetiuele.

Era como se alguémtivesse roubado o ar demeus pulmões. Os olhos doestranho me deixavam emtranse. Eram da cor daangra onde eu nadava demanhã quando menina. Nãopude deixar de querermergulhar neles.

“Se amo?”, sussurrei.

“Sim. Amor. É o quetorna a vida digna de servivida. O que chega paranos levar aonde precisamosir.”

Meneei a cabeça,embora soubesse que issoera traição ao rei, passívelde pena de morte. Comeceia me arrepender de tudo. Orapaz diante de mim sorriu.

“Então, há esperança.”Depois de eu ter

cruzado a fronteira azul deseus olhos, nunca mais quisachar o caminho de volta.Mas logo percebi que havia

invadido um reino perigoso.“Você é o príncipe

Leandro”, sussurrei,situando suas refinadasfeições.

Ele confirmourigidamente. “De voltadepois de cinco anosviajando em nome daCoroa... Embora meupróprio irmão tenha feito oreino pensar que me perdino mar.” Ele abriu umsorriso que eu tinha certezade já ter visto. “E entãovocê, Selene, teve de sair eme descobrir.”

“Bem-vindo ao lar.”Ele saiu das sombras,

puxou-me para ele e mebeijou com uma liberalidadeímpar. Até aquelemomento, eu não conheciao êxtase. Teria ficadotrancada no beijo dele parasempre, mas voltou-meuma lembrança. Afastei-me,recordando-me de umaconversa das bruxas,desgastada pelo tempo.

“Pensei que vocêamava...”

“Nunca amei atéencontrar você.” Ele falava

com a sinceridade de umaalma que eu sabia que nãopodia duvidar jamais. Desdeaquele momento até oinfinito, nada nos importariaalém de nós dois.

Só uma coisa secolocava entre nós e umuniverso de amor...

Beijocas,Madame B, Gilda e

Brunhilda

19

NUVENS DE TEMPESTADE

Na sexta de manhã, antes da sineta,Brooks esperava perto do armário deEureka.

— Você não estava no Clube deLatim.

As mãos dele estavam enfiadas nos

bolsos, e ele parecia estar esperando alihá algum tempo. Bloqueava o armárioao lado do de Eureka, que pertencia aSarah Picou, uma garota tãoterrivelmente tímida que nunca diria aBrooks para sair, mesmo que issosignificasse ir para a aula sem os livros.

Rhoda insistiu que ia chover e,embora a ida à escola fosse clara eluminosa, Eureka vestia a capa cinzaurze. Gostava de se esconder sob ocapuz. Não dormiu e não queria ir àescola. Não queria falar com ninguém.

— Eureka. — Brooks a viu girar a

combinação do cadeado. — Fiqueipreocupado.

— Estou bem — disse ela. — Eatrasada.

O suéter verde de Brooks era justodemais. Ele usava sapatos novos ebrilhantes. O corredor estava apinhadode alunos gritalhões, e a semente de umador de cabeça se abria e germinava umbroto afiado no cérebro de Eureka.

Cinco minutos os separavam dasineta, e sua aula de inglês aconteceriadois andares acima, do outro lado doprédio. Ela abriu o armário e jogou

alguns fichários. Brooks pairava sobreela como um monitor de filmes deadolescente dos anos 1980.

— Claire ficou doente ontem à noite— disse ela — e Wiliam vomitou hojede manhã. Rhoda saiu, então tive de... —Ela gesticulou, como se ele devesseentender o escopo de suasresponsabilidades sem precisar dizermais nada.

Os gêmeos não estavam doentes.Eureka é que teve uma cólica por todo oser, do tipo que costumava ter antes deprovas de cross-country quando era

caloura. Ela não parava de reviver oencontro com Ander e sua picape, osquatro pedestres do inferno reluzindo noescuro — e a misteriosa luz verde queAnder virara para eles como uma arma.Ela pegou o celular três vezes à noite,querendo ligar para Cat. Queria soltar ahistória, se livrar dela.

Mas não conseguiu falar comninguém. Depois de ir para casa, Eurekapassou dez minutos tirando cana-de-açúcar da grade de Magda. Depoiscorreu até seu quarto, gritou com Rhodaque estava atolada demais de dever de

casa para pensar em comer. “Atolada noatoleiro” era uma piada que fazia comBrooks, mas nada mais pareciaengraçado. Olhou pela janela,imaginando que cada farol era umpsicopata pálido procurando por ela.

Quando ouviu os passos de Rhodana escada, Eureka pegou seu livro degeofísica e o abriu bem a tempo deRhoda entrar com um prato de filé epurê de batata.

— É melhor que não estejaenrolando por aqui — disse Rhoda. —Você ainda está andando em gelo fino

depois do que aprontou na Dra. Landry.Eureka mostrou o livro.— Chama-se dever de casa. Dizem

que é muito viciante, mas acho queposso lidar com isso, se só experimentarnas festas.

Ela não conseguiu comer. À meia-noite, surpreendeu Squat com o tipo derefeição que um cachorro pediria nocorredor da morte. Às 2h, ouviu o paichegar em casa. Foi rapidamente à portado quarto antes de se conter e não correrpara os braços dele. Não havia nada queele pudesse fazer por seus problemas, e

ele não precisava de outro peso que oarrastasse para baixo. Foi quando olhouo e-mail e encontrou a segunda traduçãode Madame Blavatsky.

Desta vez, quando Eureka leu Olivro do amor, esqueceu-se de refletirsobre como a história podia se aplicar aDiana. Achou uma simetria estranhademais entre seus problemas e os deSelene. Ela sabia como era ter umgaroto se metendo em sua vida do nada,deixando-a assombrada e querendomais. Os dois meninos até tinham nomesparecidos. Mas, ao contrário do sujeito

da história, o garoto na mente de Eurekanão a tirou do chão para beijá-la. Elebateu no carro dela, seguiu-a por todolado e disse que ela corria perigo.

Enquanto raios de sol hesitantesroçavam sua janela naquela manhã,Eureka percebeu que a única pessoa aquem podia se voltar com todos os seusproblemas era Ander. E não cabia a eladecidir quando o veria.

Brooks se encostoudespreocupadamente no armário deEureka.

— Isso fez você surtar?

— O quê?— Os gêmeos adoecerem.Eureka o encarou. Os olhos dele não

sustentaram os dela por mais de umsegundo. Eles fizeram as pazes — masteria sido para valer? Parecia queresvalavam numa guerra eterna, de ondese pode bater em retirada, mas nuncatermina realmente, uma guerra ondevocê fez o máximo para não ver obranco dos olhos do adversário. Eracomo se tivessem se tornado estranhos.

Ela se abaixou atrás da porta doarmário, separando-se de Brooks. Por

que os armários eram cinza? A escola jánão parecia uma prisão sem essesdetalhes?

Brooks empurrou a porta do armáriocontra o de Sarah Picou. Não haviabarreira entre eles.

— Sei que você viu Ander.— E agora está chateado porque eu

enxergo?— Isso não é engraçado.Eureka ficou admirada por ele não

rir. Eles agora nem podiam brincar?— Sabe, se perder mais duas

reuniões do Clube de Latim — disse

Brooks —, eles não vão colocar seunome no anuário na página do clube evocê não vai conseguir entrar emuniversidades.

Eureka meneou a cabeça como se otivesse ouvido mal.

— Hummmm... Hein?— Desculpe. — Ele sorriu, o rosto

relaxou, e, por um momento, nada eraestranho. — Quem liga para o Clube deLatim, né? — Depois apareceu umbrilho em seus olhos, uma presunção queera nova. Ele abriu o zíper da mochila epegou um saco Ziploc cheio de

biscoitos. — Minha mãe está numa ondade assar ultimamente. Quer um? — Eleabriu o saco e estendeu para ela. Ocheiro de aveia e manteiga revirou seuestômago. Ela se perguntou o quemanteve Aileen acordada e assando nanoite anterior.

— Não estou com fome.Eureka olhou o relógio. Quatro

minutos para a sineta tocar. Quando foipegar o livro de inglês no armário, umfolheto laranja flutuou até o chão.Alguém deve ter deixado escapar pelasfrestas.

MOSTRE SUA CARA.QUINTO LABIRINTO DE MILHO

ANUAL DO TREJEAN.SEXTA-FEIRA, 11 DE OUTUBRO, 7 DA

NOITE.TRAJE DE ASSUSTAR OS CORVOS.

Brad Trejean fora o veterano maispopular da Evangeline no ano anterior.Ele era alto e rebelde, ruivo, sedutor. Amaioria das meninas, inclusive Eureka,ficou a fim dele em algum momento. Eracomo um trabalho que elas faziam emturnos, embora Eureka tivesse desistidoda primeira vez que Brad, que sabia de

futebol universitário e mais nada, falourealmente com ela.

Todo mês de outubro, os pais deBrad iam à Califórnia, e ele dava amelhor festa do ano. Os amigosconstruíam um labirinto de feno ecartolina pintada com spray e oarmavam no quintal enorme dos Trejeanno bayou. As pessoas nadavam e, com odecorrer da festa, ficavam nuas. Bradpreparava seu drinque característico, aTrejean Colada, que era horrível e forteo suficiente para garantir uma festaépica. Lá pelas tantas da noite, sempre

havia um jogo só para veteranos de EuNunca, cujos detalhes exagerados aospoucos vazavam para o resto da escola.

Eureka percebeu que a irmã maisnova de Brad, Laura, dava continuidadeà tradição. Ela era do segundo ano,menos famosa que Brad. Mas era legal enão era maníaca por grife, ao contrárioda maioria das outras meninas dosegundo ano. Começou no time de vôlei,então ela e Eureka costumavam se verno vestiário depois da aula.

Nos últimos três anos, Eureka sabiada festa pelo Facebook um mês antes.

Ela e Cat saíam para comprar as roupasno fim de semana anterior. Ela nãoentrava no Facebook há uma eternidadee agora que pensou nisso, lembrou-se deum torpedo de Cat propondo fazercompras no domingo passado depois daigreja. Eureka estava preocupadademais com sua briga com Brooks parapensar em moda.

Ergueu o folheto e arriscou umsorriso. No ano passado, ela e Brookstiveram uma de suas noites maisdivertidas nessa festa. Ele levou lençóispretos de casa, e eles ficaram invisíveis

para assombrar o que era conhecidocomo o Labirinto de Milho. Apavoraramalguns veteranos que estavam emposições comprometedoras.

“Sou o fantasma da visão de seupai.” Brooks tinha falado com a voztrêmula e densa a uma garota com ablusa meio desabotoada. “Amanhã vocêirá para o convento.”

“Sai pra lá!”, gritou o companheirodela, mas parecia assustado. Era ummilagre que ninguém tivesse deduzidoquem estava assombrando o Labirinto.

— O espiritus interruptus vai

voltar este ano? — Eureka acenou com ofolheto.

Ele o pegou da mão dela. Não olhou.Parecia ter sido esbofeteado.

— Você é arrogante demais — disseele. — Aquele psicopata quer machucarvocê.

Eureka gemeu, depois respirou umaonda de patchouli que só podiasignificar uma coisa:

Maya Cayce se aproximava. Ocabelo dela estava trançado em umcomplicado e longo rabo que caía delado, e os olhos tinham kohl demais. Ela

pôs um piercing no septo nasal desde aúltima vez que Eureka a viu. Um anelpreto mínimo laçava seu nariz.

— É dessa psicopata que estáfalando? — perguntou Eureka a Brooks.— Por que não me protege? Dê um pé nabunda nela.

Maya parou na porta do banheiro.Bateu a trança para o outro lado e olhoupor sobre o ombro para eles. Fazia comque o banheiro parecesse o lugar maissexy do mundo.

— Recebeu minha mensagem, B?— Recebi.

Brooks fez que sim, mas não pareciainteressado. Seu olhar sempre voltava aEureka. Será que ele queria deixá-lacom ciúme? Não estava dando certo.Não mesmo.

Maya piscou pesadamente, e seusolhos, quando se abriram, estavam emEureka. Ela encarou por um momento,fungou, depois entrou no banheiro.Eureka a viu desparecer quando ouviualgo sendo partido.

Brooks tinha rasgado o folheto.— Você não vai a essa festa.— Não banque o dramático.

Eureka bateu a porta do armário egirou — e deu de cara com Cat, quesurgia no corredor, com o cabelorevirado e a maquiagem borrada, comose tivesse sido interrompida noLabirinto. Mas, conhecendo Cat, elapodia ter passado uma horaaperfeiçoando aquele olhar esta manhã.

Brooks segurou Eureka pelo pulso.Ela virou para olhá-lo com ferocidade, enão foi nada parecido com as brigas queeles tinham quando crianças. Os olhosdela eram pontos de exclamação deraiva. Nenhum dos dois falou.

Aos poucos, ele soltou seu pulso,mas enquanto ela se afastava, gritou:

— Eureka, confie em mim. Não vá aessa festa.

Do outro lado do corredor, Catofereceu o cotovelo a Eureka, quepassou e enlaçou o braço na amiga.

— O que ele está gritando? Na certaalguma coisa idiota, porque a sineta tocadaqui a dois minutos e eu prefiro muitomais fofocar sobre o último e-mail daMadame Blavatsky. Quente. — Ela seabanou e arrastou Eureka para obanheiro.

— Cat, espere. — Eureka olhou obanheiro. Não precisava se ajoelhar eprocurar se Maya Cayce estava em umdos reservados. O patchouli erapungente.

Cat largou a bolsa na pia e pegou umbatom.

— Só espero que tenha uma cena desexo real no próximo e-mail. Odeiolivros que são só preliminares. Querodizer, adoro as preliminares, mas a certaaltura é tipo vamos nessa. — Ela olhoupara Eureka pelo espelho. — Que foi?Está pagando uma boa grana por isso.

Madame B precisa entregar amercadoria.

Eureka não ia falar do Livro doamor na frente de Maya Cayce.

— Eu não... Na verdade ainda nãoli.

Cat semicerrou os olhos.— Cara, tá perdendo.Uma descarga foi acionada. Uma

porta estalou. Maya Cayce saiu de umreservado, empurrando-se entre Eurekae Cat para ficar diante do espelho eajeitar o cabelo comprido e preto.

— Quer emprestado um pouco do

meu gloss de puta, Maya? — disse Cat,vasculhando a bolsa. — Ah, esqueci.Você pegou todos os tubos do mundo.

Maya ainda alisava a trança.— Não se esqueça de lavar as mãos

— incitou Cat.Maya abriu a torneira e pegou o

sabonete por cima de Cat. Ao passá-lonas mãos, olhou Eureka pelo espelho.

— Eu vou à festa com ele, e nãovocê.

Eureka quase engasgou. Foi por issoque Brooks disse a ela para não ir?

— Eu tenho outros planos de

qualquer forma. — Ela vivia numhematoma em que tudo doía o tempotodo, uma dor exacerbando a outra.

Maya fechou a torneira, sacudiu asmãos molhadas para o lado de Eureka esaiu do banheiro como uma ditadoradeixando um palanque.

— Mas o que foi isso? — Cat riuquando Maya Cayce tinha ido embora.— Nós vamos à festa. Já até dei checkin no Foursquare.

— Você disse a Brooks que viAnder ontem?

Cat piscou.

— Não. Eu mal falei com ele.Eureka olhou para Cat, que

arregalou os olhos e deu de ombros. Catgaguejava quando mentia; Eureka sabiadisso depois de anos das duas sendoflagradas pelos pais. Mas como Brookspoderia saber que ela vira Ander?

— Mais importante — disse Cat. —Não vou deixar que Maya Cayce excluavocê da melhor festa do ano. Preciso deminha escudeira. Estamos entendidas?— A sineta tocou, e Cat foi para a porta,dizendo por sobre o ombro: — Vocênão tem poder de escolha nesta questão.

Vamos nos vestir para atrair os corvos.— Nós temos de assustar os corvos,

Cat.Cat sorriu.— Então você sabe ler.

20

EU NUNCA

Os Trejean moravam numa fazendarestaurada no rico distrito sul da cidade.Algodoais flanqueavam o pequenobairro histórico. As casas eram de doisandares, com colunatas, aninhadas emmantos de azaleias cor-de-rosa,

sombreadas por carvalhos anteriores àPrimeira Guerra Mundial. O bayou securvava pelo quintal dos Trejean comoum cotovelo, proporcionando uma vistadupla da água.

Todo o último ano e os calourosbem relacionados foram convidados aoLabirinto de Milho. Era costume pegarum barco e parar na festa no lado dobayou. No ano anterior, Eureka e Catfizeram a viagem no frágil barco amotor, com um leme rangente, que oirmão mais velho de Brooks, Seth, tinhadeixado quando foi para a LSU. O

percurso congelante de meia hora deNew Iberia pelo bayou foi quase tãodivertido quanto a festa.

Aquela noite, como Brooks não erauma opção, Cat estendeu as antenas,procurando outra carona. Enquanto sevestia, Eureka não pôde deixar deimaginar Maya Cayce sentada ao ladode Brooks no barco, plugando seu iPodpesado como aço nos alto-falantesportáteis, acariciando o bíceps deBrooks. Imaginou o cabelo de Mayavoando para trás como os tentáculos deum polvo preto enquanto o barco roçava

a superfície da água.No fim, Cat conseguiu uma carona

de Julien Marsh, cujo amigo Tim tinhauma balsa verde-menta dos anos 1960com lugares vagos. Às 20h, quando apicape de Julien parou na frente da casade Eureka, o pai estava parado à janela,bebendo um resto de café frio na canecamarrom que antigamente dizia I LoveMom, antes que o lava-louças jateasse apintura.

Eureka fechou a capa de chuva paracobrir a gola de strass de um vestidoque Cat tinha passado cinco minutos no

Facetime dizendo que não era depiriguete. Ela pegou emprestado ovestido de cetim do armário de Catnaquela tarde, embora ficasse horrívelde marrom. Cat estreava um vestidoparecido, mas laranja. Elas iam defolhas de outono. Cat disse que gostavadas cores fortes e sensuais; Eureka nãoverbalizou seu prazer pervertido devestir-se como um objeto com umasegunda vida quando este estava morto.

O pai ergueu uma das persianas paraolhar o Ford de Julian.

— Quem está na picape?

— Você conhece Cat, sabe como elaé.

Ele suspirou, exausto, recém-saídodo turno no restaurante. Cheirava acamarão. Enquanto Eureka passava pelaporta, ele disse:

— Você sabe que quer algo melhordo que esse tipo de garoto, não é?

— Essa picape não tem nada a vercomigo. É uma carona para a festa, sóisso.

— Se alguém tiver alguma coisa aver com você — disse o pai —, vaitrazê-lo aqui? Vou conhecê-lo? — Seus

olhos baixaram, um olhar que os gêmeostinham quando estavam prestes a chorar,como uma nuvem inchada rolando dogolfo. Ela nunca havia notado que elesherdaram aquele tipo de eventometeorológico dele. — Sua mãe sóqueria o melhor para você.

— Eu sei, pai. — A frieza com queEureka pegou a bolsa a fez vislumbraras profundezas da raiva e da confusãoarraigadas dentro dela. — Tenho de ir.

— Volte à meia-noite — disse o pai,enquanto ela passava pela porta.

A balsa estava quase cheia quando

Eureka, Cat e Julien chegaram ao píer dafamília de Tim, um rapaz louro emagrelo, com um arco de sobrancelhas,mãos grandes e um sorriso constantecomo a Chama Eterna. Eureka nuncafora da turma dele na escola, mas eramamigos da época em que Eureka ia afestas. A fantasia dele era uma camisade futebol da LSU. Ele estendeu a mãopara firmá-la quando ela subiu na balsa.

— É bom ver você, Boudreaux.Guardei lugares para os três.

Eles se espremeram ao lado de umaslíderes de torcida, alguns garotos do

teatro e um cara da equipe de cross-country chamado Martin. O resto tinhausado a balsa no fim de semana anterior,Eureka percebeu pelas piadas quepartilhavam. Era a primeira vez no anoque ela saía com alguém além de Cat ouBrooks.

Ela achou o canto de trás de umbanco, onde se sentia menosclaustrofóbica. Lembrou-se do queAnder tinha dito debaixo da árvore arespeito de gostar de estar isolado. Elanão podia ser mais diferente. O mundotodo era um espaço apertado demais

para Eureka.Estendeu a mão para tocar o bayou,

reconfortando-se com suaatemporalidade frágil. Havia poucachance de aparecer ali uma onda maiorque a esteira do barco. Ainda assim, suamão tremia na superfície da água, queera mais fria do que ela pensou queseria.

Cat se sentou ao lado dela, no colode Julien. Enquanto desenhava umasfolhas no rosto de Eureka com umdelineador dourado, inventou umamúsica para o Labirinto de Milho com a

melodia de “Love Stinks”, acompanhadapor uma batida no peito de Julien.

— Labirinto, yeah, yeah!Uma embalagem de seis cervejas

apareceu enquanto Tim enchia o tanque.Tampas estouraram pelo barco comofogos de artifício. O ar tinha cheiro degasolina, besouros aquáticos mortos e oscogumelos que surgiam do solo pelamargem. Uma lontra de pelo liso cortouuma onda mínima ao passar por eles,nadando no bayou.

Enquanto a balsa deixava lentamenteo píer, uma brisa acre bateu no rosto de

Eureka, e ela se abraçou. Os garotos aolado dela se aconchegaram e riram, nãoporque algo engraçado haviaacontecido, mas porque estavam juntos eansiosos pela noite à frente.

Quando chegaram à festa, eles ouestavam bêbados, ou fingiam estar.Eureka aceitou a ajuda de Tim para sairda balsa. A mão dele na dela era seca egrande. Deu-lhe uma onda de desejo,porque não era nada parecida com amão de Ander. A náusea se espalhou porseu estômago quando ela se lembrou dacana-de-açúcar, da pele branca como

espuma do mar e da sinistra luz verdenos olhos em pânico de Ander na noiteanterior.

— Vamos, minha folhinha frágil. —Cat passou o braço em volta de Eureka.— Vamos cair nesta festa, levando opesar a todos os homens felizes.

Elas entraram na festa. LauraTrejean tinha conferido classe à tradiçãodo irmão. Archotes tiki iluminavam aaleia de cascalho do píer até o portão deferro que levava ao quintal. Lanternas delatão cintilavam nos imensos salgueiros-chorões. Na sacada, no alto, aberta para

a piscina iluminada pela lua, a bandalocal preferida de todos, os FaithHealers, afinava os instrumentos. Aturma de Laura se misturava nogramado, passando bandejas de horsd’oeuvres ao estilo cajun.

— Incrível o que um toque femininopode fazer — disse Eureka a Cat, quearrebanhou um minissanduíche de ostrafrita de uma bandeja que passava.

— Foi o que ele disse — murmurouCat, mastigando um punhado de pão ealface.

Não era preciso dizer duas vezes

aos alunos de uma escola católica que seproduzissem para uma festa. Todosvieram fantasiados. O Labirinto deMilho não era explicitamente uma festade Halloween; era uma celebração dacolheita. Em meio às camisas esportivasda LSU, Eureka viu algumas tentativasmais inventivas. Havia váriosespantalhos e algumas lanternas deabóbora bêbadas. Um garoto doprimeiro ano tinha grudado, com fitaadesiva, caules de cana na camiseta emhomenagem à colheita no final do mês.

Cat e Eureka passaram por uma tribo

de calouros vestidos de peregrinos,reunidos em volta de uma fogueira nomeio do gramado, com rostosiluminados em laranja e amarelo pelaschamas. Quando passaram peloLabirinto e ouviram risos ali dentro,Eureka tentou não pensar em Brooks.

Cat a conduziu escada acima até opátio dos fundos, passando por umgrande caldeirão preto de camarão,cercado por garotos que arrancavam osrabos e chupavam a gordura dascabeças. Chupar camarão de água doceera um dos mais antigos ritos de

passagem das crianças do bayou, entãosua selvageria seria natural em todaparte, mesmo de fantasia ou bêbados nafrente de suas paixões.

Quando entraram na fila do ponche,Eureka ouviu uma voz de homem gritarde longe.

— Façam como uma árvore com afolha.

— Acho que somos as folhas maisgostosas daqui — disse Cat, quando abanda começou a tocar no pátio abaixo.Ela empurrou Eureka pelos calouros nafrente da fila de bebida. — Agora

podemos relaxar e curtir.A ideia de uma Cat relaxada fez

Eureca sorrir com ironia. Ela olhou afesta. Os Faith Healers tocavam “FourWalls” e eram bons, dando alma àreunião. Ela esteve esperando por essemomento em que viveria a alegria sem aonda de culpa que se seguia. Eurekasabia que Diana não queria que elaficasse chorando no quarto. Diana iaquerer que ela estivesse no Labirinto deMilho de vestido marrom e curto,bebendo ponche com a melhor amiga,divertindo-se. Diana imaginaria Brooks

ali também. Perder a amizade dele seriacomo prantear outra morte, mas Eurekanão queria pensar nisso agora.

Cat colocou um copo de plásticocom ponche na mão de Eureka. Não erao veneno roxo e letal da Trejean Coladados anos anteriores. Tinha um apetitosotom de vermelho. Na verdade cheirava afrutas. Eureka estava prestes a tomar umgole quando ouviu uma voz conhecidaatrás dela.

— Dá azar beber sem brindar.Sem se virar, Eureka tomou um gole

do ponche.

— Oi, Brooks.Ele deu um passou à frente. Ela não

entendeu a fantasia dele — uma camisade manga comprida cinza e fina com umleve brilho prateado, combinada com oque parecia uma calça de pijama igual.O cabelo dele estava tão desgrenhadodo barco que ela imaginou que ele sepegou com Maya. Os olhos vagos nãotraziam a malícia de costume. Ele estavasozinho.

Cat apontou a roupa dele e uivou.— O Homem de Lata?Brooks virou-se friamente para ela.

— É uma réplica exata de um antigotraje de colheita. Exata e prática.

— Onde? — disse Cat. — EmMarte?

Brooks examinou o vestido dedecote baixo de Eureka.

— Pensei que fôssemos mais amigosque isso. Eu pedi a você para não vir.

Eureka se curvou para Cat.— Pode nos dar um minuto?— Vocês dois que se explodam.Cat recuou, achando Julien na beira

da sacada. Ele usava um chapéu vikingcom chifres, que Cat levantou de sua

cabeça e colocou na dela. Um instantedepois eles estavam às gargalhadas, debraços dados.

Eureka comparou a estranha fantasiade Brooks com o complicado traje demusgo do ano anterior. Ela o ajudou agrampear cem pedaços de musgo em umcolete que ele recortou de um saco depapel.

— Pedi a você para não vir para suaprópria segurança — disse ele.

— Estou indo muito bem com asminhas próprias regras.

As mãos dele se ergueram como se

ele a fosse pegar pelos ombros, mas elesegurou o ar.

— Acha que é a única afetada pelamorte de Diana? Acha que pode engolirum vidro de comprimidos e não destruiras pessoas que amam você? É por issoque cuido de você, porque parou decuidar de si mesma.

Eureka engoliu em seco, sem reaçãopor um momento longo demais.

— Aí está você. — A voz grave deMaya Cayce fez a pele de Eureka searrepiar. Ela estava de patins pretos, umvestidinho preto mínimo mostrando nove

de suas dez tatuagens e brincos de penade corvo roçando o ombro. Patinou paraBrooks, atravessando a varanda. — Eume perdi de você.

— Para minha segurança? —murmurou Eureka rapidamente. —Achava que eu ia morrer de choque aover você aqui com ela?

Maya revirou os olhos para Brooks,pegando o braço dele e colocando emvolta do próprio pescoço. Com ospatins, ela estava 15 centímetros maisalta que ele. Estava incrível. A mão deBrooks ficou pendurada onde Maya a

colocara, perto de seu peito. Isso deixouEureka mais louca do que ela poderiaadmitir. Ele a beijara havia menos deuma semana.

Se Cat estivesse no lugar de Eureka,competiria com a sensualidadeopressiva de Maya Cayce, contorceria ocorpo numa pose que faria os circuitosmasculinos se descontrolarem. Teria ocorpo entrelaçado no de Brooks antesque Maya conseguisse bater suaspestanas falsas. Eureka não sabia comofazer esses jogos, especialmente com omelhor amigo. Só conhecia a

sinceridade.— Brooks. — Ela olhava

diretamente para ele. — Podemosconversar a sós?

Os cronômetros oficiais daOlimpíada não teriam registrado arapidez com que o braço de Brooks saiude Maya. Um instante depois, ele eEureka corriam pela escada do pátio,para o abrigo de um sicômoro, quasecomo os amigos que costumavam ser.Eles deixaram Maya com cara de tachona varanda.

Eureka se encostou na árvore. Não

sabia por onde começar. O ar era doce eo chão estava macio forrado por folhasem decomposição. O barulho da festaera distante, uma trilha sonora elegantepara uma conversa particular. Lanternasde latão nos galhos lançavam um brilhona cara de Brooks. Ele relaxou.

— Desculpe por ter ficado tão louco— disse ele. O vento soprou algumasdrupas amarelas e pequenas dos galhosda árvore. As frutas roçaram os ombrosnus de Eureka a caminho da terra. —Estou preocupado com você desde queconheceu aquele cara.

— Não vamos falar dele — pediuEureka, porque uma ondaconstrangedora de emoção podia sederramar nela se falassem de Ander.Brooks pareceu levar a recusa dela deoutra maneira. Parece que isso o deixoufeliz.

Ele tocou seu rosto.— Eu jamais quis que acontecessem

coisas ruins com você.Eureka tombou a cabeça para a mão

dele.— Talvez o pior já tenha passado.Ele sorriu, o Brooks de sempre.

Deixou a mão esquerda em seu rosto.Depois de um momento, olhou a festapor sobre o ombro. A marca em suatesta, do ferimento da semana anterior,agora era uma cicatriz rosa muito clara.

— Talvez o melhor ainda esteja porvir.

— Por acaso você trouxe algumlençol? — Eureka apontou para oLabirinto.

A malícia voltou aos olhos dele. Amalícia fazia Brooks parecer Brooks.

— Acho que vamos ficar ocupadosdemais para isso hoje.

Ela pensou nos lábios dele nos dela,o calor do corpo dele e a força com queseus braços a dominaram quando sebeijaram. Um beijo tão doce não deviaser maculado por momentos seguintestão amargos. Será que Brooks ia tentarnovamente? Ela tentaria?

Quando fizeram as pazes outro dia,Eureka não se sentiu capaz de entenderonde estavam no contínuo amigos/mais-do-que-amigos. Agora cada diálogotinha o potencial de confundir. Ele aestava seduzindo? Ou ela interpretavaalgo inocente?

Ela ruborizou. Ele percebeu.— Eu quis dizer o Eu Nunca. Somos

veteranos, lembra?Eureka não pensava em participar

daquele jogo idiota, apesar de seu statusde veterana e do jogo como tradição.Assombrar o Labirinto parecia muitomais divertido.

— Meus segredos não são da contade toda a escola.

— Você só conta o que quer contar,e eu estarei bem a seu lado. Além disso— o sorriso irônico de Brooks dizia aEureka que ele tinha alguma carta na

manga —, você pode aprender umascoisas interessantes.

As regras do Eu Nunca eramsimples: você se sentava numa roda e ojogo seguia o sentido horário. Quandoera a sua vez, você começava com “Eununca...” e confessava algo que nuncafez. Quanto mais libidinoso, melhor.

EU NUNCA...

menti num confessionário,saí com a irmã de meu amigo,chantageei um professor,

fumei um baseado,perdi a virgindade.

Como jogavam no Evangeline, aspessoas que fizeram o que você nuncafez tinham de contar a história delas epassar a bebida para que tomassem, e,quanto mais puro seu passado, maisrápido você devia beber. Era umacorrupção dos inocentes, uma confissãoao contrário. Ninguém sabia como atradição começou. Dizia-se que osveteranos da Evangeline haviam jogadoisso pelos últimos trinta anos, mas os

pais de ninguém admitiam.Às 22h, Eureka e Brooks se juntaram

à fila de veteranos com copos deplástico cheios de ponche. Seguiram ocaminho de sacos de lixo colados nocarpete, em fila para um dos quartos dehóspedes. Era frio e amplo — uma camaking-size com uma guarda imensa eentalhada numa ponta, várias cortinas develudo preto forrando a parede dejanelas da outra.

Eureka entrou na roda no chão e sesentou de pernas cruzadas ao lado deBrooks. Viu o quarto se encher de

abóboras sensuais, espantalhos góticos,integrantes da banda Black Crows,garotos gays vestidos de fazendeiro emetade do hall da fama do futebolamericano da LSU. As pessoas seesparramavam na cama e no sofá de doislugares perto da cômoda. Cat e Julienentraram trazendo cadeiras dobráveis dagaragem.

No total, 42 veteranos de uma turmade 44 apareceram para jogar. Eurekainvejava quem estava doente, de castigo,não bebia ou se ausentou por outromotivo. Eles ficariam de fora pelo resto

do ano. Ficar de fora era uma espécie deliberdade, pelo que Eureka aprendeu.

O quarto estava apinhado defantasias idiotas e carne exposta. Amúsica que ela menos gostava dos FaithHealers vagava interminavelmente dolado de fora. Ela apontou para ascortinas de veludo à direita e murmuroupara Brooks:

— Algum impulso de pular poraquela janela comigo? Talvez a gentecaia na piscina.

Ele riu baixinho.— Você prometeu.

Julien tinha acabado de fazer acontagem e ia fechar a porta quandoMaya Cayce entrou patinando. Umgaroto vestido de pé de cabra e seuamigo, uma tentativa ruim de imitar ogladiador de Russell Crowe, separaram-se para ela passar. Maya rodou paraEureka e Brooks e tentou se meter entreeles, mas Brooks se aproximou mais deEureka, criando um espaço mínimo dooutro lado. Eureka não pôde deixar deadmirar como Maya aceitou o que podiater, aninhando-se ao lado de Brooksenquanto tirava os patins.

Quando a porta estava fechada e oquarto zumbia de risos nervosos, Julienfoi para o meio da roda. Eureka olhoude lado para Cat, que tentava mascararseu orgulho de que seu encontro secretoda noite era o líder secreto do eventomais secreto da turma.

— Todo mundo conhece as regras— disse Julien. — Todos estamos comnossos ponches. — Alguns garotosuivaram e ergueram o copo. — Quecomece o jogo de Eu Nunca de 2013. Eque a lenda nunca, jamais acabe... Nemsaia deste quarto.

Mais gritos, mais brindes, mais risossinceros e falsos. Quando Julien rodou eapontou aleatoriamente para uma porto-riquenha tímida de nome Naomi, davapara ouvir um crocodilo piscar.

— Eu? — A voz de Naomi vacilou.Eureka queria que Julien tivesseescolhido alguém mais extrovertido paracomeçar o jogo. Todos olharam paraNaomi, esperando. — Tudo bem —disse ela. — Eu nunca... Joguei EuNunca.

Em meio a risinhos constrangidos,Julien admitiu seu erro.

— Tá legal, vamos tentar de novo.Justin?

Justin Babineaux, o cabelo espigadocomo se estivesse em plena queda,podia ser descrito em poucas palavras:jogador de futebol rico. Ele sorriu.

— Eu nunca tive um emprego.— Seu babaca. — O melhor amigo

de Justin, Freddy Abair, riu e passou aJustin um copo para ele beber. — Esta éa última vez que você vai levarhambúrguer de graça durante meu turnono Hardee’s. — A maior parte da turmarevirou os olhos ao passar os copos pela

roda para um Justin que bebia.Em seguida foi a vez de uma líder de

torcida. Depois o garoto que era oprimeiro saxofone da banda. Havia asfalas populares — “Eu nunca na vidabeijei três meninos na mesma noite”, eas impopulares — “Eu nunca na vidaestourei uma espinha”. Apareceramfalas que pretendiam entregar outroveterano — “Eu nunca na vida fiqueicom o Sr. Richman depois da aula deciências do oitavo tempo no depósito”—, e falas que pretendiam puramenteservir como exibição — “Eu nunca na

vida levei bolo num encontro”. Eurekabebia seu ponche independentemente dasdivulgações dos colegas, que ela achavadolorosamente comuns. Aquele não erao jogo que ela imaginou por todos essestrês anos.

Nunca, pensou ela, a realidade secomparava com o que podia ter sido sealguns colegas de turma se atrevessem asonhar para além de seus mundosbanais.

O único aspecto suportável do jogoeram os comentários cochichados deBrooks sobre cada colega de turma:

“Nunca na vida ela pensou em usarcalça que não mostrasse a calcinha... Elenunca na vida não julgou os outros porfazerem coisas que ele faz diariamente...Ela nunca na vida saiu de casa sem umquilo de maquiagem.”

Quando o jogo deu a volta até Juliene Cat, os copos de ponche da maioriatinham sido tomados, esgotados,devolvidos e enchidos algumas vezes.Eureka não esperava muito de Julien —ele era muito atlético e metido. Masquando foi a vez dele, ele disse a Cat:

— Eu nunca na vida beijei uma

garota de quem realmente gostasse. Mastorço para mudar isso esta noite.

Os meninos vaiaram, as meninasuivaram, e Cat se abanou teatralmente,adorando. Eureka ficou impressionada.Alguém finalmente entendeu que aquelejogo não devia ser para divulgar ossegredos vergonhosos. Eles deviam usaro Eu Nunca para se conhecerem melhor.

Cat ergueu o copo, respirou fundo eolhou para Julien.

— Eu nunca disse a um cara gatoque... — ela hesitou. — Eu marquei2.390 no meu teste SAT.

O quarto ficou fascinado. Ninguém aobrigou a beber por isso. Julien a pegoue a beijou. O jogo ficou ainda melhordepois daquilo.

Logo foi a vez de Maya Cayce. Elaesperou até que o quarto ficasse emsilêncio, até que todos os olhos sevoltassem para ela.

— Eu nunca — sua unha comesmalte preto riscou a borda do copo —sofri um acidente de carro.

Três veteranos próximos deram deombros e entregaram a Maya seuscopos, levantando histórias de

ultrapassagens de sinais vermelhos esaídas da estrada, bêbados. Eurekaapertou mais o próprio copo. O corpo seenrijeceu enquanto Maya olhava paraela.

— Eureka, você devia me passar abebida.

O rosto dela estava quente. Eurekaolhou o quarto, notando os olhos detodos nela. Esperavam por ela. Imaginoujogar a bebida na cara de Maya Cayce, oponche vermelho pingando como filetesde sangue por seu pescoço branco,descendo pelo decote.

— Fiz alguma coisa que ofendessevocê, Maya? — perguntou ela.

— O tempo todo — disse Maya. —Agora mesmo, por exemplo, você estátrapaceando.

Eureka entregou o copo, torcendopara que Maya sufocasse.

Brooks estendeu a mão para seujoelho e cochichou:

— Não deixe que ela leve a melhor,Reka. Deixe pra lá. — O velho Brooks.Seu toque era medicinal. Ela tentoudeixar que surtisse efeito. Era a vezdele.

— Eu nunca... — Brooks olhou paraEureka. Ele semicerrou os olhos,empinou o queixo, e alguma coisamudou. O novo Brooks. O sombrio eimprevisível Brooks. De repente Eurekase preparou para o pior. — Tenteisuicídio.

Todo o quarto ofegou. Todossabiam.

— Seu filho da puta — disse ela.— Faça o jogo, Eureka — retrucou

ele.— Não.Brooks pegou a bebida dela e bebeu

o resto, enxugando a boca com o dorsoda mão como um caipira.

— É a sua vez.Ela se recusou a ter um colapso

nervoso na frente da maioria da turmado último ano. Mas, quando respirou,seu peito estava eletrizado de algo quequeria sair, um grito ou uma gargalhadainadequada ou... lágrimas.

Bastava.— Eu nunca desmoronei e caí aos

prantos.Por momento, ninguém disse nada.

Os colegas de turma não sabiam se

acreditavam nela, se a julgavam ou selevavam na brincadeira. Ninguém semexeu para passar a bebida a Eureka,embora em mais de 12 anos de escolajuntos ela tenha visto a maioria deleschorar. A pressão crescia em seu peitoaté que não conseguiu mais segurar.

— Fodam-se todos vocês. — Eurekase levantou. Ninguém a seguiu quandoela saiu do jogo idiota e correu para obanheiro mais próximo.

Mais tarde, no barco congelantce para

asa, Cat se curvou para Eureka.— Você disse a verdade? Nunca

chorou?Só Julien, Tim, Cat e Eureka

atravessavam o bayou. Depois do jogo,Cat resgatou Eureka do banheiro, ondeela ficou encarando a privada numtorpor. Cat insistiu que os meninos aslevassem para casa imediatamente.Eureka não viu Brooks ao sair. Nuncamais queria vê-lo.

O bayou zumbia com os sons dosgrilos. Faltavam dez para a meia-noite,aproximava-se perigosamente de seu

toque de recolher e nem valeria a dor decabeça que teria se chegasse um minutoatrasada. O vento a fustigava. Catesfregou as mãos de Eureka.

— Eu disse que não tinha caído emprantos. — Eureka deu de ombros,pensando que nem todas as roupas domundo podiam conter a sensação decompleta nudez que pulsava por ela. —Você sabe que já chorei antes.

— Sei. Claro. — Cat olhava amargem por onde deslizavam, como setentasse se lembrar de lágrimas antigasno rosto da amiga.

Eureka escolhera a expressão “aosprantos” porque verter uma únicalágrima na frente de Ander parecia umatraição à promessa que fizera a Dianaanos antes. A mãe a esbofeteou quandoela chorou incontrolavelmente. E issoela nunca mais fez na vida, era esse ojuramento: de que nunca ia desmoronar,nem mesmo numa noite como aquela.

21

SALVA-VIDAS

Num minuto Eureka pensou estarvoando. No seguinte, sentiu o choqueviolento da água fria e azul. Seu corpodividiu a superfície. Ela cerrou os olhosenquanto o mar a engolia. Uma ondaanulou o som de tudo — alguém gritando

com o barulho da água — enquanto osilêncio do mar se derramava. Eureka sóouvia os estalos de peixes sealimentando nos corais, o gorgolejarproduzido por seu ofegar na água e osilêncio antes da colossal batidaseguinte da maré.

Seu corpo foi apanhado em algo quea apertava. Os dedos sondaram eencontraram uma tira de náilon. Elaestava aturdida demais para se mexer,para se soltar, para lembrar onde estava.Deixou que o mar a sepultasse. Ainda seafogava? Os pulmões não sabiam a

diferença entre estar na água e ao arlivre. A superfície dançava no alto, umsonho impossível, um esforço que elanão sabia mais como fazer.

Ela sentiu uma coisa acima de todasas outras: uma perda insuportável. Maso que perdera? O que ansiava tãovisceralmente que seu coração a puxavacomo uma âncora?

Diana.O acidente. A onda. Ela se

lembrava.Eureka estava lá de novo — dentro

do carro, nas águas abaixo da ponte

Seven Mile. Deram-lhe uma segundachance de salvar a mãe.

Ela enxergava tudo com muitaclareza. O relógio no painel dizia20h09. O celular vagou pelo banco dafrente inundado. Algas verde-amareladas ornavam o console central.Um peixe-anjo passou rapidamente pelajanela aberta como se pegasse carona aofundo. Ao lado dela, uma cortinaesvoaçante de cabelos vermelhosmascarava o rosto de Diana.

Eureka lutou para soltar o fecho docinto de segurança. Ele se dissolveu em

destroços em suas mãos, como setivesse se decomposto há muito. Elainvestiu para a mãe. Assim que alcançouDiana, seu coração inchou de amor. Maso corpo da mãe estava flácido.

— Mãe!O coração de Eureka foi pego de

surpresa. Ela tirou o cabelo do rosto deDiana, desejando vê-la. Depois reprimiuum grito. Onde deveria encontrar asfeições régias da mãe, havia um vazionegro. Ela não conseguiu desviar osolhos.

Raios fortes de algo parecido com o

sol de repente choveram em volta dela.Mãos seguraram o corpo. Dedosapertaram os ombros. Ela era puxada deDiana contra sua vontade. Contorcia-se,gritando. Seu salvador não ouvia ou nãose importava.

Ela não se rendia, batendo nas mãosque a separavam de Diana. Teriapreferido se afogar. Queria ficar no marcom a mãe. Por algum motivo, quandolevantou os olhos para o dono das mãos,esperava ver outro rosto negro e vazio.

Mas o garoto estava banhado emuma luz tão intensa que ela mal

conseguia enxergá-lo. Cabelos lourosondulavam na água. A mão se estendeupara algo acima dele — uma corda pretae comprida, esticada verticalmente pelomar. Ele a segurava com força e puxou.Enquanto subia em disparada peloverniz frio do mar, Eureka percebeu queo garoto segurava a corrente de metalgrossa de uma âncora, uma corda salva-vidas para a superfície.

A luz se derramava pelo mar emvolta dele. Seus olhos encontraram os deEureka. Ele sorriu, mas parecia chorar.

Ander abriu a boca — e começou a

cantar. A música era estranhae sobrenatural, numa língua que Eurekaquase não entendia. Era clara e aguda,repleta de escalas desconcertantes.Parecia tão familiar... Quase o canto deum periquito.

Seus olhos se abriram na escuridãosolitária do quarto. Eureka engoliu o are enxugou a testa molhada de suor. Amúsica do sonho soava em sua mente,uma trilha sonora melancólica naquietude da noite. Ela massageou aorelha esquerda, mas o som não cessou.Ficou mais alto.

Ela rolou e leu o horário, 5h,brilhando na tela do telefone. Percebeuque o som era do canto dos passarinhosmatinais, infiltrado no sonho,acordando-a. Os culpados deviam ser osestorninhos, que migravam para aLouisiana naquela época a cada outono.Ela colocou um travesseiro na cabeçapara não ouvir o canto. Não estavapronta para se levantar e lembrar comoBrooks a traíra tão completamente nafesta da noite anterior.

Tap. Tap. Tap.Eureka se levantou na cama. O

barulho vinha da janela.Tap. Tap. Tap.Ela jogou os cobertores de lado e

pairou perto da parede. Um fio muitopálido de luz do início do amanhecerroçava as cortinas brancas, mas ela nãoviu qualquer sombra escurecendo-as eindicando a presença de alguém do ladode fora. Sentia-se tonta por causa dosonho, da proximidade que teve deDiana e Ander. Estava delirante. Nãohavia ninguém fora de sua janela.

Tap. Tap. Tap.Num só movimento, Eureka puxou as

cortinas. Um passarinho verde-limaesperava calmamente no peitoril, forado quarto. Tinha um losango de penasdouradas no peito e uma coroavermelha. Seu bico bateu três vezes novidro.

— Polaris. — Eureka reconheceu aave de Madame Blavatsky.

Ela puxou a janela para cima e abriuainda mais as venezianas. Havia tirado atela anos antes. O ar gelado invadiu acasa. Ela estendeu a mão.

Polaris pulou em seu indicador eretomou o canto vibrante. Desta vez

Eureka tinha certeza de ouvir a ave emestéreo. De algum modo seu cantopassava pelo ouvido esquerdo, que pormeses nada ouviu além do ar abafado.Ela percebeu que ele tentava lhe dizeralguma coisa.

Suas asas verdes batendo emcontraste ao céu tranquilo, impelindo ocorpo centímetros acima do dedo deEureka. Ele se aproximou aos saltos,trinando para ela, depois virou o corpopara a rua. Bateu as asas novamente. Porfim se empoleirou no dedo para trinarnum crescendo final.

— Shhhh.Eureka olhou por sobre o ombro a

parede que dividia seu quarto do dosgêmeos. Viu Polaris repetir o mesmopadrão: pairar acima de sua mão, virar-se para a rua e trinar outro crescendo —mais baixo — enquanto voltava a seudedo.

— É Madame Blavatsky — disseEureka. — Ela quer que eu vá com você.

Seu trinado soou como um sim.

Minutos depois, Eureka saía pelaporta da frente usando leggings, os tênis

de corrida e um agasalho marinho doExército da Salvação por cima dacamiseta da Sorbonne com a qual haviadormido. Sentiu o cheiro de orvalho naspetúnias e nos galhos do carvalho. O céuera de um cinza lamacento.

Um coro de sapos coaxou sob osarbustos de alecrim do pai. Polaris,empoleirado em um dos galhosemplumados, flutuou para Eurekaenquanto ela fechava a porta de tela.Acomodou-se em seu ombro, aninhandopor um momento o bico em seu pescoço.Parecia entender que ela se sentia

nervosa e constrangida pelo que estavaprestes a fazer.

— Vamos.O voo dele era ágil e elegante.

Eureka relaxou, aquecendo-se à medidaque corria pela rua para acompanhá-lo.A única pessoa por quem passou foi umentregador de jornais grogue numapicape vermelha rebaixada, que nãopercebeu a menina seguindo a ave.

Quando Polaris chegou à ponta doShady Circle, cortou para o gramadodos Guillot e voou para uma entrada semcerca em direção ao bayou. Eureka girou

para o leste, imitando-o, seguindo contraa corrente do bayou, ouvindo o farfalhardo fluxo para o lado direito, sentindo-sea mundos de distância da fila sonolentade casas cercadas à esquerda.

Nunca havia passado por aqueleterreno estreito e acidentado. Nas horasescuras antes do dia, possuía um brilhoestranho e ilusório. Agradava-lhe comoo escuro da noite ainda se demorava,tentando eclipsar a manhã coberta deneblina. Agradava-lhe Polaris brilhandocomo uma vela verde no céu tingido denuvens. Mesmo que sua missão não

tivesse um propósito, mesmo que elativesse inventado o convite da ave emsua janela, Eureka se convenceu de quecorrer era melhor que ficar deitada nacama, furiosa com Brooks ou com penade si mesma.

Ela passou com dificuldade porsamambaias, trepadeiras de camélias eas glicínias roxas que se esgueiravamdos jardins bem-cuidados comoafluentes tentando chegar ao bayou. Seussapatos batiam na terra molhada, e osdedos formigavam de frio. Ela se perdeude Polaris numa curva fechada no bayou

e correu para alcançá-lo. Os pulmõesardiam, ela entrou em pânico e então, aolonge, através dos galhos finos de umsalgueiro-chorão, ela o viu empoleiradono ombro de uma velha que vestia ummanto imenso de retalhos.

Madame Blavatsky estava recostadano tronco do salgueiro, a cabeleiraavermelhada formando um halo naumidade. Estava de frente para o bayou,fumando um longo cigarro enrolado àmão. Seus lábios vermelhos fizeram umbeicinho para a ave.

— Bravo, Polaris.

Chegando ao salgueiro, Eurekareduziu o passo e se abaixou sob a copada árvore. A sombra dos galhososcilantes a envolveram num abraçoinesperado. Ela não estava preparadapara a alegria que tomou seu coração aover a silhueta de Madame Blavatsky.Sentiu o impulso pouco característico decorrer até a mulher para abraçá-la.

Não tinha alucinado o convite.Madame Blavatsky queria vê-la — e,Eureka percebeu, ela queria verMadame Blavatsky.

Ela pensou em Diana, como a mãe

parecia tão perto da vida no sonho.Aquela senhora era a chave para a únicaporta até Diana que restara a Eureka.Ela queria que Blavatsky realizasse umdesejo impossível — mas o que amulher queria dela?

— Nossa situação mudou. —Madame Blavatsky deu um tapinha nochão ao lado dela, onde tinha estendidouma manta marrom. Ranúnculos etremoços azuis surgiam do solo quemargeava a manta. — Sente-se, porfavor.

Eureka se sentou de pernas cruzadas

ao lado de Madame Blavatsky. Nãosabia se olhava a mulher ou a água. Porum momento, elas assistiram um groubranco alçar voo de um banco de areia edeslizar sobre o bayou.

— É o livro? — perguntou Eureka.— Não é tanto o livro físico, mas a

crônica que contém. Tornou-se... —Blavatsky deu um longo trago nocigarro. — Perigosa demais paramandar por e-mail. Ninguém deve saberde nossa descoberta, compreende?Nenhum hacker desleixado da internetnem aquela amizade sua. Ninguém.

Eureka pensou em Brooks, que nãoera seu amigo agora, mas que ainda oera quando expressou interesse emajudá-la a traduzir o livro.

— Quer dizer Brooks?Madame Blavastky olhou para

Polaris, que havia pousado sobre omanto de retalhos que cobria seusjoelhos. Ele trinou.

— A garota, aquela que você levoua meu escritório — disse MadameBlavatsky.

Cat.— Mas Cat nunca...

— A última coisa que esperamosque os outros façam é a última coisa quefazem antes de descobrirmos que já nãopodemos confiar neles. Se deseja colherconhecimento daquelas páginas — disseBlavatsky —, deve jurar que o segredocontinuará entre nós duas. E as aves, éclaro.

Outro trinado de Polaris fez Eurekamassagear o ouvido esquerdonovamente. Ela não sabia o que fazercom a nova audição seletiva.

— Eu juro.— Claro que jura. — Madame

Blavatsky pegou em uma mochila decouro um diário de capa preta queparecia antigo, com as páginasrecortadas. Enquanto a mulher ofolheava, Eureka viu que as páginasestavam salpicadas por palavrasmanuscritas em caligrafia e loucamenteirregular em diversas cores de tinta. —Esta é minha cópia de trabalho. Quandominha tarefa estiver concluída,devolverei O livro do amor a você, comuma duplicata de minha tradução. Agora— ela usou o dedo para abrir numapágina —, está preparada?

— Sim.Blavatsky limpou os olhos com um

lenço de algodão e sorriu, o cenhofranzido.

— Por que eu deveria acreditar emvocê? Você acredita em si mesma?Sente-se verdadeiramente pronta para oque está prestes a ouvir?

Eureka se endireitou, tentandoparecer mais preparada. Fechou osolhos e pensou em Diana. Não havianada que alguém pudesse lhe dizer quealterasse o amor que sentia pela mãe, eisso era o mais importante.

— Estou pronta.Blavatsky apagou o cigarro na relva

e pegou uma latinha redonda no bolso domanto. Colocou a bituca do cigarrodentro, ao lado de dezenas de outras.

— Diga-me então onde paramos.Eureka se lembrou da história de

Selene encontrando o amor nos braçosde Leandro. E disse:

— Só havia uma coisa entre eles.— É isso mesmo — disse Madame

Blavatsky. — Entre eles e um universode amor.

— O rei — deduziu Eureka. —

Selene deveria se casar com Atlas.— Pode-se pensar que isto seria um

obstáculo. Porém — Blavatsky enterrouo nariz no livro —, a trama parecesofrer uma guinada. — Ela endireitou osombros, deu uma pancadinha no pescoçoe leu a história de Selene:

Seu nome era Delfine. Ela amavaLeandro profundamente.

Eu conhecia bem Delfine. Elanasceu numa trovoada, de uma mãefalecida, e foi criada pela chuva.Quando aprendeu a engatinhar, saiu desua caverna solitária e foi morar

conosco nas montanhas. Minha famíliaa recebeu em nossa casa. À medida queficava mais velha, adotou parte denossas tradições, rejeitando outras.Fazia parte de nós, entretanto eradiferente. Ela me assustava.

Anos antes eu tinha presenciadopor acaso Delfine abraçando umamante ao luar, apertada contra umaárvore. Embora não tivesse visto orosto do rapaz, as bruxas aproveitarampara casquinar boatos de que Delfinetinha o misterioso príncipeescravizado.

Leandro. Meu príncipe. Meucoração.

— Eu vi você ao luar — confessou-me ele mais tarde. — Vi você antes,muitas vezes. Delfine me enfeitiçou,mas juro que nunca a amei. Fugi doreino para me livrar de seusencantamentos; voltei para casa naesperança de encontrar você.

À medida que nosso amor seaprofundava, temíamos a ira de Delfinemais que qualquer coisa que o rei Atlaspudesse fazer. Eu a vi destruir a vidana floresta, transformar animais em

feras; não queria que sua magia metocasse.

Na véspera de meu casamento como rei, Leandro convenceu-me a sair docastelo por uma série de túneissecretos que ele tinha percorridoquando criança. Ao corrermos até seunavio sob o brilho da lua da meia-noite, supliquei:

— Delfine jamais deve saber.Embarcamos, leves com a liberdade

prometida pelas ondas. Não sabíamosaonde íamos; sabíamos apenas queficaríamos juntos. Enquanto Leandro

puxava a âncora, olhei para trás,despedindo-me de minhas montanhas.Sempre desejarei não ter feito isso.

Pois ali tive uma visão apavorante:cem bruxas fofoqueiras — minhas tiase primas — reuniram-se nos penhascospara me ver partir. A lua iluminavaseus rostos assimétricos. Elas eramvelhas o bastante para perder o juízo,mas não o poder.

— Fujam, amantes amaldiçoados— gritou uma das mais velhas. — Nãopodem escapar de seu destino. Aperdição preenche seus coraçõ e s e

assim será para todo o sempre.Lembro-me do rosto assustado de

Leandro. Ele não estava acostumadocom o jeito de falar das bruxas, que eratão natural para mim quanto amá-lo.

— Que trevas podem corromper umamor tão luminoso como o nosso? —perguntou ele.

— Temam sua mágoa — sibilaramas bruxas.

Leandro me abraçou.— Eu jamais a magoaria.Risos ecoaram das escarpas.— Temam a mágoa nas lágrimas da

donzela que faz os mares colidirem naterra! — gritou uma de minhas tias.

— Temam as lágrimas que cerrammundos do espaço e do tempo —acrescentou outra.

— Temam a dimensão composta deágua conhecida como Desdita, onde omundo perdido aguardará até oDespertar — cantou uma terceira.

— E temam seu retorno —cantaram em uníssono. — Tudo porcausa de lágrimas.

Virei-me para Leandro, decifrandoa maldição.

— Delfine.— Irei a ela e farei as reparações

antes de navegarmos — disse Leandro.— Devemos viver sossegados.

— Não — pedi. — Ela não devesaber. Que pense que você se afogou.Minha traição partirá maisprofundamente seu coração. — Eu obeijei como se não tivesse medo, massabia que não havia como impedir queas bruxas espalhassem nossa históriapelas colinas.

Leandro olhou as bruxasrecurvadas na escarpa.

— É a única maneira de eu mesentir livre para amá-la como desejo.Assim que me despedir, já tereiretornado.

Com isso, meu amor se foi, e fiqueisozinha com as bruxas. Elas meolhavam da margem. Agora eu era umapária. Ainda não podia vislumbrarcomo se daria meu apocalipse, massabia que me aguardava pouco além dohorizonte. Não me esquecerei daspalavras que elas sussurraram antes dedesaparecerem na noite...

Madame Blavatsky levantou a

cabeça do diário e passou o lenço pelatesta pálida. Seus dedos tremiam quandofechou o livro.

Eureka ficou sentada, imóvel, semrespirar, durante todo o tempo em queMadame Blavatsky leu. O texto eracativante. Mas agora que o capítulohavia terminado e o livro estavafechado, era só uma história. Comopodia ser tão perigosa? Enquanto um sollaranja e enevoado subia pelo bayou, elaexaminou o padrão errático darespiração de Madame Blavatsky.

— Acha que é real? — perguntou

Eureka.— Nada é real. Só existe aquilo em

que acreditamos e o que rejeitamos.— E você acredita nisso?— Acredito ter uma compreensão

das origens deste texto — respondeuBlavatsky. — Este livro foi escrito poruma feiticeira atlante, uma mulhernascida na ilha perdida de Atlântidamilhares de anos atrás.

— Atlântida. — Eureka analisou apalavra. — Quer dizer a ilha submarinacom sereias, tesouros e homens comotritões?

— Está pensando em desenhosanimados ruins — disse MadameBlavatsky. — Só o que se sabe deAtlântida vem dos diálogos de Platão.

— E por que acha que esta história ésobre Atlântida? — perguntou Eureka.

— Não apenas sobre, mas de. Creioque Selene era uma habitante da ilha.Lembra como ela descreve no início...Sua ilha ficava “para além das Colunasde Hércules, sozinha no Atlântico”? É olocal descrito por Platão.

— Mas é ficção, né? Atlântida nãoexistiu realmente...

— Segundo o Crítias e o Timeu dePlatão, Atlântida foi uma civilizaçãoideal do mundo antigo. Até que...

— Uma garota teve o coraçãopartido e chorou um mar de lágrimassobre a ilha? — Eureka ergueu umasobrancelha. — Está vendo? Ficção?

— E ainda dizem que não existemnovas ideias — disse Blavatskymansamente. — É muito perigoso teresta informação. Meu senso diz para nãocontinuar...

— Precisa continuar! — reagiuEureka, assustando uma cobra d’água

enroscada num galho baixo do salgueiro.Ela a viu deslizar para o bayou pardo.Não acreditava necessariamente queSelene tenha vivido em Atlântida, masagora acreditava que Madame Blavatskyacreditava naquilo. — Preciso saber oque aconteceu.

— Por quê? Porque gosta de umaboa história? — perguntou MadameBlavatsky. — Um simples cartão debiblioteca pode satisfazer sua vontade eserá um risco menor para nós duas.

— Não. — Havia mais, porémEureka não sabia como dizer. — Esta

história importa. Não sei por quê, mastem algo a ver com minha mãe, ou...

Ela se interrompeu por medo deMadame Blavatsky lhe lançar o mesmoolhar de censura da Dra. Landry quandoEureka falou no livro.

— Ou tem algo a ver com você —disse Blavatsky.

— Comigo?Claro, no início ela se identificou

com a rapidez com que Selene caiu deamores por um garoto por quem nemdeveria, mas Eureka não via Anderdesde aquela noite na estrada. Não

entendia o que seu acidente tinha a vercom um continente mítico e submerso.

Blavatsky ficou em silêncio, comose esperasse que Eureka ligasse ospontos. Havia mais alguma coisa? Algosobre Delfine, a amante abandonadacujas lágrimas supostamente afundarama ilha? Eureka não tinha nada em comumcom Delfine. Ela nem chorava. Depoisda noite passada, toda a turma sabiadisso — mais um motivo para pensaremque era uma aberração. Então, o queBlavatsky queria dizer?

— A curiosidade é uma amante

astuta — disse a mulher. — Ela tambémme seduziu.

Eureka tocou o medalhão de lápis deDiana.

— Acha que minha mãe conheciaessa história?

— Creio que sim.— Por que ela não me contou? Se

era tão importante, por que não meexplicou?

Madame Blavatsky acariciou acoroa de Polaris.

— Só o que você pode fazer agora éabsorver a história. E lembre-se do

conselho de nossa narradora: tudo podemudar com a última palavra.

No bolso do agasalho, o telefone deEureka vibrou. Ela o pegou, torcendopara que Rhoda não tivesse descobertosua cama vazia e concluído que elafugira depois do toque de recolher.

Era Brooks. A tela azul se iluminoucom um grande bloco de texto, depoisoutro, e outro e mais outro enquantoBrooks mandava uma sucessão demensagens. Depois que seis deleschegaram, o último texto ficou iluminadono celular:

Não consigo dormir. Doente deculpa. Me deixe compensar... No fim desemana que vem, você e eu vamosvelejar.

— De jeito nenhum. — Eurekameteu o celular no bolso sem ler asoutras mensagens.

Madame Blavatsky acendeu mais umcigarro, soprando a fumaça num traçofino e longo pelo bayou.

— Deve aceitar o convite dele.— O quê? Não vou a lugar algum

com... Espere aí, como sabe disso?Polaris flutuou do joelho de

Madame Blavatsky para o ombroesquerdo de Eureka. Trinou suavementeem seu ouvido, fazendo cócegas, e elaentendeu.

— As aves contaram a você.Blavatsky fez beicinho num beijo a

Polaris.— Meus bichinhos têm seus

fascínios.— E eles acham que eu devia sair

num barco com um garoto que me traiu,que me fez de boba, que de repente secomporta como meu inimigo e não comomeu amigo mais antigo?

— Acreditamos que é seu destino ir— firmou Madame Blavatsky. — O quevai acontecer depois só depende devocê.

22

HIPÓTESE

Na manhã de segunda-feira, Eurekavestiu o uniforme, preparou a bolsa,mastigou infeliz um Pop-Tart e ligouMagda antes que admitisse que nãohavia como ir para a escola.

Era mais do que a humilhação do

jogo de Eu Nunca. Era a tradução doLivro do amor — que ela havia juradoque não discutiria com ninguém, nemmesmo com Cat. Era seu sonho do carroafundado, em que os papéis de Diana eAnder pareciam tão nítidos. Era Brooks,que ela estava acostumada a procurarem busca de apoio — mas desde que sebeijaram a amizade fora de estável agravemente ferida. Ou talvez o maisassustador fosse a visão do quartetocintilante cercando seu carro na estradaescura, como anticorpos combatendouma doença. Sempre que fechava os

olhos, via a luz verde iluminando o rostode Ander, sugerindo algo poderoso eperigoso. Mesmo que ainda houvesse aquem se voltar, Eureka jamaisencontraria palavras para que aquelacena parecesse verdadeira.

Assim, como poderia se sentar pelaaula de latim e fingir que estavacontrolada? Não tinha saídas, apenasbloqueios. Só havia um tipo de terapiaque poderia acalmá-la.

Ela chegou ao retorno para aEvangeline e continuou dirigindo, indopara o leste, ao encanto verdejante dos

pastos margosos da Breaux Bridgepróxima. Dirigiu 30 quilômetros para oleste e vários outros ao sul. Só parouquando não sabia mais onde estava. Eraum ambiente rural, silencioso, e ninguéma reconheceria; era exatamente do queela precisava. Estacionou sob umcarvalho que abrigava uma família depombos. Trocou de roupa no carro,vestindo os trajes de corrida que sempremantinha no banco traseiro.

Ainda não tinha se aquecido quandoentrou no bosque silencioso atrás daestrada. Abriu o zíper do moletom e

começou a correr devagar. No início,suas pernas pareciam correr por água depântano. Sem a motivação da equipe, aúnica competição de Eureka era suaimaginação. Assim imaginou um aviãode carga do tamanho de uma Arca deNoé pousando bem atrás dela, seusmotores do tamanho de casas sugandoárvores e tratores até as pás giratóriasenquanto ela corria sozinha, disparandopor cada pedaço de matéria do mundoque zunia para trás.

Ela sempre detestou previsões dotempo. Preferia descobrir a

espontaneidade na atmosfera. O iníciode manhã havia sido luminoso, comresíduos de nuvens anteriores seprendendo ao céu. Agora essas nuvensaltas tornaram-se douradas na luzdiluída e fios de névoa se infiltravampelos carvalhos, conferindo uma leveincandescência à floresta. Assamambaias eram ávidas pela umidadeque, se transformada em chuva, mudariasuas folhagens de vermelho fulvo aesmeralda.

Diana era a única pessoa que Eurekaconhecera na vida que também preferia

correr na chuva em vez do sol. Anoscorrendo com a mãe ensinaram a Eurekaa apreciar como o “mau” tempoencantava uma corrida comum: a chuvabatendo nas folhas, a tempestadeesfregando as cascas das árvores, arco-íris mínimos lançados nos ramos tortos.Se isso era mau tempo, Diana e Eurekaconcordavam, elas não queriamconhecer o bom. Assim, enquanto anévoa rolava por seus ombros, Eurekapensou nela como o tipo de mortalha queDiana teria gostado de usar, se tivesse aopção de ser enterrada.

Logo Eureka chegou ao marco demadeira branca que outro corredor deveter pregado em um carvalho pararegistrar seu progresso. Tocou namadeira como faz um corredor quandoatinge a marca de meio de corrida econtinuou.

Seus pés batiam na trilha gasta. Osbraços bombeavam mais forte. Afloresta escurecia à medida que a chuvacomeçava a cair. Eureka seguia. Nãopensou nas aulas que perdia, noscochichos em volta de sua carteira vaziana aula de cálculo ou inglês. Estava na

floresta. Não havia outro lugar em quepreferisse estar.

Sua mente clareava como umoceano. O cabelo de Diana flutuava porele, leve. Ander passou vagando,pegando a estranha corrente que parecianão ter começo nem fim. Ela queriaperguntar por que ele a salvara na outranoite — e do que exatamente ele asalvara. Ela queria saber mais da caixaprateada e da luz verde que ela continha.

A vida havia se tornado muitocomplicada. Eureka sempre pensou queadorava correr porque era uma fuga.

Agora percebia que sempre que ia paraa mata, procurava alguma coisa, alguém.Hoje não corria atrás de nada nemninguém porque não lhe restava maisnada.

Uma velha música de blues que elacostumava tocar no seu programa derádio invadiu sua mente:

Motherless children have a hardtime when their mother’s dead.*

Ela estava correndo há quilômetrosquando as panturrilhas começaram a

arder e ela percebeu que estavadesesperada por água. Chovia forte,então reduziu o ritmo e abriu a bocapara o céu. O mundo no alto era de umverde vivo e fresco.

— Seu tempo está melhorando.A voz vinha de trás. Eureka girou o

corpo.Ander estava de jeans cinza

desbotados, uma camisa social e umcolete azul-marinho que de algum modoera espetacular. Ele a encarou com umaconfiança descarada rapidamentecamuflada pelos dedos que passavam

nervosos pelo cabelo.Tinha um talento espetacular para se

misturar no fundo até querer ser visto.Ela deve ter passado correndo por ele,embora se orgulhasse de manter suaatenção quando corria. Seu coração jáestava acelerado do exercício — agoradisparava porque mais uma vez estavasozinha com Ander. O vento farfalhou asfolhas das árvores, salpicando o chão dechuva. Carregava o mais sutil cheiro domar. O cheiro de Ander.

— Seu senso de oportunidade estáficando absurdo. — Eureka recuou.

Ou ele era um psicopata ou umsalvador, e não havia como ter umaresposta direta de Ander. Ela selembrou da última coisa que ele lhedisse: Você precisa sobreviver . Comose sua sobrevivência estivesseliteralmente em jogo.

O olhar dela percorreu a floresta,procurando sinais daquela genteestranha, indícios daquela luz verde ouqualquer outro perigo — ou sinais dealguém que pudesse ajudá-la, se Anderfosse um perigo. Eles estavam a sós.

Pegou o celular, imaginando discar a

emergência se alguma coisa ficasseestranha. Depois pensou em Bill e nosoutros policiais que conheceu epercebeu que era inútil. Além do mais,Ander só estava parado ali.

Ver seu rosto a fez querer correrpara longe e diretamente até ele, paraver que intensidade aqueles olhos azuispodiam assumir.

— Não telefone para seu amigo dadelegacia — disse Ander. — Só estouaqui para conversar com você. Mas,para sua informação, eu não tenho.

— Não tem o quê?

— Ficha. Na polícia.— As fichas também servem para

fazer apostas.Ander se aproximou um passo.

Eureka recuou um. A chuva salpicava omoletom de Eureka, provocando umarrepio fundo pelo corpo.

— E, antes que pergunte, eu nãoestava espionando você quando foi falarcom a polícia. Mas aquelas pessoas queviu no saguão, depois na estrada...

— Quem eram? — perguntouEureka. — E o que havia na caixaprateada?

Ander pegou um chapéu cor decaramelo impermeável no bolso.Enterrou até os olhos, por cima docabelo que, Eureka percebeu, nãoparecia molhado. O chapéu o faziaparecer um detetive de um antigo filmenoir.

— Isso é problema meu — disse ele— e não seu.

— Não foi a impressão que vocêdeu na outra noite.

— Que tal isso? — Ele seaproximou mais, até se colocar acentímetros e ela poder ouvir sua

respiração. — Estou do seu lado.— De que lado eu estou? — Uma

onda de chuva fez Eureka voltar umpasso, sob o dossel das folhas.

Ander franziu o cenho.— Você está nervosa demais.— Não estou.Ele apontou os cotovelos dela,

projetando-se dos bolsos em que haviametido os punhos. Ela tremia.

— Se estou nervosa, essas apariçõesrepentinas não ajudam em nada.

— Como posso convencer você deque não vou machucá-la, de que estou

tentando ajudar?— Nunca pedi sua ajuda.— Se não consegue ver que não sou

um dos bandidos, nunca vai acreditar...— Acreditar no quê? — Ela cruzou

as mãos com força sobre o peito paraconter os cotovelos trêmulos. A névoapairava no ar em volta deles, deixandotudo meio borrado.

Com muita suavidade, Ander pôs amão no braço de Eureka. Seu toque eraquente. A pele dele estava seca. Issocausou arrepios nos pelos da pelemolhada de Eureka.

— No resto da história.A palavra “história” fez Eureka

pensar no Livro do amor. Uma narrativaantiga sobre Atlântida não tinha nada aver com o que Ander estava falando,mas ela ainda ouvia a tradução deMadame Blavatsky correr por suacabeça: Tudo pode mudar com a últimapalavra.

— Tem um final feliz? — perguntouela.

Ander sorriu com tristeza.— Você é boa em ciências, não?— Não. — Quem visse o último

boletim de Eureka pensaria que ela nãoera boa em nada. Mas depois ela viu orosto de Diana em suas lembranças.Sempre que Eureka se juntava a ela emuma das escavações, a mãe se gabavacom os amigos de coisasconstrangedoras, como a mente analíticae o avançado nível de leitura de Eureka.Se Diana estivesse ali, diria que Eurekaera inegavelmente boa em ciências. —Acho que me dou bem.

— E se eu propusesse umaexperiência para você? — perguntouAnder.

Eureka pensou nas aulas que haviaperdido naquele dia, nos problemas emque se meteria. Ela não sabia seprecisava de outra tarefa.

— E se for alguma coisa que pareçaimpossível de provar? — acrescentouele.

— E se você simplesmente medisser do que se trata?

— Se você puder provar estahipótese impossível — disse ele —, vaiconfiar em mim?

— Que hipótese é essa?— A pedra que sua mãe lhe deixou

quando morreu...Os olhos dela se voltaram num

átimo, encontrando com os dele. Contraa floresta verdejante, as íris turquesa deAnder exibiam bordas verdes.

— Como sabe disso?— Tente molhá-la.— Molhar?Ander fez que sim.— Minha hipótese é que não

conseguirá.— Tudo pode ser molhado — disse

ela, ao mesmo tempo se indagando dapele seca de Ander quando ele estendeu

a mão a ela minutos antes.— Não essa pedra — retrucou ele.

— Se por acaso eu estiver certo,promete que vai confiar em mim?

— Não vejo por que minha mãe medeixaria uma pedra que repele água.

— Olhe, vou lhe dar um incentivo...Se eu estiver enganado sobre a pedra, sefor apenas uma pedra antiga e comum,vou desaparecer e você nunca maisouvirá falar de mim. — Ele tombou acabeça de lado, analisando a reação deEureka sem o ar brincalhão que elaesperava. — Prometo.

Eureka não estava disposta a nuncamais vê-lo, mesmo que a pedra não semolhasse. Mas o olhar dele pressionavao dela como sacos de areia obstruindo aterra de aluvião pelo bayou. Os olhosdele não libertavam os dela.

— Tudo bem. Vou tentar.— Faça isso... — Ander parou —

Sozinha. Ninguém pode saber o quevocê tem. Nem seus amigos. Nem suafamília. Especialmente Brooks.

— Sabe de uma coisa, você eBrooks deveriam se entender — disseEureka. — Vocês parecem corresponder

a tudo o que os outros pensam.— Não pode confiar nele. Espero

que agora entenda isso.Eureka queria empurrar Ander. Ele

não ia trazer o assunto de Brooks à tonacomo se soubesse algo de que ela nãotinha conhecimento. Mas sentia medo deque, se o empurrasse, ele não seriaempurrado. Seria um abraço, e elaperderia o controle. Não saberia comose refrear.

Ela quicou os calcanhares na lama.Só conseguia pensar em fugir. Queriaestar em casa, num lugar seguro, mas

não sabia como nem onde encontrarnenhuma das duas coisas. Elas lheescapavam havia meses.

A chuva se intensificou. Eurekaolhou o caminho que tinha tomado atéali, imersa no esquecimento verde,tentando ver Magda a quilômetros dedistância. As linhas da floresta sedissolviam em sua visão em pura formae cor.

— Pelo visto, não posso confiar emninguém.

Ela desatou a correr pela chuva,querendo, a cada passo que a afastava

de Ander, virar-se e correr até ele. Seucorpo guerreava com os instintos até queela teve vontade de gritar. Ela correumais rápido.

— Logo você verá o quanto estáerrada! — gritou Ander, ainda no pontoem que ela o deixara. Ela pensou que eletalvez a seguisse, mas não foi assim.

Ela parou. As palavras deledeixaram-na sem fôlego. Lentamente elase virou. Mas quando olhou pela chuva ea névoa, o vento e as folhas, Ander jáhavia desaparecido.

Nota:* Crianças sem mãe passam por temposdifíceis quando a mãe está morta. (N. do E.)

23

O AERÓLITO

— Assim que seu dever de casa estiverterminado — disse Rhoda do outro ladoda mesa de jantar naquela noite —,mande um e-mail se desculpando com aDra. Landry, com cópia para mim. Ediga a ela que a verá na semana que

vem.Eureka jogou o molho de Tabasco

violentamente em sua étouffée. Asordens de Rhoda não mereciam sequeruma olhada feia.

— Seu pai e eu conversamos com aDra. Landry — continuou ela. — Nãoachamos que você levará a terapia asério enquanto não tiverresponsabilidade por ela. Por isso vocêvai pagar pelas sessões. — Rhodabebericou o vinho rosé. — Do própriobolso. Setenta e cinco dólares porsemana.

Eureka travou o maxilar paraimpedir que a boca se escancarasse.Então eles finalmente haviam escolhidoum castigo pelo ataque de fúria dasemana anterior.

— Mas eu não tenho emprego —argumentou ela.

— A lavanderia lhe dará seu antigoemprego de volta — disse Rhoda —,supondo-se que possa provar que ficoumais responsável desde que foidemitida.

Eureka não ficou mais responsável.Ela ficou deprimida e suicida. Olhou o

pai, procurando ajuda.— Conversei com Ruthie —

explicou ele, baixando os olhos como sefalasse com a étouffée e não com a filha.— Pode assumir dois dias por semana,não? — Ele pegou o garfo. — Agoracoma, a comida está esfriando.

Eureka não conseguia comer. Pensounas muitas frases que se formavam emsua mente: Vocês dois sabem bem comolidar com uma tentativa de suicídio.Podem piorar ainda mais uma situaçãoruim? A secretária da Evangeline ligoupara saber por que eu não fui à aula

hoje, mas já apaguei o recado de voz.Contei também que saí do cross-countrye não pretendo voltar à escola? Vouembora e nunca mais voltarei.

Mas os ouvidos de Rhoda eramsurdos a franquezas desagradáveis. E opai? Eureka mal o reconhecia. Pareciater criado uma nova identidade que nãocontradizia a esposa. Talvez porquenunca tivesse sido capaz quando eracasado com Diana.

Nada que Eureka pudesse dizermudaria as regras cruéis da casa, que sóse aplicavam a ela. Sua mente estava em

brasa, mas os olhar permaneceu baixo.Tinha coisas melhores a fazer do quelutar com os monstros do outro lado damesa.

Fantasias e planos se aglomeravamnos limites de sua mente. Talvez elaconseguisse um emprego num barco depesca que navegasse para onde o Livrodo amor dizia se situar Atlântida.Madame Blavatsky parecia pensar que ailha realmente havia existido. Talvez avelha até quisesse se juntar a Eureka.Elas podiam guardar dinheiro, comprarum barco velho e navegar para o mar

brutal que continha tudo que ela amava.Podiam encontrar as Colunas deHércules e continuar. Talvez ela sesentisse em casa — não como a estranhaque era, sentada à mesa de jantar. Mexeuumas ervilhas pelo prato com o garfo.Meteu a faca no étouffée para ver seficaria em pé sozinha.

— Se vai desrespeitar a comida quecolocamos nesta mesa — disse Rhoda—, acho que pode se retirar.

O pai acrescentou, numa voz maisbranda:

— Já está satisfeita?

Eureka precisou de todas as forçaspara não revirar os olhos. Levantou-se,empurrou a cadeira e tentou imaginarcomo aquela cena seria diferente sefossem só Eureka e o pai, se ela ainda orespeitasse, se ele nunca tivesse secasado com Rhoda.

Assim que a ideia se formou, osolhos de Eureka encontraram os irmãos,e ela se arrependeu do que desejara. Osgêmeos estavam emburrados. Emsilêncio, como se preparados para umataque de gritos de Eureka. Seus rostos,os ombrinhos recurvados, fizeram-na

querer pegá-los no colo e levá-los paraonde quer que fugisse. Ela beijou o topodas cabeças deles antes de subir aescada a seu quarto.

Eureka fechou a porta e caiu nacama. Tinha tomado um banho depois decorrer, e o cabelo molhara a gola dopijama de flanela que gostava de usarquando estava chovendo. Ficou imóvelna cama e tentou traduzir o código dachuva no telhado.

Aguente, dizia. Aguente bem.Ela se perguntou o que Ander estaria

fazendo, em que tipo de quarto estaria

deitado, olhando o teto. Ela sabia queele pensava nela pelo menos de vez emquando; exigia alguma previdênciaesperar por alguém no bosque e emtodos os outros lugares onde ele aaguardara. Mas o que ele pensava dela?

O que ela realmente pensava dele?Tinha medo dele, era atraída por ele,provocada por ele, surpreendia-se comele. Pensar em Ander a tirava dadepressão — e ameaçava afundá-laainda mais nela. Havia uma energia neleque a distraía da tristeza.

Ela pensou no aerólito e na hipótese

de Ander. Era idiotice. A confiança nãoera algo que nascesse de umaexperiência. Pensou em sua amizadecom Cat. Elas conquistaram a confiançamútua com o tempo, fortalecida aospoucos como um músculo, até conter umpoder próprio. Mas às vezes a confiançagolpeava a intuição como um raio, veloze fundo, como acontecera entre Eureka eMadame Blavatsky. Uma coisa eracerta: a confiança era mútua, e era este oproblema dela com Ander. Ele tinhatodas as cartas. O papel de Eureka narelação parecia ser o de ficar meramente

alarmada.Mas... Ela não precisava confiar em

Ander para saber mais do aerólito.Eureka abriu a gaveta da mesa e

colocou a arca pequena e azul no meioda cama. Ficou constrangida ao pensarem testar a hipótese dele, ainda quesozinha em seu quarto, com a porta e ascortinas fechadas.

No térreo, pratos e garfos tilintavama caminho da pia. Era sua noite de lavara louça, mas ninguém foi importuná-lapor isso. Era como se ela já nãoestivesse lá.

Passos na escada fizeram Eureka seabaixar para a mochila da escola. Se opai entrasse, precisaria fingir estarestudando. Tinha horas de dever de casade cálculo, uma prova de latim na sexta-feira e uma quantidade incalculável detrabalho para colocar em dia, das aulasque havia perdido. Encheu a cama delivros e fichários, cobrindo a arca dapedra. Passou o livro de cálculo pelosjoelhos antes que ele batesse na porta.

— Sim?O pai colocou a cabeça para dentro.

Tinha uma toalha de prato jogada no

ombro, e as mãos estavam vermelhas daágua quente. Eureka olhava fixamente apágina aleatória do livro de cálculo etorcia para que sua abstração adistraísse da culpa de deixar que elefizesse suas tarefas domésticas.

Ele costumava ficar de pé junto àsua cama dando dicas inteligentes esurpreendentes para o dever de casa.Agora nem entrava no quarto.

Ele apontou para o livro.— O princípio da incerteza? Essa é

parada dura. Quanto mais se sabe decomo muda uma variável, menos se sabe

da outra. E tudo muda o tempo todo.Eureka olhou o teto.— Não sei mais a diferença entre

variáveis e constantes.— Só estamos tentando fazer o

melhor para você, Reka.Ela não respondeu. Não tinha nada a

dizer sobre o assunto.Quando o pai fechou a porta, ela leu

o parágrafo de introdução do princípioda incerteza. A página com o título docapítulo trazia um triângulo grande, osímbolo grego da mudança, delta. Era omesmo formato do aerólito embrulhado

em gaze.Ela empurrou o livro de lado e abriu

a caixa. O aerólito, ainda embrulhado naestranha gaze branca, parecia pequeno edespretensioso. Ela o pegou, lembrando-se da delicadeza com que Brooks lidaracom ele. Eureka tentou chegar ao mesmonível de reverência. Pensou no aviso deAnder de que devia testar a pedrasozinha, que Brooks não podia saber oque ela possuía. O que ela possuía? Elanunca vira uma pedra como aquela.Pensou no pós-escrito de Diana:

Só desembrulhe a gaze quandoprecisar. Saberá quando chegar ahora.

A vida de Eureka estava um caos.Ela estava prestes a ser expulsa da casaonde odiava morar. Não ia à escola.Havia se alienado de todos os amigos eseguia passarinhos pelo bayou antes doamanhecer para se encontrar comsenhoras videntes. Como sabia se oagora era o quando místico de Diana?

Enquanto pegava o copo na mesa decabeceira, manteve a pedra em sua gaze.

Colocou-a no alto do fichário de latim.Com muito cuidado, despejou um fileteda água da noite anterior diretamente napedra. Viu o ponto molhado penetrar nagaze. Era só uma pedra.

Ela baixou a pedra e jogou as pernaspara fora da cama. A sonhadora nelaestava decepcionada.

E então, em sua visão periférica, elaviu um movimento mínimo. A gaze dapedra tinha se levantado num canto,como se a água a afrouxasse. Vocêsaberá quando. Ela ouviu a voz deDiana como se estivesse deitada ao lado

de Eureka, e isso fez seu corpo tremer.Ela tirou um pouco mais do canto da

gaze. A pedra rodou com isso,descascando uma camada depois deoutra do envoltório branco. Os dedos deEureka se infiltravam pelo tecido frouxoenquanto a forma triangular da pedraencolhia e se aguçava em suas mãos.

Por fim a última camada de gazehavia saído. Eureka tinha nas mãos umapedra isósceles, mais ou menos dotamanho do medalhão de lápis-lazúli,como qualquer outra pedra. Brilhavaaqui e ali com cristais granulados e

cinza-azulados. Seria uma boa pedrapara Ander lançar na água.

O telefone de Eureka tocou na mesade cabeceira. Ela investiu para ele,inexplicavelmente certa de que seriaAnder. Mas uma foto provocante eseminua de Cat apareceu na tela de seucelular. Eureka deixou cair no correiode voz. Cat mandava uma mensagem eligava em intervalos de poucas horasdesde o primeiro tempo de manhã.Eureka não sabia o que dizer à amiga.Elas se conheciam bem demais para quementisse e não contasse o que estava

havendo.Quando o telefone se apagou e o

quarto escureceu de novo, Eureka ficouconsciente de uma leve luz azulemanando da pedra. Veios cinza-azulados mínimos brilhavam pelasuperfície. Ela os olhou até quecomeçaram a parecer as abstrações deum idioma. Ela virou a pedra e viu aforma familiar do verso. Os veioscriavam círculos. Seus ouvidos tiniram.Arrepios cobriram sua pele. A imagemno aerólito parecia precisamente acicatriz na testa de Brooks.

Um leve trovão soou no céu. Foi sóuma coincidência, mas isso a assustou.A pedra escorregou de seus dedos eentrou numa fresta de seu edredom. Elapegou o copo novamente e despejou seuconteúdo no aerólito exposto como seestivesse apagando um incêndio, comose extinguisse sua amizade com Brooks.

A água espirrou da pedra e bateu emseu rosto.

Ela cuspiu e enxugou a testa. Olhoua pedra. Seu cobertor estava molhado,as anotações e livros também. Ela ossecou com um travesseiro e empurrou-os

de lado. Pegou a pedra. Estava secacomo uma caveira de boi numa paredede bar.

— Tá brincando — murmurou ela.Ela saiu da cama, carregando a

pedra, e abriu uma fresta da porta. A TVdo térreo estava ligada no noticiário. Alâmpada noturna dos gêmeos lançavaraios fracos pela porta aberta do quartoque dividiam. Ela foi ao banheiro naponta dos pés, fechou a porta e atrancou. Ficou de costas para a parede eolhou a si mesma no espelho, segurandoa pedra.

Seu pijama estava salpicado deágua. O cabelo que emoldurava o rostoestava molhado. Ela segurou a pedra soba torneira e abriu completamente a água.

O jato era repelido de imediatoquando batia na pedra. Não, não era isso— Eureka olhou mais atentamente e viuque a água sequer atingia a pedra. Erarepelida no ar, acima e em volta dela.

Fechou a torneira. Sentou-se nabeira de cobre da banheira apinhada debrinquedos de banho dos gêmeos. A pia,o espelho, o tapete — tudo estavaensopado. O aerólito estava

completamente seco.— Mãe — murmurou ela. — No que

você me meteu?Ela segurou a pedra perto do rosto e

a examinou, virando-a nas mãos. Umpequeno buraco tinha sido feito novértice do ângulo maior do triângulo,com tamanho suficiente para passar umacorrente. O aerólito podia ser usadocomo um colar.

Então por que guardá-lo embrulhadoem gaze? Talvez a gaze protegesse oselante que acrescentaram para repelir aágua. Eureka olhou pela janela do

banheiro a chuva que caía nos galhosescuros. Teve uma ideia.

Passou a toalha pela pia e pelo chão,tentando secar o máximo que pôde.Deslizou o aerólito pelo bolso dopijama e saiu de mansinho até ocorredor. No patamar da escada, olhoupara baixo e viu o pai dormindo no sofá,o corpo iluminado pela TV. Uma tigelade pipoca estava equilibrada em seupeito. Ela ouviu um digitar frenéticovindo da cozinha que só podia significarRhoda torturando seu laptop.

Eureka desceu furtivamente a escada

e abriu suavemente a porta dos fundos.Só quem ela viu foi Squat, que foitrotando para fora com ela porqueadorava se enlamear na chuva. Eurekafez carinho em sua cabeça e deixou queele pulasse para beijar seu rosto, umhábito que Rhoda tentava romper haviaanos. Ele seguiu Eureka quando eladesceu a escada da varanda e foi para oportão que dava para o bayou.

Outro raio obrigou Eureka a selembrar de que tinha chovido a noitetoda, que ela acabara de ouvir CokieFaucheaux dizer algo na TV sobre uma

tempestade. Levantou a tranca do portãoe foi para o píer, por onde os vizinhoslevavam seus botes de pesca para aágua. Sentou-se na beirada, enrolou aspernas da calça do pijama e afundou ospés no bayou. Estava tão frio que seucorpo enrijeceu. Mas ela deixou os pésgelados ali, mesmo quando começaram aqueimar.

Com a mão esquerda, pegou a pedrano bolso e viu gotas mínimas de chuvaricocheteando em sua superfície.Chamaram a atenção e assustaram Squat,que farejou a pedra e acabou molhando

o focinho.Ela fechou o punho na pedra e a

mergulhou no bayou, curvando-se eesticando o braço na água, respirandorispidamente de frio. A água estremeceu;depois seu nível subiu, e Eureka viu umagrande bolha de ar se formar em voltado aerólito e de seu braço. A bolhaterminava pouco abaixo da superfície daágua, onde estava seu cotovelo.

Com a mão direita, explorou a bolhaembaixo da água, esperando queestourasse. Não aconteceu. Era flexívele forte, como um balão indestrutível.

Quando tirou a mão molhada da água,sentiu a diferença. A mão esquerda,ainda submersa, envolvida no bolsão dear, não estava molhada. Por fim, elatirou o aerólito da água e viu que eletambém continuava completamente seco.

— Tudo bem, Ander. Você venceu.

24

O DESAPARECIMENTO

Tap. Tap. Tap.Quando Polaris chegou à sua janela

antes de o sol nascer na terça-feira,Eureka já estava fora da cama naterceira pancada no vidro. Ela abriu ascortinas e levantou a vidraça para

receber o passarinho verde-lima.A ave significava Blavatsky, e

Blavatsky significava respostas.Traduzir O livro do amor tornou-se amissão que mais compelia Eureka desdeque Diana morreu. De algum modo, àmedida que a história ficava mais loucae fantástica, a ligação de Eureka com elase solidificava. Ela sentia umacuriosidade infantil de saber os detalhesda profecia das bruxas, como setrouxessem alguma relevância para aprópria vida. Estava louca paraencontrar a velha embaixo do salgueiro.

Havia dormido com o aerólito namesma corrente do medalhão de lápis-lazúli. Não suportara enrolá-lo eguardá-lo. Era pesado em seu pescoço eestava quente de ficar em seu peito anoite toda. Ela decidiu pedir a opiniãode Madame Blavatsky sobre ele.Significava admiti-la ainda mais em suavida particular, mas Eureka confiava nospróprios instintos. Talvez Blavatskysoubesse de algo que a ajudasse aentender melhor a pedra — talvez atépudesse explicar o interesse de Anderpor ela.

Eureka estendeu a mão para Polaris,mas a ave voou, passando por ela.Entrou em seu quarto, esvoaçou numcírculo agitado perto do teto, depoisdisparou para fora da janela e entrou nocéu cor de carvão. Bateu as asas,provocando uma lufada de ar com cheirode pinheiro para Eureka, expondo aspenas variegadas onde a face interna dasasas encontrava o peito. Seu bico sealargou para o céu num guincho agudo.

— Agora você é um galo? — disseela.

Polaris guinchou novamente. O som

era infeliz, nada parecido com as notasmelodiosas que ela o ouviu cantar antes.

— Já vou.Eureka olhou o pijama e os pés

descalços. Fazia frio lá fora, o ar úmidoe o sol muito abaixo do horizonte. Pegoua primeira coisa em que pôs as mãos noarmário: o moletom verde desbotado daEvangeline, que usava nas provas decross-country. O agasalho de náilon eraquente, e ela podia correr com ele, etambém não havia motivo para sersentimental com a equipe da qual pedirapara sair. Ela escovou os dentes e fez

uma trança no cabelo. Encontrou Polarisperto do alecrim, na beira da varanda.

A manhã estava úmida, cheia docanto dos grilos e do sussurro claro doalecrim balançando-se ao vento. Destavez Polaris não esperou que Eurekaamarrasse os tênis. Voou para o mesmolado aonde ela o seguira outro dia, sóque mais rápido. Eureka começou acorrer. Seus olhos eram um misto degrogue e alerta. As panturrilhas doíampor causa da corrida da véspera.

O guincho do passarinho erainsistente, abrasivo contra a rua

adormecida das 5h. Eureka queria sabercomo aquietá-lo. Havia algo diferenteem seu estado de espírito hoje, mas elanão falava a língua dele. Só podiaacompanhá-lo.

Ela corria quando passou pelapicape vermelha do jornaleiro no finalde Shady Circle. Acenou como se fosseamiga dele, depois entrou à direita paracortar caminho pelo gramado dosGuillot. Chegou ao bayou, com seubrilho matinal verde militar. PerdeuPolaris de vista, mas sabia o caminhopara o salgueiro.

Podia correr de olhos fechados equase parecia fazer isso. Já fazia diasque Eureka não dormia bem. Seu tanqueestava quase vazio. Viu o reflexo da luatremeluzindo na superfície da água,como se tivesse desovado uma dúzia debebês-luas. As pequenas luas crescentesnadavam contra a corrente, saltandocomo peixes voadores, tentandoultrapassar Eureka. Suas pernasbombeavam mais rápido, querendovencer, até que ela tropeçou nas raízesde uma samambaia e tombou na lama.Caiu por cima do pulso ruim.

Estremeceu e recuperou o equilíbrio e oritmo.

Squawk!Polaris voou por cima de seu ombro

enquanto ela corria os últimos 20 metrosaté o salgueiro. A ave ficou para trás,ainda soltando os guinchos estranhosque doíam nos ouvidos de Eureka. Foisó quando ela chegou à árvore quepercebeu o motivo do alarido. Ela serecostou no tronco branco e liso epousou as mãos nos joelhos pararecuperar o fôlego. Madame Blavatskynão estava ali.

Agora havia certa raiva no trinadode Polaris. Ele rodava sobre a árvore.Eureka levantou a cabeça para ele,pasma, exausta — então entendeu.

— Você não queria que eu viessepara cá.

Squawk!— Bem, como vou saber onde ela

está?Squawk!Ele voou na direção de onde Eureka

viera, virando-se por um momento paralançar o que era clara, ainda queabsurdamente, um olhar feio. Ofegante,

com o ânimo lhe escapando, Eureka oseguiu.

O céu ainda estava escuro quando elaparou Magda no estacionamentoesburacado da sala de Blavatsky. Ovento espalhou as folhas de carvalhoescurecidas pelo calçamento irregular.Um poste de rua iluminava ocruzamento, mas deixava o centrocomercial sinistramente às escuras.

Eureka tinha escrito um bilhetedizendo que ia para a escola mais cedo,

ao laboratório de ciências, e deixou nabancada da cozinha. Sabia que devia terparecido ridículo quando abriu a portado carro para Polaris entrar voando,mas ultimamente a maioria dos atos deEureka era assim. A ave se revelou umaótima navegadora depois de Eurekaperceber que dois pulinhos para um ladoou outro no painel indicavam em que ruaela devia entrar. Com o aquecimentoligado, as janelas e o teto solarfechados, aceleraram para a loja datradutora do outro lado de Lafayette.

Só havia outro carro no

estacionamento. Parecia estarestacionado na frente do salão debronzeamento ao lado por uma década, oque fez Eureka se perguntar comoMadame Blavatsky se locomovia.

Polaris voou pela janela aberta evoou pelo lance de escadas de fora antesque Eureka tivesse desligado o carro.Quando ela o alcançou, sua mão pairouansiosamente sobre a antiga aldrava decabeça de leão.

— Ela disse para eu não incomodá-la em casa — avisou Eureka a Polaris.— Você estava lá, lembra?

O guincho agudo de Polaris a fezpular. Não parecia certo bater tão cedo,então Eureka deu um leve empurrão naporta com o quadril. Ela se abriu para osaguão de teto baixo de Blavatsky.Eureka e Polaris entraram. O hallsilencioso e úmido e tinha cheiro deleite azedo. As duas cadeiras dobráveisainda estavam ali, assim como aluminária vermelha e o revisteiro vazio.Mas algo parecia diferente. A porta parao estúdio de Madame Blavatsky estavaentreaberta.

Eureka olhou para Polaris. Ele ficou

em silêncio, as asas junto ao corpo,voando pela soleira. Depois de ummomento, Eureka o seguiu.

Cada centímetro da sala de MadameBlavatsky tinha sido saqueado; tudo queera quebrável fora quebrado. As quatrogaiolas foram mutiladas por alicates.Uma gaiola pendurava-se torta no teto;as outras foram jogadas no chão.Algumas aves tagarelavam nervosas nopeitoril de uma janela aberta, o restodevia ter fugido — ou coisa pior. Penasverdes estavam espalhadas por todolado.

Os retratos carrancudos estavamesmagados no tapete persa enlameado.As almofadas do sofá foram cortadas. Orecheio se derramava delas como pus deuma ferida. O umidificador perto daparede de trás borbulhava, o que Eurekasabia, por cuidar da alergia dos gêmeos,significar que estava quase sem água.Uma estante estava caída e lascada nochão. Uma das tartarugas explorava amontanha irregular de livros.

Eureka andou pela sala, passandocom cuidado por cima dos livros eretratos emoldurados. Percebeu um

pequeno prato de manteigatransbordando de anéis com pedraspreciosas. Não parecia o cenário de umroubo.

Onde estava Blavatsky? E ondeestava o livro de Eureka?

Ela começou a investigar algunspapéis amassados na mesa, mas nãoqueria mexer nas coisas particulares deMadame Blavatsky, mesmo que maisalguém tivesse feito isso. Atrás da mesa,notou o cinzeiro onde a tradutoracolocava seus cigarros. Quatro guimbasforam beijadas pelo inconfundível

batom vermelho de Blavatsky. Duasestavam brancas como papel.

Eureka tocou os pingentes nopescoço, mal percebendo que criara ohábito de apelar por ajuda. Fechou osolhos e se abaixou na cadeira deBlavatsky. As paredes escurecidas e oteto pareciam se fechar sobre ela.

Os cigarros brancos a fizerampensar em rostos brancos, calmos obastante para fumar antes... Ou depois,ou durante a destruição da sala deBlavatsky. O que os invasoresprocuravam?

Onde estava seu livro?Ela sabia que estava sendo

tendenciosa, mas não conseguiaimaginar nenhum culpado além daquelagente espectral da estrada escura. Aideia de seus dedos pálidos segurando olivro de Diana fez Eureka se levantarnum salto.

No fundo da sala, perto da janelaaberta, descobriu um nicho pequeno quenão tinha visto em sua primeira visita. Asoleira era coberta por uma cortina roxade contas que chocalhou quando elapassou por ali. O nicho abrigava uma

pequena cozinha com uma piaminúscula, uma sementeira com endro,uma banqueta de madeira de três pés e,atrás do frigobar, um surpreendentelance de escada.

O apartamento de MadameBlavatsky ficava no andar acima doestúdio. Eureka subiu a escada de trêsem três degraus. Polaris trinava comaprovação, como se fosse a direção queele queria que ela tomasse desde ocomeço.

A escada estava escura, então elausou a lanterna do celular no caminho.

No alto, havia uma porta fechada comseis enormes cadeados. Cada um delesera único e antigo — e pareciaminteiramente intransponíveis. Eurekaficou aliviada, pensando que pelo menosquem havia saqueado o térreo não teriasido capaz de invadir o apartamento deBlavatsky.

Polaris guinchava com raiva, comose esperasse que Eureka tivesse umachave. Voou para baixo e bicou ocarpete puído ao pé da porta como umacriança desesperada por comida. Eurekalançou a luz da lanterna para ver o que

ele fazia.Desejou não ter feito isso.Uma poça de sangue tinha vazado

pela fresta entre a porta e o piso.Ensopava o primeiro degrau e agora seespalhava para baixo. No escurosilencioso da escada, Eureka ouviu umagota cair do primeiro degrau noseguinte, onde ela estava. Afastou-se umpouco, enojada e temerosa.

A vertigem a tomou. Ela se curvoupara a frente, pretendendo pousar a mãona porta por um momento para recuperaro equilíbrio, mas caiu para trás enquanto

a porta cedia sobre a mais leve pressãode seu toque. A porta tombou, como umaárvore derrubada, no apartamento. Obaque pesado foi acompanhado por umruído molhado no carpete, que Eurekapercebeu ter a ver com o sangue que seempoçava atrás da porta. O impactocriou borrifos nas paredes manchadas defumaça.

Quem tinha estado ali arrancara aporta de suas dobradiças e, antes desair, a encostou para que aindaparecesse trancada por fora.

Ela devia ir embora. Devia se virar

agora mesmo, descer correndo a escadae sair dali antes que visse algo que nãoqueria. Sua boca se encheu de um gostonauseante. Ela devia chamar a polícia.Devia sair e não voltar.

Mas não podia. Algo tinhaacontecido com uma pessoa de quemgostava. Por mais que seus instintosgritassem Fuja!, Eureka não conseguiadar as costas a Madame Blavatsky.

Ela passou pelo patamarensanguentado, subindo pela porta caídae seguindo Polaris para dentro doapartamento. Tinha cheiro de sangue,

suor e cigarros. Dezenas de velas quaseapagadas bruxuleavam por um consolo.Eram a única fonte de luz ali dentro. Dolado de fora da única e pequena janela,um mata-mosquito elétrico atacava numritmo constante. No meio do cômodo,esparramada pelo carpete azulindustrial, no primeiro lugar que Eurekasuspeitou e o último que se permitiuolhar, estava Madame Blavatsky, mortacomo Diana.

A mão de Eureka voou ao pescoçopara reprimir um ofegar. Por sobre oombro, a escada para a saída parecia

infinita, como se ela nunca pudessepercorrê-la sem desmaiar. Por instinto,procurou o celular no bolso. Discoupara a emergência, mas não conseguiu seforçar a apertar o botão de chamar. Nãotinha voz, não havia meios de comunicara um estranho do outro lado da linha quea mulher que se tornara a coisa maispróxima que tinha de uma mãe estavamorta.

O telefone voltou para seu bolso.Ela se aproximou mais de MadameBlavatsky, tomando cuidado para ficarlonge da poça de sangue.

Grumos de cabelo arruivado seespalhavam pelo chão, cercando acabeça da velha como uma coroa. Haviatrechos carecas de pele rosada onde ocabelo fora arrancado do courocabeludo. Seus olhos estavam abertos.Um deles fitava, vazio, o teto. O outrofora completamente arrancado da órbita.Pendia perto da têmpora por uma artériarosa e fina. Suas faces haviam sidolaceradas, como se unhas afiadas ativessem arranhado. As pernas e braçosestavam esparramados de lado, fazendo-a parecer um anjo da neve aleijado. Uma

das mãos segurava um rosário. O mantode retalhos estava escorregadio desangue. Ela havia sido espancada,retalhada e esfaqueada repetidas vezesno peito por algo que deixou cortesmuitos maiores que faria uma faca.Deixaram-na ali, sangrando no chão.

Eureka cambaleou contra a parede.Perguntou-se qual teria sido o últimopensamento de Madame Blavatsky.Tentou imaginar as orações que a mulherpodia ter proferido a caminho do outromundo, mas sua mente estava oca dechoque. Ela caiu de joelhos. Diana

sempre dizia que tudo no mundo estavainterligado. Por que Eureka não paroupara pensar no que o Livro do amortinha a ver com o aerólito de que Andersabia tanto — ou com as pessoas dequem ele a protegeu na estrada? Seforam eles que fizeram aquilo comMadame Blavatsky, Eureka tinha certezade que haviam ido ali à procura doLivro do amor. Eles mataram alguémpara tê-lo.

E, se isso fosse verdade, a morte deMadame Blavatsky era culpa dela. Suamente voltou ao confessionário, aonde ia

nas tardes de sábado com o pai. Ela nãosabia quantas Ave-Marias ou Pais-Nossos teria de rezar para purgar essepecado.

Nunca deveria ter insistido emcontinuar com a tradução. MadameBlavatsky a avisara dos riscos. Eurekadevia ter relacionado a hesitação damulher com o perigo que Ander disseque Eureka corria. Mas não fez isso.Talvez nem quisesse. Talvez quisessealgo doce e mágico em sua vida. Agoraesse algo doce e mágico estava morto.

Achou que ia vomitar, mas não saiu

nada. Pensou que podia gritar, mas nãogritou. Em vez disso, ajoelhou-se maisperto do peito de Madame Blavatsky eresistiu ao impulso de tocar nela. Pormeses, desejou a oportunidadeimpossível de aninhar Diana em seusbraços depois de sua morte. AgoraEureka queria estender a mão paraMadame Blavatsky, mas as feridasabertas a afastavam. Não porque Eurekase sentisse enojada — embora a mulherestivesse repulsiva —, mas porquesabia que não devia se implicar nesteassassinato. Ela recuou, sabendo que,

por mais que quisesse, não havia nadaque pudesse fazer por MadameBlavatsky.

Imaginou outros tendo aquela visão:a lividez que assumiria a pele cinzentade Rhoda, como acontecia quandoestava nauseada, fazendo seu batomlaranja parecer o de um palhaço; asorações que sairiam aos gritos doslábios da colega de turma mais carolade Eureka, Belle Pogue; os palavrõesincrédulos que Cat soltaria. Eurekaimaginou que podia ver a si mesma forade seu corpo. Parecia tão sem vida e

imobilizada como um rochedo que ficoualojado no apartamento por milênios.Ela parecia estoica e inalcançável.

A morte de Diana havia destruído osmistérios da morte. Sabia que a morteesperava por ela, como foi com MadameBlavatsky, como era para todos que elaamava e não amava. Ela sabia que ohomem nasce para morrer. Lembrou-sedo último verso de um poema de DylanThomas que leu uma vez num fórum deenlutados na internet. Foi a única coisaque fez sentido quando ela estava nohospital:

Depois da primeira morte, nãoexiste nenhuma outra.

Diana foi a primeira morte deEureka. Significava que a morte deMadame Blavatsky não era nenhumaoutra. A morte da própria Eureka nãoseria nenhuma outra.

Seu pesar era intenso; mas pareciadiferente daquilo com que as pessoasestavam acostumadas.

Ela sentia medo, mas não docadáver diante de si — já vira coisaspiores em pesadelos demais. Tinhamedo do que a morte de Madame

Blavatsky significaria para os que lheeram próximos, por mais que essesfossem poucos agora. Ela não podiadeixar de se sentir um pouco roubada,sabendo que jamais compreenderia oresto do Livro do amor.

Teriam os assassinos levado olivro? A ideia de mais alguém de possedele, sabendo mais que ela, a enfurecia.Ela se levantou e foi ao balcão de caféda manhã de Madame Blavatsky, depoisà mesa de cabeceira, procurando algumsinal do livro com o maior cuidadopossível de não alterar o que sabia ser

uma cena de crime.Não achou nada, só angústia. Estava

tão infeliz que mal conseguia enxergar.Polaris guinchava e bicava as beiras domanto de Madame Blavatsky.

Tudo pode mudar com a últimapalavra, pensou Eureka. Mas aquilo nãopodia ser a última palavra de MadameBlavatsky. Ela merecia muito mais queisso.

Novamente Eureka se abaixou nochão. Seus dedos encontraram ocaminho pelo peito intuitivamente,fazendo o sinal da cruz. Ela uniu as

mãos e baixou a cabeça numa oraçãosilenciosa a São Francisco, pedindoserenidade à idosa. Ficou de cabeçabaixa e de olhos fechados até sentir quesua oração havia deixado o ambiente eabria caminho até a atmosfera. Tinhaesperanças de que chegasse a seudestino.

O que seria feito de MadameBlavatsky? Eureka não podia saberquem acharia a mulher depois dela, setinha amigos ou familiares próximos.Enquanto sua mente se revirava em tornoda mais simples possibilidade de

conseguir ajuda para MadameBlavatsky, imaginou as conversasapavorantes com o chefe de polícia. Seupeito endureceu. A velha não voltaria àvida se Eureka fosse parar no centro deuma investigação criminal. Ainda assim,ela precisava achar um jeito de informarà polícia.

Ela olhou o cômodo, desanimada,então teve uma ideia.

No patamar, tinha passado por umalarme de incêndio comercial,provavelmente instalado antes que oprédio se tornasse uma residência.

Eureka se levantou e contornou a poçade sangue, escorregando um pouco aopassar pela porta. Chegou à portinholavermelha e puxou a alavanca de metalpara baixo.

O alarme foi instantâneo,ensurdecedor, quase comicamente alto.Eureka enterrou a cabeça entre osombros e partiu para a saída. Antes de irembora, olhou para Madame Blavatskymais uma vez. Queria dizer que sentiamuito.

Polaris estava empoleirado no peitoretalhado da mulher, bicando de leve

onde o coração antes batia. Pareciafosforescente à luz das velas. Quandonotou que Eureka olhava, levantou acabeça. Seus olhos negros cintilavamdiabolicamente. Ele sibilou para ela,depois guinchou, tão estridente quepenetrou o barulho do alarme deincêndio.

Eureka deu um pulo e girou. Correupelo resto da escada. Só parou depoisde passar pelo estúdio de MadameBlavatsky, pelo saguão iluminado devermelho e chegar ofegante aoestacionamento, onde um sol dourado

começava a arder no céu.

25

PERDIDA NO MAR

Sábado, de manhã cedo, os gêmeosinvadiram o quarto de Eureka.

— Acorde! — Claire quicava nacama. — A gente vai passar o dia comvocê!

— Que ótimo.

Eureka esfregou os olhos e viu ahora no celular. O navegador aindaestava aberto na pesquisa do Google“Yuki Blavatsky”, que ela atualizavaconstantemente, na esperança deencontrar uma história do assassinato.

Nada apareceu. Só o que conseguiuforam antigas páginas amarelas listandoos negócios de Blavatsky, que só elaparecia saber que estava fora domercado. Eureka foi de carro até ocentro comercial na terça depois de umdia insuportavelmente longo na escola,mas ao entrar no estacionamento vazio

perdeu a coragem e acelerou até que aplaca de palmeira néon apagada nãoestivesse mais visível no retrovisor.

Assombrada por não ver umapresença policial óbvia e porpensamentos de Madame Blavatsky sedecompondo sozinha no apartamento,Eureka dirigiu até a universidade. Ativaro alarme de incêndio não deve ter sidosuficiente, então ela se sentou a um doscomputadores gratuitos do centroacadêmico e preencheu uma denúnciaanônima on-line. Era mais seguro fazerisso lá, no meio do centro acadêmico

movimentado, do que ter a página dapolícia no histórico de navegação de seulaptop em casa.

Ela fez uma denúncia simples, dandoo nome e endereço da falecida. Deixouem branco os campos que pediaminformações de suspeitos, emboraEureka inexplicavelmente tivessecerteza de que poderia apontar oassassino de Madame Blavatsky numafila de reconhecimento.

Quando foi novamente à frente dasala de Blavatsky na quarta-feira, umafita de isolamento da polícia barrava a

porta de entrada e viaturas policiaisenchiam o estacionamento. O choque e opesar que se recusou a sentir napresença do corpo de MadameBlavatsky agora dominavam Eureka,uma onda aberrante de culpa debilitante.Já fazia três dias, e ela não ouviuqualquer notícia na TV ou no rádio, nemviu nada no jornal. O silêncio a deixavalouca.

Reprimiu o impulso de se abrir paraAnder, porque não podia contar o queaconteceu a ninguém e, mesmo quepudesse, não saberia como encontrá-lo.

Eureka estava por conta própria.— Por que você está usando as

boias? — Ela apertou o músculo laranjainflável de William enquanto ele semetia debaixo de suas cobertas.

— Mamãe disse que você vai levara gente pra piscina!

Peraí. Eureka havia combinado develejar com Brooks naquele dia.

É o seu destino, dissera MadameBlavatsky, atiçando a curiosidade deEureka. Ela não estava ansiosa parapassar um tempo com Brooks, mas pelomenos estava pronta para enfrentá-lo.

Queria fazer o mínimo que pudesse parahonrar a memória da idosa.

— A gente vai à piscina outro dia.— Eureka empurrou Wiliam de ladopara sair da cama. — Esqueci que tenhode...

— Não me diga que se esqueceu deque ia cuidar dos gêmeos? — Rhodaapareceu na porta usando um vestido decrepe vermelho. Mexia num grampo nocabelo muito elaborado. — Seu pai estáno trabalho, e vou fazer um discurso noalmoço do reitor.

— Eu marquei com Brooks.

— Remarque. — Rhoda tombou acabeça de lado e fechou a cara. —Estamos indo muito bem.

Ela queria dizer que Eureka estavaindo à escola e havia sofrido por toda ahora infernal com a Dra. Landry na tardede terça. Eureka desembolsara as trêsúltimas notas de vinte que tinha, depoislargou na mesa de centro de Landry umsaco surrado contendo um sortimento demoedas, somando os 15 dólaresrestantes que precisava para pagar pelasessão. Não sabia como conseguiriasofrer tudo novamente na semana

seguinte, mas, no ritmo arrastado dosdias, a terça estava a uma eternidade dedistância.

— Tudo bem. Vou cuidar dosgêmeos.

Ela não precisava contar a Rhoda oque iam fazer. Mandou um torpedo aBrooks, a primeira comunicação queiniciara com ele desde o Eu Nunca:Tudo bem se eu levar os gêmeos?

Claro que sim! A resposta dele foiimediata. Eu mesmo ia sugerir isso.

— Eureka — falou Rhoda. — Ochefe de polícia ligou esta manhã.

Conhece uma mulher chamada Sra.Blavatsky?

— O quê? — A voz de Eurekamorreu na garganta. — Por quê?

Ela imaginou suas digitais nospapéis da mesa de Blavatsky. Seussapatos inadvertidamente mergulhandono sangue da mulher, gritando a provade sua visita.

— Evidentemente ela está...desaparecida. — Rhoda mentia muitomal. A polícia teria dito que MadameBlavatsky estava morta. Rhoda deve terpensado que Eureka não suportaria

saber de outra morte. Ela não sabia umpor cento do que Eureka suportava. —Por algum motivo, a polícia pensa quevocês se conheciam.

Não havia acusação na voz deRhoda, o que significava que ospoliciais não tratavam Eureka comosuspeita — ainda.

— Cat e eu fomos à loja dela umavez. — Eureka tentou não dizer nada quefosse mentira. — Ela lê a sorte.

— Esse lixo é um desperdício dedinheiro, e você sabe disso. O chefe depolícia vai ligar de novo mais tarde. Eu

disse que você responderia a algumasperguntas. — Rhoda se curvou sobre acama e beijou os gêmeos. — Estouquase atrasada. Não arrisque sua sortehoje, Eureka.

Eureka fez que sim enquanto ocelular vibrava na palma da mão comuma mensagem de Cat. A porcaria dochefe de polícia ligou pra minha casasobre Blavatsky. O QUE HOUVE?

Não faço ideia, respondeu Eureka,sentindo-se tonta. Ligaram para cátambém.

E seu livro? Cat digitou, mas Eureka

não tinha uma resposta, só um pesoenorme no peito.

O sol brilhava na água enquanto Eurekae os gêmeos andavam pelas longastábuas de cedro até a beira do píer deBrooks em Cypremort Point. A silhuetamagra do rapaz estava curvada para afrente, verificando as adriças quesubiriam as velas depois que o barcoestivesse na baía.

A chalupa da família se chamavaAriel. Era um belo veleiro maduro,

manchado das intempéries, de 40 pés,com um casco fundo e uma popaquadrada. Era da família havia décadas.Hoje o mastro erguia-se rigidamente,cortando o domo do céu como uma faca.Um pelicano se empoleirava no caboque prendia o barco ao píer.

Brooks estava descalço, vestindobermuda e um moletom verde da Tulane.Usava o antigo boné do exército do pai.Por um momento, Eureka se esqueceu deque estava de luto por MadameBlavatsky. Até se esqueceu de queestava chateada com Brooks. Ao se

aproximar do barco com os gêmeos,apreciou os movimentos simples dele —como era familiarizado com cadacentímetro do barco, a força que exibiaesticando as velas. Depois ouviu suavoz.

Ele gritava ao sair da cabine para oconvés principal. Abaixou-se na escada,com a cabeça no nível da cozinhaabaixo.

— Você não me conhece e nunca vaiconhecer, então pare de tentar.

Eureka parou no píer, segurando asmãos dos gêmeos assustados. Eles

estavam acostumados a ouvir os gritosde Eureka em casa, mas nunca haviamvisto Brooks assim.

Ele levantou a cabeça e a viu. Suapostura relaxou. O rosto se iluminou.

— Eureka. — Ele sorriu. — Vocêestá formidável.

Ela semicerrou os olhos para acozinha de bordo, perguntando-se comquem Brooks estava gritando.

— Está tudo bem?— Não poderia estar melhor. Bons

ventos os trazem, Harrington-Boudreaux! — Brooks tirou o boné para

os gêmeos. — Estão prontos para serminha dupla de imediatos?

Os gêmeos pularam nos braços deBrooks, esquecendo-se de como ele lheshavia assustado antes. Eureka ouviualguém subir da cozinha ao convés. Acoroa prateada da cabeça da mãe deBrooks apareceu. Eureka ficou assustadapor ele ter dito o que disse a Aileen. Elaparou na escada e estendeu a mão paraajudar Aileen a subir os degrausíngremes e ligeiramente vacilantes.

Aileen abriu um sorriso amarelo aEureka e estendeu os braços para um

abraço. Seus olhos estavam molhados.— Abasteci a cozinha com o

almoço. — Ela endireitou a gola dovestido listrado de malha. — Tem muitobrownie, que assei na noite passada.

Eureka imaginou Aileen com umavental sujo de farinha de trigo às 3h damanhã, assando sua angústia no vapor decheiro doce que carregava o segredo damudança em Brooks. Ele não estavaesgotando apenas Eureka. A mãe pareciauma versão menor e desbotada de simesma.

Aileen tirou sapatos de salto gatinho

e os segurou nas mãos. Virou os olhoscastanho-escuros para Eureka; eram damesma cor dos olhos do filho. Elabaixou a voz:

— Notou alguma coisa estranha neleultimamente?

Eureka desejou poder se abrir comAileen, ouvir o que ela passava também.Mas Brooks apareceu e se meteu entreelas, colocando um braço em cada uma.

— Minhas duas damas preferidas —disse ele. E então, antes que Eurekaconseguisse registrar a reação deAileen, Brooks tirou os braços e foi ao

leme. — Pronta, Lulinha?Eu não perdoei você, ela queria

dizer, embora tivesse lido todas as 16mensagens de texto se humilhando queele mandara durante a semana e as duascartas que deixara em seu armário.Estava ali por causa de MadameBlavatsky, porque algo lhe dizia que odestino importava. Eureka tentavasubstituir a última imagem de Blavatskymorta em seu apartamento pelalembrança da mulher em paz sob osalgueiro perto do bayou, aquela queparecia convencida de que havia um

bom motivo para Eureka velejar comBrooks.

O que vai acontecer depois,depende apenas de você.

Mas Eureka pensou em Ander, queinsistia que Brooks era perigoso. Acicatriz na testa de Brooks estava meioescondida pela sombra do boné. Pareciauma cicatriz comum e não um hieróglifoantigo — e por um momento Eurekaimaginou-se louca por pensar que acicatriz podia ser a prova de algosinistro. Ela baixou os olhos para oaerólito, virando-o. Os aros mal eram

visíveis ao sol. Ela agia como umateórica da conspiração que passavatempo demais entocada, falando só coma internet. Precisava relaxar e tomar umsol.

— Obrigada pelo almoço — disseEureka a Aileen, que estivera batendopapo com os gêmeos da prancha deembarque. Ela se aproximou mais ebaixou a voz para que só Aileen pudesseouvir. — Quanto a Brooks. — Ela deude ombros, tentando aparentar leveza.— Meninos, sabe como são. Williamtambém vai crescer e aterrorizar Rhoda

um dia. — Ela mexeu no cabelo doirmão. — Quer dizer que ele ama você.

Aileen olhou a água novamente.— As crianças crescem rápido

demais. Acho que às vezes elas seesquecem de nos perdoar. Bem — elavoltou a olhar para Eureka, forçando umsorriso —, divirtam-se, meninos. E sehouver alguma mudança de tempo,voltem imediatamente.

Brooks estendeu os braços e olhou océu, azul, imenso e sem nuvens, excetopor uma bola de algodão a leste, poucoabaixo do sol.

— O que pode dar errado?A brisa que farfalhava o rabo de

cavalo de Eureka ficou mais forteenquanto Brooks dava a partida nomotor do Ariel e o levava para fora dopíer. Os gêmeos gritaram, muito fofosem seus coletes salva-vidas. Cerraramas mãos em punhos animados aoprimeiro solavanco do barco. A maréera suave e constante, o ar perfeitamentesalgado. A margem era ladeada deciprestes e casas de campo familiares.

Quando Eureka se levantou do bancopara ver se Brooks precisava de ajuda,

ele acenou para que ela se sentasse.— Está tudo sob controle. Relaxe.Embora qualquer pessoa pudesse

dizer que Brooks estava tentandocorrigir seus erros e que a baía pareciaserena — um céu ensolarado fazendo asondas cintilarem, o menor tremeluzir deuma névoa clara demorando-se nohorizonte distante —, Eureka sentia-seinquieta. Via o mar e Brooks comocapazes da mesma surpresa sombria: desúbito, podiam se metamorfosear emfacas e apunhalá-la no coração.

Pensou ter chegado ao fundo do

poço na festa dos Trejean na outra noite,mas desde então Eureka tinha perdido Olivro do amor e a única pessoa quepodia ajudar a entendê-lo. Pior ainda,acreditava que as pessoas que mataramMadame Blavatsky eram as mesmas quea perseguiram. Ela realmente precisavade um amigo — entretanto, achava quaseimpossível sorrir para Brooks noconvés.

O convés era de cedro tratado,pontilhado de mil marcas de saltosagulha criadas nas festas. Dianacostumava ir às festas de Aileen neste

barco. Qualquer uma dessas marcaspodia ter sido feita pelo único par desaltos altos que a mãe possuía. Eurekaimaginou usar as marcas para cloná-la eressuscitá-la, colocá-la neste convésagora, dançando sem qualquer música àluz do dia. Imaginou que a superfície deseu próprio coração devia parecer como convés. O amor era uma pista dedança, onde todos que você perdiadeixavam uma marca.

Pés descalços batiam no convésenquanto os gêmeos corriam por ali,gritando “Tchau!” e “Vamos velejar!” a

cada casa pela qual passavam. O solaquecia os ombros de Eureka e alembrava de dar aos irmãos um belo dia.Queria que o pai estivesse ali para ver aexpressão no rosto deles. Com o celular,tirou uma foto e mandou para ele.Brooks sorriu para ela. Eurekarespondeu com um gesto de cabeça.

Deslizaram por dois homens de bonéde tela pescando numa canoa dealumínio. Brooks cumprimentou cada umpelo nome. Eles viram um barco decaranguejo costear. A água era de umazul opala forte. Tinha o cheiro da

infância de Eureka, boa parte delapassada neste barco com o tio, deBrooks, Jack no leme. Agora Brooksconduzia o barco com uma confiançatranquila. O irmão dele, Seth, sempredizia que Brooks havia nascido paravelejar, que não ficaria surpreso seBrooks se tornasse almirante da marinhaou guia turístico nas Galápagos.Qualquer coisa que mantivesse Brooksna água seria sua provável ocupação.

Não demorou muito para que o Arieldeixasse as casas de veraneio e ostrailers, fazendo uma curva para ficar de

frente para a larga e rasa baía deVermilion.

Eureka se segurou no bancoembranquecido abaixo dela ao ver apequena praia feita pelo homem. Nãotinha voltado lá desde o dia em queBrooks quase se afogou — o dia em quese beijaram. Ela sentiu uma mescla denervosismo e constrangimento e nãoconseguiu olhar para ele. De qualquermodo, Brooks estava ocupado,desligando o motor e içando a velamestra da cabine; depois subiu abujarrona pelo estai do traquete.

Ele entregou a William e Claire abujarrona e pediu que puxassem oscantos, fazendo-os sentir que oajudavam a içar as velas. Eles gritaramquando a vela branca e imaculadadeslizou pelo mastro, fixou-se e enfunoucom o vento.

As velas oscilaram, depois ficaramesticadas com a forte brisa leste. Elespartiram num curso próximo, a 45 grausdo vento. Brooks manobrava o barco auma praia larga e agradável, liberandoas velas adequadamente. O Ariel eramajestoso com o vento em sua popa.

Cortava a água, criando uma poeira deespuma que borrifava suavemente oconvés. Fragatas pretas giravam emcírculos largos no alto, acompanhando oritmo do deslizar a sota-vento das velas.Peixes voadores pulavam sobre asondas como estrelas cadentes. Brooksdeixou que as crianças ficassem com eleno leme enquanto o barco cortava paraoeste na baía.

Eureka pegou na cozinha caixas desuco e dois dos sanduíches para osgêmeos que Aileen preparara. Ascrianças mastigaram em silêncio,

dividindo a espreguiçadeira no cantosombreado do convés. Eureka se sentouao lado de Brooks. O sol caía em seusombros e ela semicerrou os olhos paraum trecho plano e longo de terra comjuncos verde-claros ao longe.

— Ainda está chateada comigo? —perguntou ele.

Ela não queria mencionar aquilo.Não queria falar em nada que pudessearranhar sua superfície frágil e exporcada segredo que guardava.

— É a ilha Marsh? — Ela sabia quesim. A barreira impedia que as ondas

mais fortes quebrassem na baía. — Agente deve ficar ao norte dela. Não é?

Brooks deu um tapinha na roda demadeira do leme.

— Não acha que o Ariel pode lidarcom mar aberto? — Sua voz erabrincalhona, mas os olhos estavamestreitos. — Ou é comigo que estápreocupada?

Eureka respirou uma lufada de arsalgado, certa de que podia ver marolaspara além da ilha.

— É agitado por lá. Pode ser demaispara os gêmeos.

— A gente quer ir lá longe! —gritou Claire entre goles de suco de uva.

— Eu faço isso o tempo todo. —Brooks girou o leme um pouco paraleste, para eles conseguirem contornar abeira da ilha que se aproximava.

— Não fomos tão longe em maio. —Foi a última vez que haviam velejadojuntos. Ela se lembrava de contar asquatro voltas que deram na baía.

— Claro que fomos. — Brooksolhou a água para além de Eureka. —Você tem de admitir que sua memóriaficou desorganizada desde que...

— Não faça isso — rebateu Eureka.Ela olhou novamente para o lado deonde vieram. Nuvens cinzentas tinham sereunido às cor-de-rosa, mais suavesperto do horizonte. Ela viu o sol deslizaratrás de uma delas, seus raios saltandopelo manto escuro da nuvem. Ela queriavoltar. — Não quero ir lá, Brooks. Nãoestamos aqui para brigar.

O barco oscilava, e seus pés seesbarravam. Ela fechou os olhos edeixou que o balanço reduzisse suarespiração.

— Vamos pegar leve — disse ele.

— Este dia é importante.Os olhos dela se abriram num átimo.— Por quê?— Porque não posso ter você

chateada comigo. Eu fiz besteira. Deixeique sua tristeza me assustasse edescontei isso em você quando deveriater oferecido apoio. Isso não muda o quesinto. Estou do seu lado. Mesmo queaconteçam outras coisas ruins, mesmoque você fique mais triste.

Eureka afastou as mãos dele.— Rhoda não sabe que eu trouxe os

gêmeos. Se acontecer alguma coisa...

Ela ouviu a voz de Rhoda: Nãoarrisque sua sorte hoje, Eureka.

Brooks esfregou o queixo,claramente irritado. Girou uma dasalavancas da vela principal. Ia passarpela ilha Marsh.

— Deixa de ser paranoica — disseele, grosso. — A vida é uma longasurpresa.

— Algumas surpresas podem serevitadas.

— A mãe de todo mundo morre,Eureka.

— Está me dando muito apoio,

obrigada.— Olhe, talvez você seja especial.

Talvez nada de ruim vá acontecer comvocê ou com alguém que você amar denovo — disse ele, o que fez Eureka rircom amargura. — O que quero dizer éque peço desculpas. Eu traí suaconfiança na semana passada. Estou aquipara reconquistá-la.

Ele esperava pelo perdão de Eureka,mas ela se virou e olhou as ondas, cujacor lembrava par de olhos. Ela pensouem Ander pedindo que confiasse nele.Ainda não sabia se confiava. Será que

um aerólito seco podia abrir um portalpara a confiança com a rapidez com queBrooks fechara um? E isso importava?Ela não tinha notícias de Ander desdeaquele experimento na noite chuvosa.Nem mesmo sabia como procurar porele.

— Eureka, por favor — sussurrouBrooks. — Diga que confia em mim.

— Você é meu amigo mais antigo.— Sua voz era severa. Ela não o olhava.— Eu confio que vamos superar isso.

— Que bom. — Ela ouviu umsorriso na voz dele.

O céu escurecia. O sol foi para trásde uma nuvem no estranho formato deum olho. Um facho de luz disparou pelocentro dela, iluminando um círculo demar na frente do barco. Nuvens escurasrolavam na direção deles como fumaça.

Eles tinham passado pela ilhaMarsh. As ondas rolavam numasucessão rápida. Uma delas balançoutanto o barco que Eureka cambaleou. Ascrianças rolaram pelo convés, gritando erindo sem medo algum.

Olhando o céu, Brooks ajudouEureka a se levantar.

— Você tinha razão. Acho que agente deve voltar.

Ela não esperava por isso, masconcordou.

— Pode assumir o leme?Ele atravessou o convés para girar

as velas e virar o barco. O céu azulsucumbira ao avanço das nuvensescuras. O vento ficou mais feroz, e atemperatura caiu.

Quando Brooks voltou ao leme, elacobriu os gêmeos com toalhas de praia.

— Vamos descer à cozinha.— A gente quer ficar aqui em cima e

ver as ondas grandes — disse Claire.— Eureka, preciso que segure o

leme de novo. — Brooks controlava asvelas, tentando fazer a proa do barcogirar e enfrentar as ondas de frente, oque seria mais seguro, mas as vagasbatiam a estibordo.

Eureka fez William e Claire sesentarem ao lado dela para podercolocar um braço em volta deles. Osdois pararam de rir. As ondas tornavam-se fortes demais.

Uma ondulação poderosa seencrespou na frente do barco como se

estivesse se erguendo do fundo do marpela eternidade. O Ariel subiu na face daonda, cada vez mais alto, até que desceue atingiu a superfície da água com umestrondo que estremeceu muito o convés.Eureka foi separada dos gêmeos,chocando-se no mastro.

Ela bateu a cabeça, mas conseguiuse levantar. Protegeu o rosto dos jatosde água branca que voavam pelo convés.Estava a 1 metro e meio das crianças,mas mal conseguia se mexer com obalanço do barco. De repente o veleirovirou-se contra a força de outra onda,

que se encrespou sobre o convés e oinundou.

Eureka ouviu um grito. Seu corpoficou paralisado ao ver William e Claireserem varridos pela água e carregadospara a popa. Eureka não conseguiualcançá-los. Tudo se balançava demais.

O vento mudou. Uma lufada bateu nabujarrona, levando a vela mestra amudar de lado violentamente. A retraçacorreu a estibordo, rangindo. Eureka viuquando ela girou na direção dos gêmeos,que lutavam para se firmar num bancoda cabine, longe da água furiosa.

— Cuidado! — gritou Eureka tardedemais.

A retranca atingiu lateralmente opeito de Claire e William. Em umsimples movimento apavorante, jogouseus corpos pela amurada, como sefossem leves como plumas.

Ela se jogou contra a amurada dobarco e procurou os gêmeos em meio àsondas. Levou só um segundo, masparecia uma eternidade: coletes laranjasubindo à superfície e bracinhosmínimos se debatendo no ar.

— William! Claire! — gritou

Eureka, mas, antes que conseguissepular, o braço de Brooks lançou-secontra seu peito e a reteve ali. Ele tinhauma das boias salva-vidas na outra mão,a corda amarrada ao pulso.

— Fique aqui! — gritou ele.Brooks mergulhou na água. Atirou a

boia para os gêmeos enquanto suasfortes braçadas o levaram para pertodeles. Brooks os salvaria. Claro quesalvaria.

Outra onda agigantou-se sobre acabeça deles — e Eureka não os viumais. Ela gritou. Correu de um lado a

outro do convés. Esperou três, talvezquatro segundos, certa de que elesreapareceriam a qualquer momento. Omar estava negro e furioso. Não haviasinal dos gêmeos, nem de Brooks.

Ela lutou para subir no banco emergulhou no mar bravio, dizendo aoração mais curta que conhecia enquantoseu corpo caía.

Ave-Maria, cheia de graça...No ar, ela se lembrou: devia ter

baixado âncora antes de sair do barco.Enquanto seu corpo batia na

superfície, Eureka se preparou para o

choque, mas não sentiu nada. Nem água,nem frio, nem mesmo que estavasubmersa. Abriu os olhos. Segurava ocolar, o medalhão e o aerólito.

O aerólito.Assim como acontecera no bayou

nos fundos de sua casa, a pedramisteriosa lançara uma espécie de balãoimpenetrável e resistente à água — destavez cercando todo o corpo de Eureka.Ela testou seus limites. Eram flexíveis.Podia se esticar sem ficar apertada.Parecia um traje de mergulho,protegendo-a dos elementos. Era um

escudo de aerólito em forma de bolha.Livre da gravidade, ela levitou

dentro do escudo. Podia respirar. Podiase mexer nadando normalmente. Podiaver o mar em volta dela como seestivesse com uma máscara demergulho.

Em qualquer outra circunstância,Eureka não teria acreditado que aquiloestava acontecendo. Mas não tinhatempo para não acreditar. Sua fé seria asalvação dos gêmeos. E assim ela serendeu à realidade nova e onírica.Procurou os irmãos e Brooks no mar

ondulante.Quando viu o chute de uma perninha

uns 15 metros à frente, ela gemeu dealívio. Nadou mais do que nunca navida, impelindo desesperadamente osbraços e as pernas para lá. Ao seaproximar, viu que era William. Eleesperneava violentamente — e sua mãosegurava a de Claire.

Eureka se retesou com o estranhoesforço de nadar dentro de seu escudo.Estendeu a mão — estava tão perto —,mas não rompeu a superfície da bolha.

Ela cutucava William

insensatamente, mas ele não conseguiavê-la. As cabeças dos gêmeos aindasubmergiam. Uma sombra escura atrásdeles podia ser Brooks, mas a formapermaneceu desfocada.

Os chutes de Wiliam ficavam maisfracos. Eureka gritava inutilmentequando de repente a mão de Clairebaixou e por acidente penetrou noescudo. Não importava como Claire fezisso. Eureka segurou a irmã com força ea puxou para dentro. A menina ensopadaarquejou quando seu rosto passou.Eureka rezou para que a mão de William

ainda estivesse na de Claire para quepudesse puxá-la para o escudo também.A mão dele parecia estar afrouxando.De falta de oxigênio? Medo do quesugava a irmã?

— William, segure firme! — gritouEureka o mais alto que pôde, sem saberse ele a ouviria. Ela só ouvia o borrifoda água na superfície do escudo.

O punho minúsculo dele rompeu abarreira. Eureka puxou o resto do seucorpo num único movimento, da mesmaforma que vira uma vez um novilhonascer. Os gêmeos engasgavam e

tossiam — e levitavam com Eureka noescudo.

Ela puxou os dois num abraço. Seupeito estremecia, e ela quase perdeu ocontrole das emoções. Mas não podia,ainda não.

— Onde está Brooks? — Ela olhoupara além do escudo. Não o via.

— Onde estamos? — perguntouClaire.

— Isto dá medo — disse William.Eureka sentiu as ondas se quebrando

em volta deles, mas agora estava quase5 metros abaixo da superfície, onde a

água era muito mais tranquila. Conduziuo escudo num círculo, olhando asuperfície, procurando por sinais deBrooks ou do barco. Os gêmeoschoravam, apavorados.

Ela não sabia quanto tempo o escudoduraria. Se estourasse, afundasse oudesaparecesse, estariam mortos. Brooksseria capaz de voltar ao barco sozinho,velejar à margem. Ela precisavaacreditar que ele conseguiria. Se nãoacreditasse, talvez jamais se permitissefocar na segurança dos gêmeos. Eprecisava que os gêmeos ficassem sãos

e salvos.Eureka não conseguia enxergar

acima da água para determinar que rumotomar, então ficou parada e olhou ascorrentes. Havia uma maré muito alta,caótica e abjeta ao sul da ilha Marsh.Teria de evitá-la.

Quando a corrente a puxou para umlado, ela entendeu que devia nadarcontra ela. Com cautela, começou abater os pés. Nadaria até que a marémudasse na baía, junto da ilha Marsh.Dali, assim esperava, as ondas semoveriam com ela, carregando os três

para a praia em um monte de espuma.Os gêmeos não fizeram mais

perguntas. Talvez soubessem que elanão podia responder. Depois de algunsminutos vendo-a nadar, passaram anadar com ela. Ajudaram o escudo a sedeslocar mais rapidamente.

Nadaram pelo escuro, sob asuperfície do mar — passando porpeixes pretos, inchados e estranhos, porpedras na forma de costelas,escorregadias de musgo e sedimentos.Encontraram um ritmo — os gêmeosbatiam braços e pernas, depois

descansavam, enquanto Eureka nadavafirmemente.

Depois do que pareceu uma hora,Eureka viu o banco de areia submersoda ilha Marsh e quase desmaiou dealívio. Significava que estavam nadireção certa. Mas ainda não haviamchegado. Tinham uns 5 quilômetros pelafrente. Nadar dentro do escudo eramenos desgastante do que na água, mas 5quilômetros eram uma distância muitogrande para percorrer com gêmeos de 4anos e semiafogados a reboque.

Depois de mais uma hora nadando, o

fundo do escudo se agarrou em algumacoisa. Areia. O fundo do mar. A águaficava mais rasa. Eles estavam quase namargem. Eureka nadou com forçarenovada. Por fim chegaram a um aclivede areia. A água era rasa o bastante paraque uma onda se quebrasse no alto doescudo.

Quando isso aconteceu, o escudoestourou como uma bolha de sabão. Nãodeixou vestígios. Eureka e os gêmeosforam jogados pela gravidade, tocando aterra novamente. Ela estava de joelhosna água, segurando-os nos braços

enquanto cambaleava por juncos e lamapara a margem deserta da Vermilion.

O céu estava inundado de nuvenspesadas. Raios dançavam no alto dasárvores. Os únicos sinais de civilizaçãoeram uma camiseta da LSU cheia deareia e uma lata de Coors Lightdesbotada e metida no lodo.

Ela colocou os gêmeos na praia.Caiu na areia. William e Claire seenroscaram em bolas de cada lado deEureka. Eles tremiam. Ela os cobriu comos braços e esfregou sua pele arrepiada.

— Eureka? — A voz de William

estava trêmula.Ela mal conseguiu balançar a

cabeça.— Brooks morreu, não foi?Como Eureka não respondeu,

William começou a chorar, depoisClaire também, e Eureka não conseguiapensar em nada que os fizesse se sentirmelhor. Ela devia ser forte para eles,mas não tinha essa força. Estavadespedaçada. Contorceu-se na areia,sentindo uma entranha náusea lhepenetrar o corpo. Sua visão se toldou, euma sensação desconhecida se enroscou

em seu coração. Ela abriu a boca e lutoupara respirar. Por um momento, pensouque poderia chorar.

Foi quando começou a chover.

26

REFÚGIO

As nuvens se adensavam enquanto achuva varria a baía. O ar tinha cheiro deuma mistura de sal, temporal e algasmarinhas apodrecidas. Eureka sentiu aventania se fortalecer sobre toda aregião como se fosse uma extensão de

suas emoções. Imaginou seu coraçãopulsante acentuando a chuva, batendolençóis de água gelada por todo o BayouTeche enquanto ela ficava paralisada detristeza, febril numa poça fétida do lododa baía de Vermilion.

Gotas de chuva voavam do aerólito,formando zunidos suaves ao bater nopeito e no queixo de Eureka. A maréinvestia. Ela deixou que colidisse delado em seu corpo, nos contornos dorosto. Queria flutuar de volta ao mar eencontrar a mãe e o amigo. Queria que omar se tornasse um braço, uma onda

aberrante perfeita que a carregasse paraa água como Zeus fizera com Europa.

Ternamente, William sacudiu Eurekapara a consciência de que ela precisavase levantar. Precisava cuidar dele e deClaire, procurar ajuda. A chuva setransformara em um aguaceirotorrencial, como um furacão que aparecerepentinamente. O céu de aço eraapavorante. Fez Eureka desejarabsurdamente que um padre aparecessena praia debaixo da chuva, oferecendoabsolvição só por precaução.

Ela se colocou de joelhos com

esforço. Obrigou-se a ficar de pé epegar as mãos dos irmãos. As gotas dechuva eram gigantescas e caíam comuma velocidade tão feroz que doíam nosombros. Tentou cobrir os gêmeos aoandarem pelo lodo e a relva, pelastrilhas rochosas e acidentadas. Passouos olhos pela praia, procurando refúgio.

A cerca de 1 quilômetro e meio darua de terra, eles se depararam com umtrailer Airstream. Pintado de azulceleste e decorado com luzes de Natal,destacava-se, sozinho. Suas janelasrachadas de sal estavam demarcadas

com fita veda-rosca. Assim que a portafina se abriu, Eureka empurrou osgêmeos para dentro.

Ela sabia que devia desculpas eexplicações ao assustado casal de meia-idade que atendeu à porta de chineloscombinando, mas Eureka não conseguiajuntar fôlego. Caiu desesperadamenteem uma banqueta junto da porta,tremendo nas roupas lustrosas de chuva.

— P-posso usar seu telefone? —conseguiu gaguejar, enquanto um trovãosacudia o trailer.

O telefone era antigo, preso à parede

com um fio verde-claro. Eureka discou onúmero do pai no restaurante, que sabiade cor mesmo antes de ter um celular.Ela não sabia mais o que fazer.

— Trenton Boudreaux. — Ela soltouo nome à recepcionista que gritava umasaudação memorizada junto ao barulhode fundo. — É a filha dele.

O rugido da hora do almoço sesilenciou quando Eureka foi colocada naespera. Ela aguardou por séculos,ouvindo as ondas de chuva chegando epartindo, como o sinal de rádio numaviagem de carro. Por fim alguém gritou

para o pai atender ao telefone nacozinha.

— Eureka? — Ela o imaginouaninhando o fone sob o queixo abaixado,as mãos escorregadias por causa damarinada para camarão.

A voz dele tornava tudo melhor epior. De repente, ela não conseguiufalar, mal conseguia respirar. Ela seagarrou ao fone. Papai subiu do fundode sua garganta, mas ela não conseguiapronunciar.

— O que houve? — gritou ele. —Você está bem?

— Estou no Point — disse Eureka.— Com os gêmeos. Nós nos perdemosde Brooks. Pai... Eu preciso de você.

— Fique onde está — gritou ele. —Estou indo.

Eureka baixou o fone na mão dohomem confuso que era dono do trailer.Ao longe, por sobre o tinido estridenteno ouvido, ela o escutou descrever olocal do Airstream, perto da praia.

Esperaram em silêncio pelo quepareceu uma eternidade enquanto achuva e o vento gemiam no teto. Eurekaimaginou a mesma chuva chicoteando o

corpo de Brooks, o mesmo ventojogando-o num reino além de seualcance, e enterrou o rosto nas mãos.

As ruas estavam alagadas quando oLincoln azul-claro do pai parou na frentedo trailer. Pela janelinha do Airstream,ela o viu correr do carro para osdegraus de madeira meio submersos. Elepatinhou pela água lamacenta que corriacomo um rio caudaloso por novos sulcosno terreno. Destroços rodopiavam emvolta dele. Eureka abriu a porta dotrailer num rompante, os gêmeos a seulado. Ficou emocionada quando os

braços dele a envolveram.— Graças a Deus — sussurrou o

pai. — Graças a Deus.

Ele ligou para Rhoda na lenta viagem devolta para casa. Eureka ouviu a vozhistérica pelo telefone, gritando: O queeles estavam fazendo no Point? Eurekatampou o ouvido bom com a mão paratentar se desligar da conversa. Fechavaos olhos com força sempre que oLincoln aquaplanava na água alta. Elasabia, sem precisar olhar, que eram os

únicos na estrada.Eureka não conseguia parar de

tremer. Ocorreu-lhe que talvez jamaisparasse, que passaria a vida numainstituição psiquiátrica num corredorevitado, uma reclusa lendária coberta develhos cobertores esfarrapados.

A vista da varanda de sua casacausou uma série mais grave detremores. Sempre que Brooks a deixavaem casa, eles passavam mais vinteminutos na varanda antes de realmentese despedirem. Ela não havia feito issohoje. Ele gritou “Fique aqui!” antes de

mergulhar do barco.Ela havia ficado; ainda estava ali.

Onde estava Brooks?Lembrou-se da âncora que devia ter

baixado. Bastava apertar um botão. Queidiota havia sido.

O pai estacionou o carro e deu avolta para abrir a porta do carona.Ajudou-a a sair com os gêmeos. Atemperatura caía. O ar tinha um cheirode queimado, como se um raio tivessecaído por perto. As ruas eram rios commarolas brancas. Ela cambaleou parafora do carro, escorregando na calçada

submersa sob 30 centímetros de água.O pai a segurou pelo ombro

enquanto subiam a escada. Ele tinhaClaire, adormecida, nos braços. Eurekaabraçava William.

— Estamos em casa agora, Eureka.Era de pouco conforto. Sentia-se

apavorada com a ideia de estar em casasem saber onde Brooks se encontrava.Olhou a rua, querendo deslizar em suacorrenteza e boiar de volta à baía, umgrupo de busca flutuante de uma garotasó.

— Rhoda falou por telefone com

Aileen — informou o pai. — Vamos vero que eles descobriram.

Rhoda abriu a porta da varanda.Pulou para os gêmeos, abraçando-oscom tanta força que seus punhos ficarambrancos. Chorava baixinho, e Eurekanem acreditava na simplicidade queRhoda assumia quando chorava, comoum personagem de filme, fácil dedescrever, quase bonita.

Seu olhar passou por Rhoda, e elaficou pasma ao ver várias silhuetasandando pelo hall. Até então não tinhanotado os carros estacionados na rua, na

frente de sua casa. Houve uma agitaçãode pernas e braços na escada davaranda, e Cat jogou os braços nopescoço de Eureka. Julien estava atrásde Cat. Ele parecia dar-lhe apoio, a mãoem suas costas. Os pais de Cat tambémestavam lá, aproximando-se aos poucoscom o irmão mais novo de Cat, Barney.Bill estava na varanda com doispoliciais que Eureka não reconheceu.Ele parecia ter se esquecido dosavanços de Cat e olhava para Eureka.

Ela se sentia rígida como umcadáver com Cat segurando seus

cotovelos. A amiga pareciaagressivamente preocupada, os olhospercorrendo o rosto de Eureka. Todosolhavam para ela com expressõesparecidas com aquelas que as pessoasassumiram depois de ela ter tomado oscomprimidos.

Rhoda pigarreou. Pegou um gêmeoem cada braço.

— Fico muito feliz que você estejabem, Eureka. Você está bem?

— Não.Eureka precisava se deitar. Passou

por Rhoda, sentiu o braço de Cat

enganchado no dela e a presença deJulien do outro lado.

Cat a levou ao pequeno banheiro dohall, acendeu a luz e fechou a porta. Semdizer nada, ajudou Eureka a tirar aroupa. Eureka se deixou cair como umaboneca de trapos enquanto Cat tirava omoletom encharcado por sua cabeça. Elapuxou a calça molhada de Eureka, queparecia ter sido cirurgicamente coladaao corpo. Ajudou-a a tirar o sutiã e acalcinha, as duas fingindo não pensarque não se viam inteiramente nuas desdeo fundamental. Cat olhou de soslaio para

o colar de Eureka, mas não disse nadasobre o aerólito. Vestiu Eureka numroupão branco e felpudo que pegou numgancho perto da porta. Com os dedos,Cat penteou o cabelo de Eureka e oprendeu com um elástico que tinha nopulso.

Por fim abriu a porta e deixou queEureka fosse para o sofá. A mãe de Cata cobriu com um cobertor e acariciouseu ombro.

Eureka virou o rosto para aalmofada, as vozes bruxuleando à suavolta como luz de velas.

— Se houver alguma coisa que elapossa nos dizer a respeito de quando viuNoah Brooks pela última vez... — A vozdo policial parecia desbotar enquantoalguém o tirava da sala.

Enfim, ela dormiu.Quando acordou no sofá, não sabia

quanto tempo tinha se passado. Atempestade continuava brutal, e o céuestava escuro fora das vidraçasmolhadas. Ela sentia frio, mastranspirava. Os gêmeos estavam debruços no tapete, vendo um filme noiPad, comendo macarrão com queijo, de

pijama. Os outros deviam ter ido paracasa.

A TV estava no mudo, mostrando umrepórter debaixo de um guarda-chuva nodilúvio. Quando a câmera cortou paraum meteorologista seco sentado a umamesa, o espaço em branco ao lado desua cabeça foi preenchido por um blocode texto com a manchete Derecho. Apalavra era definida numa caixavermel ha : Uma frente de chuvatorrencial e ventos fortes que em geralocorre nos estados das GrandesPlanícies nos meses de verão. O locutor

remexeu papéis na mesa, meneou acabeça com incredulidade enquanto aprevisão do tempo cortava para umcomercial sobre uma marina queabrigava barcos durante o inverno.

Na mesa de centro diante de Eurekahavia uma caneca de chá morno ao ladode uma pilha de três cartões deixadospela polícia. Ela fechou os olhos epuxou o cobertor mais para o pescoço.Eventualmente teria de falar com eles.Mas se Brooks continuassedesaparecido, parecia impossível queEureka conseguisse voltar a falar. Só a

ideia lhe pesava no peito.Por que ela não tinha soltado a

âncora? A vida toda, ela ouviu a regrada família Brooks: a última pessoa adeixar o barco sempre deve baixar aâncora. Ela não o fez. Se Brooks tentaraembarcar de novo, teria sido uma tarefaárdua com aquelas ondas e aquelesventos. Ela teve o impulso nauseante erepentino de dizer em voz alta queBrooks estava morto por culpa dela.

Pensou em Ander segurando acorrente da âncora debaixo d’água emseu sonho e não entendeu o que aquilo

significava.O telefone tocou. Rhoda atendeu na

cozinha. Falou em voz baixa por algunsminutos, depois levou o telefone sem fiopara Eureka no sofá.

— É Aileen.Eureka meneou a cabeça em uma

negativa, mas Rhoda colocou o telefoneem sua mão. Ela tombou a cabeça delado para prendê-lo no ouvido.

— Eureka? O que houve? Ele está...Ele está...?

A mãe de Brooks não terminou, eEureka não conseguiu dizer uma palavra.

Ela abriu a boca. Queria fazer Aileen sesentir melhor, mas só o que saiu foi umgemido. Rhoda pegou o telefone com umsuspiro e se afastou.

— Desculpe, Aileen — disseRhoda. — Ela está em choque desde quechegou em casa.

Eureka segurava os pingentes napalma da mão. Abriu os dedos e olhou apedra e o medalhão. O aerólito nãoficara molhado, como Ander prometera.O que isso significava?

O que tudo aquilo significava? Elaperdeu o livro de Diana e quaisquer

respostas que ele poderia trazer. QuandoMadame Blavastky morreu, Eurekatambém perdeu a última pessoa cujosconselhos pareciam lógicos everdadeiros. Ela precisava falar comAnder. Precisava saber tudo o que elesoubesse.

Não tinha como entrar em contatocom ele.

Uma olhada na TV fez Eureka tatearatrás do controle remoto. Ela apertou obotão para liberar o som a tempo de vera câmera dar uma panorâmica no pátioencharcado no centro de sua escola. Ela

se sentou ereta no sofá. Os gêmeosdesviaram os olhos do filme. Rhodacolocou a cabeça para dentro da saleta.

— Estamos ao vivo na EvangelineCatholic High School, em SouthLafayette, onde um adolescentedesaparecido inspirou uma reação muitoespecial — disse a repórter.

Uma lona plástica tinha sidoestendida como uma tenda abaixo danogueira gigantesca onde Eureka e Catalmoçavam, onde ela havia feito aspazes com Brooks na semana anterior.Agora a câmera dava uma panorâmica

em um grupo de estudantes de capa dechuva parados em uma vigília comflores e um balão.

E ali estava: uma cartolina brancacom uma foto ampliada da cara deBrooks — a foto que Eureka tinha tiradono barco em maio, a imagem em seucelular sempre que ele ligava. Agoraocupava o centro de um anel cintilantede velas. Era tudo culpa dela.

Eureka viu Theresa Leigh e MaryMonteau da equipe de cross-country,Luke, de geofísica, Laura Trejean, quedeu a festa do Labirinto. Metade da

escola estava presente. Como formaramuma vigília com tanta rapidez?

A repórter empurrou o microfone nacara de uma menina de cabelos pretos ecompridos fustigados pela chuva. Umatatuagem de asa de anjo era visívelpouco acima da gola em V da blusa.

— Ele era o amor de minha vida. —Maya Cayce fungou, olhando bem para acâmera. Seus olhos se encheram delágrimas, que escorriam livrementepelos dois lados do nariz. Ela enxugouos olhos com a borda de um lenço pretode renda.

Eureka pressionou a boca contra aalmofada do sofá para abafar seu nojo.Viu a atuação de Maya Cayce. A lindagarota colocou a mão firme no peito edisse apaixonadamente:

— Meu coração se partiu em milpedacinhos. Eu nunca vou esquecê-lo.Nunca.

— Cale a boca! — gritou Eureka.Ela queria jogar a caneca de chá natelevisão, na cara de Maya Cayce, masestava arrasada demais para se mexer.

Então o pai a estava levantando dosofá.

— Vamos colocar você na cama.Ela queria se contorcer das mãos

dele, mas não tinha forças. Deixou queele a carregasse pela escada. Ouviu onoticiário voltar à previsão do tempo. Ogovernador declarou estado deemergência por toda a Louisiana. Duaspequenas barragens se romperam,despejando o bayou na planície dealuvião. Segundo o noticiário,aconteciam coisas parecidas noMississippi e no Alabama enquanto atempestade se espalhava pelo golfo.

No alto da escada, o pai a carregou

pelo corredor até o quarto, que pareciapertencer a outra pessoa — a cama debaldaquino branca, a mesa feita parauma criança, a cadeira de balanço ondeo pai costumava ler histórias para elanuma época em que ela acreditava emfinais felizes.

— A polícia tem um monte deperguntas — disse ele ao deitar Eurekana cama.

Ela rolou de lado para ficar decostas para ele. Não tinha o queresponder.

— Tem alguma coisa que queira me

contar que os ajude nas buscas?— Cruzamos a ilha Marsh com a

chalupa. O tempo ficou ruim e...— Brooks caiu?Eureka se enroscou em posição

fetal. Não podia dizer ao pai que Brooksnão havia caído, mas pulado, que sejogou para resgatar os gêmeos.

— Como você levou o barco para amargem sozinha? — perguntou ele.

— Nós nadamos — sussurrou ela.— Vocês nadaram?— Não me lembro do que aconteceu

— mentiu ela, perguntando-se se o pai

achava isso familiar. Ela disse o mesmodepois que Diana morreu, só que naépoca foi verdade.

Ele afagou sua nuca.— Consegue dormir?— Não.— O que posso fazer?— Não sei.Ele ficou ali por vários minutos, por

três raios e um trovão longo eperturbador. Ela o ouviu coçar o queixo,como fazia quando discutia com Rhoda.Ouviu seus pés no carpete, depois a mãogirando a maçaneta.

— Pai? — Ela olhou por sobre oombro.

Ele parou na soleira.— É um furacão?— Ainda não estão chamando assim.

Mas, para mim, está claro como cristal.Chame se precisar de alguma coisa.Descanse um pouco. — Ele fechou aporta.

Um raio cortou o céu, e uma rajadade vento afrouxou a trava das janelas demadeira. Elas rangeram para dentro. Avidraça já estava levantada. Eureka selevantou para fechar.

Mas não foi rápida o bastante. Umasombra caiu por seu corpo. A formaescura de um homem se moveu pelosgalhos do carvalho perto de sua janela.Uma bota preta pisou em seu quarto.

27

O VISITANTE

Eureka não gritou por socorro.O homem escalava sua janela, e ela

se sentia pronta para a morte, comoaconteceu quando tomou o vidro decomprimidos. Ela perdera Brooks. Amãe se fora. Madame Blavatsky havia

sido assassinada. Eureka era odesafortunado fio que unia os três.

Quando a bota preta passou pelajanela, esperou para ver o resto de quemfinalmente daria um fim a ela e àinfelicidade que impunha àqueles que acercavam.

As botas pretas se ligavam a jeanspretos, que por sua vez eram ligados auma jaqueta de couro preto, que eraligada a um rosto que ela reconheceu.

A chuva cuspia pela janela, masAnder permanecera seco.

Estava mais pálido que nunca, como

se a tempestade tivesse lavado cadapigmento de sua pele. Parecia brilhar aoficar de pé contra a janela, assomando-se sobre Eureka. Seu olhar críticotornava o quarto menor.

Ele fechou a vidraça, passou atranca e fechou as janelas de madeiracomo se morasse ali. Tirou a jaqueta e acolocou na cadeira de balanço. Osmúsculos definidos do peito estavamvisíveis sob a camiseta. Ela queria tocarnele.

— Você não está molhado — disseela.

Ander passou os dedos pelo cabelo.— Tentei ligar para você. — Seu

tom soava como braços estendendo-seaté ela.

— Perdi meu telefone.— Eu sei.Ele balançou a cabeça, e ela

entendeu que de algum modo elerealmente sabia o que havia acontecido.Ander deu um passo longo até Eureka,com tal rapidez que ela não conseguiuver que ele se movia — então estava emseus braços. A respiração de Eurekaficou presa na garganta. Um abraço era a

última coisa que esperava. Ainda maissurpreendente: era maravilhoso.

O toque de Ander tinha aquelaprofundidade que sentiu apenas comalgumas pessoas na vida. Diana, o pai,Brooks, Cat — Eureka podia contar nosdedos. Era uma profundidade quesugeria um afeto sincero, umaprofundidade que beirava o amor. Elaesperava querer se afastar, mas securvou para mais perto.

As mãos abertas de Ander pousaramem suas costas. Os ombros dele seestenderam sobre os dela como um

escudo protetor, o que a fez pensar noaerólito. Ele tombou a cabeça de ladopara aninhar a dela em seu peito.Através da camiseta, ela ouvia ocoração dele bater. Amou o som queproduzia.

Fechou os olhos sabendo que os deAnder também estavam fechados. Osolhos fechados dos dois lançaram umsilêncio pesado no quarto. Eureka derepente sentiu estar no lugar mais seguroda terra e sabia que estivera enganada arespeito dele.

Ela se lembrou do que Cat sempre

dizia a respeito de ser “fácil” ficar comalguns caras. Eureka nunca entenderaaquilo — o tempo que passou com amaioria dos meninos foi hesitante,nervoso, constrangedor — até agora.Abraçar Ander era tão fácil que pareciaimpensável não abraçá-lo.

A única coisa estranha estava nospróprios braços, presos de lado peloabraço dele. Quando recuperou o fôlego,ela os ergueu e os passou pela cintura deAnder com uma graça e umanaturalidade surpreendentes. Pronto.

Ele a puxou para mais perto, fazendo

com que cada abraço que Eureka játivesse testemunhado nos corredores daEvangeline, cada abraço entre o pai eRhoda, parecessem uma triste imitação.

— Estou tão aliviado que estejaviva — disse ele.

Sua seriedade fez Eurekaestremecer. Ela se lembrou da primeiravez que ele a tocara, a ponta de seu dedono canto úmido do olho dela. “Nada delágrimas”, dissera ele.

Ander ergueu o queixo de Eurekapara que ela o olhasse. Fitou os cantosde seus olhos, como se estivesse

surpreso ao descobri-los secos. Pareciaestar num conflito insuportável.

— Eu lhe trouxe uma coisa.Ele estendeu a mão para trás,

pegando um objeto numa embalagemplástica enfiada no cós dos jeans.Eureka reconheceu imediatamente. Seusdedos se fecharam no Livro do amor, noforte saco à prova d’água.

— Como conseguiu isso?— Um passarinho me mostrou onde

encontrar — disse ele de maneiracompletamente séria.

— Polaris — deduziu Eureka. —

Como você...— Não é fácil de explicar.— Eu sei.— O insight de sua tradutora foi

impressionante. Ela teve o bom-senso deenterrar o livro e o caderno sob umsalgueiro perto do bayou na noite antesde ser... — Ander parou, com os olhosbaixos. — Eu sinto muito.

— Sabe o que aconteceu com ela?— sussurrou Eureka.

— O suficiente para me sentirvingativo — murmurou ele. Seu tomconvenceu Eureka de que as pessoas

cinzentas na estrada eram as assassinas.— Fique com os livros. Claramente, elaqueria que fossem devolvidos a você.

Eureka pôs os dois livros na cama.Seus dedos correram pela capa verde egasta do Livro do amor, acompanhandoos três sulcos na lombada. Tocou ocírculo em relevo peculiar na capa edesejou saber como o livro havia sidoquando tinha a capa nova.

Sentiu as páginas cortadas e ásperasdo antigo diário preto de MadameBlavatsky. Não queria violar aprivacidade da morta. Mas algumas

anotações ali dentro continham tudo oque Eureka podia saber do legado queDiana lhe deixou. Precisava derespostas.

Diana, Brooks e Madame Blavatsky,cada um deles achou o Livro do amorfascinante. Eureka não se sentia digna detê-lo só para si. Tinha medo de abri-lo,medo de que a deixasse ainda mais só.

Ela pensou em Diana, queacreditava que Eureka era durona einteligente o bastante para conseguir sairde qualquer fosso. Pensou em MadameBlavatsky, que nem piscou quando

perguntou se ela podia escrever o nomede Eureka como a legítima dona dotexto. Pensou em Brooks, que disse quea mãe dela era uma das pessoas maisinteligentes que já viveram — e seDiana pensava que havia algo deespecial no livro, Eureka estava emdívida com ela para entender suascomplexidades.

Abriu o diário com a tradução deBlavatsky. Folheou lentamente. Poucoantes de um bloco de páginas em branco,havia uma única folha escrita em tintavioleta, intitulada O livro do amor,

Quarta salva.Ela olhou para Ander.— Já leu isto?Ele balançou a cabeça.— Sei o que diz. Fui criado com

uma versão da história.Eureka leu em voz alta:— Um dia, em algum lugar, nos

recessos do futuro remoto, surgirá umamenina que conhecerá as condiçõespara iniciar a Época da Ascensão. Sóentão Atlântida ressurgirá.

Atlântida. Então Blavatsky tinharazão. Mas isso significaria que a

história era verídica?— A menina deve nascer num dia

que não existe, como nós, atlantes,deixamos de existir quando a donzelaverteu sua lágrima.

— Como pode um dia não existir?— perguntou Eureka. — O que isso querdizer?

Ander a olhou atentamente, mas nãodisse nada. Ele esperou. Eureka pensouem seu aniversário. Era em 29 defevereiro. Só existia a cada quatro anos.

— Continue — estimulou Ander,alisando a página da tradução de

Blavatsky.— Ela deve ser uma mãe sem filhos

e uma filha sem mãe.De imediato, Eureka pensou no

corpo de Diana no mar. “Filha sem mãe”definia a identidade sombria que elahabitava havia meses. Pensou nosgêmeos, por quem tinha arriscado tudonaquela tarde. Faria a mesma coisaqualquer dia. Ela também era uma mãesem filhos?

— Por fim, suas emoções devem sermoderadas e fermentar como umatempestade alta demais na atmosfera

para cair na terra. Ela jamais devechorar até o momento em que seu pesarfor maior que aquilo que pode suportarqualquer mortal. E então ela chorará...E abrirá a fissura para nosso mundo.

Eureka olhou a imagem de SantaCatarina de Siena pendurada em suaparede. Examinou a única lágrimapitoresca da santa. Haveria uma relaçãoentre essa lágrima e os incêndios paraos quais a santa oferecia proteção?Haveria uma relação entre as lágrimasde Eureka e o livro?

Ela pensou em Maya Cayce, que

ficava linda quando chorava, pensou nanaturalidade com que Rhoda chorou aover os filhos. Eureka invejava aquelasdemonstrações francas de emoção.Pareciam a antítese de tudo o que elaera. A noite em que Diana a esbofeteoufoi a única vez que ela se lembrava deter chorado de verdade.

Nunca, jamais volte a chorar.E a lágrima mais recente que ela

chorou? A ponta do dedo de Ander aabsorveu.

Pronto. Nada de lágrimas.Lá fora, a tempestade grassava,

furiosa. Dentro do quarto, Eurekamoderava as emoções, como fazia háanos. Porque foi o que lhe disseram parafazer. Porque era tudo o que sabia fazer.

Ander apontou a página onde a tintavioleta voltava depois de algumas linhasem branco.

— Tem uma última parte.Eureka respirou fundo e leu as

últimas palavras da tradução deMadame Blavatsky.

— Numa noite, em nossa viagem,uma violenta tempestade partiu nossobarco. Fui lançada a uma praia

próxima. Nunca mais vi meu príncipe.Não sei se ele sobreviveu. A profeciadas bruxas é tudo o que resta de nossoamor.

Diana conhecia a história contida noLivro do amor, mas acreditava nela?Eureka fechou os olhos e soube que sim,Diana acreditava. Ela acreditou com talfervor que nunca disse uma palavrasobre ele à filha. Pretendia guardar paraum momento em que Eureka fosse capazde acreditar por si mesma. E o momentohavia chegado.

Poderia Eureka fazer aquilo?

Permitir-se considerar que o Livro doamor tinha alguma relação com ela?Desejava poder desprezá-lo como umconto de fadas, algo lindo que pode terse baseado em algo verdadeiro, masagora era um mero faz de conta...

Mas sua herança do aerólito, osacidentes, as mortes e os espectrais, afúria daquela tempestade que tambémparecia em sintonia com a tempestadedentro dela...

Não era um furacão. Era Eureka.Ander estava parado e em silêncio

na beira da cama, dando-lhe tempo e

espaço. Seus olhos revelaram umdesespero para abraçá-la de novo. Elatambém queria o abraço.

— Ander?— Eureka.Ela apontou a última página da

tradução, que chegava às conclusões daprofecia.

— Sou eu?A hesitação dele fez os olhos de

Eureka arderem. Ele notou e respirouasperamente, como se sentisse dor.

— Não pode chorar, Eureka. Nãoagora.

Ele se aproximou dela rapidamentee baixou os lábios em seus olhos. Aspálpebras de Eureka se fecharam,palpitando. Ele beijou a pálpebradireita, depois a esquerda. Em seguidahouve um momento de silêncio em queEureka não conseguia se mexer, nãoconseguia abrir os olhos porque podiainterromper o sentimento de que Anderestava mais perto dela do que qualquerum jamais estivera na vida.

Quando ele comprimiu seus lábiosnos dela, Eureka não ficou surpresa.Aconteceu como o sol nascia, como uma

flor brotava, como a chuva caía do céu,como os mortos paravam de respirar.Com naturalidade. Inevitavelmente. Oslábios dele eram firmes, um tantosalgados. O corpo de Eureka foi tomadode calor.

Os narizes se tocaram, e Eurekaabriu a boca para receber mais do beijodele. Tocou o cabelo de Ander, osdedos seguindo a trilha que os dedosdele percorriam quando ele ficavanervoso. Ele não parecia nervoso agora.Beijava-a como se quisesse isso hámuito tempo, como se tivesse nascido

para isso. As mãos dele acariciavam ascostas de Eureka, apertavam-na em seupeito. A boca se fechou avidamente nadela. O calor de sua língua a deixoutonta.

E então ela se lembrou de queBrooks se fora. Aquele era o momentomais insensível para ceder a umapaixão. Só que não parecia uma simplespaixão. Parecia transformador eirreprimível.

Ela estava sem fôlego, mas nãoqueria interromper o beijo. Então sentiua respiração de Ander dentro de sua

boca. Os olhos dela se abriram. Ela seafastou.

Os primeiros beijos eramdescoberta, transformação, assombro.

Então por que o sopro dele em suaboca lhe parecia familiar?

De algum modo, Eureka se lembrou.Depois do acidente de Diana, depoisque o carro tinha sido varrido para ofundo do golfo e Eureka parara namargem, miraculosamente viva —jamais havia evocado essa lembrança—, alguém lhe fizera uma ressuscitaçãoboca a boca.

Ela fechou os olhos e viu o halo decabelos louros acima dela, bloqueando alua, e sentiu o ar ressuscitador entrar emseus pulmões, os braços que a levaramaté lá.

Ander.— Pensei que fosse um sonho —

sussurrou ela.Ander suspirou fundo, como se

soubesse exatamente do que ela falava.Ele pegou sua mão.

— Aconteceu.— Você me tirou do carro. Você me

levou para a margem, nadando. Você me

salvou.— Sim.— Mas por quê? Como sabia que eu

estava lá?— Eu estava no lugar certo, na hora

certa.Parecia tão impossível como todas

as outras coisas que Eureka sabia seremreais. Ela cambaleou até a cama e sesentou. Sua mente girava.

— Você me salvou e a deixoumorrer.

Ander fechou os olhos, como sesentisse dor.

— Se pudesse, teria salvado asduas. Não tive opção. Escolhi você. Senão puder me perdoar, eu entendo. —Suas mãos tremiam quando ele aspassou no cabelo. — Eureka, medesculpe.

Ele disse essas mesmas palavras,exatamente assim, no dia em que seconheceram. A sinceridade de seupedido de desculpas a surpreendeuentão. Parecia inadequado pedirdesculpas tão apaixonadamente por algotão leve, mas agora Eureka entendia.Sentiu a tristeza de Ander por Diana. O

remorso encheu o espaço em volta delecomo um escudo de aerólito próprio.

Eureka há muito se ressentia do fatode que ela vivera e Diana, não. Agora, oresponsável estava diante dela. Andertomou a decisão. Ela podia odiá-lo porisso. Podia culpá-lo pela tristeza louca epela tentativa de suicídio. Ele pareciasaber disso. Pairou acima dela,esperando ver que direção ela tomaria.Ela enterrou o rosto nas mãos.

— Sinto tanta falta dela.Ele se ajoelhou diante dela, os

cotovelos em suas coxas.

— Eu sei.A mão de Eureka se fechou no colar.

Ela abriu o punho e expôs o aerólito, omedalhão de lápis-lazúli.

— Você tinha razão — disse ela. —Sobre o aerólito e a água. Faz mais doque não se molhar. É graças a ele que osgêmeos e eu estamos vivos. Ele nossalvou, e eu nunca saberia como usá-lose você não tivesse me dito.

— O aerólito é muito poderoso.Pertence a você, Eureka. Sempre selembre disso. Deve protegê-lo.

— Queria que Brooks... — Ela ia

dizer, mas o peito parecia estar sendoesmagado. — Eu tive tanto medo. Nãoconseguia raciocinar. Devia tê-losalvado também.

— Isto teria sido impossível. — Avoz de Ander era fria.

— Impossível do mesmo jeito queteria sido impossível você ter salvado amim e Diana? É isso que quer dizer?

— Não, não quis dizer isso. O quehouve com Brooks... Você nãoconseguiria encontrá-lo naquelatempestade.

— Não entendo.

Ander virou o rosto. Ele não seexplicou.

— Sabe onde Brooks está? —perguntou Eureka.

— Não — respondeu elerapidamente. — É complicado. Tenhotentado lhe falar, ele não é mais quemvocê pensa que é.

— Por favor, não diga nada de ruimdele. — Eureka se desvencilhou deAnder. — Nem mesmo sabemos se estávivo.

Ander concordou, mas pareciatenso.

— Depois que Diana morreu —disse Eureka —, nunca me ocorreu queeu podia perder mais alguém.

— Por que chama sua mãe deDiana? — Ander parecia ansioso paradesviar o assunto de Brooks.

Ninguém, exceto Rhoda, fez essapergunta a Eureka, então ela nunca tevede verbalizar uma resposta sincera.

— Quando ela estava viva, eu achamava de mãe, como fazem ascrianças. Mas a morte transformouDiana em outra pessoa. Ela não é maisminha mãe. É mais que isso... — Eureka

fechou a mão no medalhão — E tambémmenos.

Lentamente, a mão de Ander sefechou na de Eureka, que envolvia osdois pingentes. Ele semicerrou os olhospara o medalhão. Seu polegar rolou pelofecho.

— Não abre — disse ela. Os dedosse enroscaram nos dele para deterem-no.— Diana disse que estava travado porcausa da ferrugem quando comprou. Elagostou tanto do desenho que não seimportou. Usava todo dia.

Ander se levantou. Seus dedos

roçaram a nuca de Eureka. Ela se curvoupara seu toque viciante.

— Posso?Quando ela concordou, ele abriu a

corrente, beijando suavemente sua boca,depois se sentou ao lado dela na cama.Tocou o azul pontilhado de dourado dapedra. Virou o medalhão e tocou os aroscruzados em relevo no verso. Examinouo perfil do medalhão de cada lado,passando os dedos pelas dobradiças,depois pelo fecho.

— A oxidação é cosmética. Nãodeve impedir que o medalhão se abra.

— Então por que ele não abre? —perguntou Eureka.

— Porque Diana o lacrou. — Anderpassou o medalhão pela corrente e osoltou, devolvendo a corrente e oaerólito a Eureka. Ele segurou omedalhão nas mãos. — Acho que possoromper o lacre. Na verdade, sei queposso.

28

A LINHAGEM DALÁGRIMA DE SELENE

Um trovão abalou as fundações da casa.Eureka se aproximou mais de Ander.

— Por que minha mãe lacrou opróprio medalhão?

— Talvez contenha algo que ela não

queria que ninguém visse.Ele passou o braço por sua cintura.

Parecia um movimento instintivo, masdepois que o braço estava lá, Anderficou nervoso. O topo das orelhas seavermelhou. Ele olhava a própria mão,pousada no quadril dela.

Eureka pôs a mão sobre a dele paralhe assegurar que a queria ali, quesaboreava cada nova lição do corpodele: a maciez dos dedos, o calor napalma, a pele com cheiro de verão, tãoperto dela.

— Eu contava tudo a Diana — disse

Eureka. — Quando ela morreu, aprendia guardar muitos segredos.

— Sua mãe sabia o poder dessaherança. Devia sentir medo de quecaísse em mãos erradas.

— Elas caíram nas minhas mãos. Eunão entendo.

— A fé que sua mãe tinha em você amantém viva. Ela lhe deixou isto porqueconfiava que você descobriria seusignificado. E tinha razão com relaçãoao livro... Você chegou ao cerne dahistória. E tinha razão sobre o aerólito...Hoje você aprendeu como pode ser

poderoso.— E o medalhão? — Eureka o

tocou.— Vamos ver se tinha razão quanto

a isto também.Ander se colocou no meio do quarto,

segurando o medalhão com a ponta doanular esquerdo. Fechou os olhos,franziu os lábios como se fosse assoviare exalou devagar e longamente.

Aos poucos, seu dedo se mexeusobre a superfície do medalhão,acompanhando os seis círculosinterligados que os dedos de Eureka

seguiram muitas vezes. Só que, quandoAnder fez isso, produziu música, comose roçasse a borda de uma taça decristal.

O som fez Eureka se levantar numsalto. Pôs a mão na orelha esquerda, quenão estava acostumada a ouvir, mas dealgum modo escutava as notas estanhascom a mesma clareza com que ouvia ocanto de Polaris. Os aros do medalhãobrilharam por alguns instantes —dourados, depois azuis —, reagindo aotoque de Ander.

À medida que seu dedo se movia em

oitos, em giros labirínticos e padrões deroseta pelos círculos, o som que emitiase alterava e se prolongava. Um levezumbido se aprofundou em um acordemelodioso e provocante, depois subiuao que quase lembrava uma harmonia deflautas de madeira.

Ele sustentou a nota por váriossegundos, com o dedo tranquilo nocentro do verso do medalhão. O som eraagudo e desconhecido, como uma flautade um reino futuro e muito distante. Odedo de Ander pulsou três vezes,criando acordes de órgão que fluíram

em ondas sobre Eureka. Ele abriu osolhos, ergueu o dedo e o concertoextraordinário acabou. Sua respiraçãosaía ofegante.

O medalhão se abriu com outrotoque.

— Como fez isto?Eureka se aproximou dele em transe.

Curvou-se sobre suas mãos paraexaminar o interior do medalhão. O ladodireito tinha num engaste um espelhomínimo. O reflexo era limpo, claro e umtanto ampliado. Eureka viu um dos olhosde Ander no espelho e se assustou com

sua claridade turquesa. O lado esquerdotrazia o que parecia um pedaço de papelamarelo enfiado na moldura junto dadobradiça.

Ela usou o dedo mínimo para tirá-lodali. Ergueu um dos cantos do papel,sentindo como era fino, deslizando-ocom cuidado para fora. Por baixo dopapel, encontrou uma pequenafotografia. Fora recortada para caber nomedalhão triangular, mas a imagem eranítida:

Diana, segurando Eureka, aindabebê, nos braços. Ela não podia ter mais

de seis meses. Eureka nunca vira a foto,mas reconheceu os óculos de fundo degarrafa da mãe, o corte do cabelo emcamadas, a blusa de flanela azul que elausava nos anos 1990.

A bebê Eureka olhava diretamentepara a câmera, com um macacão queSugar deve ter costurado. Diana tinha orosto virado, mas era possível ver obrilho de seus olhos verdes. Ela pareciatriste — uma expressão que Eureka nãoassociava com a mãe. Por que nuncamostrou a foto a Eureka? Por que passoutodos aqueles anos usando o medalhão

no pescoço, dizendo que não abria?Eureka sentiu raiva da mãe por

deixar tantos mistérios. Tudo na vida deEureka ficou instável desde que Dianamorreu. Ela queria clareza, constância,alguém em quem pudesse confiar.

Ander se curvou e pegou opedacinho amarelado de papel queEureka deve ter deixado cair. Pareciaum papel de carta caro de séculos atrás.Ele o virou. Uma única palavra estavaescrita em tinta preta.

Marais.— Isso significa alguma coisa para

você? — perguntou ele.— É a letra da minha mãe.Ela pegou o papel e olhou cada

curva da palavra, o pingo firme no i.— É cajun... Francês... Para

“pântano”, mas não sei por que elaescreveu aqui.

Ander olhou pela janela, onde asjanelas de madeira bloqueavam a vistada chuva, mas não seu barulhoincessante.

— Deve haver alguém que possaajudar.

— Madame Blavatsky seria capaz.

— Eureka olhava melancolicamente omedalhão, o pedaço enigmático depapel.

— Foi exatamente por isso que amataram. — As palavras escaparam daboca de Ander antes que ele percebesse.

— Você sabe quem foi. — Os olhosde Eureka se arregalaram. — Forameles, aquelas pessoas que vocêafugentou na estrada, não foram?

Ander tirou o medalhão da mão deEureka e o colocou na cama. Ergueu oqueixo dela com o polegar.

— Eu queria poder lhe dizer o que

você quer ouvir.— Ela não merecia morrer.— Eu sei.Eureka pôs as mãos no peito dele.

Os dedos se enroscaram no tecido dacamiseta, querendo espremer a dor ali.

— Por que você não está molhado?Você tem um aerólito?

— Não. — Ele riu baixinho. —Acho que tenho outro tipo de escudo.Mas é bem menos impressionante que oseu.

Eureka passou as mãos pelosombros secos de Ander, deslizando os

braços por sua cintura seca.— Mas eu estou impressionada —

disse ela em voz baixa, enquanto asmãos entravam por baixo da camisetanas costas e tocavam a pele macia eseca. Ele a beijou de novo,incentivando-a. Ela estava nervosa, masse sentia viva, perplexa e zumbindo coma nova energia que não queriaquestionar.

Ela adorou sentir os braços dele emsua cintura. Colocou-se mais perto,levantando a cabeça para beijá-lonovamente, mas parou. Seus dedos

congelaram no que ela sentiu ser umcorte nas costas de Ander. Ela se afastoue se moveu para o lado, levantando ascostas da camiseta dele. Quatro cortesvermelhos marcavam a pele poucoabaixo da caixa torácica.

— Você se cortou — disse ela.Era a mesma ferida que vira em

Brooks no dia da onda estranha na baíade Vermilion. Ander só tinha umconjunto de cortes, enquanto Brooksteve dois.

— Não são cortes.Eureka o olhou.

— Então me diga o que são.Ander se sentou na beira da cama.

Ela se sentou ao lado dele, sentindo ocalor emanar de sua pele. Queria ver asmarcas novamente, queria passar a mãoali para saber se tinham a profundidadeque aparentavam. Ele parecia prestes adizer algo difícil, algo talvez impossívelde acreditar.

— Guelras.Eureka pestanejou.— Guelras. Como as de um peixe?— Para respirar embaixo da água,

sim. Brooks agora também tem.

Eureka tirou a mão dele de suaperna.

— Como assim, Brooks agoratambém tem guelras? Quero dizer, vocêtem guelras?

O quarto de repente ficou minúsculoe quente demais. Ander estavabrincando com ela?

Ele estendeu a mão às costas eergueu o livro de capa de couro verde.

— Acredita no que lê aqui?Ela não o conhecia o suficiente para

avaliar seu tom de voz. Pareciadesesperado, mas havia algo mais.

Raiva? Medo?— Não sei — disse ela. — Parece

muito...— Fantasioso?— Sim. Ainda assim... Eu queria

saber o resto. Só parte dele foitraduzida, e são muitas coincidênciasestranhas, coisas que parecem terrelação comigo.

— E têm — disse Ander.— Como sabe disso?— Eu menti a você sobre o aerólito?Ela meneou a cabeça.— Então me dê a mesma chance que

dá a este livro. — Ander colocou a mãono coração. — A diferença entre nós éque desde meu nascimento, fui criadocom a história que você pode encontrarnestas páginas.

— Como? Quem são seus pais?Você é de alguma seita?

— Eu não tenho exatamente pais. Fuicriado por minhas tias e tios. Sou umSemeador.

— Um o quê?Ele suspirou.— Meu povo vem do continente

perdido de Atlântida.

— Você é de Atlântida? MadameBlavatsky disse que... Mas nãoacredito...

— Eu sei. Como poderia acreditar?Mas é a verdade. Minha linhagem estavaentre as poucas que escaparam antes quea ilha afundasse. Desde então, nossamissão tem sido levar a semente doconhecimento de Atlântida, para quesuas lições nunca sejam esquecidas esuas atrocidades nunca se repitam. Pormilhares de anos, esta história temficado entre os Semeadores.

— Mas também está neste livro.

Ander assentiu.— Sabíamos que sua mãe tinha

algum conhecimento de Atlântida, masminha família ainda não tem ideia doquanto. A pessoa que assassinou suatradutora foi meu tio. O homem que vocêencontrou na delegacia e na estradanaquela noite... Aquelas pessoas mecriaram. Aqueles são os rostos que euvia na mesa de jantar toda noite.

— Onde exatamente fica essa mesade jantar? — Por semanas, Eureka seperguntou onde Ander morava.

— Em nenhum lugar interessante. —

Ele parou. — Não vou a minha casa hásemanas. Minha família e eu tivemosuma desavença.

— Você disse que eles queriam memachucar.

— Eles queriam — confirmouAnder, infeliz.

— Por quê?— Porque você também é uma

descendente de atlantes. E as mulheresde sua linhagem carregam algo muitoincomum. Chama-se selena-klamata-desmos. Quer dizer, mais ou menos, aLinhagem da Lágrima de Selena.

— Selena — disse Eureka. — Amulher que ficou noiva do rei. Ela fugiucom o irmão dele.

Ander fez que sim.— Ela é sua matriarca, de muitas

gerações atrás, como Leandro, o amantedela, é meu patriarca.

— Eles naufragaram, separaram-seno mar — disse Eureka, recordando-se.— Nunca mais voltaram a se encontrar.

Ander concordou.— Dizem que se procuraram até o

dia de sua morte e até, segundo alguns,depois dela.

Eureka olhou fundo nos olhos deAnder, e a história ressoou nela de ummodo diferente. Ela a achouinsuportavelmente triste — edolorosamente romântica. Poderiamaqueles dois amantes frustrados explicara ligação que Eureka tinha com essegaroto sentado a seu lado — a ligaçãoque sentiu no momento em que o viu?

— Uma das descendentes de Selenacarrega o poder de fazer Atlântidaressurgir — continuou Ander. — É oque você acaba de ler no livro. Esta é aLinhagem da Lágrima. A existência dos

Semeadores se baseia na crença de queAtlântida ressurgir seria umacatástrofe... Um apocalipse. As lendasde Atlântida são feias e violentas, cheiasde corrupção, escravidão e coisa pior.

— Não li nada disso aqui. —Eureka apontou o Livro do amor.

— Claro que não — disse Ander,sério. — Você leu uma história de amor.Infelizmente, há mais nesse mundo doque a versão de Selene. O objetivo dosSemeadores é evitar que Atlântida volte,mesmo que tenham de...

— Matar a menina da Linhagem da

Lágrima — completou Eureka numtorpor. — E eles acham que eu a tenho.

— Eles têm certeza disso.— Têm certeza de que se eu chorar,

como diz o livro, vai...Ander confirmou.— O mundo se inundaria, e

Atlântida recuperaria seu poder.— Com que frequência aparecem

essas meninas da Linhagem da Lágrima?— perguntou Eureka, pensando que, seAnder estava dizendo a verdade, muitosde seus familiares podem ter sidocaçados ou mortos pelos Semeadores.

— Não acontece há quase umséculo, desde os anos 1930, mas esta éuma situação muito ruim. Quando umamenina começa a mostrar sinais daLinhagem, ela se torna uma espécie devórtice. Desperta o interesse de outrosalém dos Semeadores.

— De quem mais? — Eureka nãotinha certeza se queria saber.

Ander engoliu em seco.— Dos próprios atlantes.Ela ficou ainda mais confusa.— Eles são malignos — continuou

Ander. — A última detentora da

Linhagem da Lágrima viveu naAlemanha. Seu nome era Byblis...

— Já ouvi falar. Era uma das donasdo livro. Ela o deu a alguém chamadoNiobe, que o passou a Diana.

— Byblis era a tia-avó de sua mãe.— Você sabe mais de minha família

do que eu mesma.Ander ficou sem jeito.— Tive de estudar.— Então os Semeadores mataram

minha tia-avó quando ela mostrou sinaisda Linhagem da Lágrima?

— Sim, mas antes disso muito mal

foi feito. Enquanto os Semeadorestentavam eliminar a Linhagem daLágrima, os atlantes tentavam ativá-la.Eles fazem isso ocupando o corpo dealguém amado pela portadora daLinhagem, alguém que pode fazê-lachorar. Quando os Semeadoresconseguiram matar Byblis, o atlante queocupava o corpo do amigo mais próximodela, já estava sitiado neste mundo. Eele permaneceu no corpo mesmo depoisda morte de Byblis.

Eureka teve o impulso de rir. O queAnder dizia era loucura. Ela não ouvira

nada tão maluco nem nas semanas quepassou no hospital psiquiátrico.

Ainda assim, Eureka pensava emalgo que tinha lido recentemente em umdos e-mails de Madame Blavatsky.Pegou as páginas traduzidas e aspercorreu.

— Olhe só esta parte, bem aqui.Descreve um feiticeiro que pode enviarsua mente pelo mar e ocupar o corpo deum homem em um lugar chamado Minos.

— Exatamente — disse Ander. — Éa mesma magia. Não sabemos comoAtlas aprendeu a canalizar o poder do

feiticeiro... Ele próprio não erafeiticeiro... Mas, de algum modo,conseguiu.

— Onde ele está? Onde estão osatlantes?

— Em Atlântida.— E onde fica isso?— Ficou submersa por milhares de

anos. Não temos acesso a ela, e eles nãotêm acesso a nós. Depois da submersãode Atlântida, a canalização da mente foiseu único portal para nosso mundo. —Ander virou a cara. — Mas Atlas temesperança de mudar isso.

— Então a mente dos atlantes époderosa e maligna — Eureka torciapara que ninguém estivesse escutandoatrás da porta —, mas os Semeadoresnão parecem muito melhores, matandomeninas inocentes.

Ander não respondeu. Seu silênciorespondeu à pergunta seguinte deEureka.

— Só que os Semeadores não achamque somos inocentes — percebeu ela. —Vocês foram criados para acreditar queeu posso fazer algo terrível — elamassageou o ouvido e nem acreditou no

que estava prestes a dizer —, comoinundar o mundo com minhas lágrimas?

— Sei que é difícil de digerir istotudo. Tem toda razão de chamar osSemeadores de uma seita. Minha famíliatem a habilidade de fazer com que umassassinato pareça acidente. Byblis seafogou numa “enchente”. O carro de suamãe foi atingido por uma “ondaaberrante”. Tudo em nome da salvaçãodo mundo contra o mal.

— Peraí. — Eureka se encolheu. —Minha mãe tinha a Linhagem daLágrima?

— Não, mas sabia que você sim. Otrabalho de toda a vida dela foi centradoem preparar você para seu destino. Elanão falou nada sobre isso?

O peito de Eureka se apertou.— Uma vez ela me disse para nunca

chorar.— É verdade que não sabemos o

que aconteceria se você realmentechorasse. Minha família não quer searriscar a descobrir. A onda na pontenaquele dia foi criada para pegar você,e não Diana. — Ele baixou os olhos,pousando o queixo no peito. — Eu devia

garantir que você se afogasse. Mas nãoconsegui. Minha família nunca vai meperdoar.

— Por que você me salvou? —sussurrou ela.

— Não sabe? Pensei que estivesseóbvio.

Eureka levantou os ombros,balançando a cabeça.

— Eureka, desde o momento em quetive consciência, fui treinado para sabertudo de você... Seus pontos fracos, osfortes, seus temores, desejos... Tudopara poder destruí-la. O poder de um

Semeador é uma espécie de camuflagemnatural. Vivemos entre os mortais, maseles não nos veem realmente. Nós nosmisturamos, nos ocultamos. Ninguém selembra de nosso rosto, se nãoquisermos. Dá para imaginar ficarinvisível a todos, menos à sua família?

Eureka meneou a cabeça, emborasempre tivesse desejado ainvisibilidade.

— Por isso nunca soube nada demim. Eu a vigiava desde que vocênasceu, mas nunca me viu, só quando euquis... No dia em que bati no seu carro.

Estive com você diariamente pelosúltimos 17 anos. Vi você aprender aandar, a amarrar os sapatos, a tocar aguitarra — ele engoliu em seco —, abeijar. Eu a vi furar a orelha, reprovarna prova de direção e vencer suaprimeira corrida de cross-country. —Ander estendeu a mão para ela,puxando-a para mais perto. — QuandoDiana morreu, eu estava tãodesesperadamente apaixonado por vocêque não consegui levar aquilo adiante.Até que dirigi meu carro àquela placa depare. Precisava que você me visse,

finalmente. A cada momento de suavida, eu me apaixonava maisprofundamente por você.

Eureka ficou vermelha. O que podiadizer a isso?

— Eu... Bem... Er...— Não precisa responder. Basta

saber que, mesmo enquanto eu começavaa desconfiar de tudo o que me fizeramacreditar quando fui criado, de umacoisa eu tinha certeza. — Ele encaixou amão na dela. — Minha devoção a você.Jamais passará, Eureka. Eu juro.

Eureka estava aturdida. Sua mente

desconfiada se enganara quanto a Ander— mas os instintos de seu corpoestavam certos. Os dedos delaenvolveram o pescoço dele, puxando-oaté sua boca. Ela tentou transmitir comum beijo as palavras que nãoencontrava.

— Nossa. — O lábio de Anderroçou o dela. — É tão bom falar estascoisas em voz alta. Por toda minha vida,eu me senti sozinho.

— Você está comigo agora. — Elaqueria tranquilizá-lo, mas a preocupaçãose esgueirava em sua mente. — Ainda é

um Semeador? Você se voltou contrasua família para me proteger, mas...

— Pode-se dizer que eu fugi —disse ele. — Mas minha família não vaidesistir. Querem você morta de qualquerforma. Se você chorar e Atlântidaretornar, eles acham que será a morte demilhões de pessoas, a escravidão dahumanidade. O fim de tudo queconhecemos. Acham que será a mortedeste mundo e o nascimento de outrohorrível. Acreditam que matar você é aúnica maneira de impedir.

— E o que você acha?

— Talvez seja verdade que vocêpossa fazer Atlântida ressurgir — disseele devagar —, mas ninguém sabe o queisso significaria.

— O fim ainda não está escrito —disse Eureka. E tudo pode mudar com aúltima palavra. Ela pegou o livro paramostrar a Ander algo que a incomodavadesde a leitura do testamento de Diana.— E se o fim foi escrito? Estão faltandoessas páginas no texto. Diana não asteria arrancado. Ela não teria estragadoum livro, nem da biblioteca.

Ander coçou o queixo.

— Há uma pessoa que pode nosajudar. Eu não o conheço. Ele nasceuSemeador, mas desertou da famíliadepois que Byblis foi morta. Minhafamília diz que ele nunca superou amorte dela. — Ander se interrompeu. —Dizem que era apaixonado por ela. Onome dele é Solon.

— Como vamos encontrá-lo?— Nenhum dos Semeadores fala

com ele há anos. Da última vez que eusoube, ele estava na Turquia. — Andergirou de frente para Eureka, os olhossubitamente luminosos. — Podemos ir lá

e localizá-lo.Eureka riu.— Duvido que meu pai vá me deixar

ir à Turquia.— Eles terão de ir conosco — disse

Ander rapidamente. — Todos os seusentes queridos. Caso contrário, minhafamília usaria sua família para trazervocê de volta.

Eureka enrijeceu.— Quer dizer...Ele confirmou.— Eles podem justificar a morte de

alguns para salvar a vida de muitos.

— E Brooks? Se ele voltar...— Ele não vai voltar — disse Ander

—, não do jeito que gostaria de vê-lo.Precisamos nos concentrar em colocarvocê e sua família em segurança o maisdepressa possível. Em algum lugar longedaqui.

Eureka meneou a cabeça.— Papai e Rhoda me internariam de

novo antes de concordarem em sair dacidade.

— Isto não é uma opção, Eureka. É aúnica maneira de você sobreviver. Eprecisa sobreviver. — Ele a beijou com

força, segurando seu rosto nas mãos,apertando a boca profundamente na delaaté que Eureka ficou sem fôlego.

— Por que tenho de sobreviver?Seus olhos doíam da exaustão que

ela não podia mais negar. Anderpercebeu. Guiou-a até a cama, puxou ascobertas, deitou-a e a cobriu.

Ele se ajoelhou ao seu lado emurmurou em seu ouvido bom:

— Você precisa sobreviver porqueeu não conseguiria viver num mundosem você.

29

EVACUAÇÃO

Quando Eureka acordou na manhãseguinte, a luz fraca e prateada brilhavapor sua janela. A chuva tamborilava nasárvores. Ela desejou que a tempestade alevasse de volta ao sono, mas o ouvidoesquerdo tinia, lembrando-a da estranha

melodia que Ander conjurou quandorompeu o lacre do medalhão de Diana.O livro do amor estava aninhado emseus braços, esclarecendo a profecia desuas lágrimas. Ela sabia que precisavase levantar e enfrentar as coisas quehavia descoberto na noite anterior, masuma dor no coração mantinha sua cabeçano travesseiro.

Brooks se fora. Segundo Ander, queparecia ter razão em tanta coisa, o amigomais antigo de Eureka não ia voltar.

Um peso do outro lado da cama asurpreendeu. Era Ander.

— Você ficou a noite toda aqui? —perguntou ela.

— Não vou deixar você.Ela se arrastou pela cama até ele.

Ainda estava de roupão. Ele usava asroupas da noite anterior. Os dois nãoconseguiam parar de sorrir enquantoseus rostos se aproximavam. Ele lhe deum beijo na testa, depois nos lábios.

Ela queria puxá-lo para a cama,abraçá-lo e beijá-lo horizontalmente,sentir o peso de seu corpo no dela, masdepois de alguns beijos leves Ander selevantou e se colocou ao lado da janela.

Seus braços estavam cruzados às costas.Eureka imaginou que ele ficou ali a noitetoda, olhando a rua e procurando umasilhueta de Semeador.

O que teria feito se um deles fosseaté a casa? Ela se lembrou do estojoprateado que ele pegou no bolso naoutra noite. Isso apavorou a famíliadele.

— Ander... — Ela pretendiaperguntar o que guardava naquela caixa.

— É hora de ir — disse ele.Eureka estendeu o braço para pegar

o telefone e ver a hora. Quando se

lembrou de que o havia perdido,imaginou-o tocando em algum lugar dogolfo fustigado pela chuva, em meio acardumes prateados de peixes, sendoatendido por uma sereia. Ela procurou orelógio Swatch de bolinhas na mesa decabeceira.

— São 6h, minha família ainda estádormindo.

— Acorde-os.— E digo o que a eles?— Eu contarei o plano a todos assim

que estivermos juntos — disse Ander,ainda de frente para a janela. — É

melhor que não haja muitas perguntas.Precisamos agir rapidamente.

— Se eu fizer isso — disse Eureka—, vou precisar saber aonde vamos. —Ela deslizou para fora da cama. Sua mãopousou na manga dele. O bíceps dele seflexionou ao seu toque.

Ele se virou para ela e passou osdedos por seu cabelo, raspando as unhassuavemente no couro cabeludo, em suanuca. Ela achava sexy quando elepassava os dedos nos próprios cabelos.Isso era ainda melhor.

— Vamos encontrar Solon — falou

ele. — O Semeador perdido.— Pensei ter dito que ele estava na

Turquia.Por um momento, Ander quase

sorriu, depois seu rosto ficouestranhamente inexpressivo.

— Por sorte recuperei um barcoontem. Vamos velejar assim que suafamília estiver pronta.

Eureka o olhou com atenção. Haviaalgo no olhar dele — uma satisfaçãoreprimida por... culpa. A boca deEureka ficou seca enquanto a mente faziauma ligação sombria. Ela não sabia

como sabia.— O Ariel? — sussurrou ela. O

barco de Brooks. — Como fez isso?— Não se preocupe. Foi feito.— Estou preocupada com Brooks, e

não com o barco dele. Você o viu?Procurou por ele?

O rosto de Ander ficou tenso. Seuolhar fugiu para o lado. Depois de uminstante, voltou a Eureka, perdendo ahostilidade.

— Chegará a hora em que vocêsaberá tudo sobre o verdadeiro destinode Brooks. Para o bem de todos, espero

que demore muito. Nesse meio-tempo,deve tentar superar isso.

Os olhos dela se toldaram; ela mal oenxergava de pé diante dela. Nessemomento, ela queria mais do que tudoouvir Brooks chamá-la de Lulinha.

— Eureka? — Ander tocou seurosto. — Eureka?

— Não — murmurou Eureka. Elafalava consigo mesma. Afastou-se deAnder. Seu equilíbrio estava fraco. Elatropeçou na mesa de cabeceira e seencostou na parede. Sentia-se fria erígida, como se tivesse passado a noite

em uma calota de gelo no meio doCírculo Polar.

Eureka não podia negar a mudançaem Brooks nas últimas semanas, ocomportamento cruel e desleal que achocou e que ela achou poucocaracterístico. Ela calculou quantasconversas teve em que Brooks procurouinformações sobre as emoções dela, dofato de ela não chorar. Pensou nahostilidade imensa e inexplicável deAnder contra ele desde o primeiroencontro dos dois — depois pensou nahistória de Byblis e no homem de quem

antes ela era tão próxima, o homem cujocorpo foi possuído pelo rei atlante.

Ander não queria dizer isso, mas ossinais apontavam para mais umarealidade impossível.

— Atlas — sussurrou ela. — Otempo todo não era Brooks. Era Atlas.

Ander franziu o cenho, mas nãorespondeu.

— Brooks não morreu.— Não. — Ander suspirou. — Ele

não morreu.— Ele foi possuído. — Eureka mal

conseguia pronunciar as palavras.

— Sei que você gostava dele. Eunão desejaria esse destino para Brooks,nem para ninguém. Mas aconteceu e nãohá nada que possamos fazer. Atlas époderoso demais. O que está feito, estáfeito.

Ela odiou como Ander falava nopassado sobre Brooks. Devia haver umjeito de salvá-lo. Agora que sabia o quehavia acontecido — o que haviaacontecido por causa dela —, Eurekadevia a Brooks tentar resgatá-lo. Nãosabia como, mas precisava tentar.

— Se eu pudesse encontrá-lo... —

Sua voz lhe faltou.— Não. — A rispidez de Ander

paralisou a respiração de Eureka. Ele aolhou firmemente nos olhos, procurandosinais de lágrimas. Quando não asencontrou, pareceu muito aliviado.Passou a corrente com o aerólito e omedalhão pela cabeça de Eureka. —Você corre perigo, Eureka. Sua famíliacorre perigo. Se confiar em mim, euposso protegê-la. Só o que podemosfazer é nos concentrar nisso agora.Entendeu?

— Sim — disse ela, desanimada,

porque tinha de ser assim.— Ótimo. Agora é hora de contar à

sua família.Eureka estava de jeans, os tênis de

corrida e uma camisa de flanela azul-clara ao descer a escada de mãos dadascom Ander. A mochila escolar roxaestava em seu ombro, O livro do amor ea tradução de Madame Blavatskyguardados dentro dela. A saleta estavaàs escuras. O relógio no receptor da TVpiscava 1h43. A tempestade deve tercortado a eletricidade durante a noite.

Enquanto tateava pela mobília,

Eureka ouviu o estalo de uma porta seabrindo. O pai apareceu em uma lascade luz da luminária na porta do quarto.Seu cabelo estava molhado, a camisaamassada e desabotoada. Eureka sentiao cheiro de sabonete Irish Spring. Elepercebeu duas formas escuras nassombras.

— Quem está aí? — Ele acendeu aluz rapidamente. — Eureka?

— Pai...Ele encarou Ander.— Quem é esse? O que está fazendo

na nossa casa?

O rosto de Ander adquiriu mais cordo que Eureka jamais vira. Eleendireitou os ombros e passou duasvezes as mãos pelo cabelo ondulado.

— Sr. Boudreaux, meu nome éAnder. Eu sou... amigo de Eureka. —Ele abriu um sorriso curto a ela, comose, apesar de tudo, gostasse de dizeraquilo.

Ela queria pular nos braços dele.— Às 6h da manhã, não é, não —

disse o pai. — Saia ou vou chamar apolícia.

— Pai, espere. — Eureka segurou

seu braço, como costumava fazer quandoera pequena. — Não chame a polícia.Por favor, sente-se aqui. Tem uma coisaque eu preciso contar a você.

Ele olhou a mão de Eureka em seubraço, depois Ander, depois de novoEureka.

— Por favor — sussurrou ela.— Tudo bem. Mas primeiro vamos

fazer um café.Eles foram até a cozinha, onde o pai

acendeu o fogo e colocou uma chaleirade água. Colocou uma colherada de caféem uma antiga cafeteira francesa. Eureka

e Ander sentaram-se à mesa, discutindocom os olhos quem falaria primeiro.

O pai ficava encarando Ander. Umaexpressão perturbada se fixou em seurosto.

— Você me parece familiar, garoto.Ander se remexeu.— Não nos conhecemos.Enquanto a água esquentava, o pai se

aproximou mais da mesa. Inclinou acabeça, semicerrando os olhos paraAnder. Sua voz parecia distante quandoele falou:

— Como disse que conheceu esse

menino, Reka?— Ele é meu amigo.— Da escola?— Nós só... nos conhecemos. — Ela

deu de ombros, nervosa, para Ander.— Sua mãe disse... — As mãos do

pai começaram a tremer. Ele as firmouna mesa para acalmá-las. — Ela disseque um dia...

— O quê?— Nada.A chaleira apitou, então Eureka se

levantou para apagar o fogo. Despejouágua na cafeteira e pegou três canecas

no armário.— Acho que deve se sentar, pai. O

que vamos dizer pode parecer estranho.Uma leve batida na porta da frente

deu um susto nos três. Eureka e Andertrocaram um olhar, depois ela empurroua cadeira para trás e foi até a porta.Ander estava bem atrás dela.

— Não abra a porta — alertou ele.— Eu sei quem é. — Eureka

reconheceu a figura pelo vidro fosco.Puxou a maçaneta emperrada edestrancou a porta de tela.

As sobrancelhas de Cat se

arquearam ao ver Ander junto do ombrode Eureka.

— Se soubesse que estava tendouma festa de pijama, eu teria vindo maiscedo.

Atrás de Cat, o vento forte sacudia oimenso galho musgoso do carvalhocomo um raminho. Uma rajada de águabateu na varanda.

Eureka gesticulou para Cat entrar ese ofereceu para ajudá-la a tirar a capa.

— Estamos fazendo um café.— Não posso ficar. — Cat limpou o

pé no capacho. — Estamos em

evacuação. Meu pai está preparando ocarro agora mesmo. Vamos ficar com osprimos de minha mãe em Hot Springs.Vocês vão sair da cidade também?

Eureka olhou para Ander.— Nós não... Não... Talvez.— Ainda não é obrigatório —

explicou Cat —, mas disseram na TVque, se a chuva continuar, pode sernecessário evacuar a cidade mais tardee você conhece meus pais... Eles sempretêm de ficar à frente do trânsito. Estatempestade esquisita apareceu do nada.

Eureka engoliu um bolo na garganta.

— Eu sei.— Mas então — disse Cat —, vi sua

luz acesa e quis deixar isto aqui antes deirmos embora. — Ela estendeu o tipo decesto de vime que a mãe semprepreparava para diferentes organizaçõesde caridade e de arrecadação de fundos.Estava apinhada de confete em variadascores, que se misturavam com a chuva.— É meu kit de cura da alma: revistas,os merengues de minha mãe e... — elabaixou a voz e mostrou uma garrafamarrom e fina no fundo do cesto. —Uísque Maker’s Mark.

Eureka pegou o cesto, mas o querealmente queria fazer era abraçar Cat.Colocou o kit de cura da alma a seus pése passou os braços pela amiga.

— Obrigada.Ela não suportava pensar em quanto

tempo se passaria até que visse Catnovamente. Ander não mencionouquando eles voltariam.

— Fica para uma xícara de café?Eureka preparou o café de Cat como

a amiga gostava, usando a maior partedo frasco de Irish Cream-Coffee deRhoda. Preparou uma caneca para si

mesma e outra para o pai, borrifandocanela por cima das duas. Depoispercebeu que não sabia como Andertomava o café, e isso a deixou nervosa,como se tivessem fugido e ficado noivossem saber o sobrenome um do outro. Elaainda não sabia o sobrenome dele.

— Puro — disse ele, antes de elaperguntar.

Por um momento, eles beberam emsilêncio, e Eureka sabia o que teria defazer em breve: estragar aquela paz.Dizer adeus à melhor amiga. Convencero pai de verdades absurdas e fantásticas.

Evacuação. Ela tomaria esse golinho denormalidade antes que as coisas sedesintegrassem.

O pai não disse uma palavra sequer,nem mesmo levantou a cabeça paracumprimentar Cat. Seu rosto estavapálido. Ele empurrou a cadeira para tráse se levantou.

— Posso falar com você, Eureka?Ela o seguiu, saindo da cozinha.

Eles ficaram na soleira que formava umaesquina para a sala de jantar, fora doalcance de Ander e Cat. Ao lado dofogão, estavam penduradas as paisagens

do quintal que os gêmeos fizeram emaquarela na pré-escola. A de Williamera realista: quatro carvalhos verdes, umbalanço antigo, o bayou se torcendo aofundo. A de Claire era abstrata, todaroxa, uma versão gloriosa do que oquintal lhe parecia quando chovia.Eureka mal conseguia olhar as imagens,sabendo que, na melhor das hipóteses,teria de arrancar os gêmeos e os paisdeles da vida que conheciam porque elacolocava todo mundo em perigo.

Ela não queria contar ao pai. Nãoqueria mesmo contar a ele. Mas, se não

contasse, algo pior podia acontecer.— O caso, pai, é que... — começou

a dizer ela.— Sua mãe disse que um dia ia

acontecer uma coisa. — O pai ainterrompeu.

Eureka pestanejou.— Ela avisou você. — Ela pegou a

mão do pai, que estava fria e pegajosa,não forte e tranquilizadora como estavaacostumada a sentir. Ela tentou ficar omais calma possível. Talvez fosse maisfácil do que ela pensava. Talvez o pai játivesse alguma noção do que o esperava.

— Me diga exatamente o que ela falou.Ele fechou os olhos. Suas pálpebras

estavam vincadas e úmidas e ele pareciatão frágil que isso a assustou.

— Sua mãe tendia ao delírio.Levava você ao parque ou a uma lojapara comprar roupas. Isto aconteciaquando você era pequena, semprequando ficavam sozinhas. Nunca pareciaacontecer quando eu estava presentepara ver. Ela chegava em casa e insistiaque coisas impossíveis haviamacontecido.

Eureka se aproximou mais do pai,

tentando se aproximar de Diana.— Como o quê?— Era como se ela tivesse uma

crise de febre. Repetia a mesma coisasem parar. Pensei que estivesse doente,talvez fosse esquizofrênica. Nunca meesqueci do que ela dizia. — Ele olhoupara Eureka e meneou a cabeça. Elasabia que ele não queria contar.

— O que ela dizia?Que ela vinha de uma longa

linhagem de atlantes? Que possuía umlivro que profetizava um segundoadvento de uma ilha perdida? Que uma

seita de fanáticos um dia podia tentarmatar sua filha por causa de suaslágrimas?

O pai secou os olhos com as costasda mão.

— Ela dizia: “Hoje eu vi o rapazque vai partir o coração de Eureka.”

Um arrepio correu pela espinha deEureka.

— O quê?— Você estava com 4 anos. Era

absurdo. Mas ela não desistia. Por fim,na terceira vez que aconteceu, pedi queela o desenhasse para mim.

— Mamãe desenhava bem —murmurou Eureka.

— Guardei o desenho no meuarmário. Não sei por quê. Ela desenhouum menino de rosto doce, 6 ou 7 anos,sem nada perturbador na expressão, masem todos esses anos em que moramos nacidade, eu nunca vi o garoto. Até que...— Seu lábio tremeu, e ele pegou a mãode Eureka de novo. Ele olhou por sobreo ombro na direção da mesa de café damanhã. — A semelhança éinconfundível.

A tensão se torceu no peito de

Eureka, enfraquecendo sua respiraçãocomo uma gripe forte.

— Ander — sussurrou ela.O pai fez que sim.— Ele é idêntico ao garoto do

desenho, só que mais velho.Eureka meneou a cabeça, como se

quisesse se livrar de uma náusea. Dissea si mesma que um desenho antigo nãofazia diferença. Diana não tinha lidoesse futuro. Ela não podia saber queEureka e Ander um dia podiamverdadeiramente gostar um do outro. Elapensou nos lábios dele, em suas mãos,

no senso único de proteção quetrespassava tudo que Ander fazia. Suapele formigou de prazer. Ela precisavaconfiar nesse instinto. Era tudo querestava a ela.

Talvez Ander tivesse sido criadopara ser seu inimigo, mas agora eradiferente. Tudo agora era diferente.

— Eu confio nele — disse ela. —Estamos correndo perigo, pai. Você eeu, Rhoda, os gêmeos. Precisamos sairdaqui hoje, agora, e Ander é o único quepode nos ajudar.

O pai olhou a filha com uma piedade

profunda, e ela entendeu que era omesmo olhar que ele dava a Dianaquando ela dizia coisas que pareciamloucas. Ele beliscou o queixo dela esuspirou.

— Você passou por poucas e boas,garota. Só o que precisa fazer hoje érelaxar. Vou preparar alguma coisa paraseu café da manhã.

— Não, pai. Por favor...— Trenton? — Rhoda apareceu na

cozinha vestida num roupão de sedavermelha. Seu cabelo solto fluía pelascostas, um estilo que Eureka não

costumava ver nela. O rosto estava semmaquiagem. Rhoda era bonita. E estavafrenética. — Onde estão as crianças?

— Não estão no quarto delas? —perguntaram Eureka e o pai ao mesmotempo.

Rhoda meneou a cabeça.— As camas não foram desfeitas. A

janela estava escancarada.Um trovão terrível deu lugar a uma

leve batida na porta dos fundos, queEureka quase não ouviu. Rhoda e o paicorreram para abri-la, mas Anderchegou lá primeiro.

A porta voou para trás com umaforte lufada do vento. Rhoda, o pai eEureka pararam ao ver o Semeador depé na soleira.

Eureka o vira antes na delegacia eno acostamento da estrada naquela noite.Ele parecia ter uns 60 anos, era pálido,tinha o cabelo grisalho bem separado eusava um terno cinza-claro e bemcortado que lhe dava a aparência de umvendedor de porta em porta. Seus olhostinham o mesmo brilho turquesa dos deAnder.

A semelhança entre eles era

inegável — e alarmante.— Quem é você? — exigiu saber o

pai.— Se está procurando por seus

filhos — disse o Semeador, enquanto umforte odor de citronela vagou do quintal—, saia. Será uma satisfação combinaruma troca.

30

OS SEMEADORES

Rhoda passou aos empurrões peloSemeador, que olhou com amargura paraEureka, depois girou o corpo paraatravessar a varanda.

— William! — gritou Rhoda. —Claire!

Ander cruzou correndo a porta atrásde Rhoda. Quando Eureka, o pai e Catchegaram ao pátio coberto do lado defora, o Semeador estava no últimodegrau da escada da varanda. No alto,Ander segurava Rhoda. Manteve-a presaem uma das pilastras da balaustrada. Osbraços dela se retorciam lateralmente.Ela esperneava, mas Ander manteve seucorpo parado com facilidade, como seela fosse uma criança.

— Solte minha esposa — rosnou opai, arremetendo para Ander.

Com uma só mão, Ander o rechaçou

também.— Você não pode salvá-los. Não é

assim que funciona. Só o que vãoconseguir é se machucar.

— Meus filhos! — Rhoda gemia,tombando nos braços de Ander.

O cheiro de citronela eradominador. Os olhos de Eurekapassaram da varanda ao gramado.Parados em meio às samambaias verdese os troncos mosqueados dos carvalhos,estavam os mesmos quatro Semeadoresque ela encontrara na estrada.Formavam uma fila, de frente para a

varanda, os olhos vidrados na cena queEureka e a família protagonizavam. OSemeador que tinha batido na porta sejuntou ao grupo. Ficou uns 15centímetros à frente dos outros, de mãoscruzadas no peito, os olhos turquesadesafiando Eureka a fazer alguma coisa.

E atrás dos Semeadores... O corpode Eureka teve uma convulsão e umaonda de pontos vermelhos nadou diantede seus olhos. De repente ela entendeupor que Ander continha Rhoda.

Os gêmeos estavam amarrados aobalanço. Uma corrente de metal de cada

balanço envolvia os pulsos de cadagêmeo. Seus braços se estendiam no altoda cabeça, ligados por uma correntecom nó que fora passada pela barrahorizontal. As outras duas correntesforam usadas para prender os tornozelosdos gêmeos. Essas correntes, por suavez, foram presas em nós nas lateraisdas barras em A do balanço. William eClaire estavam pendurados e tortos.

A pior parte era que os bancos demadeira lascada dos balanços foramentalados na boca dos gêmeos. Uma fitaadesiva mantinha os bancos como

mordaças. Lágrimas escorriam pelosrostos das crianças. Seus olhos estavamesbugalhados de dor e medo. Os corposse sacudiam com os gemidos que asmordaças impediam Eureka de ouvir.

Há quanto tempo estavam amarradosassim? Será que os Semeadoresinvadiram o quarto dos gêmeos à noiteenquanto Ander protegia Eureka? Elaficou nauseada de fúria, consumida pelaculpa. Tinha de fazer alguma coisa.

— Eu vou lá — disse o pai.— Fique aqui se quiser seus filhos

de volta vivos. — A ordem de Ander

saiu tranquila, mas com autoridade.Impediu o pai de sair do primeirodegrau da varanda. — Isto precisa sertratado da forma correta... Ou vamos nosarrepender.

— Que tipo de imbecil doentio fazisto com duas crianças? — sussurrouCat.

— Eles chamam a si mesmos deSemeadores — disse Ander — e mecriaram. Conheço bem a doença deles.

— Vou matá-los — murmurouEureka.

Ander relaxou o aperto em Rhoda,

deixando-a cair nos braços do marido.Voltou-se para Eureka, com uma tristezaesmagadora.

— Prometa que este será o últimorecurso.

Eureka semicerrou os olhos paraAnder. Ela queria matar os Semeadores,mas estava desarmada, em menornúmero e nunca dera um soco em nadacom mais vida do que uma parede. MasAnder parecia tão preocupado que elafalasse sério que ela sentiu anecessidade de garantir que não era umplano estabelecido.

— Tudo bem... — Ela se sentiuridícula. — Eu prometo.

O pai e Rhoda se abraçavam. Oolhar de Cat estava fixo no balanço.Eureka se obrigou a olhar para onde nãoqueria. Os corpos dos gêmeos aindaestavam imóveis e tensos. Seus olhosapavorados eram as únicas partes que semexiam.

— Isto não é justo — disse ela aAnder. — Sou eu quem os Semeadoresquerem. Eu é que devo ir lá fora.

— Você precisa enfrentá-los —Ander pegou sua mão —, mas não deve

ser uma mártir. Se alguma coisaacontecer aos gêmeos, ou a qualquer umde quem você goste, precisa entenderque é mais importante que vocêsobreviva.

— Não posso pensar assim — disseela.

Ander a encarou.— Tem de ser assim.— Acho que esse papinho já durou o

suficiente — disse o Semeador de ternocinza do gramado. Ele gesticulou paraAnder acabar com aquilo.

— E acho que vocês quatro já

ficaram por aqui por tempo suficiente —gritou Eureka para os Semeadores. — Oque querem para ir embora? — Ela deuum passo à frente, aproximando-se daescada, tentando aparentar calma,mesmo com o coração martelando nopeito. Não sabia o que fazia.

Ela percebeu que havia algo maisdesconcertante na cena depois davaranda: a chuva tinha parado.

Não. Eureka ouvia o aguaceiro nasárvores próximas. Sentia o cheiro deeletricidade salgada da tempestade bemembaixo de seu nariz. Sentia a umidade

como couro em sua pele. Via acorrenteza marrom na beira do gramado— o bayou, enchendo-se, bruto e quasetransbordando pelas margens, comoacontecia durante um furacão.

O mau tempo não cessara, mas dealgum modo os gêmeos, os Semeadorese o gramado onde se encontravam nãoestavam molhados. O vento parara e atemperatura era mais fria do quedeveria.

Eureka ficou na beira da varandacoberta. Seus olhos se ergueram para océu e ela os semicerrou para a

atmosfera. A tempestade grassava noalto. Raios estalavam. Ela viu a torrentede gotas de chuva caindo. Mas algoacontecia com a chuva em seu caminhode nuvens negras e turbulentas até oquintal de Eureka.

Ela desaparecia.Havia uma estranha obscuridade no

quintal que deixava Eurekaclaustrofóbica, como se o céu estivessedesmoronando.

— Está se perguntando a respeito dachuva. — Ander estendeu a palmaaberta para além da varanda. — Em sua

vizinhança imediata, os Semeadores têmpoder sobre o vento. Uma das maneirasmais comuns é criar tampõesatmosféricos. Os tampões são chamadosde “cordões”. Podem assumir qualquerforma e muitas magnitudes.

— Por isso você não estavamolhado quando entrou por minha janelana noite passada — adivinhou Eureka.

Ander confirmou.— E é por isso também que não cai

chuva neste quintal. Os Semeadores nãogostam de se molhar, se puderem evitar,e quase sempre podem fazer isso.

— O que mais eu preciso sabersobre eles?

Ander se curvou para seu ouvidodireito.

— Critias — sussurrou ele numa vozquase inaudível. Ela seguiu seu olhar aoSemeador na extremidade esquerda epercebeu que Ander estava lheinstruindo como um manual. —Antigamente éramos próximos. — Ohomem era mais novo que os outrosSemeadores, com um topete rebelde nocabelo prateado e basto. Vestia umacamisa branca e suspensórios cinza. —

Antigamente ele era quase humano.Critias observou Eureka e Ander

com um interesse tão inescrutável queEureka se sentiu nua.

— Starling. — Ander passou àmulher que parecia uma anciã vestindocalças e um suéter de cashmere cinza, àdireita de Critias. Mal parecia capaz deficar de pé sozinha, mas o queixo eraagressivamente empinado. Os olhosazuis iluminavam um sorriso assustador.— Ela se alimenta da vulnerabilidade.Não demonstre nenhuma.

Eureka fez que sim.

— Albion. — O Semeador seguintena fila era o homem que tinha batido naporta dos fundos de Eureka. — O líder— disse Ander. — Aconteça o queacontecer, não segure a mão dele.

— E a última? — Eureka olhou amulher frágil com cara de vovó evestido cinza florido. Sua longa trançagrisalha caía pelo ombro, terminando emsua cintura.

— Khora — disse Ander. — Não sedeixe enganar pela aparência. Cadacicatriz no meu corpo veio dela. — Eleengoliu em seco e acrescentou baixinho:

— Quase todas. Ela preparou a ondaque matou sua mãe.

As mãos de Eureka se cerraram empunhos. Ela queria gritar, mas esse eraum tipo de vulnerabilidade que serecusava a mostrar. Seja estoica,instruiu a si mesma. Seja forte. Ela secolocou na grama seca, de frente para osSemeadores.

— Eureka — chamou o pai. —Volte aqui. O que está fazendo...

— Soltem os dois. — Ela gritou aosSemeadores, e acenou para os gêmeos.

— Claro, criança. — Albion

estendeu a palma da mão pálida. —Simplesmente coloque sua mão naminha, e os gêmeos serão desamarrados.

— Eles são inocentes! — gemeuRhoda. — Meus filhos!

— Nós entendemos — disse Albion.— E eles serão libertados assim queEureka...

— Primeiro desamarrem os gêmeos— falou Ander. — Isto não tem nada aver com eles.

— E não tem nada a ver com você.— Albion se virou para Ander. — Vocêfoi liberado desta operação semanas

atrás.— Eu me realistei. — Ander olhou

para cada Semeador como se quisesseter certeza de que todos entendiam deque lado ele estava.

Khora fez uma carranca. Eurekaqueria se atirar nela, arrancar cada fiode cabelo prateado de sua cabeça,arrancar seu coração até que parasse debater, como o de Diana.

— Você se esqueceu de quem é,Ander — disse Khora. — Não nos cabesermos felizes e nos apaixonar.Existimos para que a felicidade e o

amor sejam possíveis para os outros.Protegemos este mundo da usurpaçãosombria que essa daí quer permitir. —Ela apontou o dedo em gancho paraEureka.

— Errado — disse Ander. — Vocêslevam uma existência negativa comobjetivos negativos. Nenhum de vocêssabe o que aconteceria se Atlântidaressurgisse.

Starling, a Semeadora mais velha,tossiu enojada.

— Nós o criamos para ser maisinteligente que isso. Não memorizou as

Crônicas? Milhares de anos de histórianada significam para você? Esqueceu-sedo espírito sombrio e suspenso de Atlas,que não fez segredo de seus objetivos deaniquilar este mundo? O amor o cegou àsua herança. Faça algo com ele, Albion.

Albion pensou por um momento.Depois girou para o balanço e usou umpunho para bater na barriga de Williame Claire.

Os gêmeos ofegaram, fazendomovimentos de vômito, amordaçadoscom as tábuas de madeira enfiadas naboca. Eureka arquejou, solidária. Não

conseguia mais suportar. Olhou aprópria mão, depois a mão estendida deAlbion. O que aconteceria se ela otocasse? Se os gêmeos fossemlibertados, talvez valesse a pena o quequer que...

Um borrão vermelho foi registradopelo canto do olho de Eureka. Rhodacorria para o balanço, na direção dosfilhos. Ander xingou baixinho e disparouatrás dela.

— Alguém a impeça, por favor —disse Albion, parecendo entediado. —Nós preferimos que não... Ah, que seja.

Agora é tarde demais.— Rhoda! — O grito de Eureka

ecoou no gramado.Enquanto Rhoda passava por

Albion, o Semeador estendeu o braço epegou sua mão. De imediato ela ficouparalisada, o braço rígido como gesso.Ander parou de repente e baixou acabeça, parecendo saber o que viria aseguir.

Sob os pés de Rhoda, brotou umcone vulcânico na terra. No começoparecia areia fervente, um fenômeno dobayou em que um monte no formato de

um domo surge do nada num gêiserpoderoso pela planície de aluviãoinundada. As areias ferventes eramperigosas por causa da torrente de águaque cuspiam do centro de suas craterasformadas às pressas.

Aquela areia fervente cuspia vento.A mão de Albion soltou a de Rhoda,

mas uma ligação entre os dois aindapersistia. Ele parecia segurá-la numatela invisível. Seu corpo se ergueu emuma inexplicável engrenagem de ventoque a lançou 15 metros no ar.

Seus braços e pernas se debatiam. O

roupão vermelho girou no ar como fitasde uma pipa. Ela subiu ainda mais, ocorpo completamente fora de controle.Ouviu-se uma explosão — não detrovão, mais como um pulso deeletricidade. Eureka percebeu que ocorpo de Rhoda tinha rompido o cordãode isolamento dos Semeadores quecercava o quintal.

Quando entrou na tempestade, semabrigo, Rhoda gritou. A chuva foisifonada pelo espaço fino criado por seucorpo. O vento gemia como um furacão.A silhueta vermelha de Rhoda ficou

cada vez menor no céu até que elaparecia uma das bonecas de Claire.

O raio estalou lentamente. Contraiu-se nas nuvens, iluminando os bolsões deatmosfera em turbilhão. Quandoestourou pela nuvem e provou o céulimpo, Rhoda era o alvo mais próximo.

Eureka se preparou como se o raioque atingiu o peito de Rhoda fosse umúnico solavanco terrível. Rhodacomeçou a gritar, mas o som distante foitragado num feio chiado de estática.

Quando caía, seu corpo se debatiade um jeito diferente. Não tinha vida. A

gravidade dançava com ela. As nuvensse separavam tristemente enquanto elapassava. Ela atravessou a fronteira docordão, que se abriu de algum modosobre o quintal. Caiu num forte baque nochão, e seu corpo amarfanhado deixouuma marca de 30 centímetros na terra.

Eureka caiu de joelhos. As mãos sefecharam no coração enquanto ela via opeito escurecido de Rhoda; o cabelo,que fritara até desaparecer; os braços epernas nus, entremeados de cicatrizesvenosas de raios azulados. A boca deRhoda estava escancarada. Sua língua

parecia tostada. Os dedos separalisaram em garras rígidas,estendidos para os filhos mesmo namorte.

A morte. Rhoda estava morta porquefez a única coisa que qualquer mãe teriafeito: tentou acabar com o sofrimentodos filhos. Mas se não fosse por Eureka,os gêmeos não estariam em perigo eRhoda não teria de salvá-los. Ela nãoestaria queimada, prostrada e morta nogramado. Eureka não conseguia encararos gêmeos. Não suportava vê-los tãodestroçados quanto ela própria se

tornara desde que perdera Diana.Um grito animalesco saiu de trás de

Eureka na varanda. O pai estava dejoelhos. As mãos de Cat seguravam seusombros. Ela estava lívida e hesitante,como se quisesse vomitar. O pai selevantou e cambaleou, trêmulo, escadaabaixo. Estava a 30 centímetros docorpo de Rhoda quando a voz de Albiono fez estacar.

— Você parece um herói, papai. Oque será que vai fazer agora?

Antes que o pai pudesse responder,Ander colocou a mão no bolso dos

jeans. Eureka ofegou quando ele pegouuma pequena arma prateada.

— Cale a boca, tio.— “Tio”, é? — O sorriso de Albion

escancarou dentes cinzentos. —Desistiu? — Ele riu. — O que ele tem,um revólver de brinquedo?

Os outros Semeadores riram.— Engraçado, não é?Ander puxou o ferrolho para

carregar a arma. Uma estranha luz verdeemanava dela, formando uma aura à suavolta. Era a mesma luz que Eureka viuna noite em que Ander brandiu a caixa

prateada. Os quatro Semeadores seassustaram ao vê-la. O silêncio cresceu,como se o riso tivesse sido cortado.

— O que é isso, Ander? —perguntou Eureka.

— Esta arma dispara balas deartemísia — explicou Ander. — É umaerva antiga, o beijo da morte para osSemeadores.

— Onde conseguiu essas balas? —Starling recuou alguns passos vacilantes.

— Isso não importa — disse Critiasrapidamente. — Ele jamais atirará emnós.

— Está enganado — falou Ander. —Não sabe o que eu faria por ela.

— Que encanto — zombou Albion.— Por que não diz à sua namorada o queaconteceria se você matasse um de nós?

— Talvez eu não me preocupe maiscom isso.

A arma estalou enquanto Ander adestravava. Mas então, em vez deapontar para Albion, Ander voltou-apara si mesmo. Manteve o cano no peito.Fechou os olhos.

— O que está fazendo? — gritouEureka.

Ander se virou para ela, a armaainda no peito. Nesse momento eleparecia mais suicida do que ela jamaishavia sido na vida.

— A respiração de um Semeador écontrolada por um único vento superior.Chama-se Zéfiro, e cada um de nós éligado por ele. Se um de nós morrer,todos morreremos. — Ele olhou osgêmeos e engoliu em seco. — Mastalvez seja melhor assim.

31

LÁGRIMA

Eureka nem pensou. Atirou-se em Andere derrubou a arma de sua mão. Ela girouno ar e deslizou pela grama, que foimolhada pelo bolsão de chuva abertopor Rhoda. Ela a pegou, atrapalhando-separa segurá-la nas mãos. Quase a deixou

cair. De algum modo conseguiu sustentá-la.

Seu coração trovejava. Ela jamaissegurou uma arma, jamais quis. O dedoencontrou o caminho para o gatilho.Apontou para os Semeadores para querecuassem.

— Você também está apaixonada —provocou Starling. — Que maravilha.Não se atreveria a atirar em nós eperder seu namorado.

Ela olhou para Ander. Isso eraverdade?

— Sim, eu morrerei se matar um

deles — disse ele devagar. — Porém émais importante que você viva, que nadaem você seja comprometido.

— Por quê? — Sua respiração saíanum arquejar curto.

— Porque Atlas achará um jeito deressuscitar Atlântida — disse Ander. —E quando conseguir, este mundoprecisará de você...

— Este mundo precisa dela morta— interrompeu Khora. — Ela é ummonstro do apocalipse. Ela o cegou parasua responsabilidade para com ahumanidade.

Eureka olhou o quintal — o pai, quechorava sobre o corpo de Rhoda. Olhoupara Cat, sentada espremida e tremendona escada da varanda, incapaz delevantar a cabeça. Olhou os gêmeos,amarrados, feridos e tornados órfãosdiante dos próprios olhos. As lágrimasescorriam por seu rosto. O sanguepingava dos pulsos. Por fim, olhou paraAnder. Uma única lágrima descia pelaponte do nariz dele.

Aquele grupo compreendia as únicaspessoas que restaram para Eureka amarno mundo. Todos estavam

inconsoláveis. E tudo por causa dela.Quantos outros danos ela seria capaz decausar?

— Não dê ouvidos a eles — disseAnder. — Eles querem que você seodeie. Querem que desista. — Ele seinterrompeu. — Quando atirar, mire nospulmões.

Eureka pesou a arma nas mãos.Quando Ander disse que nenhum delestinha certeza do que aconteceria seAtlântida ressurgisse, provocara umfervor nos Semeadores, uma completarejeição da ideia de que suas crenças

talvez não fossem verdadeiras.Os Semeadores tinham de ser

dogmáticos com o que pensavamsignificar Atlântida, percebeu Eureka,porque não sabiam verdadeiramente.

Então o que sabiam da Linhagem daLágrima?

Ela não podia chorar. Diana disseisso a ela. O livro do amor falava queas emoções de Eureka podiam serformidáveis, que podiam criar outromundo. Havia um motivo para Ander terroubado a lágrima de seu olho e a fazerdesaparecer no olho dele.

Eureka não queria causar umainundação nem erguer um continente.Ainda assim, Madame Blavatsky tinhatraduzido a alegria e a beleza em partesdo Livro do amor — até o título sugeriaum potencial. O amor tinha de fazerparte de Atlântida. A essa altura, elapercebeu, Brooks também fazia parte deAtlântida.

Ela jurou que o encontraria. Mascomo?

— O que ela está fazendo? —perguntou Critias. — Está demorandodemais.

— Fiquem longe de mim. — Eurekaapontava a arma de um Semeador aoutro.

— Uma pena, sua madrasta — disseAlbion. Ele olhou por sobre o ombropara os gêmeos que se retorciam nobalanço. — Agora me dê sua mão ouvamos ver quem será o próximo.

— Siga seus instintos, Eureka —falou Ander. — Você sabe o que fazer.

O que podia fazer? Eles estavamnuma armadilha. Se ela atirasse numSemeador, Ander morreria. Se nãoatirasse, eles machucariam ou matariam

sua família.Se perdesse mais uma pessoa que

amava, Eureka sabia que desmoronaria eisso não podia acontecer.

Nunca, jamais chore de novo.Ela imaginou Ander beijando suas

pálpebras. Imaginou as lágrimas seacumulando contra os lábios dele, osbeijos dele patinando por suas lágrimase flutuando como espuma do mar.Imaginou as lágrimas grandes, lindas eimensas, raras e cobiçadas como joias.

Desde a morte de Diana, a vida deEureka seguiu o formato de uma imensa

espiral negra — os hospitais e ossosquebrados, os comprimidos engolidos ea terapia ruim, a depressão fria ehumilhante, a perda de MadameBlavatsky, ver Rhoda morrer...

E Brooks.Ele não tinha lugar na espiral

descendente. Era ele quem semprelevantava o astral de Eureka. Elaimaginou os dois, com 8 anos, subindona nogueira alta de Sugar, o ar de fim deverão dourado e doce. Ouviu seu risomentalmente: a alegria suave de suainfância ecoando de galhos musgosos.

Eles subiam mais alto juntos do quequalquer um deles faria sozinho. Eurekasempre pensava que isso acontecia pelocaráter competitivo dos dois. Agora lheocorria que era a confiança mútua quelevava ambos a quase alcançar o céu.Ela nunca pensava em cair quandoestava ao lado de Brooks.

Como pôde deixar passar todos ossinais de que alguma coisa aconteciacom ele? Como jamais ficou chateadacom Brooks? Pensar no que Brooksdevia ter passado — o que podia estarpassando naquele exato momento — era

demais. Isso a sobrepujava.Começou em sua garganta, um bolo

doloroso que ela não conseguia engolir.Seus braços e pernas ficaram pesados, eo peito se curvou para a frente. Seurosto se torceu, como se beliscado poralicates. Os olhos se fecharam comforça. A boca se abriu, esticada, tantoque os cantos doeram. Seu queixocomeçou a tremer.

— Ela não está...? — cochichouAlbion.

— Não pode ser — disse Khora.— Alguém a impeça! — arquejou

Critias.— É tarde demais. — Ander parecia

quase emocionado.O gemido que chegou à superfície de

seus lábios vinha dos recessos maisfundos da alma de Eureka. Ela caiu dejoelhos, a arma ao lado. As lágrimascortavam trilhas por seu rosto. O calor aalarmou. Elas escorriam pelo nariz,entravam pelas laterais da boca comoum quinto oceano. Seus braços estavamlargados frouxamente, rendendo-se aossoluços que vinham em ondas eabalavam todo o corpo.

Que alívio! O coração doía com umasensação estranha, nova e linda. Elabaixou o queixo ao peito. Uma lágrimacaiu na superfície do aerólito em seupescoço. Esperava que ela quicasse. Emvez disso, um clarão mínimo de azuliluminou o centro da pedra no formatoda lágrima. Durou um instante, e a pedraentão estava de novo seca, como se a luzfosse prova de sua absorção.

O trovão estalou no céu. A cabeçade Eureka se ergueu. Uma farpa de raiose estendeu pelas árvores a leste. Asnuvens agourentas, protegidas pelo

cordão dos Semeadores, de repentebaixaram. O vento bateu com força, umestouro de manada invisível quederrubou Eureka no chão. As nuvensestavam próximas o bastante para roçarseus ombros.

— Impossível. — Eureka ouviualguém trinar. Todos no quintal foramcobertos pela névoa. — Só nós podemosdesfazer nossos cordões.

Mantos de água bateram no rosto deEureka, gotas frias contra as lágrimasquentes, prova de que o cordão sedesfez. Ela o rompera?

A água caía aos baldes do céu. Nãoera mais chuva; parecia um maremoto,como se um oceano tivesse virado delado e escorrido dos céus para asmargens da terra. Eureka ergueu acabeça, sem conseguir enxergar. Nãohavia céu a distinguir da água. Só haviauma torrente. Era quente e tinha gosto desal.

Segundos depois, o quintal estavainundado até os tornozelos de Eureka.Ela sentiu um corpo em borrão se mexere sabia que era o pai. Ele carregavaRhoda. Andava na direção dos gêmeos.

Ele escorregou e caiu, e quando tentouse endireitar, a água subia aos joelhosde Eureka.

— Onde ela está? — gritou um dosSemeadores.

Eureka teve um vislumbre de figurascinzentas patinhando até ela. Espadanoupara trás, sem saber para onde ir. Aindaestava chorando. Não sabia se um dia iaparar.

A cerca na beira do quintal rangeuquando o bayou agitado a derrubou.Mais água rodopiava pelo quintal comoum redemoinho, tornando tudo salobro e

marrom como a lama. A águadesenraizou carvalhos de séculos deidade, que soltaram rangidos longos eaflitivos. Enquanto varria o balanço porbaixo, sua força rompeu as correntes dosgêmeos.

Eureka não conseguiu ver o rosto deWilliam ou Claire, mas sabia que osgêmeos estariam assustados. A águaensopava sua cintura quando ela puloupara pegá-los, impelida por adrenalina eamor. De algum modo, através dodilúvio, seus braços encontraram osdeles. Seu aperto se fortaleceu em uma

gravata. Ela não os soltaria. Foi a últimacoisa em que pensou antes que seus pésfossem varridos do chão e ela estivesseaté o peito nas próprias lágrimas.

Ela forçou as pernas. Tentou flutuar,ficar acima da superfície. Levantou osgêmeos o mais alto que pôde. Arrancoua fita adesiva do rosto de cada um ejogou os bancos de lado com violência.Sentiu uma pontada de dor ao ver a pelevermelha e delicada das bochechasdeles.

— Respirem! — comandou ela, semsaber quanto tempo teriam aquela

chance.Ela virou o rosto para o céu. Para

além da inundação, sentiu que aatmosfera estava negra com aquele tipode tempestade que ninguém jamais virana vida. O que ia fazer com os gêmeos?A água salgada encheu sua garganta,depois ar, então mais água salgada.Achou que ainda estava chorando, mas odilúvio não lhe permitia saber.Esperneou duas vezes com força paracompensar o nado que os braços nãopodiam executar. Engasgou, teve ânsiade vômito e tentou respirar, tentou

manter os gêmeos com a boca para cima.Ela quase escorregou para baixo

com o esforço de escorá-los em seucorpo. Sentiu o colar flutuar pelasuperfície, puxando seu pescoço portrás. O medalhão de lápis-lazúlimantinha o aerólito acima das ondas.

Ela entendeu o que fazer.— Respirem fundo — ordenou aos

gêmeos. Agarrou o pingente e mergulhoucom eles. De imediato surgiu o bolsãode ar criado pelo aerólito. O escudobrotou em volta dos três. Encheu oespaço para além do corpo de Eureka e

deles, isolando-os da inundação comoum submarino em miniatura.

Eles ofegaram. Podiam respirar denovo. Eles levitavam, como fizeram umdia antes. Ela desamarrou as cordas dospulsos e dos tornozelos deles.

Assim que teve certeza de que osgêmeos estavam bem, Eureka pressionoua beira do escudo e começou a nadar embraçadas confusas pela enchente em seuquintal.

A correnteza não era nada parecidacom a do mar estável. Suas lágrimasesculpiram uma tempestade furiosa e

rodopiante sem formato discernível. Aenchente já atingira a escada que ligavao gramado à varanda dos fundos. Ela eos gêmeos flutuavam num novo mar, nonível do primeiro andar de sua casa. Aágua batia nas janelas da cozinha comoum ladrão invadindo a casa. Elaimaginou o aguaceiro entrando na saleta,pelos corredores acarpetados,arrancando luminárias, cadeiras elembranças como um rio colérico,deixando apenas sedimentos fulgurantes.

O imenso tronco de um doscarvalhos desenraizados girou por

perto com uma força de arrepiar. Eurekase preparou, protegendo os gêmeos como corpo, enquanto um galho gigantescobatia na lateral do escudo. Os gêmeosgritaram quando o impacto reverberoupor eles, mas o escudo não foiperfurado, nem se rompeu. A árvorepassou a outros alvos.

— Pai! — Eureka gritou de dentrodo escudo, onde ninguém podia ouvi-la.— Ander! Cat! — Ela nadavafuriosamente, sem saber como encontrá-los.

E então, no caos escuro da água,

uma mão se estendeu até os limites doescudo. Eureka soube de imediato dequem era. Caiu de joelhos, aliviada.Ander a havia encontrado.

Atrás dele, segurando a outra mão,estava seu pai, que por sua vez seguravaCat. Eureka chorou de novo, desta vezde alívio, e estendeu a mão paraencontrar a de Ander.

A barreira do escudo os impedia. Amão dela ricocheteou de um lado. A deAnder, do outro. Eles tentaramnovamente, pressionando com maisforça. Não teve efeito. Ander a olhava

como se ela devesse saber como deixá-lo entrar. Ela bateu no escudo com ospunhos, mas era inútil.

— Papai? — chamou William,choroso.

Eureka não queria continuar vivendose eles se afogassem. Não devia terinvocado o escudo até tê-los encontrado.Ela gritou inutilmente. Cat e o pai sedebatiam tentando chegar à superfície,até o ar. A mão de Ander não os soltava,mas seus olhos se enchiam de lágrimas.

E então Eureka se lembrou: Claire.Por algum motivo, a irmã tinha

conseguido penetrar o limite quandoeles estavam no golfo. Eureka estendeu amão para a menina e praticamente aempurrou contra a fronteira do escudo.A mão de Claire encontrou a de Ander ede algum modo a barreira ficou porosa.A mão de Ander passou. Juntos, Eurekae os gêmeos puxaram os três corposensopados para dentro do escudo. Eleinchou e se lacrou de novo, bastanteapertado para seis, enquanto Cat e o paiarriavam de quatro, ofegando pararecuperar o fôlego.

Depois de um momento de

assombro, o pai pegou Eureka numabraço. Ele chorava. Ela chorava. Elepegou os gêmeos nos braços também. Osquatro rolaram num abraço sofrido,levitando dentro do escudo.

— Desculpe. — Eureka fungava. Elaperdeu Rhoda de vista depois quecomeçou a inundação. Não sabia comoconsolá-lo, nem aos gêmeos, pela perda.

— Estamos bem. — A voz do paiestava mais insegura do que ela jamaisouvira. Ele afagou o cabelo dos gêmeoscomo se sua vida dependesse disso. —Nós vamos ficar bem.

Cat bateu no ombro de Eureka. Suastranças estavam cheias de água. Osolhos eram vermelhos e inchados.

— Isto é real? — perguntou ela. —Estou sonhando?

— Ah, Cat. — Eureka não tinhapalavras para explicar nem se desculparà amiga, que naquele momento deveriaestar com a própria família.

— É real. — Ander estava de pé nabeira do escudo, de costas para osoutros. — Eureka abriu uma novarealidade.

Ander não parecia zangado. Parecia

maravilhado. Mas ela não podia tercerteza antes de ver seus olhos. Estariameles iluminados de um brilho turquesaou tão escuros como o mar encobertopor uma tempestade? Ela estendeu a mãopara seu ombro, tentando virá-lo.

Ele a surpreendeu com um beijo. Foiprofundo e apaixonado, e os lábios delediziam tudo.

— Você conseguiu.— Não sabia que isto ia acontecer.

Não sabia que seria assim.— Ninguém sabia — afirmou ele. —

Mas suas lágrimas sempre foram

inevitáveis, independentemente do queminha família pensasse. Você estáseguindo um caminho. — Foi a mesmapalavra usada por Madame Blavatsky naprimeira noite em que ela e Cat foram aoestúdio. — E agora estamos todos nocaminho com você.

Eureka olhou pelo escudo flutuanteenquanto ele se arremessava peloquintal inundado. O mundo além deleera sinistro e escuro, irreconhecível. Elanem acreditava que aquilo era sua casa.Não acreditava que suas lágrimasfizeram isso. Ela fez isso. Sentia-se

doente de uma estranha energização.Um braço do balanço deu

cambalhotas acima deles. Todos seabaixaram, mas não precisavam. Oescudo era impenetrável. Enquanto Cat eo pai ofegavam de alívio, Eurekapercebeu que não se sentia menossozinha em meses.

— Eu te devo a minha vida —disse-lhe Ander. — Todos aqui devem.

— Eu já devo a minha a você. —Ela enxugou os olhos. Vira esses gestosincontáveis vezes nos filmes e feitos poroutras pessoas, mas para ela a

experiência era inteiramente nova, comose de repente descobrisse um sextosentido. — Pensei que você estivessechateado comigo.

Ander tombou a cabeça de lado,surpreso.

— Acho que não tenho como mechatear com você.

Outra lágrima escorreu pelo rosto deEureka. Ela viu Ander reprimir oimpulso de escondê-la em seu próprioolho. Inesperadamente, a expressão eute amo brotou à ponta de sua língua. Elaengoliu em seco para contê-la. Era o

trauma falando, não a emoção. Ela mal oconhecia. Mas o impulso de verbalizaras palavras não foi embora. Ela selembrou do que o pai falou mais cedo arespeito do desenho da mãe, das coisasque Diana havia dito.

Ander não a magoaria. Ela confiavanele.

— O que foi? — Ele pegou sua mão.Eu te amo.— E agora? — perguntou ela.Ander deu uma olhada pelo escudo.

Os olhos de todos estavam nele. Cat e opai nem pareciam saber que perguntas

fazer.— Tem uma passagem perto do final

das Crônicas dos Semeadores que minhafamília se recusa a mencionar. — Andergesticulou para a enchente depois doescudo. — Eles jamais quiseram prevereste acontecimento.

— O que diz? — perguntou Eureka.— Diz que aquele que abrir a fissura

para Atlântida será o único capaz defechá-la... O único que pode enfrentar orei atlante. — Ele olhou para Eureka,avaliando sua reação.

— Atlas? — sussurrou ela,

pensando em Brooks.Ander fez que sim.— Se você fez o que eles previram

que faria, não sou o único que precisade você. O mundo todo precisa.

Ele se virou no que Eureka pensouser a direção do bayou. Aos poucos,começou a nadar, um nado de peitocomo o que ela e os gêmeos usaram parachegar à margem no dia anterior. Suasbraçadas aumentavam enquanto o escudose movia para o bayou. Sem dizerqualquer coisa, os gêmeos começaram anadar com ele, como fizeram com

Eureka.Ela tentou entender o conceito de o

mundo todo precisar dela. Nãoconseguiu. A sugestão sobrepujava omúsculo mais forte que tinha: aimaginação.

Ela começou a nadar também,notando que o pai e Cat aos poucosfaziam o mesmo. Com seis deles dandobraçadas, as correntes fortes podiam sermanobradas. Eles flutuaram pelo portãode ferro inundado até a beira do quintal.Partiram para o bayou inchado. Eurekanão sabia o quanto de água tinha caído,

ou quando pararia, se é que isso iaacontecer. O escudo estava a metros dasuperfície. Juncos e lodo flanqueavam ocaminho. O bayou em que Eurekapassara tanto tempo de sua vida pareciaestranho debaixo da água.

Eles passaram nadando por barcosquebrados e encharcados, píeresestourados, lembrando uma dezena defuracões do passado. Atravessaramcardumes de trutas prateadas. Peixes-agulha reluzentes disparavam diantedeles como raios caindo à meia-noite.

— Ainda vamos procurar o

Semeador perdido? — perguntou ela.— Solon. — Ander balançou a

cabeça. — Sim. Quando você enfrentarAtlas, terá de estar preparada. Creio queSolon pode ajudá-la.

Enfrentar Atlas. Ander podiachamá-lo pelo nome verdadeiro, maspara Eureka o que importava era ocorpo que ele possuía. Brooks. Aonadarem para um mar novo edesconhecido, Eureka fez um juramento.

O corpo de Brooks podia estar sobcontrole do mago sombrio, mas pordentro ele ainda era seu velho amigo.

Ele precisava dela. Não importava oque o futuro lhe reservasse, elaencontraria um jeito de trazê-lo de volta.

EPÍLOGO

BROOKS

Brooks correu de cabeça e a todavelocidade na direção de uma árvore.Sentiu o impacto acima da sobrancelha,abrindo um corte fundo na pele. Seunariz já estava quebrado, os lábiosrachados e os ombros doloridos. E

ainda não tinha acabado.Ele vinha lutando consigo mesmo há

quase uma hora, desde que andara pelamargem oeste de Cypremort Point. Nãoreconhecia o terreno à sua volta. Nãoera nada parecido com seu lar natal. Achuva caía em torrentes colossais. Apraia estava fria, deserta, e a maré era amais alta que ele jamais vira. Casas etrailers submersos jaziam ao redor, eseus ocupantes tinham partido — ou seafogado. Ele podia se afogar secontinuasse ali, mas a última coisa quepassava por sua cabeça era procurar

abrigo da tempestade.Brooks foi arrastado pela areia

molhada, onde escorregou e caiu, nummonturo. Sentiu a casca da árvore emsua pele. Sempre que estava prestes aperder a consciência, o corpo que elenão controlava voltava a lutar consigomesmo.

Ele chamava isso de a Peste. Tinhatomado posse dele havia 14 dias,embora tenha sentido a doença chegarantes disso. Primeiro foi uma fraqueza, arespiração curta, um pouco de calor noferimento da testa.

Agora Brooks trocaria qualquercoisa por aqueles primeiros sintomas.Sua mente, enclausurada num corpo quenão podia controlar, era desvendada.

A mudança aconteceu na tarde queele passou com Eureka na baía deVermilion. Ele estava em seu juízoperfeito até a onda o levar para o mar.Chegou à margem como algocompletamente diferente.

O que ele era agora?O sangue escorria por seu rosto,

entrava no olho, mas Brooks nãoconseguiu levantar a mão para limpá-lo.

Algo mais controlava seu destino; seusmúsculos eram inúteis para ele, como seestivessem paralisados.

O movimento doloroso era odomínio da Peste. Brooks nuncaexperimentou uma dor assim, e aqueleera o menor de seus problemas.

Ele sabia o que lhe acontecia.Também sabia que era impossível.Mesmo que tivesse controle de suaspalavras ao falar, ninguém acreditariaem sua história.

Estava possuído. Algo medonhotomara posse dele, entrando por uns

cortes em suas costas que não securavam. A Peste empurrara de lado aalma de Brooks e vivia em seu lugar.Algo mais estava dentro dele — algoodioso, antigo e formado por umaamargura tão profunda quanto o mar.

Não havia como argumentar com omonstro que agora fazia parte deBrooks. Eles não falavam a mesmalíngua. Mas Brooks sabia o que elequeria.

Eureka.A Peste o obrigou a dirigir-se a ela

com uma frieza gélida. O corpo que

parecia o de Brooks fazia todo esforçopossível para magoar a melhor amiga, eo pior não era isso. Uma hora antes,Brooks vira suas mãos tentando afogaros irmãos de Eureka quando eles caíramdo barco. As próprias mãos. Brooksodiava a Peste por vários motivos.

Agora, enquanto seu punho batia noolho esquerdo, ele percebeu: estavasendo castigado por não ter dado cabodos gêmeos.

Ele gostaria de ter o crédito por elesterem se libertado. Mas Eureka ossalvara, de algum modo puxando-os

para fora de seu alcance. Ele não sabiacomo Eureka tinha feito isso nem paraonde eles foram. A Peste também nãosabia ou agora Brooks a estariaperseguindo. Quando essa ideia passoupor sua cabeça, Brooks se esmurrou denovo. Com mais força.

Talvez, se a Peste continuasse, ocorpo de Brooks se tornasse tãoirreconhecível quanto o que havia dentrodele. Desde que a Peste se apoderaradele, suas roupas não pareciam cabermais. Ele teve vislumbres de seu corpoem espelhos e ficou assustado com seu

andar. Andava de um jeito diferente,inclinado. Uma mudança que entrou emseus olhos. Uma dureza que penetrou etoldava sua visão.

Quatorze dias de escravidãoensinaram a Brooks que a Pesteprecisava das lembranças dele. Odiavaentregá-las, mas não sabia comodesligar a memória. Era só nosdevaneios que Brooks se sentia em paz.A Peste se tornara um cliente numcinema, vendo o filme, aprendendo maissobre Eureka.

Brooks compreendeu mais do que

nunca que ela era a estrela de sua vida.Eles costumavam subir na nogueira

do quintal da avó de Eureka. Ela sempreficava vários galhos acima dele. Brookscorria para alcançá-la — às vezes cominveja, sempre assombrado. O riso delao erguia como hélio. Era o som maispuro que Brooks ouvira na vida. Ainda oimpelia para ela quando o ouvia nocorredor ou do outro lado de uma sala.Ele passou a saber o quanto valia seuriso. Não ouvia aquele som desde que amãe dela morreu.

O que aconteceria se o ouvisse

agora? A música de seu riso expulsariaa Peste? Daria à sua alma as forças paravoltar a seu lugar de direito?

Brooks se contorceu na areia, amente em brasa, o corpo em guerra.Arranhou a própria pele. Gritou deangústia. Ansiava por um instante depaz.

Seria preciso uma lembrançaespecial para realizar isso...

Beijá-la.Seu corpo se imobilizou, acalmado

pela ideia dos lábios de Eureka nosdele. Sentiu prazer ao lembrar de todo o

evento: o calor dela, a doçurainesperada de sua boca.

Brooks não a teria beijado, sedependesse só dele. Xingou a Peste porisso. Mas por um momento — ummomento longo e glorioso —, cadagrama de tristeza futura tinha valido sópor ter a boca de Eureka na dele.

A mente de Brooks voltourepentinamente à praia, à sua malditasituação. Um raio caiu por perto, naareia. Ele estava encharcado e tremia,imerso no mar até as panturrilhas.Começou a pensar num plano, mas parou

quando lembrou que era inútil. A Pestesaberia, impediria que Brooks dissessequalquer coisa que contradissesse seusdesejos.

Eureka era a resposta, o objetivoque Brooks e seu detentor tinham emcomum. A tristeza dela eraincomensurável. Brooks podia servir-sede um pouco da dor autoinfligida.

Ela valia qualquer coisa, porque elavalia tudo.

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Este e-book foi desenvolvido emformato ePub

pela Distribuidora Record de Serviçosde Imprensa S. A.

Teardrop | Lágrima

Notícia do Lançamentohttp://clubedolivro.potterish.com/2013/10/lancamento-galera-record-teardrop-por-lauren-kate/

Entrevista com a autorahttp://fallenbrasil.com/entrevista-

exclusiva-de-l-k/

Matéria de divulgação de capahttp://www.sobrelivros.com.br/capa-

nacional-de-lagrima-primeiro-volume-da-serie-teardrop-de-lauren-kate/

Wikipedia da autorahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Lauren_Kate

Site da autorahttp://laurenkatebooks.net/

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Sumário

CAPALIVROS DA AUTORA PUBLICADOS

PELA GALERA RECORDROSTO

CRÉDITOSDEDICATÓRIA

EPÍGRAFEPRÓLOGO | PRÉ-HISTÓRIA

1 | EUREKA2 | OBJETOS EM MOVIMENTO

3 | DESOCUPAÇÃO4 | CARONA

5 | SAÍDA DE ROMPANTE6 | ABRIGO

7 | REUNIÃO8 | LEGADO

9 | GAROTO DE LUGAR ALGUM10 | ÁGUA E PODER

11 | NAUFRÁGIO12 | NEPTUNE'S

13 | MADAME BLAVATSKY14 | A SOMBRA

15 | BLUE NOTE16 | INOPORTUNO

17 | TOCANDO A SUPERFÍCIE18 | PÁLIDA ESCURIDÃO

19 | NUVENS DE TEMPESTADE20 | EU NUCA

21 | SALVA-VIDAS22 | HIPÓTESE

23 | O AERÓLITO24 | O DESAPARECIMENTO

25 | PERDIDA NO MAR26 | REFÚGIO

27 | O VISITANTE28 | A LINHAGEM DA LÁGRIMA DE

SELENE29 | EVACUAÇÃO

30 | OS SEMEADORES31 | LÁGRIMA32 | BROOKS

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