[Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    1/222

    O FEITIO DA ILHA

    DO PAVOJoo Ubaldo Ribeiro

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    2/222

    Para Srgio Lacerda e Tarso de Castro.

    Sabe-se muito pouco.

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    3/222

    I

    De noite, se os ventos invernais esto aulando as ondas, as

    estrelas se extinguem, a Lua deixa de existir e o horizonte se encafua para

    sempre no. ventre do negrume, as escarpas da ilha do Pavo por vezes

    assomam proa das embarcaes como uma apario formidvel, da qual

    no se conhece navegante que no haja fugido, dela passando a abrigar a

    mais acovardada das memrias. Logo que deparadas, essas falsias

    abrem redemoinhos por seus entrefolhos, a que nada capaz de resistir.

    Mas, antes, l do alto, um pavo colossal acende sua cauda em cores

    indizveis e acredita-se que imperioso sair dali enquanto ela chameja,

    porque, depois de ela se apagar e transformar-se num ponto negro to

    espesso que nem mesmo em torno se v coisa alguma, j no haver

    como.

    Ningum fala nesse pavo ruante e, na verdade, no se fala na ilha

    do Pavo. Jamais se escutou algum dizer ter ouvido falar na ilha do

    Pavo, muito menos dizer que a viu, pois quem a viu no fala nela e quem

    ouve falar nela no a menciona a ningum. O forasteiro que perguntar por

    ela receber como resposta um sorriso e o menear de cabea reservado

    s perguntas insensatas. sabido, porm, que a ilha freqenta os sonhos

    e pesadelos da gente do Recncavo, que muitas vezes desperta no meio

    da noite entre suores caudalosos e outras vezes para entrar em delrios

    que perseveram semanas a fio. Outros sentem por ela uma atrao

    inquietante, que vrios procuram disfarar numa postura falsamente

    taciturna. E muitos desaparecidos que nunca mais foram vistos podem

    bem estar na ilha do Pavo, embora certeza no haja, nem se converse ou

    escreva sobre o assunto.

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    4/222

    Os que no conseguem suportar pensar nela crem, ou sabem,

    que l encontraro todos os seus medos materializados e empenhados em

    acoss-los como matilhas de ces enraivecidos. Vem nos pesadelos

    numerosos demnios e suas malfeitorias mais torpes e guisas mais

    ardilosas o demnio Oriax, dos peidos sulfurosos e miasmas letais, o

    demnio Agares, dos lancinantes padecimentos da inveja e do despeito, o

    demnio Cassiel, da entrega do corpo aos vcios e dissipao, o demnio

    Mamon, da ganncia e da avareza, o demnio Malquedama, da

    intolerncia e do dio, o demnio Nimorup, da mentira, hipocrisia e falso

    testemunho, o demnio Apolion, da discrdia, da blasfmia e da

    coprolalia, o crudelssimo demnio Asmodeus e seu anel maligno, e outros

    prncipes do Mal, que surdem traioeiramente das trevas abissais, para

    desencaminhar e levar danao as inocentes criaturas de Deus. E no

    temem s esses, mas todos os outros entes satnicos que na sua opinio

    enxameiam a terra, os ares e as guas da ilha, os seis mil e seiscentos e

    sessenta e seis diabos que se apossaram da boa ursulina Madalena Palud,

    estriges volteis, lobos amaldioados, o sol lampadejando com um claro

    luciferino, tudo podendo contagiar espritos de outra sorte puros, honestos

    e ordeiros.

    Entre esses temerosos, encontra-se tambm a convico de que

    na ilha moram feiticeiras de poderes inauditos, umas pretas, outras roxas,

    outras cafuzas ou ndias, outras brancas da terra ou do reino, como a que

    chamada por muitos nomes, principalmente por Ana Carocha ou a

    Degredada. Os poderes dessas feiticeiras provm do que misturaram do

    Congo, da Guin, do Benim, de Oi, do Daom e de outras fricas com as

    grongas dos bugres e com os seres infernais, bruxarias e venefcios

    arribados nas velas do alm-mar, muitos deles homiziados entre pginas

    de livros aparentemente mortos, mas sempre espera de que algum os

    folheie, para despertar seus residentes malficos. Esses livros, chamados

    gramus, so na maior parte da falange de Salomo e o principal deles

    escrito em lngua velha e se denomina Clavcula, que vem a ser a chave

    daninha para tudo o que h na vida. E tambm suspeitam que, em meio a

    prticas malditas, as feiticeiras, seus comparsas e seus proslitos se

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    5/222

    entregam a aes de espantosa libertinagem, tamanhamente se cobrindo

    de pecados hediondos que a eternidade tempo curto para seu

    escarmento. Assim se entende o terror de tudo o que diz respeito ou

    semelhante ao que julgam ocorrer na ilha do Pavo, pois, para eles, nela

    se cede s tentaes e se desobedece aos ditames da boa conscincia, do

    respeito aos de mais posio e do acato ao ensinamento da lei e dos

    homens de Deus, tal anarquia e impiedade conduzindo sem perdo s

    penas infinitas do inferno.

    J os que so atrados pela ilha no pressentem nela demnios, ou,

    se os pressentem, no lhes do importncia, assim como no temem ser

    possudos por trasgos e entidades nefandas, ou ser vtimas de feitios.

    Tampouco devotam seu tempo a horrorizar-se com as prticas libertinas

    alheias, preferindo ocupar-se das prprias, ou no se ocupar de nenhuma.

    No sabem a razo por que tm o desejo, sempre lhes ardendo no peito,

    de ir para a ilha, de onde, ao que tudo indica, muito difcil voltar.

    Certamente a maioria nunca reunir coragem ou condies para busc-la,

    mas sentem que nela h talvez uma existncia que no viveram e ao

    mesmo tempo experimentam em suas almas paisagens adivinhadas,

    sonhos aos quais dar vida, sensaes apenas entrevistas, lembranas

    vividas do que no se passou.

    Todos sabem que a ilha existe, com sua histria, sua gente, sua

    terra amanhada e seus matos brabos, seus bichos e seu prprio tempo,

    que diverso dos outros tempos, embora ningum saiba explicar de que

    maneira ou por que razo. Entre os que a temem e os que por ela

    anseiam, a razo talvez no se alinhe nem com estes nem com aqueles.

    No se pode negar que a verdade distinta para cada um e talvez

    estejam certos os que sustentam que este mundo no passa de miragem

    e, portanto, pode ser isso ou aquilo, segundo quem olha e pensa. Mas, se

    alguma coisa mais existe, tambm existe por necessidade a ilha do Pavo

    e a nica" maneira de desmentir que ela existe demonstrar que nada

    existe.

    Para quem se abeira pelo mar Oceano, ela avulta ainda bem fora

    da barra como um paredo alcantilado, penhascos monumentais orlados

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    6/222

    pelo vo perptuo das aves da gua. Desde longe, sua feio a de uma

    barreira de granito, amalgamada com os contrafortes do Recncavo e os

    costados de Itaparica e vedando aos navegantes a entrada da baa e os

    acessos a seu interior. Sem dvida, incontveis pilotos, tanto obscuros

    como renomados, passaram muito tempo diante dessa muralha

    irredutvel, que se obstina em no cessar de redobrar-se em novos

    rebordos. A maior parte dos que viram a ilha do Pavo certamente no

    conseguiu entrar, vencida pelos grotes nufragosos dessa costa

    sentinela. Mas alguns terminaram por embicar por uma das muitas goletas

    ocultas da baa e os vagalhes mortferos que anteparam a muralha

    deixaram de ser obstculo para que aportassem cidade da Bahia, assim

    como no so obstculo para os que no chegam a ver a ilha do Pavo,

    pois, como se sabe, ela est ou no est, a depender de quem esteja ou

    no esteja.

    Desde sua testa de pedra, fronteira praia de Chega-nego, a ilha

    serpenteia pela altura da ponta de Santo Antnio, se estreita de repente

    para espremer-se entre a ponta do Jaburu e a de Monte Serrat, se alarga

    como uma moringa entre Manguinhos e Itacaranha e se desfralda

    fartamente em esplanadas e taludes, ameaando engolir a ilha de Mar e

    a ilha dos Frades e, a partir das vizinhanas desta, espichando uma

    forquilha a oeste, com um brao at para l da ilha das Vacas e o outro

    descendo para c da ilha das Canas. Ao terreno pedregoso que franja os

    penhascos se sucede, maravilhosamente, uma mata cerrada em que

    somente ndios e mateiros podem ter certeza de que no se perdero,

    entre rvores altas como campanrios sucupiras, maarandubas,

    jacarands, paineiras, figueiras, ips, jatobs e mais todo tipo de

    vegetao, terrestre, area ou aqutica. E bichos macacos, onas,

    gatos-do-mato, guars, raposas, pres, preguias, tamandus, tatus,

    borboletas de todos os matizes, besouros de todos os feitios,

    marimbondos de todas as ndoles, beija-flores, sangues-de-boi, cardeais,

    sanhaos, jandaias, tucanos e o que mais voe ou se alvorote pelo cho, os

    que rastejam, jibias, jararacas, cobras-cip,cgados, teis, calangos e

    toda famlia de animais de sangue frio. O rio So Judas, que nasce em

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    7/222

    cascata no morro da Embaba e em cascata morre na penha do Marvado,

    corta essa grande mata e forma duas lagoas de guas negras, Pau e

    Cau, ambas cavilosas e devoradoras de gente. E, num bando aqui, outro

    acol, cada macho com suas variadas fmeas, nas partes mais secas dos

    matos, transitam os paves descendentes dos trazidos por Nuno Pires da

    Beira, de volta de uma de suas corseadas s ndias ou ao Ceilo, onde

    abatia imensos infiis, dilatava a cristandade e rapinava o que podia, de

    prolas a criaturas extravagantes.

    Nova cerca de pedra, agora mesclada com uma areia spera que

    no vero se aquece ao ponto de poder engrolar peixes, parece inaugurar

    um descampado rido e, no entanto, enquanto o terreno desce em

    quebradas amenas, o que se v so coqueiros, ouricuris, carnabas,

    piaavas, dendezeiros e outras palmeiras, manguezais se abrindo

    esquerda, praias alvas direita, canaviais infindveis em frente, vastas

    roas de tabaco e mandioca, rolando planura abaixo e se ondean-do sobre

    as curvas pacatas dos morrotes. s vezes um pouco distantes no mar

    fronteiro, outras vezes irrompendo abruptamente da terra macia e

    formando precipcios abismais, as muralhas de rocha s franqueiam suas

    vias secretas aos conhecedores e aos de muita sorte e habilidade. Por trs

    delas, ancoradouros, enseadas, marinhas alongadas, apicuns. Entre elas,

    mars destemperadas, meandros labirnticos, caribdes antropfagas,

    pontas aguadas empaladoras de cascos, arcos, cavernas e guas,

    sublevadas sem aviso pelo vento de apelido funileiro, que se entuba por

    aquelas passagens, fortalecendo-se e desvariando a cada estreitamento

    tortuoso, havendo assim posto a pique em instantes um nmero

    desmedido de navios e embarcaes de porte.

    Pelas bordas das guas, armaes de pesca, caieiras, viveiros de

    curim, atracadouros, lagunas rasas rebrilhando entre os arrecifes. Muitas

    povoaes se espraiam em todas as direes, desde arraiais pequenos

    que no contam mais de vinte casas, at as importantes, como as vilas de

    Xang Seco de So Jos, Nossa Senhora da Praia do Branco e Bom Jesus

    do Outeiro, existindo tambm as aldeias dos ndios e um certo reino na

    mata do Quilombo. Mas, em meio a todas, a principal de longe a

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    8/222

    Assinalada Vila de So Joo Esmoler do Mar do Pavo, que, havendo sido

    pisada pela primeira vez por p cristo num vinte e trs de janeiro,

    recebeu esse nome em honra do santo do dia, grande santo entre os mais

    santos, altssimo padroeiro da Sagrada Ordem de So Joo de Jerusalm,

    voz mais elevada nas hostes de Malta, senhor da famgera cruz das oito

    pontas. Todos os anos chove no vinte e trs de janeiro e muitas vezes

    baixam uns repiquetes fora da norma, transfigurando as guas num

    marouo enfurecido. Mas, mesmo assim, a galeota Flor da Santidade, de

    seis em seis meses reataviada, no deixa de capitanear a procisso

    embarcada que comemora o bom santo do dia remoto em que o reputado

    capito e almirante Nuno Pires da Beira saltou de um batelo para a gua

    rasa da coroa do Enforcado, vadeou at a praia e declarou tudo ali seu.

    Pela abundncia de ruas, becos e vielas, pelos diversos sobrados e

    vivendas de escol, pela abundncia de capelistas e comerciantes de

    novidades, pelas igrejas, pelas feiras e mercados e por muitos outros

    atributos, a vila de So Joo bem pode ser comparada a muitas cidades

    grandes e, mesmo em tavernas e casas de mulheres, no fica nada a

    dever, seno qui lhe devem. Na rua Direita, por exemplo, at as pedras

    do calamento parecem rebuliar com a agitao das dezenas de tendas

    de artesos, boticas, armarinhos, casas de secos e molhados, armazns,

    negras de tabuleiro, damas de chapus-de-sol floridos, cavaleiros em

    trajes de garbo, caleas e montarias vistosamente ajaezadas. J na

    descida para a baixa do Alecrim, o movimento no da mesma espcie e

    a gameleira gigante que lhe oculta a entrada testemunha todo dia a

    passagem de homens de respeito, cobertos de mil cautelas, em direo s

    mulheres pblicas ou a algum outro encontro galante numa casa

    d'alcouce, ou nos quartos que as alcoviteiras alugam e trocam por favores.

    De figuras eminentes, tambm rica a vila de So Joo, mesmo

    para uma cidade do Recncavo, pas celebrado por seu patrimnio

    inesgotvel de homens insignes. O primeiro a ser citado forosamente o

    lendrio capito Baltazar Nuno Feitosa, que prefere atender pela alcunha

    que ganhou em labutas e combates, qual seja a de Capito Cavalo, dono

    de desmesuradas terras, acar para adoar eternamente o Tejo, tabaco

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    9/222

    para enfurnar todos os reinos, piaava para encordoar todas as frotas,

    dend para no deixar no orbe roda ou comida sem azeite e barcos de

    atordoar Poseido. Mas, se ele e os ricos menores tm estatura para

    mdir-se com os ricos de quaisquer outras partes, o mesmo se diga dos

    letrados e grados assivissojoemapaenses, adjetivo ptrio cuja sonoridade

    e exatido devem, alis, ap engenho do gramtico, boticrio e mestre-

    escola Joaquim Moniz Andrade, pois, apesar de se tratarem na conversa

    por joaninos, sentiam desconcertada falta de uma apelao de mais peso,

    que os designasse como nativos da Assinalada Vila de So Joo Esmoler

    do Mar do Pavo. Se morasse em Lisboa, mestre Joaquim teria nomeada

    universal, mas, mesmo assim, est longe de ser solitrio em So Joo. Nas

    letras poticas, nas letras histricas e filosficas, na parentica, nas artes

    farmacuticas, nas cincias geogrficas, na msica e na pintura, em todos

    os campos da humana inteligncia, So Joo foi bem dadivada.

    Contudo, apesar de todas essas prendas, nada parece evidenciar

    na vila qualquer singularidade de monta. Observaria o visitante apressado

    que os joaninos so iguais a toda outra gente, ocupados em afazeres dos

    quais toda a gente se ocupa. Talvez lhe cause um pequeno espanto ver

    como homens, mulheres e crianas, brancos e negros, bem-postos e

    pobres, diferentemente de outras terras, abraam o uso de tomar banhos

    de mar, s vezes durante toda a manh ou mesmo todo o dia, entre

    grandes folguedos e algazarras, sem que se constipem ou lhes advenha

    algum mal da excessiva infuso em humores salsos. Possivelmente

    tambm estranhar ver negros calando botas, sentando-se mesa com

    brancos, tuteando-os com naturalidade e agindo em muitos casos como

    homens do melhor estofo e posio financial, alm de negras trajadas

    como damas e de braos dados com moos alvos como prncipes do norte.

    Mas, parte essas e outras originalidades menos notveis, zarparia esse

    visitante sem levar para contar os prodgios que se espera ouvir de todo

    viajante. E assim ter sido, se lhe pareceu.

    Um dia saltou do tempo e amanheceu em So Joo. De

    madrugada, a friagem umedecida por um chuvisquinho quase gosmento

    pareceu preceder mais uma sucesso de juntas entanguidas e espirros

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    10/222

    alarmados, mas, na hora da segunda missa, o sol se inflamou de sbito j

    a um palmo da borda do horizonte, as janelas se escancelaram e a

    tagarelice do dia, antes atalhada por baixo das nuvens pardas, encheu os

    ares, misturando-se ao cheiro da terra molhada. O mar e as grandes

    rochas no mesmo lugar, o cu turquesa de sempre, as construes

    alheadas, no envelhecer vagaroso dos seres de alvenaria. Recebendo

    agora o nordestezinho que baixa para permanecer at a noite, as guas j

    no so mais um lago parado, mas se dobram em ondinas desapressadas,

    que mal fazem oscilar as embarcaes na angra do Bispo e no caneiro do

    Mesquita. Nas colinas ainda enevoadas do outro lado da angra, j pelas

    divisas da vila, Casa dos Degraus, faiscando seus azulejos brancos

    salpintados de azul-celeste, a nica a refletir os tons dourados do sol,

    uma louainha no topo da elevao mais alta, entre alamedas de flores e

    frondosas rvores de frutas. Suas dezenas de janelas, de um azul mais

    escuro e fechadas por gelosias, ainda no esto abertas, com exceo das

    que do para a cozinha, onde mulheres ralam milho e coco e formigam em

    meio a gamelas e panelas fumegantes, volta de um fogo descomunal.

    De resto tudo parado como uma pintura, nada se movendo seno as

    folhas na brisazinha e o rolo de fumaa parda que emerge pachorrento

    pela chamin. Mais uma vez cumprindo a misso que lhe foi dada desde a

    Criao, um grande bem-te-vi atitou energicamente, na copa de um

    oitizeiro do largo da Calada.

    II

    A ela sem pena! bradou uma voz de mulher, por trs do

    madeirame de uma janela do andar de cima da Casa dos Degraus.

    Mais alto! Mais sentimento! Mais sinceridade!

    A ela sem pena! Sem pena! A ela, a ela!

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    11/222

    A ela sem pena! Sem pena! Mais sentimento!

    Sim, ai, vem de l! A ela sem pena! A ela, a ela sem pena, a

    ela sem pena, trevessa eu!

    Sim! Assim! Vou comer-te toda, desalmada! Ai que te atocho

    at os gorgomilos, malvada! Olha-o c, olha-o bem! Gostas! Enlouqueces

    quando o tocas? o teu bonifrate querido, todo teu, podes viver sem ele?

    Vs como se empina por ti? Que queres que ele faa?

    A ela sem pena, a ela sem pena, anda l, no esperes que te pea!

    A ela sem pena, sem pena! Sem pena! Martrata!

    Estraaia! A ela sem pena!

    Ento? Sim! Assim! Vou trespassar-te, vou misturar-me

    contigo, perversa! Ai que me matas! Ai que te mato! Ai que morro, levanta

    essa periquitona, levanta esse meio do mundo, isto c o meio do mundo,

    ai, levanta, vai, arreganhamo l, ai que morro, ai que me matas!

    A ela sem pena, ih, uai, sem pena nenhuma, uai, ai, sim, assim,

    toda, toda, t os bago, todo, todo, todo esse caraio grande, a! A ela sem

    pena, assim! Ai, ui, ai, ui, ai, ui! A ela sem pena, de com fora!

    Cada vez mais clamorosos, os gritos chegaram cozinha, mas as

    mulheres prosseguiram trabalhando como se no estivessem ouvindo

    nada, a no ser a velha Clementina, que se deteve um instante, sorriu e

    sacudiu a cabea.

    Vitria novamente? perguntou, num tom de quem j sabia

    a resposta.

    Ai que venho, ai que j gozo, ai que j vem, ai que j venho, ai

    que me pes doida! Me aperta, ai que j gozo, ai que venho, ai! gritou a

    voz de mulher.

    Se dessa vez no emprenhar, no emprenha mais nunca

    disse Clementina. Desde ontem que eles to na safadagem. Se fosse

    Nan, j tava com pelo menos dois no bucho, com tanta socao.

    Ah, tava.

    Nan d sorte. Tu veja como as coisas. Nan pelejou pra

    conseguir que ele quisesse ela, passou mais de cinco ms se entupindo de

    banha de porco, caba e farinha pra engordar e crescer a bunda, s

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    12/222

    faltava esfregar o rabo nele toda vez que podia e da primeira vez que ele

    pegou nela foi ela que puxou ele no banho salgado, todo banho salgado

    ela metia a mo por debaixo dele. Agora, Crescncia fica se julgando, fica

    como se fosse prncipes e princesas, em vez de pensar na vida.

    Crescncia...

    Que que tem Crescncia? Uma negra moa, alta e bem-feita,

    de dentes alvos e pele sedosa, vestida numa bata estampada, enfeitada

    de contas vivazes e carregando um saquinho meio encardido, entrou

    sorrindo e agitada, como se estivesse apenas passando por ali, a caminho

    de festejar alguma coisa bem longe.

    Que que tem Crescncia? repetiu, mas nova grita entrou

    pela janela e ela parou para escut-la, s recomeando a falar momentos

    depois. Menino, o negcio t brabo! Vitria, menina? Pronto, que

    Fencio t feito na vida.

    Que isso, menino, e Fencio sabe de nada?

    Comigo a senhora no precisa fingir. Nem comigo, nem com

    ningum aqui. Se ele inda no sabe, que eu duvido, vai saber logo,

    quando nascer o pardozinho e quando ela receber a casa. Toda a gente

    sabe, ele no vai saber? Santinho sabe, Gaze sabe, Morot sabe. Roque

    sabe, Lazinho sabe, Deus e o mundo sabe, s Fencio que no vai saber?

    Que isso, menina, tire Deus dessa conversa, j viu falar em

    Deus no meio de uma poro de corno?

    Poro de corno, no, corno no eles, eles to no proveito

    e ainda papando as mulheres. Corno I Pepeu, que pensa que as

    mulheres s dele e ainda d sustento a elas. Casa de cho de lajota e

    telhado amouriscado no todo mundo que tem, no. Papa fina, sabo

    nem de sebo nem de peixe, sabo de coco fino, gua de cheiro, bugiaria

    do p cabea, muito respeito e compra na conta... Aquela que bem d o

    seu bem-bom, bem da boa ficar!

    Cala essa boca, por Nossa Senhora! Essas coisas no se diz! E

    quem tu pra falar em vida boa, eu vejo assim minha vida, socada nessa

    cozinha, muito mal saindo no domingo, e fico pensando se eu tivesse a tua

    idade... Toma juzo, menina, tu no nada, tu devia era pensar de que I

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    13/222

    Pepeu prefere tu do que todas aqui e que bastava estralar o dedo pra ele

    vir lambendo o beio. Que que tu vai ter na vida? Depois de velha, cai

    tudo, cai dente, cai peito, cai bunda, cai coisa que tu nem sabe que tem.

    Que que tu vai ter?

    Ah, no quero saber, depois de velha eu penso.

    Isso tu diz agora.

    T certo, tou dizendo agora. Quando chegar depois, eu digo

    depois. Eu no posso dizer depois uma coisa que eu s posso dizer agora,

    nem posso dizer agora uma coisa que s posso dizer depois. Eu tou antes

    do depois, no me lembro nada do depois, s me lembro do antes.

    Tu t variada da idia, Deus que piade. E onde que vai

    assim, tem nada que fazer, no?

    E aqui ningum tem nada o que fazer? Se eu tivesse de vintm

    o que tem de negro vadio nessa quinta e nas outras casas, eu comprava

    uma casa igual de Nan mais Roque.

    Mas no vai ter, nem de vintm, nem de nada.

    No era bem melhor tu pegar essa casa do mesmo jeito de Nan e

    as outras todas que no tem vento na cabea no lugar de mioleira. no

    era mais fcil? E duvido que ficasse na casa somente, ia ter muito mais

    coisa, podia at pedir antes. Por que tu no pede antes uma ruma de

    coisa, a ele d tudo, a tu satisfaz a vontade dele, tem nada de custoso

    nisso? Que que tu vai arranjar? Negro rico despreza e mensgaba negro

    pobre, negro rico quer mais casar com branca, nenhum negro rico vai

    querer saber de tu, beleza no pe mesa. Eles, que j subiu, no vai

    querer descer. I Pepeu no feio, no vem me dizer que ele feio, um

    branco bonito. A tu vai, pega o que quiser, garante teu futuro e s precisa

    servir ele, toda a gente diz que no nenhum sacrifcio e no deve de ser

    mesmo. Tu no esquea que tu cativa do pai dele e ele pode chegar e te

    pegar de qualquer jeito, s ele querer.

    Que cativa? E nunca mais teve cativo aqui, de pois que

    Capito Cavalo ficou vivo?

    No tem, mas tem. Tem, mas no tem.

    Apois. No tem.

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    14/222

    Vamos dizer. Mas, mesmo assim, que que custa...

    Depois tu fala de meu av, me, tu diz que ele fazia qualquer

    coisa por dinheiro, tu diz que ele te vendeu ainda quando era menininha e

    que vendia at a me e que...

    Chega, eu no quero ouvir essa conversa. Teu av no tem

    nada com isso. Eu s queria saber por que tu...

    Porque no. Porque no quero. E ele pode me amarrar, pode

    me bater, pode fazer o que quiser, que eu no digo. Ele pode at me pedir

    pra ficar nua, como da outra vez, e eu fico. Eu nasci nua, ndio anda nu e,

    se eu tivesse na terra de meu av, tambm tava andando de peito de fora

    ou seno logo tudo, no tem nada demais. Eu fico nua, mas no digo e a

    eu quero ver ele. Eu no digo, no tem quem me faa.

    Mas por que tu no diz? Isso capricho, s capricho, uma

    coisa to besta, que no custa nada! Se eu pudesse dizer por tu, ai se eu

    pudesse dizer por tu!

    Graas a Deus que no pode. Muito bem, ento dai-me licena,

    que eu vou indo.

    Donde que se vai assim? Vai fazer compra no Olival, ?

    Possa ser pra mecs, mas pra mim no tem nada que me d

    vontade, naquele ladro. No, senhora, eu vou passear na vila.

    Tu vai passear na vila nada, tu vai de novo na furna da

    Degredada, tu no sabe no que tu t se metendo, esse saco a das

    mandingas dela, no , no? Eu no quero saber de tuas feitiarias, no

    vem nem me contar!

    E eu tou querendo contar nada? Ai, meu Deus, xo, xo, xo,

    que o tempo no espera por ningum. Da licena, dai-me licena.

    Dai-me licena, sim, dai-me licncia, pensou, enquanto descia

    ligeiro a alameda, soprando e se abanando, apesar de o dia continuar

    fresco. L embaixo, a gua da angra do Bispo j quase no se via, coberta

    por um rebanho de velas castanhas, brancas e azuladas, se fazendo ao

    vento, em harmonia como se pastoreado, para bordejar a costa entre as

    paredes de pedra. Ela olhou para os ps descalos e quis ter um par de

    sandlias novas, qualquer sandlia. Qualquer no, uma sandlia bonita,

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    15/222

    colorida e com sola um pouco alta, queria ser ainda mais alta, queria voar!

    E pensar que voaria, voaria, sim, no ia ser fcil, mas voaria. Envergaria

    as jarreteiras de Salomo, que estava comeando a fazer e teria a

    determinao de acabar, nem que levasse dezenas de anos e sairia

    voando sem que ningum a pudesse enxergar, conhecendo todos os

    locais, vendo todas as coisas e escutando todas as conversas. Sandlia,

    pra que sandlia?

    Chegou perto da praia, olhou a picada, que entrava nos matos a

    uns cinqenta passos de distncia. Prximo trilha, como sempre, o

    jumentinho Pacincia, que no tinha dono e s trabalhava quando

    acontecia algum precisar dele. Justamente o caso dela, que assim

    evitaria . uma caminhada longa, que lhe tomaria toda a manh. Pacincia

    gostava de todos e a levaria com rapidez, em seu passinho duro e

    apurado. "Paciencinha do meu corao", murmurou ela, arrepanhando a

    saia e se escanchando no lombo do jumentinho, para entrar na picada e

    comear nova viagem furna da Degredada.

    III

    Que palavras no quer pronunciar Crescncia, que lhe do tanto

    poder? Por certo no ser nenhuma das mandraquices que talvez tenha

    aprendido com o povo que vive rondando a furna da Degredada, docontrrio no falaria nelas to abertamente. E no devem ser grande

    mistrio, embora qui ioi Pedro Feitosa Cavalo, nomeado de famlia com

    a alcunha conquistada pelo pai e chamado por todos de I Pepeu, tenha a

    esperana de que alguma reserva se guarde em torno do assunto. Ainda

    suficientemente jovem para isso, I Pepeu tem, no s essa, mas diversas

    outras esperanas, as quais somente um esprito maldoso procuraria

    desfazer e, mesmo assim, encontraria dificuldades, dada a renitncia dasiluses imberbes, que tantas vezes transpem em muito a idade do juzo.

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    16/222

    Essa esperana mesma, a de que no se comentem as palavras para ele

    to imprescindveis, v, mas pode ser que ele acredite que somente

    suas mulheres as conheam, guardando-as meigamente para si e no

    mximo partilhando-as com uma ou outra conselheira mais velha, como

    Clementina. Sim, e tambm Crescncia as conhecia bastante, havendo to

    cruelmente se recusado a proferi-las, ainda que uma nica vez. Mas

    certamente no fazia comentrios, pois seria repreendida pela me e

    repelida pelas outras, to dceis, fiis e dedicadas como verdadeiras

    esposas, at mais do que isso, porque inteiramente destitudas de vontade

    que no a dele e sem vida a no ser por ele.

    Neste ponto tambm, I Pepeu se engana um pouco, pois, se

    dceis e dedicadas eram, fiis no eram. Boas negras, Vitria, Nan, Das

    Dores, Pureza, Eulmpia e outras, mulheres com quem qualquer se

    gabaria de haver deitado e delas recebido chamego e dengo, mas fiis

    no eram. Pelo contrrio, nas casas de todas elas dormiam homens, em

    algumas um hoje, outro amanh. E os homens no cuidavam de

    estabelecer se punham chifres a I Pepeu ou era este que os punha a eles,

    eis que s queriam saber que vida melhor no podiam almejar e tudo

    fariam para que o trato com I Pepeu pairasse sempre acima de qualquer

    queixa e as benesses disso derivadas lhes fossem vitalcias. E tanto se

    precatavam que os moleques da quinta, nas vezes raras em que I Pepeu

    preferia ir ter com uma mulher na casa dela, em vez de cham-la sua,

    estavam industriados para sair correndo e dar o aviso.

    De todas as esperanas do corao moo de I Pepeu, a que

    parece s vezes estar to perto que ele no consegue pregar olhos,

    mesmo tendo ido a uma de suas mulheres atrs da outra, a de que

    Crescncia finalmente ceda. Mas, na maior parte do tempo, o sonho est

    to longe quanto o fim do mundo. Nunca o tratou mal, nunca lhe apareceu

    de calundu, nunca lhe negou nada, somente negou as palavras que pedira

    com tanto fervor e humildade, que suplicara mesmo, que chegara a se

    ajoelhar para mendigar. Na noite encantada e maldita em que, finalmente

    persuadida, com o empenhadssimo ademo de Clementina, ela veio ao

    quarto dele, deixou que ele.lhe tirasse o camiso sem ajudar, facilitando e

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    17/222

    levantando os braos sem que ele pedisse. Nua em plo sua frente,

    braos pendidos com naturalidade, um joelho levemente dobrado, uma

    perna meio passo frente da outra, no tinha a expresso nem um pouco

    diferente da de quando falava com ele em casa ou lhe trazia um refresco,

    os lbios num semi-sorriso amistoso, os olhos suavemente fixos nele. Ele

    chegou mais perto para ver e sentir a pele rija e sem manchas, os poros

    eriados pelo friozinho de junho, e ela se deixou admirar sem se mover.

    Ele pediu-lhe que se deitasse, ela se deitou, quase na mesma posio em

    que estivera de p, apenas um dos joelhos mais dobrado. Ele quis falar,

    pensou em como no conseguia convocar palavras para descrever o que

    sentia e, tremendo como se estivesse com calafrios de febre, tirou

    tambm a roupa. "Abre as pernas", disse, e ela abriu. Sentindo que,

    novamente, desta feita mais que nunca, ia precisar que a mulher dissesse

    aquilo de que tanto dependia, pediu-lhe que o fizesse, com a voz constrita

    e esganiada. "No", respondeu ela, falando pela primeira vez naquela

    noite. Mas por qu? Que mal havia nisso, que transtorno lhe causava?

    "Nenhum", disse ela. "Mas no digo." No diz por qu? "Porque no

    quero", retrucou ela, "porque, se vosmec tem o querer de me trazer aqui,

    me tirar minha roupa, me mandar abrir as pernas e se servir de mim,

    resta o meu querer de no dizer o que eu no tenho vontade. Fazer,

    vosmec me faz; dizer no me faz, no parte. O resto pode fazer, eu tou

    aqui, o da mulher j cumpri, o do homem vosmec cumpre."

    No, ele no queria forar nada, porque forado no servia. Sim, o

    do homem ele tinha que cumprir, mas ela no devia ter dito isso de forma

    to empedernida, que o angustiava e envergonhava cada vez mais fundo,

    embora no o impedisse de insistir. Pediu mais, pediu dezenas de vezes,

    prometeu mais do que havia prometido a qualquer mulher antes, mas ela

    agora nem respondia, nua na mesma posio. E, quando ele passou a

    bravatear sua biografia, descrevendo as mulheres que rastejavam a seus

    ps e o banhavam em glria e orgulho, feitos de combate, navegaes

    desassombradas, caadas e pescarias prodigiosas, ela continuou sem falar

    e, depois de algum tempo, fechou os olhos como se fosse dormir e virou-

    se de costas, sem se preocupar em cobrir-se. Suando e com vontade de

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    18/222

    arrebentar a cabea contra a parede, ele primeiro passou-lhe a mo por

    todo o dorso, depois pelo meio das coxas entreabertas e depois

    apertando-lhe as ndegas com fora. Deitou-se, encostou-se nela por trs,

    enlaou-a para pegar-lhe os peitos, mordeu-lhe a nuca e a ouviu gemer e

    suspirar, antes de mexer-se para chegar-se mais a ele. Por favor, por

    favor, por todos os santos, por todas as almas, diz, s dizer, so s umas

    palavrinhas, que so palavras? E, enquanto ele se levantava fora de si e

    vociferando todas as pragas que jamais ouvira, ela indagou se podia

    fechar as pernas, se podia levantar-se, se podia vestir-se, se podia ir

    embora, pausando a cada pergunta e, como ele continuava a imprecar

    com os punhos fechados no peito, deu um muxoxo alto, enfiou o camiso

    e saiu, entreabrindo a porta como se no fosse possvel abri-la toda e

    roando nela o corpo, at ganhar vagarosamente o corredor.

    Agora, enquanto I Pepeu decidia se ia bica tomar um banho,

    porque, mesmo a manh estando to fresca, tinha suado muito com

    Vitria, brotou de novo a lembrana que durante toda a semana o

    alegrara, voltando sua cabea em horas inesperadas. A tisana de

    Tantanheng, Balduno Galo Mau! Balduno Galo Mau, ndio tupinamb

    muito do pssimo no ver da maioria, homem de alto valor no ver de I

    Pepeu, ras-tejador mestre, doutor dos matos, amigo de todas as ervas,

    conhecedor de todos os bichos, ntimo de todas as rvores, velhaco como

    toda a mascataria levantina, matreiro como oitocentos curupiras,

    mentiroso como um frade viajante, o maior entendido em aguardente de

    cana de que se tem notcia, do fabrico ao desfrute e a nica coisa que

    lhe falta saber falar direito lngua batizada, mas h quem afirme que

    fingimento. Balduno lhe dissera que de fato as palavras so de

    grandssima importncia, havendo homens que obram qualquer graa ou

    desgraa com elas, a seu belo talante. Mas, por mais importantes, no

    fundo no passam de vento mastigado e, por conseguinte, no podem

    com a fora das plantas e das qualidades dos bichos, que so a prpria

    Natureza e ningum vence a Natureza. Comprende coisa aqui, disse

    Balduno, zerva forte, muito forte, zerva do mato boa. Pega isso, ndio

    pega: txutxu-riana, dois mi; casca do ip-roxo, duas lasca; capabilu,

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    19/222

    duas raiz grossa; um cunho de jacar-curu; caroo de curuiri, duas mo;

    ponta de rabo de jararacuu; cardo de ceranambi apurado at no poder,

    trs mais um dedo de caneca; milmi, dois mi; acatuaba, trs lasca; bola

    de nhaca de porco-do-mato, pronto. Afere-venta, afereventa, deixa sereno

    trs dia, bebe xuque-xuque-xuque, pronto. Da a pouquinho o fulano

    comea a sentir uma quenturinha nos baixios, quenturinha essa que vira

    um caloro, caloro esse que levanta o mucurango que chega a parecer

    que ele vai estourar e aquilo fica o dia inteiro e a noite inteira que nem um

    pau de bandeira e nem todas as mulheres da vila, encarreiradinhas,

    conseguiriam abaix-lo. Escalavrar, desfarelar, sim, mas derribar, nunca

    do nunca.

    Ah, exultou Balduno, embriagado com a prpria sapincia. Esse

    faanhoso preparo lhe tinha sido ensinado havia muito tempo, por um

    velho muito velho, que morreu numa esteira, empernado com uma mulher

    novinha, novinha. O velho emborcava a tisana ih, ih, h! e ia para

    onde tinha mulher passando. A mulher passava, ele dizia: vamos se

    distrair? A mulher dava risada. Ele a dizia: espie eu aqui, cabecinha pra

    riba por sua causa, querendo se distrair. A mulher dava mais risada e dizia

    velho, velho, por que tu no faz como os outros velhos e no vai pra sua

    rede pitar seu cachimbinho, se queixar das novidades e contar histria?

    Ele olhava para a mulher com aqueles olhinhos pregueados, fazia que no

    ouvia e dizia: vamos se distrair, essa menina, bote aqui sua mozinha. A

    mulher ria de novo, ia rindo, ia rindo, ia rindo e, nessa risadaria ih, ih,

    ih! adivinhe o que o velho fazia mais ela. Depois ele deixava ela

    desmilingida na beira do rio e gostando muito de velho desse dia em

    diante, e ia caar outra. A outra vinha, ele dizia: vamos se distrair? E por a

    ia, at no passar mais mulher.

    I Pepeu antecipou com um arrepio o gosto da tisana e resolveu

    que taparia o nariz, fecharia os olhos e se pegaria com todos os santos,

    mas a beberia. Qualquer coisa valia a pena para que, com os poderes

    seqestrados por Balduno e a ele repassados, pudesse enfim encarar

    Crescncia e dizer-lhe: No precisas falar nada e, alis, prefiro que te

    cales, porque agora vers o que homem. Sim, dessa forma vingaria o

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    20/222

    pundonor to afrontado, mas, apesar de a alegria no o desertar, vinha

    afeada por uma ndoa s vezes pequena a ponto de mal ser percebida, s

    vezes alastrada como os sargaos no vero. Vida irnica, vida cruel, logo

    ele, que aspirava reputar-se como o garanho Confiado, de memria e

    descendncia perenes em toda a ilha do Pavo, no se registrando gua

    ou mula que, pisando seu territrio, tivesse escapado de hav-lo aos

    quartos. Logo ele que, desde os catorze anos, tivera todas as mulheres da

    quinta, da Casa dos Degraus e da fazenda Sossego Manso, numa sucesso

    to infrene que at mesmo seu pai, tambm notado pelo vigor, se

    espantou e pediu o testemunho das mulheres para acreditar. Delas todas,

    ao que parece, s escaparam as velhas, as meninas ainda sem peitos e a

    ndia Celestina, que anda nua pela casa, mas, quando ele a quis agarrar,

    deu-lhe um safano e disse que no gostava de homem, tinha nojo, ainda

    mais de corpo cabeludo como os brancos. E Crescncia, sempre

    Crescncia, sim, sim. E no deixava de ser uma vergonha que, com a

    recusa dela a dizer aquelas palavras singelas, ele precisasse de uma

    triaga de ndio velho para ter certeza de que no falharia, como at agora

    falhara.

    Que palavras, malditas palavras, cravadas em seu miolo to

    indelevelmente, desde aquela tremenda primeira ocasio em que a negra

    Sansona, uma das preferidas de Capito Cavalo e trs vezes maior que I

    Pepeu, puxou-o para uma esteira e, com as feies assustadoramente

    transfiguradas e a voz parecendo lhe sair dos peitos enormssimos, tirou-

    lhe a roupa, apalpou-o todo, mordeu-lhe o pescoo, alisou-lhe a bunda e

    abriu diante dele as coxas poderosas, gritando:

    A ela sem pena!

    Nesse dia e em todos os outros em que esteve com Sansona, o

    medo s passava depois que ela fazia essa exortao com entusiasmo, o

    que, alis, lhe ocorria naturalmente. Quando ele levou Esmeraldina para

    os matos, achando que dessa feita no sentiria medo, teve o mesmo

    pavor, at que lhe veio mente pedir que ela dissesse as palavras de

    Sansona. Milagrosamente, o medo se desfez, mas ele se tornou para

    sempre escravo dessas palavras e, de certa maneira, escravo da obsesso

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    21/222

    por Crescncia, que tinha o poder de no diz-las. Mas agora no

    dependeria mais daquilo, porque a tisana de Balduno o libertaria.

    IV

    Balduno Galo Mau tinha ido para a frente do sobrado da Cmara,

    como havia combinado com I Pe-peu, mas no era mais por essa razo.

    Ali no estava nem Balduno nessa hora, estava Tantanheng. Pintado dejenipapo e urucu, com uma borduna na mo, uma pena enfiada no lbio

    inferior, duas outras nas bochechas e a carantonha feroz, rezingava,

    rosnava, andava e perneava de um lado para o outro, diante de uma

    pequena multido de ndios, os homens mais ou menos paramentados da

    mesma forma que ele e alguns completamente nus, embora usassem

    cintos de cip, que de vez em quando arrumavam atentamente, como

    quem ajeita uma pea de roupa essencial. A intervalos regulares, voltava-se para o grupo, brandia a borduna e, com as veias do pescoo tmidas,

    proferia um pequeno discurso em lngua de ndio, fazendo pausas para

    ouvir os gritos com que os outros reagiam. O sobrado, inteiramente

    fechado, tinha porta dois milicianos com mosquetes antigos montados

    em forquilhas, de olhos fixos nos ndios e a expresso de que gostariam de

    estar bem longe dali. Na hora em que I Pepeu ia chegando, Balduno,

    inflamado pela prpria facndia, rodopiou batendo os ps, conversou como cho e, depois de ficar de cabea para baixo muito tempo, deu um salto

    altssimo, fez uma careta horripilante e, gorgolando como um peru

    demente, correu para a porta do sobrado e encostou a testa na de

    Francisco Cabea Reta, o miliciano mais atemorizado.

    Cad tendente? Cad Do Filipe de Meulo Furutado? Cad

    condenado pecador, tendente estrumo? U! U! ndio mata, ndio d carne

    de branco postadinha pra guar, pra raposa, pra tatu e aribu, pra siri e pramec atecuri, na terra, no vento e na mar! ndio pega toda gente e mata

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    22/222

    de dentada, arrum, armm, creque-creque, ramo-ramo, racha cabea, bebe

    sangue na coit, tuque-tuque-tuque-tuque! Curu-curu, com

    vossimicec! Donde que saiu? Saiu de eu, bosta sem mistura, bosta pura!

    Fio arrejeitado de sarigia amolestosa, bixiguento! Cad tendente? No

    manda ele? Manda eu tambm! Aqui tudo, ndio j mandava antes de

    branco parecer! Vo-te merda do caraio da postema da barabaridade!

    Dismigaia mioleira, come nariz, chupa olho, capa zovo, enfia porrete no

    rabo! U! U! Joga feitio da Degueredada, faz desgraa, vai secar tu e tua

    parentage, tua me, teu pai, teus com que vive, teus de sangue tudo!

    No eu que d as ordens disse Cabea Reta, apoiando-se

    na forquilha do mosquete como se estivesse com medo de cair.

    Ordes d tendente Do Filipe, ndio sabe! Mas tendente fugiu,

    se escondeu a dentro! ndio vai entrar, ndio lasca porta toda, entra a

    dentro, quebra tudo, tudo!

    Ento, povo: todos ndio no vai entrar? Vai! Vai! ndio vai entrar,

    garguelar tendente, enfiar no espeto, assar no moqum!

    Seu Do intendente no t a. T tudo fechado, hoje feriado,

    dia do outono.

    Dia de quem? Quem o tono, santo? Santo Antono no ,

    no fica com conversa querendo enganar ndio, Santo Antono no tempo

    de trezena e novena, ndio no besta!

    No sei se santo, s sei que feriado, dia do outono. Est na

    postura, feriado dia do outono, dia da primavera, todos esses dias. O

    outono comea hoje, muito importante, feriado.

    Mentira. Mentira de Do Filipe tendente, filadumagua com

    oitenta jumento.

    Mentira, no. T escrito e pregado ali na porta. Tando escrito,

    no pode ser mentira, t escrito.

    Diz tu e diz o cura Bonege. E porque dia do tono que o

    tendente no t a?

    No, porque feriado. Por primeiro o dia do outono, por

    segundo o feriado. No feriado, ningum t aqui, s t ns.

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    23/222

    Ento onde que ele t? Em casa no t, na rua no t, aqui

    no t. Ele tem que t. Ningum no no t, todo homem tem que t, no

    pode no t, ndio no besta.

    I Pepeu abriu caminho pelo ajuntamento e ps a mo no ombro

    de Balduno, que se virou e, de incio com a mesma cara feia, pareceu no

    reconhec-lo, para somente depois bater-lhe amistosamente no brao,

    embora ainda enfezado. I Pepeu quis saber o que tinha acontecido, que

    ciznia era aquela, entre gente antes de to pacata convivncia. Ah, no

    quisesse saber I Pepeu! Pois me comprenda uma coisa, o desgraado do

    Do Filipe, que nunca gostou de ndio, mandou sergente Polnio procurar

    Dominguinho, ndio mais velho de todos, que nem sicutar direito sicuta

    mais e se esquece de tudo, chegou e disse que Do tendente fez orde

    nova, orde essa que diz que ndio no pode mais ficar na vila, lugar de

    ndio no mato. Que as damas se queixa de ver ndio nu e as filha de

    familha tambm, que ndio bebe cachaa, faz disturbao, no quer

    trabalhar e, por isso e muito mais, vai ter que voltar pro mato. E que ndio

    tem trs dia pra voltar pro mato, nem mais um tico nem um tiquitito.

    ndio no volta pro mato! gritou Balduno, com as veias do

    pescoo mais uma vez parecendo prestes a estourar. Se mato coisa

    boa, branco ia pro mato! Branco s quer coisa boa! Por que branco no vai

    pro mato?

    Mas por que tu no queres ir para o mato? Tu sempre disseste

    que o mato tinha tudo, a vida era melhor...

    Era! Isso qjuando ndio era besta e descomprendido, no tinha

    aprendido nada, ndio era besta. Era!

    Agora no mais! Tem car no mato? Tem sal no mato? Tem

    fiambre no mato? Tem galinha gorda e dinheiro no mato? Tem sabo no

    mato? Tem jogo de carta no mato? Tem dinheiro no mato? Tem sabo no

    mato? Tem carne de vaca no mato? Tem vrido, panela de ferro e faca

    molada no mato? Tem aramofada no mato? Tem tenda de novidade e

    armazm no mato? No mato tem bicho, tem mutuca, tem musquito, tem

    pot, tem cobra jararaca, tem coceira, tem perreao, no mato tem isso!

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    24/222

    ndio volta pro mato? Nunca que nunca! ndio quer voltar pro mato? No,

    no, no, no! ndio,..no volta pro mato, j falou. ndio volta pro mato?

    No! responderam os outros, os homens levantando as

    bordunas e as mulheres e crianas de mos dadas, girando numa espcie

    de roda apressadinha.

    Mas verdade essa histria? Ningum me disse nada, eu no

    soube de nada. Quede Apolnio?

    Sumiu tambm, deve de t pescando. o dia do tono e eles

    todos sumiu.

    o dia de qu?

    Do tono. Cabea Reta disse que t pregado ali na porta.

    I Pepeu aproximou-se para ler o que estava escrito no papel

    pregado na porta. No inimitvel estilo do mestre Jos Joaquim Moniz

    Andrade, dodecasslabos de grande poder evocativo exaltavam a

    formosura do outono, a dadivosa estao das frutas, dom do ubertoso solo

    que Deus abenoa. Incumbe ao homem por ele afortunado erguer as mos

    para os cus, na alegria da colheita, quando as macieiras, cerejeiras e

    pessegueiros tornam ledos os campos, na deleitvel cornucpia da

    abundncia.

    ndio no perecebeu nada disse Balduno. O que

    estao?

    o tempo, agora o tempo das frutas. A ma, a cereja...

    O que cejera? O que ama?

    Frutas. So frutas que tu no conheces, mas h.

    O outono o tempo das frutas.

    De acajueiro mesmo no, agora no tem caju. E quase o resto

    todo no precisa de tono, d tempo todo.

    Tu no entendes disso, Balduno, porque aqui somos muito

    atrasados, s agora que o outono est chegando por aqui, antigamente

    no existia, por isso que as frutas daqui so assim. Mas a fruta

    verdadeira respeita o outono.

    Pode ser, mas ndio no respeita. por causa do tono que

    ndio tem que voltar pro mato?

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    25/222

    No, no era. Em duas folhas de papel apergaminhado, ambos com

    o selo da vila estampado uma cauda de pavo emoldurada pelo dstico

    Sic impavidus scintillat pavo e circundando os quartos de um leo de juba

    cacheada luziam novos lavores da erudio de mestre Moniz de

    Andrade, embora firmados por uma das incontveis plumas de pato com

    que Do Felipe Mendes Furtado ia s turras com a grafia e a sintaxe, para

    depois, amaldioando o clamo rebelde, desejar a morte sbita de todos

    os palmpedes do universo e a conseqente extino da laia dos

    escrevedores e gramticos. Nessas duas pginas, em meticulosa caligrafia

    processual, faziam-se primeiramente assisados considerandos, a saber,

    entre outros: que era da natureza das diversas raas e povos dspares

    opugnarem-se entre si, se submetidos a excessiva convivncia, como

    sobejamente ilustrava a Histria, estando o ndio para o branco assim

    como o hitita para o egpcio, ou este para o hebreu, ou os romanos para

    os filhos de Dido; que os da raa vermelha, em todas as partes do mundo,

    por mais que forcejassem a caridade e o empenho catequ-tico dos

    brancos, mostravam-se invariavelmente infensos ao mais elementar

    ensinamento, quer da cristandade, quer da urbanidade, embriagando-se

    em pblico, trafegando sem roupa ou qualquer espcie de cobertura,

    bebendo a fumaa do cnhamo-da-ndia ou do tabaco, soltando nos ares

    vapores ofensivos pelo vaso traseiro, dando-se a algazarras a toda e

    qualquer hora, refugando trabalho honesto e ignorando a autoridade; que

    cabia Intendncia e Cmara o zelo da ordem pblica, da moralidade e

    dos bons, costumes, mnus em cujo fiel e indemovvel exerccio

    penhorariam honra e vida; que a prpria palavra "selvagem", originria do

    mais patrcio e castio latim e digna da pena de um Ccero ou de um Tito

    Lvio, queria dizer "prprio da selva", construindo-se a partir desse alicerce

    um perfeito silogismo, nos puros moldes do insigne mestre de Estagira:

    selvagens so os habitantes da selva; os ndios so selvagens; ergo, o stio

    prprio para os ndios a selva, no havendo como refutar to exata

    razo sem que a lgica do universo se derribe. Tudo isso e mais outros

    juzos e postulados levavam o intendente e a Cmara a haver por bem

    injungir os ditos ndios a deixar a vila para dela no mais se aproximarem,

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    26/222

    a no ser portando salvo-conduto, concedido ao alvedrio da Intendncia.

    Trs dias a contar da data, o ndio pilhado na sede da vila receberia por

    ensinadela ser posto a ferros e escorraado de volta ao seu meio natural.

    Pela segunda vez cometendo a mesma felonia, penaria todos os rigores da

    lei cabveis a desordeiros, vagabundos, salteadores e demais celerados

    que sobejam em sua grei imunda.

    Tudo mentira! gritou Balduno, apesar de no haver

    entendido quase nada do que I Pepeu, com alguma dificuldade, lera em

    voz alta. ndio anda nu porque nocente, desconhece roupa, no sabe

    mardade, padre cura disse, padre cura no se poquenta com ndio nu!

    Toda gente gosta ndio! Assomente Do Filipe que no gosta! Assomente

    Do Filipe e as beata beguina! Assomente Do Filipe, as beguina e os

    miserave! Quando ndio t na casa de mulher que eles vai, ajudando no

    serevio e fazendo covitage, eles no recrama nem manda ndio simbora!

    Quando ndio v o que eles faz e elas faz, fica tudo muito amigo de ndio,

    pra ndio espiar mas no contar! Eles quer ndio tarabaiando de graa,

    consertando rede, carregando fruta, capinando mato, levando barrica de

    bosta, pra depois nem comida quer d ndio, nem misgaia! E, se ndio

    peida, comida junto mais bebida de branco que faz bufa, comida boa,

    mas faz bufa! D dinheiro ndio, ndio contente! D mais dinheiro ndio,

    ndio mais contente ainda! Por que no d dinheiro ndio?

    No se enganava Balduno quanto hostilidade, ditada pelo medo,

    daqueles vrios moradores da vila que os ndios ajudavam, nas questes

    delicadas que citou. No se devia tal hostilidade a que os ndios furtassem

    tudo o que queriam, mesmo porque no costumavam subtrair mais do que

    comida, um enfeite ou outro, um utenslio ou outro, e distribuam o que

    furtavam a quem lhes pedisse, partilhando o uso, se no se podia dividir a

    pea. No era por coisa alguma do que o intendente reprovava em seu

    edito, era que os ndios agora ameaados pelas autoridades, com

    argumentos privadamente indefensveis mas publicamente irrecusveis,

    podiam contar o que presenciavam em toda a vila, principalmente na

    baixa do Alecrim. Para muitos maridos e esposas, nesse instante

    gravemente arrependidos e prometendo aos cus jamais repetir os seus

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    27/222

    malfeitos secretos, era melhor, ao menos por enquanto, que os ndios

    fossem embora, sem a oportunidade de, com a lngua solta por uma

    malunga ou outra, contar bem alto o que tinham visto ou de que tinham

    at participado cala-te, boca sem siso; apeia do juzo, pensamento

    malquerido. E, assim, em lugar de aprovao, o que corria entre esses

    preocupados, nervosamente acotovelando-se entre os outros assistentes,

    na pequena multido que se formara para ver o que se passava, eram

    comentrios destinados a converter a maioria sua convenincia esses

    peidorreiros ladres tm mesmo que ser arrojados aos quintos dos

    infernos, eu por mim passava-os todos ao fio da espada, para mim

    pecado batiz-los, pois est visto que alma no tm, j c vivemos fartos

    de ver mamas despencadas e tomates Iramposos a baloiar-se, o que

    penso deles no disse a Mafoma do toicinho, e assim por diante,

    mandando o pejo cristo que aqui se detenha tal medonha enumerao.

    Finalmente, a muito custo, I Pepeu conseguiu convencer Balduno a

    dispersar os outros ndios e acompanh-lo casa de Mirinha Vesga, na

    baixa do Alecrim. L iriam a uns copos e conversariam com mais calma,

    talvez se pudesse dar um jeito na situao.

    Tomaram muitos copos, I Pepeu de moscatel e Balduno de uma

    supupara na cobra coral que ele mesmo tinha feito e guardava na casa de

    Mirinha, sob grandes precaues, por se tratar de um garrafo rarssimo,

    de fundo chato, que surripiara da casa da me de padre Boanerges, fazia

    mais de um ano. Quem tocasse no garrafo sem seu consentimento ele

    ameaava matar, com os olhos fuzilando e a mo no facalho. E, de fato,

    algo diferente devia existir nessa jeribita, porque a cachaa de Balduno

    era diversa da de qualquer outra pessoa. Toda gente tem ou cachaa feia

    ou boa cachaa, sendo a mesma coisa dizer, como se diz no reino, que se

    tem mau vinho ou bom vinho. Dentro dessas cachaas, h a chorosa, a

    confessional, a danarina, a amante, a querelosa, a porradeira e as

    inteiramente fora de si, mas cada uma se amolda num dos dois feitios, ou

    o bom ou o mau. Balduno, porm, no tem boa ou m cachaa, tem a

    cachaa do dia, sempre de acordo com a necessidade e nunca falhando

    nessa exigncia. Se precisa de cachaa para sair dizendo desaforo, para

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    28/222

    declarar paixo, para historiar patranhas, para chorar de arrependimento

    ou para qualquer outra finalidade premente, das muitas que emboscam o

    homem nesta vida ludibriosa, ele convoca dos ares essa cachaa, logo

    depois da segunda talagada. Na primeira talagada, no. Na primeira

    talagada, abana a cabea com fora, enfia os fura-bolos nos ouvidos para

    agit-los enquanto revira os olhos, franze a boca, faz um bico estalado e,

    depois de uma pausa em que parece ter ficado cego, esconde o rosto

    entre as mos. Ao descobri-lo, nem mesmo seus amigos mais chegados

    podem perscrutar o que lhe vai no esprito. Pausado e grave, apanha o

    garrafo com ambas as mos e, cerrando as plpebras, bebe a segunda

    talagada. A segunda talagada, essa sim, j traz sua natureza

    encomendada e ento, havendo mais uma vez escondido o rosto entre as

    mos, ele ressurge com a cara certa para aquela certa ocasio, com sua

    certa cachaa.

    Como desta vez, em que se ergueu com o rosto altivo, gestos

    bruscos e posturas guerreiras. Tambm ndio sabe fazer discurusso, disse

    ele, e ndio faz discurusso. Discursou longamente, volta e meia enxugando

    lgrimas que molhavam o cho e, ao serem desviadas com os dorsos dos

    dedos, respingavam em I Pepeu. Mas no eram lgrimas de tristeza,

    explicou, eram de raiva. Nenhum dos ndios queria sair da vila, todos j

    tinham sua vida l e como podiam voltar para os matos? Por que os

    brancos eram os donos do mundo? Os brancos no eram donos do mundo,

    o mundo no tinha dono! O branco vem sem ningum chamar nem sentir

    necessidade, traz as coisas dele, ensina ao ndio, acostuma o ndio bem

    acostumadinho e depois quer tirar tudo do ndio? Como isso, como mostra

    e depois tira? No vai tirar, no vai tirar nada de nadinha, falou, fechando

    os punhos e tomando nova talagada, para depois contar toda a verdadeira

    histria do mundo, que lhe tinha sido passada pelos mais velhos e nela

    no constava nenhum branco e, portanto, nenhum branco tinha o direito

    de ficar querendo mandar no ndio, antes tinha de explicar o que estava

    fazendo no mundo, antigamente to certo e hoje to enlouquecido.

    I Pepeu ponderou que talvez o mais aconselhvel para os ndios

    fosse passar algum tempo nos matos, enquanto a situao no se

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    29/222

    acalmasse. Aquilo devia ser cabea quente de Do Felipe, ele era sujeito a

    esses rompantes, mas.depois se acalmava, devia ter sido algum

    aborrecimento passageiro. De fato, ele guardava uma certa birra dos

    ndios, desde que os ndios Salustiano e Boi Velho furtaram os dois gatos

    dele e os comeram assados, mas no era homem de guardar rancor, era

    s esquentado mesmo, de raiva curta. E talvez essa idia de expulsar os

    ndios da vila nem fosse coisa dele mesmo, fossem intrigas de desafetos,

    leva-e-traz de comadres, atenazamento das beatas inimigas de padre

    Boanerges, despeitadas por causa da. amizade deste com os ndios e,

    principalmente, as ndias. Era bem possvel, bem possvel mesmo, que, da

    a alguns dias, tudo voltasse a ser como era antes. Quantas vezes ele j

    no tinha visto baixarem ordens como essa e ningum lhes dar

    importncia, como acontecia com as listas de preo da feira e das negras

    de tabuleiro? Ento o melhor parecia ser os ndios voltarem para os matos

    por algum tempo e, enquanto isso, seus amigos procurariam conversar,

    ajeitar as coisas, apaziguar os nimos. Com toda a certeza, haveria um

    jeito.

    Nunca, vociferou Balduno. Do tendente no ia voltar atrs coisa

    nenhuma, at porque o ndio sabia perfeitamente a razo para a ordem.

    Era o menino dele, Epifnio. O menino, por alcunha Faninho, que de uns

    tempos para c dera para s andar no meio das ndias. Algumas ndias,

    sabe-se como , so um pouco descuidosas, de maneira que no prestam

    muita ateno nas coisas e a os aproveitadores aproveitam. Isso tudo por

    causa de Dona Felicidade, aquela peste que devia ser faxineira no inferno,

    aquela bacurau remelenta e fedorenta, do nariz de quati, dos dentes de

    baiacu e do bafo de lama. Com certeza tinha sido ela quem obrigara o

    marido zumbaieiro descarado a botar os ndios para fora da vila. E

    Balduno no via os olhos dela disfarando e se pregando nos badulaques

    dos ndios nus, quando achava que eles no estavam notando? Cala-te,

    boca! ndio papa qualquer coisa, ndio acha toda mulher merecedora, mas

    nem ndio ia querer papar aquela surucucu do balaio baixo. Cala-te, boca!

    De forma que Do tendente, por causa do filho dela e da tentao que ela

    sentia, vendo nos ndios o que no enxergava no marido panudo, ia

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    30/222

    cumprir a ameaa. Da a dois dias, mandava a milcia e a guarda com os

    ndios, de bacamarte, mosquete, espada, chuo e porrete, podia escrever.

    Mas no ia ser essa facilidade. Com a ajuda de uns amigos, no ia

    ser mesmo essa facilidade! I Pepeu no queria a tisana para pegar

    Crescncia? Pois , com essa complicao toda, ele no havia podido

    terminar de faz-la. Mas agora essa tisana ia ficar ainda mais forte,

    porque, como lhe tinha ensinado o velho e diziam todos os antigos, era

    bem melhor que fosse dada em agradecimento e no de mo beijada,

    mais ou menos como as figas que usam por a, que de pouco servem se

    compradas e muito servem se recebidas de presente. Era coisa dos santos

    da gratido, que,ficavam muito satisfeitos em ver um amigo recompensar,

    o outro e ento reforavam os poderes da tisana. Verdade verdadeira, no

    era s branco que tinha santo, ndio tambm tinha santo e do bom, s que

    santo sabido, nada de santo besta como muitos santos brancos. Ento?

    Ento? Ajuda?

    I Pepeu no sabia que ajuda poderia dar, mas pensou em

    Crescncia e disse que ajudava, sem perguntar nada. Muito bem, no dia

    seguinte Balduno ia colher bastante de uma certa planta de folhas

    miudinhas e florezinhas ainda mais midas, cor de nuvem encarnada, a

    cuja certa planta, ningum dizia olhando para sua boniteza, fazia uma

    coisa que s quem via era que acreditava. E, para um homem dobrado,

    bastava uma florzinha fervida numa canequinha de derris, uma

    cabacinha mirim, destamanhinho. Essa certa planta era muito mais forte

    do que todos os mosquetes e outros instrumentos descarreiradores,

    leridores, reimadores, aleijadores, abestalhadores e matadores de que

    parte venham e quaisquer armas jamais concebidas no reino doutro lado,

    que nos faz tanto padecer sem merecer, e dos ainda outros que podem

    muito bem no existir, pois deles somente se sabe por ouvir falar ai, l

    se vai o flego curto da palavra justa! ou os que queiram, em meio a

    tantos mistrios nervosos, que os ndios se sumam! De maneira que o

    ndio ia usar a fora do mato para o mato no voltar, sendo esta uma

    grande amostra da sabedoria da vida e do destino. E sendo assim que se

    engendrou, na casa de Mirinha Vesga, o combate que mais tarde a

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    31/222

    Histria denominou de Sedio Silvcola, mas que todos lembram como a

    batalha do Borra-Bota.

    V

    Por mais valente e calejado que seja o caminheiro, por mais que a

    si mesmo diga que, tendo a seu lado o Bom Pastor, nada lhe faltar, pormais que carregue, atados ou pendurados, artefatos protetores contra

    todos os malefcios, por mais que haja fechado o corpo e confie em suas

    oraes, por mais que goze de intimidade com seu anjo da guarda, por

    mais que acredite que tudo o que est acontecendo tambm pode estar

    ao mesmo tempo desacontecendo, as trilhas que levam furna da

    Degredada no deixam de causar certos sobressaltos. Um estalido ali,

    novo estalido acol, uma rvore de ramada ameaadora, uma cobra demordida fatal espreitando entre galhos baqueados e folhas mortas

    dissimuladas, bufidos repentinos sados no se sabe de onde, urros, uivos

    e sibilos, um passaro espaventado dilacerando as plantinhas baixas em

    sua carreira, um calango virente perfilado frente como em desafio,

    suspeitas de presenas ocultas por todos os lados, a fora embuada que

    tem toda floresta. Hans Flussufer j havia passado por tudo quanto era

    padecimento neste mundo e a floresta j lhe era familiar e amiga, masmesmo assim fez o sinal da cruz.

    Saudades de Schweinfurt, sua terra natal? Porcos e lama e neve

    encardida em todos os cantos e fartum tamanho que o sol quase sempre

    amanhecia nauseado, mandando chuvas tristonhas em seu lugar, mesmo

    no vero? Ossudas matronas plidas, limpando as mos e narizes nas

    saias, enquanto amaldioavam a si mesmas e a tudo em torno? Invernos

    ptreos em que at cagar era um martrio e se ansiava a morte entrefedores fumegantes e golpes de vento enregelantes? Silncios noturnos

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    32/222

    to abafados que transmutavam em sudrios as camisas de dormir?

    Homens sombrios trescalando queijo velho, cerveja azeda, chourios

    cobertos de bolor? Tudo mortio e mido, tudo mortio e cinza e mido,

    tudo cinza sem fim, plantas infelizes, frutas mesquinhas, ratos como

    moscas? Nada mudando, nada mudando no horizonte, nada mudando sob

    os ps ou ao alcance das mos? No, nunca jamais, Schweinfurt nunca

    jamais!

    Saudades de Bamberg, sua segunda terra? Muitssimo menos! Das

    Hexenhaus! Achf A casa dos feitios, maldita, maldita, mil vezes maldita

    casa dos feiticeiros! Vendo-a de longe, as fasquias de suas janelas

    trabalhadas, sua enorme porta tambm entalhada, ela toda rodeada de

    rvores e tendo ao p uma cacimba serena, com seu balde e sua polia,

    tudo sugerindo vida amena, ningum adivinharia os horrores que l dentro

    se passavam, at porque o ermo onde a edificaram e suas paredes

    espessas no deixavam que se ouvissem os gritos das centenas de

    infelizes que l foram levados, para depois serem queimados na estaca,

    famlias inteiras, mulheres e criancinhas, herana infernal do hediondo

    bispo von Dornheim e do ainda mais hediondo bispo Forner, que por toda

    a eternidade abrasem no espeto de Satans!

    Sim, no havia dvida de que o que acontecera fora obra do

    canalha do Dietzenhofer, o invejoso que no podia suportar que um

    homem de origem pobre como Hans comeasse a juntar posses e ser tido

    como seu rival em inveno e mestria de trao. S podia ter sido ele, a

    quem, inocentemente acreditando em sua prfida profisso de admirao,

    Hans havia mostrado os quadros que pintava para deleite prprio, nos

    fundos de sua casa. Poucos dias depois, eis Hans na Hexenhaus, acusado

    das piores abominaes que qualquer criatura podia cometer. Filho de

    porqueiro e acostumado a enfrentar os varrascos mais valentes, no

    chiqueiro e no descampado, Hans no era medroso e resistiu, mas o bom

    padre Schlter estava decidido a zelar pela tradio daquela casa de

    pavores, segundo a qual nela ningum jamais deixara de confessar seus

    crimes e pecados. E foi assim que, sedento, esfaimado e sitiado por

    alucinaes, com os dedos esmigalhados por maquinetas de parafusos e o

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    33/222

    corpo todo em fogo, Hans confessou participar com regularidade de

    sabatismos de bruxas, haver beijado o traseiro de Sat, haver cuspido em

    hstias durante missas negras, haver salpicado urina e fezes na obreia de

    mosteiros e abadias, haver mantido consrcios lascivos com scubos e

    ncubos, pelo vaso dianteiro e pelo traseiro e costumar ajoelhar-se toda

    noite para adorar um bode de ouro em liga com sangue de virgens

    sacrificadas. Perante a cnica admisso de to pasmosas barbaridades,

    provando-se novamente que o mundo estava quase merc do Inimigo e

    dependendo cada vez mais da vigilncia de seus santos homens, alm de

    que propriedades como as que seriam confiscadas de Hans s poderiam

    servir a Deus na mo de Seus vigrios, condenou-se o acusado morte

    pelo fogo purificador e punitivo, com o direito, por misericrdia dos

    inquisidores, de ter a lngua cortada, se temesse blasfemar em seus

    ltimos instantes.

    Mas quis o destino que, dois dias antes do suplcio final, parasse

    diante da cela onde ele j se sentia agonizante a carroa atonelada que

    transportava a merda da casa e outras sujidades, para despej-las no rio.

    Como, por sup-lo moribundo, no o haviam acorrentado e o carcereiro

    era um muniquense folgazo, logo depois tambm condenado e

    efetivamente queimado, Hans, sem pensar bem no que fazia, mergulhou

    naquele busilho indescritvel e foi com ele entornado na correnteza. Sem

    saber nadar, conseguiu agarrar-se aos galhos de um salgueiro derreado e

    iar-se para a margem, onde enfrentou a noite tiritando e ainda vendo

    aparies. Quando o dia amanheceu, iniciou uma fuga que duraria oito

    anos, passando por toda sorte de provao. Viveu aqui e acol, em

    Lucerna, Brscia, Trento, Verona, Gnova e Veneza, nesta ltima se

    vendendo como escravo, para depois conseguir meter-se num vaso

    mercante, atravessar o Adritico, passar por Messina, cruzar Gibraltar e

    bater-se em Lisboa, onde se alistou como embarcadio no galeo D.

    Sancho e partiu para as Amricas, havendo ento aprendido, entre tarefas

    desumanas e terrores ocenicos, porque os castelhanos diziam que ir ao

    mar era aprender a rezar. Como no o deixavam desembarcar nos portos

    a que arribavam, levou mais de dois anos sem sair do navio,, atormentado

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    34/222

    por pesadelos em que o cheiro medonho vindo das bombas que tiravam a

    gua entre o poro e a quilha se misturava fedentina que quase o

    asfixiara, na fuga da Hexenhaus. Finalmente, na entrada da baa de Todos

    os Santos, uma tarde ensolarada se converteu repentinamente em breu

    impenetrvel e o D. Sancho se perdeu entre os escolhos do mar do Pavo

    e foi a pique, com um rombo cavernoso meia-nau. J sabendo nadar

    desde os tempos do Adritico, Hans boiou toda a noite com a ajuda de

    uma barrica quebrada e foi dar a uma praia, onde adormeceu exausto e

    despertou com o calor do sol e as risadas de quatro ndias nuas, de p cm

    volta dele. Ergueu o tronco, quis levantar-se, no leve foras e elas o

    ampararam, ainda rindo muito e tagarelando em vozes fininhas. Estava na

    praia de Beira da Mata, em frente ao mar do Pavo, na ilha do mesmo

    nome, da qual jamais quereria sair.

    No sabia quantos anos haviam transcorrido desde esse dia, pois

    j deixara de contar os anos fazia muito tempo, mesmo antes de chegar

    ilha. Recebido na aldeia ndia com naturalidade, aprendeu rapidamente a

    lngua e construiu uma casa de madeira e pedra como jamais se tinha

    visto por l, para morar com as quatro ndias que o encontraram e que

    passaram a consider-lo uma espcie de trofu, um achado mgico que o

    mar lhes dadivara e que agora partilhavam sem rivalidade. Como todos os

    ndios se agradaram tanto de sua casa que logo diversos se mudaram

    para ela, tornando-a bastante apertada, construiu diversas outras e,

    depois de algum tempo, j no havia nenhum ndio morando da maneira

    antiga, a mata agora interrompida aqui e ali por cumeadas francnias,

    ripas cruzadas, chamins de cermica e varandas nos fundos. Das

    novidades, somente no gostaram da cama e da latrina que Hans tambm

    construiu. A primeira acharam maluca e a ltima acharam porcaria

    muito melhor nos matos, bicho vem e come, besouro rola-bosta limpa, no

    fica fedendo, lava-se o eu no rio. E tambm gostaram muito dos nomes

    que Hans deu aos filhos que teve com suas mulheres, no por sentir falta

    de sua terra, mas porque o divertia ver aqueles curumizinhos atendendo

    por nomes portados por gente que se julgava no centro do mundo e

    permanecia em Bamberg ou onde l fosse. Foi assim com Dietz, com Curt,

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    35/222

    Cornelie, Ute, Jrgen, Adelheid, Wolfgang e outros e at alguns filhos de

    ndios receberam nomes como esses, que terminaram por entrar em certa

    voga.

    A tudo Hans se habituou e achou mesmo que tinha ficado um

    pouco sbio, certamente bem menos amargo e cheio de convices tolas,

    como antes. Continuou religioso, mas, se acreditava fervorosamente no

    Deus que trouxera consigo, em nome do qual quase o mataram, e havia

    at feito um tero de sementes de mucun para suas oraes, no via

    empecilho a, diante de toda a glria e imensido da Divina Criao,

    acreditar tambm nas vagas divindades dos ndios, em suas mgicas e

    suas histrias para explicar a origem dos homens, dos bichos e das

    plantas. E tampouco deixava de ver sentido nas crenas e prticas dos

    negros com quem passara a conviver com certa regularidade,

    principalmente depois de iniciar suas agora freqentes viagens furna da

    Degradada, que como ele fora vtima de perseguies absurdas e se

    tornara sua grande amiga e aliada, numa luta que os fascinava e que s

    vezes ele no compreendia bem, sacudindo a cabea e achando que

    talvez estivesse ficando meio louco. , acreditava em tudo e talvez por

    isso no acreditasse realmente em nada a no ser em Deus, mas no

    gostava mais de se ocupar de problemas filosficos, que antigamente

    ocupavam tanto de seu pensamento e agora lhe pareciam circunscritos a

    duas ou trs questes bsicas, em cujos meandros talvez nunca

    conseguisse penetrar. Quase todo o tempo, comportava-se como o

    homem da aldeia da Beira da Mata em que se transformara, assim se

    sentindo em paz e liberdade. Nunca mais viveria em terras de europeus,

    fossem eles alemes, holandeses, portugueses ou o que l fossem, tanto

    assim que se escondia quando um deles fazia uma rara apario na aldeia

    e instrua todos a dizer que aquelas casas de telhados de vrtices agudos

    e aqueles indiozinhos alemoados eram fruto da visita de uns forasteiros

    louros, fazia muitos anos. S temia que, algum dia, a mo dos europeus

    conseguisse domar os muitos obstculos que protegiam a ilha e fazer com

    ela o que tinham feito no continente, trazendo as abominaes de que ele

    fugira. Por essa razo, sempre dizia a si mesmo que faria qualquer coisa

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    36/222

    para evitar que isso acontecesse, em concerto com gente como Capito

    Cavalo e a Degredada, com quem muitas vezes comentava a maleficncia

    do mundo l fora e tambm alimentava esperanas, no incio de aparncia

    impossvel, mas agora cada dia mais fortes, de conservar para sempre a

    ilha do Pavo, como algo parte do resto do mundo.

    Apalpou seus breves e se benzeu novamente. Verdade que o poder

    da floresta sempre o intimidava um pouco, mas se benzeu, mais por

    gostar de mostrar f naquele sinal que seria sempre vitorioso do que para

    afastar qualquer temor. J estava chegando e, pois ainda era cedo, parou,

    como de hbito, diante da lagoa Cau, para contemplar longamente suas

    guas negras, paradas e silentes, sem mesmo insetos em torno e, de

    seres vivos, somente um ou outro passarinho, perpassando entre as

    rvores folhudas que se juntavam densamente beira d'gua. Havia

    peixes na Cau, mas ningum os pescava e muito menos comia, porque

    se acreditava que eram encarnaes daqueles que, secularmente,

    sucumbiam rapacidade da lagoa, que, dizia-se, jamais deixara de

    devorar quem ousasse nadar em suas guas. Ou, se no eram as guas,

    eram as uiaras que l residiam e que agarravam por volpia os homens e

    por malquerena as mulheres, para destru-los a dentadas e os devorar

    em grandes nacos.

    Mas Hans achava bom sentar-se s suas margens,

    recostado num tronco e olhando a gua sem pensar em nada, apenas

    levemente cnscio do mundo em volta. E ia sentar-se, ainda que s um

    pouco, quando viu uma negra jovem e bonita chegar montada num

    jumento. Ela tambm o viu e lhe acenou amavelmente.

    Ser que t fria, a gua? perguntou ela.

    Friazinha sempre est, mas no adianta, porque no se pode

    beber. uma gua muito amarga, por causa das plantas. Se tens sede,

    podes beber da minha cabaa, gua boa de nascente.

    No pra beber disse ela, apeando e tirando a roupa.

    pra tomar banho, ainda no tomei banho hoje.

    Mas ningum toma banho a, todos dizem que quem entra a

    no sai.

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    37/222

    S quem vai no fundo. E mais com homem, porque a me-

    d'gua no gosta de mulher, s mata de raiva.

    Eu no sei, mas, mesmo assim, o que o povo diz sempre tem

    alguma boa razo.

    Tem nada disse ela, entrando na gua aos pulos e logo

    levantando uma aura de respingos e risadas, como se estivesse no melhor

    momento da vida.

    A felicidade dela era to grande que Hans tirou o calo que usava,

    entrou na lagoa ao lado dela e passaram muito tempo numa espcie de

    dana agitada, sem se tocarem, mas imitando os movimentos um do outro

    e espadanando gua por todos os lados. E certamente teriam continuado

    por boa parte da manh, se o jumento Pacincia, talvez achando que sua

    misso j eslava cumprida, no tivesse comeado a afastar-se.

    Siu a, Pacincia! gritou ela, correndo atrs do jumento e

    alcanando-o sem dificuldade. Eu ainda vou precisar de tu pra voltar.

    Aonde ests tu a ir?

    Pr furna. A furna t perto, mas eu moro longe. Sem esse

    jumentinho, a caminhada fica muito comprida.

    a primeira vez que tu vais furna? Eu vou muito furna,

    mas nunca te vi por l.

    Primeira vez nada, eu vou muito. Mas nunca entrei, fico com o

    povo do lado de fora, nunca me chamaram para entrar. Mas um dia eu

    entro. Tu quer garupa? A gente somos magrinho e Pacincia forte, no

    tem dificuldade.

    Montados no jumento, Hans segurando na cintura dela, foram

    conversando o resto do caminho. Crescncia, ela se chamava, era da Casa

    dos Degraus. Hans, se chamava ele, Hans Flussufer, que nome mais

    engraado, que fala diferente. De onde vinha, como viera, havia mais

    gente como ele pelos matos? Ah, ele vinha de muito longe, mais longe do

    que ela jamais poderia imaginar, mas hoje fazia parte do povo da aldeia

    da Beira da Mata e, embalado pela andadura agora lenta de Pacincia,

    comeou a contar histrias a ela, dos matos e de sua vida.

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    38/222

    VI

    A correta narrao dos acontecimentos conhecidos por uns como

    a Sedio Silvcola e pelo populacho como a batalha do Borra-Bota

    depende da escolha de uma dessas duas designaes, lide espinhosa

    entre as que mais o forem, pois ambas contam com ardidos defensores e

    se amparam em abalizadas perquiries. A primeira costuma lembrar a

    figura mpar do mestre-de-campo Jos Estvo Borges Lustosa o Lobo

    de So Joo , implacvel na peleja e magnnimo na vitria, que trouxe a

    paz para os assivissojoemapaenses, depois de enfrentar, com valentia

    realada por inigualado atilamento nas artes e cincias blicas, a horda de

    selvagens bestiais que intentou tomar a vila de assalto e submet-la a seu

    jugo malfazejo. A segunda renoma o jabarandaia Tantanheng, ou

    Tontonheng no parecer de alguns, de nome cristo Balduno da

    Anunciao e de alcunha Galo Mau, o qual, em diablica solrcia por trs

    das linhas inimigas, no s logrou impor derrota envilecedora s gentes

    d'armas dos brancos, como obteve tudo o que queria, em escrnio da

    cristandade e da justia. No fcil saber a quem assiste razo em

    tamanha controvrsia. Trata-se de sindicncia da alta cincia histrica,

    que no pode ser alcanada pelo leigo, razo talvez por que Balduno no

    est pensando nela, ao se dirigir Casa dos Degraus, carregando um

    bocapio, bocapio este que contm duas cabaas cheias do lquido

    execrando que vir a ser sua arma principal, qui a nica, na guerra que

    est para travar-se.

    Sim, a peleja j se antevia na palidez das feies, na gravidade dos

    semblantes e na aparncia pejada exibida por tudo o que se olhava ou

    tocava. Convocado pelo intendente Felipe Mendes Furtado, o mestre-de-

    campo Borges Lustosa, no salo nobre da Cmara, debruado sobre cartas

    e plantas, em fardamento de gala vastamente amedalhado e um

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    39/222

    chanfalho descomunal cinta, no qual ele, por ser pouco mais alto que um

    p de bredo, volta e meia dava uma topada, procedia o exame das

    estratgias e urdiduras a serem empregadas na manh seguinte, vencidos

    os trs dias de prazo para que os ndios voltassem para os matos. Com a

    milcia e a guarda arregimentadas e acantonadas no campo da Fortaleza,

    dispunha o mestre-de-campo de bem uns trezentos homens em armas, se

    bem que a mor parte destes no portassem armas, alm de faces,

    espadas cegas e alabardas do tempo de Do Corno. Mas contava-se com

    os dois falconetes j guarnecendo o portal da Cmara, apropriadamente

    embuchados e em plena condio de fogo, conquanto a plvora do paiol

    da guarda, h muito sem cuidado e armazenada sob dezenas de goteiras,

    estivesse ensolvada. Mas os milicianos Domitilo e Cosme, artilheiros

    .recm-nomeados, orgulhosos de sua posio e ansiando ver o que

    aconteceria ao darem um tiro de canho nos ndios, aproveitaram a

    plvora dos foguetes de festa da parquia, reforando muito a carga,

    porque plvora de foguetes de festa e certamente bem mais fraca do que

    plvora de tiro.

    Reunidos seus capites e tenentes, primeiramente o ilustre-de-

    campo nomeou um secretrio para registrar em ata, em papel

    escrupulosamente rubricado por todos os presentes, os sucessos que

    passavam a desenrolar-se ai partir daquela data histrica. Como primeiro

    registro, ditou uma breve histria da ilha do Pavo e alinhavou algumas

    palavras, em anstrofes graciosamente torneadas, assndetos

    arrebatados, aliteraes extasiantes e demais recursos de que a lngua

    prov os que a defendem da mesma forma intransigente com que

    guarnecem o torro natal, sobre o herosmo de seus ancestrais,

    concluindo com algumas estrofes de sua lavra. Aplaudido, chegou a pedir

    que os aplausos no fossem consignados na ata, mas a isso opuseram-se

    tantas objees que sua modstia terminou vencida e, entre constrangido

    e decorosamente orgulhoso, ouviu cada um dos presentes encomiar-lhe os

    dotes, anotando-se tudo novamente em ata. Algumas impetraes foram

    ento apresentadas, discutidas e aprovadas, entre as quais a de mandar

    rezar missa propiciatria, oficiar s cmaras das outras vilas da ilha, dirigir

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    40/222

    um voto de louvor ao intendente, mandar inaugurar placa alusiva data,

    com dizeres cuja discusso foi adiada, por no se ter chegado a um acordo

    quanto a certos aspectos estilsticos e demandar do intendente quais as

    verbas previstas para a justa recompensa recompensa, sim, pois de

    pagamento no se fala, quando se trata do bem pblico pelos servios

    dos que ali se encontravam, tema indispensvel, que, quela altura, ainda

    no houvera sido aventado.

    Para encerrar os trabalhos, o mestre-de-campo levantou-se e, com

    a ajuda de uma grande lousa em que no escrevia nada, mas sublinhava o

    que falava com crculos e traos enrgicos, exps primeiramente o que os

    mais modernos sbios, estudiosos, cronistas e navegantes concordavam

    ser a verdade sobre os selvagens. Como caracterstica principal, ostentam

    espantosa indolncia e falta de indstria, que os faz viver sem veste ou

    agasalho e nada guardar, pegando o que querem na hora em que o

    desejam, sem levar em conta que geralmente esto a servir-se de bens

    alheios. Alm disso, para que se possa ter trato com eles, deve-se sempre

    trazer na memria sua natureza invariavelmente traioeira, ardilosa,

    velhaca e mentirosa, no se podendo pr uma gota de f no que contam,

    prometem ou mesmo juram. Finalmente, porque foram criados no mato

    como bichos, no vem nada demais naquilo que para os brancos

    gravssimo excesso, pecado ou motivo de desonra, no havendo entre

    eles, no ver deles mesmos, ladres, cabres ou patifes em geral e tal

    amoralida-de finalizava bem as razes por que no se podia, nem por um

    instante, oferecer-lhes facilidades.

    Finalmente passou a discorrer sobre como, sem descuido quanto

    defesa de que eram fortssima prova os dois mortferos falconetes

    carregados de metralha, porta daquele sobrado sacrossanto, iriam com

    deciso carga num movimento clssico de cerco, aproveitando-se da

    circunstncia de que, como se nada lhes fosse acontecer, os ndios

    continuavam a freqentar insolentemente seus locais de costume,

    notadamente na baixa do Alecrim. Cercada a baixa, esquadras de quatro

    homens cada capturariam os ndios um a um. Lamentou que no

    dispusessem de grilhes ou calcetas de qualquer espcie, pois,

  • 7/30/2019 [Livrosparatodos.net].Joao.ubaldo.ribeiro.O.feitico.da.Ilha.do.Pavao(.Doc)

    41/222

    inexplicavelmente, haviam sumido ou se desmanchado em ferrugem

    todos os da guarda e da masmorra da fortaleza, sem dvida por obra dos

    prprios ndios. Diante disso, teriam que usar as cordas ele piaava que

    fora obrigado a requisitar dos pescadores, para fazer marchar os ndios

    amarrados, soltando-os apenas quando chegassem mata, ocasio em

    que lhes repetiriam a ordem de deixar a vila para todo o sempre. Com

    certeza teriam que ir ao lombo de um ou outro, porque muitos deles eram

    para l de impudentes e confiados, mas preferia no matar nenhum. Se

    fosse forado, contudo, mataria, pois guerra guerra e o poder estava do

    seu lado, bem como a mo todo-poderosa do Altssimo. E to serenados se

    sentiram o mestre-de-campo e seus comandados que mandaram buscar

    umas tantas garrafas de vinho, serviram-se de um almoo de sopa de

    feijo, pastis de tutano, tigela da de garoupa e galinha mourisca e foram

    dormir, aquartelados na prpria Intendncia, enquanto, na fortaleza, (os

    subalternos tinham comida no menos farta, embora talvez no t