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    UMA LONGA TRANSIO

    Vinte Anos de Transformaes na Rssia

    Andr Gustavo de Miranda Pineli AlvesOrganizador

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    Governo Federal

    Secretaria de Assuntos Estratgicos da

    Presidncia da RepblicaMinistro Wellington Moreira Franco

    PresidenteMarcio Pochmann

    Diretor de Desenvolvimento InstitucionalFernando Ferreira

    Diretor de Estudos e Relaes Econmicase Polticas InternacionaisMrio Lisboa Theodoro

    Diretor de Estudos e Polticas do Estado,das Instituies e da DemocraciaJos Celso Pereira Cardoso Jnior

    Diretor de Estudos e Polticas MacroeconmicasJoo Sics

    Diretora de Estudos e Polticas Regionais, Urbanas

    e AmbientaisLiana Maria da Frota Carleial

    Diretor de Estudos e Polticas Setoriais, de Inovao,Regulao e InfraestruturaMrcio Wohlers de Almeida

    Diretor de Estudos e Polticas SociaisJorge Abraho de Castro

    Chefe de GabinetePersio Marco Antonio Davison

    Assessor-chefe de Imprensa e ComunicaoDaniel Castro

    URL: http://www.ipea.gov.brOuvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria

    Fundao pblica vinculada Secretaria de

    Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica,

    o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s

    aes governamentais possibilitando a formulaode inmeras polticas pblicas e programas de

    desenvolvimento brasi leiro e disponibil iza,

    para a sociedade, pesquisas e estudos realizados

    por seus tcnicos.

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    Braslia, 2011

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    Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ipea2011

    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, noexprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou daSecretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica.

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte.Reprodues para fins comerciais so proibidas.

    Uma longa transio : vinte anos de transformaes na Rssia /organizador: Andr Augusto de Miranda Pineli Alves. Braslia : Ipea, 2011.293 p. : grfs., mapas, tabs.

    Inclui bibliografia.ISBN 978-85-7811-101-4

    1. Desenvolvimento Econmico. 2. Poltica Econmica. 3.

    Recuperao Econmica. 4. Condies Econmicas. 5. Rssia.I. Alves, Augusto de Miranda Pineli. II. Instituto de PesquisaEconmica Aplicada.

    CDD 338.947

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    SUMRIO

    PREFCIO .................................................................................................7

    CAPTULO 1

    A ECONOMIA POLTICA DA TRANSIO NA RSSIA ..................................13Carlos Aguiar de Medeiros

    CAPTULO 2

    A RSSIA E OS PASES DA COMUNIDADE DOS ESTADOSINDEPENDENTES NO INCIO DO SCULO XXI .............................................39Gabriel Pessin Adam

    CAPTULO 3

    ECONOMIA POLTICA DE PETRLEO E GS: A EXPERINCIA RUSSA ...........81Giorgio Romano Schutte

    CAPTULO 4

    A DIARQUIA PUTIN-MEDVEDEV: DIMENSES DA POLTICA INTERNAE DA POLTICA EXTERNA .........................................................................137Angelo Segrillo

    CAPTULO 5

    RSSIA: MUDANAS NA ESTRATGIA DE DESENVOLVIMENTOPS-CRISE? .............................................................................................155Lenina Pomeranz

    CAPTULO 6INTERNACIONALIZAO DE EMPRESAS RUSSAS ......................................183Andr Gustavo de Miranda Pineli Alves

    CAPTULO 7

    O SISTEMA BANCRIO DA RSSIA ENTRE DUAS CRISES ..........................241Andr Gustavo de Miranda Pineli Alves

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    PREFCIO

    Recebi com grande satisfao o convite que me formulou Marco AntonioMacedo Cintra, coordenador-geral da Diretoria de Estudos e Relaes Econmi-cas e Polticas Internacionais (Dinte) do Ipea para prefaciar este livro, organizadopor Andr Gustavo de Miranda Pineli Alves, que congrega trabalhos de autoresbrasileiros a respeito de diferentes aspectos da situao da Rssia em nossos dias.

    Com uma poltica externa mais assertiva, a Rssia atual ocupa espao cres-cente na reconfigurao do sistema internacional, marcado pela presena ativa

    de pases emergentes, cujo peso especfico cada vez mais reconhecido nos deba-tes a respeito da reforma das instituies de governana global, tanto no planopoltico quanto no das instituies econmicas concebidas ao fim da SegundaGuerra Mundial.

    Ultrapassada a instabilidade poltica dos anos 1990 e o perodo de recons-truo do Estado durante a era Putin, a Rssia de nossos dias recuperou seupapel histrico de global player, ou seja, de pas com interesses globais e capa-cidade de influncia em cenrio internacional cambiante. Assim, busca redi-

    mensionar seu relacionamento estratgico com os Estados Unidos, aprofunda odilogo com a Europa Ocidental, que elegeu como importante parceiro para oprocesso de modernizao tecnolgica de seu aparelho produtivo, recupera suapresena estratgica na sia Central, desenvolve parceria cada vez mais intensa evariada com a China e a ndia e, mais recentemente, demonstra marcado interesseem explorar o grande potencial de intensificao dos vnculos com a AmricaLatina, mantendo com o Brasil relao de parceria estratgica e construo deuma aliana tecnolgica.

    No plano econmico, a Rssia tem participao ativa no G-20 financeiroe busca ampliar sua insero no sistema multilateral de comrcio por meio darenovada prioridade que atribui s negociaes para sua admisso OrganizaoMundial do Comrcio (OMC), pleito que conta com o apoio do Brasil. inte-ressante observar que a Rssia busca se fazer mais presente no sistema multilateraleconmico no na condio de pas desenvolvido, mas como emergente, ao lado doBrasil, da ndia e da China. Disto decorre a importncia estratgica conferida pelaRssia consolidao do BRIC (grupo composto por Brasil, Rssia, ndia e China).

    Nesse contexto, parece-me extremamente oportuno que pesquisadores bra-sileiros desenvolvam estudos sobre esse fascinante e complexo pas. O presentevolume idealizado pelo Ipea preenche lacuna na bibliografia produzida no Brasil arespeito do processo de transio da Rssia de economia centralmente planificada

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    para economia de mercado. Sua origem, acredito, remonta realizao de impor-tante encontro entre representantes de entidades acadmicas do BRIC, ocorridoem Braslia, em abril de 2010, margem da II Reunio de Cpula desse grupa-

    mento, quando, pela primeira vez, reuniram-se em nosso pas chefes de Estado oude governo de Brasil, Rssia, ndia e China em um evento especfico destinado aaprofundar o potencial de cooperao e de dilogo entre as quatro grandes econo-mias emergentes.

    Embora no haja propriamente um nico fio condutor, os ensaios com-plementam-se. Os diferentes aspectos abordados pelos trabalhos permitem aoleitor compreender o fascinante e complexo processo de transformao que vivea Rssia, 20 anos aps a dissoluo da Unio das Repblicas Socialistas Soviti-

    cas (URSS), bem como os desafios inerentes a tal processo. Em todos os textos,vislumbra-se genuno interesse de pesquisadores brasileiros de esmiuar, com finoesprito analtico, as transformaes j ocorridas e aquelas em gestao, o querepresenta importante contribuio do meio acadmico brasileiro para reflexonova sobre a complexidade da Rssia ps-sovitica.

    guisa de estmulo ao leitor, gostaria de tecer algumas consideraes sobrecada um dos trabalhos que compem a obra Uma longa transio: vinte anos detransformaes na Rssia.

    O ensaio de Carlos Aguiar de Medeiros, A economia poltica da transiona Rssia,contempla interessante discusso a respeito da desacelerao do cres-cimento econmico na URSS nos anos 1970, combinada com anlise da crisedo poder poltico no sistema sovitico e dos limites da estratgia de reformasliberalizantes levadas a cabo durante os anos Gorbachev. Prossegue com anlisedo que considera a reconstruo do Estado russo j na era Putin, aduzindo que a

    (...) primeira dcada do novo milnio pode ser descrita como a da afirmao de umprojeto nacionalista de recuperao do Estado russo, ancorado em um padro de

    acumulao baseado na expanso e na internacionalizao dos mercados internos ena exportao de recursos naturais.

    Discorre sobre o enorme desafio da modernizao tecnolgica e o que con-sidera como modelo de (...) estratgia de modernizao industrial defensiva,baseada na construo de grandes empresas pblicas em atividades consideradasestratgicas e na atrao de capital estrangeiro num modelo de crescimento capi-talista liderado pelo Estado.

    O captulo A Rssia e os pases da Comunidade dos Estados Independentes noincio do sculo XXI,de Gabriel Pessin Adam, aborda a tese de que o governo do presi-dente Vladimir Putin (2000-2008) traou como objetivo sistmico do pas recuperarsua condio de grande potncia, o que, necessariamente, implica a manuteno

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    da Rssia como lder da regio composta pelos pases da Comunidade dos EstadosIndependentes (CEI). O autor analisa de maneira circunstanciada a movimentaopoltico-diplomtica de outras potncias nas adjacncias da Rssia ps-sovitica nos

    anos 1990 para prosseguir com interessante discusso a respeito das iniciativas russasnos campos poltico-diplomtico e econmico para recuperar presena no entornoimediato eslavo (Belarus e Ucrnia), na sia Central e no Cucaso do Sul.

    Na mesma linha dos anteriores, o ensaio Economia poltica de petrleo e gs:a experincia russa, de Giorgio Romano Schutte, aprofunda o exame da polticaadotada nos anos 2000 para aumentar de maneira significativa a presena doEstado no setor de energia, desenvolvendo, ao mesmo tempo, poltica industrialque visa criar empresas campes nacionais. Ao discutir este processo de renacio-

    nalizao parcial nas palavras do autor , Schutte analisa igualmente o quequalifica como novo patamar de relacionamento com as empresas estrangeiras,com a institucionalizao de modelo que busca o aporte de tecnologia e capitalpelas empresas transnacionais, mas, ao mesmo tempo, exige que esta participaoesteja sintonizada com a estratgia de desenvolvimento do pas.

    Angelo Segrillo analisa o funcionamento do que qualifica como diarquia nadireo do Estado russo em seu ensaioA diarquia Putin-Medvedev: dimenses da pol-tica interna e da poltica externa. Aps breve avaliao sobre as condies em que o

    ento presidente Putin assumiu o poder em substituio a Boris Yeltsin, o captuloesmia as escolhas polticas do governo Putin e a evoluo para a prtica de umapoltica externa mais assertiva. O texto contm igualmente interessante discusso arespeito das orientaes ocidentalistas, eslavfilas e eurasianistas nos estamentos depoder russo e abrange at o atual perodo de governo do presidente Dmitry Medve-dev, procurando demonstrar o grau de coeso interna da diarquia de poder na con-duo dos grandes desafios de poltica interna e externa com que se defronta a Rssia.

    O captulo Rssia: mudanas na estratgia de desenvolvimento ps-crise?, de

    Lenina Pomeranz, representa boa contribuio para a compreenso dos rumosda estratgia de modernizao buscada pelo governo do presidente Medvedev.A autora discorre sobre o impacto da crise financeira internacional na economiarussa, bem como a respeito das medidas adotadas pelo governo para enfrent-lae tambm para promover a reestruturao econmica, com nfase: i) na redu-o da dependncia do crescimento econmico da exportao de energia; ii)na regulamentao das relaes entre o Estado e o setor empresarial, na qual sebusca a diminuio do papel do Estado como proprietrio de ativos produtivos efinanceiros, no desenvolvimento da concorrncia; e iii) na elevao significativa

    da atividade inovadora, por meio da nfase dada a setores de ponta. A autoracomenta os debates internos sobre os rumos da modernizao da economia russae d sua apreciao, no isenta de indagaes relevantes, a respeito do projeto de

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    criao do Centro de Inovao Tecnolgica de Skolkovo, projeto emblemtico dapoltica de inovao tecnolgica do atual governo, que dever constituir-se emcentro de excelncia nos moldes do Silicon Valley, na Califrnia.

    Os trabalhos de Andr Gustavo de Miranda Pineli Alves, Internacionalizaode empresas russase O sistema bancrio da Rssia entre duas crises, complementam-se.O primeiro contm avaliao comparativa a respeito da expanso dos investimentosdiretos externos dos BRICs ao longo dos ltimos anos e analisa a especificidade dosinvestimentos de empresas russas no exterior, em muitos casos ligados ao objetivoestratgico mais amplo de consolidar a Rssia como principal fornecedora de gs epetrleo Europa Ocidental. O segundo, como seu ttulo indica, analisa a evoluodo sistema bancrio russo desde o difcil perodo de transio aps a dissoluo da

    URSS quando se verificou enorme proliferao de bancos no pas , comenta areestruturao por que passou o sistema bancrio aps a crise de 1998 e trata doimpacto da nova crise de 2008 sobre as instituies financeiras russas.

    O presente volume ainda no contempla estudos especficos em matriade poltica externa e da poltica de defesa e segurana da Rssia. So tpicos quecertamente podero ser tratados em um prximo volume. Da mesma forma, acre-dito que ser necessrio aprofundar a reflexo a respeito do potencial de sinergiasa serem exploradas pelo Brasil e pela Rssia, tanto no plano das relaes bilaterais

    quanto no da atuao coordenada nos grandes debates em curso a respeito dareconfigurao do sistema de governana internacional.

    No campo da cooperao para o desenvolvimento, por exemplo, Brasil e Rs-sia podem reunir esforos para a realizao de projetos conjuntos no apenas emseus respectivos territrios, como tambm em terceiros pases. Poderamos, assim,reeditar em novos projetos na Amrica Latina e no continente africano a cooperaobilateral que, no passado, levou construo da represa de Capanda, em Angola.

    O Brasil e a Rssia elevaram seu relacionamento ao nvel de parceria estra-

    tgica em 2002; e em 2004, por ocasio da visita que nos fez o ento presidentePutin, desenvolveu-se a noo de que os dois pases devem consolidar aliana tec-nolgica, buscando desenvolver projetos conjuntos em reas de interesse mtuo,especialmente nos setores de alta tecnologia.

    Os pases esto engajados em ambiciosos programas de modernizao tec-nolgica. A pesquisa e o desenvolvimento (P&D) nos campos de nanotecnologia,biotecnologia e novos materiais constituem prioridades para ambos. So, igual-mente, dignas de registro as perspectivas de desenvolvimento da cooperao bila-

    teral em matria de explorao da energia nuclear para fins pacficos, no campoda explorao espacial e em reas to diversas quanto construo aeronutica,explorao de petrleo e gs em guas profundas, e pesquisa e desenvolvimentona produo de frmacos, apenas para citar alguns exemplos.

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    Mais recentemente, a consolidao do grupo BRIC tem permitido ao Brasil e Rssia ampliar a agenda bilateral com a incluso de novos temas em que o agrupa-mento tem interesses comuns, como a reforma das instituies financeiras interna-

    cionais (Fundo Monetrio Internacional FMI e Banco Mundial). A dinmica doBRIC j permitiu a realizao de encontros entre representantes dos Ministrios daFazenda e das Finanas e dos Bancos Centrais das quatro economias emergentes,bem como encontros entre bancos comerciais, bancos de investimento, institui-es acadmicas e de pesquisas estatsticas, alm da realizao de foros empresariaise da institucionalizao de cooperao entre as Supremas Cortes.

    O comrcio entre o Brasil e a Rssia apresenta grande potencial de expan-so. Entre 2002 e 2008, o intercmbio bilateral cresceu 375,3%. Em 2008, atin-

    giu cerca de US$ 8 bilhes, com saldo positivo para o Brasil da ordem de US$1,3 bilho. Os efeitos negativos da crise financeira a partir do segundo semestrede 2008 levaram a uma forte contrao em 2009, embora j se perceba certarecuperao das transaes em 2010. Foroso reconhecer, entretanto, que osdois pases enfrentam o desafio de diversificar as respectivas pautas de exportao,ainda muito concentradas em produtos primrios a Rssia grande fornecedorde fertilizantes para nossa agricultura e um dos maiores mercados para o Brasilpara as carnes bovina e suna, frangos e acar.

    A dinmica de expanso do relacionamento bilateral tem produzido resulta-dos concretos, inclusive na rea de investimentos. Talvez ainda no seja suficien-temente conhecido o fato de que j existem empresas brasileiras investindo nomercado russo e projetos russos de investimentos no Brasil. E a recente entrada emvigor do acordo sobre iseno de vistos para estadas de at 90 dias certamente con-tribuir para o desejvel incremento dos fluxos de turismo nos dois sentidos, coma provvel retomada de voos diretos entre os dois pases a partir do incio de 2011.

    Para concluir, quero reiterar meus cumprimentos ao Ipea e aos autores dos

    ensaios, incentivando-os a que prossigam e aprofundem seus estudos, j agoracom o foco voltado para o exame das perspectivas de intensificao da parceriaestratgica entre o Brasil e a Rssia em um contexto internacional que no apenasencerra desafios, mas tambm crescentes oportunidades de cooperao nas maisvariadas reas de atuao.

    Moscou, novembro de 2010.

    Carlos Antonio da Rocha Paranhos

    Embaixador do Brasil na Federao da Rssia

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    CAPTULO 1

    A ECONOMIA POLTICA DA TRANSIO NA RSSIACarlos Aguiar de Medeiros*

    1 INTRODUO

    Um fato espetacular marcou o fim do sculo XX: o colapso e a desintegrao da

    Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (URSS) e uma radical transio aocapitalismo. No incio do novo sculo, a Rssia passou por uma nova mudana,com um projeto nacional de reconstruo econmica e poder poltico. al traje-tria vem fazendo da Rssia um protagonista no cenrio internacional.

    O presente texto est elaborado em quatro sees, alm desta breveintroduo (a seo 2, A economia poltica da transio ao capitalismo; a seo3, Putin e a reconstruo do Estado russo; a seo 4, O desenvolvimentismo emmeio abundncia de recursos naturais; e a seo 5, as Consideraes finais) e

    busca resumir os movimentos principais desta dupla transio. A despeito de seuescopo eminentemente histrico, exploram-se neste trabalho as conexes entredesenvolvimento econmico, Estado e poder poltico, objeto essencial da cinciapoltica e da economia poltica clssica e que, tardiamente, vem se afirmandocom mais presena na literatura contempornea sobre as trajetrias comparadasde desenvolvimento econmico.

    2 A ECONOMIA POLTICA DA TRANSIO AO CAPITALISMO

    Sobre o colapso da URSS, predominam dois tipos de enfoques. O primeirobaseia-se em anlises sobre o funcionamento do capitalismo, genericamentedescrito como economia de mercado em que supostamente h uma alocaoeficiente de recursos , em contraposio ao socialismo usualmente associado

    *Professor associado do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ) e pesquisador

    do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq). Este texto constitui uma verso revistae atualizada de algumas sees do texto Desenvolvimento econmico e ascenso nacional: rupturas e transies naRssia e China, elaborado pelo autor como captulo do livro O Mito do Colapso Americano (MEDEIROS, 2008a). Diver-sas anlises econmicas e desafios recentes desenvolvidos neste texto so, entretanto, inditos. Agradeo a FranklinSerrano, ngelo Segrillo, Andr Pineli Alves, Gabriel Pessin Adam, Giorgio Romano Schutte, Lenina Pomeranz e MarcosCintra por seus comentrios e suas sugestes. Os resultados so de inteira responsabilidade do autor.

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    a ineficincias e distores de todo tipo.1Essas anlises, ainda que vestidas comtrajes acadmicos, bastante populares entre os economistas, atribuem o colapsoda URSS ao da economia de comando e sua intrnseca irracionalidade infor-

    macional. O segundo tipo de enfoque formado por um significativo nmero deestudos, cobrindo aspectos especficos relevantes a tecnologia, a Guerra Fria, aliderana poltica, a sequncia das reformas etc. No poucos problemas desafiamas vises sistmicas. A tese da intrnseca inferioridade do planejamento centrali-zado deve explicar como a URSS passou de uma economia atrasada e arrasadapela guerra para a segunda economia industrial do mundo em um espao de 30anos. O atraso sovitico na tecnologia da informao (I) nas dcadas de 1970 e1980, um fato inegvel, poderia explicar uma desacelerao no crescimento, mas

    no um colapso.Em relao s vises no sistmicas e centradas em diversas dimenses inter-

    nas e externas, os problemas analticos so menores, mas necessrio identificarum fio condutor que permita combinar de forma consistente os distintos planosde anlise e os diferentes desafios. Popov (2007), examinando o colapso da econo-mia Russa nos anos 1990 em comparao com outras economias em transio considerou que as transformaes nessa dcada no decorreram tanto da estra-tgia de abertura em si, esta foi a consequncia de um fator maior: o colapso do

    Estado na URSS.

    2

    Diante do desmantelamento das instituies soviticas coma proliferao do crime e a destruio da moeda , a guinada liderada no planoeconmico por Yegor Gaidar, em 1991, com sua terapia de choque foi a de com-bater a fraqueza do Estado russo por meio de uma radical poltica monetriaque deveria exercer o papel que o planejamento central exercia anteriormente.3

    A tentativa de construir um Estado liberal duro foi uma escolha decor-rente da nova correlao de foras polticas e sociais aplicadas em um Estadoque emergiu do colapso da URSS. O fato de esta estratgia ter resultado em umderretimento do tecido econmico e social preexistente no constitui em si umasurpresa, mas um fato verdadeiramente notvel foi seu ponto de partida, isto , ademolio do poder poltico do Estado sovitico em no mais do que seis anos dereforma. Discutem-se alguns de seus aspectos a seguir.

    1. Possivelmente, a explicao econmica mais difundida no ocidente sobre o declnio econmico sovitico seja umacombinao entre as crticas originais de Hayek (1935) sobre a impossibilidade de uma maior racionalidade do plane-jamento central e as que muito posteriormente Kornai (1992) desenvolveu sobre osoft budget constraint. Para umasntese, ver Desai (2002).2. A Polnia, argumenta, praticou terapia de choque e teve uma rpida transformao, o Vietnam, com condies ini-

    ciais parecidas com as da China, tambm realizou, segundo o autor, esta terapia e manteve o crescimento. Entretanto,quando se nivelam algumas condies iniciais, a estratgia de fato importa. Entre os pases da antiga URSS, observa-seque os que liberalizaram mais rpido (os Estados blticos) tiveram pior desempenho do que os que se mantiveram,como o Uzbekistan.3. Como afirmou Gaidar, citado por Woodruff (1999, p. 82): There are two groups of regulators that are capable ofensuring the vital activity of society effective money and effective commands.

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    2.1 A desacelerao econmica dos anos 1970

    Depois de dcadas de alto crescimento, a produo industrial sovitica passou de5,6% ao ano (a.a.) entre 1971-1975 para 2,4% a.a. entre 1976-1980, mantendo--se neste patamar ao longo dos anos 1980 (SPULBER, 2003). As interpretaeseconmicas no estritamente ideolgicas da desacelerao do crescimentoocorrida na URSS dos anos 1970 e 1980 baseiam-se em trs hipteses bsicas:

    1. A URSS teria exaurido suas possibilidades de crescimento extensivo,ou melhor, de industrializao extensiva vigente nas dcadas anterio-res, caracterizado pela simples adio de trabalho, matrias-primas ecapitais aos processos produtivos existentes.

    2. A transio para um regime de crescimento intensivo baseado naprodutividade e no investimento nos novos setores da I (revoluotecnolgica na descrio sovitica) demandaria novas polticas, descen-tralizao e incentivos s empresas.

    3. O sistema econmico sovitico estaria constrangido pelo fardo militar.

    A primeira hiptese descreve corretamente ainda que imprecisamente certas caractersticas da maturidade industrial em dado paradigma tecnolgico.Com efeito, no apenas na URSS, mas tambm nos pases que no ps-guerra

    se industrializaram rapidamente mediante a produo em massa, os ganhos deprodutividade tenderam a declinar medida que os deslocamentos intersetoriaisse esgotaram nos anos 1970 (NOVE, 1970). Este ganho de produtividade eraainda mais forte na URSS nos anos 1950 e 1960 devido ao processo de des-locamento setorial da fora de trabalho da agricultura se dar em condies depleno emprego. Adicionalmente, a eliminao virtual do desemprego disfaradoe o pleno emprego levaram maior expanso dos salrios, principalmente dostrabalhadores industriais qualificados e no qualificados.

    A questo estrutural e social sovitica que a distinguia das economiasindustrializadas no era tanto a desacelerao, mas o desequilbrio da estruturada economia. Existia um duplo desequilbrio. O primeiro era dado pela baixaprodutividade da agricultura em relao indstria. De fato, ao longo do seuprocesso de industrializao, o calcanhar de Aquiles da URSS era a agricultura,o setor menos adaptvel ao planejamento central e de mais lenta modernizao.Este atraso relativo cobrou imenso preo na industrializao sovitica nos anos deacelerao da industrializao forada4e voltou a cobrar de novo elevado preonos anos 1980, sob a forma de demanda por importaes e subsdios. Entre-

    4. A acumulao primitiva socialista se fez a expensas da agricultura. A aposta sovitica era a aplicao de mtodosindustriais agricultura, mas, a despeito da grande expanso das fazendas modernas e da mecanizao, uma parcelasignificativa da populao econmica ativa agrcola manteve-se atada a mtodos tradicionais da agricultura campo-nesa (LEWIN, 2007).

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    tanto, ainda que se constitusse um limite ao crescimento acelerado, a baixa pro-duo agrcola no poderia explicar a desacelerao do conjunto da economia.O segundo desequilbrio estrutural era formado pela estrutura de comrcio exte-

    rior. A URSS construiu uma diviso do trabalho com os pases do Leste Europeu por meio do Conselho para Assistncia Econmica Mtua (Comecon) base-ado na cooperao. Depois de exportar mquinas e produtos industriais a URSSpassou a exportar a partir dos anos 1970, sobretudo, energia e armas, importandobens industriais, destes pases em apoio aos seus processos de industrializao5(SMIH, 1993). Com o ocidente, a URSS importava mquinas e equipamentosem troca de petrleo. Esta especializao era em parte poltica pois refletia, nocaso do Comecon, preos polticos e voltados ao catch-up dos demais e em

    parte econmica, devido ao atraso tecnolgico sovitico na indstria, em geral,e sua grande dependncia tecnologia dos pases industrializados. Devido a estedesequilbrio entre a produtividade do setor exportador e o da indstria, em geral,a demanda sovitica por moeda conversvel tornou-se crescente ao longo dos anos1970 e tambm cobrou elevado preo nos anos 1980.

    A segunda questo (a passagem para um regime de acumulao intensivademandava instituies descentralizadas e baseadas em medidas de incentivos dis-tintas das vigentes) detinha grande consenso entre os assessores de Mikhail Gorba-tchev; porm, possui muito mais ambiguidades e aspectos ideolgicos envolvidos.

    O sistema de planejamento central com sua hierarquia vertical de decises dimenso comumente associada ao atraso tecnolgico sovitico no exclua apresena de mecanismos de retroalimentao entre as empresas, os laboratriose o governo que permitissem planejar e acelerar as inovaes. Isto se tornou evi-dente no complexo industrial-militar sovitico muito prximo do americano emrealizaes tecnolgicas.6A questo central era a baixa difuso da tecnologia mili-tar para uso civil (o duplo uso),7decorrente da extrema verticalizao do sistemade inovaes sovitico nas unidades de pesquisa para fins militares.

    Avaliar o grau de progresso tecnolgico sovitico entre os anos 1960 e 1980no constitui tarefa simples. Os dados disponveis amplamente discutidosem Ellman e Kontorovitch (1992) efetivamente revelam uma desacelerao dasinovaes tecnolgicas civis mas no militares e maior envelhecimento das

    5. Essa dinmica resultou em uma especializao de comrcio internacional, em que a URSS, antes um grande supridorde mquinas e equipamentos para o Leste Europeu, transformou-se em um exportador de energia e importador demquinas e equipamentos, sobretudo da Alemanha Oriental (HOBSBAWN, 1994).

    6. A Comisso Industrial-Militar (VPK) era o ncleo do complexo industrial-militar sovitico, com estreita vinculaocom a academia de cincias. Possua um peso na economia sovitica maior do que o seu equivalente nos EstadosUnidos e detinha razovel autonomia em suas encomendas e prioridades tecnolgicas.7. Para uma discusso desta questo no complexo industrial-militar americano, ver Medeiros (2003, 2004). Ainda quehouvesse um inevitvelspill-overdas inovaes militares para uso civil, a prioridade era essencialmente militar, levandoao uso nos produtos no militares de materiais de pior qualidade e baixo desempenho.

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    mquinas e dos equipamentos ao longo dos anos 1970.8Esta circunstncia tor-nava-se premente medida que se percebia o crescente descolamento dos EstadosUnidos na difuso da I.

    A terceira questo, o fardo militar, deve ser vista em relao s duas primei-ras. al como a estimativa do crescimento na URSS, h grande controvrsia sobreo peso do oramento militar na economia sovitica. H apenas uma certeza: a deque era muito maior (cerca de trs vezes) do que o peso relativo do gasto militarna economia americana.9Nos anos 1950, segundo estimativas reunidas por Kotze Weir (1998), o gasto militar atingia 17% do produto nacional bruto (PNB); noperodo posterior, incluindo os anos 1980, este se situou em torno de 16% desteindicador. Em uma anlise esttica, no faz muito sentido atribuir a desacelerao

    do crescimento dos anos 1970 ao fardo militar, mas inegvel que a expanso ea diversificao dos investimentos em novos setores esbarravam em uma parcelaincompressvel do excedente social.

    Essas condies econmicas colocavam inmeros conflitos e desafios aosistema sovitico, mas, isoladamente, dificilmente as restries econmicas pode-riam explicar seu colapso. necessrio incorporar outras dimenses na anlise deuma crise sistmica. Apresentam-se a seguir algumas dimenses do poder poltico.

    2.2 A crise do poder polticoNo sistema sovitico, o poder poltico era altamente hierarquizado em umacadeia de comando vertical e monopolizado pelo Partido Comunista da UnioSovitica (PCUS). Este se exercia por meio do controle absoluto do Estado.As empresas subordinavam-se s decises do plano em um processo de nego-ciao e barganha entre metas e proviso de recursos. O abastecimento dasempresas, centralizado na Gossnab, era frequentemente considerado umaquesto problemtica, demandando um processo de mudana, visando a uma

    melhor coordenao entre as empresas e os ministrios. Com o enfraquecimentoda cadeia vertical, iniciado ao longo dos anos 1970 mas que assumir gran-des propores no perodo de Gorbatchev , mecanismos de patriotismo deagncia em que ministrios estabelecem prioridades acima de plano e interessesespecficos das unidades produtivas pelo acesso preferencial fonte de matrias--primas passaram a proliferar.

    8. H razes polticas e econmicas subjacentes. Nas economias capitalistas, a difuso das inovaes se d por meio

    da concorrncia por novos produtos e processos produtivos e, a menos que seja compensada por uma expanso aut-noma dos gastos, provoca desemprego tecnolgico. Em condies de baixo crescimento, a modernizao tecnolgicase deu desde os anos 1970 na base de demisses em massa e flexibilizao dos mercados de trabalho. Mas isto noera possvel na URSS.9. Esta avaliao feita a partir de estimativas ocidentais, incorporando metodologias semelhantes de cmputo doproduto interno bruto (PIB).

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    endo em vista essa estrutura de poder, diversas anlises concluram que a prin-cipal causa, relativamente autnoma, do colapso sovitico deve ser buscada no com-portamento da elite do partido, a comear por sua liderana exercida por Gorbatchev.

    EmA Revoluo pelo Alto, Kotz e Weir (1998) argumentaram que a transfor-mao de quadros da elite do PCUS em ardorosos defensores de reformas capitalistasfoi a causa principal do colapso. As reformas de Gorbatchev teriam liberado foraseconmicas, sociais e polticas que, sob a liderana da elite partidria,10implodirama estrutura de poder anterior, dando espao e sentido para uma radical transio.

    Mas surpreendente que nos estudos sobre o colapso sovitico sobretudonas anlises institucionalistas de esquerda , existam to pouca anlises sobre opapel do Exrcito Vermelho e da sua doutrina de defesa. Afinal, at a dissoluo daURSS, ele no s era o segundo exrcito mais poderoso do mundo, mas tambmo maior com tropas espalhadas na Europa Oriental e na imensa fronteira russa.al subestimao tanto maior quando se considera a importncia do exrcitosovitico para a coeso de um sistema poltico em que a disciplina e a hierarquiaconstituam pedras centrais do edifcio social.

    Uma exceo importante o trabalho de Odom (1998). Para este, a Peres-troika e a Glasnost atingiram essencialmente os militares e sua concepo deguerra. Como estes eram o principal fator aglutinador das nacionalidades, a crisedo Exrcito Vermelho foi um importante fator que contribuiu para o colapso dopas.11Esta anlise ser desenvolvida mais frente, mas, tanto para seu entendi-mento quanto para as demais tenses que se afirmaram nos anos 1980, necess-ria uma breve descrio das presses americanas.

    2.3 As presses americanas12

    Desde o Acordo de Ialta (11 de fevereiro de 1945) e aps a formao de umbloco de pases europeus associados e liderados por Moscou, o cenrio interna-

    cional passou a ser dominado por uma questo de alcance maior subordinandoas demais: o conflito sistmico exercido, de um lado, pelos Estados Unidos e, deoutro, pela URSS. Aps a exploso da primeira bomba atmica russa em 1949,este conflito provocou em ambos os pases uma corrida pelas armas tecnologica-mente mais avanadas, a principal dimenso da Guerra Fria.

    10. Conforme Kotz e Weir (1998, p. 94): The radicalized intelligentsia plus the wealthy class of newly formed capi-talists, backed by the promise of large-scale Western aid, created a significant base of support for the pro-capitalistposition. Yet if the bulk of the party-state elite had rejected this position and had opted either for continuing reformof socialism or going back to the old system, it seems almost certain that the outcome would have been different.

    11. Na organizao poltica sovitica, o partido confunde-se com o Estado e a crise do partido confunde-se com a crisedo estado. Embora o EV se subordinasse ao PC, era a doutrina da guerra e da ameaa externa que tornava coesa arepblica e eram seu prestgio e suas prioridades que estruturavam a economia.12. A anlise mais detalhada da estratgia do governo Ronald Reagan para desestabilizar a URSS foi desenvolvida por Schwei-zer (1994). Para este autor, embora a crise sovitica no tenha sido causada pelos Estados Unidos, estes usaram de todosos meios para radicaliz-la. No fundamental, estes esforos foram bem-sucedidos, levando a uma grande vitria americana.

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    Na estratgia de enfrentamento da URSS, tal como concebida por GeorgeKennan, o principal formulador da estratgia de conteno, o embargo e o boi-cote ao pas sovitico e aos seus aliados e o estmulo econmico e poltico aos

    seus inimigos e aliados dos Estados Unidos era a essncia da poltica externaamericana do ps-guerra. odas as operaes envolvendo o acesso a moedas inter-nacionais, especialmente o dlar, e a bens de primeira necessidade faziam parte dapoltica global de embargo: as finanas, o petrleo e os alimentos eram as principais.

    Desde que foi obtida a paridade nuclear entre os dois pases, a instabilidadedo conflito entre os Estados Unidos e a URSS passou a se dar em guerras quenteslocalizadas na periferia de ambos os imprios. No fim dos anos 1960, estabeleceu--se na Unio Sovitica o que se denominou de Doutrina Brezhenev: a instabili-

    dade em um pas socialista seria considerada uma instabilidade poltica para todoo campo socialista, justificando, deste modo, a interveno militar.

    O ano de 1979 pode ser considerado um ponto de virada na Guerra Fria.Nesse ano, ocorreu a Revoluo Iraniana, desestabilizando o Oriente Mdio; emseguida, o Exrcito Vermelho entrou no Afeganisto. Estes dois fatos iniciaram umconjunto de medidas e aes americanas voltadas a escalar o conflito com a URSS.

    O governo Reagan ampliou a ofensiva americana contra a URSS em seisflancos: na escalada das armas, no apoio ao sindicato Solidariedade na Polnia,nas guerras locais na periferia e no Afeganisto, na campanha para reduzir o acessosovitico s divisas internacionais mediante a venda de petrleo e gs para Europae no fortalecimento ao embargo tecnologia de ponta (SCHWEIZER, 1994).

    Reagan considerava que a poltica de dtentede seu antecessor havia dadomuito espao aos soviticos e que uma escalada militar fatalmente os levaria mesa de negociao favorvel aos Estados Unidos. Este era o sentido principal daIniciativa de Defesa Estratgica (SDI, a Guerra nas Estrelas) e, do mesmo modo,era a deciso de instalar os msseis Pershing 2 na Europa Ocidental em 1983.

    Por outro lado, apoiar o sindicato Solidariedade ao lado da Igreja Catlica eampliar as tenses sobre o Leste Europeu e, deste modo, sobre a URSS transfor-mou-se em uma poltica estratgica do governo Reagan que comeava a desfazer ocompromisso do ps-guerra de respeitar as divises estabelecidas entre os dois blocos.

    Financeiramente para a URSS, o boicote americano venda de equipa-mentos para a construo do gasoduto ligando a Sibria Europa Central foiparticularmente estratgico, na medida em que impedia que a Unio Sovitica

    obtivesse divisas necessrias s suas importaes em expanso e ao financiamentodos seus aliados.13

    13. Para uma ampla discusso, ver Schweizer (1994).

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    O bloqueio ao acesso sovitico s moedas internacionais e, essencialmente,ao dlar constitua parte importante da estratgia dos Estados Unidos, o queinclua necessariamente um grande engajamento na poltica do petrleo, na

    medida em que os soviticos eram grandes produtores. Ao longo dos anos 1970,a URSS manteve estvel o preo do petrleo para os pases do Leste Europeu, masa elevao de sua cotao no mercado internacional beneficiou os soviticos dire-tamente, porque enriqueceu seus principais clientes no socialistas de armas(os pases rabes). Por estas razes, no incio dos anos 1980, os Estados Unidostinham um grande interesse na reduo e na estabilizao do preo do petrleo.

    Apoiar os Muhaedin no Afeganisto contra o Exrcito Vermelho pareceua Reagan como grande oportunidade de desgastar militarmente os soviticos e

    construir uma diplomacia, unindo mulumanos e a opinio liberal do ocidentecontra a interveno militar sovitica. Esta estratgia foi ampliada no segundogoverno Reagan com um forte esforo de armamento aos guerrilheiros.14O Afe-ganisto se transformou no Vietn Sovitico (HOBSBAWN, 1994).

    odas essas iniciativas custaram URSS bilhes de dlares e enfraqueceramsua economia, ao mesmo tempo em que no plano poltico e ideolgico reforavamseus inimigos externos e internos. Este movimento americano de enfrentamentoglobal a URSS inclua o apoio China. A carta chinesa afirmou-se como movi-

    mento iniciado com a poltica Richard Nixon e Heinz Alfred Kissinger, visandoao desgaste da URSS. Debatem-se essas questes no governo Gorbatchev.

    2.4 A estratgia de reforma de Gorbatchev

    O objetivo inicial perseguido por Gorbatchev, que assumiu a Secretaria-Geral doPCUS em 1985, em sua poltica de reestruturao (Perestroika), no era muitodistante do que ao longo dos anos 1960 foram perseguidos com as reformas naHungria e na prpria URSS antes do imobilismo associado aos anos de Brezh-

    nev (1964-1982).15

    Este objetivo era a maior autonomia das empresas estataisno contexto do planejamento central, favorecendo difuso mais rpida das novastecnologias e dos padres de consumo.

    Diversos mecanismos de degenerao burocrtica acumularam-se nos anos1970, reduzindo o poder central sobre as administraes locais, favorecendoredes regionais e mecanismos horizontais de poder sobre o comando centralizado.A retomada da centralizao do poder e da disciplina realizada no curtoperodo de Andropov (1982-1984) sinalizava a possibilidade de aumentar a

    14. A importncia estratgica dos msseis Stinger de ltima gerao para a conteno da letalidade dos ataques sovi-ticos e a drenagem de recursos amplamente reconhecida.15. Como nota Hobsbawn (1994), o termonomenklaturasurgiu exatamente para descrever o comportamento da altaburocracia partidria da era Brezhnev.

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    eficincia conjunta do sistema econmico. Esta linha foi assumida logo noincio do governo Gorbatchev com a proposta de generalizar o modelo decoordenao da VPK para a economia civil. A criao de uma nova secreta-

    ria para a agroindstria seguia este modelo, colocando um grande nmerode firmas sob o comando desta comisso, que buscava a modernizao dasmquinas agrcolas.

    A agricultura, como se observou, era o calcanhar de Aquiles da estruturaprodutiva sovitica. Os esforos iniciais de investimento e modernizao agr-cola levaram grande aumento do estoque de capital e da oferta agrcola, mas aelevao da produtividade da agricultura no ocorreu, demandando crescentessubsdios s fazendas coletivas, constituindo-se o componente de despesa pblica

    de maior crescimento nos anos 1980.Conforme se observou, outra questo estratgica que assumiu grande

    importncia econmica e poltica naqueles anos foi a do petrleo. A queda dopreo do petrleo a partir de 1982 e, principalmente, aps 1986 teve um grandeimpacto na URSS, reduzindo sua capacidade de importar em um momento emque a necessidade de importaes de mquinas e equipamentos era crescente.Este efeito foi ampliado na medida em que, a partir de 1985, a extrao de petr-leo se estagnou e, a partir de 1989, houve substancial contrao (SMIH, 1993).

    Assim, tambm a URSS passou no fim dos anos 1980 por uma crise em seubalano de pagamentos e que no poderia ser respondida, como no ocidente,por meio de uma grande desvalorizao sem desfazer os mecanismos de preos eplanejamento preexistentes.

    O foco das reformas de Gorbatchev, centrado em mudanas no sistema deplanejamento, agravou essa crise. Em 1987, promulgou novas leis, conferindoautonomia das empresas na fixao dos salrios, na elevao dos preos e nascompras de insumos (ELLMAN; KONOROVICH, 1992). Estas passaram a

    reter maior parcela dos lucros, reduzindo a transferncia para o governo central,mas, em vez de aumentarem os investimentos, as empresas elevaram os salrios,especialmente dos gerentes, e ampliaram os estoques especulativos. Em facedeste movimento, quando as reformas foram implementadas em 1988, a restri-o ao crdito interno ocasionou uma expanso extraordinria da dvida externa,e, com a abolio do monoplio sobre o comrcio exterior, as exportaes,sobretudo de matrias-primas e energia, expandiram-se fortemente sem con-trole do Banco Central da Rssia (BCR). Como simultaneamente se reduziu ocontrole do planejamento central sobre a alocao de recursos entre as empresas,

    estas transformaes dispararam as sequncias conhecidas de acontecimentos:a inflao, a escassez, a formao de estoques especulativos, o mercado negro,o enriquecimento e a formao de uma nova classe social.

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    A contrao na exportao do petrleo e seu baixo preo no mercado inter-nacional tiveram, por seu turno, um grande impacto sobre as relaes da URSScom os pases do Leste Europeu. Em 1989, esta estabeleceu que o comrcio com

    o Comecon deveria ocorrer em moeda conversvel e que as exportaes de petr-leo seriam reduzidas. Como os bens produzidos nos pases do Leste Europeuno encontravam mercado no ocidente e o petrleo a ser adquirido no mercadointernacional era muito mais caro do que o previamente oferecido pela URSS,instalou-se nestes pases uma crise de abastecimento e de balano de pagamen-tos com consequente crise de liquidez, tendo em vista o endividamento pre-viamente construdo , que contribuiu para o colapso econmico e poltico daregio no fim da dcada.

    Mas, como se argumentou, a debilidade poltica do Estado sovitico nestemomento que precisa ser explicada.

    A questo priorizada por Gorbatchev, pelo menos antes do lanamentopleno da Glasnost e das reformas econmicas liberalizantes de 1987-1988,no se dirigia, entretanto, ao front interno, mas ao externo. Estava asso-ciada ao enfrentamento da questo militar e da guerra. Ao lado de reduzir ofardo militar frente ofensiva do escudo nuclear proposto por Reagan, eranecessrio encontrar uma sada para o Exrcito Vermelho no Afeganisto.

    Com efeito, os dois atos tomados por Gorbatchev assim que assumiu opoder foram a deciso unilateral de suspenso dos testes nucleares e a deretirar o Exrcito Vermelho desse pas.

    O ponto central e que deu partida ao processo de mudana foi a decisode Gorbatchev de encerrar a corrida armamentista tal como esta vinha se desen-volvendo. al movida de reduo global de armas e tropas requeria, por sua vez,realizar uma ampla reviso da doutrina militar com a adoo de uma doutrinadefensiva. No apenas a concepo prevalecente sobre a estratgia militar apare-

    cia como adversria ao processo de mudana, mas tambm o prprio complexoindustrial-militar liderado pela VPK era percebido como tumor que havia seexpandido excessivamente (ODOM, 1998).

    O ncleo foi a reviso ideolgica sobre a coexistncia pacfica como formaespecfica de luta de classe internacional frmula predominante nas dcadasanteriores com a ideia defendida por Gorbatchev no congresso do PCUS em1986 de que nas relaes internacionais os interesses da sociedade referidocomo interesses da humanidade esto acima dos interesses de classe. Por outro

    lado, a Glasnost internacional foi um poderoso estmulo para a ofensiva das foraspolticas liberalizantes e antissocialistas na Europa Oriental. Para esta sequnciade acontecimentos, a estratgia de Gorbatchev de renunciar sob presso ameri-cana Doutrina Brezhnev foi um fator decisivo.

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    Em 1988, na Organizao das Naes Unidas (ONU), Gorbatchev anun-ciou uma reduo unilateral das foras soviticas16e, simultaneamente, aceleroua abertura poltica de forma a ampliar os aliados ao seu processo de reforma, iso-

    lando os militares conservadores. Comeava, a partir disto de fato, a Glasnost,uma estratgia poltica voltada a ampliar apoio na sociedade sovitica, sobretudoentre os intelectuais, aos esforos do governo a favor da desmilitarizao (redu-o das armas nucleares, reduo das foras armadas17e retirada das tropas daEuropa) e diminuio do peso econmico e da importncia poltica do complexoindustrial-militar.

    Essa reviso da doutrina militar teve um imenso impacto sobre o Ministrioda Defesa e a elite do Exrcito Vermelho. Este ltimo era o principal elemento de

    coeso das nacionalidades e dos grupos tnicos. O declnio do poder do Exrcitofoi, assim, o estopim para o separatismo.

    Essa questo se articula com a da guerra do Afeganisto, iniciada em 1979e terminada em 1989, que se afirmou como um evento decisivo para o entendi-mento dos desafios iniciais do governo de Gorbatchev, para o catico desenrolardestes anos e, finalmente, para o colapso (SCHWEIZER, 1994).

    A derrota no Afeganisto abalou profundamente o Exrcito Vermelho(REUVENY; PRAKASH, 1999). Em poucos meses aps a sada do Afeganisto,o movimento democrtico lituano declarou que seu objetivo maior era a plenaindependncia de Moscou. Protestos crescentes das etnias no russas,18contra oalistamento militar, iniciaram um movimento separatista que passou a ganharum impacto extraordinrio. A guerra foi percebida como guerra russa feita porsoldados no russos e acirrou conflitos internos no prprio Exrcito. Reduoda disciplina, trfico de armas e enriquecimento de militares afirmaram-se nosltimos anos no Afeganisto.

    Com o declnio do prestgio do Exrcito, as resistncias polticas ao apro-

    fundamento da Perestroika e da Glasnost foram arrefecidas. Em 1990, Yeltsinfoi eleito o primeiro-ministro da Repblica Sovitica Federada Socialista Russa,desligou-se do PCUS e anunciou que a resistncia Perestroika seria combatidacom mobilizao popular. Em maro de 1991, a autonomia das repblicas foiaprovada em referendum. A tentativa de resistncia da alta cpula do Estado russo,

    16. Ver Schweizer (1994, p. 278): Tremendous Soviet concessions were made in the strategic and intermediate nuclearforce portions of the talks. But it all hinged on SDI, said Gorbatchov. With his country a superpower largely because of

    its military capability, Gorbatchovs willingness to agree to dramatic cuts and link them to strategic defense was furtherevidence of just how desperate Moscow was for relief from the West.17. Deve-se observar que na Europa Oriental havia 650.000 soldados soviticos. A deciso de desengajar 500.000soldados do Exrcito Vermelho, tomada por Gorbatchev, gerou grandes problemas de como absorv-los na vida civi l.18. Deve-se observar que os afegos consistem de trs grupos tnicos principais: Pashtuns, Tajiks e Uzbeks, estes doisltimos grupos tambm presentes na URSS (REUVENY; PRAKASH, 1999).

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    com a criao em agosto de 1991 do Comit de Emergncia Estatal na defesa daURSS, foi derrotada pela diviso dos militares e pela resistncia de Yeltsin queliderou a reao, prendendo os conspiradores e, em um golpe de Estado, banindo

    o PCUS e o Partido Comunista Revolucionrio (PCR).19Em dezembro, a ban-deira russa substitui a da URSS no Kremlin.

    Foram essas as condies iniciais de desmontagem do poder poltico e dofuncionamento da economia. Devido tanto ao seu desmembramento parti-cularmente com a autonomia da Ucrnia que detinha a melhor agricultura eimportantes segmentos da indstria pesada sovitica quanto contrao eco-nmica, a Rssia perdeu 45% do seu PIB entre 1989 e 1998 (POPOV, 2006).Houve dramtico declnio no poder de compra da populao como consequncia

    da estratgia de tratamento de choque de transio radical ao capitalismo ado-tada neste pas ao longo dos anos 1990. A agricultura, a indstria de bens deconsumo no durvel e o complexo industrial-militar foram os mais atingidospela destruio da massa salarial e contrao dos gastos previdencirios e das com-pras governamentais.

    3 PUTIN E A RECONSTRUO DO ESTADO RUSSO

    As reformas ultrarradicais lideradas por Anatoly Chubais e Yegor Gaidar no

    governo Yeltsin, centradas na liberalizao dos preos, dos mecanismos de controlee na privatizao, resultaram em drstica contrao dos setores e das atividadesno exportadoras e na formao de uma nova classe dominante, a dos oligarcas.Esta era constituda por trs grupos: os gerentes das grandes empresas estatais que,na desmontagem dos grandes rgos de planejamento e no processo de privati-zao em massa, assumiram o seu controle patrimonial; os banqueiros privados,que serviram de intermedirios dos grandes emprstimos internacionais dos anos1990; os gangsteres20que prosperaram com o colapso das instituies soviticas.Esses trs grupos21 tinham duas semelhanas: a sua dependncia aos recursos doEstado russo e a sua recusa em investir a nova riqueza na Rssia (SIMES, 1999).

    Em um contexto poltico marcado simultaneamente pelas reformas liberaisradicais e pela destruio do poder do Estado (eloquente e didaticamente eviden-ciados pela destruio da moeda nacional; inexistncia de um sistema prprio de

    19. Odom (1998) argumenta que a mdia e os acadmicos costumam referir-se crise de agosto como tentativa frus-trada de golpe de Estado, mas o fato que os acusados de golpe ocupavam a mais alta cpula do Estado e o vitoriosoera um poltico que no possua nenhuma posio formal no governo central. Desse modo, o golpe que de fato ocorreu

    foi o liderado por Yeltsin com a dissoluo da URSS.20. As fronteiras entre ogangsterismoe as atividades legais tornaram-se de fato muito tnues. Como observa Gustaf-son (1999) uma das principais atividades dos gangsteres era a compra de petrleo bruto e refinado a um preo internoreduzido e a sua venda em Chipre e Nova Iorque por uma rede prpria.21. Nos anos de Yeltsin, a concentrao de riqueza e renda na Rssia foi extraordinria, com a emergncia de grandesfortunas. Em 2003, a Rssia possua 17 bilionrios, a maioria com fortuna formada no setor energtico (SAKWA, 2004).

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    arrecadao de impostos transferido ao setor bancrio privado; perda de controlesobre a alfndega e a expanso do crime), a expanso do poder econmico pri-vado se deu em duas ondas de privatizao22na primeira e na segunda metade da

    dcada de 1990.23Se, na primeira onda de privatizao, os vencedores principaisforam os gerentes, na segunda onda, estes em aliana com o capital financeiroprivado centenas de bancos foram criados de um dia para o outro benefi-ciaram-se das lucrativas operaes de financiamento da dvida do Estado russo,em geral via emprstimos externos, garantidas por aes das grandes empresasestatais. Grandes conglomerados se formaram com o controle pelos bancos deindstrias pesadas da construo civil, de extrao mineral e de mdia. Mas aolado destas, as operaes mais lucrativas eram a converso de depsitos denomi-

    nados em rublos e em dlares utilizados para financiar exportaes de commodi-ties. Um extraordinrio afluxo de financiamento especulativo se afirmou. Este sedeu simultaneamente a um boomdas importaes e colapso das exportaes notradicionais decorrentes da valorizao da taxa de cmbio (indexado ao dlar) eda liberalizao comercial.

    Aps o colapso financeiro e do rublo em 1998 precedida pela maior fugade capitais conhecida no ps-guerra nos estertores do governo Yeltsin, a nome-ao de Yevgeny Primakov (ex-ministro das Relaes Internacionais e ex-KomitetGosudarstveno Bezopasnosti KGB) para o cargo de primeiro-ministro iniciouum processo de mudana na regulao da economia e nas relaes internacionaisna Rssia. Em sua rpida passagem pelo cargo, Primakov obrigou as empresas ainternalizarem o cmbio (50% das exportaes das empresas) (ELLMAN, 2006),

    declarou moratria e recusou o aperto monetrio recomendado pelo FundoMonetrio Internacional (FMI) e pelos economistas liberais russos. Aps substan-cial desvalorizao do rublo, a reduo substancial do salrio real e a elevao dacapacidade ociosa, a economia russa reagiu em 1999 e cresceu espetacularmenteentre 2001 e 2007, com uma taxa mdia de 7% a.a. (ver a seguir).

    O motor inicial deste crescimento foi a desvalorizao do rublo acompa-nhada por elevao do preo do petrleo entre 1999 e 2000, inaugurando umperodo de saldos positivos em transaes correntes e consequente reduo dadvida externa. Esta elevao de preos encerrou uma caracterstica essencial, querdos anos Gorbatchev, quer dos anos Yeltsin, marcados por baixos preos do petr-leo e do gs no mercado internacional e por insolvncia externa nos anos 1990,e viabilizou grande aumento dos investimentos na produo e no transporte depetrleo e gs dos novos poos na Sibria.

    22. Ver Schutte (2011) e Alves (2011).23. Como constatou Gustafson (1999), em menos de trs anos, uma economia que era integralmente estatal passoupara mos privadas; algo como 90% da produo industrial passou para grupos privados.

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    A Rssia herdou a dvida externa total da URSS e aproveitou a extraordinriaelevao do preo do petrleo para realizar um pagamento antecipado da dvidacontrada junto ao FMI e ao Clube de Paris. Com o declnio do endividamento

    e com a regularizao das despesas pblicas, houve uma rpida reestruturao daposio patrimonial do Estado russo.24Com receitas fiscais agora sob controle doEstado em expanso e despesas financeiras em queda, as despesas no financeirasdo governo aumentaram substancialmente, liderando a recuperao do cresci-mento econmico. A criao de um Fundo de Estabilizao em 2004, de formaa esterilizar os efeitos da elevao do preo do petrleo sobre a taxa de cmbio eestabilizar as receitas fiscais, foi outra das medidas essenciais do novo governo.25

    A reviravolta russa no novo milnio no se limitou construo de um

    novo regime macroeconmico a partir de uma nova estrutura de preos relativos.Com a eleio de Vladimir Putin na Presidncia do pas em 2000,26afirmou-seuma estratgia de centralizao do poder do Estado em que a doutrina indepen-dente de segurana militar , a autonomia em relao aos Estados Unidos e ummaior controle dos mercados constituam seus traos mais visveis.

    J como presidente, Putin sublinhou que o maior problema russo era a fra-queza da vontade (SAKWA, 2004). Essa se revelava em relao a dois poderes: odas oligarquias e o das regies, ambos intimamente entrelaados.

    O maior enquadramento e submisso ao Estado das oligarquias se deram dedois modos. A prpria crise de 1998 destruiu centenas de bancos e fortunas privadasarruinadas pelo desencontro de divisas entre seus ativos em rublos desvalorizadose passivos dolarizados. Em decorrncia, houve grande centralizao financeira e par-cial estatizao com a afirmao do Sberbank majoritariamente controlado peloBanco Central russo como o principal banco comercial e de investimentos do pas.O poder econmico centralizou-se essencialmente nos grupos exportadores de com-modities. Desse modo, o segundo movimento foi o aperto fiscal dos oligarcas nos seto-

    res exportadores, incluindo a reestatizao de empresas como a Gazprom e a Yukos.Com o enquadramento do imprio da mdia, mudou a correlao de foras a favorde um Estado forte com mais capacidade de impor a lei e a ordem, na realidade, adeciso de restabelecer uma relativa autonomia do Estado russo frente aos interessesimediatos das oligarquias e, sobretudo, a centralizao da arrecadao fiscal e a redu-o da gigantesca evaso dos anos anteriores. Autonomia relativa na medida em que asoligarquias transformaram-se em parte do sistema de poder (SAKWA, 2004).

    24. Conforme observou Sakwa (2004), cada aumento de US$ 1,00 no preo do petrleo gerava o aumento

    de US$ 1 bilho ao Tesouro. As exportaes de gs e petrleo responderam por mais da metade das receitasde exportao, cerca de 40% dos investimentos fixos e 25% das receitas do governo nos ltimos anos do sculo XX.25. Ainda que no tivesse impedido uma valorizao do rublo, em grande parte decorrente do elevado ingresso decapitais. Ver discusso a seguir.26. Vladimir Putin (egresso de uma longa carreira no KGB) havia sido nomeado por Yeltsin, primeiro-ministro em 1999,e foi eleito presidente da Rssia em 2000.

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    Os oligarcas criados no processo de acumulao primitiva do perodoYeltsin formaram, com o apoio do novo governo, grandes grupos financeiros eindustriais na rea de energia, minerao, bancos e comunicaes. Estes grupos

    econmicos afirmaram-se como o principal bloco de interesses da nova Rssia.Sob o compromisso de investir em suas empresas, o governo de Putin reconheceua legitimidade dos direitos de propriedade dos ativos adquiridos. O controle doEstado na rea da energia, a presena ainda massiva das empresas estatais eminfraestrutura e bens de capital e a reorganizao do complexo industrial-militarmarcaram a poltica econmica e industrial do novo governo.

    Ao lado da maior subordinao do poder das oligarquias, a reorganizaodo Estado russo passou pela interrupo da segmentao regionalista que carac-

    terizou o perodo anrquico de Yeltsin. Centralizar o poder na Rssia do pontode vista constitucional, judicirio e tributrio passou a ser a prioridade do novogoverno.27 J em 2000, a suprema corte revogou as declaraes de autonomiadas repblicas russas e o pas foi dividido em 89 regies e sete grandes distritosfederais (macrorregies), formando um tringulo de poder centralizado em Mos-cou. No por mera coincidncia, os sete grandes distritos administrativos federaiseram tambm distritos militares e os diretores dos distritos federais eram todosoriundos do Servio Federal de Segurana (FSB) sucessor do KGB. Putin recom-ps a conexo histrica entre a organizao do poder militar e a Federao russa.

    A recuperao do poder do Estado no plano industrial se deu por um maiorcontrole financeiro do setor de energia e sobre o complexo industrial-militar.O primeiro com a expanso do Sberbank e o segundo com a nacionalizaoda Gazpron. O mesmo se passou com as armas. Ao longo dos anos 1990, ooramento militar russo caiu drasticamente. Em 1997, era cerca de um dcimodo existente em 1989. Do mesmo modo, a produo de armas sofreu imensacontrao. O declnio das Foras Armadas e a deteriorao dos equipamentoschegaram ao seu clmax com o afundamento do submarino Kursk em 2000.Com o colapso da procura governamental, a indstria de armas passou a con-tar exclusivamente com o mercado externo em uma concorrncia predatria.Desde este ano esta realidade comeou a mudar a partir da reorganizao docomplexo industrial-militar, orquestrada pelo Ministrio da Defesa lideradopor Seguei Ivanov, oficial de confiana de Putin.

    A reorganizao do complexo industrial-militar baseou-se na nacionalizaoda indstria de armas e na formao de uma grande holdingestatal, centralizandoa exportao destas a Rosoboronexport, criada em 2000 , encerrando uma fase

    de concorrncia predatria entre os fabricantes. Este mesmo modelo foi estendido

    27. Essa centralizao, entretanto, no ia ao encontro da elite de poder de Moscou identificada com o governo Yeltsin(GUSTAFSON, 1999).

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    para a indstria aeronutica com a criao da United Aircraft Corporation (UAC)formada em 2006. O oramento militar elevou-se de forma substancial, mas apartir de uma base fortemente comprimida, no impedindo o declnio dos inves-

    timentos do complexo industrial-militar (ver a seguir).Aps a fantasia do capitalismo popular desejado pelos privatistas de Yelt-

    sin, o poder econmico na Rssia concentrou-se fortemente. Segundo dados de2008 (DIRKS; KEELING, 2009), as 30 maiores companhias russas venderamo equivalente a US$ 555 bilhes e as 20 maiores respondem por quase 70%das exportaes. Isoladamente, o setor de energia responde por uma frao subs-tancial das vendas das empresas e do PIB, a metalurgia e os bancos constituemos demais setores dominantes com o capital centralizado em empresas estatais e

    grandes grupos privados.Estas transformaes nas instituies, no bloco de interesses e no poder pol-

    tico do Estado no alteraram, entretanto, o desequilbrio da estrutura econmicarussa (dada pela produtividade de sua base exportadora baseada em recursos natu-rais em contraste com a baixa produtividade da indstria, em geral decorrente doenvelhecimento da infraestrutura e, atraso tecnolgico nos setores no exportado-res) sobre sua estratgia de crescimento. o que se discute a seguir.

    4 O DESENVOLVIMENTISMO EM MEIO ABUNDNCIA DE RECURSOS NATURAISA histria da ltima dcada na Rssia revelou de forma eloquente as dificuldades deuma economia primria exportadora e aberta financeiramente manter uma taxa decmbio favorvel indstria e defender o seu nvel de atividade das abruptas rever-ses dos preos e dos fluxos financeiros. Como se observou, at a crise externa de2008, uma das mais intensas entre os pases de renda mdia, a Rssia crescia a umataxa mdia anual em torno de 7% a.a. Este crescimento se deu em um contextode espetacular elevao dos preos do petrleo e, do gs resultando em crescente

    supervit em transaes correntes e formao de grandes reservas (KOROLEV,2009). Este crescimento se difundiu para o conjunto da economia e da indstria emparticular, que possua grande capacidade ociosa, mas no em seu setor exportador.Com efeito, ao mesmo tempo que as exportaes elevavam-se e concentravam-seexcessivamente em petrleo e gs (cerca de 60% a partir de 2004, 20% do PIB,segundo OPPENHEIMER; MASLINCHENKO, 2006). Isso se deu no apenaspela elevao dos preos, mas por substancial expanso da produo fsica.28

    Como se observou com o desmembramento da URSS, houve a desinte-

    grao das cadeias produtivas, em particular com a localizao na Ucrnia desegmentos importantes da indstria pesada e da agricultura moderna. Com isso,

    28. Ver Schutte (2011).

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    os desequilbrios estruturais da URSS baixa produtividade da agricultura emrelao da indstria, baixa produtividade da indstria em relao ao setor expor-tador foram ampliados. Por outro lado, a Rssia passou a receber elevados fluxos

    financeiros e de investimento direto nos anos finais da dcada.29Ampliou-se deforma substancial a participao de investidores estrangeiros na bolsa de valores edos emprstimos externos na carteira dos bancos. A despeito da elevada formaode reservas e do Fundo de Estabilizao, sob o afluxo de dlares decorrentes dasexportaes e, sobretudo, dos influxos financeiros, a taxa de cmbio valorizou--se ao longo da dcada (cerca de 145% a partir de 2001, segundo KOROLEV,2009). A expanso do salrio real, do emprego e dos gastos do governo (finan-ciados em grande parte pelos impostos sobre as exportaes de energia) levou

    a uma simultnea expanso dos servios e da indstria voltada para o mercadointerno e para os mercados da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), osprincipais mercados para a indstria manufatureira russa. Os bancos canalizaramseus emprstimos para a construo civil e para o comrcio importador.

    Com a crise de 2008, houve grande sada de capital financiado com vendade reservas, resultando afinal em substancial (50%) desvalorizao do rublo, con-trao de crdito dos bancos e recesso. endo em vista o colcho acumuladode reservas, o pacote fiscal expansionista introduzido em 2009 (estima-se algocomo 15% do PIB, a partir de KOROLEV, 2009) visou essencialmente recuperaro crdito dos bancos que novamente apresentavam grande desencontro dedivisas em suas carteiras e propiciar linhas especiais de crditos s companhiasexportadoras (tambm com elevadas dvidas em dlares), isenes fiscais e inves-timentos pblicos em construo civil.

    A primeira dcada do novo milnio pode ser descrita como a da afirmaode um projeto nacionalista de recuperao do Estado russo, ancorado em umpadro de acumulao baseado na expanso e na internacionalizao dos merca-dos internos e na exportao de recursos naturais. Este padro, de forma seme-lhante ao que se desenvolveu em economias exportadoras destes recursos aindaque com uma maior diversificao produtiva esteve intimamente articuladocom o financiamento externo que apresentou um comportamento pr- cclico,acompanhando e ampliando o ciclo de preos das commodities.30Alm de umataxa de cmbio estruturalmente desequilibrada, isto , pouco competitiva paraas indstrias no baseadas em recursos naturais, houve grande volatilidade dataxa nominal de cmbio e consequente efeito negativo sobre os investimentosindustriais privados. As polticas introduzidas no governo Putin e continuadas

    no governo de Medvedev a poltica de compra do Banco Central, o Fundo de

    29. Ao lado, como nota Alves (2011), de substanciais fluxos de sada.30. Como em todos os ciclos de commodities, os fluxos financeiros amplificam de forma substancial as fases de exces-so e de escassez de liquidez. Para uma discusso desta relao em uma perspectiva histrica, ver Medeiros (2008b).

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    Estabilizao e o controle pelo Estado russo das empresas de energia permitiramdeslanchar alto crescimento econmico compensando parcialmente seus efeitossobre a estrutura produtiva, mas no evitaram ou anularam a tendncia principal.

    Devido s caractersticas excepcionais dos recursos naturais russos (petrleoe gs), de sua geografia e do processo de formao dos grupos econmicos, duascaractersticas distinguem os exportadores russos dos exportadores de commoditiesem geral: o tamanho relativo das empresas de energia e a sua internacionalizao.Uma parte substancial do grande crescimento dos investimentos diretos russosno exterior, ocorrido nos ltimos anos superior ao dos pases de renda mdia ,deveu-se essencialmente aos investimentos das empresas de energia nos pases daCEI,31tambm produtoras de energia na Ucrnia. rata-se, na verdade, de uma

    reorganizao sob a liderana de grande conglomerados do antigo territrio daRssia. A conjugao desses dois aspectos que se autoalimentam refora a centra-lizao do capital na Rssia baseada na energia, na sua infraestrutura de servios ena sua indstria derivada, como a qumica, os fertilizantes e os metais no ferrosos.

    Ao contrrio da maioria das economias ricas em recursos naturais, a pecu-liaridade russa a maior diversidade de sua estrutura industrial, incluindo umgrande setor de mquinas e equipamentos. A articulao de parte deste com osetor energtico tornaram os canais de transmisso da elevao do preo do petr-

    leo para a indstria de transformao mais expansivos do que na maior partedestas economias em que esta indstria inexiste. Entretanto, devido ao atrasotecnolgico em geral da indstria, a insero internacional russa tipicamente deuma economia primria exportadora contempornea: a Rssia exporta principal-mente petrleo e gs especialmente para os pases europeus e para a Alemanha, emparticular, e importa bens industriais, especialmente mquinas e equipamentosoriundos deste pas. Holanda e Alemanha investem significativamente no pas emenergia, transportes, bancos e em indstrias voltadas para o mercado domstico,como automvel e alimentos.

    O que esta dcada revela que do ponto de vista econmico, o desafio centralpara uma estratgia de desenvolvimento na Rssia a sua atualizao tecnolgica.Devido ao seu ponto de partida a economia sovitica e a contrao industrial nadcada de 1990 , o atraso russo nas indstrias de alta tecnologia (eletrnica, equi-pamento de comunicao, farmacutica etc.) muito elevado, com exceo par-cial de equipamentos militares (em especial da indstria aeroespacial). Do mesmomodo, a paralisia de investimentos nos anos 1990 tornou a indstria russa poucocompetitiva em setores de mdia tecnologia, como motores, mquinas industriais,

    indstrias de processamento, com exceo parcial das articuladas com o petrleo, eo mesmo nas indstrias de baixa tecnologia, como txtil, vesturio e na indstria de

    31. Ver Alves (2011).

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    alimentos. A modernizao ocorrida nos ltimos anos em alguma destas atividadesse deu graas ao ingresso de investimento externo, especialmente da Alemanha, evoltado essencialmente para o mercado interno.

    Os gastos da Rssia com Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), cerca de 1,1%do PIB, so inferiores ao de muitos pases de renda mdia: a participao dossetores intensivos em alta tecnologia de apenas 10,5% do PIB (FUJIA, 2009),e a difuso da internet e da moderna infraestrutura de comunicaes limita-se smaiores cidades.

    Assim, a atualizao tecnolgica da indstria russa e de sua infraestrutura32se tornou um crescente consenso e objeto de polticas industriais iniciada em2007 pelo Ministrio de Desenvolvimento e Comrcio Exterior.33A estratgiaexplicitamente manifesta no documento do Ministrio do DesenvolvimentoEconmico e Comrcio centrada na atualizao e no catch-up tecnolgico,visando a uma estratgia inovadora autnoma34de modo a alterar de forma subs-tancial a insero internacional da economia russa na direo dos setores em altaem tecnologia.

    As possibilidades desta estratgia de diversificao de exportaes e catch-uptecnolgico encontram formidveis desafios industriais, organizacionais e pol-ticos.35O primeiro, diz respeito modernizao da tecnologia militar e a umaquesto peculiar e histrica da Rssia (a sua inabilidade de difundir a tecnologiamilitar para as atividades industriais); o segundo, liderana das empresas estataise s relaes com o investimento direto estrangeiro; e o terceiro, conquista demercados externos.

    Os principais esforos russos de modernizao tecnolgica tm sido catali-sados para as indstrias relacionados com o complexo industrial-militar por meiodas holdingsestatais, como a Rosoboronexport e a mais recente United AircraftCorporation, comentadas anteriormente. Foram ainda criadas novas estatais na

    construo naval (United Shipbuilding Corporation USC), na indstria nuclear(Rosaton) e em mquinas (Rostekhnologii) (FUJIA, 2009).

    O desenvolvimento destas atividades, em particular a aviao, que constituiem todo mundo uma indstria-chave de alta tecnologia isto , uma indstriacom grande potencial de modernizao sobre outras indstrias poderia constituir

    32. Como reconheceu o presidente Dmitry Medvedev no Frum International de Nanotecnologia, realizado em Mos-cou, em outubro de 2009.

    33. Ver Dirks e Keeling (2009). Pomeranz (2011) apresenta uma anlise detalhada da nova poltica tecnolgica.34. Este o modelo atual de catch-upasitico baseado no desenvolvimento de capacitaes tecnolgicas das firmasdomsticas, usando polticas industriais ativas sobre o comrcio, a transferncia de tecnologia, o treinamento e aseleo de investimento direto (LALL, 2000).35. Para uma discusso das distintas concepes de poltica industrial presentes hoje na Rssia ver captulo 4deste livro.

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    umprimum mbilepara a modernizao tecnolgica autnoma da indstria russa.Entretanto, o desafio atual, como no passado, ampliar os efeitos de spill overe trans-ferncia de tecnologia, e criar escalas e indstrias com grande capacidade de compe-

    tio. No passado, cada atividade era verticalmente separada e integrada, a difusode tecnologia era limitada e a pesquisa tecnolgica era toda indoors. Nos anos 1990,a reduo do oramento militar e o declnio violento dos investimentos resultaramem dois movimentos: de um lado, um relativo envelhecimento de algumas tecnolo-gias militares que estavam na fronteira tecnolgica, de outro lado, um ainda maiorisolamento da indstria militar da civil. Em relao ao primeiro movimento, emque pese o acompanhamento tecnolgico da aviao militar, o atraso reconhecidona nanotecnologia, novos materiais e eletrnica tm levado indita importao

    de equipamentos militares mais sofisticados. Em relao ao segundo movimento,um exemplo notvel foi a reduo substancial da produo de avies de passagei-ros, que se revelou obsoleta, e a grande importao de aeronaves, ao mesmo tempoque a aviao militar pde manter-se tecnologicamente atualizada. A reverso destatendncia, e o passo seguinte exportao de aeronaves civis, depende de uma novaestrutura organizacional da indstria e uma nova e atualizada cadeia de fornecedores.

    Mas a questo central das indstrias dinamizadas pelo complexo militar que a sua dinmica depende essencialmente das compras de governo na medidaem que os mercados externos so relativamente limitados e dificilmente podemse afirmar como sada persistente capaz de gerar escala para as indstrias e alte-rar a insero internacional do pas. Na primeira dcada do novo milnio, maisexatamente entre 2001 e 2008, a Rssia vendeu US$ 63 bilhes em armas, cercade 17% do total de armas vendidas no mercado mundial no perodo, afirmando--se como o segundo fornecedor, bem atrs dos Estados Unidos que venderamUS$ 155 bilhes, 41% (GRIMME, 2010). Esse valor corresponde a cerca de10% do que a Rssia vendeu no perodo de petrleo e gs. Dificilmente a Rssiapoder alterar essencialmente esta posio que se baseia integralmente na venda

    de armas para pases em desenvolvimento, particularmente para a China, a ndiae os pases do Oriente Mdio. O mercado dos pases industrializados encontra-sepraticamente fechado tendo em vista as presses e o controle dos Estados Unidose o relativo atraso tecnolgico das exportaes soviticas.

    Desse modo, os obstculos para uma estratgia de catch-up tecnolgico naRssia, de forma a alterar a sua composio de exportaes e de especializaoprodutiva, so formidveis. O que no impede, entretanto, o lanamento de umaestratgia de modernizao industrial defensiva,36baseada na construo de grandes

    36. Convm recordar que, no fim do sculo XIX, uma estratgia de modernizao industrial dirigida pelo Estado levouum grande salto em seu desenvolvimento produtivo. Esta estratgia, dirigida por Sergei Witte, ministro das Finanasda Rssia entre 1892 e 1903 e um dos principais arquitetos do grande arranque em sua industrializao, baseou-senas ferrovias, no petrleo, na qumica e na metalurgia, explorados por empresas estatais e pelo capital estrangeiro.

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    empresas pblicas37em atividades consideradas estratgicas e na atrao de capitalestrangeiro em um modelo de crescimento capitalista liderado pelo Estado. A estru-tura dos interesses na Rssia e a base poltica de poder do Estado dificilmente apon-

    tariam em um cenrio de mais concentrao do poder em torno de uma estratgialiderada pelo Estado,38centrado em uma reestruturao industrial nas atividades dealta tecnologia e produo de tecnologia proprietria nacional.

    A estratgia ora em curso, ainda que possua polticas industriais maisativas sobretudo em nichos de alta tecnologia na produo de armas e emalgumas indstrias, como a aeroespacial, e maior difuso da tecnologia de infor-mao para o conjunto da economia segue o caminho recentemente trilhado,mas procura maior diversificao produtiva. Esta depende do prosseguimento

    dos mecanismos de induo e controle macroeconmico de forma a neutralizara valorizao da taxa real de cmbio e a viabilizar a expanso sustentada dosinvestimentos e das despesas pblicas. al caminho define uma estratgia deacumulao centrada no mercado interno crescentemente internacionalizado,substituio de importaes, exportao fortemente centrada em recursosnaturais, mas com expanso de novos setores, sobretudo de mdia tecnologia.As compras governamentais sobre as indstrias do complexo militar so nestaestratgia o maior indutor dos setores de alta tecnologia.

    5 CONSIDERAES FINAIS

    Examinou-se neste captulo a dupla transio ocorrida na Rssia. A passagemna URSS de uma economia de comando e de uma potncia mundial parauma economia capitalista desregulada e politicamente subordinada e, a partir dogoverno Putin, a passagem desta para uma economia regulada e a retomada deum projeto nacional de potncia. Argumentou-se que embora os desequilbriosestruturais na economia entre agricultura e indstria e entre o setor exporta-dor e o sistema industrial e o sistema de inovao tivessem contribudo paraa primeira ruptura e transio, esta requer hipteses de natureza poltica. Argu-mentou-se que as presses americanas (no plano militar, econmico, poltico eideolgico) e o declnio do poder do Exrcito Vermelho (e da doutrina de guerra)foram essenciais para o colapso do poder poltico que se sucedeu ao programa dereformas de Gorbatchev.

    37. Deve-se considerar que estas empresas, ao contrrio do que ocorria no passado, em que se subordinavam a um

    estrito planejamento, seguem uma lgica relativamente independente, tendo em vista a grande participao dos sciosprivados nacionais e estrangeiros, que possuem interesses diversificados e estratgias de mercado.38. Em relao capacitao e burocracia do Estado, deve-se observar que, ao contrrio do passado, em que a elitetecnocrtica do Estado russo era formada por engenheiros, a atual formada por advogados, contadores, economistas(GUSTAFSON, 1999), muitos com formao no Ocidente e em geral pro-business. Como observa Segrillo nesta obra, ainfluncia de uma linha de modernizao mais liberal e menos induzida pelo Estado afirmou-se no governo Medvedev.

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    A segunda transio teve como elemento essencial a reconstruo do Estadorusso das runas deixadas por uma dcada de tratamento de choque. Esta foicaracterizada pela destruio das instituies de regulao da economia e da socie-

    dade e pela expanso violenta de processos de acumulao primitiva de capitaiscentralizados em uma poderosa oligarquia. A recomposio da economia russanas novas condies criadas a partir do novo milnio permitiu uma grande recu-perao do crescimento econmico. Este, por seu turno, ampliou imensamenteo desequilbrio estrutural entre a produtividade do setor exportador dominadoessencialmente pelo petrleo e gs e o conjunto da economia. Entretanto, omaior controle pelo pas das rendas petroleiras e do sistema financeiro permitiuampliar ainda que sem alterar essencialmente o padro de crescimento os

    impulsos do setor exportador para o conjunto da economia. A reconstituio daindstria de armamentos e as iniciativas recentes de poltica tecnolgica foramconsideradas na afirmao de um projeto de recuperao do Estado russo anco-rado em um padro de acumulao baseado na expanso e na internacionalizaodos mercados internos e na exportao de recursos naturais. A continuidade e aampliao deste projeto expansivo passa pela reconstruo das relaes econmi-cas e polticas com a CEI39e pela busca de um novo equilbrio nas relaes comos Estados Unidos.

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    39. Esta questo examinada por Adam (2011).

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    CAPTULO 2

    A RSSIA E OS PASES DA COMUNIDADE DOS ESTADOSINDEPENDENTES NO INCIO DO SCULO XXI

    Gabriel Pessin Adam*

    1 INTRODUO

    O dia 31 de dezembro de 1991 se tornou o marco formal de vrios eventoshistricos de considervel impacto no sistema internacional. Foi nessa data queo presidente Mikh