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VidasNovas

Luandino - Vidas Novas

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Literatura Lusofona

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edies 70

Vidas Novas

JOS LUANDINO VIEIRA

Ttulo: Vidas Novas

e Jos Luandino Vieira e Edies 70, 1997

Capa: Arranjo Grfico de Arcngela Marques

com base num desenho de Jos Rodrigues

Depsito legal n 113824197

ISBN: 9724409570

EDIES 70, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 1232 Esq. 1050 Lisboa Portugal

Telefs.: (01) 315 87 52 1 (01) 315 87 53

Fax: (01) 315 84 29

JOS LUANDINO VIEIRA

ESTRIAS

Y edio

edies 70

Informao sobre o livro:

Estas narrativasforam escritas de 2816 a 2817162, no Pavilho Prisional da P.I.D.E., em Luanda. Apresentadas ao concurso literrio da Casa dos Estudantes do Imprio, Lisboa, foram distinguidas com o Prmio Joo Dias, 1962, por um jri de que faziam parte, entre outros, Urbano Tavares Rodrigues, Orlando da Costa, Lilia da Fonseca, Nomia de Sousa e Carlos Ervedosa.

Para Linda e a vida nova que tem no sorriso dela.

Hablo de cosas que existen Dios me libre de nventar cosas cuando estoy cantando!

PABLO NERUDA

DinaEstes casos passaram no Santo Rosa, em Maio de 61. Dina estava l, nessa hora do fim da tarde, quase sem sol j, sentada na porta da cubata, coando as pernas. As moscas no lhe largavam na ferida, e as mos j sabiam mesmo o jeito de lhes enxotar. Pelas areias fora, como ainda a luz do dia, as pessoas voltando no servio iamse escondendo, guardar sua tristeza ou alegria nas cubatas pequenas e escuras, e nas portas e quintais os monas brincavam s. E essa tristeza que tem nos fins das tardes de Maio amarrava mais, adiantava comer na alegria que ia precisar no servio desse dia. A maisvelha j tinha

lhe avisado:

Dina! hoje ele vai vir. Menina Calegrase! Mas tambm alegrar como ento nesses dias assim, nessas horas de confuso das pessoas e das coisas, tiros dentro das noites, muitas vezes gritos de cubatas invadidas, choros e asneiras e mais tiros e depois ainda o fugir de passos, o correr de jipes com soldados de metralhadora disparando toa, nas sombras e nas luzes, nos gatos e nas

pessoas? Alegria corno ainda com esses

olhos grandes, l em cima da torre deles, de ferro com tinta de alumnio, que mijavam a

luz amarela nas areias vermelhas dos musseques, despindo cubatas, sombras boas de

cambular fregueses, dar encontro com algum que lhe queria fora desse servio dessa

velha Mabunda, sempre lhe avisando, sempre arreganhando:

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VIDAS NOVAS

Adiantou queixar voc agora j no fazes servio bem feito! No sei mesmo o que pensa na sua

cabea, menina. Um rapaz bonito ento!... E ango, como voc sabe!

Mas no, no pode se lembrar assim nessa hora que o sol escondia envergonhado da luz

amarela, parecia era azeitepalma, dos quatro olhos dos projectores desrespeitando os segredos

dos musseques. Era uma impresso que vinha de muito longe, no sabia mais como, ou mesmo

ainda nunca tinhalhe pensado, isso que era mais verdade. Essa coisa trepava, crescia parecia

era

capim com a chuva, amarravalhe no corao na hora que trabalhava e os fregueses comeavam

refilar, cinquenta escudos pagar assim para qu, dormir ento com mulher de pau e outras

coisas...

Como ela ia ainda explicar na madrinha Mabunda, esse sentir? No ia lhe querer aceitar,

certeza mesmo. Ameaava s, arreganhando s, dia inteiro a lamentar o dinheiro pouco, a

comida cara e outras coisas para lhe chatear, para lhe obrigar a

fazer o servio em condies, seno os fregueses estavam ir

embora, a culpa era dela, j se via.

Sukuama! Menina de vinte anos parece uma acabada. Se

voc queres eu vou l te ensinar ainda...

Como ia explicar ento, como? E na madrinha que ia perceber o que estava dentro dela se ela

mesmo ainda no dava encontro na verdade? Falar esse peso que ficava com a poeira dos jipes e

dos homens de metralhadora ou a raiva das berridas de toda a gente no musseque, depois do

escuro? No adiantava nada, j sabia mesmo!

A velha, xacatando seu passo antigo, passava a vida no quintal, panela e comida, no podia ainda

ver que l fora tudo est mudado agora. E mesmo que as orelhas dela ainda ouviam os gritos

das pessoas acordadas com porradas nas portas ou os berros dos homens caados a tiro, ela s

falava isso eram confuses desses rapazes bandidos, malandros, fabricantes de quirabombo, gente

que no respeitava maisvelhos.

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DINA

Enxotando nas moscas dessa ferida no p, Dina estava a

pensar, outra vez, essas coisas. A matutar nesse princpio de nojo que estava sentir

muitas vezes no servio; quando deitava com os

tropas tinha qualquer coisa dentro dela no aceitava, mesmo que nas mamas ficavam

rijas e as pernas apertavam o homem que sabia, l dentro, bem no fundo, na pele dela e

na carne dela, um bicho que no conhecia, no sabia, torciase, mexia, refilava. E o

homem depois, zangado, punha queixas na velha, e ela s muxoxava j sem mais

coragem para repetir as palavras que falava todos os dias.

A noite chegava pelo dia fora e a luz de azeitepalma cobria os risos dos monandengues

brincando, as falas das pessoas nas

portas gozando os bocados de vento, na hora que os jipes j passavam devagar, a

espreitar.

Dina, a se coar, pensava como ia fazer mesmo nessa noite. Talvez ele ia vir e ela j

no queria mais dele, s mesmo a velha que lhe obrigava, no corpo no aceitava mais

esse cheiro de sola, de suor da tropa que ele vestia sempre. Sem querer mesmo, na

cabea comeava pensar essas pessoas estendidas na areia, no capim, nos primeiros dias

da confuso, bocas abertas para o cu da manh, olhos a mirarem as nuvens que j no

viam, o sangue vermelho a ficar tambm negro, junto com a areia. 0 bicho que lhe roa

crescia nessas horas. Nessas horas mesmo lembrava sua vida, no antigamente no estava

pensar ainda, s quem lhe mandava era madrinha Mabunda, as farras e os midos

suinguistas.

E, nesse acabar da tarde, a tristeza era mais. No seu nariz j o

cheiro da tropa, mesmo que ele no vinha ela j lhe via, essa

mania de donodetudo, essa maneira de pendurar aquele fato pintado parecia era

sardo, as gargalhadas com a velha Mabunda, sempre agradecendo, sempre

desculpando:

Sabe, ela anda doente ! Parece lhe puseram feitio, no sei! Ento, m como o vento

que comeava assobiar com fora nos

zincos soltos, nas mulembas, nas mandioqueiras, vida dela de

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VIDAS NOVAS

menina apareceu nessas lgrimas que no queria, no gostava. As mos enxotaram nas

moscas e passearam nas mamas j secas e

cadas, lembrando Bernardo, as coisas antigas, a vigilncia da velha quando ela estava

mida, no dexandolhe de noite nas

brincadeiras da rua, avisando:

Quando voc vai ter dezasseis anos, j sabe, minha filha! S Tonho te quer na cama

dele. Prometeu na tua felicidade! Juzo, menina! Um bom branco, como ele, te pode dar

mesmo casamento!

Era a raiva que estava chegar na boca junto no vmito do

peixe da tarde, essa dor de lhe crescerem como galinha, engordarem lhe para comer na

festa. No era ainda raiva na velha, no, era raiva na vida, raiva de tudo. Madrinha

Mabunda lhe gostava de pequenininha, lhe criara ainda de vestido e comida, seno no

sabia como ia viver assim, cinco anos, sozinha, no

musseque, naquele dia que ela queria mas no podia mais se esquecen

Era domingo de sol, manh bonita de 43 ou 44, no lembra mais, os tropas correram

nos capins disparando nas pessoas e os carros da polcia e dos batalhes adiantaram

derrubar mesmo cubatas. Tinha cinco anos e no chorou. A cubata caiu metade s,

mam ficou em baixo da parede e na noite quente desse dia, deitada na esteira de nga

Mabunda, lhe contaram tambm o pai estava deitado, dormia com um grande buraco no

peito, nas areias

da misso de S. Paulo.

A lembrana desse dia antigo, os gritos de agora nesses tempos outra vez maus,

barulhos de botas e jipes e tiros no meio da noite, essas luzes quilebas sem respeito nas

estrelas bonitas de sempre, moscas comendo na ferida velha que no queria se curar, a

voz usada de nga Mabunda arreganhando do fundo do quintal, tudo isso enchelhe de

vergonha na cara, de raiva, dessa vontade de querer saber, de matar essa mania a lhe

comer por dentro, pondolhe fria, quieta, mesmo quando as mos dos homens sabem

esfregar no corpo usado de muitas noites de servio.

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DINA

0 sol j tinha fugido todo, lhe deram berrida nas estrelas invejosas e a lua nasceu,

pelejando nas nuvens para l do Rangel. Um silncio mais grosso caiu, mesmo com o

roncar dos jipes teimosos, em cima das cubatas escondidas e encostadas nas pequenas

ruas e quintais. Pela cara da noite corre um vento mau que arreganha as chapas de

zinco e levanta papis e folhas pelo musseque fora. E nos ps desse vento que chega o

barulho da confuso, de gritos de agarra, agarra, das portas se fecharem com barulho

e mais choros e gritos de monandengues arrancados nas suas brincadeiras, escondidos

dentro das cubatas. Pelo areal, esquivando entre os quintais, o homem corre, e tiros,

ningum que sabe mesmo onde esto sair, passam a cantar na boca do escuro.

um velho, e os olhos grossos do medo brilham parece brasas, corre e tropea,

cansado, e a voz rouca e medrosa fica atrs, deixa suas palavras soltas no meio das

cubatas:

No sou eu! No sou eu! Na zuna, atrs dele, correm os perseguidores e sujam as

sombras nas paredes assustadas, berram e gritam parece festa e

tem mesmo outra vez tiros de pistola que vo bater pelas paredes.

De p, a tremer, as mos na frente da cara, o velho tapa s os

olhos e nem quer mais se esquivar dos socos, dos pontaps, as

porradas de paus e pedras que todos esto a lhe pr, com grandes gritos. Grita, grita,

parece maluco, pedindo socorro, jurando:

No sou eu! No sou eu! Juro! No me matem... Asneiras, o barulho do ar cansado

nos peitos soprando com fora da corrida, a raiva de bater, o medo, tudo sai,

aproveitando na esquiva que a noite d e rebenta o velho negro encostado na parede, se

deixando escorregar, pisado no cho.

Na hora que Dina correu na confuso no pensou ainda nada. Sentiu s o bicho dentro

dela a roer, parecido quando deitava no servio com os tropas e os outros, s a raiva

que saa no corao, trepava na cabea, e se atirou no meio do monte de pessoas.

As unhas, os socos, os pontaps da mulher espantaramlhes um bocado, mas, num

instante mesmo, as mos fortes lhe

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VIDAS NOVAS

agarraram, brutas, e a areia vermelha lhe entrou na boca, nos

olhos, sentiu o corpo pisado, muitos ps em cima dela, ainda o

chorar do velho, as gargalhadas e, quando a cabea parecia ia lhe fugir, um barulho de

ps a correr e chicotadas de tiros outra vez:

na rua vermelha do musseque, buzinando raivoso, o carro corria

com seu grito atrs:

Polcia! Fechou todas janelas e portas, amarrou raivas nos coraes,

ps choros de lgrimas nos olhos. S mesmo Dina que ficou, levantando, sacudindo na

poeira, no barro da boca e dos olhos, com essa dor grande que lhe dava alegria no

mesmo tempo, a bater no peito pisado pelos sapatos. 0 carro limpou o escuro com os

faris e, na luz amarela que varreu o cho, o velho negro nasceu, os dentes

arreganhados para o cu, a boca torcida para trs despejando sangue em cima dos

cabelos brancos e a camisa

aberta, mostrando o vermelho a correr no buraco do peito com a

picareta sem cabo, espetada e suja.

Maluca de dor, xnguilando, a berrar, dentes para morder, Dina correu nos polcias,

pelejando, insultando:

Mataramlhe! Eu vi, mataramlhe i Filhos da puta! Ento, em cima dos seus olhos,

uma noite mais negra que a

noite que corria lhe tapou nas estrelas e o cassetete arrancoulhe para longe, para o

tempo onde nada lembra.

Apalpando a cabea magoada, Dina sentia bem os saltos do carro, seguindo pelas

avenidas fora. Mas, dentro do corpo dela, aquele bicho tinha parado de roer. S nos

olhos a picareta plantada no peito do velho no saa mais. A ficou a fazer companhia

ao pai cado no capim, com buraco de bala, aos choros de mani falecendo em baixo da

cubata. Mas uni pequeno riso, teimoso como essa estrela que lhe mira no cu negro,

acorda na

is

DINA

cara dela, larga e inchada. Rezando parecia era domingo na

misso, fechou os olhos e falou baixinho:

Nunca mais! Juro! Com estes gajos, nunca mais! E como assim o trovo do princpio

da chuva, deixou sair num

berro grande toda a raiva que lhe enchia na vida:

Nunca mais! Juro!

0 polcia ao lado do chofer, sem mesmo se mexer, falou s:

T xalada, a gaja! E estava. Xalada e feliz dessa coisa nova a disparar dentro dela.

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A espera do luar

Joo Matias Kangatu andava devagarinho, macio, sobre a areia amarela muito molhada

da mar da tarde, agarrando com fora o pacote contra o peito largo de pescador.

A noite, no princpio ainda, no estava fria. Agosto j tinha chegado e era mesmo a lua

desse dia que ia dar berrida no

cacimbo cinzento que pinta de triste as guas azuis e verdes. Os ps largos nos quedes

faziam chorar a areia e a noite espreitava o andar do homem com os seus olhos

pequenos e brilhantes das janelas das estrelas.

No lado direito o mar estava falar, mas Joo Matias no lhe ligava, habituado dessa

conversa de sempre, desde pequeninho no

dongo at agora na traineira de mestre Rufino, da ilha do Cabo. As palavras pequenas e

mansas vinham na boca das guas fazer barulho na areia e o vento, em cima de tudo,

dicanzava nos coqueiros l longe, na Pescaria.

0 barulho dos passos dele fez ainda Kangatu assobiar e apertar mais esse embrulho

pequeno, de papel alcatro, bem amarrado com fio e acabado com esse n, s ele

mesmo sabia lhe desamarrar.

No era a fala do mar que podialhe mesmo distrair nessa hora, porque ali,

amachucando a areia e espiando com os olhos acostumados as guas quietas da Samba,

ele no sentia outra coisa, era s o corao aos pulos de alegria e medo no servio que

ia fazer.

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VIDAS NOVAS

A pescaria piscava ainda l longe as luzes pequenas. No meio das folhas e dos paus e

avanando devagar pela fita da areia, Joo Matias lembrava as palavras do amigo, no

Ambrizete:

No dongo! Espera l mesmo. Mas no esquece o dia, veja l! Ainda adiantara escrever

no bloco, mas o amigo do Ambrizete rasgou logo e avisoulhe, com bondade:

Nunca escreve essas coisas, Kangatu! Lembrava bem como tinha querido ainda

explicar, mas o

sorriso e as palavras verdadeiras do amigo ajudaramlhe logo:

Eu sei! a primeira vez! Compadre Zuza faloume que voce dos bons!

E depois, sem mais palavras, vestiuse com o escuro dessa noite e deixoulhe l na ponte

com o pacote. Nem mesmo nome, nem nada. S essa fala de compadre Zuza para lhe

mostrar ainda que confiava era porque o velho maquinista tinhalhe mandado.

A conversa tinha comeado mesmo nessas noites de pesca, mar dentro, quando chegava

na hora do turno descansar e compadre Zuza vinha sempre junto dele xingarlhe essa

vida na loja do branco Karnuanhu, do vinho, essas pelejas sempre l na

sanzala e outros casos que o velho falava ele devia ter mas vergonha mesmo.

Joo Matias ouvia, nessas noites, calado ou acabando por irritar como ele sabia o velho

no gostava: miar como gato que anda nos telhados cambulando as gatas. Compadre

lamentava, disparatavalhe, saa a resmungar ameaas para esses rapazes perdidos, no

sabia mesmo para que viviam se no pensavam com a cabea.

Como o barulho do mar, caminhando agora mais devagar e espreitando sempre, as falas

do velho chegavamlhe nas orelhas, obrigavamlhe a sorrir desses meses de luta de gato

e rato, compadre a convencerlhe e ele, talvez era mesmo s para lhe aborrecer, a fazer

cada dia pior.

Mas o dia bom chegara. Sempre que lhe lembrava, Joo Matias no esquecia mais a

cara velha do sal, do vento, do mar,

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ESPERA DO LUAR

e o riso cabobo de compadre Zuza na Administrao, pagando a multa na conta dele. E

a vergonha que lhe agarrou mesmo, quando espreitou nos olhos do velho maquinista.

Tinha sol e cu azul, a traineira saa mesmo nessa tarde e j dois dias que estava ali

preso, levando com a porrada dos cipaios de manh, comendo funji de fuba podre, sem

dinheiro ainda para pagar a multa de beber.

E porqu ento? S Kamuanhu andavalhe perseguir, querialhe pr na rua da quitanda

e aproveitou mesmo esse dia na volta da pesca para chamar o carro da polcia para lhe

levar. Verdade que nem tinha sentido nada, a barriga cheia de cerveja e vinho, o corpo

magoado da porrada com o cangundo do empregado...

Todas essas coisas j eram velhas tambm, muito tempo esses dois meses novos que

tinham sado na boca de compadre Zuza, falando pelas ruas da cidade cheia de gente,

caminho do cais.

Possa, Kangatu! Assim no... voce pensa eu seu pai? Essa j a terceira vez que lhe

tiro na esquadra. Rapaz como voc, no tem mais juzo!

Devagarinho, como a mar a subir na muralha, a bater sempre as ondas pequenas das

palavras, o velho foi metendo a estopa e o alcatro, calafetando os rombos na cabea de

Joo Matias, explicando, zangado ou feliz, espiando o resultado com os olhos pequenos.

_nessa hora mesmo os seus irmos esto morrer parece co, Joo Matias!

Joo Matias ele s chamavalhe quando estava muito zangado ou muito satisfeito e esse

nome assim metialhe vergonha nos olhos e no corao.

_um rapaz que sabe ler e escrever e a cabea dele no pensa, como ento? 0 qu voc

pensa a sua idade serve para qu? Possa! Dinheiro que voc ganha s para beber e

para gastar com as mulheres e com as prendas, Kangatu? E o seu irmo a morrer, a lhe

prenderem todos os dias, caandolhe como pacassa, de jipe e farolim?

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VIDAS NOVAS

Zangado com as falas dele, cuspia, limpava os beios grossos na manga da camisa e

continuava, teimoso, teimoso como o mar a comer nas traineiras velhas apodrecendo

nas praias.

Joo Matias Kangatu, avanando, ria. Esse velho Zuza! Verdade que quando estava

novo era dono de muitas mulheres. Tambm, com essa lngua dele!

Da pescaria j perto, um barulho soltouse por cima das guas e as luzes da traineira

endireitaram no caminho da Kurimba.

0 rudo sempre o mesmo obrigou Kangatu. a segurlhe com os

olhos, a estudar a mareta pela dana das luzes.

A noite ia ficando tarde por cima da cabea de Joo Matias, naquela hora j parado,

espiando nas guas, mirando a figura preta do dongo quieto, amarrado perto da praia.

Largou o olhar at onde conseguia ver e no avistou mais nenhum dongo. S aquele ali,

grande e escuro, baloiavase nas costas das ondas pequenas. L atrs, na estradade

alcatro, gritavam s vezes os carros na

zuna, e, sem querer mesmo, nessas horas Joo Matias abaixava, queria ficar mais

pequeno junto com a areia.

Se sentou na frente do mar. 0 pacote ficava debaixo do mataco, a servir ainda de

cadeira, e ento meteu com jeito a mo na camisa, tirou o cigarro de fumar. Mas a

sabedoria de compadre Zuza estava ali a vigiarlhe:

Kangatu, voc vejas l! Cuidado ! Nesses dias o perigo, voc sabe s!

E tinha mesmo essa amizade que o velho davalhe agora naquelas palavras que queria

falar sem mostrar pena.

Quando voc chega l, espera no dongo. Melhor mesmo deitar l dentro e esperar.

No esquece, o rapaz na praia vai miar...

E riu, mostrando a boca caboba, satisfeito, na cara de burro, zangado, de Joo Matias,

Porqu ento miar, compadre Zuza?

Eli! Eli! Assim eu sei a certeza voc vai lhe conhecer!

0 pacote tinha vindo mesmo de longe, o amigo do Ambrizete

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ESPERA DO LUAR

estava esperar algum para lhe enviar em Luanda, e velho Zuza, nesse ms, pensou melhor

mesmo para corrigir o rapaz era dar lhe ainda um servio. Mau, ele no era. Tinha suas manias,

pensava s com a cabea dele; mas na hora de refilar com mestre Rufino, pedir abono ou mais

descanso em terra, estava sempre na frente da confuso. 0 melhor era mesmo deixar dessas

conversas de gato e rato e apanharlhe na ratoeira. Da RLD.E. ele no era, isso jurava pelo

sangue de Cristo, e depois queralhe mesmo, parecia era filho dele.

J mesmo na terra de Luanda, velho Zuza ainda pensou mais urna vez, antes de lhe mandar na

Samba. Foi ainda Artur quem lhe obrigou:

Se j lhe experimentaste e o rapaz aguenta, melhor acabar o servio. Voc sabe bem a gente

agora est pouca, Chico lhe prenderam e o melhor mesmo esse caso acabar com a mesma

pessoa at no fim.

Velho Zuza coou a cabea a pensar ainda bem, disse que sim, os dois acabaram a deciso na

loja, com meio litro sade do rapaz.

Isso mesmo tinhalhe contado, e essas palavras Kangatu lembrava outra vez, sentado ali. Sabia

bem o vento ainda um pouco fresco a encher a camisa e o corpo de sal, o molhado da areia a

brincar com os ps e aquele calor do fumo do cigarro, o fumo branco a subir no preto da noite,

custava a se ver. Gozou as palavras de compadre Zuza e falou por ele:

Sukuama! Esse velho tem cuidado de mais! Nessa hora ele devia estar mesmo era ainda dentro

do dongo, esperar o companheiro que vinha lhe buscar no pacote. Mas o cu estava bonito,

furado de estrelas, o mar falava macio ali pertinho, o dongo balouando fazia barulho de dormir.

L adiante, nas folhas dos coqueiros da pescaria, o vento tocava msica. 0 quente do cigarro era

camisola na noite de Agosto, fugindo no cacimbo.

Na larga estrada de alcatro que corre no Kuanza, os carros continuavam passar, sempre com

depressa, as luzes a rasgar o

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VIDAS NOVAS

pano negro da noite. A lua ia nascer grande nesse dia, tinhalhe avisado compadre

Zuza, e, se o rapaz no aparecesse a lhe buscar o pacote antes de ele acordar, o melhor

era ainda deixar na canoa, debaixo da rede. Era um perigo, mas o pior era ainda voltar

na cidade, de noite, com um pacote, agora que os jipes corriam pelas avenidas, com

fome de presos.

0 medo que lhe atacara quando saiu no cais de cabotagem amarroulhe outra vez. 0

corao comeou bater no peito parecia ngoma. Medo de pelejar ele no tinha. Na luta

no virava a cara, mas assim na noite, sozinho, com esse pacote que ele no sabia o que

estava l dentro e demais o perigo dessa gente que ele sabia, esperando algum que no

conhecia, era diferente mesmo. Cada carro que adiantava passar, agarrava o pacote com

fora e abria os olhos para o escuro da estrada.

L para cima, atrs do morro, o cu j tinha comeado a ficar claro, mostrando que a

lua preparavase para colorir toda a terra com a sua luz branca, para abrir uma estrada

pelo mar at no Musulu e mesmo para l das guas dessa ilha verde. Na pescaria as

luzes da ponte, junto ao mar, j tinhamse apagado e nenhum barulho de ps pela areia

chegava no vento que soprava. 0 frio tinha fugido mais um bocado e o vento era mais

pequeno e estava bom, assim deitado, deixando os olhos perderemse na cacimba negra

do cu, onde s vezes as estrelas corriam e se afogavam.

Compadre Zuza tinhalhe ensinado essas luzes eram muitos sis e, muitas vezes, essas

luzes tinham tambm outras terras como essa em que a gente vivia, e Joo Matias agora

deixava escorregar o pensamento para essas coisas que ele gostava, esse

sentir que queria lhe agarrar no corao, de estar sozinho numa

areia molhada, duma bola pequenina, girando na roda de uma pequena estrela, dum

grande, grande mar negro onde que brilham muitas terras mais, como o sol e a lua.

Mas no foi a luz da lua, ainda escondida no morro, que lhe bateu no corpo, enchendo

o desse medo que os pensamentos, agasalhados pelo barulho do mar, tinham mesmo

afogado. No

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ESPERA DO LUAR

escuro, com as luzes do carro a apagar@ chegou um riso ma, de mulher.

andro

s COM o pacote agarrado junto do corpo, Joo Matias deitouose com a barriga e

sentiu o sangue a correr depressa@ ombros esticados para a frente, querendo espiar,

saber. como jindungo, 0 corao a bater sobre a arei quente e picante

E c om fora, com vergonh a a cre s cer n a cara, o avvi e ramveolzh sa, f i a e velha

de compadre Zuza:

No fica na praia, Kangatu! Vai no dongo! J no podia, j no tinha mais tempo de

correr aquele bocado de areia, entrar no mar sem fazer barulho de chamar as orelhas

das pessoas, ele sentia os passos a chegar, a arrastar devagarinho, com vozes baixas e

risos pelo areal adiante.

A rapariga ria parecia era maluca e quis ainda sair nas mos do homem s para lhe

xingar, correu pela praia levantando o vestido branco que punha na noite e nos olhos de

Kangatu uma ndoa de luz, a correr, a correr...

Ai! Um negro! A boca de riso da mulher se calou nesse grito grande, assustado,

tapando o barulho do mar a roar na areia. Sem pensar ainda em nada, Joo Matias

Kangatu levantou e correu para o mar. As mos estavam agarradas pareciam eram ns

de marinheiro, o pacote junto no corpo que chocou com as guas, com fora, molhando

se e salpicandolhe, metendo em cima do frio do medo ainda esse frio do cacimbo, que

o mar guardava.

Mas no conseguiu de chegar dentro do dongo. Quando estendeu a mo e atirou com o

Pacote para o fundo da canoa, o tiro ps uma chapada seca na cara da noite e um calor

maior que o sol de Fevereiro mordeulhe nas costas e comeu no peito de Joo Matias,

enquanto uma gua quente tambm e doce como abafado subialhe na boca. Com a

outra mo tinha agarrado na borda e, Procurando parecia cego, a sentir ainda o calor

comear a descer devagar, a arrefecer e morrer no corpo todo molhado e frio da gua

quieta, com pena. deu encontro com o pacote,

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VIDAS NOVAS

empurroulhe devagar para baixo da rede. Cada vez que mexia, uma dor grande trazia

lhe mais estrelas a brincar diante dos olhos, e na sua cabea s as palavras de Zuza

que batiam, batiam...

No fica na praia, Kangatu! No meio do frio que adiantava embrulharlhe, lembrou

ainda que era s para esperar at na hora da lua cheia ou ento deixar e voltar.

Sorriu e fez fora para agarrarse com jeito mas as mos j no prestavam, no

seguravam, os olhos parecia o cacmbo antigo estava a cair assim toa nesse ms de

Agosto e parecia tambm as orelhas sentiam longe, muito longe, tapando o xaxualho

dos coqueiros da pescaria e do chorar do mar na praia amarela, o

barulho assustado dum carro, arrancando com um grito de pneus, no alcatro.

Ento, nessa hora mesmo, desistiu esperar o companheiro ou o luar. Deixouse ir no

fundo, com um barulho macio para no magoar as guas e os peixes do nosso mar.

(29662)

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Passava sempre assim, sextafeira de manh. E mesmo se era como essa, de chuva

fininha a furar a gente, o grupo de mulheres segurando as imbambas para a famlia no

deixava de sentar ali no cho, na frente da porta grande, esperando a vez de entregar e

receber essas coisas que falavam a pessoa de cada qual ainda estava viver l dentro

daqueles muros amarelos, com canos de metralhadoras a espreitar nas mos dos polcias

de capacete de ao.

Mas mesmo que tinha ainda muitas pessoas e at os monas que lhes traziam nas costas

e nas mos, o barulho era sempre pouco. Alegria no tinha ali, os olhos novos e velhos

estavam esquivados atrs desse fumo cinzento de chuva magrinha, molhando tudo at

no corao. S os monandengues, sem perceber nada, s vezes

riam, punham brincadeiras ou berravam nas costas e nos braos das mes, reclamando a

comida ou chorando de dor.

Cada vez que a porta abria e uma pessoa adiantava entregar as

coisas no rapaz preso que ajudava o guarda, os olhos todos espreitavam l dentro as

janelas pequenas e as portas das grades, onde muitas vezes quem tinha sorte dava

encontro com olhos gulosos da vida a espreitar ou fazer sinais mesmo. A pessoa que lhe

recebiam as roupas e as comidas ficava ainda a esperar para lhe chamarem outra vez, na

vaza dela, receber embora a roupa suja.

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VIDAS NOVAS

SEXTAFEIRA

A chuva j tinha acabado mesmo nessa hora que o txi parou na frente da gente

espalhada por ali. Nela desceu no meio do monte de mulheres sentadas ou encostadas,

catando os monas, dando de mamar ou olhandose umas nas outras com os olhos vazios

e quietos, pondo s palavras pequenas e baixas.

Atrapalhada, a carteira branca numa mo e o saco das coisas na outra, Nela mirava sem

perceber o que passava. Era ainda a primeira vez que vinha nesse stio, nesse dia de

entrega das roupas, como lhe avisaram quando tinha telefonado no director da cadeia.

Andou devagar, sentindo a areia a entrar nos sapatos de salto e essa terra vermelha, e a

admirao da gente assim por ali atirada irritoulhe, fez subir uma raiva que no sabia

ainda se era dela

mesmo, se era de quem. Furou, com jeito, a fila de mulheres, pedindo licena, e andou

para a porta, mas, nessa hora, uma

mida levantou a rir e veio lhe chocar nas pernas, arrancandolhe da mo o saco que se

abriu pela areia vermelha, espalhando as

coisas que tinha.

Um sopro de admirao saiu do monte de pessoas e uma

mulher de panos correu e agarrou a criana. Pondo os olhos velhos na cara de Nela,

falou tirando a areia na boca da mida:

Desculpa s, menina! Eu apanho mesmo as laranjas! A voz dela parecia no era dos

olhos nem do corpo em baixo dos panos, velho, seco e estragado pelo trabalho da vida.

Tinha uma fala macia e nova, parecia era cantiga, e Nela ainda no tinha ouvido falar

dessa maneira assim.

Abaixando depressa, comeou apanhar as laranjas para o saco,

e a rapariga, quieta e espantada, no sabia mesmo o que ia fazer. S no fim j, abaixou

tambm e disse, a voz a sair escondida, envergonhada dos olhos mirandolhe o vestido,

os sapatos, a carteira:

Obrigada! No se incomode... Mas a palavra senhora prendeu na garganta e isso

que fezlhe ficar encarnada, a tremer, sentindo outra vez a raiva de dantes,

que lhe atacava sempre, sem perdo. As mos arranharam a areia para apanhar a fruta,

mas a mulher de panos pegoulhe mesmo no

pulso, ofendida, querendolhe obrigar a no fazer, pedindo:

Deixa ainda, menina! Eu apanho. Um sorriso pequeno, Nela no lhe percebeu se

estava bom se era ainda a fazer pouco, espreitou, e a mulher continuou falar:

lh! Uma menina bonita assim, a fazer servio... A raiva cresceulhe mais com a dor da

vergonha dentro do peito, sentindo todos os olhos colados no corpo dela, nos

movimentos, nos seus jeitos, e um cuspo amargo encheu a boca de Nela, dando berrida

nas palavras de desculpa que queriam ainda sair.

Agarrando no saco, chegouse no muro. Queria mesmo descansar, deixar sair tudo que

estava sentir dentro dela, do vestido, das suas coisas que os olhos das mulheres de panos

miravam com curiosidade. Mas a me no lhe largou logo, adiantou ainda endireitar o

vestido curto da filha e, enxotandolhe na direco de Nela, faloulhe na orelha:

Vai ainda na menina bonita pedir desculpa.

0 riso triste e envergonhado da criana e a cara satisfeita da me sacudindo o pano no

ombro e tapando a cabea amarraram

Nela, fizeram chegar na mesma hora as palavras de Z Pedro, apareceramlhe redondas,

desenhadas, parecia ele estava ali mesmo:

Cuidado, Nela! 0 perigo o paternalismo! So nossos

iguais, no so crianas...

Ficou quieta, os braos abaixados, sem saber mesmo o que ia fazer ento, enquanto a

criana, os olhos metidos na areia, falava de cor a humilhao que no percebia. A me

levoulhe depois para a fila e sentouse outra vez no lugar dela, junto do embrulho de

pano, a olhar, de dentro dos olhos velhos, a rapariga mulata encostada no muro.

0 sol rasgava os trapos de nuvens e batia~lhe na cara, mas Nela no deixava os olhos

das mulheres que lhe miravam, as

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35

VIDAS NOVAS

caras delas, quietas e paradas, no tinham idade. A vida tinha posto tatuagens em todas,

riscos que lhes faziam iguais, feitos pelo mesmo artista, mas tambm cada qual era

diferente, uma s

fora naquele grupo. Sentadas ou abaixadas, caladas nas mos e nos olhos, mesmo assim

saa urna impresso do monte, uma

coragem que afogava Nela, agarrada de repente na armadilha dos

seus pensamentos, pelejando com aquelas vidas.

Sentindo sempre os olhos no corpo dela e o corao a bater com fora, devagar, sem

poder colar os bocados das ideias que

fugiam da cabea, tocou a campainha.

Toda a gente ali estava de manh cedinho, esperando com pacincia a hora de receber e

entregar as nicas notcias autorizadas das pessoas que gostavam, essa roupa que lhes

trazia um

corpo, um cheiro conhecidos, muitas vezes mesmo um sangue que no conheciam mas

adiantavam adivinhar. E Nela tinha chegado, tinha tocado a campainha e sabia, de

certeza, o guarda ia lhe abrir a porta, ia lhe receber as coisas, entregar a roupa logo

nessa hora.

Viuse suja, m, nos olhos das mulheres sentadas e caladas.

Um arrepio andoulhe nas costas quando pensou isto e encostou na parede, para no

cair. 0 sol j quente, o buraco no meio das coisas que pensava e das coisas que fazia,

estava nu, viulhe bem nessa hora, sem sombras nem esquivas, com a luz que espreitava

nas ltimas nuvens de chuva e lhe batia em cheio. E foi mesmo a recordao de Z

Pedro que lhe agarrou as lgrimas ainda dentro dos olhos. Nela mordeu os lbios para

responder no

homem que lhe perguntava:

No! No fui eu que toquei...

0 guarda ficou banzo a olhar, mas depois, zangado, bateu com fora o postigo. Uma paz

serena, crescida dessas palavras, uma

alegria boa pela coragem da recusa, o amor de repente pelos braos de Z Pedro para

lhe consolar, para proteger no sabia de

qu, furaram por todos os lados o corpo novo e forte e sentiu a

certeza que nada podia fazer para matar o sorriso que lhe rebentou nos lbios grossos e

vermelhos.

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SEXTAFEIRA

Os olhos taparamse do sol com um cacimbo brilhante e no queria ainda pensar que

era choro. Mas atravs dessa luz de gua viu, do outro lado da fila, a mulher de panos

que sorrialhe outra vez. E esse sorriso era o sol bom que lhe colava no muro, parecia

era a gua fresca da chuva que tinha cado para lhe lavar a

vergonha do princpio, para lhe estender as mos na direco da cara da criana, na sua

frente, as mos a puxar a bainha do vestido de chita, pedindo com os olhos cheios de

esperteza:

Me d mbora uma laranja! A me levantou e chegou com depressa, meio zangada,

mas

Nela j tinha dado a fruta. Abaixada, perguntava saber:

Como te chamas?

Madiquita, m'nha senhora! respondeu a me. Desculpa ainda essas midas...

Deixe l! Possolhe oferecer a laranja, senhora? A a palavra senhora saiu sem fazer

fora, devagar, nova, com um barulho que Nela nunca lhe tinha sentido nas orelhas

tapadas pelo cabelo claro, desfrisado. Espantada e satisfeita, a me olhavalhe sem

poder falar uma palavra.

Queres que eu descasque? D c! Comeou a tirar a casca da laranja, sorrindo, sem

saber ainda porqu, para a mulher de panos na sua frente, sentindo que esse

trabalho lhe ajudava mais a dar berrida na vergonha, no medo, nessa teimosia que

sempre fazialhe resistir com Z Pedro quando, cheio de amor e delicadeza, lhe

adiantava falar dessa luta do povo, dessa luta da terra, da vida dele e dela nessa luta. A

mesma coisa teimosa que no lhe largava nem mesmo quando ele zangava e falava alto,

com o amor todo na voz, nessa voz que mostrava bem que lhe queria ainda melhor para

a vida nova que falava:

No tens a culpa, Nela! 0 teu pai ... o teu pai, esse sim! Esconderte a verdade da

tua me negra ... esconderte de ti num

colgio de madres... encheremte a cabea com essas manias todas, esses defeitos da tua

classe...

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VIDAS NOVAS

SEXTAFEIRA

E o gesto que ele tinha arranjado para lhe irritar nessas horas, as palavras que gostava

de lhe gritar, para sentir menos culpa:

A tua classe, tambm! lbios a tremer, Nos olhos de Madiquita se

desenhavam os sem cor, os olhos parados de Z pedro quando Nela falava estas

goavani l no fundo do corao, tOcavam no palavras que lhe ma9

onder, de repente que tinha mais fraqueza, lhe obrigavam a resp

mais velho e triste: o me libertei s

Desculpa, Nela. Um dia eu mostro que ri corri as ideias! Juro que mostro, vais ver!

E vinha ento o amor com os perdes e promessas e as conversas compridas, cada qual

querendo matar, vencer esse bicho velho das manias que no queria sair.

Madiquita chupava com gosto a laranja e Nela deu na me a outra inetade, ouvindo Z

Pedro ali, ela lhe via nessa manh

quando foram lhe buscar e lhe abraou, calmo e sorrindo,

subindolhe para cima da orelha o teimoso cabelo claro desfrisado, corno era sua mania,

falando com o corao que s ela mesmo que sentiu batocar nessa hora, debaixo da

camisa caqui:

Chegou o dia, querida... Limpando os dedos, recordava e sorria, irias tinha uma dor

grande por dentro do sorriso. A mulher de panos, na frente dela,

ria tambm com os olhos um pouco espantados, no percebendo ainda essa rapariga

que tinha gua e fogo nos olhos na mesma

hora. Nela interrompeu o silncio:

Como se chama?

Incia, menina!

No me chame menina, don'lncia!

lh! Vou lhe chamar corno ento? No menina? Nela quis ainda rir mas falou desse

calor que sentia, satisfeita, na barriga, a crescer todas as horas, a semente de Z Pedro

a

mexer dentro do corpo dela. Nas palavras que falava chegou o

amor do homem, do companheiro assim bom como era e tinha

lhe visto h trs dias, sereno, a felicidade na cara dele, na frente

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dos polcias envergonhados, falandolhe na orelha, uma voz quente que no tinhalhe

largado mais:

Coragem, querida. Isto no nada, lembrate sempreDon'Incia tinha calado a boca

com a tristeza dos olhos de Nela e fazia festas em Madiquita agarrada no pano. No

cho, as outras mulheres estavam outra vez distradas nas vidas delas e Nela pensou que

no tinha o direito de esconder as suas lgrimas na frente daquela mulher. Ento ps os

olhos cheios de gua na cara da velha don'lncia e fez fora para rir.

0 sol subindo nas dez horas batialhe, guloso, nos cabelos brilhando parecia era ouro, as

lgrimas quentes correram num instante na cara de menina e o brao sentiu ento

agarrarlhe uma

mo dura e mais quente que o sol no cu, que a saudade dentro dela, derrotando a

tristeza naquela hora.

Mam Naxa, segurandolhe como filha dela, encostoulhe devagarinho na sombra do

muro e punha baixinho palavras boas: _ Menina sai ainda no sol. Precisa no ficar

doente para o

tempo mau aguentar menos a passar...

Nela limpou os olhos, envergonhada. Mam Naxa encostou o

saco no muro e continuou falar com essa voz nova e quieta que Nela sentia puxarlhe

nas veias parecia era Z Pedro. Tinha ainda o

mesmo amor vida, a mesma certeza na felicidade de todos. Sentase que no aceitava

esses dias, mas no estava zangada tambm.

Meu homem, meu filho e mesmo outra famlia esto l dentro. Menina, pra ainda

esse choro! No pode chorar. Esses brancos a no merecem nossas lgrimas, nossa

tristeza ia ser ainda a alegria deles.

Mas, mesmo assim, voz doce de rnarn Naxa foi tapada num

bocadinho de tristeza, fugiu logo:

...Alguns no sei mais se esto vivos se esto mortos, na porrada, Mas o tempo bom

vem a...

Essa gua limpa das palavras de don'lncia agarrandolhe outra vez no brao,

conversando devagarinho, palavras quietas e

sabedoras, encheu Nela:

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VIDAS NOVAS

No chores I Precisa continuar divertida. Na vida, v s menina, tem muitas coisas

boas para te dar!

As lgrimas j no corriam nos olhos novos de Nela, s um sorriso, teimoso e forte,

queria abrir caminho agora, devagar, at correr depois numa chuva de alegria, rindo

para mam Naxa e

sentindo outra vez Z Pedro com ela, mesmo l atrs dos muros amarelos.

Comeou a limpar a cara onde o sol da manh fazia festas e mirou o grupo de mes e

irms, companheiras caladas, esperando notcias das famlias. E tinha nesses olhos outro

sol diferente, Nela no tinhalhe percebido bem. Era verdade mesmo, todas as

caras estavam mais novas, os olhos eram outros, os sorrisos eram outros e o sol sobre

tudo, sobre todos, ali, em cima de toda a terra luandense, era sempre o mesmo e outro

tambm.

E quando o guarda abriu o porto com um sorriso e lhe quis segurar no saco da fruta e

da roupa, falando desculpas por ter feito esperar um bocadinho, Nela olhoulhe nos

olhos, serena e fria, e respondeulhe as palavras que as mulheres sentadas no areal, que

Z Pedro e outros l atrs das paredes odiadas e esse filho que crescia na sua barriga

mulata reclamavam:

Obrigada! Mas eu espero pela minha vez! Virouse devagar com a mesma expresso

que tinha na cara

das outras mes e companheiras, por ali, ao sol, nessa manh de sextafeira.

(30662),

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0 feitio no bufo Toneto

Joo Santo calou a boca. Os amigos ficaram ainda quietos e l fora sentiase o vento

refilar nas folhas da mandioqueira. Depois, de muito longe, nem sabiam se era

Sambizanga se era Rangel, o

silncio transportou o barulho de trs tiros.

Estudante, gordo e de culos, cambuta parecia era bocado de cana, torcia as mos,

calado, e mirava Kakuij*l, que no queria parar ainda de fumar e ficar quieto.

As ltimas palavras do mulato estavam na cabea de todos por ali espalhados no quarto

quase negro da luz pequena do candeeiro. 0 vento assobiava com mais fora, e s vezes,

tapando o zunir dos jipes pelo areal, ficavam os zincos a bater com barulho de

metralhadora.

Estava cedo na noite, dez horas no eram ainda, mas s os olhos amarelos dos

reflectores passeavam pelas ruas. Atrs das paredes de pauapique, madeira ou outras

coisas toa, o povo, acordado e assustado, sentia os jipes gargalharem, roncando no

escuro.

Foi Estudante quem adiantou falar, parando de torcer as mos parecia era lavadeira:

Tens a certeza, Joo?

Juro por tudo quanto h mais sagrado! Morra mesmo! Esqueceram eu estava no

recreio e vi o gajo entrar...

Kakuiji tossiu, abriu a janela, furou o silncio com os olhos pequenos e cuspiu na cara

da rua:

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VIDAS NOVAS

Possa! Mas no tem a certeza ele que te queixou? As palavras de Kakuiji no

tinham fora, sentiase era ainda para lhe convencerem tambm que punha essas falas

assim. Joo Santo levantou na cama e respondeu chateado:

Sukua! No sou mais criana, carambal Como o chul ia saber aquelas conversas da

oficina ? Sim! Explicame voc como

ele ia saber aquela conversa com Maneco no dia em que

refilmos aumento?

Kakuiji muxoxou e sacudiu os ombros, mirando Estudante. Queria ajuda, mas o rapaz

estava outra vez a torcer as mos, olhando esses jeitos com os olhos pequenos l detrs

dos culos. Zangado, no sabia ainda porqu, refilou

Possa! Parece voc pensa eu estou lhe defender. Possa! Parece voc no me conhece.

Mas no quero mesmo a gente vai arranjar maca escusada. Se no foi o rapaz ?

Veio ento a gargalhada de Joo Santo estragar a falta de barulho e Estudante tossiu, j

sabia Kakuiji ia xingar o amigo, passava sempre assim quando o mulato punha essas

gargalhadas gordas e boas como 6

No ri assim, Joo, porra! No ri assim, voc sabe...

0 que a gente sabemos urna coisa: Toneto mesmo uni bufo! No vale a pena

discutir mais! Se no foi ele que te fez queixa para voc passar l cinco meses e tal,

levando porrada todos os dias, no vo querer ainda esquecer o Domingos...

Quando Estudante falava, toda a gente calava a boca. Podia

ficar ainda uma noite inteirinha nem uma palavra saa nos beios

dele, pareciam eram sapato. Mas a, toa, ningum sabia mais quando, saa parecia

galo, e pronto, punha logo o assunto como

devia ser. At porque Kakuiji era bom sempre, falava que preciso todas as provas e

outras coisas dessa maneira e ento a

conversa passava a noite inteira e nada que resolviam.

Naquela hora em que meteu ainda o nome de Domingos, toda a gente concordou.

Kakuiji foi na janela cuspir outra vez e Joo Santo voltou a sentar na cama. Mas,

quando todos ficavam

0 FEITIO NO BUFO TONETO

calados, Estudante no sentia mais vontade de falar, gostava s de acabar as macas, no

queria mesmo esses gritos que ele dizia no servem para nada e as pessoas tm fala

para concordar, no para refilar como os bichos, e, sempre que a pessoa pensa com a

cabea e no quer ainda inventar desculpas, descobre a verdade.

Manias do Estudante gostavam xingarlhe os amigos.

0 gajo parece ainda est andar l no liceu...

E por isso ele ficou outra vez a torcer a roupa de mentira nas mos e os olhos a bater

atrs das lentes. Mas Kakuiji no gostava desistir:

Pronto! Deixa s, vocs tm razo. Ento a gente o que vai fazer ento? Digam.

Mandemme mesmo o gajo, eu mato.

lh! Matarlhe p'ra qu? 0 gajo precisa ser ensinado s. Joo Santo ps outra

gargalhada dele, mas Kakuiji j no lhe disparatou e ele continuou falar:

Vocs sabem o que eu sofri l. Sabem o perigo mesmo se eu ia falar as outras coisas.

Vocs mesmo, meus amigos, iam ir presos ainda. Nessas horas que eu ficava sem poder

deitar, o corpo todo cheio de porrada de cavalomarinho, ento eu adiantava pensar: foi

o Toneto, filho da puta, se lhe apanho, matolhe.

E melhor mesmo, esse gajo j queixou muitos Kakuiji estava outra vez de p a

passear e o seu corpo quileba punha uma sombra parecia era de pau nas paredes

pequenas.

Deixa s, Kakuiji! Deixa ainda ele falar!

_e agora eu penso como vocs, Esse gajo precisamos lhe ensinar duma vez. Eu tenho a

certeza, aqui no corao, foi o sacana que foi me queixar, mas no posso provar...

Kakuiji abriu muito a boca, zangado, e praguejou, as veias do Pescoo esticadas

pareciam eram cordas de viola:

Possa! Provas... provas... Santo! Esse gajo que lhe aurnentam na oficina, mecnico de

servio leve agora o servio dele... no, Santo. Provar? Voc precisa melhor prova9

Mas j Estudante, puxando os culos na cabea como era sua

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VIDAS NOVAS

0 FE1TIO NO BUFO TONETO

mania, ficava parecia aviador, e, esfregando os olhos cansados dos livros, metia outra

vez na conversa, devagar como sempre, para arranjar tudo:

Pronto, malta! Discutir mais para qu? Agora a gente s combina o que vamos fazer

nesse bufo, mais nada. Voc, Kakuiji, que tem tanta vontade de.. . sorriu os dentes

brancos e os olhos ficaram mesmo mais pequeninos fala: fazemoslhe o qu?

As palavras do amigo apanharamlhe deslocado, sem uma

ideia ainda o que iam fazer nesse bandido que queria ganhar o

dinheiro a queixar os outros. Dentro dele, do corpo dele, do seu

corpo quileba e magro, s queria mesmo uma coisa: apanharlhe numa esquina e matar

lhe com porrada. Era esse o destino que ele queria. Essa gente assim, o melhor matar

lhe como co samento para no adiantar ainda estragar os outros.

Joo Santo e Estudante aceitaram com respeito as palavras do mecnico, a voz crescida

com a raiva que saa, e no lhe interromperam. S quando ele acabou, Joo Santo

levantou, passeou ainda um bocado a matutar e veio espreitar na janela.

0 vento frio da noite, aumentando, sacudiu a luz do candeeiro e molhou os homens, ali,

no quarto pequeno, atirando as suas

caras de sombra umas contra as outras, no cinema da parede.

Eu aceito essa ideia de lhe esperarmos para lhe dar uma surra

de porrada...

No! Era fala de Estudante, de p, srio, guardando os culos no bolso da camisa,

ficando com essa cara de cafofo que assustava. A sua fala, assim irritada, espantou os

amigos. Poucas vezes lhe conheciam dessa maneira, era mesmo muito custoso algum

fazerlhe ficar zangado para adiantar tirar os culos.

Bateu com o p pequeno no cho, parecia monandengue com mania, e gritou outra vez:

No! Nada disso! Joo Santo sentou, j conhecia essas zangas, j sabia bem o

que ia sair. S Kakuiji, alto como era, ficou debruado em cima

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do rapaz, Pareciam era garrafa e copo. E essa ideia de inveja s queria lhe dar

berrida, para nunca mais, e nem ainda com ateameporuelhe no corao como j tinha

passado muitas vezes. a ajuda de Joo Santo tinha conseguido, 0 Mulato sempre

conversava quando Estudante no aparecia, para lhe aconselhar, pedir para Kakuiji no

deixar ainda esse bicho comerlhe. E nessas horas o mecnico quase chorava de

vergonha, torcia os pulsos, falava parecia era mona a pedir perdo:

Possa, JOO! Eu no quero! No queria mesmo ser assim. Mas voc sabe, voc me

conhece de pequenininho, sabe porqu eu sa mesmo na escola, no adiantei continuar a

estudar...

Joo Santo sabia bem, tinha muita gente que no sabia, amigos mesmo e companheiros,

no conheciam essa histria de KakUiji, menino largado no musseque toa, a me

maluca de andar nas portas e o pai na Baa dos Tigres, o melhor era mesmo no falar.

Por isso ele sofria com a sabedoria de Estudante, rapaz do 7. ano de liceu perdendo s

sua habilitao como amanuense, queria saber, queria estudar, falar com as palavras de

Estudante, dizer todas as coisas que lhe adiantavam perguntar, arranjar assim sada para

todos os casos.

por isso a inveja sobelhe na garganta, pe passo na frente da cabea dele para no

pensar mais e fala devagar, a gozar:

Ento ? Convidamoslhe para beber com a gente, no ?

Kakuiji, ento?...

Deixa, Santo! Eu j doulhe a resposta. Voc sabe, Kakuiji, o que sucedeu no Santo,

nessa priso agora? Sabe, diz s? Sabe?

Kakuiji ainda quis ficar com a cara dele, gozona, mas no conseguiu. Falou:

Sei.

Voc sabe, Kakuiji, que eu e voc no fornos l porque Joo aguentou?

Sim, sei, possa!

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VIDAS NOVAS

voc que lio o honiem a, na esquina

E ento, Kakuiii ~r apan os olhos dele, do musseque, darlhe urna

surra, para ck te ver COni

as pessoas te verern, e depois? da arreganhadora, mas no

E depois o qu? a voz era ain tinha mais a fora do princpio. nta depois o qu9

Voc quer ir

Sukuarna! Voc ainda pergu porrada, por l na priso, te matarem

se calhar con a fome e gente com a

dum bufo? Voc pensa a sua teiTa tem Muita causa de vcc@

tudo quanto voc pega@ cabea para pensar e essas mos no interessa

trabalha, tudo que voc conserta, fica bom, onde, Kakuiii, carburador, no

interessa difereilcial? Resp responde! peito do mecnico, urna

peleja

Urna fora grande lutava no e essa vontade estava passar, a invej a

antiga que que@a lhe 11.11

os, a boca, e rir para Estudante, nova de abrirbem Os braos, os olh o melhor

mesmo era no dizer sim@ senhor, ele que tinha razO, s sabia ainda era ligar

na cabea desse negro burro qu@ ele era, de mecnico e mais nada. Mas, nessa hora, o

brao do rapaz

agarroulhe para sentar na cama julItO cOrn Joo Santo, e a voz

ez, mais baixa que o barulho do vento l fora, dele, quieta outra v . .pes nham

cortado pelo meio das correndo nos caminhos que os ii@ pedir ainda a opinio para

essa cubatas, adiantava falar, explicar, o, hora que as ideia que tinhalhe

nascido nessa hora mesti, sombras pareciam cazunibs nas paredes e era preciso castigar

Toneto Gomes, mecnico de carros e bufo da P.I.D.E.

A noite feia entrava aos bocadOS pela janela aberta. L fora nem sopro de vento corria

pelos areais, s calor e suor que

estavam ainda a escorregar, no quarto apagado, caminhando DO

corpo nu de Estudante, deitado na esteira. Kakuiji, no seu lado, de

0 FEITIO NO BUFO TONETO

barriga para baixo, dormia com barulho de maximbombo do Munhungo.

Tinha acordado mesmo pouco tempo e, de barriga para cima, espreitava na janela

aberta o musseque das estrelas. 0 barulho do sono do amigo assustava as baratas

espalhadas pelas paredes e

muitas vezes at parecia o zinco estava tremer. Ou ento era

impresso de Estudante, nessa hora ele no sabia bem, a cabea no queria pensar

como antigamente e o corpo ainda estava inchado da comida.

Joo Santo tinha posto teima e ningum que podia lhe resistir quando falava Emlia ia

fazer um quitande para todos, 0 feijo estava bom, quentinho, e o azeitepalma tinha

lhes adoado na

boca, pondo conversa de rir, durante a comida. Mas era verdade tambm que tinha uma

coisa escondida atrs dessa conversa, muitas vezes parecia era fingida.

Emlia desconfiara mesmo, e, com os braos gordos no

pescoo do companheiro, adiantara perguntar:

Verdade, Estudante, vo aonde 9

Juro Mlia, no posso te dzerl Mas a cara dela no aceitou bem essa desculpa.

Estudante pensou talvez ela j sabia, o caso tinha corrido depressa, ali, no

Sambizanga, toda a gente lhe conhecia. Se mesmo Toneto Gomes quem que queixou,

na loja do Rafael Manco, que andavam lhe ameaar de pr feitio, queriam lhe matar

com essas coisas, ele era um homem honrado, s trabalhocasa, casatrabalho, no

andava com esses rapazes de agora sempre metidos com

conversas proibidas, com papis proibidos. Que sim, senhor, que era verdade, jurava,

tinham lhe avisado na oficina, iam lhe feitiar. Quem? No sabia mesmo, mas quando as

conversas passam algum falou e ento agora, nessas horas, muita gente estava falar

Kakuiji, colega dele, morador no Rangel, era feiticeiro. Jurava, sim senhor! Esses

ambrizetes so feiticeiros e

o rapaz no me gosta, porque eu mando nele na oficina e ento anda me pr falsos eu

sou da RI.D.E.

VIDAS NOVAS

um ms j tinha passado depois do dia da sada de Joo Santo na priso e dessa noite

mesmo que tinham combinado castigar Toneto Gomes. Estudante lembrava bem aquela

noite de vento em

que adiantou propor essa maneira de lhe pr castigo, e agora, que faltava pouco mesmo,

sentia uma fora que lhe puxava para no fazer, um medo dessa brincadeira combinada.

Kakuiji tinha refilado muito, durante semanas no quis aceitar falava essas coisas dos

velhos no so para desrespeitar assim, mesmo que ele no concordava era verdade,

mas tinha respeito. Isto e outras palavras que irritaram Estudante. Escapou passar

discusso quando, sem pensar ainda, faloulhe com voz alta

parecia queria ele tambm ouvir bem o que inventava para falar

no outro:

Isso tudo so aldrabices, para explorar o povo! Voc mesmo

acredita em feitio, Kakuiji? S porque um homem pensa no quarto dele, bungula de

noite, vai matar outro? Voc acredita essas coisas que no podem se explicar? Como ,

Kakuij?

0 rapaz calara a boca, se todos mandavam ele ia, sim, senhor, e depois ficou Joo Santo

a lhe convencer para fazer o servio.

E agora, naquela hora, mesmo que Estudante no queria, a

ideia do feitio no saa mais na cabea. Talvez era mesmo a

barriga cheia de feijo de azeitepalina ou ainda o calor e o suor

que punham essa dor de cabea e lhe faziam lembrar a av xinguilando nos bitos, nas

dissaquelas, e as estrias que a me punha noite, sunguilando, com cazunibis, dquixes,

camueala e outras coisas, E a recordao mesmo do velho Kantukuta que lhe

chamavam de feiticeiro, l, no musseque Cabessa, nessa noite que lhe viu e ouviu

parecia era bode, a coar o ~aco na cubata de nga Fefa, que morreu mesmo depois,

todo o mundo sabe e lembrase, e se no fosse ainda Ado Beto, que era

homemdochicote, lhe anular, o velho ia fazer mais estragos na famlia da falecida.

Porqu ento estava pensar isso tudo, nessa hora9 Sabia muito bem esses homens dizem

mesmo essas coisas para roubar os

0 FEITIO NO BUFO TONETO

outros, comer as coisas boas das casas dos pobres, dormir com as

mulheres que querem. Estudante, que isso que lhe agarra no corao, no quer lhe

deixar dormir, pe dvida na sua cabea, quer anular essa sua ideia para castigar

Toneto Gomes?

0 suor continuava correr parecia era cacimbo, quando a porta abriu e a sombra de Joo

Santo desenhouse na luz.

Esto acordados? Estudante ps uni soco nas costas de Kakuiji e comeou a se vestir

sentindo ainda essa ideia que no lhe largara mais no fim do jantar, essa dvida no

servio que iam fazer.

Nga Emilia veio ainda na porta, cara de sono, recomendar o

cuidado com as patrulhas dos jipes, e os trs amigos saram para dentro da noite feia,

sem lua e sem vento, e, com depressa, no

intrincado do musseque, becos e desvios que sabiam, andando mansinho como ona

chegaram na cubata de Toneto Gomes.

Lua no tinha, luz no tinha. Mulato Santo sentiu Estudante lhe agarrar no brao,

baixou a cabea para lhe ouvir:

Pronto? Vai no teu lado. J sabes, se vs algum, o assobio...

Toneto Gomes estava morar com uma tia, velha doceira, numa cubata de madeira e

luandos pintados que tinha mesmo agora mais um quarto de caixote de carro, o patro

tinhalhe dado para ele. Ficava longe da rua dos jipes e a luz dos reflectores se prendia

ainda nas folhas da mulemba dum quintal ali pertinho.

Joo Santo ficou vigiar uma entrada desse beco, metido no

meio das aduelas, e, antes de afastar para o outro stio dele, Estudante agarrou Kakuiji,

que j estava de cara pintada e com a

lata na mo ngoma, como ele gostava, no quiseram lhe arranjar

para bater. Trazia tambm na cintura uns paus pendurados e quis rir para Estudante,

mas o amigo caloulhe:

Eu sei, Kakuij. Tens medo ?

No, Estudante. Medo... eu no tenho! Mas... Estudante segredoulhe:

! Esse receio eu tambm sinto, Kakuiji! Fui eu que te falei

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VIDAS NOVAS

tudo isso aldrabice desses gatunos do povo, mas quando chega na hora de a gente

fingir, assim no escuro, temos que lembrar ainda essas histrias de monandengues, no

?

isso mesmo, voc percebe. E juro, sangue de Cristo, eu

fao! Estudante, a voc mesmo que estudou que eu falo, Joo no ia perceber, mas

medo tenho. Cadavez eu penso isso pode me

trazer feitio de verdade!

Se ouviu riso de Estudante e Kakuiji sentiu a mo quente, no corpo nu, e a voz serena e

j segura outra vez, falando:

Isso no existe, Kakuiji, juro! Tudo mentira deles. E, com medo de mais palavras,

saiu pelo escuro, rente nos

quintais, para a outra sada do beco.

Sozinho assim, ali, Kakuiji sentiu chegar a hora que ele tinha medo. Tinha prometido,

agora no podia mesmo dizer mais que no, os amigos l estavam espera que ele

fizesse ainda o servio combinado. Mas no corao doa e saltava e o seu corpo deitava

mesmo um cheiro grande de suor que estava lhe correr e lavar as tintas da cara. Mirou

os reflectores l para trs das folhas da mulemba: um pequeno vento estava acordar as

folhas, e essas luzes amarelas fizeram lhe sentir outra vez, a crescer, essa raiva no bufo

Toneto. Ento, devagar, com as pernas mesmo a tremer parecia canio, avanou na

cubata do mecnico.

Joo Santo, no seu quintal, espreitava com os olhos esticados,

queria ver mesmo o jeito desse Kakuiji para magicaria, queria gozar bem essa hora da

partida no Toneto, mas nada que ele conseguia ver no escuro da noite. Do outro lado,

Estudante tinha virado as costas, tapava as orelhas com as mos, no queria ouvir nada,

sabia, com esse calor e essas conversas na cabea, se sentisse mesmo o amigo a

bungular, ia lhe mandar calar e estragar todo o trabalho que queriam ainda fazer.

De dentro do escuro da noite s com estrelas, chegou o

barulho, primeiro baixinho, espremido, rouco, da fala do bode. Saindo assim no fundo

da garganta para disfarar, e do escuro,

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0 FEITIO NO BUFO TONETO

ningum que lhe via, esse rudo de voz de animal, acompanhado do bater da lata,

devagar tambm, trazia vento frio de medo, obrigou mais Estudante a tapar nas orelhas.

Mas a voz do bicho ele ouvia cada vez mais, cada vez mais alto, maluca com o bater da

lata, entrava no corpo dele com o calor, o suor, a dor de cabea, o sangue medroso a

gritar nas veias e ento tudo ficou calado com o barulho da lata a roar nas paredes de

madeira caiadas de branco e a voz outra vez disfarada, de Kakuiji, a falar, com som

terrvel, as palavras dos feiticeiros:

Ando de noite, sou parvo? Ando de noite, sou parvo? E cada vez mais tremiam os

gemidos do bode, o bater na lata e essas palavras malucas, parecia Kakuiji estava

mesmo xalado, ele que estava com o feitio, tinham lhe avisado para fazer baixinho, s

quem precisava ouvir era mesmo Toneto, e agora todo o musseque ia acordar e iam lhe

caar como feiticeiro de verdade.

E na hora que sentiu mesmo esse perigo, Joo Santo berrou, desatou a correr pelo beco

adiante, acompanhado j pelo ladrar de ces dos quintais e de galos acordados a cantar.

Fujam! Estudante saltou num quintal, desapareceu, e Joo Santo correu outra vez para

trs, para Kakuiji. 0 rapaz estava maluco mesmo, os olhos esticados a brilhar parecia era

bicho, a boca a babar~se toda, o suor tinha lhe borrado a cara com as tintas que

disfaravamlhe e gritava, gritava, batendo na lata:

Ando de noite, sou parvo? Sou parvo? Sou parvo? Rouco, medonho, berrava a fala do

bode e bungulava na

parede da cubata de madeira que abanava com a fora do seu

corpo quileba a roar o mataco.

Joo Santo pslhe uma chapada na cara, atirou a lata para cima do zinco da cubata e,

nos ps de Estudante, desapareceram na noite escura, enquanto em todas as casas as

luzes se acendiam mesmo com o perigo das patrulhas e as pessoas amedrontadas

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VIDAS NOVAS

calavam os monas assustados com esse barulho de feiticeiros como muitos anos j

ningum lhes tinha ouvido ali.

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Andando, meio xalado, pelo areal e com um sol quente que lhe atacava na cabea,

Toneto Gomes seguia a baloiar os braos parecia era boneco, falando as coisas que lhe

enchiam as ideias, e as pessoas ficavam a mirarlhe, curiosas, nas portas das cubatas.

Tinha passado uma semana, sempre esse medo dessa noite no saalhe do corao, nas

orelhas dele todos os dias o bode a encherlhe de terror, esse barulho mesmo do mataco

do feiticeiro a roar na madeira da cubata, no deixavalhe dormir de noite, parecia

cada dia ele ia voltar.

Era verdade mesmo tinhamlhe posto feitio, esse feitio terrvel dos ambrizetes, a

comida no queria entrar na boca, tudo vomitava, o corpo assim mole s gostava esteira

no sol, no quntal, enquanto a tia, assustada, falavalhe com a sabedoria de maisvelha:

Menino, vai ainda no quimbanda. Eu conheolhe, esse

feitio s ele mesmo que pode te livrar ainda!

Mas o corpo sempre quente a tremer de frio no queria andar, os ps pareciam estavam

a inchar mesmo, pernas e tudo, a vida estava lhe fugir devagarinho, o feitio trepava no

corpo inteiro. Na cabea, muitas vezes que pensava para mexer o corpo todo, mas nada.

E depois a comida no queria, a tia tinha~lhe cozinhado quitande, e nada, nem matete

de bomb, guloso como ele era, no aceitou.

No era febre como ele falava e a tia no queria lhe acreditar. No. Era feitio do

Kakuiji, a certeza era esse rapaz, toda a gente falava na oficina, era feiticeiro mesmo, a

famlia dele tinha morrdo de feitio, o rapaz recebera embora essa magia.

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0 FEITIO NO BUFO TONETO

S nesse dia mesmo, oito dias j no ia no trabalho, cada vez s Pereira, encarregado, j

tinhalhe descontado um ms, sentiu ainda as foras a regressar, mas mesmo assim

quando andava parecia as pernas no estavam lhe obedecer, todo enferrujado. Kakuiji

tinhalhe posto esse feitio de tirar a alma bocadobocado e no podia lhe escapar.

S que nessa manh, a cabea mais fresca, ele pensou ainda, talvez chefe Costa podia

lhe ajudar, muito servio que tinhalhe feito j, mesmo que ele pagava quinhentos cada

um que ele queixava, nessa hora agora podia lhe fazer mesmo um favor: tinha de

prender embora o Kakuiji, mandarlhe na Baa ou em Momedes, talvez assim, depois,

podia se livrar no feitio.

Quando chegou no porto de ferro e adiantou tocar a campainha, a cabea estava

pensar bem outra vez, s o corpo que no tinha vontade de mexer, os ps pareciam

eram de ferro.

Chefe Costa, cambuta, os dentes podres, parecia rato de capim, recebeulhe com essa

sua mania de rir que Toneto sempre tinha medo, os olhos encolhiam, pequeninos, atrs

dos culos, e

ento, nessa hora, ele adiantou piscar o olho no ajudante dele, grande e gordo parecia

era pacaa.

Ento o que que h? Toneto ainda quis rir como gostava de fazer antes de pr a

conversa, mas esse riso ficou preso na garganta:

S chefe, posso ainda falar sozinho?

0 chefe sorriu, satisfeito e mau, sabia essas palavras de Toneto eram sempre para

queixar uma pessoa.

Diz l!

Nosso chefe, verdade mesmo, o rapaz psme feitio. Toneto sentia outra vez a cabea

a ficar quente e gaguejou muito mal a histria, contando o fim no princpio, o princpio

no

fim, os olhos abertos sempre a mirar o ajudante que brincava com o chicote cavalo

marinho. Quando estava falar seu azar, sentiu mesmo zanga na cara do chefe e isso

atrapalhoulhe mais, no sabia mesmo como ia fazer para explicar, para contar esse

medo,

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VIDAS NOVAS

essa coisa que sentia a sair no corpo dele@ era a alma mesmo que

estavain lhe tirar, ia morrer...

isso tudo so histrias! Tens febre. Pronto I Mais alguma coisa?

0 chefe nunca lhe recebera assim, precisava ainda de lhe

convencer: osso chefe I ele, eu conheo bem, o nosso chefe

No , ri .. seno vai me matar, nosso chefe. tem de Prenderlhe mesmo

o ajudante gargalhou alto, uni riso Parecia era hiena, e o chefe

falou, fingindo zanga: 1

isso o que tu mereces, bandido. Es um sacana, julgas que

eu no sei? ... chefe ficou m outra vez, a cara estava de pedra e

A voz do falou parecia Toieto era ainda um preso dele:

Denuncias Os gajos e depois vais s famlias para te darem

um conto e quinhentos para vires me pedir para pr os tipos na

rua... No me apareas c mais, seno j sabes. No gosto de aldrabes!

Os olhos, pequenos, atrs dos culos, pousaram no chicote que o ajudante tinha ainda

encostado na parede.

s um aldrabo, no gosto de aldrabes! tomou a dizer.

Seu sacana! A dizeres que o Santo era dos terroristas e afinal foi

s para ganhares dinheiro, seu... Pete l fora

Verdade, nosso chefe. E Kakuiji, ele tambm! Juro, nosso

chefe! Prende~lhe ainda, prendelhe ainda. No posso mais viver com esse horriern na

rua. Vai me matar, vai me matar, nosso chefe!

A cabea estava zunir, o corpo no tinha mais fora, a boca j no sabia falar o que

queria, tudo estava baralhado e quente com

o frio do suor a correr e esse grito de bode a chegar, a chegar nas orelhas, a entrar no

Corao aos pulos, a bater parecia era martelo

na forja, a gritar, a gritar...

A gritar ajoelhou na frente do chefe, pediu mesmo perdo,

de o homem, prende o homem, e nem perdo nosso chefe, pren sentiu ainda que lhe

agarravam no cinto, no sentiu as pancadas

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0 FEITIO NO BUFO TONETO

do chicote, o riso do ajudante a correr, a crescer, riso de hiena nas orelhas de Toneto.

S o sol a bater rijo e mau na cabea, as pernas no querendo andar pelo areal, os ps

no lhes sentia mesmo, sentia ainda a alma, a vida a lhe fugir, a ficar vazio, leve, com

esse fogo vermelho de fogo nas costas, nos braos, nos olhos, nos

olhos dele, de maluco sem ver nada, e a boca ento abriuse num grito grande, um grito

da sua vida perdida com a alma que Kakuiji estava lhe roubar com o feitio dele:

No sou da P.I.D.E.! No sou da P.I.D.E.! No sou da P.I.D.E.!

Por entre as cubatas caladas da manh de sol, o grito do nomem batia em todas as

portas, que abriam os olhos curiosos e espantados das pessoas a espreitar e um monte

de monandengues j atrs de Toneto, tropeando, pelos montes de lixo, atirava pedras e

fazia pouco, imitando:

No sou da PI.D.E.! No sou da P.I.D.E.! Em todo o musseque nem uma parede, nem

uma porta, devolvia embora esse grito. Nem mesmo essas pequenas folhas de mulemba

com seus figos bons para os passarinhos, que, quando ficam juntos no pau deles, tapam

as luas de olhos elctricos que cobrem o musseque nessas noites de jipes.

(7762)

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wiajudus lojo3lnuieM osopiu3

Se no matarem todos os monandengues da nossa terra, eles contaro mesmo para seus

filhos e seus netos dos tempos bons que vm a. Contaro, porque os olhos ainda

pequenos e burros guardaram essas ceafuses e conversas, os tiros das noites ficaram

sempre nos coraes, o pai que no apareceu mais em

casa, morto no areal, o irmo mais velho que lhe vieram buscar no jipe com porrada

logo ali mesmo e insultos e asneiras e cubatas incendiadas brilhando no escuro.

Ento, nessas noites calmas dos tempos novos em que as pessoas ouvem mesmo o

dormir de gato dos motores elctricos das fbricas a chegar no vento, enchendo os

jardins de suas casas

com msica nova, ou vem a lua grande e bonita acender o candeeiro dela por cima das

lavras de milho grande, mais que um

homem, a mandioca a crescer verde como nunca foi, o algodo de flores branquinhas e

aquele vermelhocereja do caf pondo talvez lembranas do antigamente, mas com a

mata a guardar para sempre o cheiro bom, o cheiro maluco dessas florzinhas brancas,

que j foram vermelhas de sangue ou negras, queimadas nas

bombas ou torcidas no fogo, eles vo contar.

Nessas noites os monandengues correro a se sentar junto de papai ou vav que esto

lendo seus livros de agricultura ou

desenhando, no estirador, a pea mais melhor para facilitar ainda o trabalho da

mquina que outros irmos fizeram com a sabedoria

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VIDAS NOVAS

deles e o trabalho deles. E gritaro, sem pacincia para esperar, xingando esses livros da

escola com um sorriso, aproveitando para ouvir mas uma estria. E querem uma

estria que no vem nos livros.

Pap vai ficar zangado de mentira, vav vai tirar os culos e talvez mesmo, quem sabe?,

mam vai chegar no quadrado da porta, ainda limpando a loia do jantar antes de

comear preparar a lio para a escola ou outra coisa, e vai querer ouvir tambm.

Ai, vav! Pe uma estria dos tempos do antigamente! Vav j sabe o truque, mas os

monas tambm lhe conhecem. Vai acender primeiro o cachimbo dele, devagarinho como

gosta, para lhes fazer ainda ficarem curiosos. Depois, nessa voz dele cheia de vida, nos

olhos que viram os maus tempos e nas mos que ajudaram a fazer a vida boa desses

dias, os monas vo ver

como vav ou pap pode mesmo saber contar essas coisas que lhes pem ou medo ou

tristeza ou alegria ou coragem, mas que fazem ainda perguntar muitas perguntas:

musseque o qu, cubata o qu, monangamba, contratado...

Bem! Ento ponho a estria do leo e do coelho! Os midos vo rir na brincadeira, os

mais atrevidos vo lhe assobiar, bater as palmas. Mam vai aparecer para ralhar de

mentira com o sorriso feliz:

Ento, meninos!

Queremos uma estria de pessoas!

Essas estrias dos animais que falam, no queremos mais. Vav sempre conta essas...

Chupar o cachimbo com esses olhinhos pequeninos a rir, malandros, esse refilano ele

j sabia ia suceder, mas no deixa

de lhes avisar s:

Meus filhos! Essas estrias so as estrias do nosso povo! Essas estrias mesmo so

estrias antigas de todos os homens do mundo...

Um mais atrevido, cadavez, vai lhe interromper para pedir

CARDOSO KAMUKOLO, SAPATEIRO

ento que vav vai contar mas uma estria de mais cedo, dessas que ele assistiu.

E no fim mesmo, calados, com ateno, sentados por ali na

bela esteira fabricada com boas fibras da nossa terra ou nos joelhos de vav, ouviro a

voz madura do velho ou do homem comear a se encher na alegria e tristeza, talvez

mesmo uma dor hde lhe apertar no corao, mas vai fugir depois no brilho dos olhos

dos monandengues, limpos parece gua nas barragens dos nossos rios, quando ele

adiantar falar assim:

Ento, vou pr a estria de Cardoso Kamukolo, sapateiro!

Cardoso Kamukolo era um sapateiro cambuta e grosso como boa cana dos lados do

Kuanza. At mesmo tinha nascido nessas terras bonitas da Kisama e o seu riso parecia

era gua do grande rio que lhes atravessava e punha verdes.

Num sbado maluco de vento frio pelas ruas, caminhava encolhido no velho casaco de

fardo, caminho da cubata. Estava morar ainda no Prenda, musseque que fica pendurado

no morro

da Maianga e vira as costas e a cara no mar da Samba.

0 frio, que furava o casaco j velho, punhalhe agulhas no

corpo e fazialhe tossir. 0 ar estava mesmo cheio de cacimbo parecia era uma chuva

fininha que estava chover. Pelas estradas de alcatro, os carros corriam i com as luzes

acesas e s poucas pessoas, gente como ele, que tinha acabado o servio j era tarde,

seguiam no mesmo caminho ou lhes cruzavam ainda, andando nesse caminho donde que

saa.

Nesses dias voltavam mais satisfeitos, alguns estavam j cantar, tinham parado ainda

nalguma loja da Maianga para beber meio litro e o resto do dinheiro pouco, da semana,

sentiamlhe no bolso a convidar.

Cardoso Kamukolo andava com depressa. A companheira,

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VIDAS NOVAS

nessa hora, estava lhe esperar j, sabia ainda nos sbados assim,

despachar servio at tarde e depois o patro demorava fazer as

contas, era preciso muita ateno nessa hora, seno quando chegava na cubata e ia contar, o

dinheiro no dava certo. A no podia mais refilar, o homem comeava logo dizer ela era

aldrabo, esses negros so assim, se calhar apanhou bebedeira e perdeu no caminho, se

continuas refilar levote no Posto ou ento ameaava mesmo com essa polcia nova da RLD.E.

Cardoso no queria mais confuses com esse branco. No tinha medo, mas a vida estava

diferente. 0 vencimento pequeno, trabalhar obra assim, no patro sempre com os descontos,

era

sapato de senhora, se suja desconta, se pe um ponto est diferente desconta e depois, no fim da

semana, cento e cinquenta, duzentos escudos, para que chegava ento? Com a mulher e esse

mona, que ele gostava mais que tudo, crescendo cada dia para lhe alegrar, a renda para pagar, a

comida cara, no dava mesmo. Quando chegava na cubata, muitas vezes agarrava o biscate,

meias solas para um patrcio, cadavez com sorte umas gspeas ainda. Mas para lhe receber

custava tambm, pagavam bocadobocado, a vida estava m para toda a gente.

Com esses pensamentos a lhe atacarem nessa tarde feia, Cardoso KaraukoIo arrastava os sapatos

velhos e remendados no alcatro molhado, segurando, debaixo do brao, o assentador, a

faca, o ferro de brunir que o mestre costumava lhe emprestar para trabalhar nos domingos.

Nessa semana dinheiro ainda estava menos. Um azar mesmo I

Um golpe na biqueira do sapato branco, a faca tinhalhe escorregado, nem sabia ainda como. 0

mestre queria lhe arrear,

Cardoso pediu desculpa, mas, depois, quando ele falou ia lhe descontar o preo dos sapatos,

refilou:

0 preo, como? Eu pago mesmo o material, mas o trabalho

meu!...

No esquecia a cara espantada do branco. At tinha tirado os

culos para ver bem Cardoso Kamukolo, que ficou ainda de p,

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CARDOSO KAMUKOLO, SAPATEIRO

no meio dos colegas de cabea abaixada nos sapatos, esticando as

cerdas com respirao forte.

Mas... o que que h 9

Explicoulhe outra vez que queria pagar mesmo o calfe mas o trabalho dele e o lucro do

mestre ele no podia pagar, no estava certo, no senhor. Ainda se estivesse trabalhar

ao dia podia ser, mas, assim obra, no tinha direito de lhe cobrar o

preo inteiro.

0 mestre nem quis mais lhe dar resposta. Virou as costas e foi embora; mas, mais tarde,

Cardoso ouviulhe a falar no ajudante dele:

Imaginem, enh! 0 lucro e o trabalho! Isto vai bonito 1 A culpa de quem lhes corta a

muquila, os ensina a ler e a escrever...

Essas palavras e outras, muitas que no chegou perceber bem, o mestre tinha falado

essa mania dele agora, de manh, quando chegava, ler ainda o jornal nos outros e ficar

a discutir e ensinarlhes essas coisas de poltica.

Pensando satisfeito essa conversa, a luta nesse sbado para aguentar s Freitas e no lhe

descontar, e ainda lhe emprestar a ferramenta para o biscate de domingo, Cardoso

sorria tambm um pouco.

Mrio ia ficar feliz quando falasse esse assunto, essa vitria das palavras dele, como

tinha refilado mesmo com o mestre com a calma que todos lhe conheciam, tinha at os

que diziam o rapaz era matumbo, mas s nos olhos dele que falava a esperteza que

tinha. 0 serralheiro era ainda o culpado desse golpe no sapato novo que estava a fazer.

Se no fosse a fala desse amigo, as

palavras que eles agora conversavam os dois, Cardoso no ia ficar assim uma noite

inteira a beber, a falar com ele, a contarem essas

coisas que s podiam dizer mesmo com voz baixa, enquanto l fora os jipes e os carros

das patrulhas passeavam sem barulho,

pondo dentes nas sombras com as luzes.

Nessa manh os olhos no queriam se abrir mais, nem com o sol atrevido a entrar ainda

sem licena na janela. A companheira

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VIDAS NOVAS

veio lhe xingar para levantar, tomar matabicho e mesmo assim,

quando chegou na oficina, oito e meia j passava. Com o sono parecia era pedra na

cabea, nem sentiu mesmo a faca a

escorregar e sucedeu s: o sapato ficou todo cortado na biqueira.

0 cacimbo j era menos no ar, tinha parado um bocado, mas nas ruas os candeeiros

ainda estavam a acender. As pessoas se

mexiam no meio dessa cor cinzenta pareciam eram sombras e s as luzes dos carros

que, s vezes, mostravam bem a cara delas.

Ora foi a mesmo, nessa rua estreita da Maianga, que apareceu o monandengue. Vinha

com devagar, pelo passeio, saltando num

p, saltando noutro p, descalo e sem camisola, s mesmo uma camisa pequena que

lhe defendia no frio. Estava cantar baixinho uma cantiga para acompanhar esse jogo que

adiantava fazer com os quadradinhos do passeio e nada na cabea dele que lhe avisava

onde estava e o que estava a brincar. Na sua volta s mesmo ele e o cacimbo que lhe

mordia e, para lhe calar ainda, punha essa brincadeira.

Cardoso passou a mo na cabea pequena quando o mona ia

chocar nas pernas dele. Continuou o seu caminho, uma satisfao doce na boca grossa,

a pensar esse dia mido Beto j ia estar

assim grande para lhe mandar na escola. Sim, porque muitas vezes, ento j podia

mesmo estar ganhar mais, o servio ser outro, agora que Mrio comeava lhe ensinar

mais coisas, ler e

escrever mesmo, e o melhor ainda, essas conversas que um dia a

vida deles ia mudar, j tinha mesmo comeado a luta para essa felicidade para todos, na

terra de todos. Ainda andava desconfiar esse rapaz no falava tudo o que ele sabia... As

palavras que punha, parecia era mesmo irmo mais velho, davam conselhos bons, mas

devagarinho, explicando at ele perceber bem, ensinandolhe com pacincia, fazendo

caa nessas manias antigas que estavam morar ainda na cabea dele que a vida era

aquela mesmo, Deus que mandava, estava certo, talvez se calhar um dia o mestre ia

lhe aumentar para ele mandar mido Beto na

escola, mas tambm era assim a vida, se no lhe aumentassem,

66

CARDOSO KAMUKOLO, SAPATEIRO

pronto, destino nasce com a pessoa, no somos ns que lhe fazemos e outras coisas

ainda que ele costumava falar. Mrio no ria, no gozava, nem gritava, no. Com

devagar, voz quieta e

segura, falavalhe parecia era irmo: cada palavra ele estava julgar j muitos anos era

verdade, o amigo mostravalhe a mentira escondida; cada coisa ele dizia ia fazer, Mrio

mostrava o perigo de querer fazer assim as aces sem pensar primeiro porqu, como

vai fazer. E, com ele, Cardoso KarmikoIo tinha um respeito grande, o companheiro

serralheiro falava parecia era livro, cabea dele estava sempre pensar bem, ou quando

errava no tinha mesmo vergonha de confessar, queria era emendar logo, palavras dele

traziam remdio em todas as confuses.

E, depois, o melhor mesmo: que Mrio no queria lhe obrigar a pensar como ele, no.

Punha suas razes, mas ouvia sempre as conversas de Kamukolo com toda ateno e

ento

no esquecia mesmo nada , bocadobocado, partialhe essas ma

nias dele, mostrando os erros, o que estava bem, o que estava mal. Ningum que podia

zangar com esse homem, era bom sentir assim a sabedoria dele a ensinar quando falava,

parecia a vida

duma pessoa era cubata escura e as palavras dele a luz l dentro.

Embrulhado nessas ideias quentes, Cardoso s ouviu o

barulho atrs dele, j estava mesmo chegar no stio que o alcatro acaba e as barrocas

comeam a subir no Prenda.

No fundo da rua, entre as rvores que pareciam de mentira, no

meio do cacimbo a cair outra vez, sentiase o barulho de vozes de pessoas a falar alto,

outras pessoas mesmo a gritar das varandas, crianas tambm a saltar os quintais, correr

pela estrada, no

caminho do lugar da confuso.

0 sapateiro pensou o melhor, nesses dias, era no meter nessas confuses, confuso de

branco, branco que sabe, porque agora pem um tiro numa pessoa e ningum que

lhes leva na esquadra, nem nada. Mas quando decidiu o melhor era ainda continuar o

caminho dele, que viu sair do monte da confuso o

monandengue que dera encontro a brincar no passeio. 0 mido

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VIDAS NOVAS

veio lhe xingar para levantar, tomar matabicho e mesmo assim,

quando chegou na oficina, oito e meia j passava. Com o sono parecia era pedra na

cabea, nem sentiu mesmo a faca a

escorregar e sucedeu s: o sapato ficou todo cortado na biqueira.

0 cacimbo j era menos no ar, tinha parado um bocado, mas

nas ruas os candeeiros ainda estavam a acender. As pessoas se mexiam no meio dessa

cor cinzenta pareciam eram sombras e s as luzes dos carros que, s vezes, mostravam

bem a cara delas.

Ora foi a mesmo, nessa rua estreita da Maianga, que apareceu o monandengue. Vinha

com devagar, pelo passeio, saltando num

p, saltando noutro p, descalo e sem camisola, s mesmo uma camisa pequena que

lhe defendia no frio. Estava cantar baixinho uma cantiga para acompanhar esse jogo que

adiantava fazer com os quadradinhos do passeio e nada na cabea dele que lhe avisava

onde estava e o que estava a brincar. Na sua volta s mesmo ele e o cacimbo que lhe

mordia e, para lhe calar ainda, punha essa brincadeira.

Cardoso passou a mo na cabea pequena quando o mona ia

chocar nas pernas dele. Continuou o seu caminho, uma satisfao doce na boca grossa,

a pensar esse dia mido Beto j ia estar assim grande para lhe mandar na escola. Sim,

porque muitas vezes, ento j podia mesmo estar ganhar mais, o servio ser outro, agora

que Mrio comeava lhe ensinar mais coisas, ler e

escrever mesmo, e o melhor ainda, essas conversas que um dia a

vida deles ia mudar, j tinha mesmo comeado a luta para essa

felicidade para todos, na terra de todos. Ainda andava desconfiar esse rapaz no falava

tudo o que ele sabia... As palavras que punha, parecia era mesmo irmo mais velho,

davam conselhos bons, mas devagarinho, explicando at ele perceber bem, ensinando

lhe com pacincia, fazendo caa nessas manias antigas que estavam morar ainda na

cabea dele que a vida era aquela mesmo, Deus que mandava, estava certo, talvez se

calhar um dia o mestre ia lhe aumentar para ele mandar mido Beto na

escola, mas tambm era assim a vida, se no lhe aumentassem,

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CARDOSO KAMUKOLO, SAPATEIRO

pronto, destino nasce com a pessoa, no somos ns que lhe fazemos e outras coisas

ainda que ele costumava falar. Mrio no ria, no gozava, nem gritava, no. Com

devagar, voz quieta e

segura, falavalhe parecia era irmo: cada palavra ele estava julgar j muitos anos era

verdade, o amigo mostravalhe a mentira escondida; cada coisa ele dizia ia fazer, Mrio

mostrava o perigo de querer fazer assim as aces sem pensar primeiro porqu, como

vai fazer. E, com ele, Cardoso Kamukolo tinha um respeito grande, o companheiro

serralheiro falava parecia era livro, cabea dele estava sempre pensar bem, ou quando

errava no tinha mesmo vergonha de confessar, queria era emendar logo, palavras dele

traziam remdio em todas as confuses.

E, depois, o melhor mesmo: que Mrio no queria lhe obrigar a pensar como ele, no.

Punha suas razes, mas ouvia sempre as conversas de Kamukolo com toda ateno e

ento

no esquecia mesmo nada , bocadobocado, partialhe essas ma

nias dele, mostrando os erros, o que estava bem, o que estava malNingum que podia

zangar com esse homem, era bom sentir assim a sabedoria dele a ensinar quando falava,

parecia a vida

duma pessoa era cubata escura e as palavras dele a lu