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Luciana Rodrigues Alves USP

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Page 1: Luciana Rodrigues Alves USP

A CRÍTICA AO MITO EM KAFKA A PARTIR DA QUESTÃO DA

JUSTIÇA: uma leitura segundo Walter Benjamin e T. W.

Adorno.

Luciana Rodrigues Alves* [email protected]

Este artigo consiste numa interpretação de dois contos de Kafka,

precisamente “O veredicto”1 e “Na colônia penal”2, escolhidos em

virtude da maneira privilegiada como tecem considerações a respeito

da relação entre a justiça, o direito e o poder patriarcal. Nosso intuito

através desta interpretação foi o de mostrar como Kafka parte da

crítica à justiça e ao direito – questões que talvez possamos colocar,

a partir da perspectiva da totalidade, como fenômenos – para chegar

à análise da essência, isto é, o mito como o responsável pela

perpetuação da injustiça. Deste modo, podemos nos arriscar inclusive

a afirmar que Kafka esboçou em sua literatura uma teoria sobre a

relação intrincada entre mito e esclarecimento, mas lhe deu forma e

tratamento diferenciados do que se faz habitualmente em filosofia.

Neste artigo, pretendemos dar pistas sobre o pensamento presente

na literatura kafkiana contando sobretudo com o apoio dos textos de

Walter Benjamin e de T. W. Adorno sobre o tema.

“Seja justo”3. Esta é a lei que consta das folhas ornamentadas do

oficial da colônia penal e que deve ser inscrita na pele do infrator.

Este é o mandamento que primordialmente se impõe aos

* Doutoranda USP, bolsista FAPESP. Título do projeto de doutorado: A crítica em T. W. Adorno.Telefones: (19) 3241-9173 ou (19) 9611-2478. End: Rua Cônego Nery, 140, 44, Guanabara. Campinas-SP. CEP: 13076-080.

1 KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

2 KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

3 KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 61.

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personagens de Kafka, incessantemente acompanhado da consciência

amarga da impossibilidade de satisfazê-lo. O tema da justiça é um

dos alicerces da obra kafkiana e é a partir dele que pretendo tentar

contribuir com uma interpretação que segue tateando cautelosa o

interior de suas narrativas.

A estrutura tribunalesca caracteriza inúmeros de seus escritos, desde

“O veredicto”, em que o pai moribundo subitamente se levanta com

toda a força ancestral dos patriarcas e condena o filho à morte até a

“Carta ao pai”4, que foi originariamente escrita como um documento

de ordem pessoal, sem um objetivo literário explícito. Kafka, todavia,

era mestre em transformar vida em literatura e uma carta assim

densa, em que o escritor pretendia um ajuste de contas com o pai,

não escapou ao espírito de sua letra.

A dinâmica da carta se dá como se Kafka estivesse primeiramente

apresentando sua defesa – ele é o réu deste processo, magro como o

condenado da colônia penal, desaprendeu a falar5 como ocorreu a

Gregor Samsa depois da metamorfose. Inúmeros são os atributos e

gestos com os quais Kafka refere-se a si mesmo que nos permitem

identificá-lo a suas personagens, em especial àquelas destinadas à

morte e ao fracasso. Em grande medida, os temas nucleares de sua

literatura estão presentes também nesta carta, o que nos leva a

supor que nela há um impulso literário insuspeitado para o próprio

autor.

Precisamente ao final, depois de apresentadas as provas da defesa,

Hermann Kafka dá o seu veredicto ao filho Franz. Ao desempenhar

simultaneamente os papéis de juiz e promotor, o patriarca dos Kafka

bem como o pai de “O veredicto”, não conhece misericórdia. A crítica

a este poder desmedido é subjacente à obra kafkiana e se configura

4 KAFKA, F. “Carta ao pai”. In: Obras Completas, vol 2, São Paulo, Companhia das Letras, 1997.5KAFKA, F. “Carta ao pai”. In: Obras Completas, vol 2, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg 21.

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como um desdobramento do tema da justiça. Sobre isto escreve

Kafka:

Seja como for, você é desde sempre um tema central tanto das nossas conversas como dos nossos pensamentos, mas na realidade não nos reunimos para maquinar coisas contra a sua pessoa, e sim para analisar juntos, de longe e de perto, com todo empenho, brincadeira, seriedade, amor, obstinação, ira, aversão, resignação, consciência de culpa, com todas as energias da cabeça e do coração, esse processo terrível que paira entre nós e você, em todos os pormenores, por todos os lados, sob todos os pretextos – processo em que você afirma constantemente ser juiz, embora seja, ao menos no principal, (aqui deixo aberta a porta para todos os equívocos, que naturalmente podem suceder ), uma parte tão ofuscada e fraca como nós.6

Esta é uma passagem lapidar porque foi cunhada num

entrecruzamento entre os temas da justiça e do poder patriarcal,

além da vida e da obra de Kafka. A hipótese de leitura que aqui

apresento está justamente baseada nisto e consiste na consideração

de que a força ancestral dos patriarcas é a fonte do direito em seus

primórdios e se constitui enquanto uma força mítica que se reproduz

em seu interior 7.

Esses patriarcas foram os primeiros juízes e sua legitimidade para

julgar era advinda do modelo divino em que Deus decide sobre a vida

e a morte de seus filhos. A partir desta relação entre pai e filho,

homens e mulheres, o direito se constituiu. Isto significa que o direito

nasceu exatamente da dominação e não da liberdade. Deste modo, o

direito reproduz a desigualdade e a injustiça que o constituíram,

independentemente deste ser escrito ou não. Walter Benjamim nos

ajuda a esclarecer a questão:

6 KAFKA, F. “Carta ao pai”. In: Obras Completas, vol 2, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pg 41, 42.

7 ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985, pg 19 -52.

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No mundo primitivo, as leis e normas são não-escritas. O homem pode transgredi-las sem o saber. (...) O mesmo ocorre com a instância que remete K. a sua jurisdição. Ela remete a uma época anterior à lei das doze tábuas, a um mundo primitivo, contra o qual a instituição do direito escrito representou uma das primeiras vitórias. É certo que na obra de Kafka o direito escrito existe nos códigos, mas eles são secretos, e através deles a pré-história exerce seu domínio ainda mais ilimitadamente.8

A crítica ao direito e à (in)justiça são os modos privilegiados pelos

quais Kafka critica o mito. Seguindo a leitura de Benjamin, este pode

ser criticado porque a razão e a astúcia introduziram estratagemas no

mito abrindo a possibilidade de que este seja vencido.

Podemos ainda afirmar que o elemento que Kafka mobiliza contra o

direito – e conseqüentemente contra o mito - em nome da justiça é o

comportamento ascético do estudo. Este conduz ao passado e

converte a existência em escrita. O estudo visa a recuperar

fragmentos da própria existência, compreeender a si mesmo sem a

colocação de metas a serem atingidas no futuro que poderiam

prejudicar a realização dos desejos, como o que ocorre na parábola

kafkiana da viagem à aldeia.

Respeitando a intenção de investigar a relação entre o poder

patriarcal e o direito, proponho-me a analisar as novelas “O

veredicto” e “Na colônia penal” sem deixar de fazer breves

apontamentos sobre o romance “O Processo”9. Em cada uma destas

narrativas um aspecto particular do tema da justiça será analisado.

No caso da primeira novela citada, o fio condutor da interpretação é o

poder despótico dos patriarcas. Na segunda, de que modo “forças

8 BENJAMIN, W. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte.” In: Obras Escolhidas, Magia e técnica, arte e política, vol 1, Brasília, Ed. Brasiliense, 1985, pg 140.

9 KAFKA, F. “O Processo”. In: Obras Completas, vol 3, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

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arcaicas”10 – como o próprio poder patriarcal - se mantêm em

diferentes procedimentos judiciais, inclusive nos ditos esclarecidos. O

romance acima referido tem uma incrível profusão de temas

relacionados à justiça que, em face dos limites deste trabalho, não

poderei abordar.

Sobre o “O veredicto”

O título desta narrativa - “Das Urteil” - já tem muito a nos dizer

sobre o que se seguirá. “Urteil” pode significar, por um lado,

veredicto, sentença ou, por outro lado, processo, julgamento. Isso de

deve à riqueza peculiar da língua alemã que possui um vocabulário

latino e outro mais propriamente germânico. “Urteil” também pode

significar juízo, seu sentido habitual na filosofia. Poderíamos remeter

estes sentidos à raiz da palavra, isto é, à “Teil’’ que significa parte,

fração ou à “teilen” que significa dividir. Deste modo, poderíamos

tentar colocar no centro da discussão a afinidade existente entre o

ato de sentenciar e o de dividir - separar o bem do mal - e sua

(im)possibilidade. Desde o Antigo Testamento esta tarefa foi confiada

a Deus e depois, seguindo este modelo, aos patriarcas. Surge uma

dúvida, todavia, acerca da capacidade ou não dos patriarcas de

serem os representantes divinos na terra e, conseqüentemente,

acerca da legitimidade de seus julgamentos. De acordo com a leitura

que proponho, Kafka estaria justamente mostrando como os

patriarcas, a despeito de seu inegável poder, são na realidade inábeis

para uma tarefa desta magnitude pois são também frágeis, são

também partes litigantes no processo.

O protagonista desta narrativa é Georg Bendemann, um jovem

comerciante que está prestes a se casar e que escreve uma carta a

10 BENJAMIN, W. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte.” In: Obras Escolhidas, Magia e técnica, arte e política, vol 1, Brasília, Ed. Brasiliense, 1985, pg 154.

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um amigo que se encontra no estrangeiro para lhe dar a notícia de

seu noivado. Georg tem dúvidas sobre se deveria ou não contar isso

ao amigo, já que alguém em suas condições poderia se ferir com tal

informação. Assim o narrador descreve o amigo de Georg:

Assim é que ele se desgastava inutilmente no estrangeiro: a exótica barba cheia ocultava mal o rosto tão conhecido desde os anos de infância e a cor amarela da pele parecia apontar para uma moléstia em evolução. Como ele contava, lá não mantinha nenhuma ligação autêntica com a colônia dos seus conterrâneos e quase nenhum contacto social com as famílias do lugar, de maneira que se encaminhava definitivamente para a vida de solteiro.11

Georg não sabia ao certo o que deveria escrever a um amigo assim,

“que evidentemente havia saído dos trilhos e a quem se podia

lastimar mas não prestar auxílio”.12 Atendendo aos pedidos da noiva,

Frieda Brandenfeld, que argumentava sob seus beijos, o rapaz

decidiu contar tudo a ele.

Após a finalização da carta, Georg procura pelo pai em seu quarto, ao

qual já não ia há meses. O narrador nos explica que eles se viam na

loja, almoçavam juntos num restaurante e, à noite, sentavam-se na

sala de estar comum cada qual com o seu jornal. A tentativa de

estabelecer um diálogo com o pai exige que Georg atravesse um

pequeno corredor escuro e que se depare com a escuridão de seu

quarto, cuja janela dava para um muro alto.

Apesar da velhice, das roupas de baixo sujas, da parca alimentação e

da tristeza pela morte da mãe de Georg, a figura do pai ainda o faz

pensar : “Meu pai continua sendo um gigante”13. A intenção do rapaz

11 KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 10.

12 KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 10.

13 KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 15.

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fora a de contar ao pai que havia anunciado seu noivado ao amigo de

São Petesburgo. Ao ouvir isto, afirma o pai:

Você veio a mim para se aconselhar comigo sobre este assunto. Isso o honra, sem dúvida. Mas não é nada, é pior do que nada, se você agora não me disser toda a verdade (...) Você realmente tem esse amigo em São Petesburgo?14

Georg fica embaraçado com a pergunta como se ela não fosse

totalmente descabida. Na tessitura do texto, Kafka monta

cuidadosamente uma série de ambigüidades que unem Georg a seu

amigo. Podemos afirmar isto com base na advertência que já nos

fizeram Benjamin15 primeiramente, e depois Adorno de que Kafka

observou cuidadosamente o preceito de não construir imagens.

Adorno afirma : “Às vezes as próprias palavras, sobretudo as

metáforas, se libertam e ganham uma existência própria.”16

Adorno exemplifica isso através do modo particular como Kafka fez

uso da expressão coloquial alemã “estar junto à bomba” que significa

rigoroso cumprimento do dever. O funcionário Sortini do romance “O

Castelo”17 aparece efetivamente junto a uma bomba. No caso

específico desta narrativa, podemos propor uma interpretação neste

sentido e sugerir que há uma identidade entre o amigo “que saiu dos

trilhos” e Georg. Vejamos como esta se dá.

A resposta de Georg à pergunta desconcertante do pai é a de que

“mil amigos” não o substituiriam. Além disso, passa a cuidar dele,

14 KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 16, 17.

15 BENJAMIN, W. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte.” In: Obras Escolhidas, Magia e técnica, arte e política, vol 1, Brasília, Ed. Brasiliense, 1985, pg 155.

16 ADORNO, T. W. “Anotações sobre Kafka” In: Prismas, São Paulo, Ática, 2001, pg 242.

17 KAFKA, F. “O castelo”. In: Obras Completas, vol 8, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

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sugere que ele se mude para o quarto da frente, repouse, siga as

prescrições médicas, alimente-se melhor. Seu pai novamente o

acusa: “_ Você não tem nenhum amigo em São Petesburgo. Você

sempre foi um trapaceiro e não se conteve nem mesmo diante de

mim.”18

O rapaz continua sua defesa neste processo simultaneamente aos

cuidados com o velho e leva-o para a cama. “Mas mal o pai ficou na

cama tudo pareceu estar bem”19 diz o narrador sobre como Georg

sentia-se, desse modo, menos ameaçado com a presença do

patriarca. Este é o momento crucial da inversão pois o pai moribundo

se levanta subitamente munido de uma força ancestral. Poderíamos

nos arriscar a propor uma interpretação segundo a qual o fato de ele

estar isolado num quarto escuro, lendo jornais antigos,

aparentemente derrotado e inesperadamente se levantar com todo o

vigor represente o modo como Kafka vê as forças arcaicas que

atravessam sua ficção. Elas estão momentaneamente esquecidas,

mas podem se manifestar a qualquer momento e se fazer valer. Os

conteúdos do mundo primitivo de onde essas forças emanam, podem

significar também esperança e não apenas opressão. Sobre isto

afirma Benjamin:

Mas o esquecimento – e aqui atingimos um novo patamar na obra de Kafka – não é nunca um esquecimento individual. Tudo que é esquecido se mescla a conteúdos esquecidos do mundo primitivo, estabelece com ele vínculos numerosos, incertos, cambiantes, para formar criações sempre novas 20

18 KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 18.

19KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 19.

20 BENJAMIN, W. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte.” In: Obras Escolhidas, Magia e técnica, arte e política, vol 1, Brasília, Ed. Brasiliense, 1985, pg 156.

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Após deitar-se diz o pai: “Estou bem coberto?”21. Com a resposta

afirmativa do filho, “atirou fora a coberta com tamanha força que por

um instante ela ficou completamente estirada no vôo e pôs-se em pé

na cama, apoiando-se de leve só com uma mão no forro.” 22 O pai

acusa o rapaz de querer enterrá-lo porque tinha decidido casar-se.

Georg fica atordoado e submete-se cada vez mais à autoridade deste.

Sua tristeza é descrita pelo narrador como se o amigo “que

subitamente o pai conhecia tão bem” estivesse perdido na vasta

Rússia, sua loja estivesse vazia e saqueada, as mercadorias

destroçadas.

A sentença paterna continua e a questão central do processo deixa de

ser a existência ou não do amigo, que agora o pai afirma conhecer e

amar, mas sim o casamento de Georg, a vivência de sua sexualidade,

que teria profanado a memória da mãe. A esta altura o pai se

proclama o representante do amigo, alguém que teria lhe mandado

cartas contando a situação de Georg a sua revelia, sobretudo em

relação ao noivado. O poder do pai vai gradativamente se

intensificando até culminar no veredicto.

O patriarca então confessa que havia esperado por anos o momento

de sentenciar o filho e brada : “Por isso saiba agora: eu o condeno à

morte por afogamento! ”23

Georg sai do quarto ao som do desabar do pai sobre a cama, como se

suas últimas forças tivessem sido consumidas neste julgamento. Isso

poderia ser visto como uma confirmação de que ser juiz neste

processo em que ele, de fato, é parte foi extenuante. Por outro lado

21 KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 20.

22 KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 20.

23 KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 24.

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fica também a impressão de que esta era a sua “missão”, seu papel

obrigatório numa história que há séculos se repete.

Georg passa correndo pela escadaria e quase atropela a criada que

vendo-o naquele estado cobriu o rosto com o avental e exclamou

assustada : “_ Jesus ! ” 24 Tudo se passa como se o rapaz estivesse

sedento por seu próprio sacríficio. “Já agarrava firme a amurada

como um faminto à comida.”25 Salta sobre esta como o excelente

atleta que tinha sido para orgulho dos pais e morre confirmando em

voz baixa seu amor por eles, como se seu sacrifício fosse em seu

nome. Ambos os patriarcas, Deus e o pai de Georg, pela sua honra,

exigiram dos filhos a morte.

O tema da repetição na ficção kafkiana pode ser acompanhado em

inúmeras passagens, como por exemplo em “O Processo”26, quando

os guardas corruptos que levaram as roupas de K. e comeram seu

café-da-manhã foram por ele mesmo acusados e, em razão disso,

torturados. K. tenta evitar que o espancador cumpra sua função,

tenta suborná-lo, mas justamente este é incorruptível. Neste sentido,

a corrupção muitas vezes é vista como uma esperança. Ao perceber

que seus esforços eram em vão, K. foge do quartinho de despejo pois

não agüenta a crueldade da cena. No dia seguinte abre novamente a

porta e, para sua surpresa, tudo continua igual. Talvez isso possa

indicar que, para Kafka, o que se desenrola diante de nossos olhos é

a repetição do mito e não propriamente história. A partir desta

afirmação poderíamos colocar a idéia de que o mito que Kafka critica

parte do direito mas vai muito além dele. Sobre isto nos diz Adorno:

24 KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 24.

25 KAFKA, F. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 25.

26 KAFKA, F. “O Processo”. In: Obras Completas, vol 3, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

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A sua obra também se relaciona hermeticamente com a história: um tabu pesa sobre este conceito. A noção do caráter invariante e natural do curso do mundo corresponde à eternidade do instante histórico; o instante, o absolutamente transitório, é uma parábola da eternidade do perecimento, da danação. O nome da história não deve ainda ser pronunciado, pois aquilo que seria história, o outro, ainda não se iniciou.27

No momento da morte de Georg o trânsito sobre a ponte era

interminável e um ônibus provavelmente abafou o barulho de sua

queda no rio de frente a sua casa. Este é, por sinal, o mesmo rio que

o rapaz contempla da janela de seu quarto no começo da narrativa.

Esta foi uma morte sem sepultura e “criminosa” no sentido de que o

suicídio é proibido tanto para católicos quanto para judeus. O

sacrifício prescrito pela tradição, encenado e reencenado por diversas

gerações se configura como um “crime”. Creio que a crítica kafkiana

ao mito pode ser neste final fortemente sentida.

Sobre “Na colônia penal”

A colônia penal é uma ilha na qual há um comandante, capitães,

oficiais, suas senhoras e estivadores em meio a “gente pobre e

humilde”28. A estrutura de poder instituída pelo novo comandante

recebe a visita de um ilustre convidado, o explorador, que representa

a “visão européia das coisas”29. Este é um momento de transição de

um patriarca para outro e conseqüentemente de uma forma de poder

para outra. Novas leis e procedimentos judiciais podem surgir. O

antigo comandante não apenas faleceu mas teve também seu

sistema jurídico-político superado. Uma prova disso é que seu túmulo 27 ADORNO, T. W. “Anotações sobre Kafka” In: Prismas, São Paulo, Ática, 2001, pg 254.

28 KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 69.

29 KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 52.

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fica num lugar escondido, embaixo de uma mesa na casa de chá pois

não foi permitido seu sepultamento no cemitério. Isto é visto como

uma desonra por seu maior adepto, o oficial.

A controvérsia em torno da qual se move a história refere-se ao

procedimento judicial da colônia penal, onde, segundo o explorador,

“eram necessárias medidas excepcionais” e “se precisava proceder

até o limite de modo militar”30. É interessante notarmos como Kafka

criou uma atmosfera em que tudo tem caráter excepcional. Trata-se

de um regime de exceção em um lugar isolado... Esta é a mesma

técnica literária que Kafka utilizou para construir “O foguista”31

porque nesta narrativa ocorre um julgamento num navio, seu

comandante concentra todas as figuras de poder, inclusive as de juiz

e legislador, as pessoas não conhecem as leis que se modificam a

cada novo país onde navio aporta, etc.

Podemos intuir que o novo comandante desaprova o procedimento

judicial instituído pelo antigo comandante, de acordo com o qual os

condenados são executados através de um aparelho que inscreve em

sua pele a lei infringida. Tal aparelho é composto por três partes, a

cama, o desenhador e o rastelo, ao qual cabe a execução da sentença

propriamente dita. Este aparelho tem uma organização complexa e

promete a redenção.

Tal organização merece ser analisada mais detalhadamente. O oficial

a explica admirado ao explorador que se deixa encantar pelo aparelho

a despeito de toda crueldade que ele possa representar. Isso indica

uma afinidade entre a “visão européia” do explorador, que inclusive

falava francês - referência clara ao Iluminismo - e o oficial e seu

barbarismo. Creio que o que Kafka quer nos mostrar é que entre as

luzes, não obstante os progressos que tenha de fato alcançado, há

30 KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 39.

31 KAFKA, F. “O foguista”. In: Obras Completas, vol 7, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

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um elemento regressivo, não humanista, que se perpetua desde as

épocas mais remotas e que se manifesta de modo privilegiado nos

sistemas jurídico-políticos. A sugestão de leitura que faço neste

trabalho é a de que esse núcleo de injustiça que se perpetua é uma

“força arcaica” constitutiva do direito em seus primórdios. Trata-se da

relação desigual entre pai e filho, que serve de modelo para todas as

outras num sistema patriarcal.

A posição do explorador é ambígua porque ele, no início, ouve de

maneira desinteressada as explicações do oficial sobre o aparelho,

mas aos poucos se vê conquistado por sua organização elaborada.

Esta foi obra do antigo comandante, que além de exercer os papéis

de poder era também engenheiro, químico etc. Esta é uma nova

referência ao Iluminismo e a seu espírito enciclopedista.

Há também a questão da autonomização do aparelho, cujo exemplo

máximo é a execução do oficial, seu único operador, pois em princípio

não haveria quem o acionasse.

De qualquer modo agora não podia mais alcançar a manivela; nem o soldado nem o condenado iriam encontrá-la e o explorador estava decidido a não se mexer. Não foi necessário: mal tinham sido ajustadas as correias a máquina começou a trabalhar; a cama vibrava, as agulhas dançavam sobre a pele, o rastelo oscilava para cima e para baixo.32

No início da narrativa, quando o oficial está apresentando o

aparelho ao explorador, esta questão da autonomização da

organização do aparelho e até da própria colônia penal também pode

ser vista. O oficial explica que a invenção do aparelho e a instalação

da colônia penal são obra do antigo comandante. Quando ele morreu,

seus adeptos já sabiam que a organização da colônia (e também do

aparelho, num outro nível de entendimento) é tão fechada em si

mesma que mesmo que seu sucessor tivesse planos novos, não

32 KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 65.

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poderia mudar nada durante muitos anos. O novo comandante

inclusive reconheceu isso.

Com isso, podemos estabelecer uma relação de afinidade entre os

procedimentos judiciais do antigo e do novo comandante, além da já

citada afinidade do oficial com o explorador. Temos, portanto, três

modelos de sistemas judiciais que remetem à autoridade do primeiro

patriarca, o fundador. Lembremo-nos de que ao final, quando o

explorador entra na casa de chá, tem que se ajoelhar para ler a

profecia inscrita na lápide do antigo comandante. Quando o

explorador terminou de ler viu os homens ao seu redor rindo como se

a profecia fosse ridícula e como se “o convidassem a ser da mesma

opinião”33. Em face desta atitude, o explorador “agiu como se não o

notasse”, o que nos deixa margem a pensar que ele teve uma atitude

de reverência em relação ao antigo comandante.

A mesma relação patriarcal estaria, portanto, no centro dos três

procedimentos judiciais já citados. O mesmo núcleo mítico é o

referencial de todas. Pensemos agora sobre a (im)possibilidade de

redenção propiciada por ambas e sobre como Kafka denunciou a

reposição da injustiça que ocorre em razão do mito.

“Como captávamos todos a expressão de transfiguração no rosto

martirizado, como banhávamos as nossas faces no brilho dessa

justiça finalmente alcançada e que logo se desvanecia ! Que tempos

aqueles, meu camarada !”34 diz o oficial ao explorador em defesa do

sistema jurídico que se condensa no aparelho. O oficial foi nomeado

juiz após a morte do antigo comandante porque esteve sempre ao

lado dele quando ele era o juiz. O princípio segundo o qual ele toma

decisões é o de que a culpa é sempre indubitável. Isto faz referência

a uma culpa originária, como o pecado original, que torna as

33 KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 69.

34 KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 50.

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intimações e interrogatórios desnecessários. No caso do condenado

por não ter respeitado o mandamento de honrar o superior, não

houve, de fato, nem inquérito nem nenhuma espécie de apuração da

denúncia. Após a acusação do capitão o oficial rapidamente julgou o

caso e contou ao explorador que se tivesse intimado e interrogado o

homem só teria surgido confusão. Isso porque ele teria mentido e se

o oficial quisesse desmenti-lo, fatalmente substituiria uma mentira

por outra. A dificuldade em encontrar a verdade é também um

importante tema em Kafka e reaparece em outras narrativas como “A

Toupeira Gigante”.

Ao condenado foi imputada, portanto, a pena de ter a lei infringida

inscrita em sua pele. Ele deveria entender o mandamento de honrar o

superior com seu próprio corpo.

Mas como o condenado fica tranqüilo na sexta hora! O entendimento ilumina até o mais estúpido. Começa em volta dos olhos. A partir daí se espalha. Uma visão que poderia seduzir alguém a se deitar junto embaixo do rastelo. Mais nada acontece, o homem simplesmente começa a decifrar a escrita, faz bico com a boca como se estivesse escutando. O senhor viu como não é fácil decifrar a escrita com os olhos; mas o nosso homem a decifra com os seus ferimentos. Seja como for exige muito trabalho; ele precisa de seis horas para completá-lo.35

Isto lembra-nos de que em “O processo”, o processo cola no corpo

dos condenados e os embeleza do mesmo modo que a escrita

ornamentada da sentença.

Com a inversão da história, o oficial, que era simultaneamente juiz e

algoz, decide por sua auto-execução e livra o condenado. A

intervenção do explorador que exteriorizava sua insatisfação com

este procedimento judicial levou o oficial a isso. Isso nos faz pensar

que Kafka optou por desorientar o leitor com uma “dança” entre as

funções e papéis. Neste caso, é como se o procedimento judicial

35 KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pg 44.

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esclarecido, cujo porta-voz é o explorador, tivesse sentenciado o

oficial e seu aparelho como injustos.

O oficial escolhe em sua carteira de couro a sentença desenhada pelo

antigo comandante com a inscrição “Seja justo!”. Em seguida, coloca-

a no aparelho, ajusta as engrenagens e se deita. Condenado e

soldado prendem-no às correias e a máquina começa a trabalhar

sozinha. O oficial esperava, com isso, a sublime redenção que

iluminava os condenados. Em seu caso, todavia, não foi possível pois

as engrenagens do aparelho começaram a se soltar. O oficial foi

executado antes que pudesse chegar a tão esperada sexta hora.

Creio que, com esta passagem, Kafka retoma sua crítica ao mito da

justiça ao mostrar como um procedimento judicial cruel – com

afinidades com o esclarecido - não poderia salvar nem mesmo o seu

maior adepto, sobretudo da acusação de ser injusto.

Bibliografia

KAFKA, F. “Na colônia penal”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

________. “O foguista”. In: Obras Completas, vol 7, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

_______. “O Processo”. In: Obras Completas, vol 3, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

_______. “O veredicto”. In: Obras Completas, vol 5, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

_______. “Carta ao pai”. In: Obras Completas, vol 2, São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

_______. “O castelo”. In: Obras Completas, vol 8, São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

ADORNO, T. W., HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.

ADORNO, T. W. “Anotações sobre Kafka” In: Prismas, São Paulo, Ática, 2001.

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BENJAMIN, W. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte.” In: Obras Escolhidas, Magia e técnica, arte e política, vol 1, Brasília, Ed. Brasiliense, 1985.

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