Luiz Galdino - pega ladrão (Série Vaga-lume)

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Pega ladro Luiz Galdino atica so paulo 1993 literatura infantil Edio: Fernando Paixo Assistncia: Marta de Mello e Souza Preparao dos originais: Regina Maria de Figueiredo Suplemento de trabalho: Maria Aparecida Spirandelli ARTE Layout de capa: Ary de Almeida Normanha Edio do miolo: Antnio do Amaral Rocha Ilustraes de capa e miolo: Paulo Csar Pereira Produo grfica: Elaine Regina de Oliveira Todos os direitos reservados pela Editora tica S.A. Rua Baro de Iguape, 110 Tel.: PABX 278-9322 C. Postal 8656 QUEM O AUTOR Por volta de 1956, Luiz Galdino e seus companheiros de escola costumavam reunirse na biblioteca de Caapava,, sua cidade natal, para ler e bater papo. Galdino era to assduo., que a cabou se tornando bibliotecrio aos 16 anos. Apesar de escrever desde muito jovem, somente em 1979 conseguiu que um trabalho seu fosse publicado participando pela primeira vez de um concurso, seu arungaua foi premiado e includo na antologia dos melhores contos infantis. Desde ento, passou a constar com freqncia das listas de premiaes, com obras para jove ns e adultos. O Prmio Literrio Nacional, do Instituto Nacional do Livro, com o O Prinsp e da pedra vere (novela), o Prmio Nacional do Clube do Livro, com Urutu Cruzeiro (contos), o Prmio Nacional de Literatura Infantil Joo de Barro, com Saciei Siriri Sici, o Prmio Jabu ti de Literatura Infantil 1985, com Terra sem males, so algumas das principais premiaes obtidas. CEP 01507-900

Fax: (011) 277-4146 So Paulo

End. Telegrfico Bomlivro

Alm de dedicar-se literatura, Galdino lanou-se em outra fascinante empreitada: for mado em Comunicao Social, viajou por trs anos por todo o pas, pesquisando arte indgena pr-hist ica. Nos lugares por que passou, visitou cavernas onde encontrou pinturas antiqussimas de grande valor para a cultura brasileira. Viajante, morou tambm no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, Gois e Mato Grosso. -Mas o seu lugar mesmo em So Paulo, na capital, onde se estabeleceu na dcada de 60 e vive at h oje, trabalhando como diretor de criao de uma agncia de publicidade. O primeiro dia de trabalho Zeca estava to entretido com os prprios pensamentos, que por pouco no passa do pont o. Recobrou-se, pediu licena, desceu do nibus. E ainda tentava localizar a numerao da r ua, quando percebeu a casa bonita com a placa de metal, identificando a agncia. Na preocupao de no se atrasar, acabara chegando cedo demais. Passou duas vezes dian te do porto, indo e vindo, sem coragem para perguntar. Com exceo do guarda, em p na entrada, e da mulher, que varria o estacionamento para carros, a agncia parecia d eserta. Na segunda volta, criou nimo e perguntou: Eu queria falar com seu Gervsio... O senhor sabe se ele j chegou? O homem conferiu as horas no relgio de pulso, antes de responder: Ele no chega antes das nove. s com ele mesmo? Como o segurana o examinasse de cima a baixo, Zeca resolveu falar claro e evitar dvidas eventuais: Eu comeo a trabalhar hoje, e mandaram que me apresentasse a ele. A mulher de avental azul interrompeu a varreo e indagou, curiosa: Voc o novo boy? Sou... Sou eu mesmo. Diante da interferncia, o vigia dirigiu-se a ela, interpelando: Ermelinda, voc est sabendo de alguma coisa? O que sei que hoje ia comear um novo boy. Vai entrar no lugar do Tonho. O homem voltou a consultar o relgio. Mostrava-se indeciso sobre que atitude tomar , e a mulher sugeriu: Manda esperar na recepo. Glorinha j deve estar chegando.

Mais vontade, o guarda encaminhou-se at a porta de dentro, fazendo sinal para que Zeca

o seguisse. Abriu a porta, acendeu as luzes e indicou-lhe a poltrona: Espere a, que a recepcionista no demora. Zeca acomodou-se e se ps a examinar aquele que seria o local de trabalho do seu p rimeiro emprego. Se, do lado de fora, a casa impressionava, dentro, ento, era um verdadeiro luxo. Zeca estava deslumbrado com os moveis, carpetes, revestimentos, vidros e espelhos. Tu do cheirava a limpeza e bom trato. Entretanto, o que mais despertou sua ateno foram os quadros dependurados nas paredes. Venceu a inibio e levantou-se para examinar de perto. Alguns emolduravam medalhas de premiaes e a maioria era de anncios dos produtos conhecidos, que vira tantas vezes nas revistas coloridas ou nos comerciais da televiso. Aps dez ou quinze minutos, chegou, finalmente, a nria! Era uma garota muito atraente, loirinha, de olhos o sobre a nuca, botas de saltos altos e canos longos, jias evista. Se lhe dissessem que era diretora de algum departamento, primeira funcionria. E que funcio verdes, o cabelo preso num tuf e bijuterias, coisa de capa de r ele acreditaria.

Ela entrou, cumprimentando e sorrindo, os dentes bonitos mostra: Ol! Ento, voc o novo boyl Provavelmente, o vigia a tivesse prevenido quanto sua presena. Sou eu mesmo... Estou comeando hoje. A garota colocou a bolsa sobre a mesa de telefones e apresentou-se com simpatia: Eu sou Glorinha, a recepcionista... Jos Carlos. Seja bem-vindo e fique vontade. O Gervsio no deve demorar. Como voc se chama?

Glorinha subiu a escadaria, que conduzia ao pavimento superior, e Zeca ficou pen sando com seus botes: se a recepcionista parecia artista de televiso, como no seriam os outro s funcionrios? Em pouco tempo, a agncia criava vida. Entravam todos ao mesmo tempo, como se houvessem combinado o horrio de encontro. Conversavam entre si, ditavam ordens, pediam a Glorinha ligaes telefnicas urgentes. Zeca nunca vira tantas garotas bonitas juntas. Nem tantas pessoas to bem vestidas . Sentado no canto mais retirado da recepo, tratou de esconder os tnis manchados sob a banque ta. Por fim, chegou Gervsio, o chefe de pessoal, a quem deveria se apresentar.

Glorinha entrou sorrindo e cumprimentando:

Ol! Ento, voc o novo boy?

O homem entrou apressado, Glorinha interrompeu a ligao telefnica para avis-lo, antes que subisse: Gervsio... Aquele garoto o novo boy. Ele est esperando por voc.

O chefe estacou no p da escada, ao mesmo tempo que Zeca se levantou. Ah, sei... Acompanhe-me economizando conversa. ditou Gervsio, seco. E enveredou pelo corredor,

Numa sala, entre vrios garotos reunidos, indicou: Este o Giba, chefe dos boys... Ele lhe apresentar seus companheiros e explicar sua s funes. Giba no apresentou ningum, e to logo o chefe virou as costas, saiu atrs. Nem os outr os boys mostraram maior entusiasmo pela presena de Zeca. Limitavam-se a conversar en tre si, s vezes, aos cochichos. Minutos que parecem horas Zeca sentia-se encabulado, porm no se deixou abater. De certa forma, considerou no rmal a reao dos garotos, j que no o conheciam. Mais dia, menos dia, acabaria se entrosand o com a turma. Sentado a um canto, em silncio, pensava em como era duro o primeiro dia de trabal ho. Chato sentir-se estranho, no conhecer ningum. Ento, ouviu um dos garotos falar claramente: No sabia que tinham posto anncio pra boy... O loirinho ao lado esclareceu com ar maroto: No puseram! No? Tem certeza de que no puseram anncio? O garoto afetou espanto, enquanto o loirinho se divertia com a trama. Zeca tambo rilou os dedos sobre o tampo da mesa, mas no levantou a vista. Estava claro que se referia m a ele. Os boys voltaram a cochichar e a rir, at que um deles deixou escapar, num volume de voz suficiente para ser ouvido: Ser que algum espio do Gervsio? Aparentemente, apenas um dos boys desaprovava a brincadeira. O nissei s tinha ate nes para a sua lapiseira. No se cansava de empurrar e recolher a ponta de grafite. Os demais,

embora no participando ativamente, divertiam-se com as artimanhas dos engraadinhos , ao mesmo tempo que ignoravam ostensivamente o novo companheiro de servio. Zeca sentia o suor brotar, umedecendo-lhe a testa. No via a hora de o mandarem re alizar qualquer servio. Pelo menos, na rua, estaria a salvo daquelas brincadeiras desagr adveis. E, quem sabe, quando voltasse, seria recebido como um veterano. Felizmente, Giba retornou sala, e sua presena foi o suficiente para que os garoto s mudassem de comportamento. Auxiliado pela garota que o acompanhava, esparramou o material sobre a mesa e propunha-se distribuir as incumbncias, quando ela cobrou: Ningum me apresenta, no? O chefe dos boys voltou-se na direo de Zeca e tentou: Este ... Tudo bem? Tudo bem. A voz dele quase no saa. Ela replicou: Voc tem nome? Ah, Jos Carlos... Ah, Jos Carlos... imitou um engraadinho em falsete. o novo boy. cumprimentou ela, sorrindo.

Zeca encabulou, porm prosseguiu: Mas o pessoal me chama de Zeca. E eu sou Sarita, secretria... e a cochichar, ela instruiu: correspondeu ela. Como alguns boys voltassem a rir

No ligue para eles, no. Eles so meio bobinhos mesmo. A reprimenda em tom de brincadeira s serviu para conturbar ainda mais o ambiente. E alguns vaiaram: 10 Buuuuu! Foraaaaa! Sarita despediu-se com um aceno gracioso e retirou-se. Giba iniciou, ento, a distribuio do material. medida que chamava, os boys pegavam o s envelopes ou pacotes, ouviam as instrues e saam pelo corredor interno. Zeca no perdia nada, ateno total nos gestos e palavras. E pelo que ouviu, concluiu que

no havia grandes mistrios. As tarefas consistiam basicamente em entregar e retirar anncios em jornais ou editoras, servios de banco e correios, faturas para clientes e coisas do gnero. Exatamente o que imaginara: servio de levar e trazer. Cada boy recebia o nmero de passes necessrios para a conduo, de acordo com o roteiro a ser percorrido. Reparou que eram passes escolares e animou-se com a idia de se encontrar entre estudantes como ele. Por fim, ficaram apenas ele e mais um. O sujeito olhou para o seu lado com cara de poucos amigos, como se adivinhasse o que estava para acontecer. Quando pensou que Giba se dirigiria ao outro, ouviu na sua direo: Hoje, voc vai de acompanhante! luta sozinho! Entendido? Entendido respondeu Zeca, levantando-se prontamente. Quando Maurcio receber o material, voc sai com ele. Trate de aprender rapidinho, porque amanh vai pra

No precisa ter pressa. Uma revelao inesperada

Durante o intervalo em que aguardavam pelo material, os dois garotos no trocaram uma nica palavra. Zeca percebeu que, vez ou outra, Maurcio o observava, disfaradamente. Porm, como o outro no tomasse a iniciativa do dilogo, manteve a boca fechada. No ntimo, justificava-se: se desse uma de enxerido, poderia talvez piorar a situao. 11 Quando j no conseguia mais mascarar a apreenso, viu-se salvo pela intromisso da copeira, a mulher que conhecera na entrada da agncia. Voc tomou caf, Zeca? Tomei, sim senhora. Se quiser, s ir na copa e se servir. Obrigado. Ela passou a flanela sobre o tampo da mesa e interrogou: E marmita? No trouxe, no? No, senhora. .. No trouxe.. . Ah, o garoto almoa na lanchonete, ? logo de desfazer o mal-en tendido: Que isso, dona Ermelinda.. . go! brincou ela. Zeca percebeu a inteno, tratou

Eu no sabia que tinha onde esquentar. Amanh eu tra

Ainda se explicava copeira, no momento em que retornou a secretria, trazendo um p

acote caprichosamente embalado. Maurcio... Sua encomenda anunciou Sarita. retrucou Maurcio com

Pode entregar a ao boy. Hoje, eu estou de instrutor displicncia. 12

Apesar da atitude do colega, Zeca sentiu alguma simpatia na sua voz. E apressouse em pegar o pacote, que, apesar de volumoso e incmodo, pesava quase nada. Maurcio apen as abriu a porta, indicando-lhe o corredor. Ermelinda veio at a porta observar e intrometeu-se: Est vendo, Sarita? O Maurcio arranjou assistente. Quem pode, pode. No , Maurcio? Na recepo, foi a vez de Glorinha: E a, Maurcio? Vai de mos vazias? Vou levar o garoto pra conhecer a cidade. Ah, que gracinha! E no ajuda a carregar o pacote? Eu queria, mas ele fez questo de carregar, no mesmo? Zeca, pedindo confirmao. Tadinho dele... Pegou os passes? Peguei. Conhece bem a cidade? Conheo... mais ou menos... E as linhas de nibus? Mais ou menos. Maurcio observou-o de lado, desaprovando: Mais ou menos no serve! Boy tem de conhecer tudo! E no adianta enrolar que o Giba sabe o tempo que cada um precisa pra fazer o servio! Certo. Aps quase dez minutos de silncio, no ponto, tomaram o nibus. Quando o veculo acelerou a marcha, Maurcio interrogou como quem no quer mas est querendo: Voc protegido de quem? Zeca surpreendeu-se com a pergunta direta e desentendeu: afirmou e voltou-se para comentou a secretria, sorrindo.

tornou ela e desatou a rir. J na rua, Maurcio interrogou, srio:

Protegido como? No entendi... Se voc no veio atravs de anncio, algum deve ter conseguido pra voc! Ah, foi o Batista. Batista? 13 Ele trabalha numa grfica. Diz que vem sempre pegar e entregar servio na agncia... Maurcio deu um intervalo, como se tentasse localizar mentalmente. Em seguida, arr iscou: No o Batista da Colorcor? Esse mesmo! Ele namorado de minha irm Marilena... e como sabia que eu estava a fim de trabalhar... Tudo bem interrompeu o outro. Quem tem padrinho no morre pago, u! careteou o boy. Que Batista?

Mais vontade com o incio de conversa, Zeca comentou: Alguns boys no gostaram porque eu vim com indicao. .. Ficou uma situao meio chata. Quem no gostou? Acho que . Sentado do lado da janela, Maurcio falava sem perder de vista o trajeto do nibus. O pessoal fica desconfiado quando contratam algum sem anunciar. Fica todo mundo imaginando que um espio do Gervsio... O chefe de pessoal? Alm disso, voc no precisa se preocupar, que aqueles dois esto na mira do Gervsio. No demora nada, vo pra rua. Eles no trabalham direito? Eles fazem o servio, mas so muito folgados. Maurcio voltou a examinar o trnsito. Depois, reatou: Voc tambm no tenha iluso! Indicado ou no, se enrolar, vai pra rua! Certo. Eu estou a fim de trabalhar srio. Preciso desse emprego. De repente, o movimento tornou-se mais lento por causa do trnsito ruim. Maurcio fe z uma careta e tornou ao assunto: O pessoal est meio alvoroado, tambm, porque mandaram o Tonho embora. Como voc entrou no lugar dele, eles ficaram fazendo onda. Mas voc no tem nada com isso. Por que mandaram embora? Ele enrolava? Ah, voc deve estar falando do Russinho e do Qaudionor.

O Tonho? Era o melhor boy da agncia! O melhor? Ento, por que despediram? 14 O companheiro hesitou um instante, mas em seguida abriu-se: Bateram uma carteira na agncia e levaram uma grana alta da Claudete... Voc quer dizer que roubaram uma funcionria? Quem a Claudete? A Claudete contato. E foi... foi o Tonho? Foi nada! Ento, por que despediram? O Gervsio cismou que foi ele! Zeca sentia-se confuso. No entendia como podia acontecer um negcio to sujo num ambiente daquele nvel. Jamais imaginaria um ladro naquela casa; no entre os funcionr ios. Pensou um pouco e arriscou: Voc acha que no foi o Tonho... Tenho certeza que no! E por que o Gervsio cismou com ele? Porque ele era preto. A princpio, Zeca no entendeu: Porque era preto?... Voc acha pouco? L vem bronca! Horrio de estudante? Russinho interrogou para certificar-se de que ouvira corretamente e caiu na garg alhada. Os demais fizeram coro. E Zeca, que no aprovara a reao, estrilou: Qual a graa? Estudante tem direito de sair mais cedo! V l em cima e diga isso ao Gervsio! 15 Zeca pressentiu onde os boys queriam chegar e no gostou nada da histria. A me havia de gostar menos ainda, se soubesse que andava perdendo aulas por causa do emprego. Ela no queria que ele trabalhasse antes de terminar o colgio. Se no fosse a influncia de B S por isso? Para o Gervsio muito! Trabalha no atendimento de clientes.

interrogou Maurcio, encarando-o.

atista, no teria conseguido. Apesar disso, no desistiu. Na primeira oportunidade, pegou Giba de jeito e cobrou o horrio de estudante. No precisou nem da resposta: pela cara do chefe, percebeu que os garotos tinham razo. Se quiser cumprir horrio de estudante, ter de fazer um requerimento para o Gervsio. E trazer atestado da escola. A expectativa de defrontar o chefe de pessoal no lhe agradava nada. E acabou por desencorajar-se ao perceber que, apesar do grande nmero de estudantes que trabalh avam na agncia, ningum saa mais cedo. Ao contrrio, a regra era sair mais tarde e perder p elo menos a primeira aula. Zeca ainda consultou Maurcio, de quem se tornara amigo. O garoto no escolheu palav ras para demov-lo da inteno. Que um direito todo mundo sabe! Porm, os poucos que tentaram acabaram sendo despedidos! Srio?, O Gervsio no gosta de estudante. Poxa! No gosta de preto, no gosta de estudante.. . De que ele gosta, afinal? Do patro! Como o garoto ficasse ensimesmado, Maurcio completou: Quer um conselho? estudante! Se voc precisa mesmo do emprego, esquea o horrio de

Zeca ouviu o conselho e desistiu. Passou a trazer o material escolar para a agnci a e, ao final do expediente, tocava direto para o colgio. O jantar que esperasse pela volta. No entanto, afora a correria para chegar a tempo de pegar a segunda aula, o rest o ia bem. Adaptara-se perfeitamente ao servio, e os colegas j no lhe guardavam segredos. A convivncia diria acabara por desfazer qualquer reserva em relao a ele. 16 Embora Maurcio continuasse sendo o amigo mais chegado, falava com todos, discutia futebol, trocava discos e participava normalmente das brincadeiras, desde que no pusessem em risco o emprego. Pelo menos as duas horas de almoo eram sagradas. Depois de lavadas as marmitas, o s boys limpavam a mesa maior, armavam a redinha e partiam para um disputado pingue-pong ue. E

todas as diferenas reduziam-se, ento, ao maior ou menor mrito esportivo. De vez em quando, o intervalo do almoo ganhava uma graa especial. Era quando Glori nha decidia almoar na agncia, no refeitrio dos boys. Marmita, jamais. Ela mandava algum buscar sanduche na lanchonete e sentava-se mesa. E o almoo, ento, transformava-se e m festa. Sua presena dava vida nova ao ambiente. A descontrao tomava conta de todos. E, se assistia ao jogo, a disputa tornava-se acalorada. Ser escolhido para comprar seu lanche constitua uma distino especial. E se ela cism ava de dar suas raquetadas, tornava-se difcil a deciso. Ceder-lhe a vez contava pontos importantes, mas jogar com ela era o maior de todos os privilgios. Com exceo de Shiro, que se apaixonara por uma apostila de informtica, os outros boy s sonhavam com as atenes da adorvel recepcionista. E Zeca no era exceo. Corria na lanchonete, cedia sua vez no jogo, fazia o que ela pedisse. Todos disputavam sua s atenes. E, mal ela saa, principiava a discusso. Isso no para vocs, no! Olha s a cara dele! boys pouco pra ela! zombava Giba. retrucava Maurcio. Chefe de

Pode perder as esperanas!

E, invariavelmente, entrava Carlinhos, no tom de costume: Qualquer fim de semana, ns vamos juntos pra praia... Ele destoava visivelmente do s companheiros. Usava tnis importados, camisetas vistosas, calas de marcas famosas e relgio digital. Para com pletar, s falava de praia, surfe e veleiros. Assim, quando se intrometia na conversa, os companheiros murchavam, porque no dava mesmo para competir. Num desses intervalos de almoo, Carlinhos gabou-se: No feriado de setembro, vou estar de prancha nova. E a Glorinha est doidinha pra aprender a surfar... De todos os boys, apenas Russinho se arriscou a divergir: 17 Esse cara pega onda na Freguesia! Carlinhos negou importncia aos apartes do coleg a: Olha pra mim,- Russinho. V se eu tenho cara de periferia. O que adianta andar de roupa bonita e no ter dinheiro nem pra conduo? O garoto lanara uma indireta para o companheiro, porque, pouco antes, Carlinhos h avia confessado que estava sem dinheiro e pedira uns passes ao Giba. Fiquei duro, porque paguei o cursinho! Eu estudo, no sou marginal, no!

Que cursinho, cara? Diga a onde que voc estuda! Voc no sabe, porque nunca passou perto de uma escola! Russinho riu debochado. Os demais acompanhavam a discusso sem intervir. Ningum apoiaria o Russinho, que no passava mesmo de um moleque folgado. Porm, a antipatia de Carlinhos andava longe de atrair qualquer solidariedade. Naquele dia, com exceo de Shiro, que se mantinha absorto sobre o manual de micros, os demais esperavam apenas as seis e meia para sarem voando. Afinal, no era sempre qu e conseguiam sair no horrio normal. S mais cinco minutos e... Antes que Carlinhos tivesse tempo para terminar a fala, entrou Giba, muito srio. Ateno, pessoal, ningum sai! Por que no? Que aconteceu? quis saber Maurcio.

O Gervsio quer conversar com a gente. E por que no se lembrou de conversar antes? O que ele quer? tinha prova na escola. No sei. S disse pra segurar. Carlinhos traduziu o pensamento de todos. L vem bronca! 18 Escndalo na agncia de publicidade Pela maneira como o chefe de pessoal entrou na sala e fechou a porta, os boys entenderam que se tratava de coisa sria. E, no que abriu a boca, dissipou qualque r dvida possvel: Pensei que havia despedido o nico ladro desta empresa! Agora, vejo que aquele negrinho fez escola! Zeca no queria acreditar no que ouvia; a custo continha o tremor das pernas. Os boys, inclusive o chefe, entreolharam-se, um mais ressabiado que o outro. Gervsio observava as reaes, sem mostrar qualquer sinal de pressa na concluso. Seu Dimas, contato de um cliente nosso, foi roubado dentro desta agncia! Vocs podem imaginar a vergonha que isto significa para a nossa diretoria? Diante da revelao, alguns baixaram a cabea, enquanto outros procuravam por coisas inexistentes, nas paredes brancas. Apenas Shiro sustentava o olhar indaga tivo do chefe, apesar do susto estampado na face. Giba... Todos os boys esto aqui? interrogou Gervsio. insurgiu-se Zeca, que

Esto, sim senhor. E dona Ermelinda? Chame-a, tambm! A copeira, que se responsabilizava tambm pela limpeza, desligou o aspirador de p e apressou-se em atender ao chamado. Sente-se ali, dona Ermelinda! garotos sua volta e sentou-se no lugar indicado. Muito bem tornou ele. sobre a mesa. Dinheiro tambm? Agora, vocs vo tirar tudo o que tm nos bolsos e colocar comandou Gervsio. A mulher examinou assustada os

indagou Russinho.

Principalmente dinheiro! Eu tambm? perguntou a copeira, surpresa.

A senhora tambm! Nada nos bolsos! Bastante constrangidos, os garotos esvaziaram os bolsos, retirando carteiras de trabalho, pentes, lenos, fichas de telefone, passes escolares e muito pouco dinheiro. 19 No h mais nada? No escondam, que ser pior! Em seguida, Gervsio passou ao interrogatrio: Que dinheiro este, Giba? O chefe dos boys gaguejou: Este aqui... Este dinheiro do caixa... E este meu. Muito bem comentou o homem, aps breve exame das cdulas. Shiro... Voc no tem dinheiro, no? No, senhor. Eu uso passe escolar. Gervsio observou-o e saltou a vista para o seguinte: Voc o Zeca? S isso... E sem esperar resposta: Quanto tem a de dinheiro? E passou adiante:

mostrou, levantando duas notas no ar. O homem virou-se para o chefe dos

boys e comandou, apontando para Zeca: Reviste-o! Difcil dizer quem ficou mais encabulado. Os dois garotos encaravam-se ressabiados , quando o chefe de pessoal insistiu: Que est esperando?

Giba examinou primeiro os bolsos da cala e, em seguida, os da jaqueta. No tem nada, seu Gervsio. Verifique na pasta escolar! 20 Giba remexeu o material de Zeca sem descobrir nada. Os olhos do chefe pularam, ento, para o objetivo seguinte. E voc. Cadinhos... Quanto tem a? O garoto mostrou as cdulas abertas no ar, de maneira que o chefe pudesse verifica r. Os colegas contaram com o rabo dos olhos e estranharam, pois Cadinhos havia dito que estava sem dinheiro. Ao contrrio das expectativas, Gervsio deu-se por satisfei to e seguiu adiante. Maurcio mostrou os trocados, insuficientes at mesmo para a conduo, e um passe escolar. Giba... reviste-o! comandou o homem. Maurcio mudou de cara. E o chefe revistou-o sem resultado. Reviste tambm a mochila! Giba revistou com igual resultado. Antes de comandar, novamente, o chefe de pessoal demorou-se examinando o Russinho, que j no sabia onde enfiar a cara. Por fim, desatou: Muito bem, seu Russinho... De onde surgiu tanto dinheiro? de um disco

Tanto? quis rir, mas fechou-se diante da seriedade do superior. que vendi ao Claudionor... Gervsio buscou a confirmao no ato: Onde est o disco? No armrio Pegue-o! indicou Claudionor.

O prprio Gervsio retirou o disco da capa e examinou o interior, minuciosamente. Se m nada encontrar, atirou-o com a embalagem sobre a mesa, com visvel desprezo. Ao me smo tempo, Giba constatava os bolsos limpos de Russinho. O chefe de pessoal, porm, no se deu por satisfeito. De onde voc tirou o dinheiro pra pagar o disco? Do meu salrio. Voc no d dinheiro em casa? No ajuda a famlia? quis saber do Claudionor.

Dou uma parte. Voc precisa me ensinar como que faz! Meu salrio deve ser maior e no sobra pra discos, no! Hesitou ainda um instante diante do garoto, mas acabou seguindo. Frente a frente com a copeira, pensou duas vezes, demorou a falar. Depois, interrogou, carregando na i ronia: A senhora no tem mais nada nos bolsos? No, senhor. Tem certeza que no? Tenho, sim senhor. Ento, paga o nibus com estas chaves?... A mulher avermelhou, visivelmente. O senhor est suspeitando de mim? Da senhora, no! De todos! Ento, vou-lhe dizer uma coisa: meu dinheiro est na sacola, mas se algum botar a mo pra revistar, trago meu marido pra tirar satisfao! No sou criana e muito menos ladr a! Gervsio nem se abalou: Quem no deve no teme, dona Ermelinda. A senhora prefere que eu chame a Polcia pra revist-la? A copeira ameaou choro; ele no se importou: A senhora serviu caf na sala de reunio, tarde? Serviu gua ou qualquer outra coisa? Ela no respondeu; ele prosseguiu: Quando serviu o caf, o seu Dimas se encontrava na sala? Responda, dona Ermelinda! A mulher enxugou os olhos no colarinho do avental e resolveu abrir o bico: Estava ele, seu Bruno, dona Claudete e seu Olmpio. Eu servi o caf e sa sem botar a mo em nada. E quando voltou para recolher as xcaras? Ainda se encontravam na sala? O seu Dimas tinha acabado de sair. Estava conversando com a dona Claudete, na portaria. Gervsio ruminou um pouco e tornou carga. Dirigiu-se, depois, ao grupo: Quem mais esteve na sala de reunio, durante a visita do seu Dimas? No escondam nada, porque amanh tratarei de confirmar tudo com o pessoal do atendimento. Eu estive duas vezes, a chamado da dona Claudete estavam... apressou-se a revelar Giba , mas

23 Giba ia dizer que se encontravam todos na sala, mas Gervsio ignorou: Ningum mais esteve l em cima? Eu estive. O seu Bruno me chamou pra comprar cigarro declarou Russinho.

Estavam todos na sala de reunio? Estavam, sim senhor. Tem certeza de que no ficou sozinho nem por um minuto? Fiquei, no senhor. ou aos demais: E ento? reunio? Pode perguntar pr seu Bruno. O inquisidor contentou-se e torn

Ningum mais?

Ningum foi ao banheiro ou passou perto da sala, durante a esclareceu Giba, reticente.

Nosso banheiro fica embaixo, seu Gervsio...

Gervsio ia dar por encerrada a sesso, quando a copeira interveio sem ser consultad a: Se eles saram da sala, qualquer um poderia ter entrado l e roubado o dinheiro! Por que somente ns temos de passar por esse vexame doido? O homem girou o pescoo para enquadr-la melhor. Por trs dos culos de grau, os olhos divertiam-se com o pano que ela trazia amarrado cabea. Em vez de responder, dirig iu-se ao chefe dos boys: Pode dispensar, Giba. Um ladro entre os boys Eu sempre disse que no era o Tonho! afirmou Maurcio, recordando a injustia.

O Tonho est fora, no conta mais! O negcio que tem um ladro aqui e a gente precisa descobrir quem ! retrucou Giba. Por que aqui? fora! 24 O chefe dos boys mediu-o com visvel antipatia: Ah, ? Me diga como que um estranho ou mesmo algum da agncia entraria no meio de uma reunio e roubaria o dinheiro, sem que ningum visse? E boy poderia roubar sem ser visto? retrucou Zeca, desaforado. Qual a diferena? Por acaso, boy invisvel? contrariou Zeca. Pode ser qualquer um da agncia! At gente de

Giba percebeu a contradio e saiu pela tangente: No conheo boy invisvel, porm conheo muito boy malandro!

Zeca sentia-se revoltado pelo ataque dirigido exclusivamente contra os garotos, mas tratou de arrefecer os nimos. No ganharia nada discutindo com o chefe, nem contribuiria p ara a elucidao do caso. A verdade que o novo roubo criara um clima horrvel entre eles. Primeiro, porque s e tornava evidente, agora, que Tonho fora despedido sem culpa, enquanto o verdadei ro autor dos furtos mantinha-se no anonimato. E depois, principalmente porque a situao fazi a que um suspeitasse do outro e ningum confiasse mais em ningum. O Gervsio tem razo! Isso coisa de boy\ E at desconfio quem seja.. . Giba. Quem voc acha? arriscou Claudionor. Vou ficar de olho! Apesar das indiretas de Giba, reforou

O ladro no perde por esperar! Russinho apontou sua mira na direo oposta:

Eu queria saber de onde sai tanto dinheiro pra comprar tnis importados, calas cara s, camisetas, relgios... O acusado riu, despreocupado: Quem pode, pode! Eu vou descobrir quem o rato! E a ns vamos ver quem pode e quem no pode! respondeu Giba. Descobrir? Eu tenho certeza de que voc j sabe quem ... insinuou Carlinhos.

Russinho percebeu onde o outro queria chegar com a insinuao e defendeu-se: O Giba me revistou e no achou nada. 25 Isso mesmo! revistado! apoiou o Claudionor. A dvida vai ficar por conta de quem no foi

Giba desgostou dos novos rumos da conversa e interveio: S no foi revistado quem estava acima de suspeita! Maurcio retrucou no ato: O Gervsio j se enganou uma vez com o Tonho. Quem pode garantir que no se enganou de novo? Se revistou um, tinha de revistar todos! Carlinhos defendeu-se, acusando: Qual , Maurcio? Voc est se entregando... Me entregando, eu? No entendi!

Do jeito que voc defende o Tonho, d at pra desconfiar. .. Desconfiar de qu? Fala! Ou voc era parceiro dele ou est com a conscincia pesada! Maurcio virou fera. outra sada, ameaou: Se Carlinhos no desse dois dele, a situao ficaria preta. Sem

Pode deixar! Eu vou tirar a limpo essa histria que o Russinho contou. E voc vai t er de explicar direitinho de onde sai o dinheiro pra comprar tanta coisa! Carlinhos deu de ombros; no ligou a mnima. Porm Giba interessou-se:

Que histria essa que eu no estou sabendo? Maurcio encarou Russinho, sugerindo que contasse, porm o outro baixou a cabea. Ento, ele mesmo passou a verso ouvida:

O Russinho disse que o Carlinhos mora numa biboca, l prs lados da Freguesia... E o que isso tem a ver com os roubos? Tem que o dele tem grana... desentendeu Giba.

Carlinhos vive dizendo que mora no Brooklin... e que a famlia

Giba voltou-se para Russinho: Voc disse isso? O outro hesitou antes de confirmar: Disse. E verdade? mentira! antecipou-se o acusado. insistiu Giba. Custou, mas Russinho abriu-se:

verdade ou no ?

No sei. Eu vi o Carlinhos numa casa l na Freguesia, e a turma do bairro conhecia ele... Carlinhos correu a explicar: Eu tenho uma tia que mora na Freguesia e conheo uma turminha l... Vai ver, foi l que ele me viu... Giba ouviu, sem prestar muita ateno, e voltou-se para o Russinho: Quando a gente no sabe, no fala! Alias, se eu estivesse no seu lugar, no abriria a boca! Por que no? S eu que posso ser acusado? Acusando os outros, voc no vai provar sua inocncia! Eu ainda no engoli aquela histria de assalto, no. E tenho certeza de que nem o Gervsio.

O boy murchou a olhos vistos. Carlinhos aproveitou para transferir o foco das suspeitas: Ningum engoliu! Aquela histria .do assalto est muito mal contada! O plano de Maurcio Dias depois, logo pela manh, Zeca e Maurcio tomaram o mesmo nibus. Ambos desceriam no largo de So Francisco. Um tinha servios de banco a realizar no centro velho. O outro tomaria o metr, na praa da S; precisava ir at um cliente na Zona Leste. Est mau o clima na agncia... iniciou Maurcio.

Mau apelido! concordou Zeca. E, enquanto no se descobrir o verdadeiro ladro, a tendncia continuarem as acusaes de parte a parte. No vai demorar muito, no! Eu bolei um plano para acabar de vez com tanto mistrio! Zeca no gostou da maneira como o colega falou. 27 Que plano esse? O que voc pretende fazer? Vou dar um aperto no Carlinhos! Exatamente o que temia. No havia dvida de que a atitude do amigo era uma reao contra as insinuaes de Carlinhos a respeito dele e de Tonho. Como o outro se calasse, Maurcio recordou: Voc reparou, naquele dia da discusso? a esculhambou com o Russinho. Em vez de apertar o Carlinhos, o Giba aind

O problema que no h nada de concreto contra o Carlinhos. Russinho est mesmo dizendo a verdade.

Nem sabemos se o

Tambm no havia nada contra o Russinho, mas o Giba acusou ele assim mesmo! Ele no acusou; s insinuou, Maurcio. a mesma coisa! Zeca sentia-se solidrio com o amigo, pelo que ele pensava em relao a Tonho, porm no queria alimentar suspeitas, que poderiam se mostrar depois infundadas. Entretant o, por mais que tentasse desviar-se do assunto, Maurcio tornava sempre mesma tecla: A troco de qu o Carlinhos inventaria uma mentira dessas? Se ele mente, deve ter a lguma coisa pra esconder! Zeca ainda tentou argumentar: Vamos supor que ele more mesmo na Freguesia. .. Isso no prova que o Carlinhos ladro.

Se a famlia no d dinheiro pra ele, ele deve tirar de algum lugar! E vai ter de diz er de onde! esse o seu plano? Pressionar o Carlinhos, para ele confessar?

Maurcio pressentiu a reprovao no rosto e nas palavras do amigo: melhor do que ficar de braos cruzados! Daqui a pouco, batem outra carteira e ns passaremos por mais um vexame! Eu no quero mais saber de ser revistado! No sei, no, Maurcio... Voc viu como todos se enganaram em relao ao Tonho. J te passou pela cabea que voc pode estar cometendo o mesmo erro? 28 Ah, , ?... E voc j pensou que pode acontecer com um de ns o mesmo que aconteceu com o Tonho? Zeca desviou a vista para o trnsito. Intimamente, no conseguia levar a srio a acusao de Russinho. E tinha a certeza de que, em outras circunstncias, nem Maurcio acreditar ia. O amigo estava, de fato, revoltado com as insinuaes do boy surfista. Verdade que Carlinhos, s vezes, cansava com suas histrias de grandezas. Alm de que s falava em p de igualdade com Giba e Glorinha, devotando um quase desprezo aos dem ais. Naturalmente, essas atitudes contribuam para ele consolidar uma imagem antiptica f rente aos colegas. Porm coloc-lo como suspeito de roubo, sem qualquer prova, no tinha o menor cabimento. E da? Pensou no que eu disse? cobrou Maurcio.

Zeca estava distrado; custou a captar o sentido da pergunta. Seguramente, Maurcio no aprovaria sua atitude, porm ele no podia fugir prpria conscincia. Vai me desculpar, Maurcio... Estou fora. Se a gente no fizer nada, nunca vai descobrir! Eu sei... Mas no quero ficar mal com ningum. No assim, sem provas. Maurcio desgostou, mas no desistiu: Eu nem te contei o plano... Voc j me disse que vai dar uma prensa... No isso? Vou pegar o endereo da Freguesia com o Russinho e me plantar l, no sbado. Zeca riu, descontrado. No conseguia imaginar o Maurcio bancando o detetive, numas quebradas que ele nem conhecia direito. Voc vai perder o sbado toa.

Perco sbado, domingo, o que for preciso, mas tiro esse negcio a limpo! Vai com jeito, Maurcio... De repente, no nada do que voc est imaginando.

Se no for, perderei meu tempo! E isso eu tenho pra jogar fora! 29 Zeca percebeu a decepo do companheiro e tratou de explicar: De qualquer jeito, no daria pra eu ir... Sbado aniversrio da minha velha; vai ter um almoo l em casa com a Marilena e o Batista. neste sbado o aniversrio? Diante da afirmativa, Maurcio voltou a martelar: E se a gente fosse no outro fim de semana? No estou a fim. No me sentiria bem. Ento, vou sozinho! Zeca desviou a vista para a janela e agradeceu intimamente, porque o nibus j se ap roximava do largo, onde deveriam saltar. Estamos chegando. Temos de descer no prximo ponto campainha. Desceram e despediram-se. Na agncia, a gente se fala... nada. O outro tocou lembrou Zeca. Maurcio seguiu em frente, sem dizer comentou, puxando o cordo da Voc toparia?

em direo ao banco. Agora, toda ateno era pouca. Teria de caminhar at o centro bancrio e, naquele pedao, proliferavam os trombadinhas. O menor cochilo bastaria p ara ficar sem a maleta. No gosto deste lado da cidade! resmungou e apertou os passos.

Mal pensou, cruzou o garoto em disparada. No teve tempo sequer para gravar a fisionomia. Apertou instintivamente a maleta contra o peito, prendendo-a com as duas mos, enquanto o corao disparava. E, logo a seguir, passou uma multido, correndo e gritan do: Pega ladro! Pega ladro!

Desviou-se to rpido quanto pde para um dos cantos da rua, com medo de ser atropelad o, mas percebeu que a correria freara logo adiante, na boca do largo. Deviam ter ca pturado o trombadinha. Do meio do aglomerado, levantavam-se gritos ferozes: Lincha! Lincha!

Aproximou-se sem aliviar a presso das mos sobre a maleta. Um negro forte sustentav a pelo brao o terrvel assaltante: um negrinho franzino, que no teria mais de catorze anos. Sentiu uma presso estranha no peito, quase um enjo. Virou as costas, imediatamente , e afastou-se. A caminho do banco, a tyoca ainda amargava. E um pensamento tomava conta de sua cpabea: aquele bem podia ser um garoto como Tonho, despedido? sem justa causa. Ou um garoto qualquer, a quem se negara o direito de trabalho, porque era preto. Zeca descobre Sarita Dia seguinte, durante o Almoo, Zeca relatou, impressionado, a priso do trombadinha no centro velho. Russinho e Claudionor haviam lido sobre o caso no jornal do dia. O s outros no se importaram absolutamente com o relato ou com o destino do garoto. 31

Frente pouca receptividade, Zeca recolheu-se ao silncio. Na realidade, a reao dos colegas no se prendia a outra coisa seno situao interna da agncia. Por isso, s faltou agradecer, quando Sarita veio lhe pedir para comprar um sanduche. Voc me faz esse favorzinho? pouco... Claro que fao! Vou correndo! Eu ainda preciso terminar um trabalho pra daqui a

Foi at a lanchonete e voltou, to rpido quanto possvel. Aqui est, Sarita. Pode ficar. Como Zeca no entendesse, ela explicitou: Fique com o troco! Que isso! De jeito nenhum! Ah, um boy orgulhoso, hein? No orgulho, no, Sarita. recompensa. D pra entender? brincou ela. Eu penso que favor favor, no tem nada a ver com Sanduche, suco de laranja e troco.

A secretria deu as costas mquina eltrica, apanhou a bolsa no espaldar da cadeira e guardou o troco. Ento, muito obrigada voltou a agradecer.

No tem de qu. Quando precisar... Quer dividir comigo? ofereceu ela, mostrando-lhe o sanduche.

Obrigado, Sarita. Acabei de almoar.

Ento, sente-se a, me faa companhia... Os olhos do garoto brilharam de satisfao. Embora ele passasse inmeras vezes por aqu ela sala, durante o dia, nunca havia se sentado l, para uma conversa amena. E vontade no lhe faltava, pois ali se reuniam as meninas, durante o intervalo do almoo. Eram secre trias, auxiliares de outros departamentos e at a Glorinha. Dos boys, apenas Giba e Carli nhos costumavam se aproximar. A no ser que voc tenha algo mais interessante pra fazer. .. desembrulhando o sanduche. Tenho nada. Se voc no se incomoda... Enquanto voc foi a lanchonete, terminei a datilografia. Temos tornou Sarita,

De jeito nenhum.

quase uma hora pra lanchar e conversar. Zeca reparou nas folhas de papel caprichosamente distribudas em vrias pastas impre ssas com o logotipo da agncia. 32 Tudo isso servio de hoje? interessou-se.

Servio da manh. tarde que vem chumbo grosso! Antes de comear a trabalhar, fiz um cursinho intensivo de datilografia, mas era mq uina comum... - Ah, o garoto tem currculo! Quer dizer que j est pensando em mudar de funo? A idia jamais lhe passara pela cabea. Por enquanto, dava graas por conseguir manter o emprego de boy. Sarita percebeu sua perplexidade e indagou: Que foi, Zeca? No me diga que pretende se aposentar como office-boyl O tom era de brincadeira, Zeca descontraiu-se: No, no isso... Sabe o que ? Este o meu primeiro emprego. Eu nunca trabalhei antes. E o que fazia? Estudava? Eu estudo. Estou na oitava srie. Ela franziu o nariz, desaprovando: Humm... No est muito adiantado, no... Estou nada. Repeti a sexta. E pretende continuar os estudos? Pretendo. Estou a fim de fazer um cursinho...

timo! E o que pretende estudar? Zeca sentiu-se trado. Por que fora dizer a ela que pretendia fazer cursinho? Sent iu que falara demais. E da, Zeca? Que carreira pretende seguir? Zeca coou as orelhas, que queimavam. Por fim, decidiu-se pela verdade: O problema esse. Ainda no sei o que vou estudar. J quis ser jogador de futebol, advogado, engenheiro... Isso normal. At a poca do cursinho, voc descobre a sua verdadeira vocao. Tomara! Sarita tomou o resto do suco e limpou os lbios no guardanapo de papel. Zeca a obs ervava, estranhando: desde que comeara a trabalhar na agncia, s tivera olhos para Glorinha. Agora, descobria que tambm Sarita era bonita. Uma beleza mais serena, diferente d a de Glorinha, mas sem dvida atraente. E ele nunca havia reparado, apesar de v-la diari amente. 33 E publicitrio? Que tem? perguntou ele, pego de surpresa.

Afinal, voc trabalha numa agncia de publicidade... Nunca te passou pela cabea torna rse publicitrio? Redator, diretor de arte, contato de atendimento. .. Zeca remexeu-se na cadeira. Novamente, sentia-se confuso. J vi que no te agrada a idia... tornou Sarita.

No... No isso, no. Como ela esperasse, ele explicou: que, antes de trabalhar aqui, no sabia nem o que fazia uma agncia de publicidade. Eu pensava que publicitrio era esse pessoal que anda por a fazendo propaganda de remdi os, distribuindo amostras grtis... Agora, j deu pra ver, no deu? Zeca pensou um pouco e confessou: Mais ou menos. H umas pessoas no andar de cima que ainda no sei o que fazem. Quem, por exemplo? O pessoal do Benevides... Tambm a Lea... ,_ Lea faz pesquisa. Antes e depois de um lanamento, pra sondar a opinio pblica. E o pessoal do Benevides faz isto aqui... explicou Sarita apontando para as folh as datilografadas nas pastas. Eles so os responsveis pelo pia-1 nejamento.

Sarita percebeu o ar perplexo do boy e tentou de forma mais didtica: O planejamento o primeiro passo pr lanamento de uma campanha... esse planejamento vai pras duplas de criao... Na Criao, eu conheo a Graa e o Osvaldo. O Osvaldo e a Graa criam os comerciais e as peas de propaganda, em cima da estratgia traada pelo planejamento. Entendeu, agora? Estou comeando a entender... Mais um ms e voc conhecer toda a rotina da agncia. Espero que esteja gostando do ambiente, do trabalho Estou... Claro que estou. ironizou ela. Em seguida,

Com essa cara? 34

Zeca ainda hesitou, porm no viu razo para esconder o que realmente o desgostava. Al is, o fato j devia ser do conhecimento de toda a agncia. Eu gosto do servio. muito chata. O problema esse negcio de sumir dinheiro... Fica uma situao

desagradvel mesmo. A pior coisa que existe no poder confiar num colega. Sarita deu um intervalo para atirar o guardanapo e os restos de po no lixo. Em se guida, confessou: Sabe que eu no consigo imaginar um ladro entre os boy si So uns garotos to maravilhosos! Voc acha? Claro que acho! E voc, no? Eu... Bem, eu no consigo desconfiar de ningum. Melhor assim. No corre o risco de desconfiar errado, no mesmo? Quanto mais a ouvia, maior se fazia a admirao de Zeca pela secretria. Enquanto os prprios boys se acusavam uns aos outros, ela simplesmente os achava maravilhosos. Maravilhosa era ela. Como no descobrira antes? Tentativa de roubo ou acidente? Zeca, vai l no estdio fotogrfico, que o Otvio t precisando de uma mo. Eu no ia entregar anncio no jornal? No vai mais! E anda logo que o Otvio t esperando! Zeca levantou-se e saiu. No entendia por que Giba o tratava de forma to rspida. Sentia que o chefe tinha algo pessoal contra ele. Alis,

s podia ser pessoal, pois, em relao ao servio, jamais dera razes para reprimendas. No p da escada, imaginou que talvez fosse o jeito dele. Pensando bem, Giba no trat ava Russinho ou Claudionor de maneira diversa. Nem Maurcio. Apenas com Carlinhos mostrava-se mais vontade. E com Glorinha, naturalmente. 35 l Subiu at o pavimento superior, onde ficava o estdio fotogrfico, e apresentou-se a O tvio, que conhecia apenas de vista. O Giba disse que voc estava precisando de uma mo... Ainda estou. De duas mos, para ser mais exato fique vontade. gracejou o fotgrafo. Entre e

O estdio fotogrfico era uma sala ampla com paredes pintadas cada uma de uma cor. E sobre uma delas havia um espesso cortinado azul-marinho, imitando boca de cena d e um teatro. Zeca estranhou o vazio. Em todo aquele espao, contou apenas dois mveis de formato estranho, em madeira compensada, um cabide com aventais na parede e uma espcie de tablado, pouco acima do cho, com duas sombrinhas abertas. Otvio, que sara quando ele entrara, retornou com alguns jornais velhos e uma lata de tinta. Pelo visto, no bem o que voc imaginava... Bem... Eu pensei que encontraria um monte de mquinas consentiu Zeca.

O equipamento muito sensvel e custa um dinheiro. S vem para o stdio na hora de fotografar. Zeca deu uma olhada sua volta e interrogou: Onde eu ajudo? Otvio examinou-o por um instante e interrogou: Voc bom pintor? Eu j pintei o banheiro l de casa... Ah, se tem experincia, fica mais fcil. O que eu vou pintar? Enquanto eu preparo a produo da foto, voc pinta o fundo-infinito menor. Est bem? Zeca acenou afirmativamente com a cabea e aproximou-se da lata de tinta. Examinou sua respondeu Zeca, surpreso com a pergunta.

volta e ficou indeciso. Ah, pode usar o avental do Emdio. a segunda vez que ele me falta este ms Otvio. Zeca vestiu o avental manchado de tinta seca e ficou sem saber o que fazer. Dian te da indeciso, o fotgrafo indagou: Que foi, Zeca? No gosta de pintura, no? Um tanto encabulado, Zeca confessou: No isso, no. Eu s queria saber onde que fica o fundo-infinito... Otvio riu a valer com a histria. E apontou, em seguida, para um daqueles estranhos mveis, explicando: O fundo-infinito aquela armao de madeira. Ah, aquilo ali? Olhe bem para ele e me diga se no tem cara de fundo-infinito... Zeca riu amarelo; o outro pediu: Forre antes o carpete com jornal e use todo o seu talento de pintor. e, a gente descobre que voc tem jeito para diretor de arte. Pode comear? correspondeu Zeca, mais descontrado. De repent tornou

Enquanto ele pintava, Otvio montou o trip e a mquina fotogrfica. Depois, os spots pa ra iluminao e as sombrinhas. Observou o foco da mquina, experimentou as luzes e corrig iu a posio da sombrinha, vrias vezes, at pr-se de acordo. Ao final, aplaudiu. Tudo perfeito! S falta a estrela! Notando a curiosidade do boy, o fotgrafo revelou com ar maroto: Agora, voc vai conhecer a estrela da nossa foto. Falou e saiu, retornando minutos depois. Em uma das

mos trazia algo encoberto por um pano branco. Caminhou p ante p e cantarolou, fazen do suspense. Finalmente, depositou a pea com o pano sobre o fundo-infinito ao lado, onde preparou a fotografia, e anunciou: Senhoras e senhores, temos a satisfao de apresentar... Getal!... a margarina veget al mais vegetal de todas as margarinas! Num gesto rpido, Otvio retirou o pano e mostrou:

Quando terminarmos a foto, a margarina sua. Enquanto o fotgrafo preparava a produo da foto, Zeca pintava o fundo-infinito menor . E da at o final da tarde, acabaram-se as reservas. Zeca divertiu-se a valer com Otv io, que se mostrava espirituoso por qualquer motivo, alm de obter uma srie de informaes sobr e fotografia de publicidade. Fora, sem dvida, uma experincia bem mais interessante q ue enfrentar o trnsito e os trombadinhas na rua. No entanto, mal botou os ps na sala dos boys, sentiu o clima adverso. Voc gastou a tarde inteira pra pintar aquele fundo-imfimito? cobrou Giba, severo.

Alm do chefe, Shiro, Claudionor e Ermelinda esperavam pela resposta. Eu no fiz s isso! E no podia sair antes que o Otvio me dispensasse! Zeca rebelou-se pela repreenso injusta e afastou-se. Foi at o armrio pegar a pasta escolar, mais para desviar-se do assunto que por necessidade. E percebeu, ento, a anormali dade. Quem mexeu no meu material? Giba observou-o com pouco caso. Aqui, ningum mexeu em nada! Como no mexeu, se a capa est arrancada da pasta? A folha de passes estava aqui dentro! Algum pegou! Enquanto falava e mexia na pasta, a folha de passes caiu do meio do caderno. No so estes os passes que voc estava procurando? So estes mesmos! confirmou Zeca, conferindo. plstica! Portanto, algum mexeu! interrogou Giba, recriminando.

Mas eles estavam dentro da capa

Zeca percebeu, ento, a copeira apontando disfaradamente para o Claudionor. E, como ele no tomasse nenhuma atitude, ela falou claro: Eu vi algum com essa pasta na mo no faz nem meia hora... Claudionor voltou-se, instantaneamente, na direo da mulher. E doeu-se com a indire ta: Voc t precisando de culos! Eu tambm fiquei aqui, quase a tarde inteira, e no vi ningum mexer em nenhuma pasta! Tem certeza de que no viu, Claudionor? 39 Giba cansou-se da conversa e interveio: T faltando alguma coisa? ironizou a copeira.

Acho que no

negou Zeca.

Ento, pra que tanto escndalo? Quer dizer que mexem na minha pasta, rasgam a capa de plstico e eu tenho de ficar quietinho, ? Vai ver que a pasta caiu no cho e a capa rasgou sozinha Ermelinda balanava negativamente a cabea. um pouco: Se eu fosse voc, no deixava nada de valor no armrio... A gente nunca sabe se mexem por curiosidade ou com outras finalidades... Assaltado ou assaltante? Desde a primeira conversa com Sarita, Zeca no conseguiu mais tir-la do pensamento. E, quanto mais pensava na secretria, mais forte se tornava a impresso que ela lhe cau sara. A verdade que nunca uma garota ocupara tanto espao no seu pensamento. E, no entan to, se estivesse apaixonado, poderia at se dar mal. A troco de qu, uma secretria bonita , prestes a entrar numa faculdade, se interessaria por um office-boy que nem o pri meiro grau terminara? Provavelmente, ele estava interpretando as coisas de maneira errnea. Sarita apena s se interessara em saber algo sobre sua vida porque era o seu jeito. Preferia falar srio a tratar de fofocas. Ela mesma no lhe dissera que achava todos os boys maravilhosos? Zeca sentia-se confuso. E fazer o qu, se no conseguia parar de pensar nela? Enquan to ajudava Otvio, na tarde anterior, ele s pensava em contar-lhe a experincia, as conv ersas que tivera com o fotgrafo, as coisas que aprendera. Finalmente, venceu as resistncias e entrou. Na sala das secretrias, Claudete e Dor inha conversavam animadamente com outras e com as garotas do atendimento. Sarita, porm , 40 mantinha-se no seu lugar. Pelo jeito, estudava para alguma prova. tentou Claudionor.

De sada para o corredor, envenenou mais

Zeca pensou em atravessar para a sala contgua, quando ouviu: Oi, Zeca... O corao disparou. Oi, Sarita... Vi que voc tava estudando, no quis interromper...

Estava s recapitulando. Consegui dar uma lida geral, ontem noite. Esclareceu e fechou o caderno. Chega aqui. Ouvi dizer que voc passou a tarde, ontem, no estdio fotogrfico... o foi a experincia? No sei se valeu pra alguma coisa... Na verdade, fui l pintar o fundo-infinito... No foi isso que o Otvio me falou. No? O que ele disse? Sarita percebeu seu encabulamento e tornou, mais sria: Bem, ele me disse que voc realmente foi l pra pintar o fundo-infinito... giou, tambm, o seu interesse pelo trabalho dele. Srio? perguntou Zeca, duvidando. Otvio de perguntas... Eu no entendia nada, fiquei enchendo o Mas elo Com

Por isso mesmo ele gostou. Qualquer outro poderia ter ido l pintar e no se inter essar por nada do que acontecia em volta. Eu no sabia nem o que era fundo-infinito. Sarita riu. E como era bonito o seu sorriso, os seus dentes, os seus cabelos. Ele me bontou. Enquanto falavam, abriu-se a porta da sala, e entrou Ermelinda seguida pelo Russ inho. A copeira passou a flanela sobre a mesa e, percebendo restos de po, interrogou: No foi almoar em casa, Sarita? Hoje, foi na base do lanche mesmo. Deus me livre! reagiu a copeira, torcendo a boca. fazem um mal danado! Antes que Sarita pudesse dizer algo, Russinho aparteou: 41 Eu no posso comer em lanchonete! Sabe por qu, Sarita? Por qu, Russinho? Faz mal pr meu bolso! Disse em tom de piada e riu. Zeca e Sarita corresponderam. A copeira contrariou, com cara de poucos amigos: Eu no sei se o Russinho pode ou no pode comer na lanchonete.. . Mas que tem gente Esses sanduches de lanchonete

a com o bolso recheado, isso tem! Sarita mantinha o ar divertido. U... Ser que algum ganhou na loteria e eu no fiquei sabendo? Ermelinda interrompeu o servio e encarou-a: Loteria? Ganharam foi na bolsa de seu Dimas!

A secretria constatou onde a outra pretendia chegar e tratou de desconversar: Ainda bem que estamos entre amigos, no ? A mulher azedou ainda mais: Amigos? Deixe o anel ou os brincos dando sopa, pra ver o que acontece! A indireta, repercutiu com um mal-estar geral na sala. Os boys entreolharam-se r essabiados, Sarita no disse nada. Quando a copeira sentiu que no estava agradando e j se dispun ha a sair, Russinho resolveu dar-lhe o troco: E o seu marido, hein, Ermelinda? A mulher segurou o passo e perguntou com voz estridente: Meu marido? Que tem meu marido? No era ele que vinha acabar com a raa do Gervsio? Ela s faltou espumar de tanta raiva: Ele s no veio pra no perder dia de servio! Meu marido trabalhador!

E ns, o que somos? interveio Zeca. Ermelinda ignorou a intromisso, seguiu dirigindo-se ao Russinho. Pelo brilho dos olhos, ela o comeria vivo. Se o Gervsio tivesse me revistado, ele vinha com tudo! E botava pra quebrar! Disse e saiu. Russinho foi atrs, caoando. Que foi, Zeca? Est sonhando? interrogou Sarita.

Ta v me lembrando de uma coisa... Voc sabe como foi a histria do assalto com o Russinho? Outro dia, algum falou nisso... Eu fiquei de perguntar ao Maurcio, mas acabei me esquecendo. Sarita deu de ombros: Eu sei o que todos sabem. Russinho foi assaltado na rua e tomaram-lhe o dinheir o. Dinheiro da firma? Da firma e dele. Por que voc pergunta? Se no respondesse, poderia dar a impresso de que suspeitava do colega.

Alguns boys dizem que ele inventou a histria... Que maldade! O Russinho seria incapaz!

E que embolsou o dinheiro.

Um encontro inesperado Na sexta-feira, Zeca devorou o contedo da marmita com uma voracidade incrvel. Quan do se dirigia pia da cozinha, Ermelinda interveio: Vai tirar o pai da forca ou jogar conversa pra cima da Sarita? Nem um nem outro. Vou ao Shopping, comprar o presente da minha me. brincou a copeira. enfatizou Zeca, enxugando as mos no pano de prato. completou ela.

Dia das Mes j passou!

Amanh o dia da minha me!

Lugar de enxugar a mo na toalha do banheiro!

No Shopping, Zeca perdeu muito da disposio inicial. No estava nada fcil comprar o presente, dentro do oramento disponvel. 43 A coitada da me ganhava sempre as coisas que faltavam na casa. Se a casa precisav a de pratos, aproveitavam o aniversrio dela e davam pratos. E assim o rolo de macarro, assadeira e tudo o mais. H muito a me no ganhava um presente de verdade, algo para s ela usar. Da a idia de Zeca. Ainda que fosse uma lembrancinha de pouco valor, queria dar-lhe algo que fosse exclusivamente dela. Porm, oferecer o qu, se dispunha de to pouco dinheir o e os presentes custavam tanto? O desapontamento crescia. J pensava em dar meia-volta e retirar-se, quando ouviu a voz inconfundvel s suas costas: J escolheu o meu presente? Zeca virou-se, surpreso. Oi, Glorinha, voc aqui? E, ento, j escolheu? insistiu ela.

Os olhos de Glorinha brilhavam ainda mais que de costume, pulando das correntes para as pulseiras, dos brincos para os anis. Pela quantidade de jias que usava, devia real izar-se circulando em meio quelas vitrinas reluzentes, repletas de coisas bonitas. Afinal, o que faz aqui? tornou ela, mais natural. E cochichando junto ao seu ouv ido: No t pensando em assaltar a loja, t? Zeca sentiu o rosto corar, ela prosseguiu no mesmo tom:

preciso tomar cuidado, porque eles tm equipamentos eletrnicos, alm de seguranas disfarados de clientes. Em vista da insistncia, Zeca acabou confessando: Queria comprar um presente pra minha me.. . Ela no o deixou terminar: timo! Vou ajudar voc a escolher! Quer? No vai dar no, Glorinha. Eu tava totalmente por fora dos preos.

Que nada! Vamos encontrar um presente sensacional! No precisa ser to sensacional. contraps Zeca, humilde. O importante que seja do tamanho do meu bolso

Glorinha conhecia do ramo. Aps examinarem brincos, correntes, bijuterias e pergun tarem vezes sem conta os preos, acabaram descobrindo algo mais ou menos na medida entre o gosto e o custo. Ainda bem especulao. suspirou o boy. As balconistas j devem estar cansadas de tanta

Bobinho! Elas esto aqui pra isso! 44 Zeca examinou os cabelos brilhantes da recepcionista, os olhos verdes sombreados e imaginou o gerente se derretendo todo. Qualquer reclamao dela, seria capaz at de vi r atend-la pessoalmente. Tem certeza de que isso mesmo que voc quer? estiver convencido, procuramos outra coisa. Est timo! Minha me vai adorar! interrogou Glorinha. Se no

E o preo, t bom? T dentro. Ento, tudo bem. Eu? Voc fez uma belssima escolha! Eu tava apavorado!

Se no fosse voc, teria ido embora!

A balconista providenciou uma caixinha para a corrente e arrematou com um lacinh o delicado, que valorizou ainda mais o conjunto. Ao lado de Glorinha, Zeca percebi a como os garotos e at alguns senhores a examinavam. Ela era mesmo bonita. E, alm disso, tin ha jeito de gente fina. No era toa que as balconistas a distinguiam com tantos salam aleques. Caminharam a p at a agncia. Zeca no cabia em si de contentamento: pela soluo do presente e pela companhia. At imaginava os comentrios dos companheiros, quando soubessem que Glorinha o ajudara a escolher o presente da me. Provavelmente, no

acreditariam se contasse que ela se enganchara no seu brao, durante a caminhada, deixando muita gente com inveja. Obrigado, Glorinha agradeceu, novamente, na entrada da agncia. no teria conseguido. Ah, no foi nada. Sem voc, eu

Qualquer hora, voc me traz um chocolatinho. Est bem assim?

Desconhecia Zeca que j haviam sido vistos. Quando puseram os ps na recepo, foram recebidos com uma verdadeira salva de assovios. Ele encabulou, ela nem um pouco. Ao contrrio, fez questo de revelar tudo: Vocs sabem onde ns estivemos? Na sua interrogao havia uma ponta de malcia. Fazendo compras no Shopping. Com o Zeca? estranhou Claudionor.

Com quem mais havia de ser? 45 Pena que Zeca passou a mo na minha corrente . . . E Glorinha enfiou a mo no bolso dele e retirou uma jia. Por que no me avisou? Eu iria com voc! Glorinha respondeu com desaforo: E voc queria que eu fosse busc-lo no salo de bilhar? Parece que no pensa em outra coisa! A recepcionista lanava uma indireta para o chefe dos boys, que, nos ltimos tempos, gastava os intervalos do almoo no salo de um bar prximo. Alm do mais, eu estava muito bem acompanhada! Novos assovios e piadinhas. Pena que o Zeca passou a mo na minha corrente... Antes que Zeca pudesse esquivarse, ela enfiou a mo no bolso da jaqueta dele e retirou uma corrente de ouro com um coraozinho. Em vista d os roubos recentes, alguns chegaram a estranhar o fato. Em seguida, porm, entenderam todos que s poderia ser uma brincadeira de Glorinha. Aps as vaias dirigidas a Zeca, ela recolocou a corrente no pescoo e iniciou a subi da para a toalete. No meio da escadaria, parou um instante e ofereceu-se: Quem precisar escolher presente, s me avisar! Eu adoro o Shopping! Almoo em famlia ofereceu-se Giba.

- No precisava, meu filho!

Agora, voc vai passar o resto do ms sem dinheiro!

Eu comprei o que podia, me. No se preocupe. Dona Nadir ficou vivamente emocionada. Talvez, porque aquele fosse o primeiro presente que Zeca lhe oferecia com o prprio dinheiro. uma beleza de corrente! Voc teve bom gosto! Frente ao elogio, Zeca dividiu as honrarias: Foi a Glorinha que me ajudou a escolher. Glorinha? Ontem mesmo, voc no estava todo entusiasmado com uma tal de Sarita? 47 A Glorinha a recepcionista. Precisa ver que graa. Xi... Pelo jeito, tem muita mulher nessa agncia... E que meninas, hein, Zeca? reforou Batista. aprovou a irm Marilena.

O almoo prometia. Macarro com carne assada e farofa, mais o tempero famoso de dona Nadir. No faltaram nem as cervejinhas, patrocinadas pelo Batista. E, novamente, o assunto encaminhou-se para as meninas: E a, Zeca? Afinal, por quem bate o corao: pela Sarita ou pela Glorinha? No tem nada a ver, Marilena. fora do preo. Batista ouviu e embarcou na conversa: A Glorinha muito bonita mesmo, mas no me lembro da Sarita. O que ela faz? secretria do planejamento... Do Benevides... No me recordo, no. Meu relacionamento mais com a produo e criao. Marilena desgostou de tanto entusiasmo: Alis, voc no precisa se recordar de menina nenhuma! Voc um homem comprometido! Batista ria com descontrao, mostrando enormes dentes brancos: Com cimes, Marilena? No se preocupe, no. Com essas meninas tambm sou carta fora do baralho. Zeca esperou pela explicao de Batista e tocou adiante: Sinceramente, no sei quem melhor. A Glorinha e a Sarita so incrveis! A Glorinha de parar pra olhar! Zeca pensou um pouco e definiu-se: confirmou Batista, piscando para a namorada. Se voc conhecesse qualquer delas, saberia que estou

O que eu quero mesmo ser amigo das duas. Alis, todo o pessoal da agncia timo. No sei como agradecer a voc pelo emprego... Batista bateu o dedo na testa, como se recordasse de algo e dirigiu-se a Marilen a: Voc j contou ao Zeca, Marilena? Contou o qu? O namorado desistiu e falou diretamente ao garoto: 48 Eu tava dizendo pra Marilena que talvez eu e voc vamos trabalhar juntos. Voc t falando de trabalhar na agncia? interessou-se Zeca.

Exatamente. O Gumercindo t de sada para outra agncia, e o Osvaldo me convidou pra trabalhar como produtor grfico. Que timo! E voc vai? Batista respondeu com um meneio de cabea. Em seguida, esclareceu: Eu disse ao Osvaldo quanto precisaria ganhar pra sair da Colorcor... que o Gumercindo ganhava l, acho que no vai haver problema. Tomara que d certo! Se Deus quiser, vai dar! a. intercalou dona Nadir, no vaivm de levar a loua para a pi Mas pelo

Marilena levantou-se para ajudar; a me reprovou: Deixa a loua, minha filha, e faa companhia pr Batista. Eu estou acostumada, lavo nu m instantinho. O Batista no foge. A aniversariante que vai ficar sentadinha, enquanto eu ajeito a cozinha. Como as duas seguissem na labuta, Zeca retomou o dilogo: O pessoal da agncia timo. O problema so esses roubos... No sei se minha me comentou com voc... Que coisa mais desagradvel, hein, Zeca? E ningum sabe quem , no h nenhum suspeito? O problema justamente esse. H uma desconfiana geral na agncia. O que no falta suspeito. Batista ps-se a rememorar sobre o pouco que conhecia: Ali tem uns boys bem malandrinhos...

Por que voc diz isso?

perguntou Zeca, curioso.

O Russinho, por exemplo... Quando vai l na grfica, s se aproxima de maus elementos. No sei... O Russinho brinca com todo mundo... O cunhado esticou o intervalo e aca bou se lembrando: E aquele que anda sempre com o Russinho... Como mesmo o nome dele? Claudionor. 49 Outro dia, ele e o japons foram na grfica buscar uns folhetos. Enquanto empacotav am o material, ele desapareceu. O japons teve de ir busc-lo no fliperama. De repente, Zeca recordou-se de Maurcio e de seu plano absurdo. No final do exped iente, na sexta-feira, ele fizera a ltima tentativa de arrast-lo junto. Frente a mais uma negativa de Zeca, deixara claro que iria sozinho. Queria ser mico de circo, se no pusesse tud o em pratos limpos. s vezes, Zeca duvidava que Maurcio pusesse o plano em prtica. Onde j se viu passar o sbado vigiando, pra saber se o colega dizia ou no a verdade? Outras, acabava acred itando em que ele realmente levasse o plano avante, tal a sua fixao com a idia. Se assim f osse, com certeza, perderia seu tempo. Voc conhece melhor o Claudionor... Que acha? Zeca voltou realidade e careteou: No acredito. Eu tambm fico tentado com os fliperamas, mas no vou assaltar ningum por causa disso. Batista reagiu com um gesto evasivo. No tinha mais o que acrescentar. Aparentemente, o principal suspeito o Carlinhos... Se conheo! Esse mesmo. O cunhado negava com a cabea: No tem perigo! O Carlinhos gente fina! 50 Surpresa em Itaberaba Esse cara no mora! Se esconde! Maurcio comeava a se arrepender de suas prprias suspeitas, quando-o cobrador avisou : juntou Zeca. Voc conhece?

um garoto bem-educado, conversador. .. No esse?

Pode descer no prximo ponto, que qualquer pessoa indica a rua. Quase onze horas. Maurcio suspirou de alvio, dirigiu-se at a porta da frente e desc eu. Se Carlinhos tivesse realmente viajado, quelas horas estaria surfando na sua praia p redileta. S que ele no acreditava nem um pouco nas histrias que o colega contava. Ou melhor, no queria acreditar. Hoje, ponho tudo a limpo! Nem que tenha de perguntar de casa em casa! Segundo as informaes do Russinho, deveria entrar direita, na primeira rua aps o pon to, e descer trs ou quatro quadras. Na esquina, encontraria um barzinho com bilhar. E ra a rua onde morava Carlinhos. No tinha como errar. A caminho do ponto-chave, bateu a desconfiana. Se o Russinho tinha tanta certeza do que dizia e morava prximo do local, por que no quisera vir mostrar pessoalmente? Talve z, o sujeito estivesse se divertindo s suas custas, enquanto ele perdia o sbado caando o que no existia. Ele me paga! No entanto, se Russinho mentira, no o fizera por inteiro. Na terceira esquina, ha via de fato um barzinho com mesas de bilhar. Maurcio aproximou-se e observou o movimento incipiente. Apenas uma das mesas achava-se ocupada. O senhor me d uma coca-cola? pediu.

O dono do estabelecimento colocou a garrafa e um copo sobre o balco. Quando abriu , Maurcio criou coragem: Um amigo marcou encontro comigo aqui. conhece? Carlinhos... Carlinhos... O que ele faz? Ele trabalha na cidade... Numa agncia de propaganda. .. Agncia de propaganda? 51 Pela cara de espanto, o comerciante jamais ouvira falar em propaganda. De qualqu er maneira, interessou-se e perguntou a um dos rapazes que jogavam bilhar. Vocs conhecem algum Carlinhos que trabalha em... Maurcio. Em que mesmo ele trabalha? Maurcio aproximou-se da mesa e descreveu: um garoto alto, mais forte que eu... Usa umas camisetas coloridas... hesitando, voltou-se para O nome dele Carlinhos... O senhor

Um dos jogadores entendeu logo: o Surfista! O filho de seu Maneco Lopes! E o proprietrio concordou: Claro! S pode ser ele! que no bairro o pessoal s trata ele por Surfista... ente acaba esquecendo o nome. esse mesmo! Ele disse que morava aqui pertinho. O homem dirigiu-se at a porta e mostrou: Ele mora logo ali. Est vendo aquele sobradinho amarelinho? ... Ah, muito obrigado. Se ele demorar, dou uma chegadinha. No sei se haver algum em casa... Maurcio tomou a coca no prprio gargalo e pagou. Agradeceu, novamente, e desceu a r ua com destino casa apontada. No havia dvida. Seria coincidncia demais encontrar algum com o apelido de Surfista, naquele endereo, que no fosse o Carlinhos. A meio caminho, porm, pensou na contradio. Se Carlinhos morava ali, mentira de fato . No entanto, se o conheciam como Surfista, deviam ser verdadeiras as aventuras qu e ele relatava sobre praias, pranchas e veleiros. Talvez a famlia tivesse dinheiro mesm o. Diante do sobrado, reparou. Embora no fosse nenhuma manso, tambm no era casa de pobre, muito menos a biboca de que Russinho falara. Portas e janelas encontravam -se fechadas. Aparentemente, no havia ningum na casa. Vai ver que ele t na praia, belo e formoso... E eu, aqui, fazendo papel de bobo. 52 Sentiu o rosto esquentar com a hiptese. Em seguida, tratou de justificar-se: De qualquer maneira, ele mentiu sobre o endereo! Um tanto desenxavido, refez o caminho at o bar, encostou-se mesa vaga e comentou com o proprietrio: Acho que levei um tremendo cano... No tem ningum na casa. Eu tava mesmo achando que no havia ningum... Hoje sbado. Eles costumam viajar nos fins de semana? No, viajar, no. Muito difcil. Maurcio sentiu-se aliviado. E pediu confirmao: Eles no costumam ir praia? Praia!? Havia um quase espanto no rosto do comerciante. A g

Mais fcil chover dinheiro! Nem o Carlinhos? De jeito nenhum! Em vista da perplexidade de Maurcio, o homem ilustrou: A estas horas, seu Maneco Lopes t com certeza na feira da Malhada. E o Surfista d eve estar ajudando. Feira!? O senhor quer dizer feira livre? Justamente! Por aquela Maurcio no esperava. E, de novo, ficou em dvida se falavam da mesma pessoa. Incrdulo, tentou: Ser que estamos falando da mesma pessoa? Voc no perguntou pelo Carlinhos Surfista? ... Acho que ele mesmo... Pois, ento, pode ir feira da Malhada, que encontrar toda a famlia na banca de frios . Banca de frios? ... Na banca de frios. Agora, o homem o observava de modo estranho. Talvez, desconfiasse de tanta pergu nta desencontrada. Maurcio decidiu arriscar a ltima: Essa feira da Malhada longe daqui? s dobrar direita na avenida e seguir cinco ou seis quarteires. 53 Em poucos minutos, estava na feira. Passou pela banca de peixes, pelas frutas, l egumes, verduras e temperos. De passagem, pediu um pastel e caldo de cana. Pela experinci a que tinha de feiras livres, imaginou que a barraca de frios estaria no extremo opost o. No teve maiores problemas para descobrir. Havia duas bancas de frios, uma de cada lado do caminho. Aproveitou o trnsito intenso de pedestres, senhoras donas-de-casa na maioria, e ps-se a observar em ambas as margens, tentando localizar o suspeito. 54 Maurcio reparou num senhor grandalho, de avental e bon branco, que batia palmas, chamando a ateno das freguesas para as salsichas e azeitonas pretas. Divertiu-se c om a

idia de que o homenzarro lembrava alguma coisa de Carlinhos. De repente, deu de cara com o que procurava. Carlinhos j o havia visto. Entre sal sichas e lingias, ele permanecia imvel, a cara mais desengonada do mundo. Era o prprio. Com sua cala de marca famosa, sua camiseta de surfista, seu relgio di gital e um avental branco sobre a roupa. Os dois ficaram se olhando por longo tempo, enq uanto os transeuntes atravessavam s suas frentes. Finalmente, a senhora que servia na banc a tocou no seu brao e ele mexeu-se do lugar. Maurcio virou-se, igualmente, e retomou o caminho de volta. O corao aos pulos, ele no conseguia entender o que se passava. Perdera boa parte do dia, viajara at aqueles cafunds com o intuito de descobrir, porm no conseguia se alegrar com a vitria. Ao contrrio, a lembrana do companheiro, surpreendido na feira ajudando os pais, fa zia com que se sentisse terrivelmente mal. No fundo, sentia-se como se tivesse sido pego fazendo algo que no devia. O flagrante do relgio Na segunda, pela manh, Zeca notou o jeito arredio do amigo. Maurcio no conseguia dissimular o desapontamento. Em todo caso, como ele no se manifestasse, Zeca tomo u a dianteira: E a, Maurcio? Montou a campana ou desistiu do plano? Estava mais que evidente: o companheiro preferia no falar do assunto. Porm, diante do assdio, acabou contando. Relatou tudo nos mnimos detalhes, de maneira a no deixar dvidas. Zeca ficou boquiaberto com a revelao. 55 Essa jamais passaria pela minha cabea! Se no tivesse visto, nem eu mesmo acreditaria! E, agora, voc t desapontado porque o Carlinhos no quem imaginava... As feies do colega denotavam contrariedade. No sei se ele ou no ! Nem quero saber! O que , ento? Sei l... Eu desconfiava mesmo. ins de semana... Entendo... No fim, descubro que o sujeito trabalha at nos f

Quando j se preparavam para deixar a cozinha, chegou a copeira, trazendo a bandej a de xcaras para lavar. Ah, vocs esto aqui, ? No, estamos l na portaria! respondeu Maurcio, mal-humorado.

Ah, ? Pois deviam estar na sala dos boysl l que o Giba est procurando vocs, moleque malcriado! Vamos, Maurcio... Onde vocs estavam? Na cozinha... iniciou Zeca. interrompeu Giba, duro. Por acaso esto querendo convidou Zeca. Na sala dos boys, Giba castigou:

E na cozinha lugar de boy! tomar o lugar da Ermelinda?

Russinho aproveitou pra fazer piada: O Zeca ia ficar uma gracinha de copeira! Bastou para o chefe de boys transferir seu azedume: E voc? Que est esperando? J no recebeu sua tarefa?

J estou saindo

avisou Russinho, apressando-se. Os

E vocs dois, tambm! tornou Giba, indicando o material sobre a mesa. endereos esto nos envelopes! Os passes! 56

cobrou Maurcio, enfezado. O chefe atirou quatro passes sobre a mesa.

Zeca saiu e voltou atrasado para o almoo. s duas em ponto, j recebia nova incumbnci a. Passou o dia com a impresso de que nada daria certo. E no deu mesmo. Em todos os l ugares, teve de esperar, sem falar da fatura que deveria receber e no recebeu. Na agncia, to logo botou os ps na recepo, Glorinha o preveniu: Ih, est a maior confuso na sala dos boys! Confuso? A troco de qu? Roubaram o relgio do Carlinhos! Roubaram? Como? Ele tirou o relgio do pulso? Isso eu no sei. Zeca perdeu o resto do nimo, sentiu vontade de voltar para a rua. No suportava mai s aqueles roubos e o clima de desconfiana que dominava a todos. Assim que abriu a porta, Russinho anunciou:

O Zeca chegou! Giba virou-se ao mesmo tempo, interrogando: Voc no viu o relgio do Carlinhos, no? A ltima vez que vi estava no pulso dele! respondeu, seco.

Acontece que agora no est no pulso, e ningum sabe onde est! Tem de estar em algum lugar! Um relgio no desaparece assim! Carlinhos, que se mantinha em silncio, ergueu o rosto, para acusar: Claro que est! Est no mesmo lugar onde foi parar todo o dinheiro roubado!

Zeca desconcertou-se com a observao. Em seguida, inquiriu: Voc tirou o relgio do pulso? No. O ladro tirou do meu brao e eu no vi! ironizou Carlinhos.

Onde voc o deixou?

prosseguiu Zeca, sem se importar com a ironia do colega.

Carlinhos indicou o vitr, com visvel m-vontade: Ali no parapeito. Zeca observou e mudou de tom: 57 Eu no sei de nada! Estou na rua desde a hora do almoo!

Isso a gente vai ver quando o Gervsio descer! Shiro, Claudionor e Russinho no dizi am nada. Mantinham-se srios alm da conta. Quer dizer que vamos ser revistados, novamente? preocupou-se Zeca. rebateu Carlinhos.

T preocupado por qu? Tem alguma coisa pra esconder? Nisso abriu-se a porta, dando passagem a Glorinha. E, ento, j descobriram? Descobrir, como? Ora, s um revistar o outro! Em mim ningum vai botar a mo! receitou ela. rebelou-se Russinho.

Diante da revolta do boy, Glorinha amenizou: Eu acho melhor resolver entre vocs mesmos. roubo, a situao vai ficar preta! Se o Gervsio souber que houve outro

Shiro foi o primeiro. Antes que algum dissesse algo, empurrou a mochila para o ce ntro da

mesa e lavou as mos: Minhas coisas esto a! Quem quiser pode revistar! Glorinha tomou a iniciativa. Examinou a mochila vista de todos e no encontrou nada de estranho. Em seguida, foi a vez do Russinho e, de pois, do Claudionor. Nem sinal do relgio com os garotos. Ainda falta o Zeca! E voc tambm! armrio. acusou Giba. tempo que pegava a pasta escolar no

devolveu Zeca, ao mesmo

Os boys puseram-se em roda, volta da pasta. Glorinha abriu, remexeu nos cadernos e j ia fechando, quando o Claudionor alertou: No vai revistar o estojo de pano? O relgio cabe ali. Zeca fulminou-o com os olhos e declarou, azedo: S tem lpis e caneta! No custa nada dar uma olhada insinuou Giba. s pra tirar a cisma.

Glorinha pegou o estojo, apalpou entre os dedos e fez suspense: Aqui tem alguma coisa, mas no lpis nem caneta! Quando puxou o fecho, surgiu, para surpresa geral. O relgio! Carlinhos pegou o relgio mais que depressa e acusou: Ladro! Zeca mais parecia um peru de to vermelho. Queria falar, no conseguia. Por fim, gag uejou: Algum... Algum ps esse relgio a! Eu no peguei! No sei de nada! Olhava suplicante para cada rosto, porm todos s faziam acus-lo. A cabea estava prest es a estourar com tamanha presso e as pernas tremiam de nervosismo. Por fim, Glorinha abriu-se: Eu sempre desconfiei do Zeca! disse ela sria e, em seguida, riu com estardalhao.

Ento, como que obedecendo a uma senha predeterminada, desmanchou-se toda a seriedade. E os boys rolaram de tanto rir. Apenas Zeca e Carlinhos, que ignorava m a brincadeira, mantiveram-se srios. Srios e com muita raiva. Os mistrios da comunicao Nove horas da manh. Zeca procedia rotina diria de distribuir os jornais pelos dive rsos departamentos. No rosto, trazia ainda marcada a revolta pela brincadeira de mau

gosto do dia anterior. No Departamento de Criao, Osvaldo pediu: Quando terminar a distribuio, d uma chegadinha aqui. Est bem? Zeca j conhecia Osvaldo, o redator que fazia dupla com Graa, a diretora de arte. Eles sempre pediam algum favor: comprar cigarros, retirar dinheiro no banco, pagar co nta de luz. O assunto devia ser algo do tipo. Logo que se desimpediu, retornou sala. Pronto, Osvaldo, estou livre apresentou-se. Precisa de alguma coisa?

No... No estou precisando de nada. S pensei que voc gostaria de se afastar um pouco da sala dos boys. Fiquei sabendo que lhe aprontaram uma bem indigesta, on tem... Zeca ficou sem ao. Entra, Zeca! Senta! convidou Graa, apontando para a poltrona vaga.

Giba e Gervsio no aprovariam a folga, mas se o pessoal da criao mandava... Ento, voc cunhado do Batista... iniciou Osvaldo.

... Ele namorado da minha irm Marilena... Voc j sabe que ele vem trabalhar aqui? Ele comentou l em casa... Disse que estava dependendo apenas do salrio... Est tudo certo, acabei de falar com ele. novo produtor grfico. Mais uma semana, no mximo, e ele ser o

Zeca ficou satisfeito com a confirmao. E indeciso sobre o que fazer. Ser que Osvald o o chamara s para dar-lhe a notcia? Ainda bem que o redator continuou: A vinda do Batista ser boa para a agncia, porque um excelente profissional. E pod e ser boa pra voc, tambm. J pensou nisso? 60 Claro que seria bom trabalhar com Batista. Afinal, conhecia-o; ele era namorado de Marilena. Porm, no via razo especial para alegrar-se. O que havia por trs das palavr as de Osvaldo? O Batista vai chegar com toda a moral. Se quiser, poder coloc-lo no departamento dele, como aprendiz de produo grfica.. . Agora comeava a compreender. At que seria bom... Mas eu no vou falar com ele, no. Fica chato...

No precisa falar. Ns falamos, no , Graa? Deixa com a gente! confirmou a colega.

No sei... De qualquer forma, agradeo. Osvaldo levantara-se para observar os retoques que Graa aplicava ao desenho preso na prancheta. E corrigiu em cima: Alis, voc deve agradecer Sarita. A idia foi dela. Da Sarita? Ela acha que voc t perdendo tempo como boy. Vou agradecer a ela, mas se conseguir manter meu emprego j t bom. Diante de tanta gentileza, Graa levantou a cabea, para examin-lo: Xiii... Isso ainda vai dar em casamento...

Zeca ruborizou-se, no respondeu. Girou os olhos pelas paredes, onde se encontrava m afixados vrios layouts de anncios, cartazes e folhetos. uma campanha nova? interrogou, tentando desviar-se do incmodo assunto.

o lanamento de uma revista feminina. Uma revista para mulheres emancipadas, inteligentes, que trabalham fora explicou a diretora de arte. Deu pra reconhecer a modelo do desenho? tornou Osvaldo.

Zeca levantou-se, curioso, e foi observar de perto. Eu conheo, mas no consigo me lembrar quem ... Poxa, Zeca, no reconhece? Graa que no ajuda. No se parece com a Bruna? 61 Poxa, ela mesma! Bruna Lombardi! O boy vibrou com a descoberta. Alis, era aquilo que mais o atraa na agncia: aquela quase intimidade com gente famosa que as pessoas comuns como ele jamais imaginariam ve r de perto. Pensava justamente naquilo, quando Osvaldo perguntou: Voc j conhece a Bruna? Conheo da televiso, dos comerciais... Pois hoje voc vai conhecer ao vivo. s cinco, ela vem assinar o contrato. Zeca perdeu a fala, s fez examinar os layouts presos s paredes. Os olhos brilhavam insistiu Osvaldo e brincou: tentou ela. Deve ser o desenho da

de encantamento. Que foi, Zeca? Ser que a Bruna no faz o seu gnero? indagou Graa, quase rindo.

Como ele se mostrasse encabulado, Osvaldo mudou de assunto: E o trombadinha verdadeiro? J descobriram quem ? Descobriram nada. Voc no suspeita de algum? No, no suspeito. Quanto mais eu penso, mais acho que no foi boy. Graa levantou novamente a cabea da prancheta. E talvez no seja mesmo! Por que teria de ser boyl Isso discriminao!

Osvaldo levantou o brao, pedindo tempo para ele: Nos clssicos policiais, o culpado sempre a personagem da qual ningum desconfia. Portanto, s procurar algum acima de suspeitas e teremos o ladro misterioso. Que tal voc? brincou Graa.

Eu sou suspeito! Se fizessem um levantamento do meu saldo bancrio, constatariam q ue tenho pelo menos um bom motivo! Graa e Zeca riram da piada. Em seguida, ela discordou: Essa teoria nem sempre funciona. Quando aparece mulher morta, por exemplo, o primeiro suspeito sempre o marido. E, geralmente, ele mesmo o culpado. Sua feministazinha! 62 Riram novamente, aps o que o redator acrescentou: Se no tivesse tanto trabalho, ia investigar esse caso. E solucion-lo, claro. Graa aproveitou-se da animao do companheiro e cobrou: E, por falar em trabalho, temos outro mistrio para desvendar... Ah, ...? Que mistrio? estranhou Osvaldo.

A diretora de arte pegou um par de sandlias plsticas, no armrio s suas costas, e apresentou: Por que que o pblico consumidor no compra esta droga de sandlia? Est errada a comunicao ou o produto? A insuspeita beleza de Bruna Que isso, garoto? Vai jogar comida no lixo? Estou sem fome.

porque est com o nariz cheio! capim temperado!

Se passasse o que passo em casa, voc comia at

Zeca estava to habituado s intromisses da copeira, que j no se importava. Atirou o resto de comida na lixeira e comeou a ensaboar a marmita. Da mesa da copa, Ermeli nda conferia a operao e resmungava: Podia ao menos ter oferecido a salada! Eu no sou orgulhosa, no!

Ele tinha certeza de que a mulher no aceitaria. A copeira gostava mesmo era de me ter o bedelho onde no era chamada. De qualquer forma, era tarde, a salada fora para o l ixo. Ponderava justamente sobre o assunto, quando Russinho ofereceu: Quer o meu ovo? E ela, desaforada: Ovo por ovo, fico com o meu, que sei de onde vem! Bem feito! 63 Enxugando a marmita, Zeca observava o ambiente carregado entre os colegas. exceo do Russinho, que ainda arriscava alguma brincadeira, os demais comiam sem falar. Desde o ltimo roubo, p odia-se sentir a tenso crescendo, dia aps dia. Nem o Carlinhos, antes to falante, se animava, com re ceio de que Maurcio revelasse seu segredo de surfista feirante. Um tanto constrangido, Zeca t entou quebrar o gelo: Vocs esto sabendo que a Bruna Lombardi vem na agncia, hoje? Claudionor zombou: No, Zeca. .. S contaram pra voc. repreendeu Claudionor. Quem manda ser oferecido?

Russinho riu debochado, os demais no ligaram a mnima. At Maurcio mostrava-se mudado, desde que Zeca se negara a acompanh-lo no plano contra Carlinhos. No momento em que dei xava o refeitrio, Zeca ainda teve de ouvir: J vai atrapalhar a Sarita? r ao banheiro! indagou Ermelinda. A menina no tem mais tempo nem pra i

Sarita no estava na agncia; provavelmente, sara para almoar com as outras secretrias. Zeca pegou um jornal do dia, foi ler no ptio. Pretendia ver as notcias do futebol, porm lembrou-se de que precisava fazer um trabalho de escola e mudou para o noticirio local.

Felizmente, o ritmo de trabalho andava lento. Apenas Maurcio e Shiro haviam sado p ara servios externos, no perodo da manh. E, aps o almoo, ningum ainda sara. S faltava algum vir l

passar servio no final do expediente, quando a Bruna chegasse. Apesar do aparente descaso, o pensamento dos boys convergia para o mesmo ponto. E Russinho, que j conhecia a artista de outras visitas, contrariava: Que Bruna, que nada! Parece que nunca viram mulher! Igual Bruna, no! na ironia: defendeu Carlinhos. Claudionor agarrou a oportunidade e carregou

Por que voc no convida a Bruna pra surfar na sua prancha nova? Carlinhos desmanchou a pose. Olhou com o rabo dos olhos na direo de Maurcio e calou -se. Russinho seguia contrariando: Eu prefiro a Snia Braga.. . Ou a Glorinha. 64 Na verdade, discutiam com o propsito determinado de empatar tanto tempo ocioso. E ainda esticavam aquele jogo de falar e contrariar, quando a copeira surgiu porta, presa de uma incrvel empolg ao. Ela chegou! Ela chegou! Quem? A Bruna? A tal da artista!

Sei l como se chama!

Bastou anunciar, e debandaram todos ao mesmo tempo. Russinho e Claudionor na fre nte. U. .. estranhou Zeca. Vocs no estavam dispensando a Bruna?

Ningum deu a menor ateno ao comentrio. No corredor, tentavam disfarar, cada um sua maneira, para no darem na vista. Ela entrou na sala do Osvaldo! ular diante da porta, revelou Russinho. Os boys puseram-se, ento, a circ

como se fossem para o estdio de produo. E o pessoal do estdio, na mo inversa, passava diante da porta aberta, como se tivesse o que fazer no outro extremo da agncia. No auge da empolgao, surgiu Giba e comandou: Russinho... Agora? Neste minuto! O boy desmanchou-se em desapontamento, enquanto o chefe ria um riso de canto de boca. Sem outro V l na expedio, que tem servio pra voc.

remdio, Russinho encaminhou-se para o departamento mencionado, ouvindo Giba dizer : Eu pretendia mandar o Zeca... Mas como voc disse que no estava se importando o mnim o com a Bruna. .. A presena da atriz e modelo acabara com a rotina da agncia. De repente, todos quer iam v-la, incluindo-se o pessoal do pavimento superior, da administrao e da contabilidade. Z eca mal continha a emoo. Alimentava, no fundo, a esperana de que Osvaldo o chamasse sala, p ara atender a algum pedido, porm, a expectativa no se concretizou. Por fim, chegou quem faltava. Gervsio estranhou ver tanto boy circulando pelos co rredores. Vocs no tm o que fazer, no? Se no tm, fiquem na prpria sala! 65 Zeca e os garotos recuaram uns poucos passos e se puseram na espreita. Diante de Giba, o chefe de pessoal interrogou, baixando a voz para no ser ouvido: Onde ela est? Est a... Na sala do Osvaldo. Gervsio encaminhou-se at a porta com o papel branco na mo, pediu licena e entrou. Do lado de fora, os boys ouviam atentos, de ouvidos colados na divisria. Desculpem-me a intromisso. .. Eu sou o chefe de pessoal. Sabe o que , Bruna... E u tenho uma sobrinha, que adora ver voc na televiso... Ela queria um autgrafo... Ah, pois no. Aps o breve intervalo, ouviram-no agradecer: Muito obrigado mesmo. No tem de qu. Foi uma imensa satisfao... Agora, se me d licena, o trabalho me chama. Sabe como ... Deixou a sala, corado como um peru. No corredor, arrancou o riso do rosto e mudo u de tom: Giba! No quero ver boy fora da sala, que no seja a servio! Entendido? Estou emocionado e tenho certeza de que ela tambm ficar.

Sim, senhor! Antes que a situao se complicasse, Zeca e Maurcio tomaram a dianteira e rumaram em direo sala. Maurcio empurrou a porta, mal-humorado e surpreendeu-se vivamente:

O que voc est fazendo com a minha mochila? Mediante o impacto da porta se abrindo, Shiro deixou cair a mochila no cho. y ou pegava a mochila. Com o rosto muito espantado, no sabia se olhava para o bo

Que histria essa de fuar nas minhas coisas? Shiro se abaixara para pegar a mochila . Maurcio avanou e arrancou-a das mos dele, ao mesmo tempo em que entravam os demais. Que aconteceu? quis saber Claudionor. revelou Zeca.

O Shiro estava revistando a mochila de Maurcio! 66

Todos os olhares fixaram-se no mesmo objeto. Porm Shiro no abria a boca. Frente a tanto mutismo, Zeca atravessou a sala e foi examinar: Se mexeu nas minhas coisas, vai ter de se explicar direitinho! Finalmente, Shiro conseguiu balbuciar: Eu estava procurando uma borracha... Borracha? Eu nunca tive borracha! Pensei que tivesse. Shiro explicou e foi sentar-se no canto da mesa. sua frente, mantinha aberto o inconfundvel manual de micros. Giba examinou de relance e perguntou: Onde voc ia usar borracha, se no h nada escrito a lpis? Apesar da insistncia do chefe e dos olhares indagativos dos companheiros, Shiro m anteve a cabea baixa e a boca fechada. Dvida cruel A vinda de Batista alterou profundamente o ritmo de trabalho da agncia. Graas sua interveno, foram contratados novos funcionrios para o estdio de produo e trocados alguns fornecedores de servios grficos. Com isso, a agncia ganhara um dinamismo nov o e todos mostravam-se satisfeitos. Voc deve estar orgulhoso, no, Zeca? Eu sabia que o Batista corresponderia. Convencido! No isso, Sarita. Se o convidaram, deviam saber que se tratava de um bom profissio nal.

Nos ltimos dias, Zeca e Sarita haviam se transformado em companhia constante. Aps o almoo, sentavam-se no banco de madeira do ptio interno e gastavam conversa. Naturalmente, muitos reparavam e poucos acreditavam que tudo no fosse alm de uma simples amizade. 67 Nos ltimos dias, Zeca e Sarta haviam se transformado em companhia constante. Batista est com toda a moral... pra trabalhar na produo. recomeou Sarita. Qualquer dia, ele chama voc

Zeca sentia-se meio ressabiado com a idia. Tinha certeza de que os colegas o acus ariam de protecionismo. E no errariam de todo. Afinal, ele entendia tanto de produo grfica quanto qualquer outro boy. Como se mantivesse calado, Sarita insistiu: Poxa, Zeca, me diga o que voc acha da idia. Ser que eu tenho de perguntar tudo? Se for pra melhorar de posio e ganhar mais... Sarita o examinava com ar divertido, ele percebeu: O que voc v de to engraado? Voc me parece mais interessado em mudar de situao ... Lembra-se quando conversamos pela primeira vez? Dava a impresso de que voc queria se aposentar como boy... Zeca riu, um tanto constrangido. Eu me lembro... Mas acho natural. Estava nas prim