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Lutas Sociais 11/12

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Lutas Sociais nº 11/12 - 1º semestre 2004 ISSN 1415-854X

NEILS – Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais Faculdade de Ciências Sociais

Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais PUC-SP

Capa: Daniela Palma – sobre foto de Tina Modotti, Mulher com bandeira, México, 1928.

Editoração Eletrônica: Eliel Machado & Renata Gonçalves Revisão Técnica: Eliel Machado & Renata Gonçalves Versão dos resumos para o inglês: Gabriel Ondetti

Tiragem desta edição: 800 exemplares Impressão: PrismaGraf

Correspondência: Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais (Neils)

Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais – PUC/SP Ministro Godói, 969 - 4º andar - Perdizes CEP: 05015-001 - São Paulo - SP - Brasil

Fone/Fax: (5511) 3670-8517 End. Eletrônicos: [email protected] ou [email protected]

Impresso no Brasil Abril 2004

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NEILS – Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Reitor: Antonio Carlos Caruso Ronca Presidenta do Setor de Pós-Graduação da PUC-SP: Maura Pardini Bicudo Veras Vice-presidenta: Anna Maria Marques Cintra Diretora da Faculdade de Ciências Sociais: Maria Margarida Cavalcanti Limena Vice-diretora: Maria do Rosário Cunha Peixoto Coord. do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais: Teresinha Bernardo Vice-coordenadora: Silvana Tótora

Comitê editorial

Celso Uemori, Claudete Pagotto, Eliel Machado, Jair Pinheiro,

Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida, Ramon Casas Vilarino, Renata Gonçalves

Conselho editorial

Adalberto Floriano Greco Martins – Mestrando em Ciências Sociais pela PUC/SP; Almerindo Janela Afonso – Universidade do Minho (Portugal); Álvaro Bianchi – Universidade Metodista de Piracicaba; Ana Patrícia Pires Nalesso – Centro Universitário de Maringá; Angélica Lovatto – Fundação Santo André; Aníbal Quijano – Centro de Investigaciones Sociales (Peru); Antônio Carlos de Moraes – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Antonio Carlos Mazzeo – Universidade Estadual Paulista; Antonio Ozaí – Universidade Estadual de Maringá; Antônio Thomaz Jr. – Universidade Estadual Paulista; Ariovaldo Umbelino de Oliveira – Universidade de São Paulo; Bernard Hengcheng – Institut Cardijn (Bélgica); Bernardo Mançano Fernandes – Universidade Estadual Paulista; Carlos Eduardo Martins – Cátedra e Rede UNESCO/UNU sobre Globalização e desenvolvimento sustentável (REGGEN); Carlos Montaño – Universidade Federal do Rio de Janeiro; Cássia Chrispiniano Adduci – Doutora em Ciências Sociais; Célia Maria da Motta – Doutoranda em Ciências Sociais pela PUC/SP; Célia Regina Congílio Borges – Doutoranda em

James Petras – University of New York, Binghamton (Estados Unidos); Jean-Pierre Page – Collectif Communiste Polex; Joana Aparecida Coutinho – Doutoranda em Ciências Sociais pela PUC/SP; Jorge Luís Grespan – Universidade de São Paulo; Jorge Alano Silveira Garagorry – Pontifícia Universidade Católica; José Martins – economista; José Rubens Mascarenhas de Almeida – Universidade Estadual da Bahia; Júlia Gomes e Souza – Mestranda em Ciências Sociais pela PUC/SP; Karen Fernandez – Doutoranda em Ciências Sociais pela UNICAMP; Lauro Ávila Pereira – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Luis Manuel Rebelo Fernandes – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Marcelo Buzzeto – Fundação Santo André; Marcelo Ridenti – Universidade Estadual de Campinas; Márcio Bilharinho Naves – Universidade Estadual de Campinas; Marcos Del Roio – Universidade Estadual Paulista; Margot Soria Saravia – Universidad Nacional de la Patagonia (Bolívia); Marise Duarte- Universidade

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Ciências Sociais pela PUC/SP; Celso Uemori – Doutorando em Ciências Sociais pela PUC/SP; Claudete Pagotto – Doutoranda em Ciências Sociais pela UNICAMP; Claudia Santiago – Núcleo Piratininga de Comunicação; Claudilene Pereira de Souza – Mestranda em Ciências Sociais pela PUC/SP; Cloves Barbosa – Doutorando em Ciências Sociais pela PUC/SP; Danielle Tartakowski, Université de Paris VIII (França); David Mandel – Université du Quebec (Canadá); Eliel Ribeiro Machado – Universidade Estadual de Londrina; Félix Ruiz Sánchez – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Francisco José Soares Teixeira – Universidade Estadual do Ceará; François Chesnais – Economista, Carré Rouge (França); François Houtart – Université Catholique de Louvain, Alternatives Sud (Bélgica); Gabriel Ondetti – The College of William and Mary (Estados Unidos); Gilbert Achcar – Centre National des Recherches Scientifiques (França); Heder de Souza – mestre em Ciência Política; Heleieth I. B. Saffioti – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Henry Veltmeyer – Saint Mary’s University (Canadá); Ilse Gomes Silva – Universidade Federal do Maranhão; Irma Antonazzi – Universidad Nacional de Rosário (Argentina); Ivanete Rodrigues dos Santos – Universidade Federal do Mato Grosso; Jair Pinheiro – Universidade Estadual Paulista, Marília;

Federal do Pará; Michael Löwy – École des Hautes Études em Sciences Sociales (França); Michel Rogalski – École des Hautes Études em Sciences Sociales (França); Miguel Mazzeo – Universidad de Buenos Aires (Argentina); Paulo Barsotti – Fundação Santo André; Paulo Ribeiro da Cunha – Universidade Estadual Paulista; Ramon Casas Vilarino – Doutorando em Ciências Sociais pela PUC/SP; Reginaldo Carmello Correa de Moraes – Universidade Estadual de Campinas; Renata Gonçalves – Doutoranda em Ciências Sociais pela UNICAMP; Ricardo Antunes – Universidade Estadual de Campinas; Rogata Soares Del Gáudio – Universidade Federal de Minas Gerais; Samuel Holder – Carré Rouge e Cultura e Revolução (França); Sebastião Carlos de Aquino e Silva – Universidade Federal do Pará; Sebastião Lázaro Pereira – Universidade Federal de Goiás; Sílvio Cesar Silva – Universidade Braz Cubas; Simão Pedro Chiovetti – mestre em Ciências Sociais; Tânia Marossi – mestre em Ciências Sociais; Terezinha Ferrari – Fundação Santo André; Valério Arcary – CEFET/SP; Vito Gianotti – Núcleo Piratininga de Comunicação; Waldir Rampinelli – Universidade Federal de Santa Catarina; Zulene Muniz Barbosa – Universidade Estadual do Maranhão.

Cada número de Lutas Sociais é coordenado por um comitê editorial, eleito por assembléia do Conselho Editorial da revista.

Após a publicação de cada número, este conselho elege um novo comitê, com vistas à produção do número seguinte.

Lutas Sociais não possui qualquer vínculo político-partidário. Matérias assinadas não expressam necessariamente a posição do coletivo da revista

e são de exclusiva responsabilidade dos respectivos autores.

Agradecemos a Emilene Lubianco e Cristiane Samária, secretárias do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP e a Hamilton Octavio de Souza, Departamento de Jornalismo da PUC-SP.

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Sumário

Apresentação, 7 ARTIGOS A independência do Banco Central em debate Jorge Alano Silveira Garagorry, 9 Um desenvolvimento insustentável Célia M. Mota, 21 A mundialização imperialista Marcos Del Roio, 34 As guerras de libertação nacional e o processo de expansão mundial do capital Marcelo Buzetto, 44 Reestruturação técnico-produtiva do capital e poder local Terezinha Ferrari, 56 Os nacionalistas liberais paulistas e a construção da nação brasileira Cássia Chrispiniano Adduci, 79 Escravidão, nacionalidade e “mestiços políticos” Celso Uemori, 91 O nacionalismo popular e a crise do populismo no início dos anos 60 Lúcio Flávio RodriguDes de Almeida, 103 Gênese do clientelismo na organização política brasileira Elsio Lenardão, 114

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DOSSIÊ: De uma América à Outra A cor das nossas lutas Antonio Martins, 127 Allende outra vez: no limiar de um novo período histórico Anibal Quijano, 132 Partido socialista chileno: adeus ao povo Leandro Vergara-Camus, 139 Cuba uma resistência socialista na América Latina Rémy Herrera, 150 Cooperação e cooperativas: instrumentos de organização e de resistência dos trabalhadores sem-terra Claudete Pagotto, 162 Movimento socioterritorial e “globalização”: algumas reflexões a partir do caso do MST Jean-Yves Martin e Bernardo Mançano Fernandes, 173 A atualidade da luta de classes nos Estados Unidos Samuel Holder, 185 Classificação dos governos latino-americanos pelos Estados Unidos James Petras, 197 LIVROS As ditaduras envergonhada, escancarada e derrotada, de Elio Gaspari – Waldir José Rampinelli, 202 Democracia e participação na “reforma” do Estado, de Ilse Gomes Silva – Tânia Marossi, 209 Actuel Marx, nº 30: Les rapports sociaux de sexe, de Annie Bidet-Mordrel & Jacques Bidet (orgs.) – Renata Gonçalves, 215 ABSTRACTS, 218

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Apresentação 7

Apresentação

Lutas Sociais acaba de ultrapassar a barreira dos 10 números, mantendo os princípios mais gerais do programa original: articulação da pesquisa científica com abordagem crítica, o que, para nós, beira a redundância, pois ciência e crítica são inseparáveis e implicam ir além das aparências que, embora constitutivas do real, ocultam algumas de suas dimensões mais profundas e significativas. Caso o leitor se depare, nas páginas de Lutas Sociais, com um “excluído” ou “carente”, este será o primeiro degrau de uma “descida ao inferno”, em busca das determinações por meio das quais os explorados e dominados são despojados da riqueza que produzem e constituídos como objetos da filantropia dos mesmos que os oprimem e exploram. A busca da objetividade não implica neutralidade frente aos interesses contraditórios que tecem as relações sociais. Muito menos vitimizar ou folclorizar os dominados. Trata-se, ao contrário, de destacar as ações que realizam seu potencial de sujeitos históricos, negando a perenização do existente.

Em cada número de Lutas Sociais, sempre buscando manter a qualidade teórico-metodológica dos textos, se procurou mesclar a contribuição de autores consagrados com a produção realizada por jovens pesquisadores (muitas vezes, suas primeiras publicações).

Os pontos mais específicos do programa continuam valendo, o que, em aparente paradoxo, erigirá, no futuro próximo, um esforço de atualização. O próprio nome da revista implicava uma avaliação que muitos julgavam precipitada: cresceriam e se diversificariam lutas sociais contra a ofensiva neoliberal, apontando para propostas alternativas de sociedade. Hoje, frente à grande parte dos dominados, tal ideologia se sustenta menos pelas promessas de um mundo melhor e mais pela insistência na impossibilidade de “um outro mundo”. Neste sentido, o lema do Fórum Social Mundial, movimento no qual, desde o início, Lutas Sociais se inseriu de modo crítico e ativo, é um belo exemplo de argúcia e criatividade na frente ideológica.

Seria ufanismo afirmar que os “falsos antagonismos” que povoam o discurso dominante (Estado versus mercado, liberdade versus igualdade) estejam superados. Tampouco supomos que o “pensamento único” se foi. Ao contrário, seu núcleo duro produz forte impacto ao obscurecer a percepção do potencial de antagonismos constitutivo das relações sociais capitalistas.

Os principais temas dos primeiros dez números estão contemplados aqui, o que levou, sempre evitando o anedótico e a abstração vazia, à mescla de abordagens mais particulares com tentativas de generalização. Jorge Alano Garagorry examina, com humor e perspicácia teórica, o debate aparentemente técnico sobre a independência do Banco Central brasileiro. Célia Motta analisa o rosário de misérias a que se reduziram as promessas de “desenvolvimento” no Brasil, no decorrer de diferentes formas de dominação, inclusive a liberal-democrática. Marcos Del Roio aborda as contradições imperialistas que se desenvolvem no interior da tentativa de constituição de um império do mundo. Marcelo Buzetto centra o foco em duas importantes guerras antiimperialistas contemporâneas, a do Vietnam e a do Iraque, procurando elementos concretos para a atualização de formulações clássicas do marxismo com vistas à abordagem desta questão que se anuncia como crucial para um século que, mais rapidamente que o recém-encerrado, se inaugura sob o signo da ofensiva militar imperialista em larga escala.

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Apresentação 8

No chamado mainstream (a adoção do termo já expressa profundo conformismo frente à ordem acadêmica estabelecida aqui e, principalmente, alhures), reestruturação produtiva (capitalista) tem ares de ponta de estoque. Alheia aos altos e baixos do modismo acadêmico, Terezinha Ferrari, trabalhando com segurança e criatividade na intersecção de economia, política e ideologia, apresenta análise crítica de um tema cuja atualidade é do próprio capitalismo em suas diferentes fases.

O estudo da questão nacional e dos nacionalismos tem sido central na revista. Cássia Adduci e Celso Uemori apresentam dois eruditos artigos sobre os tormentos da apropriação da ideologia nacional por intelectuais brasileiros e Lúcio Flávio de Almeida procura demonstrar como, no início dos anos 60, esta apropriação pelas classes populares, imprimiu ao nacionalismo elementos de antiimperialismo, o que teve como resposta o “golpe de classe” que inaugurou a mais longa ditadura da história deste país. Também se voltando para a história política brasileira, Elsio Lenardão reflete sobra a longa tradição de clientelismo e seus impactos sobre as classes populares.

O dossiê, “De uma América à outra”, ao sintetizar estas abordagens, assume uma configuração caleidoscópica: estudos de casos mais particulares e esforços de generalização; norte e sul; passado, presente e tentativas de vislumbrar o que vem por aí; opressão imperialista e as múltiplas resistências que tem suscitado; levante de condenados da Terra que derrubam governo e lutas sociais no coração do mais novo candidato a império.

As três resenhas também contemplam alguns dos principais temas abordados pela revista desde sua criação. Waldir Rampinelli faz uma avaliação crítica equilibrada da trilogia de Elio Gaspari sobre a ditadura militar brasileira, inaugurada quarenta anos atrás; Tânia Marossi apresenta as linhas gerais do livro em que Ilse Gomes Silva, com clareza e profundidade, procura analisar diferentes facetas das relações entre participação popular e política de Estado durante a última transição de regime político no Brasil; Renata Gonçalves apresenta o trigésimo número de Actuel Marx, voltado para um debate indispensável às lutas pela transformação social: o das relações sociais de sexo.

A expressão “golpe de classe” foi extraída do título do livro de René Armand Dreifuss, que obviamente não é responsável pelo uso que dela fazemos aqui. A René, autor de uma das mais importantes pesquisas críticas sobre a gênese do golpe de 1964 e da subseqüente ditadura que se implantou neste país, é dedicado este número de Lutas Sociais.

O novo formato da capa expressa a tentativa de atualização da revista. Dizemos um “até logo” às belíssimas fotos de Lewis Hine, que estiveram em todos os números, e tentamos vôos novos, sem impedir que, ao primeiro olhar, o leitor perceba que está diante de Lutas Sociais.

L.F.R.A.

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A independência do Banco Central em debate Jorge Alano Silveira Garagorry∗

Resumo: Este artigo trata do debate sobre a autonomia do Banco Central, presente na sociedade brasileira, buscando analisar seu significado econômico e político, em especial a sua coerência com a ideologia da soberania popular.

Primeiras Palavras Por ter merecido pouco destaque por parte da mídia eletrônica, o debate a

respeito da independência (autonomia) do Banco Central não vem atingindo o grande público. Para o Presidente Lula, o debate não passa de “inquietação de tese acadêmica” (Folha de S. Paulo, 30/01/2004: B9).

O que está em discussão é a conveniência de o Banco Central ser ou não ser autônomo em relação ao governo, bem como a forma desta autonomia e ainda o grau de independência que seria concedido a esse órgão. Nas palavras do Economista-Chefe da FEBRABAN (Federação Brasileira das Associações de Bancos), Roberto Luis Troster (2003: A3):

Uma lei de autonomia do BC envolve pontos importantes e complexos, dos quais se destacam a responsabilidade por definir as metas de inflação; a decisão sobre como alcançar as metas; a capacidade econômico-patrimonial de operar os instrumentos financeiros; a autonomia orçamentária; a transparência; a governança; as relações do BC com outras instituições; e a diretoria – demarcação de direitos, estrutura, duração [dos mandatos], nomeação e remoção. São questões que devem ser discutidas por toda a sociedade para que o arcabouço legal do BC que surgir dos debates seja um pilar do nosso desenvolvimento.

O fato é que a proposta está avançando rapidamente, sem muito estardalhaço e sem muita resistência por parte da sociedade brasileira.

Queremos aqui analisar, sob os pontos de vista político e econômico, os aspectos que consideramos mais importantes desta questão: o alcance e o significado da proposta de independência do BC.

Uma reforma que avança Observamos que a proposta não é nova. Foi apresentada por diversas

ocasiões ao longo dos anos 90. Mas, na época, não emplacou. Neste novo governo, no entanto, parece que encontrou um terreno fértil para se desenvolver. Basta recordar que Antonio Palocci, em seu discurso de posse no Ministério da ∗Mestre em Economia pela UFRGS, Professor do Departamento de Economia da PUC-SP, Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP e membro do NEILS.

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Jorge Alano Silveira Garagorry 10

Fazenda, em janeiro de 2003, anunciou que enviaria ao Congresso uma proposta de regulamentação da autonomia do BC.

Na carta enviada ao FMI, em 28/05/2003, por ocasião da terceira revisão do acordo do Brasil com aquele órgão, o ministro da Fazenda, Sr. Antonio Palocci afirma:

O governo tem avançado rapidamente no cumprimento de sua agenda para a recuperação econômica e implantação das reformas. Depois de um importante esforço para a construção de consensos, uma proposta ambiciosa de reforma tributária e previdenciária foi enviada ao Congresso antes do previsto. A política fiscal tem se concentrado na redução da dívida pública: a Lei de Diretrizes Orçamentárias, enviada ao Congresso, aumenta a meta de superávit primário de médio prazo para 4,25 por cento do PIB. Além disso, a emenda constitucional que facilita a regulação do setor financeiro – um passo necessário à formalização da autonomia operacional do Banco Central – foi aprovada (Ministério da Fazenda, 2003: 1).

O documento dá uma boa noção da inserção desta reforma. O ministro tem razão. Efetivamente, o governo fez um importante esforço para a construção de consensos. Foi muito rápido e eficiente. Mas o ministro omite os instrumentos utilizados. Autoritarismo e fisiologismo político não são novidades na construção de consensos.

Tem razão, também, quando afirma que o primeiro entrave jurídico para a autonomia do Banco Central foi removido. Refere-se à aprovação da PEC nº 53, em 3/04/2003, que altera o artigo 192 da Constituição, o qual trata da regulamentação do sistema financeiro nacional. Essa emenda constitucional abriu caminho para a regulamentação da autonomia do BC e, de quebra, excluiu a limitação constitucional da taxa de juros real.

Mais uma vez, o ministro tem razão ao afirmar que esse foi um passo necessário à formalização da autonomia do BC. No entanto, ao se referir à autonomia, o ministro a adjetiva, qualificando-a de autonomia operacional. Trata-se, no mínimo, de um equívoco. O Banco Central do Brasil já dispõe, formalmente, da autonomia operacional. Maria Cristina Penido de Freitas esclarece essa questão ao afirmar:

Para exercer suas atribuições de forma independente e sem interferência do governo, o BC precisaria contar com autonomia operacional, administrativa e patrimonial. A autonomia operacional é a liberdade de ação e definição dos meios para cumprir seus objetivos; a autonomia administrativa baseia-se em mandatos fixos e em regras rígidas de demissibilidade dos seus diretores; e a autonomia patrimonial na liberdade para gerir seu próprio orçamento (Freitas, 2003: A3).

Porém, prossegue Freitas: No caso brasileiro, o Banco Central é uma autarquia e já conta, em termos legais, com a autonomia patrimonial e autonomia operacional para a execução de política. Só estaria faltando a autonomia administrativa, ou seja, a definição de mandatos fixos para seus diretores. Porém, esta questão é relativamente menos importante no momento atual. A troca dos dirigentes em janeiro de 2003 não provocou alteração na forma de atuação do banco, que, desde junho de 1999 – quando se introduziu o regime de metas de inflação -, atua, na prática,

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de forma independente na formulação da política monetária (2003: A3). Como vemos, não há sentido em falar de formalização da autonomia

operacional, pois em termos legais, ou seja, formalmente, o BC é autônomo operacionalmente. Alem do mais, a Constituição Federal proíbe o BC de financiar o Tesouro Nacional ou qualquer outra instituição não-financeira.

Na realidade, o que está em questão não é a autonomia para a execução da política monetária, mas a autonomia plena para formulação da política monetária e cambial, sem interferência do executivo, por uma diretoria com mandato fixo, não coincidente com o do Presidente da República.

Trata-se de uma importantíssima mudança institucional, que o ministro procura atenuar, qualificando-a de operacional. Ora, se a questão fosse uma mera concessão de autonomia operacional ao BC, não seria necessária a emenda constitucional aprovada através da PEC nº 53 e tampouco a reivindicação pela FEBRABAN do encaminhamento de lei específica tratando dessa autonomia, conforme consta em artigo assinado pelo Economista-Chefe daquela federação, publicado no jornal Folha de S. Paulo de 12/04/2003.

Segundo o noticiário, a formalização da autonomia do BC deverá entrar em pauta do Congresso Nacional este ano. Nota-se no entanto, que o governo está buscando definir o melhor momento para isso, pois é provável que encontre alguma resistência dentro do próprio Partido dos Trabalhadores e por ser este um ano eleitoral.

Se a atuação informal do BC de forma autônoma, observada no atual governo, já tem seríssimo significado para a sociedade, arriscamos dizer que a sua formalização significará, a logo prazo, “a mãe de todas as reformas”.

O contexto da uma reforma anunciada A atual estrutura do sistema financeiro nacional tem suas origens no

período compreendido entre 1945 e 1964. A SUMOC – Superintendência da Moeda e do Crédito, criada em 1945, foi o órgão que deu origem ao atual BC. A SUMOC não se constituía propriamente num Banco Central, pois dividia esse papel com o Banco do Brasil. Cabia a ela uma atuação centrada na área normativa e ao BB as funções executivas.

Naquele período, os bancos privados dedicavam-se às operações de curto prazo, mais rentáveis e de menor risco, graças a engenhosos mecanismos que permitiam contornar os limites legais da taxa de juros, estabelecidos pela “Lei de Usura”.

As operações de longo prazo e de maior risco, voltadas ao financiamento da produção, ficavam a cargo do BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, criado em 1952, para suprir essa necessidade do processo de acumulação de capital no Brasil, não atendida pelo setor bancário privado.

Essa divisão de tarefas entre BNDES e Bancos Comerciais se mantém inalterada até hoje.

Com o golpe militar, em 1964 é criado o Banco Central e o Conselho Monetário Nacional, além de outras reformas, entre elas a revogação da “Lei de

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Usura”. Portanto, é preciso reter que o BC surge sob o signo do autoritarismo político.

Um aspecto a ser salientado, bastante revelador, é o preenchimento dos principais cargos dirigentes dessa instituição.

Numa primeira fase, a presidência do BC era ocupada, via de regra, por economistas oriundos do meio acadêmico, com bom trânsito junto ao setor bancário e afinados com os ministros da área econômica. Isto é, pouco independentes em relação aos formuladores da política macroeconômica. Com o passar do tempo esse perfil foi mudando. Nos anos 80 chegamos a ter até a presença de banqueiros nacionais no comando do BC.

Porém, nos anos 90, passamos a ter a presença ostensiva de representantes do mercado financeiro internacional na direção do BC, especialmente nestas duas últimas gestões. É importante observar que, coincidentemente, é na gestão de Armínio Fraga Neto na Presidência do BC, através do decreto nº 3.088 de 21/06/1999, que ocorre a implantação do sistema de metas inflacionárias como arcabouço básico da política monetária, segundo o qual, toda a política econômica fica subordinada às condições necessárias para o cumprimento das metas de inflação. Mais especificamente, sob o regime de metas de inflação nenhuma outra política pode entrar em conflito com a sua execução, pois a política monetária passa a ter a precedência sobre as demais políticas.

Nesse sistema, o COPOM (Comitê de Política Monetária), também criado pelo decreto acima, composto por todos os diretores mais o presidente do BC, toma as decisões mais importantes da política econômica do país de forma colegiada.

Mensalmente o COPOM se reúne para decidir o que fazer com a taxa de juros. Porém, antes da reunião, o BC consulta “o mercado” – leia-se os economistas-chefes dos maiores bancos – a respeito de suas expectativas quanto ao comportamento futuro das principais variáveis macroeconômicas da economia brasileira (tais como: inflação futura ; crescimento esperado do PIB, comportamento do Balanço de Pagamentos, etc.). Estas expectativas, ao serem consolidadas pelo BC, são tratadas como se tivessem uma origem pulverizada, isto é, como se tais opiniões fossem independentes entre si. De posse dessas estimativas o COPOM, por meio de um modelo econométrico conhecido pelos economistas-chefes, acaba “decidindo” qual taxa de juros nominal é compatível com as metas de inflação e com as expectativas do “mercado”. No final sai uma ata da reunião que fundamenta tecnicamente a decisão tomada em relação aos juros. Aparentemente uma simples decisão lógica e técnica...

Essa decisão “técnica”, na realidade, esconde um jogo de cartas marcadas ou “jogo de compadres”.

O BC consulta os principais interessados na manutenção da maior taxa de juros suportável politicamente. Tais representantes do “mercado” representam os próprios detentores dos títulos da dívida pública, os quais serão remunerados pela taxa de juros em questão. Logo, está em discussão quanto os detentores dos títulos da dívida pública vão receber de renda. Não é de se estranhar que o BC tenha sido tão ágil para elevar abruptamente a taxa de juros no final de 2002 e seja tão

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gradualista na hora de reduzi-la, embora continue consultando as expectativas dos mesmos economistas de bancos.

Ora, é como se, mensalmente, os patrões consultassem seus empregados quanto ao salário que eles querem receber! Os empregados só teriam que tomar o cuidado de não quebrar o patrão. Se, por acaso, eles percebessem que o patrão estava com uma dívida crescente, para poder pagar-lhes cada vez maiores salários, deveriam recomendar que o patrão cortasse seus gastos pessoais, isto é, efetuasse reformas em seu orçamento; que mudasse seu estilo de vida, etc. (Qualquer semelhança com o reformismo neoliberal dos anos 90 não é mera coincidência.)

Tais relações íntimas entre o “mercado” e o BC sempre existiram. A novidade é que agora ocorrem às claras, de forma institucionalizada. Assim, não faz sentido a proposta, defendida ingenuamente por alguns, da construção de um chinese wall, separando o BC do mercado financeiro. Não é viável imaginar-se uma efetiva separação entre esses dois agentes.

Durante o último processo eleitoral, alguns integrantes do “mercado” manifestaram um medo infundado de que, com a eleição do Lula, esse jogo acabasse. Se tivessem dado ouvidos a uma frase de Darcy Ribeiro que Leonel Brizola repete há anos – “o PT é a esquerda que a direita gosta” – não teriam passado por tanto “stress”. Mas, a Carta ao Povo Brasileiro1 , que o Duda Mendonça não mostrou na TV, acalmou “os compadres”. O jogo iria continuar...

Enquanto isso, o povo brasileiro, alheio à “cartada”, votava em massa no Lula, na esperança dos 10.000.000 de empregos prometidos. Vemos hoje que a Carta ao Povo Brasileiro, que não chegou ao destinatário – só aos “compadres” – está vencendo a esperança do povo brasileiro, pois tornou-se o principal documento norteador da política econômica do Governo Lula.

Na nova gestão, o “jogo de compadres” ficou ainda mais animado. Basta acompanhar mensalmente os pagamentos bilionários do serviço da dívida mobiliária.

Mas voltemos aos presidentes do Banco Central. Agora, no Governo “Democrático-Popular”, temos o Sr. Henrique Meirelles na presidência do BC, aplicando rigorosamente o regime monetário de metas para inflação.

Meirelles, que presidiu o Banco de Boston no Brasil por 12 anos, foi presidente do FleetBoston’s Global and Wholesale Bank, após a fusão do BankBoston com o Fleet Financial Group, e presidente mundial do BankBoston até o ano passado, quando retornou ao Brasil. Até então, era encarregado da supervisão dos negócios da empresa na Ásia, Europa, América Latina e liderava os esforços estratégicos da instituição no mercado metropolitano de Nova York.

O extenso curriculum de Meirelles nos informa que foi membro de diversos conselhos, dentre eles, do Centro para Assuntos da América Latina da Universidade George Washington e da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos em Nova York.

1 Documento elaborado durante a campanha eleitoral onde o candidato Lula se compromete a manter as linhas gerais da política econômica do Governo Fernando Henrique Cardoso.

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Meirelles é também o presidente fundador da Federação Latino Americana de Leasing e presidente emérito da seção brasileira da Associação Internacional de Bancos.

Ressalte-se que o Sr. Henrique Meirelles ao ser convidado para presidir o BC, havia acabado de se eleger Deputado Federal pelo PSDB, até então, o principal partido da situação.

Vemos que o BC está em boas mãos... Pelo curriculum, tem experiência no “carteado”.

Desconhecemos os estranhos caminhos que levaram a essa escolha. No caso, podemos até aventar a hipótese de que o Ministro da Fazenda sequer o conhecia pessoalmente. Se não há laços pessoais, profissionais ou acadêmicos, e muito menos político-partidários, como que o Sr. Palloci ou o próprio Presidente Lula, poderiam ter escolhido esse importante “auxiliar”? Pelo seu perfil, trata-se de um presidente de BC bastante independente em relação aos ministros da área econômica.

Não é por acaso que vemos o BC sendo ocupado por legítimos representantes do capital financeiro internacional. Esse fenômeno está inserido na lógica da chamada “globalização da economia”.

Como nos ensina François Chesnais (2001), por trás dessa expressão, aparentemente neutra, “esconde-se um modo específico de funcionamento e de dominação política e social do capitalismo” (2001: 7)

Chesnais refere-se ao fato de que o comando do movimento da acumulação, na atualidade, encontra-se nas mãos das instituições integrantes do capital financeiro internacional. Tais instituições, caracterizadas como rentistas, comandam a repartição da renda e o ritmo do investimento produtivo, consequentemente, o nível de emprego, por meio da posse de ativos patrimoniais e de diversos tipos de operações realizadas nos mercados financeiros.

O contexto da discussão sobre independência do BC deve ter claro que vivemos um momento em que o mundo financeiro se afirma como uma força autônoma, capaz de pôr em cheque governos, arruinar determinadas economias nacionais de um dia para outro e redirecionar a riqueza mundial, tanto entre nações como entre setores econômicos.2

A forma de acumulação predominantemente financeira utiliza-se do discurso ideológico batizado de “Neoliberalismo”. Como sabemos, tal discurso tem sua fundamentação teórica, no que se refere ao âmbito econômico, na Escola Neoclássica. Sabemos que esta escola produziu a Teoria das Expectativas Racionais, que acabou sendo vulgarizada pela expressão “confiança do mercado”. Um outro aspecto ressaltado pelos economistas neoclássicos é a idéia da autoregulação dos mercados. A proposta de BC independente encontra-se aí inserida. A partir dos anos 80 tivemos a institucionalização dessa idéia em diversos países. Entre 1989 e 1994 mais de 30 países adotaram a independência ou autonomia dos seus bancos centrais. Aqui na América Latina, tivemos os casos da Argentina, México, Venezuela, Chile, Colômbia e Equador.

2 Para uma análise aprofundada ver Chesnais(1998 e 2001).

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O Banco Central e a Política Econômica A centralidade da política econômica se deve, sob o aspecto teórico, ao

advento do keynesianismo e sob o aspecto operacional, aos desenvolvimentos no campo da estatística, envolvendo a criação do sistema de contas nacionais e da econometria. Todavia, tais desenvolvimentos só ganharam o caráter fundamental que hoje lhes é atribuído, devido à criação dos bancos centrais. Assim, o BC passa a desempenhar uma função estratégica na sociedade, na medida em que é a entidade condutora da política econômica. O BC não é somente o condutor da política monetária, mas também da política cambial. Por causa disso, ele condiciona a política fiscal. Somente para ilustrar, mencione-se que, quando o BC eleva a taxa de juros, ele provoca uma série de transferências de riqueza: do setor produtivo para o setor financeiro; do orçamento público para os aplicadores em títulos da dívida; dos tomadores de empréstimos para os bancos; e assim por diante. Sua atuação na política cambial também provoca redistribuição da riqueza. Uma desvalorização cambial, altera o poder de compra de todos os brasileiros em relação ao resto do mundo; eleva os lucros dos setores exportadores e eleva os custos dos setores importadores; eleva os preços internos, reduzindo salário real; eleva a dívida das empresas tomadoras de empréstimos em moeda estrangeira; eleva a dívida pública, já que uma boa parte dela, ainda que interna, está indexada à variação cambial etc. Uma sobrevalorização cambial, por sua vez, também implica enormes redistribuições de riqueza, conforme pode ser observado na seguinte passagem de um autor insuspeito:

O que torna a especulação lucrativa é o dinheiro proveniente dos governos, apoiados pelo FMI. Quando o Fundo e o governo brasileiro, por exemplo, gastaram aproximadamente 50 bilhões de dólares para manter a taxa de câmbio em nível supervalorizado no fim de 1998, para onde foi o dinheiro? Ele não desaparece no ar, acaba indo para o bolso de alguém – grande parte desse dinheiro foi para o bolso de especuladores. Alguns destes podem perder, mas outros especuladores como um todo somam uma quantidade igual à que o governo perde (Stiglitz, 2002: 245).

Nessa passagem o autor aponta apenas um dos efeitos de uma sobrevalorização cambial. Vários outros impactos, no entanto, são desencadeados a partir desse tipo de política. Um dos mais importantes é a perda de competitividade da produção nacional, tanto agrícola como industrial. Com isso, os setores e/ou os capitais individuais mais frágeis são rapidamente varridos do mapa. A concentração de capital avança, acompanhada da desnacionalização da economia.

Quanto à política fiscal, cabe salientar que, seja por meio da política monetária ou da política cambial, o BC é capaz de aumentar ou reduzir as transferências de recursos públicos para o setor financeiro, isto é, transformar receita pública, arrecadada por meio de impostos, em lucros privados, e ainda decidir se tais lucros serão apropriados por nacionais ou estrangeiros. Portanto, decisões diárias do BC alteram a estrutura do orçamento público, determinando o volume de recursos que serão destinados ao serviço da dívida e o que restará ao governo para desempenhar as funções que a sociedade espera dele. Como vemos,

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o BC pode ser autônomo em relação ao governo, mas o governo não é autônomo em relação ao BC.

Curiosamente, a principal marca das administrações locais petistas tem sido o chamado “orçamento participativo”. Ora, um BC autônomo sequer respeita as destinações de recursos estabelecidas pelo Congresso Nacional, que dirá as prioridades resultantes de eventuais discussões públicas do orçamento prometidas pelo candidato na última campanha eleitoral.

É preciso ter claro que a política econômica implica escolher arbitrariamente meios e fins, entre um enorme leque de opções. Implica escolher setores ganhadores e perdedores. E, ainda, que a política econômica, de fato, não resolve problema algum, e sim cria novos. Aliás, não poderia ser diferente, a não ser que o Estado estivesse acima da lei do valor.

A rigor, o Estado mantém uma relação orgânica com o capital. A partir dessa abordagem, Pierre Salama (1980), nos dá uma interessante interpretação do papel da política econômica, enquanto ação concreta do Estado. O Estado, por meio da política econômica, acentua as transferências de mais-valia dos setores retardatários para os setores de vanguarda, de forma que os fluxos de capitais se dirigem aos ramos de maior composição orgânica do capital.

Dessa maneira, o Estado acaba tendo uma ação comparável à da crise. A política econômica acaba destruindo capitais em benefício de determinadas frações do capital. Temos o Estado cumprindo um papel provisório de crise, mas uma crise seletiva. Para Salama, “a crise é necessária para o capital. Ela é o meio pelo qual o capital modifica as condições de exploração” (1980: 133) E, na mesma página, afirma que a crise possibilita “ao capital que se regenere”.

A abordagem acima é compatível com a visão poulantziana, incorporada criticamente por Décio Saes (2001). Para este autor, um dos papéis do Estado é o de organizador da hegemonia no seio do bloco no poder. A passagem abaixo nos revela a necessidade da figura do Estado capitalista cumprindo esse papel:

Nas formações capitalistas, as classes dominantes ou frações de classe dominante são permanentemente unificadas pelo objetivo de frustrar a revolução social; todavia, essa unidade jamais chega ao ponto de sufocar a luta incessante que elas travam pelo aumento dos seus quinhões respectivos na repartição da mais-valia total (Saes, 2001: 50).

Esses conflitos de interesses entre as diversas frações da classe dominante são, para o autor, inerentes ao capitalismo, dadas as diferentes funções no processo econômico exercidas por subgrupos de capitalistas – função produtiva, comercial, bancária e outras.

Assim, para Saes, o papel do Estado enquanto organizador da hegemonia no seio do bloco no poder se revela justamente pela política econômica e esta revela a fração de classe hegemônica.

A fração hegemônica é aquela que detém a preponderância política no interior do bloco no poder e o indicador da preponderância é o fato dessa fração de classe ter seus interesses econômicos prioritariamente contemplados pela política econômica e social do Estado.

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Independência do Banco Central e Democracia A importância da política econômica é um fato reconhecido pela

sociedade. Seus resultados servem como principal critério para avaliar o sucesso ou o fracasso dos governos, já que muitas vezes os objetivos da sociedade são confundidos com os objetivos da própria política econômica. Por essa razão, geralmente, a política econômica ocupa o centro do debate dos processos eleitorais pelo mundo afora. Assim, a escolha do presidente da república ou de um primeiro ministro, em grande medida se deve à proposta de política econômica.

A independência ou autonomia do BC em relação ao governo é, portanto, incoerente com a chamada soberania popular que se manifestaria no processo eleitoral. A rigor, tal proposta se configuraria como um estelionato eleitoral. Se votamos num determinado candidato, esperamos dele uma determinada política econômica. Como admitir que outros a façam de forma autônoma?

Um fato que chama a atenção quando observamos os processos eleitorais nos países onde o Banco Central é independente, por exemplo, EUA, Alemanha e França, é o altíssimo absenteísmo dos eleitores. Ora, esta apatia eleitoral tem um sentido lógico. O eleitor nesses países já aprendeu que seu voto nada muda. O desencanto eleitoral revela uma séria contradição do capitalismo da atualidade: o seu principal mecanismo de controle social, a democracia, apresenta-se cada vez mais esvaziado. Por esta razão, BC independente requer o estatuto do voto facultativo.

No nosso caso, diante da proposta de independência do BC, o artigo primeiro da Constituição Federal do Brasil chega a soar risível quando diz: “ Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”.

Uma questão que se coloca é: como conciliar a idéia da soberania popular, enquanto ideologia básica do formalismo democrático, com a proposta de independência do BC?

De imediato, é preciso deixar claro que, ainda que essa autonomia seja formulada obedecendo a uma determinada gradação, que configure uma autonomia parcial, a soberania popular não estará sendo obedecida, pois não cabe imaginar uma soberania popular parcial.

Se entendermos o termo soberania como poder de mando de última instância, uma soberania popular parcial soa como “ligeiramente grávida”.

Segundo nosso ponto de vista, há duas formas de superar este debate. A primeira é a extinção do BC através da estatização do sistema financeiro nacional. Curiosamente essa contraproposta não está colocada no âmbito deste debate.

Ao examinarmos o alcance da idéia da estatização do sistema financeiro verifica-se que ela, embora circunscrita ao conjunto de reformas de caráter capitalista, é coerente com um projeto nacionalista antiimperialista. Seu potencial não pode ser considerado desprezível, uma vez que atinge em cheio o setor dominante do processo atual de acumulação.

O que poderia ser esperado desse tipo de estatização é, no mínimo, uma mudança qualitativa do processo de acumulação, com o capital produtivo no comando. Como vemos, assim como há nacionalismos e nacionalismos, também

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há estatizações e estatizações. Um movimento social pró-estatização do sistema financeiro nacional teria hoje, pelo menos, um significado semelhante ao do “Petróleo é Nosso”, dos anos 50, dada a importância daquele setor na época.

Mas voltemo-nos à outra forma de superar o debate sobre a independência do BC, além da que apresentamos acima. A única maneira de se garantir simultaneamente BC independente e soberania popular é a escolha do presidente do BC através do voto direto e universal e que este escolha um presidente da república de sua confiança. (A escolha do presidente da república pelo presidente do BC seria necessária para evitar um imbróglio institucional dentro do poder executivo). É claro que seria conveniente efetuar uma reforma constitucional adicional que começasse por: “onde está escrito Presidente da República, leia-se: Gerente Administrativo”.

Portanto, para aqueles que defendem a proposta de um BC independente e ainda se preocupam com a questão da soberania popular, resta-lhes defender também a eleição direta do presidente do BC e que este escolha o presidente da república.

Últimas Palavras Um dos aspectos importantes desta discussão é que ela revela o conteúdo

autoritário crescente das sociedades capitalistas contemporâneas, gerando sérias restrições para a expressão política da luta de classes. Sabemos que em regimes autoritários, somente as frações da classe dominante podem se exprimir, restando forte repressão às classes subalternas. Nos regimes liberal-democráticos, o mais freqüente é que determinadas coalizões ou alianças de classes consigam expressão política.

Conforme comentamos anteriormente, na atualidade vivemos um modo específico de dominação política e social do capitalismo. O comando da acumulação encontra-se em mãos do capital financeiro internacional, mais especificamente, de uma oligarquia financeira internacional, que se caracteriza como rentista, em sentido amplo, e impõe sua lógica inclusive ao capital produtivo. Temos, portanto, uma oligarquia financeira que articula os diversos tipos de capital e exerce o comando do movimento da acumulação.

O que se tem observado, especialmente nos países subdesenvolvidos, mas não só, é que essa oligarquia financeira tem um caráter predatório e imediatista que empurra os Estados para a crise fiscal e posteriormente à crise política.

A acumulação de capital sob dominância financeira tem poucas conexões com a esfera produtiva. Quando tem, é simplesmente para impor a lógica da rentabilidade máxima, o mais rápido possível.

Isto faz uma diferença qualitativa importante do ponto de vista político. No período em que predominou o keynesianismo, enquanto política macroeconômica, do pós-guerra até a década de 70, o capitalismo obtinha sua legitimação política e social graças ao reinvestimento produtivo de parte do excedente. Isto permitia a ampliação do emprego e renda, possibilitando ao Estado cobrar impostos e prestar uma série de serviços e prover certos bens públicos aos trabalhadores.

O capitalismo sob dominância financeira, pela sua própria lógica, sofre de

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legitimação política e quase não dispõe de aliados sociais. Restam-lhe dois caminhos fartamente usados durante seu avanço: corrupção e autoritarismo. Se aprofundarmos a análise de todas as reformas econômicas efetuadas em nosso país, e em toda parte, encontraremos algo em comum, além de sua matriz ideológica: foram feitas com base no autoritarismo e em doses cavalares de corrupção.

Tarso Genro define essa situação da seguinte forma: As reformas exigidas pelas agências financeiras globais, como o FMI, só puderam ser impostas, portanto, por meio de um “decisionismo”, que é necessariamente autoritário (medidas provisórias, por exemplo), e pela corrupção (que se tornou em todo o mundo um elemento vitalizador da ação política), destinada a sonegar direitos, privatizar o Estado e formar inclusive uma nova classe empresarial, que emerge das reformas financeiras, econômicas e da própria reforma do Estado (2001: A3).

O autor tem razão. É provável que continue tendo, inclusive, quanto às reformas do governo do qual ele participa atualmente.

Simplificando o processo que vivemos, o imperialismo na atualidade baseia-se em, de um lado, controlar as políticas econômicas nacionais, para deter o controle da repartição da renda e redirecioná-la para o centro da acumulação, utilizando, especialmente o expediente da dívida pública. Por conseqüência, o endividamento empurra o Estado para a crise fiscal. De outro lado também, promover as reformas, cujo sentido é desonerar o Estado das despesas sociais, liberando recursos financeiros para sustentação do mecanismo do endividamento público. É fácil perceber que esses fatores conjugados podem conduzir à deslegitimação do Estado e, ao mesmo tempo, indicam a possibilidade de uma saída autoritária.

O controle dos Bancos Centrais, pela posição estratégica que ocupam nas economias nacionais, é um elemento chave desse processo. Como o BC não é independente do “mercado” e como o Tesouro Nacional não é independente do BC, então, a independência do BC em relação ao governo significa o controle do Tesouro Nacional pelo “mercado”, por intermédio do BC.

Por isso, a proposta da independência do BC em relação ao governo é um seguro contra improváveis medidas que contrariem os interesses da oligarquia financeira. Mais uma vez citamos o artigo do Economista-Chefe da FEBRABAN:

“... conceder autonomia ao BC, imunizando-o dessas pressões e tentações políticas conjunturais, permitindo que seus integrantes posterguem a popularidade imediata em troca de benefícios duradouros” (Troster, 2003: A3).

Sérgio Werlang, ex-diretor de Política Econômica do BC, e atual diretor executivo do Banco Itaú é ainda mais objetivo: “ ... Hoje, o BC trabalha com independência operacional, mas o problema não é agora, é quando se chega perto de uma eleição”. (Miguel, 2004: 14)

As eleições, enquanto aspecto conjuntural, podem significar um elemento perturbador para a forma de dominação vigente. Por isso, a preocupação de tornar as eleições algo ainda mais formal e menos desprovido de conteúdo. A formalização da independência do BC tem esse sentido. Trata-se de uma mudança

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com consequências de longo prazo para a luta de classes. A classe dominante corre o risco, no entanto, de tornar o processo eleitoral

redundante inclusive na sua função mistificadora. O sufrágio universal permite manter o mito da soberania popular, ocultando que a soberania, de fato, está nas mãos da classe dominante.

Bibliografia: CHESNAIS, F. (2001). “Mundialização: o capital financeiro no comando”. Outubro – Revista de Estudos Sociais, nº 5. CHESNAIS, F. (1998). A Mundialização Financeira. São Paulo: Xamã. FREITAS, M. C. P. de (2003). “Implicações Profundas e Negativas”. Folha de S.Paulo, Seção Tendências e Debates, 12/04/2003. GENRO, T. (2001). “Constituição e Corrupção”. Folha de S.Paulo, Seção Tendências e Debates, 18/05/2001. MIGUEL, S. (2004). “Banco Central – ser ou não ser independente”. Conjuntura Econômica, Vol. 58, nº 2. MINISTÉRIO DA FAZENDA (2003). Carta de intenção referente à terceira revisão do acordo (13/06/2003). Disponível em: <http:// www.fazenda.gov.br>. Acesso em 15 out. 2003. SAES, D. (2001). República do Capital - capitalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial. SALAMA, P. (1980). “Estado e Capital. O Estado Capitalista como abstração real.” Estudos CEBRAP, nº 26. STIGLITZ, J. E. (2002). A Globalização e seus Malefícios. São Paulo: Futura. TROSTER, R. L. (2003). “A miopia e a autonomia”. Folha de S.Paulo, Seção Tendências e Debates, 12/04/2003.

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Um desenvolvimento insustentável Célia M. Motta*

Resumo: Teorias, estratégias e promessas de desenvolvimento sustentaram vários programas de governo brasileiros (ditatoriais, “democráticos” ou “redemocratizantes”), sucessivamente justificados pela necessidade de “restabelecimento” da ordem política, econômica e social. Não houve desenvolvimento econômico, a ordem política é questionável e a sociedade mergulha na miséria -mas o argumento se repete.

“Crescimento” e “desenvolvimento” econômico geralmente são vistos como categorias reciprocamente complementares: o primeiro decorrente do crescimento da acumulação de capital (lucro) e o segundo da expansão do emprego e das técnicas de produção -como sugeriu David Ricardo. Com uma pequena simplificação, também podem ser considerados termos sinônimos, definidos basicamente pelo crescimento da produção anual per capita de uma nação. Esta visão predominou até o início do século XX, quando o aumento da riqueza nas metrópoles industriais parecia confirmar o desenvolvimento como um processo inerente ao devir capitalista.

A inoperância dos “mecanismos automáticos”, após a 2a Guerra Mundial, demonstrou que a economia capitalista não é espontânea, e não prescinde da intervenção política do Estado para recompor suas taxas de acumulação de capital –de acordo com os pressupostos keynesianos, de 1936:

com base nos interesses gerais da comunidade, espero vê-lo assumir uma responsabilidade cada vez maior na organização direta dos investimentos (...) o Estado deverá exercer uma influência orientadora sobre a propensão a consumir (...) embora isso não implique a necessidade de excluir ajustes e fórmulas de toda a espécie que permitam ao Estado cooperar com a iniciativa privada (...) não é a propriedade dos meios de produção que convém ao Estado assumir. Se o Estado for capaz de determinar o montante agregado dos recursos destinados a aumentar esses meios e a taxa básica de remuneração aos seus detentores, terá realizado o que lhe compete (Keynes: 1992: 135; 288).

Para assegurar o que lhe compete (o desenvolvimento do modo de produção capitalista), o Estado certamente exerce seu poder “orientador” da economia, e apresenta-se como uma instância legítima de representação dos “interesses gerais”. A questão é que, após restabelecidas as taxas de acumulação, o capital segue seu ciclo de realização (concentração e centralização) impondo novas metas de crescimento e, por conseguinte, outras estratégias políticas. Nesse

* Doutoranda em Ciência Política pela PUC-SP e membro do NEILS.

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momento, o Estado reassume sua “responsabilidade”, com novos planos para o desenvolvimento da “economia nacional”.

A história do Brasil possui um vasto arquivo de planos econômicos, projetos de desenvolvimento, ou modelos de crescimento que, invariavelmente apresentados como indispensáveis à promoção da autonomia econômica e da soberania nacional, foram substituídos a cada novo governo, sempre apontando os “velhos erros” e os “novos acertos”, para “sair da crise”.

Numa rápida observação, percebe-se que esta associação entre a necessidade de “legitimidade” política para a geração de uma economia “autônoma”, ou que atendesse os interesses das elites econômicas locais, remonta ao momento preciso em que a “independência econômica” do Brasil implicava independência política, ou seja, no final do período colonial. Sabe-se que, nesse momento de expansão do capitalismo liberal inglês, o desenvolvimento da economia mundial dependia da extinção dos monopólios coloniais, que no caso brasileiro ocorreu com a abertura dos portos à Inglaterra (1808). A promoção da independência política tornou-se imperativa1, especialmente para evitar o fechamento dos portos -por decisão da Revolução Liberal do Porto em restabelecer o monopólio português, em 1822.

Independentemente de não haver um projeto econômico exclusivamente “nacional”, mas associado à necessidade de expansão da indústria inglesa, após concretizada a independência política, a agroindústria cafeeira desenvolveu-se como estratégia de abertura de um novo mercado ao capital internacional. Plano econômico de autonomia apenas relativa, mas que representou um investimento extremamente rentável para os fazendeiros plantadores de café e, sobretudo, para os industriais ingleses –associados ao capital bancário, às agências financiadoras, exportadoras, seguradoras, transportadoras, etc.

A associação entre o capital agrário, o mercantil e o financeiro consolidou o poder político das oligarquias agrárias (paulistas e mineiras)2 que, reprimindo violentamente os movimentos sociais, dispensavam muita argumentação teórica em favor do “desenvolvimento nacional” -do qual eram as “legítimas” representantes, especialmente após o advento da República (1889).

Assim, a principal reforma econômica do período, para promover os “recursos necessários ao desenvolvimento da produção econômica e do comércio em geral” (Fonseca: 17/1/1890), foi estritamente financeira (política do “encilhamento” do Ministro Rui Barbosa), reduzindo-se ao aumento da especulação financeira, inflação e falências, inclusive a do Banco Nacional do Brasil (BNB) (Tannuri: 1981).

1 Mediante uma indenização de quase 2 milhões de libras – equivalente à dívida portuguesa com a Inglaterra. 2 “Demonstração de força da oligarquia cafeeira, que 'socializa' seus prejuízos, o Convênio de Taubaté, assinado em 26 de fevereiro de 1906 (...) inaugura uma política que irá prevalecer até a grande crise internacional de 1929” (Werneck Sodré, 1977). Até 1910 foram retiradas 16 milhões de sacas, pela Política de Valorização do Café -revigorada por Vargas entre 1931-33.

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O modelo agrário exportador persistiu até o colapso do capitalismo liberal (superprodução do café brasileiro), com a remoção dos coronéis paulistas do comando direto da política brasileira, pela Aliança Liberal. Mesmo com a tomada do poder por Vargas, sabe-se que os subsídios estatais para a “queima” de café não foram interrompidos3. Mas o discurso foi substituído.

Plano de desenvolvimento nacionalista No primeiro Manifesto ao Povo Brasileiro, Vargas (01/03/1930),

apresentava a Aliança Liberal como uma força promotora da democracia e do desenvolvimento nacional – o que permitiria

a interferência direta e efetiva do povo na escolha de seus mandatários, o respeito às franquias constitucionais e às leis; (...) o fortalecimento econômico e financeiro do país, pelo aumento de sua produção e da eficiência de seu aparelho circulatório, pela valorização do braço trabalhador e pela sua disciplina no arrecadar e aplicar os dinheiros públicos

Era a vez dos trabalhadores. Na Constituição de 1934, um texto dedicado à ordem econômica e social estabelecia os princípios básicos da legislação do trabalho –dentre eles, o preceito do salário mínimo “capaz de satisfazer, conforme as necessidades de cada região, às necessidades normais do trabalhador” (Vargas: 16/12/1934). A de 1937, mesmo acentuadamente autoritária, centralista e de tendência fascista, também visava

às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes de crescente agravação dos dissídios partidários que uma notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes (...) ao estado de apreensão criado no país pela infiltração comunista que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda exigindo remédios de caráter radical e permanente (Vargas: 10/11/1937-a).

Radical porque “entre a existência nacional e a situação de caos, de irresponsabilidade e desordem em que nos encontrávamos, não podia haver meio termo ou contemporização”; e permanente, pois “quando as competições políticas ameaçam degenerar em guerra civil, é sinal de que o regime constitucional perdeu o seu valor prático, subsistindo, apenas, como abstração” (Vargas: 10/11/1937-b).

Com uma redução drástica da atuação do Poder Legislativo, o Estado Novo estendeu-se até 1945, como o núcleo organizador da sociedade e responsável pela construção do capitalismo industrial, “verdadeiramente nacional” e comprometido com a ordem política e o desenvolvimento.

3 Com a criação do Conselho Nacional do Café, em 1931, e do Departamento Nacional do Café, em 1933, Vargas implementou uma “política de sustentação” da compra e queima dos excedentes estocados em depósitos do governo. A destruição de 17,2 milhões de sacas em 1937 e nos anos seguintes contribuiu para normalizar os preços no mercado internacional.

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Para substituir certos produtos importados4 (pois os países industrializados estavam em guerra), o estímulo à produção nacional, se não capaz de promover o pleno desenvolvimento econômico, foi suficiente para gerar empregos e promover um “salto” industrial e inovador em relação ao “passado agrícola”. Nenhum dos discursos anteriores operara tamanha “unidade nacional”, a despeito da marca fascista do Estado Novo5 –já que o nacionalismo também fora seu instrumento de mobilização política.

Entretanto, com a reativação da produção industrial internacional, a necessidade de abertura de mercados consumidores deparava-se com as “barreiras” criadas pela recente industrialização nacional. O Estado Novo, que já havia promovido certa acumulação de capital à burguesia industrial, tornou-se incômodo. Com a deposição de Vargas (1945), e para uma “completa mudança de rumos”6, a Constituição de 1946 respaldava politicamente o novo modelo econômico (SALTE) de Dutra.

Plano de “redemocratização” política e abertura econômica A restituição da “democracia” e a retomada do “crescimento” requeriam a

redução da intervenção do Estado na economia e medidas de liberação dos mercados. Dentre elas, a criação da Superintendência da Moeda e do Crédito –SUMOC (1947), para dispor sobre as operações de câmbio e regulamentar o retorno de capitais estrangeiros7; e a adoção da paridade monetária com o dólar americano e a liberdade cambial (Bretton Woods, 1944).

A orientação privatista de Dutra, em perfeita sintonia com o programa dos Estados Unidos para a América Latina, resultou na expansão das empresas estrangeiras, rebaixamento de salários e rápido esgotamento das reservas cambiais acumuladas durante a segunda guerra (Penna, 1989).

Retorno ao plano de desenvolvimento nacionalista

4 Pensamento econômico da CEPAL -base do “nacional-desenvolvimentismo”. Consolidou-se com a teoria do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiro) quanto à necessidade de uma nova fase para o capitalismo, promovido pela “burguesia nacional”. 5 “No Brasil não havíamos atingido a sangueira pública. Até nos países inteiramente fascistas ela exigia aparência de legalidade, ainda se receava a opinião pública. Entre nós execuções de aparato eram inexeqüíveis: a covardia oficial restringia-se a espancar, torturar prisioneiros, e de quando em quando se anunciavam suicídios misteriosos”, como Graciliano Ramos testemunhou em suas Memórias do cárcere (2001: 95-96). 6 Sem um rompimento político frontal, uma vez que a eleição de Dutra deveu-se ao apoio de Vargas (PTB e PSD), contra os candidatos Eduardo Gomes (UDN) e Yedo Fiúza (PCB). 7 Em 1946 foi reorganizada a Delegacia do Tesouro Brasileiro no Exterior (Nova Iorque), para orientar as finanças do Brasil: “efetuar, no exterior todos os pagamentos do governo brasileiro inclusive os da dívida externa federal, estadual e municipal” (Departamento Administrativo do Serviço Público,1957).

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Com sua eleição em 1950, Vargas propõe a união das forças políticas, para atualizar, no contexto de liberdades civis e públicas, seu projeto de desenvolvimento pró-industrialização nacional (Carone, 1980). Nas comemorações do Primeiro de Maio:

Chegou (...) a hora do governo apelar para os trabalhadores e dizer-lhes: uni-vos todos nos vossos sindicatos, como força livre e organizada (...) Na hora presente, nenhum governo poderá subsistir, ou dispor de força eficiente para as suas realizações sociais, se não contar com o apoio das organizações operárias. É através dessas organizações, sindicatos ou cooperativas, que as classes mais numerosas da nação podem influir nos governos, orientar a administração pública na defesa dos interesses populares (Vargas: 03/05/1951):

A associação entre o trabalhismo e o nacionalismo econômico expressou-se na maciça campanha de nacionalização do petróleo, com a criação da Petrobrás. Na Palavra do Presidente

A Petrobrás assegurará não só o desenvolvimento da indústria petrolífera nacional, como contribuirá decisivamente para limitar a evasão de nossas divisas. Constituída com capital, técnica e trabalho exclusivamente brasileiros, a Petrobrás resulta de uma firme política nacionalista no terreno econômico, já consagrada por outros arrojados empreendimentos em cuja viabilidade sempre confiei (Vargas: 04/10/1953).

Apesar dos argumentos nacionalistas, Vargas nunca descartou completamente a participação do capital estrangeiro na economia brasileira. Mas o triunfo da iniciativa de um setor nacionalista (intelectuais, militares, políticos, líderes operários) foi suficiente para o presidente Eisenhower defini-la como uma “manobra comunista” e reduzir o “programa de ajuda econômica”, ou seja, de empréstimos.

A restauração do modelo de desenvolvimento nacionalista não sobreviveu ao governo de Vargas (1950-54), cujo plano de impedir a “evasão de divisas”, mas sem conseguir obtê-las (devido à queda das exportações), degenerou em crise financeira. A retomada de empréstimos no exterior restituiu a vinculação ao capital internacional, particularmente ao norte-americano.

Plano nacional desenvolvimentista A ampliação dos investimentos privados, nacionais e estrangeiros,

prevaleceu na formulação do novo plano de desenvolvimento industrial, de Juscelino Kubitschek (1956-60), inteiramente ajustado aos interesses do capital internacional8.

A definição do novo modelo de desenvolvimento econômico, ainda “industrial e nacional” mas com a participação do capital internacional, além das

8 A reavaliação da fracassada substituição de importações, pela CEPAL, abre espaço para a “teoria da dependência”. Das novas propostas de desenvolvimento prevalece a de Fernando H. Cardoso e Enzo Faletto: apesar da dependência (característica natural do capitalismo), os países periféricos “têm uma forte tendência ao reinvestimento local, o que em certo sentido, solidariza os investimentos industriais estrangeiros com a expansão econômica do mercado interno” (Cardoso & Faletto apud Goldenstein, 1994: 41).

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naturais pressões externas, refletia a incapacidade da burguesia brasileira -vinculada à participação do Estado e do capital estrangeiro (o “tripé econômico”)- em assumir uma posição hegemônica no processo de industrialização. A definitiva configuração do modelo desenvolvimentista, o Plano de Metas (energia, transporte, agricultura e alimentação e indústrias de base) permitiu a maciça penetração do capital estrangeiro nos setores mais dinâmicos da economia –redefinindo a orientação econômica e política do Brasil9.

A indústria automobilística envolveu diretamente a abertura de mercados no setor da distribuição do petróleo. A transferência da capital federal, do Rio de Janeiro para Brasília, contribuiu para a expansão desse mercado, aumentando a necessidade de consumo do petróleo: utilização de automóveis, asfalto, pneus, combustível, instalação de postos distribuidores, rotas aéreas, etc.10. Ao capital estatal, ficou destinada a viabilização do programa da infra-estrutura: rodovias e ampliação do potencial de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica.

A implementação do modelo desenvolvimentista, de Vargas ou Juscelino, expôs as dificuldades de crescimento de uma economia nos moldes capitalistas. Desde o princípio, apresentavam-se as clássicas contradições do capitalismo: o desenvolvimento industrial de um país, teoricamente, aumenta sua participação na disputa de mercados consumidores; ao deixar de ser simples fornecedor de matéria-prima, o país industrializado adquire autonomia produtiva suficiente para suprir sua demanda em certos setores. Enfim, o ingresso de mais um país no universo da concorrência internacional ameaça o “livre-comércio” –essência contraditória do capitalismo.

Mas, no seu jogo interno, o capital não dispensa qualquer perspectiva de lucro. Como os projetos de industrialização requeriam investimentos, o capital internacional reivindicou sua participação nos planos “nacionais” - até se impor no governo de Juscelino. As contradições reproduziram-se: recursos financeiros para os investimentos promovidos por política fiscal e emissões; desvalorização monetária e inflação; perda do poder aquisitivo e retração da demanda; incremento tecnológico e restrição do emprego; aumento do subemprego e do subproletariado urbano.

Como os investimentos se realizaram de forma especulativa e não atingiram igualmente todos os setores produtivos, o maior crescimento promovido pelo “novo modelo” de desenvolvimento nacional foi o da centralização de capitais por alguns setores multinacionais (construção, especulação imobiliária), e a estagnação dos demais. Mesmo assim, evocando o ideário nacionalista –ao

9 Dois exemplos (1958): 1. Amaral Peixoto, embaixador brasileiro nos EUA, foi convocado (1958) a explicar, em Washington, a possibilidade de reatamento das relações comerciais com a URSS para venda do café. 2. o presidente Eisenhower aprovou a proposta do governo brasileiro -criação da Operação Pan-Americana (OPA)- para o desenvolvimento econômico multilateral latino-americano. O “desenvolvimento” foi relegado, mas a repressão ao comunismo foi enfatizada com a instalação oficial no Brasil da Central Intelligence Agency – CIA (Castro, 1983). 10 “Seguindo-se a uma opção estratégica que remonta à década de 1950 e início dos anos 60, tivemos a consolidação do transporte rodoviário, justamente o mais caro modal de transporte para cargas, como predominante no Brasil” (Almeida, 2002).

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privilegiar a matriz desenvolvimentista contra a corrente monetarista de estabilização- Juscelino rompeu com o FMI (1959), num gesto considerado de defesa da soberania nacional. Ao final do governo, sua imagem pública estava associada à do empreendedor da modernização da economia brasileira -com um crescimento médio anual de 8,2%. Os custos (inflação de 23%) foram cobrados nos anos seguintes.

Com a determinação de Goulart em ampliar o modelo de desenvolvimento industrial nos moldes capitalistas, explodiram as contradições –reproduzidas nas manchetes dos principais jornais da época:

O entusiasmo que recebia as palavras dos líderes políticos, sindicais e estudantis mostrou uma firme determinação do povo de lutar unido e coeso pela implantação das reformas fundamentais de que o Brasil necessita para a consolidação do seu desenvolvimento. Foi uma evidência, na repercussão que teve nos aplausos da grande massa popular, o sentimento da necessidade de uma efetiva e urgente modificação que reformule o arcaico estatuto da terra ainda vigente entre nós (Diário Carioca, 14/03/1964). Guerra civil, fechamento do Congresso, constituinte e até implantação da socialização crescente da economia do País foram os elementos essenciais utilizados pelos oradores do comício de ontem pelas reformas de base, do presidente João Goulart ao deputado Leonel Brizola; do presidente da SUPRA ao representante do CGT. O Sr. João Goulart antecipou o quadro de revolução civil, ao creditar àqueles que se opõem às reformas um possível derramamento de sangue no País (Tribuna da Imprensa, 14/05/1964).

A promoção do desenvolvimento nacional não agradou as próprias elites econômicas nacionais, especialmente as agrárias -para quem a alteração do estatuto da terra, via reforma agrária, implica “derramamento de sangue”. A resistência das frações de classe ligadas ao capital mercantil, agrário ou financeiro, contra as reformas econômicas, ganhou força com a ofensiva anticomunista americana –exacerbada com a Revolução Cubana (1959). Força material e ideológica, posteriormente confirmada pelo embaixador dos Estados Unidos no Brasil em 1964, Lincoln Gordon:

A minha estimativa é de que foram US$ 5 milhões (a preços de 2002, US$ 30 milhões, ou cerca de R$ 100 milhões) (...) Era uma ação da CIA. Um dos objetivos seria suprir literatura sobre a economia liberal, para contestar a enorme quantidade de literatura de esquerda. O governo cubano — e talvez o russo — estava fornecendo dinheiro para publicação de material no Brasil (...) Mas, especialmente depois do comício de Goulart na Central do Brasil, houve vários contatos, inclusive entre o adido militar da embaixada, Vernon Walters, e o marechal Castelo Branco, em que se demonstrou nosso interesse numa oposição a Goulart (...) A minha idéia foi que, na eventualidade de uma tentativa de derrubar João Goulart, um grupo militar poderia ser contestado por outro. Nesse caso, os Estados Unidos teriam uma preferência pelo lado anti-João Goulart. Naquele momento achei que a possibilidade de uma frota armada, com a bandeira americana visível, teria um resultado desencorajador para o lado pró-Goulart e encorajador para o anti-Goulart (O Globo: 25/11/2002).

Com essas revelações, em entrevista de lançamento de seu livro A segunda chance do Brasil, Gordon procurava justificar que a “CIA jogou fora milhões de

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dólares” e a influência americana não foi decisiva para o golpe11. Entretanto, a tônica anticomunista prevaleceu nas matérias comemorativas do golpe contra Goulart:

Agora que o País se livrou do fantasma da comunização podemos repetir o que vinhamos dizendo exaustivamente: todo comunista é covarde e mau caráter. Os episódios de agora vieram provar que estávamos cobertos de razão (Tribuna da Imprensa, 02/04/1964).

Mais elegantemente, mas com a mesma clareza: A perspectiva mais alarmante da situação brasileira funda-se num dado concreto que não é possível obscurecer. É o fato de que jamais em nossa História, e até o presente, as esquerdas radicais - nomeadamente o comunismo e suas clássicas correntes auxiliares - estiveram tão à vontade, desfrutaram tanto prestígio e aproximaram-se tanto do êxito quanto no momento atual (Diário de Notícias, 01/04/1964).

Consumava-se o golpe contra o plano de desenvolvimento capitalista do governo Goulart. A vitória da “revolução” conservadora alterou o equilíbrio de forças -estabelecido pelo Estado e pela burguesia ligada ao capital estrangeiro. A reformulação do conceito de soberania alcançou as fronteiras ideológicas, e a defesa de intervenção em países da América Latina, sob o perigo comunista, redefiniu as diretrizes econômicas e o papel político do Brasil, no contexto internacional (Bandeira, 1993: 212).

Plano de “segurança e desenvolvimento” Também em nome da promoção de uma “sociedade capitalista

desenvolvida”, a estratégia de crescimento do regime militar (“milagre brasileiro”), promovido pelo I Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) e financiado pelo capital externo, esgotou-se com a estagnação da economia nos anos 80. O saldo foi a restrição salarial, o alto endividamento e o fortalecimento do poder do sistema financeiro internacional e do capital bancário paulista.

Após o governo de “transição para a democracia” de Sarney, o desenvolvimento do capitalismo brasileiro dependeria da “abertura econômica”, de acordo com a “nova ordem” internacional.

Plano de desenvolvimento neoliberal Pela mesma razão que abriu os portos ao liberalismo inglês (séc. XIX), o

Brasil deveria abrir ao neoliberalismo norte-americano: para eliminar restrições ao fluxo de capitais internacionais. Collor iniciou a abertura do “Brasil Novo” com reforma e confisco monetário; criação de novos tributos; fim da reserva do mercado de informática; e o Plano Nacional de Desestatização (PND).

A execução do projeto de abertura econômica definiu os governos de Fernando H. Cardoso (1995-2002). Para promover as reformas necessárias à privatização, que dariam “sustentação ao crescimento econômico”, mudanças

11 Contrariamente, pesquisas de Martha Huggins (1998) comprovaram inúmeras ações americanas em favor do golpe e da manutenção do regime militar, após 1964.

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institucionais permitiram “à iniciativa assumir plenamente seu papel de eixo dinâmico da economia” (Cardoso, 1995).

Claramente definidas, as diretrizes econômicas foram cumpridas. Mas o resultado não foi a integração do país ao universo competitivo internacional, a modernização da indústria, ou a promoção do “desenvolvimento sustentável”. Esgotadas as reservas monetárias que garantiram a paridade entre o dólar e o real, a maior prioridade do país tornou-se a corrida contra a subida do dólar. Com estagnação econômica, colapso em setores infra-estruturais e novos endividamentos para pagar juros de empréstimos anteriores, a economia manteve-se dependente da entrada de capitais internacionais.

Um plano de desenvolvimento sustentável? Para reverter o modelo anterior “que, em vez de gerar crescimento,

produziu estagnação, desemprego e fome” o governo de Luiz Inácio da Silva (01/01/2003) apresentou-se com a tarefa de “promover as mudanças necessárias” para um “desenvolvimento sustentável. Mas, “mudar tendo consciência de que a mudança é um processo gradativo e continuado, não um simples ato de vontade, não um arroubo voluntarista”.

A nova agenda preserva antigos discursos. A reforma agrária só em terras ociosas, como no governo anterior, mas com “vigoroso apoio à pecuária e à agricultura empresarial, à agroindústria e ao agronegócio”; a nova administração manterá as metas estabelecidas com o FMI (Silva: 01/01/2003); e a recente conclusão da Reforma da Previdência também não deixa dúvidas quanto às medidas “necessárias” para a redução dos gastos públicos.

Ao mesmo tempo, o ministro da Casa Civil, José Dirceu (01/01/2003) promete “uma verdadeira revolução social” com o programa Fome Zero: “uma causa que pode e deve ser de todos, sem distinção de classe, partido, ideologia”. Paradoxalmente, para o ministro da Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral (07/05/2003), “estamos fazendo as reformas que o governo Cardoso anunciou para 1995. Somos um governo de esquerdas, com um compromisso democrático e de luta contra a exclusão social”. Mas Lula nega que foi de esquerda (só foi “torneiro-mecânico”) e reafirma sua “obsessão” em criar empregos, para garantir a “redistribuição de renda”.

O ministro da Fazenda, Antonio Palocci (01/01/2003), esclarece possíveis equívocos quanto ao discurso, ou às semelhanças com o governo anterior: serão promovidas regras estáveis, que garantam “a estabilidade necessária à expansão do investimento privado e à retomada do crescimento econômico”. Porém,

nossa administração se diferencia da que nos antecedeu no projeto de país, expressa tanto na nossa agenda de reformas quanto na forma em que as encaminharemos, o pacto social. A diferença entre nossos governos, entretanto, não pode ofuscar a seriedade e a moralidade com que o Ministro Malan geriu a coisa pública condicionado pela agenda do seu governo. E essa herança teremos a satisfação de preservar e entregá-la ainda mais consolidada no futuro.

As diferenças serão, portanto, de “agenda” e “forma” de encaminhamento. As reformas (previdência, tributária, política, trabalhista) são as mesmas

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inauguradas pelo governo de Fernando H. Cardoso, também graças a um “pacto social” (Cardoso, 1995).

Com atualização do projeto de “reformas” econômicas, discursos desenvolvimentistas, promessas de bem-estar e pleno emprego, elabora-se mais um plano de governo, claramente preocupado em restabelecer o “crescimento econômico” e a “justiça social”: um governo para todos.

A questão é como conciliar interesses de classes antagônicas. Considerações gerais Se a intenção fosse eliminar os antagonismos de classes, os inúmeros

planos de desenvolvimento teriam sido ineficazes. Apenas reproduziram as desigualdades sociais, pois sua pretensão jamais foi eliminar, mas “administrar”, os conflitos. Foram eficientes, portanto, para gerar expectativas, renovar estratégias políticas e redirecionar a economia, de acordo com as necessidades capitalistas.

Por isso, a estratégia do “desenvolvimento”, adequadamente utilizada em nome do bem-estar social, renova-se continuamente, a cada crise do capitalismo. Ao final da 2a Guerra, por exemplo, os EUA assumiram o negócio de promover o desenvolvimento industrial mundial. A “nova ordem internacional”, estabelecida na década de 1950 pela ONU, definia o crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB) como promotor do desenvolvimento. Pressuposto não confirmado, nas duas décadas seguintes, pois mesmo elevando o valor monetário produzido (soma dos bens e serviços) não se reduzia a pobreza. Concluiu-se que o crescimento em termos monetários não assegurara o desenvolvimento qualitativo, nos países subdesenvolvidos, porque lhe faltara objetivação social. Desenvolvimento econômico significava, então, desenvolvimento humano.

O novo indicador, Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), deveria considerar três dimensões básicas: longevidade, educação e renda. Mas, os sucessivos cálculos sobre o “progresso humano” também não confirmaram a eficácia de seu método: os índices não estão necessariamente associados e sua variação não é uniforme.

No Brasil, “país que mais cresce no ranking de desenvolvimento humano”, “a desigualdade econômica impede uma melhora acentuada da qualidade de vida” (PNUD, 2003). Mas, como o novo governo “mostrou o compromisso de manter a disciplina das contas fiscais”, deverá recuperar a credibilidade e a reputação nos mercados financeiros. Com maior margem de manobra na política cambial, deverá adotar maior liberdade na condução da política monetária, com o aprofundamento das reformas fiscais de longo prazo. As exportações registrarão um “crescimento notável” (15%) e o excedente comercial subirá dos US$ 13 bilhões em 2002 para US$ 22 bilhões em 2003 (CEPAL, 2003). Mas, “neste mundo de tamanha abundância, é um enorme paradoxo que nesta região, 55 milhões de pessoas sofram de fome”, afirmou Zoraida Mesa, do Programa de Alimentos da ONU (Reuters: 25/08/2003).

No Brasil, o paradoxo é claramente observado: 10% dos lares mais ricos

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detêm 70 vezes a renda dos 10% mais pobres. Na região Norte a pobreza aumentou 8%, em uma década, e “a culpada não é a escassez de recursos, mas uma persistente e alta desigualdade” (PNUD: 2003).

Parece que parte da questão está respondida. É que o pagamento da dívida pública do Terceiro Mundo despende, por ano, aproximadamente US$ 250 bilhões. Da América Latina, entre 1996 e 2000, foram transferidos US$ 251 bilhões para o exterior, como pagamento de juros e remessa de lucros (Munhoz, 2003: 42). Trata-se de um cálculo simples, mas a lógica financeira não inclui a “transferência de capital” nos seus balanços do IDH.

A cínica persistência em calcular o “progresso humano” como sinônimo de desenvolvimento, a partir de uma política de alienação de recursos econômicos, evidencia o subdesenvolvimento como condição essencial à reprodução do capitalismo, interna ou externamente, em seus diversos momentos: “o ponto de partida do subdesenvolvimento são os aumentos de produtividade do trabalho engendrados pela simples realocação de recursos visando obter vantagens comparativas estáticas no comércio internacional” (Furtado, 1974: 78).

A partir dos centros de decisões externos, as orientações econômicas criam laços de dependência local, capazes de redirecionar as forças produtivas e atender seus interesses comuns. Por isso, a transferência da “obrigação” do desenvolvimento para as bases locais, satisfaz não somente a lógica da rentabilidade mas, também, a do controle social.

E quando o círculo de realização do capital se fecha, com crescente pauperização mundial, o economista prêmio Nobel de Economia em 2001 e ex-vice presidente do Banco Mundial, Joseph Stiglitz, dá a receita: “é preciso descobrir nichos na economia global para competir”; “o que leva ao crescimento é um melhor equilíbrio entre o papel do governo e dos mercados”; “o crescimento do número de empregos é a política social mais importante de todas”(Valor Econômico: 29/08/2003). Certamente a mais importante, pois permite a recomposição das taxas de acumulação, concentração e centralização do capital –e a “exclusão” da maioria da população.

Mas, os exemplos históricos não bastaram. O atual relator da Comissão Mista de Orçamento do Congresso, deputado Paulo Bernardo, anunciou o restabelecimento do IDH como indicador de prioridade para as ações sociais, e a real redução de desigualdades e injustiças sociais (Folha de S. Paulo: 19/06/2003).

Com a sinalização de que a economia brasileira permanecerá subordinada ao modo de produção capitalista, no qual prevalecem as diretrizes neoliberais, qualquer taxa de crescimento apenas se converterá ao pólo centralizador do capital financeiro. Não garantirá desenvolvimento econômico, social ou humano, mas poderá assegurar a administração dos conflitos, em nome da autonomia econômica e da soberania nacional.

Mas não indefinidamente, pois a repressão também estimula o “motor da história” – que permanece funcionando, em ritmo bastante acelerado. Bibliografia: ALMEIDA, C. W. L. (2002). “Controle externo sobre o setor hidroviário”. Revista do Tribunal de Contas de União-TCU, v.33, n. 93.

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Reuters: 25/08/ 2003Tribuna da Imprensa: 02/04/1964; 14/05/1964 Valor Econômico: 29/08/2003

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A Mundialização Imperialista Marcos Del Roio*

Resumo: Um debate que tem sido travado hoje em dia e que tem implicações

políticas importantes trata da natureza da atual fase do desenvolvimento capitalista. Há idéias diferentes sobre se existe uma tendência unipolar ou multipolar na fase atual, se a concepção de imperialismo continua sendo explicativa ou se hoje se vive uma fase com características inéditas. Esse artigo defende a idéia de que a fase atual do capitalismo é uma fase que se aproxima da realização de um império universal, perspectiva existente antes mesmo do capitalismo, mas que a suas características fundamentais se expressam em um aprofundamento do imperialismo capitalista, particularmente a financeirização e a militarização. No entanto, são as próprias contradições imperialistas a conter a realização do império do mundo.

A natureza imperialista do Império do Mundo A compreensão do momento histórico mundial pelo qual passa a

humanidade, nesse início de século XXI, quando surgem fortes os indícios de uma crise que se difunde por todas dimensões da existência, colocando em risco a própria reprodução da espécie, exige, antes de tudo, a apreensão da sua particularidade. Mas a particularidade de um período sócio-histórico só pode ser efetivamente percebido quando inserido no contexto de um prolongado processo, no qual sejam localizados, pelo menos, alguns elementos explicativos das condições atuais.1

De fato, o inicio do novo milênio marca uma nova fase no empenho de construção e implantação do Império Universal do Ocidente.2 O espetacular ataque, carregado de simbolismo, perpetrado contra instalações militares do Estado americano e do capital financeiro, em setembro de 2001, ofereceu o motivo discursivo para que o Império desencadeasse uma ofensiva em diversas frentes, visando ampliar o controle militar sobre todo o planeta, privilegiando áreas

* Prof. de Ciências Políticas FFC-Unesp / Mariília 1 Uma tentativa nessa direção pode ser vista em Arrighi (1996). 2 Por certo, a acepção aqui usada de Império em nada se assemelha àquela de recente e pouco justificável sucesso desenvolvida por Hardt & Negri (2001). Nesse livro se exprime uma visão idílica do Império, no qual as instituições americanas encontrariam uma difusão tendencialmente universal, contando com a ONU e o direito internacional como emissários, fazendo o descentramento uma característica essencial dessa ordem de coisas, que seria uma superação do imperialismo capitalista visto e combatido por Lênin e Rosa Luxemburg.

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estratégicas para o controle de recursos e para o bloqueio de eventuais pólos de poder contrastantes. A brutal repressão ao movimento no-global em Gênova e as guerras de agressão e colonização desencadeadas pelos EUA, demonstram que a mundialização do capital ou a “globalização” representam, de fato, um aprofundamento do imperialismo capitalista e não a sua superação.

O Afeganistão – e a Ásia central – ganhou momentânea evidência, quando os EUA e alguns aliados se empenharam em controlar a gás, do qual é rica a região e montar uma base estratégica entre a China e o Irã. A evidencia deslocou-se em seguida para a agressão anglo-americana, seguida de ocupação do Iraque. O foco pode englobar novamente a questão palestina, tornada, mais que antes, uma questão regional de importância decisiva. Mas não pode haver dúvidas de que a chamada ‘guerra ao terrorismo’ somente mascara os fundamentos contraditórios do nosso tempo e que sustentam o domínio imperial da oligarquia financeira transnacional, cuja fração hegemônica encontra-se enraizada nos EUA.

Desde fins da década de 70 do século terminado, assistimos uma ofensiva do capital contra o mundo do trabalho, assim como um esforço de implantação de um Império Universal, nucleado no poder da oligarquia financeira transnacional e de suas instituições (Banco Mundial, FMI, OMC), mediado pelo poder político de alguns Estados, articulados no Grupo dos 7, mas muito particularmente pelos EUA. O objetivo é a mundialização do capital e a sua consolidação como único sujeito político livre. A principal ideologia que oferece guarida a esse intento é a da ‘globalização neoliberal’, vista como processo irrevogável de abertura de mercados, de flexibilização da proteção ao trabalho e privatização da esfera pública, mas cuja implicação é a nova colonização das zonas periféricas do almejado Império.3

Acoplada e desdobrada dessa ideologia estão as diversas concepções de ‘pós-modernismo’, que se opõem a qualquer intento de leitura orgânica do processo histórico e do capital como contradição social. Apelando para o niilismo epistemológico e para a ênfase nas identidades culturais particulares auto-suficientes, relativizam de tal modo o momento histórico que se torna impossível qualquer vislumbre de projeto social fora da ordem do Império. A ideologia do ‘fim da história’, resgatada e empobrecida, nos anos 90, por Francis Fukuyama, atualmente deu lugar a um presumido ‘choque de civilizações’, anunciado por Samuel Huntington, mais adequado ao momento de ofensiva militar e que dá margem a gafes diplomáticas, como o resgate da idéia de ‘cruzada’ pela gestão de Baby Bush na Casa Branca.

O processo de construção do Império do Mundo. Vivemos uma época que culmina a luta pela construção do Império do

Mundo; um projeto histórico surgido em torno do século XI, pela necessidade de estabilização da ordem social do feudalismo do Ocidente por iniciativa da Igreja de Roma, que se arrogava como poder nuclear. Contou com o amparo das cidades

3 Uma referência indispensável para se refletir criticamente sobre o processo de mundialização e financeirização do capital é Chesnais (1996).

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mercantis e da nobreza, que tinha interesse em expandir seu domínio, não só sobre os servos, mas também sobre territórios ocupados por outros povos e culturas, da qual a ideologia da “cruzada” foi a marca mais saliente.

Essa trajetória ganhou em dimensão e complexidade a partir da relativa autonomização da acumulação do capital mercantil e da formação dos Estados territoriais absolutistas, no século XVI, a partir dos antigos reinos feudais. O surgimento das Igrejas reformadas e a reorganização da Igreja de Roma, após longa crise, fizeram ainda persistir o cristianismo como ideologia imperial que justificava a conquista de territórios e gentes pela ‘guerra justa’, assim como a perseguição às mulheres.

Apenas lentamente, com o surgimento do capitalismo na Inglaterra, o liberalismo foi tomando lugar como ideologia imperial, mantido o cristianismo como forma de manutenção da passividade dos trabalhadores pobres e das mulheres no interior do Ocidente. A disseminação do capitalismo, as revoluções burguesas e a complementação de Estados nacional-liberais deram origem a um longo período de disputa entre os principais Estados pelo papel hegemônico dentro do contexto imperial do Ocidente, alternando-se a concorrência no mercado e o conflito armado, sempre em busca de uma impossível ‘paz perpétua’ sob a lógica do capital e do egoísmo proprietário.

Do século XI ao XVII, o Ocidente observou no islamismo, primeiro os califados e depois o império turco otomano, uma ameaça que pairava sobre sua própria vontade de domínio, que se tornou mais forte na medida em que foi se impondo a lógica da acumulação do capital. Dos argumentos teológicos se passou para argumentos racionais ‘científicos’ para justificar a conquista e a submissão de outros povos, particularmente os do Oriente, mas cujas vítimas principais foram os povos autócnes da América, esse novo Ocidente subalterno.

As revoluções burguesas e o liberalismo favoreceram a emancipação política no interior do Ocidente, convergindo com a demanda da própria lógica do capital. A contradição inerente à apropriação privada da riqueza socialmente produzida gerou a classe operária como ser potencialmente antagônico a ordem social e política do Império, configurado como uma rede de Estados nacionais. Mas, na passagem do século XIX ao XX, uma parte do movimento operário havia sido já incorporada aos Estados imperialistas, por meio da aquisição do estatuto da cidadania e de ganhos relativos dentro da ordem, inclusive com a expansão imperial sobre os povos não-ocidentais.4

A eclosão da guerra dos 30 anos do século XX, no interior do Ocidente, envolveu toda a rede de Estados imperialistas numa acirrada disputa pela condução do Império do Ocidente, tendo em vista o declínio relativo da Inglaterra e França. Com instrumentos econômicos e militares, políticos e diplomáticos esse conflito se prolongou até 1945, quando os EUA consolidam seu papel de força hegemônica.

4 Essa trajetória da construção do Império do Mundo pode ser seguida em Del Roio (1998).

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O custo dessa violenta contenda interimperialista foi alto, pois que possibilitou, a partir da Rússia, a ruptura revolucionária da rede imperial multipolar, que, mesmo isolada e não conseguindo difundir a revolução socialista para o núcleo do Ocidente, serviu de guarida para os movimentos de emancipação nacional e social que eclodiram por toda a periferia do Império e deu respaldo para o avanço do movimento operário no seio dos próprios países imperialistas ocidentais. E mais, embora tampouco tenha conseguido levar avante a transição socialista (por motivos extremamente complexos, que não cabem ser discutidos aqui), tendo-se cristalizado como uma forma de socialismo de Estado, a URSS conseguiu difundir sua forma social e política ao final da guerra dos 30 anos do século XX, fortalecendo o anteparo às lutas de emancipação dos povos do Oriente e da África. Nesse quadro, destacam-se, por um lado, o arco de países da Europa oriental que assumiram a forma econômico-política de socialismo estatal e as revoluções chinesa e vietnamita.

Uma situação de relativo equilíbrio estratégico, garantido pelo poder das armas nucleares, perdurou até o final dos anos 70, quando a fase expansiva da acumulação do capital baseada no padrão fordista entrou em crise e quando a cristalização do poder burocrático pseudo-socialista entrou em declínio, por não mais conseguir mascarar a defesa de interesses particularistas com a expansão econômica, que cessava de ocorrer, principalmente pela incapacidade na incorporação de produtividade ao trabalho.

Assim é que tendo amargado a derrota no Vietnã, no Iran e na Nicarágua, e vendo o avanço do movimento operário e popular em alguns paises da Europa ocidental, assim como a emergência de novos pólos de avanço capitalista (como o Brasil e a Índia) ficou patente a necessidade de se reorganizar o poder imperial a fim de abrir caminho para a ofensiva do capital na produção, por meio de uma revolução tecnológica e gerencial que apontasse para a superação do fordismo. O ataque contra o movimento operário, no decorrer dos anos 80, visou a retirada de direitos e o enfraquecimento máximo de suas instituições sócio-políticas, tais como o sindicato e o partido de massa.5

Ao mesmo tempo ocorria um desequilíbrio estratégico com o investimento massivo, por parte dos EUA, de recursos em novas armas de longo alcance e do projeto de defesa espacial. Esse movimento visou tanto a derrocada econômica da URSS como a ampliação da dependência da Europa em relação à força militar americana. Depois do fiasco da intervenção no Iran, os EUA limitaram-se a poucas ações na periferia imperial, mas trazendo sempre o acerbo caráter de terror de Estado em nome da “democracia” e dos “direitos humanos”. A invasão de Granada e Panamá, o bombardeio na Líbia, a tentativa de ocupação da Somália, foi sempre feita com a utilização de forças especiais de claro viés terrorista. Mas, em geral, a pressão econômica e diplomática mostrou-se suficiente para garantir os interesses imperiais, que jogava sua cartada mais alta na corrosão do combalido Império socialista oriental, conduzido pela URSS (ou pela Rússia, mais especificamente).

5 Podem ser consultados Antunes (1995) e Alves 1(999).

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Começando a pressão pela Polônia, o elo mais débil do império soviético, utilizando a resistência operária e a instituição da Igreja Católica, o ataque econômico (a aceleração da militarização da Europa) e ideológico (em defesa dos “direitos humanos”) do grande capital imperialista frutificou no final da década, levando ao colapso toda a rede de Estados que compunham a URSS e seu arco de alianças. A impossibilidade de se reagir ao ataque do capital com a retomada da democratização socialista, após décadas de submissão da classe operária pela burocracia pseudo-socialista, e a capitulação ideológica contida na tentativa de reversão para um capitalismo monopolista de Estado, empreendida por Gorbatchev, fez com que grande parte da camada dirigente se convertesse em burguesia privada, de clara estirpe criminosa e que se associou ao grande capital transnacional no processo de colonização do imenso mercado, agora aberto à rapina. A catástrofe social logo se fez presente, agravando drasticamente uma situação de penúria que se anunciava nos anos finais do regime socialista.6

O Império do Mundo ao alcance da vista A desintegração do império socialista oriental fez com que o milenar

projeto de um Império universal do Ocidente parecesse estar muito próximo de ser realizado. De um lado, a mundialização do capital continuou avançando, mas sempre com um número menor de empresas maiores. A financeirização do capital e a revolução técnico-científica também avançaram, assim como a colonização dos mercados periféricos, por meio das ‘privatizações’ das empresas públicas. A exploração social do trabalho aumentou sobremaneira, com a abolição progressiva de direitos sociais.

Por outro lado, a relação entre as regiões que compuseram a ‘tríade’dos anos 80 (EUA – Alemanha – Japão), se modificou. O Japão parece estar enfrentando um declínio relativo, afetando também os chamados ‘tigres asiáticos’. A Europa procurou acelerar seu processo de integração criando uma moeda única e fortalecendo as instituições burocráticas supranacionais às custas do esvaziamento das instituições liberal-democráticas nacionais, buscando ainda expandir-se para o Leste. A resistência da França à hegemonia da Alemanha e a ambigüidade da Grã-Bretanha, tem dificultado esse processo. A marca dos anos 90 foi mesmo o fortalecimento dos EUA como cabeça do Império, não só pelo seu crescimento econômico, em grande medida sustentado pela subtração da riqueza de vastas zonas do globo, mas pelo seu virtual monopólio e expansão da força militar, que recolocou os EUA na ponta da revolução técnico-científica.

Esse monopólio do uso e da delegação da violência legítima, reivindicado pelo EUA, foi posta em prática de maneira metódica na seqüência da desintegração da URSS, visando o controle de fontes de recursos naturais e de vias de circulação de mercadorias para a Europa. Assim, aproveitando-se de um movimento intempestivo do Iraque, visando ocupar o Kuwait, o EUA e seus aliados da OTAN desencadearam um ataque em larga escala, que terminou com o 6 A literatura sobre a crise da URSS e do chamado “socialismo real” é já bastante vasta e diversificada, mas vale citar aqui, à título de exemplo, Callinicos (1992) e Kagarlitsky (1993).

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estabelecimento de bases militares no Golfo Pérsico e de zonas de limitação da soberania iraquiana sobre seu próprio território. O Iraque foi submetido a um cerco econômico de efeito genocida, assim como continuou sendo homeopaticamente bombardeado ao longo dos anos. Com isso a aliança anglo-americana-israelense pode manter um controle militar sobre o petróleo da região, ainda que a sua ambição estratégica estivesse saciada.

Mais complexa, mas estreitamente conectada, foi a ação voltada à destruição e ocupação da Iugoslávia. Nesse caso Alemanha e EUA agiram juntos, mas com objetivos não exatamente coincidentes. Enquanto a Eslovênia e a Croácia foram atraídas para a esfera econômica do marco alemão, até com alguma facilidade, a Bósnia tornou-se um laboratório de experimentação de novas armas e campo de treino dos bombardeiros da OTAN. A imposição da aliança muçulmano-croata isolou os sérvios e anulou a possibilidade de uma aliança muçulmana mais ampla, que incluísse a Albânia. A manipulação do grupo armado chamado UCK, seriamente envolvido com o tráfico de drogas da Ásia central para a Europa, criou o motivo para a ocupação da Albânia e a ofensiva militar contra o que restava da Iugoslávia, redundando na ocupação do Kosovo (parte da Iugoslávia), na deposição do governo iugoslavo, que resistia ao poder imperial, e na interferência na Macedônia.

Dessa maneira, os recursos naturais da Ucrânia ficam sob vigilância mais estreita e o Iraque mais próximo. A própria Europa, já enfrentando uma crise social e econômica de proporções, vê sua soberania e suas decisões limitadas, caso já não bastasse os EUA preservarem o comando da OTAN e a série de bases militares no continente europeu. A tentativa de acelerar a construção da União Européia tem a finalidade de criar um contrapeso ao poder imperial dos EUA, sem contestar, no entanto, a própria essência do Império, que se manifesta no domínio universal do capital financeiro.7

No momento em que a crise do capital alcançou a casamata aparentemente inexpugnável dos EUA, depois de ter atingido os dois vértices inferiores da ‘tríade’ (Japão e Europa), e quando a resistência ao Império se manifesta com alguma força, ainda que em dimensões e formas diversas, setores da oligarquia transnacional percebem a necessidade de se estreitar as amarras do Império. A imposição de medidas econômico-políticas pelas instâncias do capital financeiro cumpre funções análogas às da força armada. A devastação social da Argentina, com a conivência da sua classe dirigente, visando o impedimento do Mercosul e o processo de imposição da ALCA, é apenas um exemplo. De fato, o esforço americano para a imposição da ALCA, com a sua clara perspectiva colonialista, pretende expressar modelarmente o padrão imperial de organização do domínio do mundo. Assim é que o enfrentamento da contestação pela repressão se articula com a possível retomada da acumulação pelo investimento na industria bélica e pela colonização dos mercados.

Nesse quadro, o rearmamento de Taiwan, voltado contra os interesses da China, a provocação contra os palestinos (que desencadeou a atual intifada) e o

7 Sobre a destruição da Iugoslávia pode ser visto Del Roio & Moraes (1999).

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extermínio das lideranças da resistência popular pela máquina sionista de opressão, o ‘plano Colômbia’ (que visa à ocupação de um ponto estratégico de controle da passagem entre dois oceanos, de entrada na Amazônia brasileira e nos Andes e ao qual se somaria a criação de instalações militares no Maranhão - norte do Brasil, no Equador e na Terra do Fogo), a repressão contra o movimento ‘antiglobal’em Genova, devem ser vistos em conjunto, como peças desse projeto de consolidação imperial. Esse projeto tem o objetivo da unipolarização do mundo e o fim de qualquer resistência à ação do capital, para o que a desterritorialização do Estado americano e de suas forças armadas apareçam também como necessidade sugerida pela mundialização do capital.

O Império do Mundo e a guerra infinita Dentro desse contexto, os atentados perpetrados contra o Pentágono e

contra o WTC, nos EUA, e que foram uma declaração de guerra por parte de um inimigo desterritorializado e sem identificação, serviu perfeitamente para acelerar esse plano. O aparente contra-ataque, com a agressão ao Afeganistão e ao Iraque, era na verdade uma ação já em andamento. A necessidade de se ocupar o Afeganistão e a Ásia central guarda o objetivo de fechar o círculo em torno das jazidas de petróleo e gás natural, além de complementar o cerco da China. A pressão exercida contra a Coréia do Norte visa criar dificuldades à uma possível unificação da península coreana, assim como gerar uma nova zona de tensão próxima a fronteira chinesa.

Ao mesmo tempo, os EUA aprofundam as suas possibilidades no escopo de impedir uma possível ação autônoma de uma Europa unificada. Se em um primeiro momento houve a aproximação entre a América e Europa em nome do combate ao ‘terror’, atraindo a Rússia e mesmo a China, cada qual com seus motivos particulares, logo os conflitos de interesse voltaram a prevalecer, pois o projeto anglo-americano de ocupar o Iraque não poderia obter o mesmo consenso. A oposição da China e da Rússia não seria uma surpresa, mas o objetivo de submeter a Europa, ou então de dividi-la, foi alcançado. A não ser pela resistência franco-alemã, a maioria dos Estados europeus mais frágeis preferiu ficar com os EUA. Assim, a própria contenda surda aberta na guerra balcânica, entre Alemanha e EUA, parece ter se resolvido em favor dos EUA, no momento em que os países da Europa oriental se postaram firmemente ao lado dos anglo-americanos. Certo que a contraparte foi a reticência da Turquia, expressa inclusive em forte movimento popular de oposição a guerra.

O fato de haver uma milenar tradição de desconfiança e repulsa em relação aos povos que professam o islamismo, chave negativa mesmo da criação da identidade do Ocidente, facilita a ação agressiva do Império. O declínio do império turco já havia aberto as portas para o avanço colonialista do Ocidente sobre todo o Oriente islâmico (do mesmo modo que também a Índia e a China foram vitimadas pelo colonialismo), aprofundando sua regressão econômica e cultural.

A fundação de Israel agravou as dificuldades que o mundo islâmico, em geral, teve para efetivar a construção de Estados nacionais nos quais florescesse

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uma cultura laica e a tolerância própria da religião islâmica. A impotência para vencer o atraso e as dificuldades na incorporação da ciência e da técnica preservou classes dirigentes francamente reacionárias. Essa situação criou as condições para que a resistência das massas à miséria e a humilhação se voltasse para formas ‘fundamentalistas’ e ‘integristas’ de islamismo, visto como o caminho de retorno a uma época de ouro liquidada pela opressão do Império do Ocidente. A fraqueza militar e o desespero estimularam a única forma de luta que lhes pareceu possível: o sacrifício e o terror.8

Os efeitos colaterais da agressão imperialista são os esperados e indicam o agravamento das contradições, desde uma retração no comércio mundial, passando por uma queda vertiginosa no turismo internacional, até um deslocamento na rota do tráfico de drogas. O mais significativo, no entanto, é a crescente limitação dos direitos civis e democráticos nas zonas nas quais as liberdades políticas pareciam consolidadas e a possível desestabilização de alguns regimes políticos próximos aos interesses imperiais, o Paquistão e a Arábia Saudita, entre esses. Qualquer que seja o resultado de longo prazo da ocupação do Afeganistão e do Iraque, uma guerra de guerrilha encontrará condições apropriadas para se desenvolver, assim como a resistência palestina também tende a crescer, sendo ilusórias as tentativas de uma saída negociada na qual o povo palestino permaneça submetido aos ditames do Estado sionista. Mais prováveis são agressões subseqüentes, seja contra a Síria a Coréia do Norte ou qualquer outra pequena nação.

A impossível consolidação imperialista do Império do Mundo Os fundamentos do Império são oferecidos pela acumulação do capital,

mas esse, ainda que tendendo a mundialização, não pode prescindir da mediação do Estado e tampouco é capaz de gerar um Estado e um governo mundial, dada a sua intrínseca contradição o que o leva à centralização crescente e a incorporar produtividade em detrimento do trabalho vivo, gestando uma massa sempre maior de proletários. Daí a necessidade que tem o capital de fazer uso de alguns Estados na defesa de seus interesses gerais, entre os quais ganha claro destaque os EUA.

Mas o predomínio da indústria bélica não deixará de enfrentar resistências, assim como a Europa tenderá a valorizar sua submissão aos EUA. A China, embora esteja integrada no circuito mundial do capital preserva sua soberania e atua para debilitar o poder imperial global. A recente aproximação entre os EUA, a Rússia, a Índia e a China, em nome do combate ao terror, é fragilíssima e segue cálculos políticos muito diferentes. Na verdade, o terror é um dos cruéis subprodutos do colonialismo e que só poderá ser extirpado no processo de luta antiimperialista, já que para o Império essa é uma batalha impossível de ser vencida, até mesmo porque o veneno está inoculado em suas próprias veias, fazendo a ação terrorista parte da sua essência agressiva (como tão bem mostram EUA e Israel).

8 À propósito deve ser consultado a obra de Ali (2002).

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A forma política imperial exige a existência de amplas zonas de não-Estado, para que floresçam negócios fundamentais para a acumulação do capital, como o tráfico de drogas, de armas, de detritos industriais e de escravos (as). Exemplos são vastas regiões da África, partes da América andina e a Ásia central. O Afeganistão, o Paquistão, o Tadjikistão e o Usbekistão são Estados com fronteiras fluídas e povoados por tribos que trazem consigo os sedimentos de antiqüíssimas formas sociais orientais, de colonialismos e de intentos de alcançar a modernidade. O mesmo parece ocorrer no Iraque e no futuro do conjunto da Arábia, situação ideal para um protetorado anglo-americano-sionista.

Assim é que a guerra imperialista na Ásia central e no Oriente Médio se entrecruza com conflitos tribais e com interesses extremamente diversificados, que perpassam o artificialismo das fronteiras e que realizam alianças com interesses externos que procuram tecer redes de controle regional dentro da geopolítica do Império. A ‘estabilização’ imperial nessas regiões será muito difícil, uma luta de guerrilha de inspiração diversificada terá continuidade e o ‘terror’, até por ser extraterritorial, migrará de um a outro lugar.

A agressão anglo-americana contra o Iraque, ao mais completo arrepio do frágil direito internacional, causando danos insanáveis a uma já decrépita ONU e fazendo da própria OTAN um artefato que resistiu ao tempo, teve o objetivo estratégico de causar danos sérios ao projeto de União Européia, postando uma cunha a mais nas cercanias da China, da Rússia e mesmo do Irã. Esse objetivo geopolítico se complementou com o acesso aos recursos naturais do Iraque, para o uso da América e também de Israel. O conjunto das motivações anglo-americanas na torpe agressão ao povo iraquiano está todo voltado para encontrar meios que superem a longa crise do capital e que estabilize o império sob a forma política de uma miríade de “democracias coloniais”. A “guerra infinita” continuará a fazer vítimas, mas exacerbará a luta de resistência contra o domínio imperial do Ocidente liberal, cujo núcleo encontra-se na aliança anglo-americana.

Mais que as contradições no seio do poder imperial, que assiste o embate entre seus muitos tentáculos, incluindo as suas degenerações, ganha força a resistência dos povos e de uma nova classe operária internacional que vem se forjando, descobrindo antigas e novas formas de luta contra o capital. Uma classe operária que terá que conviver com a diversidade humana da qual é a mais rica expressão. Hoje não se encontra mais espaço para uma classe operária ‘branca’ euro-ocidental se associar ao grande capital na exploração do mundo. Os embates e as alianças mais visíveis da luta antiimperialista de hoje estão indicadas nos movimentos sociais que se articulam em torno do Fórum Social Mundial e das gigantescas manifestações pela paz, que ocorreram em todo o planeta.

A classe operária que se forja como classe em oposição ao Império deverá ser um encontro de povos e de experiências para mais facilmente articular as formas de luta locais e cotidianas com as internacionalistas, sem deixar de lado ainda a necessária mediação do poder político estatal para a desconstrução do Império. No momento em que alcança seu apogeu, o antigo projeto do imperium mundi assiste a emergência lenta, mas inexorável, do seu antípoda fatal: o proletariado mundial, que está tanto na periferia quanto na proximidade do poder

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imperial. Mas essa é uma luta árdua que exige um entendimento teórico novo e que supere os vícios e clausuras do comunismo do século XX e possibilite a expressão organizada do novo sujeito político, cujo fundamento não pode ser outro, senão o trabalho humano em processo de auto-organização e emancipação. Bibliografia: ALI, T. (2002). Confronto de fundamentalismos. São Paulo: Record. ALVES, G. (1999). O novo (e precário) mundo do trabalho. São Paulo: Boitempo. ANTUNES, R. (1995). Adeus ao trabalho? São Paulo: Cortez. ARRIGHI, G. (1996). O longo século XX. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Unesp. CALLINICOS, A. (1992). A vingança da História: o marxismo e as revoluções do Leste europeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. CHESNAIS, F. (1996). A mundialização do capital. São Paulo: Xamã. DEL ROIO, M. (1998). O império universal e seus antípodas: a ocidentalização do mundo. São Paulo: Ícone. DEL ROIO, M & MORAES, J. Q. (org.). (1999). “Dossiê Iugoslávia”. Novos Rumos. São Paulo: IAP / IPSO, ano 14, n. 31. HARDT, M. & NEGRI, A. (2001). Império. São Paulo: Record. KAGARLITSKY, B. (1993). A desintegração do monolito. São Paulo: Unesp.

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As guerras de libertação nacional e o processo de expansão mundial do capital Marcelo Buzetto∗

Resumo: O objetivo deste artigo é fazer uma reflexão sobre o papel das guerras

de libertação nacional durante o processo de desenvolvimento do capitalismo, bem como compreender melhor, através de alguns autores clássicos do marxismo e da arte da guerra, a atuação dos EUA em duas das mais importantes guerras do mundo contemporâneo, a do Vietnã, no século XX, e a do Iraque, neste início do século XXI.

A Questão Nacional em Marx e Engels No Manifesto Comunista, Marx e Engels deixam claro que não é possível

falar de nação sem falar de luta de classes, pois a nação é o espaço concreto onde as contradições do capitalismo se manifestam de maneira mais evidente, onde acontecem os embates entre as forças políticas e sociais que defendem os interesses das classes dominantes e das classes dominadas. Daí a afirmação de que “a exploração de uma nação por outra” só será abolida com o fim da “exploração de um indivíduo por outro”, ou seja, quando o proletariado “conquistar a dominação política, elevar-se a condição de classe dirigente nacional” (Marx e Engels, 1989a: 84 e 85). Portanto, é claramente possível identificar nos autores citados uma análise da questão nacional intimamente ligada à luta de classes entre burguesia e proletariado. Essa análise, desenvolvida entre os anos quarenta e sessenta do século XIX, está muito presente nos textos desses autores sobre a China e a Irlanda, seja nos artigos da Nova Gazeta Renana, um jornal de debates sobres questões políticas e econômicas, ou nos jornais norte-americanos New York Tribune e New York Daily Tribune.

Em relação à China, podemos identificar uma certa convicção, principalmente da parte de Marx, que a crise que assolava o país poderia criar uma situação propícia para uma revolução popular e anticolonialista. Com a intervenção militar inglesa e norte-americana sobre a China, Marx percebe que as forças colonialistas contribuíram para colocar a China em contato com o mundo, rompendo um isolamento que mantinha como algo intocável as estruturas econômicas e sociais da “velha China”. Ele afirma que “graças à Inglaterra, a dissolução da velha China é tão certa como a de uma múmia cuidadosamente conservada num sarcófago hermeticamente fechado e que se expõe ao ar. Agora que a Inglaterra desencadeou a revolução na China, temos de perguntar-nos qual a ∗ Membro do NEILS, doutorando pela PUC/SP, professor na Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas (FAECO) do Centro Universitário Fundação Santo André.

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reação que a revolução vai levantar nesse país, e, daqui a algum tempo, na Inglaterra, e, daí, na Europa” (Marx, 1974: 18).

Como o centro das preocupações de Marx e Engels era a Inglaterra, e a China tornou-se, no século XIX, um país vinculado e subordinado aos interesses do capitalismo inglês, qualquer alteração na economia e na sociedade chinesas afetaria sem dúvida a burguesia britânica. Reafirmando a idéia de que a Inglaterra reunia todas as condições para que ocorresse uma revolução social, também Engels vê na China uma situação que pode ajudar a acender o estopim da revolução socialista na Inglaterra, e por isso defende e estimula a população chinesa a lutar contra as atrocidades cometidas pelas tropas inglesas.

É possível perceber que para os autores em questão, uma guerra de libertação nacional nas colônias poderia contribuir para o fortalecimento das lutas proletárias nas metrópoles do capital. Como era um estudioso da questão militar, Engels defende e legitima a tática de guerra de guerrilhas utilizada na China durante a revolta dos Taiping (1851-1864), que lutaram ao mesmo tempo contra a dominação feudal, contra a dinastia Tsing e contra a invasão dos ingleses. Ao comentar sobre esta guerra, pergunta: “Que pode um exército contra um povo que recorre a tais formas de luta? Por onde, e até que ponto, poderá avançar em território inimigo, e como manter-se?” (Engels, 1974:40).

Engels ainda reconhece que se trata de “uma guerra popular pela sobrevivência da nação chinesa (...) E, numa guerra popular, os meios empregues pela nação revoltada não podem ser medidos segundo os critérios correntes de uma guerra normal, nem segundo qualquer outra guerra abstrata, mas segundo o nível de civilização da nação em revolta” (Engels, 1974:40 e 41).

Tais afirmações de Engels podem ser utilizadas para o entendimento do atual conflito no Iraque, onde as forças da resistência iraquiana, diante da superioridade militar do inimigo, evitam o confronto direto com as tropas do exército de ocupação, e se utilizam cada vez mais do método da guerra de guerrilhas para enfrentar os Estados Unidos e seus aliados.

As afirmações dos fundadores do marxismo sobre a Irlanda são ainda muito mais contundentes do que suas análises sobre a China, por vários motivos, entre eles a proximidade geográfica e cultural entre os ingleses e os irlandeses, a constante emigração de trabalhadores da Irlanda para a Inglaterra, etc. Nas cartas e artigos sobre a Irlanda, aparecem novas opiniões sobre a questão nacional e, se nos escritos anteriores a luta entre burguesia e proletariado dentro do território inglês aparecia como sendo o fator fundamental da revolução social neste país, nos textos sobre a Irlanda ganham peso e importância na análise marxiana/engelsiana os acontecimentos externos, as lutas nacionais nas colônias. Nesse sentido, para Marx, a propriedade da terra na Irlanda tem um significado muito importante para a manutenção do poder econômico e político da burguesia inglesa, portanto, se for alterado o regime de propriedade da terra na Irlanda, através de uma revolução que tenha como princípio a libertação nacional e a expropriação das terras dos ingleses, isso afetará imediatamente a dominação burguesa na metrópole, pois como afirma o próprio Marx, “o sistema de propriedade da terra na Irlanda só se mantém por causa do exército inglês” (Marx,

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1989b:116). Percebendo o significado estratégico da questão irlandesa na luta do proletariado europeu, e concluindo que “Toda nação que oprime outra nação está a forjar as suas próprias cadeias” (Marx, 1989b:117 e 118), Marx e Engels se esforçam para aprovar na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) uma firme resolução de apoio à luta do povo irlandês pela sua independência, pois só assim poderia se apressar o processo de revolução social na Inglaterra. Para atingir este objetivo, “tem que ser desferido um grande golpe na Irlanda (...) é condição prévia para a emancipação da classe operária britânica transformar a atual união forçada, isto é, escravatura da Irlanda, numa confederação igual e livre, se possível, ou em separação completa, se necessário” (Marx, 1989b:117e118).

Engels, após realizar uma viagem pela Irlanda, em 1856, descreve, numa carta para Marx, a situação do país. Diz ele,

a Irlanda pode ser considerada a primeira colônia inglesa e aquela que, pela sua proximidade, ainda é governada exatamente à velha maneira, podendo desde logo notar-se aqui que a chamada liberdade dos cidadãos ingleses se baseia na opressão das colônias. Aldeias foram devastadas (...) Entre 1100 e 1850 o país foi completamente arruinado pelas guerras de conquista inglesas (...) os irlandeses já não se sentem em casa dentro do seu país (Engels, 1989b: 187-188).

Se olharmos para a Guerra da Palestina, na atualidade, poderemos encontrar algumas semelhanças com a descrição de Engels sobre o sofrimento do povo irlandês diante da ocupação militar britânica. Também os palestinos de hoje não “se sentem em casa dentro de seu país”, e a liberdade dos cidadãos israelenses também se baseia na opressão do Estado de Israel sobre a população palestina.

A guerra como um instrumento da acumulação de capital A guerra sempre fez parte da política expansionista dos países

imperialistas, pois o controle dos recursos naturais e de um determinado território sempre teve um papel estratégico na luta de classes e na luta entre as nações opressoras e as nações oprimidas.

Desde o final do século XIX, o processo de desenvolvimento e expansão mundial do capital e do capitalismo fez com que a guerra se transformasse numa das principais formas de acumulação de capital para a classe dominante das potências capitalistas centrais, principalmente para a classe dominante da potência hegemônica do momento.

Além disso, as potências capitalistas da época precisavam de novos mercados consumidores para seus produtos industrializados. A África, a Ásia e a América Latina serão territórios disputados através de guerras de conquista, guerras civis ou golpes militares com a participação direta ou indireta do capital e dos exércitos imperialistas.

Preocupados em compreender as desigualdades do desenvolvimento mundial do capitalismo, alguns autores marxistas, como Rosa Luxemburg, Nicolai Bukhárin e Vladimir Lênin – vale lembrar que não eram os únicos - procuraram dar mais consistência à explicação sobre a fase imperialista do capitalismo. Os teóricos do imperialismo também se esforçavam para destacar o papel do militarismo e da guerra como formas de acelerar o processo de acumulação de

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capital da classe dominante dos países centrais. Um exemplo disto são os textos de Rosa Luxemburg, onde a mesma afirma que o militarismo

desempenhou papel decisivo na conquista das colônias modernas, na destruição das comunidades sociais das sociedades primitivas e na apropriação de seus meios de produção, na imposição violenta do comércio aos países cuja estrutura social constituía um obstáculo à economia mercantil, na proletarização forçada dos nativos e na instituição do trabalho assalariado nas colônias, na formação e extensão de áreas de influência do capital europeu (europeu em regiões não-européias), na imposição de concessões de ferrovias a países atrasados, na execução das dívidas resultantes de empréstimos internacionais do capital europeu e finalmente como instrumento da concorrência entre os países capitalistas visando a conquista de culturas não-capitalistas (Luxemburg, 1985: 311).

Será possível negar que o militarismo tem realmente um papel decisivo no processo de expansão mundial do capitalismo? Se observarmos o século XX, com certeza diremos não, pois o militarismo e a guerra se fizeram presentes durante todo o século. São vários os exemplos: Cuba, Nicarágua, Panamá, Granada, Haiti, intervenções e golpes patrocinados pelo governo dos EUA, ingleses e franceses disputando o Oriente Médio, europeus partilhando a África, franceses na Indochina e na Argélia, Ingleses na China e na Índia, norte-americanos na Coréia e no Vietnã, guerras nos Balcãs, duas Guerras Mundiais, criação do Estado de Israel e Guerra na Palestina, guerra no Golfo Pérsico, etc. São todos exemplos concretos de integração de regiões e países à lógica do mercado mundial capitalista e das grandes potências imperialistas.

Em A economia mundial e o imperialismo, também N. Bukharin analisa o papel das guerras no processo que ele qualifica de “internacionalização do capital”. Afirma que “a guerra é um meio de reprodução de certas relações de produção” (Bukharin,1988: 105), e “a guerra de conquista é um meio de reprodução ampliada dessas relações” (Bukharin, 1988: 105).

Outro autor que ficou bastante conhecido por escrever sobre o imperialismo foi Vladimir I. Lênin. Em seu livro Imperialismo, fase superior do capitalismo, ele destaca as principais características desta fase do capitalismo: 1. a concentração e centralização do capital, gerando com isso os monopólios e oligopólios; 2. fusão entre o capital bancário e o capital industrial, resultando no surgimento do capital financeiro e de uma oligarquia financeira; 3. além da exportação de mercadorias, ganha importância a exportação de capitais; 4. formação de uniões internacionais monopolistas de capitalistas que dividem o mercado mundial entre si; 5. partilha territorial do planeta entre as maiores potências capitalistas (Lênin, 1987: 88). Portanto, de acordo com Lênin, o imperialismo é o capitalismo chegando a uma fase de desenvolvimento onde se afirma a dominação dos monopólios e do capital financeiro, onde a exportação dos capitais adquiriu uma importância de primeiro plano, onde começou a partilha do mundo entre os trusts internacionais e onde se pôs termo à partilha de todo o território do globo entre as maiores potências capitalistas (Lênin, 1987: 88).

Não pretendemos desconsiderar as inúmeras transformações que ocorreram no mundo desde o final do século XIX, mas também não podemos

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negar a capacidade destes e de outros teóricos do imperialismo de captar a tendência do desenvolvimento capitalista. Afinal de contas, Rosa Luxemburg publicou seu livro em 1912, Bukharin em 1915, e Lênin em 1916. Podemos perceber que as características do imperialismo estão cada vez mais presentes na vida econômica e financeira mundial, basta observar as constantes e quase diárias crises financeiras internacionais, ou então as várias fusões entre empresas e/ou bancos, constituindo os já apontados monopólios e oligopólios.

Sem dúvida alguma, o século XX foi o século do imperialismo, o século das guerras imperialistas. Entre 1914 e 1991 foram contabilizadas 187 milhões de mortes como resultado das guerras do século XX. Como afirma Emir Sader, somente na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) “morreram 8 milhões de soldados – o dobro do número de mortos em guerras nos 125 anos anteriores-, 9 milhões de civis e, logo depois da guerra, 6 milhões de pessoas morreram pela epidemia da gripe espanhola. Além disso, 20 milhões de pessoas ficaram inválidas, num quadro de vítimas em que, pela primeira vez em uma guerra, houve mais mortos civis do que militares” (Sader; 2000, p. 119 e 120.).

Marxismo e Guerras de Libertação Nacional A análise marxista sobre a guerra sempre esteve ligada ao estudo do

desenvolvimento e expansão mundial do capitalismo, da luta de classes e da revolução, e, após a vitória da Revolução Russa de 1917, que ocorre durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os marxistas são obrigados a aprofundar o debate sobre a posição dos mesmos em relação à guerra, pois é justamente neste período que ocorre uma divisão no movimento operário e socialista, tendo como resultado duas posições antagônicas. De um lado, aqueles que defendem que os socialistas não podem ser contra a guerra, e por isso votam a favor da participação de seu país no conflito já estabelecido, e de outro, aqueles que são contra a guerra e a favor da revolução. Estes últimos acreditavam ser possível e necessário transformar a guerra imperialista em revolução proletária.

Quando nos deparamos, nos dias atuais, com o crescimento das intervenções militares comandadas pelos países imperialistas por toda a América Latina, África, Ásia e Europa, nos recordamos que no início do século XX, vários autores, como afirmamos anteriormente, já haviam detectado qual o papel que a guerra tem no processo de desenvolvimento do capital e do capitalismo. Vladimir Lênin dizia que

a guerra não foi gerada pela má vontade dos capitalistas, embora seja indubitável que só se faz no interesse deles e só a eles enriquece. A guerra é o produto de meio século de desenvolvimento do capital mundial, dos seus milhares de milhões de fios e laços. É impossível sair da guerra imperialista, é impossível conseguir uma paz democrática, não imposta pela violência, sem derrubar o poder do capital, sem a passagem do poder de Estado para outra classe, para o proletariado (Lênin, 1981: 30).

A inovação dos marxistas em relação ao estudo da guerra está no fato de que os mesmos acrescentam o elemento classista na análise deste fenômeno, valorizando e destacando o papel da luta de classes, não se submetendo a uma

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análise limitada que só consegue enxergar a nação ou o Estado. Além da análise do papel do Estado nacional num determinado conflito ou guerra, a concepção marxista também leva em consideração a posição e os interesses das classes sociais.

No estudo da teoria marxista da guerra e da estratégia, podemos verificar que existe, ao longo do século XX, um cruzamento entre os conhecimentos sobre tática e estratégia elaborados por alguns clássicos do pensamento militar e os fundamentos da estratégia política marxista. Uma análise profunda das relações entre o marxismo e a chamada “arte da guerra” desenvolvida por Héctor Luis Saint-Pierre. Ao estudar os escritos militares de Lênin e o processo da Revolução Russa, ele afirma que a

genialidade de Lênin consistiu em elaborar uma concepção estratégica na qual conseguiu soldar, de maneira original, a teoria marxista da luta de classes com a teoria clausewitziana da guerra (grifo nosso). Com essa síntese, por um lado, ele enriquece a teoria da guerra revolucionária com os elementos teóricos desenvolvidos pelo general prussiano quando este pensou na natureza da guerra e, por outro, coloca como fundamento político para caracterizar a natureza da guerra o reconhecimento das classes sociais como sujeitos e partes do conflito, assim como seu posicionamento no confronto armado. Quais os interesses econômicos que promovem uma guerra? Quem defende esses interesses? Que significado tem essa guerra para a luta do proletariado? Essas são as perguntas que Lênin formula para classificar politicamente as guerras (Saint-Pierre, 1999: 71 e 72).

É possível perceber a influência não só de Clausewitz, mas também de Sun Tzu em vários textos marxistas, principalmente naqueles produzidos durante uma guerra de libertação nacional ou uma guerra revolucionária, como aconteceu em Cuba, China, Vietnã e tantos outros países onde os movimentos nacional-revolucionários vão se constituindo em organizações políticas e militares de caráter antiimperialista e anticapitalista.

Nacionalistas e antiimperialistas tem se apropriado, ao longo da história, das teorias, conceitos e noções de tática e estratégia elaborados durante processos revolucionários. Através das lutas de libertação nacional e antiimperialistas na Ásia, África e América Latina foi possível aprofundar e atualizar o conhecimento da Arte da Guerra e da Estratégia numa perspectiva anticapitalista, pois grande parte das pessoas e das organizações que dirigiram tais processos tinham no marxismo sua referência teórica e política.

A atualização dos conhecimentos sobre tática e estratégia surge como uma necessidade fundamental para as forças políticas e militares envolvidas em conflitos dessa natureza, pois “a água modela seu curso de acordo com a natureza do solo por onde passa; o soldado prepara sua vitória de acordo com o inimigo que está enfrentando (...) Assim, exatamente como a água não mantém sua forma constante, também na guerra não há condições constantes” (Sun Tzu, 1983:44).

Quando nos debruçamos diante da definição e dos objetivos da guerra, percebemos uma aproximação ainda maior entre o general prussiano Clausewitz e os intelectuais marxistas. Para este, “a guerra é, pois um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à sua vontade (...) a guerra não é somente um

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ato político, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas, uma realização destas por outros meios” (Clausewitz, 1996:7 e 27).

Já Mao Tsé Tung afirmava que a guerra é a continuação da política. Nesse sentido a guerra é política e é, em si mesma, um ato político; desde os tempos mais antigos, nunca houve uma guerra que não tivesse caráter político (...) O objetivo da guerra não é outro senão “conservar as próprias forças e destruir o inimigo” (destruir o inimigo significa desarmá-lo ou “privá-lo da capacidade de resistir”, e não, destruir fisicamente todas as suas forças (...) A conservação das forças próprias e a destruição do inimigo, como objetivo da guerra, constituem a própria essência da guerra e o fundamento de todo e qualquer ato de guerra. Essa essência da guerra está presente em todas as atividades, desde o domínio da técnica ao domínio da estratégia (Tsé Tung, 1975: 241; 247-249).

Também Ernesto Che Guevara segue o caminho Clausewitz, pois quando escreve seu texto Guerra de Guerrilhas: um método, afirma que “a guerra é sempre uma luta onde ambos os contendores tentam aniquilar um ao outro. Além da força, apelam para todos os subterfúgios, recorrem a todos os truques possíveis para conseguir este resultado” (Guevara, 1968:50). Na análise de Gabriel Bonnet, “o marxismo vivifica e amplia as idéias de Clausewitz” (Bonnet, 1963: 129).

Outra inovação da análise marxista sobre a guerra é a reelaboração e o desenvolvimento das noções de guerra justa e guerra injusta, sendo a primeira uma guerra dos trabalhadores e das massas populares contra a opressão e a tirania, contra um governo reacionário e antipopular ou em defesa das liberdades democráticas, da independência e da libertação nacional e/ou pelo socialismo. Já a guerra injusta seria a guerra imperialista, de conquista de territórios, as guerras promovidas pela classe dominante com o objetivo de ampliar seus lucros através do massacre dos povos oprimidos dos países coloniais e semicoloniais e/ou de qualquer outro país que venha a sofrer uma invasão de forças militares imperialistas. Nesse sentido,

o conteúdo político da guerra e sua avaliação social como justa ou injusta estão organicamente ligados entre si. A avaliação moral dos fenômenos históricos da sociedade burguesa tem sempre um sentido político de classe. Por isso a natureza classista da guerra é expressa pela sua caracterização político-moral. Esta caracterização não é arbitrária, ela expressa o papel objetivo de cada guerra nas condições históricas concretas. As guerras justas e injustas distinguem-se pelas suas metas progressistas ou reacionárias, libertadoras ou conquistadoras, das partes beligerantes (...) Qualquer guerra travada por um povo em nome da liberdade e do progresso social, pela libertação em face de exploração e do jugo nacional ou em defesa da sua independência estatal, contra um ataque agressivo, é uma guerra justa. Pelo contrário, qualquer guerra desencadeada pelos imperialistas com a finalidade de conquistar territórios alheios, de subjugar e pilhar outros povos, é uma guerra injusta (Volcogónov, 1978: 60 e 61).

Dentro dessa análise classista sobre a guerra, as guerras de libertação nacional se enquadrariam no campo das guerras justas, pois

o conceito de guerra de libertação nacional refere-se, primeiro, às guerras que

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começam como insurreições dos povos escravizados contra seus opressores, quando os patriotas são obrigados a pegar em armas depois de se terem esgotadas todas as possibilidades de oposição pacífica (...) As guerras de libertação nacional, tal como as guerras civis das classes oprimidas contra os exploradores, são sempre justas na sua essência e surgem como resposta à política imperialista de opressão nacional e social assente na violência mais bruta (Dolgopólov, 1986: 43 e 52).

Iniciamos o século XXI com inúmeras questões nacionais não resolvidas. Além disso, a crise do capital e do capitalismo também faz com que as potências imperialistas procurem fazer uma nova partilha do mundo entre si, com o objetivo de minimizar os efeitos da mesma sobre suas economias nacionais. István Mészáros assinala que quando o capital e o sistema de produção capitalista começam a enfrentar dificuldades em seu processo de crescimento e expansão, a guerra aparece como uma das alternativas para garantir a manutenção e a auto-reprodução do sistema, pois sem ela não há como colocar em movimento todo o complexo militar-industrial que gera lucros extraordinários para uns poucos, mas poderosos grupos econômico-financeiros de origem norte-americana e européia (Mészáros, 1989: 41 e 42). Também é fato que toda guerra de conquista gera uma guerra de libertação nacional, que pode - ou não - adquirir um conteúdo anticapitalista.

Vivemos num momento onde se multiplicam as tentativas norte-americanas de ampliar seu domínio político, econômico e militar pelo mundo. A atitude ofensiva dos EUA, com suas guerras e intervenções militares em todo o planeta está também produzindo diversos movimentos de resistência de caráter nacionalista e/ou antiimperialista. Como afirmava Guevara, em relação aos EUA, “a sua política é a de conservar o que eles conquistaram. A linha de ação limita-se atualmente ao emprego brutal da força para sufocar os movimentos de libertação, quaisquer que sejam eles” (Guevara, 1976: 130).

Tudo indica que o século XXI também terá seu período de guerras e revoluções, onde o poderio bélico continuará sendo um dos fatores importantes para contribuir para a vitória desta ou daquela força, mas em muitos casos, podemos afirmar que não será o fator determinante (Palestina, Afeganistão e Iraque confirmam isto), ou, mesmo que seja determinante, jamais, como em toda guerra, será suficiente para assegurar a vitória de uma das partes envolvidas. Além da força material, a guerras do século XXI novamente mostram que sem o elemento subjetivo e sem o conhecimento profundo sobre a Arte da Guerra, qualquer força material se torna extremamente vulnerável.

Sun Tzu já alertava que, numa guerra, “se conhecemos o inimigo e a nós mesmos, não precisamos temer o resultado de uma centena de combates. Se nos conhecemos, mas não ao inimigo, para cada vitória sofreremos uma derrota. Se não nos conhecemos nem ao inimigo, sucumbiremos em todas as batalhas” (Sun Tzu, 1983: 28). A guerra de libertação nacional do povo do Vietnã contra a invasão imperialista demonstrou que a superioridade de uma das forças em conflito, no que diz respeito à qualidade e à quantidade de armas e recursos tecnológicos, não é garantia de vitória.

Como afirma Giap, narrando um acontecimento durante a Guerra do

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Vietnã, no momento em que as hostilidades se generalizaram em todo o país, qual era a relação de forças em presença? Do ponto de vista material, o inimigo era incontestavelmente mais forte do que nós. Nossas tropas receberam, então, ordem de combater em todo o lugar em que o inimigo tinha guarnição, para enfraquecê-lo e impedi-lo de se desdobrar muito rapidamente e, em seguida, quando as condições se tornassem desfavoráveis para nós, retirar a maior parte de nossos efetivos para a retaguarda, a fim de preservar as nossas forças vivas, tendo em vista uma resistência de longa duração. Os combates mais gloriosos e mais notáveis se desenrolaram em Hanói, onde nossas tropas conseguiram manter solidamente um vasto setor, durante dois meses inteiros, antes de se retirarem incólumes, para fora da capital (...) Nesses dias em que a Pátria estava em perigo, todo o povo vietnamita se mantinha indissoluvelmente unido num combate mortal. Respondendo ao apelo de Ho Chi Minh, ele havia escolhido resolutamente o caminho da Liberdade e da Independência (Giap, 1968: 20).

Além da condição material, a Arte da Guerra e a teoria da Estratégia ensinam que o elemento subjetivo e moral numa guerra pode ser o fator determinante da vitória de uma das forças beligerantes. Esse elemento subjetivo tem sido fundamental para impedir a vitória das forças de ocupação de Israel na Guerra da Palestina, assim como tem impedido a consolidação da vitória norte-americana no Afeganistão e, principalmente, no Iraque.

Mantida a atual correlação, nenhuma das forças em conflito, em qualquer uma das regiões citadas, tem condições de impor sua vontade ao inimigo, portanto, não tem condições de comemorar a tão esperada vitória. A precipitação de George Bush em anunciar o fim da Guerra no Iraque nada mais foi do que uma demonstração de ignorância misturada com a prepotência e a arrogância típica da classe dominante, em especial, da classe dominante dos países imperialistas, e, mais ainda, neste início de século, da classe dominante norte-americana.

Não é possível acabar com uma guerra por decreto, assim como não se acaba com a fome ou qualquer outro problema econômico e social somente através da vontade deste ou daquele indivíduo. Numa guerra, é preciso saber se todas as forças envolvidas no conflito têm o desejo de deixar de lutar, pois enquanto uma das forças - mesmo que esteja em condições inferiores do ponto de vista material - tem disposição para o confronto, isto significa que a guerra não acabou, somente assumiu uma nova forma, ou entrou em uma outra etapa. Parece plausível afirmar que tal fato tem se manifestado nas guerras de libertação nacional na Palestina, no Afeganistão e no Iraque.

A Guerra dos EUA no Iraque: um segundo Vietnã? O imprevisível e o inesperado fazem parte do cotidiano das guerras e

revoluções. Quando os EUA invadiram o Iraque, tinham no Golfo Pérsico 225 mil soldados, 5 porta-aviões, 990 aviões, 150 navios, 900 tanques e milhares de bombas e mísseis. Contava também com o apoio de 45 mil soldados, 1 porta aviões, 30 navios e 510 tanques do Reino Unido. Já as forças armadas Iraque eram de 285 mil soldados, mais 125 mil membros da Guarda Republicana e outros 25 mil da Guarda Republicana Especial. Além disso, possuíam 58 mísseis Scud, 4

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mil mísseis antitanque e 2500 tanque (Exame, 2003: 25). Em setembro de 1945, era decretada a criação da República Democrática e

Popular do Vietnã (Vietnã do Norte). Nesse processo de luta pela independência, o país foi dividido ao meio. O Norte, controlado pelos comunistas que comandaram a expulsão dos colonialistas franceses, e o Sul, onde existia um governo antipopular aliado do imperialismo. Com o avanço da ofensiva norte-vietnamita, que visava libertar todo o território do Vietnã do domínio estrangeiro, França e EUA se aliam para apoiar o Exército regular sul-vietnamita. Em 1954, o exército francês, após um cerco de 55 dias pelas tropas do Vietnã do Norte e pelos guerrilheiros do Vietminh (Liga Pela Independência do Vietnã) na base de Dien Bien Phu, decidiram iniciar a retirada do país. Os franceses perderam 16 mil soldados na batalha de Dien Bien Phu e 110 mil em todas as frentes de combate. Os EUA, descontentes com a decisão francesa, assumem o compromisso de ajudar o governo do Vietnã do Sul e sua luta contra os comunistas do norte.

Durante a invasão do Vietnã do Norte, iniciada em 1965, os EUA mobilizaram mais de 550 mil soldados. Essa operação de defesa do Vietnã do Sul contra o Vietnã do Norte contou com o apoio de 40 países. A URSS e a China definiram seu apoio ao Vietnã do Norte. Entre 1965 e 1968, intensificaram os ataques contra o Norte do país, mas já percebiam que dificilmente teriam condições de vencer tal guerra, ainda mais num momento onde cresciam as manifestações contrárias à invasão dos EUA e em defesa da luta do povo do Vietnã pela unificação do país e pela total independência em relação à qualquer potência estrangeira. Entre agosto e dezembro de 1969, começava a retirada das tropas norte-americanas do Vietnã, com a saída, neste período, de 90 mil soldados. É importante chamar a atenção para o fato de que essa redução do número de soldados não pode ser confundida com a diminuição da intensidade do conflito ou com uma efetiva disposição dos EUA em buscar uma saída pacífica para o mesmo, pois após o início da chamada “retirada das tropas”, aconteceram vários bombardeios e massacres em diversas áreas do território vietnamita. À medida que os EUA se “retiravam”, as forças regulares do Vietnã do Norte, as guerrilhas do Vietcong (“Vietnam Congsan”: Vietnã Vermelho) e a Frente Nacional de Libertação (FNL), braço político do Vietcong, consolidavam a vitória de uma das mais importantes – senão a mais importante - guerra de libertação nacional do século XX. Ao final do conflito, em março de 1973, após a retirada total de suas tropas, os EUA contabilizavam a morte de 58 mil soldados, além de 153.303 feridos (Garcia, 2001).

Nosso objetivo não é fazer uma comparação entre a Guerra dos EUA no Vietnã e no Iraque, mas somente levantar algumas idéias sobre o que existe de comum e o que existe de diferente entre os dois conflitos, lembrando que, apesar de cada guerra apresentar características próprias, situações particulares e muito específicas do momento, do local ou das forças que combatem, é possível identificar alguns aspectos gerais que também se fazem presentes nos dois conflitos citados, pois a natureza destas duas guerras, assim como alguns princípios que estimularam a organização das forças de resistência contra o invasor estrangeiro se manifestam de maneira muito semelhante.

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Não afirmamos que a Guerra do Iraque será um segundo Vietnã, até porque consideramos que tal formulação é muito imprecisa e desprovida de consistência, pois a distância entre os dois conflitos é muito grande. Questionamos se, para os EUA, esta guerra poderá se tornar um novo Vietnã, pois a mesma tem provocado uma cisão na sociedade norte-americana, tem contribuído para acirrar algumas contradições internas que não se manifestavam com tanta evidência antes do início do conflito, ou mesmo nos primeiros dias da guerra. O prolongamento da guerra por outros meios, pela guerra não-convencional ou guerra de guerrilhas, tem resultado no aumento do numero de mortos entre os soldados dos EUA e seus aliados, fato que alimenta a crítica daqueles que se posicionaram, desde o início, contra o ataque ao Iraque. Outros fatores que contribuem para fortalecer, dentro dos EUA, as forças contrárias à guerra, são a comprovação da inexistência de armas químicas, nucleares e/ou de destruição em massa no Iraque e a certeza de que, assim como no Vietnã, essa é uma guerra que não pode ser vencida pelo exército invasor.

Se os EUA insistirem em permanecer no Iraque, eles terão de enfrentar uma situação semelhante à que viveram no Vietnã antes de sua retirada, ou algo parecido com a realidade do exército de ocupação israelense na Palestina, com a grande diferença que os soldados norte-americanos e seus familiares não tem nenhuma vontade de se estabelecer no Iraque, e também não reconhecem (ao contrário do que pensam os israelenses sionistas sobre a Palestina) nesse país a “terra prometida”.

Toda guerra, além da incerteza e da insegurança que produzem, sempre tem um custo muito alto para qualquer país e qualquer povo. Os clássicos da Arte da Guerra já alertavam que “deve-se ir à guerra apenas se não há outra alternativa” (Sun Pin, 1999: 46), e que “na guerra, tudo é muito simples, mas até a coisa mais simples é difícil” (Clausewitz, 1996: 83). E as guerras de libertação nacional, como sempre adquirem um caráter de guerra popular prolongada, sempre levam o invasor a um inevitável desgaste, à perda da credibilidade e ao isolamento. Quando estas situações se apresentam num mesmo momento, é o início da derrota das tropas de ocupação.

A guerra de libertação nacional do povo do Vietnã conseguiu deixar como lição que “um exército popular, insuficientemente equipado, porém combatendo por uma causa justa, seguindo uma estratégia e uma tática adequadas, é plenamente capaz de vencer um exército moderno de agressores estrangeiros” (Giap,1968:30). As guerras de libertação nacional no Afeganistão, na Palestina e no Iraque mostram que iniciamos um novo século aprisionados a problemas que não foram resolvidos e tiveram origem no século XX. A questão nacional, que está no centro do debate político nas três regiões citadas, continua atormentando o mundo do capital. Os problemas que hoje atingem a população palestina, afegã e iraquiana foram criados no século XX. Esperamos que no século XXI as forças sociais e políticas que lutam contra o capital tenham condições de solucionar os problemas econômicos, sociais e nacionais deixados pelo século do imperialismo.

No caso do Iraque, é possível e desejável que mais uma vez se realize a “profecia” de Ho Chi Minh, quando em 1969, em seu Testamento, escreveu que

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a resistência à agressão norte-americana pode ainda prolongar-se. Nossos compatriotas talvez devam aceitar ainda muitos sacrifícios em bens, em vidas humanas. Qualquer que seja o custo, devemos estar decididos a combater o agressor norte-americano até a vitória total. Nossos rios, nossas montanhas, nossos homens sobreviverão sempre. Depois de derrotar o ianque, construiremos o país dez vezes mais belo! Quaisquer que sejam as dificuldades e as privações, nosso povo vencerá. Os imperialistas norte-americanos deverão, sem dúvida nenhuma, ir embora. (Ho Chi Minh, 1984: 196)

Bibliografia BONNET, G. (1963). Guerras insurrecionais e revolucionárias. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército-Editora. BUKHARIN, N. (1988). A economia mundial e o imperialismo. São Paulo: Nova Cultural. CHI MINH, Ho. (1984). “Testamento”. In: ALVAREZ, M. E., Ho Chi Minh-Política. São Paulo: Ática. CLAUSEWITZ, C. V. (1996). Da guerra. São Paulo: Martins Fontes. DOLGOPÓLOV, E. (1986). As guerras de libertação nacional na etapa atual. Moscou: Edições Progresso. EXAME. (2003). “Economia de guerra: como o conflito no Iraque afeta o Brasil e o mundo”. Exame. edição 788, ano 37, n.6. São Paulo, Abril. GARCIA, A. (2001). “La guerra del Vietnam”. In: EJÉRCITO DE LIBERACIÓN NACIONAL – ELN. Biblioteca Virtual Socialista, CD-ROM. Colômbia, ELN. GIAP, Vo N. (1968). O Vietnam segundo Giap. Rio de Janeiro: Saga. GUEVARA, Che. (1968). Guerra de Guerrilhas: um método. Editora Base. __________. (1976). “Criar um, dois, três... muitos Vietnãs”. In: A revolução cubana e a construção do socialismo. Amadora: Editorial Fronteira. LÊNIN, V. (1981). “As tarefas do proletariado em nossa revolução”. In: Obras escolhidas, Tomo II. Lisboa, Avante. __________. (1987). Imperialismo, fase superior do capitalismo. São Paulo: Global. LUXEMBURG, R. (1985). A acumulação do capital. São Paulo: Nova Cultural. MARX, K & ENGELS, F. (1974). Sobre a China. Porto, Publicações Escorpião. __________. (1989a). Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis, Vozes. __________. (1989b). Sobre o Colonialismo. Volumes I e II. São Paulo, Mandacaru. MÉSZÁROS, I. (1989). A necessidade do controle social. São Paulo, Ensaio. PIN, S. (1999). A arte da guerra. Record, São Paulo. SADER, E. (2000). Século XX: uma biografia não-autorizada. O século do imperialismo. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo. SAINT-PIERRE, H L. (1999). A política armada. Fundamentos da guerra revolucionária. São Paulo, Editora UNESP. TSÉ TUNG, M. (1975). “Sobre a guerra prolongada”. In: TSÉ TUNG, M. Obras escolhidas, Tomo II. Pequim, Edições em Línguas Estrangeiras. TZU, S. (1983). A arte da guerra. São Paulo, Record. VOLCOGÓNOV, D.. (1978). A doutrina marxista-leninista sobre a guerra e o exército. Moscou, Edições Progresso.

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Reestruturação técnico-produtiva do capital e poder local Terezinha Ferrari*

Resumo: Mais de uma década de presença do Partido dos Trabalhadores nas

administrações municipais vêm proporcionando a construção de um ideário relativo a um novo regionalismo. Este ideário pressupõe o controle do capital pelo político e a construção de parcerias em rede, menos competitivas, das cadeias produtivas. A produtividade urbana permitiria nas cidades, a circulação sem circulação das mercadorias, objetivo máximo do capital em tempos de alta produtividade do trabalho. Analogias traçadas com centros do capital, que também promoveram reestruturações nos processos de trabalho, moldariam o ideário aqui discutido.

Um “novo regionalismo” proposto para o ABC paulista, na década de

1990, para enfrentar os impactos da reestruturação técnico-produtiva imposta pelo capital, que tem gerado um intenso fluxo de mercadorias, sustenta-se nas premissas da inevitabilidade da globalização capitalista, no pressuposto da autonomia do Estado e da esfera do político, que domesticariam localmente a lógica da cúpida acumulação do capital transnacionalizado. Acumulação que, entre outros elementos, se sustenta na manutenção da estrutura produtiva industrial em lugares onde já existem equipamentos urbanos a serem gratuitamente utilizados. A proposição deste “novo regionalismo” sustenta-se na possibilidade do controle político-institucional gerador de uma produtividade urbana conseguida através de planejamentos estratégicos direcionados por uma suposta competência administrativa e uma, também, suposta vontade política consensual. No plano das políticas públicas, em nome da cidadania, são implementadas medidas que desenvolvem posturas empreendedoristas e empregabilidades. Posturas, porém, inseridas em um mercado descaracterizado do eixo contraditório da luta de classes. Este “novo regionalismo”, finalmente, inspira-se em analogias, ao nosso ver impróprias, com remodelações urbanas ocorridas em cidades e regiões européias e estadunidenses desde os anos 1970.

Pretendemos discutir os impactos da reestruturação produtiva que vem sendo promovida pelo capital ao longo da última década sobre as chamadas políticas públicas municipais tendo como referência o ABC paulista, bem como as premissas em que se baseiam essas intervenções nos espaços públicos.

* Professora da Fundação Santo André; doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP e membro do NEILS.

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Na última década, as prefeituras do ABC foram ocupadas por diversos partidos, mas tem sido o Partido dos Trabalhadores o articulador mais rigoroso na elaboração de um plano de intervenção calcado nas premissas acima citadas.

Auto-proclamada moderna, competente, eficiente, honesta e popular a política dos poderes locais tem cumprido um importante papel na atual etapa do processo de valorização, ao contribuir para o aumento da velocidade de rotação do capital, com a conseqüente dinamização da circulação de mercadorias.

São políticas urbanas baseadas em vocações regionais eleitas, inseridas em projetos de expansão da economia local e aumento das possibilidades de renda popular. Políticas apoiadas no espírito gregário dos habitantes da cidade, por um lado, latente e, por outro, estimulado, de defesa da região, do local de moradia. No conjunto são premissas que acabam sendo uma usina de ideologias do localismo: do território, da comunidade, do civismo. (Arantes, 2002: 66). Ideologizações às quais acrescentamos: a da política, do planejamento, da tecnologia.

“Caos” da cidade just in time, produtividade urbana e planejamento A tensão entre a racionalidade da produção capitalista no interior das

fábricas e o aparente caos urbano está ligada por nexos sutis a uma unidade contraditória entre trabalho, capital e poder de Estado – unidade não redutível a nenhum destes segmentos – de tal modo que a esfera do político institucional não detém a condição de imprimir autônoma e unilateralmente a unidade mediada do real.

Apreender esta unidade contraditória é possível a partir de qualquer ângulo, desde que se a tome pela unidade e se procure os elementos determinantes capazes de revelar o chamado caos urbano, que não um caos qualquer, uma desordem qualquer, mas a própria ordem anárquica do mercado capitalista. (Engels: 1975; Lefebvre: 1999)

Caos gerado pelo aumento da velocidade de rotação do capital que impõe a dinamização da circulação de mercadorias promovida, por exemplo, pela implantação dos planejamentos de tipo just in time. Sobre a malha viária urbana, recaem os efeitos desta dinamização, que devem ser enfrentados pelo poder político-institucional de âmbito local.

Os planejamentos just in time aplicados a fornecedores e consumidores dos conglomerados industriais extrapolam o interior das fábricas, invadindo a malha urbana, saturando as ruas, impondo os efeitos da circulação em tempo real a todos, participantes diretos ou não destes planejamentos. Seu funcionamento ignora a anarquia urbana, que se confunde com a do mercado, com seus múltiplos imponderáveis, contrapondo-se à disciplina da produção que ocorre nos interiores das fábricas e diversos locais de trabalho.

Este planejamento só se realiza no âmbito interno da produção fabril às custas da mais completa saturação do tecido urbano. O uso dos espaços da cidade para o funcionamento da produção no tempo certo, ocorre às expensas dos interesses individuais e coletivos dos múltiplos usuários da cidade. Forças produtivas do tempo e do espaço são apropriadas e comprimidas para aplicação de

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artifícios da valorização do capital. Um destes artifícios é a gestão por estoques, expulsando-os do interior do

processo produtivo e criando uma cidade just in time que se contrapõe à estrutura urbana taylorista-fordiana. Para manter fábricas limpas e enxutas, estoques foram postos do lado de fora, em trânsito, utilizando vias públicas como armazéns. Enxugando seus espaços internos, as empresas avançaram sobre áreas públicas urbanas. Custos que antes estavam restritos a sua contabilidade, recaem, agora ampliados, sobre a população em geral, os trabalhadores em particular, e sobre os cofres das administrações municipal e estadual para ampliação, manutenção e recuperação das vias públicas.

Diante das imposições do processo produtivo, as políticas institucionais se curvam aos desígnios do capital: produção e circulação em tempo zero. Conforme Fiúza de Mello, baseado em Marx, trata-se da formação de um “mercado de natureza contínua, em permanente expansão que [transforma] todos os espaços supostos de circulação em centros produtivos da mesma”; trata-se da tendência de “anular o espaço por meio da redução do tempo relativo de sua rotação” (1999: 96). Tendências que provocam um choque entre as formas urbanas tayloristas-fordianas construídas há décadas e as toyotistas em construção (Ferrari, 2003).

A gestão da coexistência entre as antigas estruturas urbanas tayloristas-fordianas e as exigências que os atuais sistemas toyotizados impõem à malha urbana tem sido feita pela administração pública. Tal tipo de gestão pressupõe uma auto-proclamada autonomia administrativa, acompanhada de um esvaziamento ideológico do caráter de classe da sociedade baseada nas relações de exploração do trabalho pelo capital.

A concepção neoliberal detectou, entre outros aspectos, que “os problemas urbanos não podem ser mais compreendidos como apenas decorrentes dos problemas habitacionais e de infra-estrutura, mas que é necessário articulá-los com os problemas de produtividade da economia urbana e com os obstáculos para alcançar esta produtividade” (Santos Júnior; 2000: 580). Somada aos antigos problemas infra-estruturais, esta tarefa de articulação é, agora, assumida pelos partidos e pelos políticos tidos como competentes e eficientes, também, para construir os equipamentos urbanos mais adequados às necessidades populares.

A forma urbana típica da produção taylorista-fordiana revelava que “as metrópoles foram configurações sócio-espaciais representativas do momento histórico da acumulação fordista, da industrialização e da construção do Estado de Bem-Estar Social. Configurações espaciais metropolitanas que desequilibraram produção, moradia, transporte, meio ambiente e cultura”. (Veras, 2001) A produtividade urbana seria, agora, o pressuposto para a regulação destes desequilíbrios e para o atendimento dos novos padrões produtivos em uma cidade adaptada à circulação de mercadorias em tempo real, just in time.

O sistema de gestão e organização da produção contido nestes processos de trabalho toyotizados consiste na otimização de tempos e espaços. Técnicas de logística integrada decompõem complexos processos produtivos em elementos mais simples implantados por uma cadeia de empresas, sincronizando sua execução de modo a que os eventos produtivos ocorram na hora certa, no tempo

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certo, na quantidade certa, e no lugar certo, pretendendo, assim, controlar as variáveis intervenientes na produção. As especificações técnicas e planejamentos gerenciais realizados a partir de resultados antecipados ocorrem por abstração das atividades concretas dos operadores: tudo sairá a contento se todos os fatores envolvidos ocorrerem conforme a previsão. Se mesmo dentro da fábrica a abstração das condições concretas dos operadores pode levar a problemas reais (falhas de máquinas, falhas humanas etc.) o que dizer, então, da improvável condição de previsão dos diversos e múltiplos fatores reinantes na cidade como um todo. São estes projetos que revelam os tensionamentos nas cidades reduzidas a um nó que deve ser desatado – dia-a-dia – pelos seus habitantes e pelo poder municipal, para atendimento das metas de projetos de produção just in time e circulação em tempo real impostos pelo aumento da velocidade de rotação do capital.

No ABC, decisões de conglomerados quanto a aumentar, diminuir ou eliminar sua participação na região, provocam adaptações em planos de governo. Pela força econômica destes conglomerados, governos municipais são levados a cooperar na execução de seus planos de produção e logística. Idealmente, planejamentos governamentais liberais, neoliberais ou populares, envolveriam o atendimento de necessidades tanto dos munícipes quanto das empresas, mas, no cenário de contradições estruturais de classe são priorizados e contemplados os interesses materiais dominantes, condição inescapável da dimensão de classe do Estado.

A infra-estrutura e equipamentos públicos bem como os mais elementares movimentos do trabalho passam a ser ocupados integral e absolutamente pela lógica de realização “contínua” das mercadorias. Não somente as normas de gestão administrativa privada permitem às grandes empresas se safarem dos percalços de acidentes. Toda a sociedade, todo o espaço e o tempo funcionam em torno do cumprimento das metas estabelecidas pelo capital – propostas independentemente da população e dos planejamentos estratégicos governamentais. Problemas e custos são cada vez mais socializados, embora a apropriação das soluções e dos lucros continuem privados.

O planejamento estratégico do Estado é subordinado aos imperativos do capital, transformando as cidades em “máquinas de crescimento” a qualquer custo. (Arantes, 2002) Porém, revestido do discurso da competência, da eficiência, do moderno e do participativo, os planejamentos vêm imbuídos da auréola da neutralidade e imunidade a críticas, porque são apresentados como soluções soberanas, de caráter técnico, melhores e únicas formas – consensuais – de enfrentar o que está dado. É a premissa da inevitabilidade dos imperativos do mercado “contínuo”.

No discurso dos executores destas políticas públicas regionais, são três os níveis de delineamento que a distinguem: 1. politização do planejamento urbano no sentido de uma gestão compartilhada através de conselhos populares, planejamento e orçamento participativos. 2. ecologização das políticas, englobando todas as áreas e círculos urbanos na mesma necessidade de preservação da natureza. 3. planejamento trans-setorial e intersetorial, isto é, os

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vários setores da atividade administrativa, obrigatoriamente, devem passar por um eixo político unitário.

Apesar do discurso acima, permanece o fato básico. As políticas públicas subordinadas aos ditames do aumento da velocidade de rotação do capital, não por acaso, tomam emprestado da gestão empresarial, objetivos, ideologia, vocabulários e instrumentos de verificação, embora sejam apresentadas como realização de vocações regionais e de vontades políticas autônomas, democráticas e competentes.

Paralelos internacionais Há vários exemplos internacionais de lugares, regiões e cidades que

mostram o impacto da reestruturação produtiva que o capital tem imposto a núcleos industriais ao redor do mundo. Os propósitos de produtividade e remodelação urbanas baseiam-se nas mudanças ocorridas nestes locais, tentando-se transpô-las, como soluções planejadas, para regiões como o ABC.

Aquelas reestruturações ao redor do mundo e estas no ABC, obedecem, no entanto, aos ditames históricos da constituição do capital que vem ocorrendo de forma desigual e combinada nos diversos locais.

Nos países centrais, a reestruturação produtiva gerou esvaziamento populacional, eliminação de postos de trabalho e radical mudança de instalações fabris em regiões como: o Nordeste dos Estados Unidos (Detroit é o exemplo mais famoso), o Noroeste inglês já nos anos 70 e 80 e o Vale do Rhur (Alemanha) desde a década de 1950.

O chamado novo regionalismo se pauta por várias analogias com estas regiões. Entretanto, a análise da particularidade dos processos históricos revela essências incomparáveis. Deste modo, ressaltamos que há diferenças fundamentais entre os resultados promovidos pelas reestruturações produtivas na região do manufacturing belt norte-americano ou do Vale do Rhur e zonas industriais em regiões metropolitanas no Brasil, como em São Paulo, por exemplo, que impediriam que fossem adotadas formas ou soluções razoáveis somente para aquelas regiões e pareceriam, se tentadas sua aplicação aqui, uma simples e ineficaz justa-posição de soluções administrativas.

Além das analogias com estas regiões, o “novo regionalismo” inspira-se nos projetos de recuperação de cidades como Lisboa, Barcelona, Rotterdã e Vancouver. Cidades que foram “recuperadas” por ocasião de, em primeiro lugar, como diz Arantes: “ocasiões sem significado urbano intrínseco” (2002: 59), como Olimpíadas, mega-exposições, conferências internacionais, ou em segundo lugar, por circunstâncias históricas totalmente diversas das cidades que compõem o ABC, como as cidades do Rhur a partir da década de 19501.

1 “A dificuldade de transpor o planejamento estratégico para metrópoles como São Paulo é que, se em Barcelona o processo de periferização era então desconhecido, aqui ele é o principal elemento estruturador da organização do espaço”. (Carvalho, 2000: 79).

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O manufacturing belt americano, a partir desta mesma década de 1950, por exemplo, contribuía com 70% da produção industrial do país e, hoje, com apenas 40%. Nos Estados Unidos, o processo de descentralização industrial começou mesmo nesta década de 1950. O sun belt, no Sul e Oeste estadunidense, desde o pós-guerra, recebe estímulos governamentais com o intuito de promover a descentralização e o aproveitamento das reservas petrolíferas nesta região. Desta política resultaram regiões com alto grau de pesquisa considerada de ponta: Seattle no Estado de Washington (produção aeorespacial), Austin no Texas (microeletrônica) e o Vale do Silício na Califórnia (informática).

No caso do Vale do Rhur (uma aglomeração policêntrica composta de 11 cidades com 5,3 milhões de habitantes), a Oeste da Alemanha, podem ser traçadas – assim julgam os teóricos desta proposição (Diário do Grande ABC 22/08/98) – linhas comparativas com as mudanças que vêm ocorrendo nas cidades do ABC. Em ambos os casos, a industrialização ocorreu sem planejamento, com degradação do meio ambiente. Diferentemente, hoje, a integração da cadeia produtiva impõe novas relações entre fabricantes e fornecedores, contatos on-line, reestruturação espacial não só dos complexos fabris, mas da cidade como um todo.

No Vale do Rhur, em meados do século XX, a malha urbana era herança de um século de indústria pesada. Estas cidades alemãs seguiam os padrões impostos pelas indústrias e pelas estradas de ferro. A necessidade de habitação operária promovera uma ocupação desordenada do solo, composta por uma mistura desorganizada de infra-estrutura, cuja contaminação ambiental era inevitável.

Já em fins da década de 50 do século XX, o surgimento de fontes de energia mais limpas e econômicas provocou mudanças intensas no emprego no setor do carvão, básico para os capitais implantados na região. Nos anos 1970, a concorrência no setor metalúrgico e de aço também acarretou forte diminuição no nível do emprego.

Não se poderia admitir, sem levantar aspectos paradoxais, a comparação feita entre a industrialização norte-americana ou alemã e o processo brasileiro. No ABC, instalações industriais remontam somente aos últimos 50 anos do século XX. A industrialização brasileira foi resultado do movimento do capital nos países centrais imperialistas. Implantar suas soluções para as crises de produtividade contemporânea é desconsiderar as particularidades histórico-sociais nacionais, cuja análise acarretaria proposições em outras direções.

Na Alemanha, desde meados da década de 1950, foram implementados em conjunto com os níveis federais e estaduais investimentos e estratégias para remodelação dos transportes, proteção ao meio ambiente, e inovações nas instituições de ensino. Ações específicas que permitiram o enfrentamento da reestruturação produtiva, já presente nos anos 1970, quando, na Região do Rhur, políticos, empresários, sindicalistas e membros da sociedade civil se propuseram a revitalizar as cidades eliminando as barreiras herdadas do modelo de industrialização anterior, desde a defesa de novos setores relacionados à tecnologia ambiental, até a viabilização da rede entre fornecedores, fabricantes e clientes.

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Os choques provocados pela onda de reestruturação produtiva dos capitais alemães, ingleses e estadunidenses, principalmente depois da década de 70 do século passado, são sentidos agora pela implantação sistemática do toyotismo nos anos 90 (Alves, 2000) sobre a realidade industrial brasileira – particularidade histórica que reclamaria soluções próprias.

As distinções históricas são abissais. Em relação ao processo de reestruturação produtiva imposta pelo capital, Diniz conclui por diferenças cronológicas e estruturais deste processo mundial: “Nos casos americano e inglês, a reestruturação veio como resposta à crise econômica, impondo mudanças tecnológicas e organizacionais. No caso do Brasil, a reestruturação veio antes ou junto com a crise, de cujos resultados imediatos ocorreu a queda do emprego industrial. Em outras palavras, nos casos externos a crise provocou a queda do emprego industrial e a reestruturação veio como resposta” — gerando uma nova onda de aumento dos níveis de emprego. Continua o autor: “no caso brasileiro, a reestruturação foi imposta de fora, provocando, como resultado, a queda do emprego” (2000: 44).

Comparando ainda outros processos internacionais de reestruturação produtiva, as diferenças continuam marcantes. O Vale do Silício é obra de capitais privados, de risco, cuja lógica é o potencial, a longo prazo, de lucratividade, e não de lucros imediatos — pois as pesquisas são fortemente orientadas para o atendimento da indústria bélica. No Japão, a chamada cidade científica de Tsukuba absorveu US$ 5,5 bilhões, gastos entre 1960 e 1985. Comparando com o Brasil, podemos refletir com Magalhães Tavares, aqui, praticamente, inexistem capitais de risco e há que considerar o tempo de maturação dos investimentos: 10 a 15 anos. (1994: 281). Não existem aqui, os incentivos para o capital, que são abundantes e garantidos a longo prazo pelos governos francês, alemão, japonês, e pelo campeão absoluto de incentivo estatal aos capitais privados: o governo estadunidense.

Guerras mundiais, corridas espaciais, guerras frias, guerras cirúrgicas, guerras nas estrelas, iniciativas de defesas estratégicas e atualmente guerras contra o “terrorismo” estão, e sempre estiveram, por trás da disposição dos capitais estadunidenses em assumir nos tecnopólos, “riscos” de longo prazo baseados em encomendas de pesquisas e armas feitas pelo Pentágono e outros órgãos do governo. No Brasil, os pólos como Campinas, Santa Rita do Passa Quatro – herdeiros de projetos gerados na ditadura militar – (assim como os grupos empresariais, gigantes falidos, da Villares, Elebra, Sisco, Cobra, Esca) não podem ser a eles comparados, pois, aos capitais aí instalados faz falta, pelo menos, os pesados e ininterruptos subsídios e garantias das encomendas estatais.

Os tecnopólos, centros produtores e difusores de conhecimento de ponta, embora possuam uma aura de puro progressismo tecnicista capitalista baseado no livre mercado, só são viáveis debaixo de intensa e contínua proteção estatal. Aparecem como solução para regiões inteiras, mas, contraditoriamente, são dependentes estruturalmente de investimentos estratégicos de longo prazo que não podem ser garantidos apenas por uma vontade política em desenvolver uma vocação regional eleita. Entre os fatores que escapam ao voluntarismo regional,

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encontram-se pelo menos a ausência de garantia a longo prazo de encomendas substanciais e constantes do poder público federal, e de mercado interno para consumo produtivo de seus projetos e serviços. Apesar disto, muitos dos nossos planejadores políticos insistem em que, talvez, seja este o caminho da constituição da competitividade interna, correção de desequilíbrios regionais, ampliação de centros educacionais para pesquisas científicas e tecnológicas. Em contrapartida, Magalhães constata o “aumento da distância entre os que possuem conhecimento e os que não possuem” (1994: 282) como conseqüência da experiência internacional destes tecnopólos.

“Novo regionalismo” em essência Uma das bases de sustentação da teoria e prática do “novo regionalismo” é

que as mudanças produtivas têm proporcionado a instalação de plantas fabris em outras regiões do país, mas não o desmonte completo do parque do ABC, ou como dizia Celso Daniel – um dos idealizadores do “novo regionalismo” e do modelo de desenvolvimento regional alternativo – não houve o desmonte do seu núcleo duro composto pelas montadoras e pelo pólo petroquímico. A região do ABC permanece como um pólo inegavelmente industrial e economicamente fundamental.

Segundo Celso Daniel, há um ponto fraco neste histórico: o de ter sido sempre marcado por “decisões exógenas à região”, isto é, a presença de forças externas que influenciam e torna o ABC uma região dependente de tomadas de decisões exteriores. A nova postura administrativa deve pautar-se pela tomada “de posição e das decisões dos protagonistas econômicos, sociais e políticos da região”. (Revista Livre Mercado, janeiro, 2002)

A concepção de cidade-região que desemboca nas propostas do “novo regionalismo” baseia-se na construção de uma competitividade do tecido produtivo regional, historicamente construído e herdado; na cooperação entre as pequenas e médias empresas que comporiam a dócil e dependente rede de empresas fornecedoras de bens e serviços ao grande capital. Complementarmente, trata-se de mais um dado do processo deste quadro de razões da manutenção das automobilísticas na região: a adequação do empresariado nacional aos processos de reestruturação produtiva ocorrida.

Ideologicamente, o “novo regionalismo” propõe regras de cooperação distintas das regras da acumulação predatória fordista, baseadas, na “alteração dos paradigmas de gestão pública e de controle da sociedade local”, que criariam uma sintonia fina entre o poder local, as empresas da região e a “sociedade civil”, o que construiria a consciência coletiva da crise estrutural da região, “em substituição à ausência de tal consciência na década de 1980”, também segundo Celso Daniel.

As áreas que se mantêm com maior força de atração competitiva para o capital são aquelas que possuem “serviços educacionais, tecnológicos e urbanos modernos”, o que reforça o “papel dos agentes e das políticas locais”. Porém, a tendência imposta pela reestruturação produtiva em andamento, parece ser a de resguardar a “região mais desenvolvida do país, onde está localizada a maior parcela da base produtiva, que se moderniza mais rapidamente, e onde estão as

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melhores condições locacionais”. (Diniz 2000:36) Algumas montadoras, de fato, instalaram novas fábricas fora do ABC, mas

ainda a região é fortemente marcada pela presença delas e das autopeças (e pelo setor petroquímico) resistentes e renovadas nos últimos dez anos. O resultado é que o ABC congrega ainda forte tendência à aglomeração em torno das plantas automobilísticas principais. (Tavares, 1994: 273) A política das empresas transnacionais indica que esta “vocação” histórica industrial da região é responsabilidade e ônus da população, dos poderes municipais, dos sindicalistas, pois as montadoras só por razões estritamente materiais mantêm-se na região. Sua verdadeira “vocação” é a extraterritorialidade ou a desterritorialização.

Nos anos 90, no ABC surge uma reindustrialização ambígua. Há uma migração interna regional. Setenta por cento das empresas que se instalaram em Mauá, por exemplo, estavam localizadas em outros municípios do Grande ABC ou em bairros da Zona Leste de São Paulo. Estas migrações surgem da dinâmica do capital na busca de produtividade espacial para manter seus investimentos e continuar beneficiando-se de sua implantação histórica na região.

A direção do “novo regionalismo” seria a de incrementar esta herança histórica, o que permitiria a manutenção das empresas transnacionais, principalmente as formadas pelo núcleo duro composto pelos setores automobilístico e petroquímico, construindo, paralelamente, a rede de pequenas e médias empresas prestadoras de serviços, dependentes deste núcleo.

Esta herança histórica, percebida como vocação, é a expressão de uma das características do capital: apropriar-se gratuitamente do já existente, (re)concentrando-se nos lugares que a cada momento, são mais adequados para sua revalorização.

A presença de pequenas e médias empresas fornecedoras das grandes montadoras parece ser um atrativo de sustentação dos projetos. Se as grandes empresas ainda permanecem e estabelecem liames produtivos com fornecedores (terceirizados) pequenos e médios, competentes e especializados, os ideológos do novo regionalismo acreditam ser este o indicativo do mercado produtor a ser estimulado, porém, com base na sistemática manutenção do foco produtivo de maior valor para o grande capital.

Neste projeto regional/urbanístico contou-se com a forte presença territorializada dos sindicatos. Para não serem encurraladas por compromissos urbanísticos específicos, as montadoras preservaram sua tradição de capital global, desterritorializado, retirando-se dos debates locais.

O “novo regionalismo” vem acompanhado pela diminuição do peso dos movimentos sociais críticos do sentido e do caráter dos canais de participação. O resultado da atuação política administrativa é o foco “cada vez mais técnico-administrativo: como construir bons governos, como produzir boas práticas, como tornar os governos eficazes e eficientes. Nesse contexto ganham força as propostas de planejamento estratégico e de desenvolvimento local” (Santos Jr., 2000: 577).

Os governos locais, sustentados por apelos de cunho neoliberal, assumidos ou não, mas considerados inexoráveis, criam e administram a infra-estrutura necessária para a circulação das mercadorias, reprodução e (re) adequação barata

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– quase gratuita – da força de trabalho para o capital. Almeida alerta: “ou se conquistam prefeituras com vistas a melhor ‘administrar’ o capitalismo em nível local ou se coloca a gestão do município a serviço do avanço das lutas populares”. (1998: 185).

Como a luta entre as classes deixou de ser a referência da realidade para partidos políticos que chegam ao poder, a gestão governamental assume a tônica do empreendedorismo e da construção de espaços de “negociação e consenso” e sua eficaz inserção nos mercados globalizantes.

Diante do exposto, identificam-se algumas questões que revelam a condição do poder local na região do ABC paulista que intervém na construção de uma temporalidade e de uma espacialidade impostas por sutis cadeias de controle econômico. O ideário das “vocações” regionais, que vem sendo construído e proposto pelo Partido dos Trabalhadores, partindo das premissas aqui expostas, implica planejamento urbano tecnicizado, ignorando os distintos interesses de classe e as efetivas contradições impostas pela produção capitalista. O resultado é uma política neutralizadora das tensões entre as classes sociais, em que o nível local do Estado assume uma posição de autonomia demiúrgica, tentando costurar consensos e parcerias entre partes tão antagônicas quanto contraditórias.

Bibliografia:

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Carré Rouge Nº 27

Octobre 2003

France-année zero? Greve massive em

mai-jun, tension vers la grève générale... François Chesnais

Charles Jérémie Samuel Holder AC! Quimper

Vanina Guidicelli Michel Martin

Brésil Jean Puyade Jean-Philippe

Divès Ernesto Herrera

Correspondance:

Boîte postale 125

75463 Paris CEDEX 10

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Os nacionalistas liberais paulistas e a construção da nação brasileira∗Cássia Chrispiniano Adduci∗∗

Resumo: Com este artigo, pretendo expor, em linhas gerais, a proposta do grupo

de intelectuais paulistas que, durante a década de 1920, mobilizou-se em torno da elaboração de uma resposta ao desafio que se colocava para a intelectualidade brasileira como um todo: o de (re)construir a nação brasileira.

Já há alguns anos venho enfrentando o desafio de discutir a “mística

paulista”, historicizar seu uso e reprodução. Estudá-la tendo como preocupação principal sua inserção no processo de construção de representações ideológicas que ocorrem nos embates em torno da questão nacional e, dentro dela, do regionalismo.

O início das minhas investigações foi uma nota de rodapé em um texto de Thomas Skidmore, na qual o autor fazia referências à história do separatismo paulista. Uma história que, na verdade, tem muito ainda para ser estudada, como já apontava o próprio historiador (1992: 407). Seguindo a pista deixada por Skidmore, lancei-me à exploração de um conjunto de documentos que até então não tinha sido analisado, com o intuito de identificar e apresentar as características do ideário produzido pelos adeptos do separatismo paulista, em 18871.

Algumas respostas foram encontradas, porém, inúmeras novas inquietações surgiram. Se, em 1887, pela primeira vez, foram sistematizadas as idéias de superioridade e de orgulho paulistas, como essas idéias foram, posteriormente, utilizadas? Quando reapareceram? De que modo foram se espraiando pela população paulista, se em 1887 elas possuíam um caráter acentuadamente elitista? Em poucas palavras: como continuou a ser elaborado o poderoso mito paulista?

Um mito que percorreu a Primeira República, atingindo seu ápice em 1932, mas que reaparece ainda hoje, mesmo que de modo difuso, nas mais diferentes oportunidades. Destacar São Paulo e reforçar imagens ligadas à mitificação paulista é uma prática com a qual convivemos, com maior ou menor intensidade, explicitada de forma mais ou menos direta. Evidentemente, os contextos são os mais diversos, mas, de todo modo, lá estão reforçadas idéias antigas e historicamente construídas.

∗ Este texto traz algumas idéias desenvolvidas em minha tese de doutorado (Adduci, 2002). ∗∗ Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP e membro do NEILS. 1 Sobre o movimento separatista paulista de 1887 ver meu livro (Adduci, 2000).

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Assim, dando seqüência à minha pesquisa sobre a “mística paulista”, escolhi estudar o período da segunda metade da década de 1910, a partir da Primeira Guerra Mundial, e os anos 1920. Mais um momento de crise, da mesma forma que tinha sido 1887, mas inserido na Primeira República, período em que o grande capital cafeeiro paulista detinha a hegemonia política nos níveis federal e estadual.

Esse fato gera uma mudança fundamental em relação ao movimento de 1887. No final do século XIX, a situação era muito diferente: frações da classe dominante paulista lutavam precisamente para alcançar um poder político que fosse proporcional ao seu poder econômico. Nessa luta, o discurso elaborado exaltava a diferença que contrapunha São Paulo às demais províncias, levando os ideólogos às propostas de separação, à contraposição entre a “nação paulista” e a brasileira. Já no século XX, detentoras do poder político, frações da classe dominante paulista passaram à exaltação das diferenças com um objetivo homogeneizador: a modernidade e o cosmopolitismo paulistas serviriam como modelo que deveria ser seguido pela nação brasileira. A idéia era de coesão. O objetivo? Manter a hegemonia política alcançada após a instalação da República.

Os objetos A análise da “mística paulista” está associada ao estudo do nacionalismo,

ao processo de construção da nação brasileira e ao regionalismo. Com o objetivo de apreender esses processos, escolhi alguns objetos cuja análise me pareceu relevante. Assim, examinei a Revista do Brasil em sua primeira fase (1916-1925), a Liga Nacionalista de São Paulo (1917-1924), as obras de alguns dos memorialistas da rebelião tenentista de 1924, as idéias do Partido Democrático de São Paulo expressas através do Diário Nacional, e as obras Paulística e Retrato do Brasil, de Paulo Prado.

A Liga Nacionalista de São Paulo (LNSP), fundada em dezembro de 1916, surgiu no seio do nacionalismo que se desenvolveu no país fruto da eclosão da Primeira Guerra Mundial. Vinculada à Faculdade de Direito de São Paulo, a Liga tinha como objetivo o despertar e a organização da população paulista, preocupando-se, sobremaneira, com a ação. Dentre suas principais bandeiras de luta estavam a educação e o escotismo, o voto secreto e obrigatório e o serviço militar obrigatório. Para análise de suas idéias utilizei os textos publicados no jornal O Estado de S. Paulo e na Revista do Brasil. Principalmente O Estado de S. Paulo abriu espaço freqüente para noticiar as atividades da Liga, suas campanhas, documentos e textos assinados por seus membros.

Da mesma forma que a LNSP, as raízes da Revista do Brasil (RB) estão no nacionalismo surgido em função da Primeira Grande Guerra. Com nove anos de existência ininterrupta e publicação mensal, a RB foi o periódico de maior longevidade da Primeira República, totalizando 113 exemplares ao longo desse período, cuja direção esteve, durante a maior parte do tempo, a cargo de Monteiro Lobato. A Revista do Brasil foi um veículo essencial no debate que se travou no Brasil à época acerca da questão nacional, abrindo espaço à participação dos mais destacados atores políticos e intelectuais de diferentes posições. Esses ideólogos,

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preocupados com a elaboração de uma releitura do país, com a apresentação de diagnósticos e soluções, lançaram mão de análises elaboradas, principalmente, a partir do estudo da história, geografia, etnia e língua brasileiras.

A rebelião de 1924 foi um dos momentos em que os descontentamentos gerados pela grave crise política e econômica que caracterizaram os anos 20 apareceram. A cidade de São Paulo e sua população foram convulsionadas pela rebelião militar que acabou extrapolando para a esfera civil. Minha análise desse movimento recaiu sobre textos publicados ainda durante a década de 1920 e produzidos, em sua maioria, por paulistas contemporâneos da rebelião, alguns deles com participação direta nos acontecimentos.

Outro foco de tensão, no estado de São Paulo, foi gerado pelas pressões que se intensificavam sobre o Partido Republicano Paulista (PRP), associadas a cada vez mais aguda “questão social”, representada, principalmente, pelos “problemas” com os operários e pelo aumento da luta pelos “direitos dos cidadãos”, ligada às idéias de “representação e justiça” (Casalecchi, 1987: 153-4). Alguns membros da classe dominante paulista passaram a criticar sistematicamente o governo e o partido. Esse processo amadureceu até que, em 24 de fevereiro de 1926, foi lançado o Partido Democrático de São Paulo (PD).

O PD assumiu um importante destaque político e ideológico pois se tornou a “primeira agremiação organizada e legal, que conseguiu, em São Paulo, sobreviver e inserir-se efetivamente nas lutas político-ideológicas travadas no período” (Prado, 1986: 1). O estudo de suas idéias foi realizado através da análise do Diário Nacional, principal veículo de divulgação do partido, no período entre 1927 (data do início de sua publicação) e agosto de 1929, quando o partido assumiu o compromisso de apoiar os candidatos da Aliança Liberal, já ao final do período que estabeleci para exame.

Finalmente, selecionei os livros de Paulo Prado, Paulística – publicado em 1925 – e Retrato do Brasil, de 1928. O primeiro é uma compilação de artigos do autor publicados no jornal O Estado de S. Paulo em que a valorização do “ser paulista” aparece com toda sua intensidade. Já em Retrato do Brasil, Prado tece críticas contundentes à nação brasileira, mas, ainda uma vez, a “raça paulista” aí está diferenciada em relação aos demais habitantes do país.

Os ideólogos Na concepção, concretização ou apenas na simples participação nos

movimentos foi possível identificar o envolvimento de um núcleo fixo de intelectuais. A partir do levantamento de Sílvia Moreira e começando pela LNSP, é possível apontar, dentre os que integraram sua Diretoria e Conselho Deliberativo, entre 1917 e 1919, nomes que, posteriormente, estiveram vinculados aos outros objetos que analisei. São eles: Amadeu Amaral, Sampaio Dória, Francisco Morato, Frederico Vergueiro Steidel, Henrique Bayma, Sampaio Vidal, Monteiro Lobato, Jorge Street, José Carlos de Macedo Soares, Cardoso de Melo Neto, Júlio Mesquita, Júlio de Mesquita Filho, Gama Cerqueira, Luiz Pereira Barreto, Mário Pinto Serva, Rangel Pestana, Paulo Nogueira Filho, Prudente de Morais Neto, Reinaldo Porchat e Waldemar Martins Ferreira.

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Em relação à Revista do Brasil, já foi feita referência a sua ligação com Monteiro Lobato, mas ela associava-se também à família Mesquita e a Paulo Prado. Se essas vinculações não fossem suficientes para ligá-la ao grupo que estudei, constam da lista de autores com maior número de textos publicados em suas páginas, além do próprio Monteiro Lobato, Amadeu Amaral, Mário Pinto Serva e Sampaio Dória.

Entre os autores que publicaram textos concebidos no bojo das lutas tenentistas de 1924, destacam-se Júlio de Mesquita Filho, Paulo Duarte, Antônio dos Santos Figueiredo, Álvaro Ribeiro, Elias Pacheco Chaves, Francisco Morato, José Joaquim Cardoso de Melo Neto e Mário Pinto Serva, além de José Carlos de Macedo Soares que esteve mais diretamente envolvido nos acontecimentos. Dentre os nomes vinculados ao PD, mais uma vez, vários autores já citados aparecem: Francisco Morato, Paulo Nogueira Filho, Prudente de Morais Neto, Henrique Bayma, Cardoso de Melo Neto, Gama Cerqueira, Mário Pinto Serva, Paulo Duarte, Reinaldo Porchat, Sampaio Vidal e Waldemar Martins Ferreira.

Embora não sejam os mesmos indivíduos que apareçam sempre em todos os movimentos, ainda assim acredito ser possível apontar uma homogeneidade ideológica que permanece ao longo dos anos.

Paulistas em sua grande maioria, esses ideólogos tinham ainda freqüentemente em comum a passagem pela Faculdade de Direito de São Paulo, onde muitos deles inclusive lecionaram: Vergueiro Steidel, Francisco Morato, Cardoso de Melo Neto, Gama Cerqueira, Waldemar Martins Ferreira e Reinaldo Porchat.

Outro traço em comum é a vinculação de alguns deles ao jornal O Estado de S. Paulo. Além dos proprietários, estiveram envolvidos nos movimentos e atuaram na redação ou direção do jornal Rangel Pestana e Paulo Duarte (que dirigiu também o Diário Nacional), e nele escreveram com certa regularidade Monteiro Lobato, Mário Pinto Serva e Elias Pacheco Chaves. Amadeu Amaral também esteve vinculado ao jornal, exercendo sua secretaria a partir de 1920, além de ter participado da fundação e direção da Revista do Brasil e da direção do Diário Nacional.

Alguns desses indivíduos exerceram cargos públicos pelo PRP: Gama Cerqueira (deputado constituinte) e Reinaldo Porchat (senador estadual). Outros desempenharam funções públicas ao longo da década de 1930 como José Carlos de Macedo Soares (deputado constituinte, ministro, embaixador, interventor federal), Paulo Duarte (deputado estadual, delegado de Ordem Política e Social), Cardoso de Melo Neto (prefeito de São Paulo, deputado constituinte, deputado federal, governador e interventor), Francisco Morato (deputado federal e secretário estadual na interventoria de Macedo Soares), Mário Pinto Serva (deputado estadual) e Paulo Nogueira Filho (deputado federal).

Além das funções públicas, todos esses ideólogos atuaram na área privada, muitas vezes no exercício de profissões liberais. Mas é importante destacar as análises feitas por Sílvia Moreira e Maria Lígia Prado a respeito da identificação profissional dos membros da Liga Nacionalista e do Partido Democrático, respectivamente. Ambas alertam que a menção dos militantes das associações

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como exercendo profissões liberais não permite sua caracterização como membros da classe média.

Moreira aponta que, apesar de predominarem na Liga profissionais liberais, não seria adequado “considerá-la como um movimento de oposição de classe média” já que, entre esses profissionais, “estavam elementos não só vinculados ao poder, mas pertencentes às famílias de políticos tradicionais da República ‘Velha’” (1982: 48). Avaliação semelhante à indicada por Prado: “No caso dos democráticos, seus interesses e ligações econômicas ultrapassavam [os limites das classes médias], pois que eram membros integrantes das classes proprietárias” (1986: 18). As indicações a seguir corroboram a posição das autoras.

Cardoso de Melo Neto foi não só professor, mas ainda advogado e diretor da Central Elétrica de Rio Claro e Francana de Eletricidade, diretor do Banco Mercantil e da Fiação e Tecelagem de Piracicaba. Mário Pinto Serva foi secretário do Escritório Central da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Sampaio Vidal, Francisco Morato, Paulo Nogueira Filho e Paulo Duarte exerceram a função de advogado, mas entre eles, Sampaio Vidal foi grande fazendeiro e presidente da Indústria de Tecidos Pindorama e Paulo Nogueira Filho era de uma família envolvida com negócios com usina de açúcar, fazenda e com as companhias Agrícola de Ribeirão Preto e de Tecidos Santa Branca. Macedo Soares foi diretor do Banco de S. Paulo e da Companhia de Seguros São Paulo, além de ter sido presidente da Associação Comercial de São Paulo. Monteiro Lobato foi proprietário de uma grande fazenda e os Mesquita, fazendeiros de café em Campinas. Por fim, a família Prado cujos membros, além de grandes fazendeiros de café, envolveram-se com a criação e/ou estiveram na presidência do Banco do Comércio e Indústria, do Frigorífico Barretos, da Vidraria Santa Marina, da Companhia Prado Chaves Exportadora e da Companhia Paulista de Vias Férreas.

A homogeneidade da “elite política paulista” no período entre 1889 e 1937 foi apontada por Joseph Love. Homogeneidade determinada, em primeiro lugar, pela ausência de qualquer elemento de origem trabalhadora. Em segundo, pela lenta incorporação de imigrantes ou de seus filhos no seio do grupo. Um terceiro ponto seria sua formação educacional, com elevado índice de educação superior, realizada, notadamente, na Faculdade de Direito de São Paulo. O quarto critério é o estreito vínculo familiar entre os elementos do grupo, implicando em “uma complexa rede de interligações econômicas e de parentesco” (1982: 215-18).

Admitindo-se essa homogeneidade, duas questões colocam-se. Por um lado, o que teria levado à articulação desse grupo em torno de uma nova proposta para a organização do poder e, por outro, que espaço estaria reservado em seus planos a outras classes ou frações de classes, além do grande capital cafeeiro.

Vale observar que parte da classe dominante paulista diante das pressões, cada vez maiores, impostas quer pela chamada “questão social”, quer pela presença da temática da revolução, estava discutindo e propondo caminhos alternativos de dominação. Mantendo um acentuado caráter elitista e conservador, especificamente o grupo de intelectuais paulistas que analisei mobilizou-se em torno de um claro conjunto de idéias e objetivos, construiu um coeso discurso de

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inclusão, lançando mão da ideologia nacional e tendo como preocupação primordial a garantia da hegemonia paulista. Assim, ainda que vinculados aos interesses do grande capital cafeeiro, estavam empenhados em elaborar e implementar um novo modelo de organização de poder que teria como desafio ampliar seus limites de inclusão, incorporando, ou ao menos tentando, a classe média, o operariado e outras frações das classes dominantes.

Diante de grupos tão diferentes a serem atingidos por sua proposta liberal, os intelectuais lançaram mão dos mais diversos instrumentos: periódicos, cinemas, escolas, cartazes, conferências, mobilizações públicas e livros. Cada um deles implicando em meios e públicos-alvo distintos. Assim, é possível afirmar que a Revista do Brasil, os textos que foram elaborados na seqüência do movimento tenentista de 1924 e os trabalhos de Paulo Prado atingiram tanto frações do grupo dominante paulista como da classe média. Já a Liga Nacionalista de São Paulo e o Partido Democrático tiveram um caráter mais amplo, esforçando-se para viabilizar um engajamento da maioria da classe média e, notadamente em relação à Liga, de setores do operariado.

Projeto de parte do grupo dominante paulista e não da classe média, como foi indicado, a LNSP, no entanto, preocupava-se em dirigir seu discurso aos indivíduos pertencentes a esses grupos, ainda que não só a eles. Publicando seus textos e divulgando suas campanhas principalmente nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo, certamente a associação garantia alcançar um de seus objetivos através do público leitor do periódico: “um público ‘letrado’ que a Liga estava empenhada em influenciar, em ‘aconselhar’ sobre como deveriam agir, e sobre o caminho que garantiria a continuidade da hegemonia paulista” (Moreira, 1982: 49). O periódico atingia também jovens dos grupos dominantes que, junto com a classe média, eram tocados pela veiculação das idéias da Liga nos cinemas e através de cartazes.

Seu outro foco de atenção, o operariado, seria atingido por meios diferentes. Sem representação operária em suas fileiras, a LNSP enxergava-se muito mais como uma associação que tinha como objetivo a proteção e condução dos operários. A atuação da Liga, quer por meio das escolas voltadas especialmente para eles, quer através das campanhas feitas nas fábricas, evidencia a tentativa de interferir, ainda que indiretamente, nas “ameaçadoras” organizações autônomas desse grupo, bem como lhes indicar “o caminho que traria as soluções para a situação de ‘crise’ em que se encontravam” (Moreira, 1982: 50).

Não tendo sido concebido nem liderado por membros do grupo que analisei, a rebelião tenentista de 1924 em São Paulo, entretanto, acabou envolvendo a população paulista. Comerciantes e industriais tinham como preocupação primordial a proteção à propriedade e a manutenção da “ordem”. Para atingir esses objetivos, a atuação da Associação Comercial foi fundamental. Além disso, conforme aponta Anna Maria M. Corrêa, tiveram uma chance política pela qual vinham lutando: aumentar sua participação no poder (1976: 156).

Parte da classe média assumiu, desde o começo do movimento, uma posição favorável. Vários dos indiciados pertenciam a esse grupo – professores, estudantes e funcionários. Esse envolvimento poderia ser justificado por motivos

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ideológicos, por imaginarem o movimento com capacidade de estabelecer a justiça social ou as mudanças que desejavam ou ainda por sua proposta moralizadora. Outros membros do grupo teriam aderido ao longo do movimento, em função da persistência dos bombardeios (Corrêa, 1976: 157-9).

Lorayne Garcia Ueócka discutiu especificamente a participação do operariado no levante de 1924. Segundo a autora, apesar de repelidos pelos militares, os operários participaram ativamente nas trincheiras e frentes de batalhas. Evidentemente nem todos se envolveram na mesma intensidade: destacaram-se os que “possuíam prévio envolvimento político com o anarquismo ou o comunismo, e mais especialmente os que estavam engajados nos movimentos sindicais e grevistas” (1991: 309).

Os textos relativos ao movimento de 1924 analisados em meu trabalho foram elaborados por intelectuais que, com o início das perseguições que se seguiram ao fim da rebelião, preocuparam-se em defender seus membros e suas idéias. Membros que foram julgados, condenados e, alguns, exilados. Esses livros auxiliaram no reforço das idéias que veiculavam. Idéias que se referem a uma nova proposta de organização de poder, fortalecendo-se no universo ideológico de fração do grupo dominante paulista e que, em menor medida, espraiava-se pelo universo ideológico de parte da classe média. O reforço ou a irradiação dessas idéias no seio desses grupos, na verdade, foi um processo empreendido em todos os objetos analisados, apresentando um elevado grau de homogeneidade teórica e de concepção de mundo.

Em relação ao Partido Democrático, a análise de Maria Lígia Prado destaca alguns apelos que teriam levado setores da classe média (médicos, farmacêuticos, comerciantes e funcionários públicos) a aderirem ao partido: a “oposição entre democracia e oligarquia”, estando a democracia atrelada à capacidade de “’remodelar os costumes políticos’ do país”; e a idéia de “republicanizar a República” com a “moralização dos costumes”, reconduzindo-a ao “caminho da verdade” (1986: 22-3).

Sobre essa adesão, a autora credita-a às difíceis condições enfrentadas pelo grupo – aumento do custo de vida, baixo nível dos salários e ausência de participação política efetiva – e à constituição do PD como o “único canal político de participação” (Prado, 1986: 26). A adesão ao partido como resposta ao desejo de alguns grupos de ampliar sua participação política também aparece na avaliação de Maria Cecília Forjaz. A autora afirma que, apesar da liderança do Partido Democrático estar nas mãos de “elementos da oligarquia”, o partido teria vindo “atender às necessidades de mobilização política de camadas sociais mais amplas”. Afirmativa endossada pela “enxurrada de adesões, recrutadas em diversos grupos sociais” (1978: 39).

No que se refere à questão operária, o partido teria assumido, como agremiação oposicionista “organizada e legal”, posição em “defesa do direito de sobrevivência da oposição e da luta preventiva contra possíveis arbitrariedades do Poder Executivo”. Ponto de vista bem distante das lutas e reivindicações operárias. Na verdade, os democráticos reconheceriam o direito à manifestação operária, desde que mantida “dentro dos limites da lei”, para a preservação da

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“ordem social”. Assim, a questão social apareceria “apenas como pano de fundo do problema central, o da liberdade de pensamento e expressão. Não despontavam [os democráticos] como defensores da classe operária, e, sim, como defensores de alguns princípios liberais burgueses” (Prado, 1986: 168).

Até aqui, foram indicadas algumas idéias que compõem as propostas apresentadas pelos intelectuais que estudei. O que pensavam acerca de liberalismo, democracia, revolução, economia, “questão social”, imigração, saúde pública e educação foi aprofundado em meu trabalho. Essas idéias permitem vislumbrar um projeto nacional do qual algumas propostas são expostas a seguir.

As idéias Mantendo sua ligação visceral com o liberalismo, os nacionalistas paulistas

esforçaram-se em incorporar novos grupos sociais que pressionavam, cada vez com maior intensidade, a estrutura de poder implementada com a instalação da República e que garantia seu principal objetivo: a hegemonia política paulista. Todavia, sua expectativa diante das mudanças que se mostravam necessárias era essencialmente marcada pelo desejo de mantê-las sob um controle rigoroso, além de imaginá-las bastante restritas. Nesse sentido, um caráter conservador e pacifista foi, por diversas vezes, defendido e, em muitos momentos, atribuído à população paulista em geral. Além desse aspecto, predominava a crença na necessária condução do processo de mudança por uma elite “ilustrada”, ciente dos melhores caminhos a serem trilhados pelo país e garantidora da liberdade, da ordem e do progresso.

A sociedade, para esses liberais, dividia-se entre os que possuíssem o direito de participação política (os proprietários e os “ilustrados”) e os demais indivíduos, que somente poderiam ter acesso ao exercício pleno da cidadania depois de conquistados alguns atributos imprescindíveis: educação ou propriedade. Diante dessa perspectiva, esses intelectuais admitiam e defendiam a concorrência entre os primeiros e viam os segundos pelas lentes de uma concepção orgânica que garantisse a ordem e a harmonia. Gradual e pacificamente, os contornos do grupo de cidadãos habilitados à participação política se ampliariam.

Evolucionistas, reformistas e pacifistas que tiveram, como conseqüência, grandes dificuldades em aproximar-se dos grupos que defendiam uma solução armada para os embates políticos do período. A aproximação foi inevitável, mas o desenrolar dos acontecimentos explicitou o quanto de retórica existia nos discursos que, elaborados já no final da década de 1920, viram-se pressionados a defender a via revolucionária para não se distanciarem dos grupos que tencionavam incorporar ou aos quais eram impelidos a se juntarem.

Mas, no período anterior ao final dos anos 20, sua atuação foi no sentido de defender meios reformistas cujo objetivo era a inclusão harmônica de parcelas da população. Assim, se, por um lado, os nacionalistas liberais paulistas defenderam a moralização das práticas políticas e adequações na economia, por outro, bateram-se por meios que possibilitassem conquistar novos apoios. A integração que se esforçavam em alcançar foi buscada através da difícil tarefa de

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incorporar à comunidade nacional que desenhavam um povo que trazia uma pesada carga determinista, herdada do século anterior. Em seu auxílio, recorreram à educação, ao saneamento e à eugenia. Três instrumentos que juntos permitiriam reabilitar o povo brasileiro.

Todavia, ainda uma vez, se explicitaram as características que esses intelectuais traziam tão arraigadas. Além de conservadores, evolucionistas e elitistas, os nacionalistas liberais paulistas eram indisfarçavelmente racistas e autoritários. Todas essas características, é importante frisar, não foram exclusivas deste grupo. Ao contrário, marcaram, em grande medida, diversos segmentos da intelectualidade brasileira envolvidos no desafio de restaurar o Estado e a nação. A diferença principal foi seu acentuado caráter liberal.

As soluções apresentadas para viabilizar uma mudança que não deveria ameaçar o controle que detinham expuseram sua grande dificuldade em, efetivamente, incluir novos grupos nos domínios da participação política. O forte organicismo não deixa dúvidas sobre sua preocupação no que se refere à conservação da ordem social. É com base nessa observação que se entende mais facilmente a posição de concordância assumida por esses liberais em relação às medidas centralizadoras e antiliberais adotadas ao longo dos anos 1930: acima dos princípios liberais, a manutenção da ordem social.

No campo educacional, a defesa do ensino primário, a preocupação com o espraiamento da educação cívica e política, a inquietação com as ameaças representadas pelos imigrantes, a atenção redobrada com o fim do analfabetismo, além do cuidado nunca menosprezado com os jovens em formação nas escolas superiores. Os objetivos esperados da educação foram sempre muito claros: moldar, homogeneizar, disciplinar, normalizar, hierarquizar a população de acordo com as expectativas que tinham para o projeto nacional que desejavam implementar. Assim, se a simples alfabetização era um importante apoio político ao garantir um maior eleitorado, uma educação para além desse interesse mais imediato permitiria uma formação mais ampla da população ao incorporar hábitos higiênicos e valores cívicos.

Em auxílio dessa tarefa de (con)formação do povo brasileiro, lançou-se mão também do saneamento e da eugenia. Esses elementos articulados em uma eficiente rede institucional que incluía, além da própria escola, as esferas médicas, filantrópicas, policiais e familiares, permitiam o controle de uma população grande e diversificada. Os anseios de constituição de um “cidadão ordeiro” obtinham ajuda na ação eugênica capaz de disciplinar corpo e mente. Um auxílio ideal para os nacionalistas liberais paulistas. O sanitarismo, que já absorvia a atenção diante de condições tão precárias, unia-se então à eugenia.

O “objectivo do nacionalismo” passaria a ser, como apontou Mário Pinto Serva, o “aperfeiçoamento physico e mental de todos e de cada um”. Todavia, na verdade, os objetivos eram bem maiores. Elaborava-se um projeto nacional que, além das reformas políticas, econômicas, educacionais e sanitárias, tinha o claro objetivo de construir uma identidade nacional cuja preocupação central era difundir a idéia de superioridade e liderança paulistas.

Com essa finalidade, diversos dos elementos essenciais nesse processo

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foram utilizados. A geografia permitiu chamar a atenção para a dimensão e a riqueza nacionais. A história, diante das dificuldades em apresentar análises favoráveis, valeu-se do argumento da juventude do país. A língua unificada, da mesma forma que a integridade territorial, auxiliou no reforço da idéia de coesão nacional e foi fundamental na integração dos imigrantes. O exército modernizado substituiu mercenários por cidadãos, responsáveis pela defesa da pátria.

A perspectiva, no entanto, a partir da qual o discurso dos nacionalistas liberais paulistas foi elaborado, atribuía, à maioria dos elementos envolvidos no projeto nacional que construíam, características definidas com base no modelo paulista. A conquista territorial, por exemplo, era apresentada como resultado da ação dos bandeirantes. Os principais fatos da história nacional transcorreram em território paulista e/ou foram protagonizados por paulistas.

Para esses intelectuais, não haveria como ser diferente. A população distinguia-se dos outros habitantes do país. Mais do que isso, em São Paulo constituiu-se uma raça específica: a “raça paulista”. Raça formada graças ao isolamento que teria permitido seu aprimoramento pela eliminação dos fracos, pelo distanciamento da metrópole e das demais regiões do país. Singular e original, o paulista assumiria características únicas: força, altivez, independência, resistência, insubmissão. Do passado ao presente, essas características lhe possibilitariam a capacidade de entender a civilização moderna e de realizar a grande aspiração de conduzir o país a ela.

O elo fundamental nessa ligação entre passado e presente foi a figura do bandeirante. Ela permitiu redimir o passado colonial e atribuir aos paulistas um importante destaque na história nacional, tributando-lhe a herança do amplo território e, a partir de suas características (características que por analogia eram atribuídas a todos os paulistas de ontem e de hoje, natos ou por opção), a missão de conduzir o país ao seu lugar entre os países civilizados e modernos.

O desafio que se colocava para os nacionalistas liberais paulistas não era pois dos mais fáceis. Essencialmente conservadores, evolucionistas, elitistas e racistas, a tentativa que empreenderam de elaborar um discurso mais inclusivo viu-se, constantemente, limitada por essas características. Assim, por maiores que tenham sido seus esforços na elaboração de uma proposta nacionalista inclusiva, o que produziram foi, na verdade, um exemplar discurso regionalista. Uma nação demasiado paulista para conseguir expressão fora dos limites estaduais.

Seu esforço no sentido de modernizar o exercício da hegemonia paulista foi intenso. Todo o conjunto de discursos produzidos está repleto de novas soluções para ultrapassar os problemas sociais, como comprovam suas propostas educacionais, sanitárias e eugênicas. No entanto, nos momentos em que se viram diante de oportunidades de efetivamente colocar suas idéias à prova, eles recuaram: o medo da mobilização popular era indisfarçável. Na verdade, sua preocupação no que se refere à integração de novos segmentos sociais era muito mais voltada à sua conformação do que à sua conscientização. Seu elitismo permitia algumas concessões à classe média, que deveria assumir um lugar subordinado. As classes populares que se contentassem com suas atitudes paternalistas. Eis os limites do novo modelo de dominação que foram capazes de

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construir. Mesmo porque os interesses que defendiam eram muito restritos e

intrinsecamente ligados aos anseios dos grupos dominantes estaduais, mais especialmente aos do grande capital cafeeiro, e se expressavam na defesa intransigente de sua autonomia. Daí o caráter pouco consistente de seu discurso nacionalista, objetivamente impedido de ampliar sua esfera inclusiva já que não estava em discussão, para eles, a superioridade paulista e, por extensão, sua “natural” capacidade para liderar o país. Assim, a presença de uma tensão sempre latente nos discursos analisados entre regionalismo e nacionalismo: para os intelectuais estudados não era possível conceber uma nação que não fosse construída a partir de seu próprio modelo. Modelo que possuía um símbolo com grande poder de articulação regional: o bandeirante. Internamente, ele integrava, graças às suas características de miscigenação, os paulistas aos imigrantes. No plano nacional, assumia-se a grande responsabilidade por uma das mais fundamentais características do país: sua expressiva dimensão territorial. A tensão era inegável. O símbolo bandeirante expressava uma dupla lealdade: regional e nacional.

Se o que pretendiam era contrapor-se ao PRP, que trazia arraigadas as mesmas características das quais não foram capazes de escapar, os nacionalistas liberais paulistas, no entanto, conseguiram apenas a ele opor-se retoricamente. No momento em que sua pretensa capacidade inclusiva foi posta em xeque, após 1930, o recuo foi rápido e as aparentes diferenças desapareceram na mesma velocidade. Mas de todo seu esforço restou o poder inegável do discurso que, dentro do estado, foi capaz de auxiliar na mobilização da população no momento necessário. Em 1932, a arregimentação popular alcançada não deixa dúvidas sobre a eficácia de seu discurso e de sua ação. Bibliografia: ADDUCI, C. C. (2000). A “pátria paulista”: o separatismo como resposta à crise final do Império brasileiro. São Paulo: Arquivo do Estado/Imprensa Oficial. _______. (2002). Uma nação à paulista. Nacionalismo e regionalismo em São Paulo (1916-1929). Tese de Doutorado. São Paulo: PUC. CAPELATO, M. H. & PRADO, M. L. (1980). O Bravo Matutino (Imprensa e ideologia no jornal O Estado de S. Paulo). São Paulo: Editora Alfa-Ômega. CASALECCHI, J. Ê. (1987). O Partido Republicano Paulista: política e poder (1889-1926). São Paulo: Brasiliense. CORRÊA, A. M. M. (1976). A rebelião de 1924 em São Paulo. São Paulo: Hucitec. DE LUCA, T. R. (1999). A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Fundação Editora da Unesp. FERREIRA, M. de M. (1993). “A reação republicana e a crise política dos anos 20” Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 6, nº 11, p. 9-23. FORJAZ, M. C. S. (1978). Tenentismo e Aliança Liberal (1927-1930). São Paulo: Polis. (Col. Teoria e História). LOVE, J. (1982). A Locomotiva: São Paulo na federação brasileira (1889-1937). Rio de Janeiro: Paz e Terra. (Col. Estudos brasileiros). MARQUES, V. R. B. (1994). A medicalização da raça: médicos, educadores e discurso eugênico. Campinas: Editora da Unicamp (Col. Ciências Médicas). MELO, L. C. de. (1954). Dicionário de autores paulistas. São Paulo: Comissão do IV

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Escravidão, nacionalidade e “mestiços políticos” Celso Noboru Uemori *

Resumo: Este artigo aborda esses temas: a influência da escravidão sobre a

constituição da sociedade brasileira; a abolição e alforria como instrumentos capazes de extirpar os “males de origem” produzidos pelo regime servil; o efeito deste na constituição do que Joaquim Nabuco denominou de “mestiços políticos”, ou seja, a coexistência na mentalidade do brasileiro do autoritarismo do senhor e da submissão do escravo.

Introdução Principalmente depois da cessação do tráfico, na segunda metade do século

XIX, a escravidão foi condenada por vários políticos e intelectuais pelos efeitos maléficos que exercia sobre a economia, a sociedade, a família, os costumes, a população, o território e a nacionalidade. Daí a necessidade de extingui-la, seja através da emancipação gradual, seja através da abolição imediata. Tinham o objetivo de remover o obstáculo maior que entravava a marcha do país rumo ao “progresso” e à “civilização”; desejavam salvar a família das influências negativas dos escravos domésticos; ou, ainda, almejavam a construção de uma nação “una” e “homogênea”. A presença secular da instituição servil no país produziu e deixou como “herança”, segundo alguns autores, a mentalidade conservadora da classe dominante brasileira, a rígida hierarquia social e um traço psicológico do brasileiro: a coexistência do autoritarismo e da submissão no indivíduo.

Neste artigo examino o pensamento de alguns autores que abordaram o tema dos diversos efeitos da escravidão. Enfatizo os autores Joaquim Nabuco e Machado de Assis. Para dar idéia da importância do tema analiso brevemente o que escreveu José Bonifácio sobre o assunto e a peça O demônio familiar (1977-a), do romancista José de Alencar.

Escravidão e nacionalidade em José Bonifácio Na sua bem conhecida Representação (1965), obra publicada em 1825,

José Bonifácio elaborou um projeto que previa a cessação do tráfico de escravos e a gradual extinção da escravidão e na qual expressou o temor que tomava conta da consciência da classe dominante brasileira nos anos que se seguiram à Independência. Proliferaram os panfletos alarmistas alertando sobre o perigo do

* Doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP e membro do NEILS.

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que se convencionou chamar de “haitianismo”, ou seja, o medo de uma revolta de escravos como a que ocorrera em São Domingos – sendo este um elemento fundamental “no processo de construção do Estado no Brasil” (Dias, 1980-1981: 216). Era a época dos manifestos antiliberais e anti-republicanos; em que se desconfiava da democracia e do povo e se sacrificava a liberdade à ordem; período no qual a proposta de um governo centralizado e forte tornava-se hegemônico. É nesse contexto ideológico e político que José Bonifácio expôs a sua preocupação em relação à construção da nação num país marcada pela heterogeneidade física e civil.

Ele se referia à dificuldade de construir uma “nação homogênea” num país com forte presença de negros, mestiços e índios, sobretudo dos dois primeiros. O tráfico e a escravidão introduziam, produziam e reproduziam uma “ameaça interna” ao status quo. A escravidão tiranizava e reduzia os negros à condição de “brutos animais” e “inoculavam toda a sua imoralidade e todos os seus vícios” (Andrada e Silva, 1965: 130). Era ser sábio e prudente impedir a entrada de escravos e extinguir gradualmente a escravidão, pois assim estaria superado o perigo de futuras convulsões políticas.

O demônio familiar de José de Alencar Se José Bonifácio viu com temor os negros brutalizados pela escravidão e

a ameaça que representavam para a jovem nação em formação, José de Alencar - político, romancista, autor de peças teatrais – também tratou do tema em sua peça O demônio familiar, que foi encenada pela primeira vez em 1857. Este tentou mostrar a relação de escravos e senhores no âmbito familiar. Surpreende a presença de um escravo, no caso o menino Pedro, nessa obra, já que os negros estiveram praticamente ausentes nos outros trabalhos do autor. Quando apareciam eram personagens secundários, de pouquíssima relevância para a trama. Compreende-se essa ausência quando se sabe que escravos e escravidão eram termos “proibidos” nos textos oficiais e nas obras literárias durante o Romantismo1. A palavra escravidão não aparece na Constituição de 1824. Recém-emancipada politicamente da metrópole portuguesa viu-se o empenho da geração de Alencar em construir a identidade nacional. A exuberância da natureza e os índios foram os elementos destacados como fatores que pretensamente diferenciavam a ex-colônia de sua antiga metrópole. Os romances históricos e indianistas de Alencar faziam parte do seu esforço de descrever a formação da sociedade brasileira que se constituiu através da miscigenação étnica e cultural entre os índios e o português. Era o desejo de afirmar a autonomia de um “eu nacional” em oposição ao “eu metropolitano”, este identificado como opressor (Aguiar, 1984). Os enlaces entre Peri e Ceci, assim como de Iracema e Martim, 1 No livro de Manual Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de Milícias, escrito em 1852, que foi interpretado por alguns como um romance de costumes, uma “espécie de realismo antecipado”, pois descrevia lugares, cenas e pessoas do Rio de Janeiro no tempo de D. João VI, não aparecem os escravos, camada social importante porque formavam a maior parte da população e do seu trabalho dependia o funcionamento da sociedade. Quando apareciam eram “mero elemento decorativo” (Candido, 1979: 74).

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personagens, respectivamente, dos Romances O Guarani e Iracema representam o momento mítico da emergência do “povo brasileiro”.

Na obra de Alencar a família ocupa um lugar importante, bem como os que querem desagregá-la. Os “aventureiros” e os aimorés querem destruir a família de D. Antônio de Mariz. No romance Senhora, o dinheiro é uma ameaça para a família, pois uma instituição sagrada como é o casamento pode vir a se tornar uma relação de contrato de compra e venda.

Em O demônio familiar o “inimigo” não é um invasor, mas está dentro da família e é escravo. O moleque Pedro não é a personagem típica do escravo fiel e resignado e nem o escravo vingativo e cruel, dois estereótipos da época; nem é o serviçal autômato cumpridor de ordens. Ele é malandro, intrigueiro, alcoviteiro, egoísta, interesseiro, mentiroso que manipula o seu senhor (Eduardo) e as outras personagens brancas. Pedro e Eduardo são duas forças em confronto: “o menino e o homem; o senhor e o escravo; o analfabeto e o doutor...” (Prado, 1974: 51). Os senhores são vítimas da esperteza e da capacidade de intriga de Pedro. Eduardo, cansado das diabruras do moleque, aplica-lhe um castigo: liberta-o. Visava, mediante esse ato, estabelecer a hierarquia e expulsar o demônio familiar; portanto, não é a palmatória que corrigirá Pedro. A alforria tinha dois objetivos: punir e educar. A expulsão salva a família e transforma Pedro de escravo em cidadão. A mudança na ordem jurídica o obrigará a ser responsável pelos seus atos, “dando-lhe o sentido de obrigação moral”2.

A questão que nos interessa diz respeito ao significado dessa peça de Alencar. O que ele tinha em mente ao escrevê-la? Podemos dizer que é uma peça reacionária, pois liberdade está associada a castigo? Seria um manifesto com teor abolicionista? A favor desta tese convergem as opiniões de autores como Raymond S. Sayers (1958) e Décio de Almeida Prado. Para este O demônio familiar é “uma peça sem dúvida abolicionista”, mas com uma observação importante: “vê a questão sobretudo pelo lado do senhor” (Prado, 1974: 48). Alencar condena a escravidão pelo mal que faz à família patriarcal ao introduzir no seu seio o “demônio familiar” – o escravo. Senhores e escravos eram vítimas da escravidão.

Essa postura antiescravista de Alencar causa estranheza se considerarmos que ele, quando era deputado pelo Partido Conservador, opôs-se às medidas emancipacionistas que estavam sendo discutidas no Parlamento e que resultariam na lei de 28 de setembro de 1871. Contudo, o argumento do deputado não contradiz o teor proposto na peça. Ele afirmou que desejava ver extinta a escravidão, mas não mediante uma medida abrupta, pela lei, pois via o perigo da ruptura da ordem e da segurança social. Propôs, então, que a abolição deveria vir paulatinamente, sem solavancos, através da introdução de mudanças nos costumes, “que são a medula da sociedade”, condizente com a “índole pacífica da sociedade” (1977-b: 197). Aliás, lembrou que quinze anos antes escrevera um libelo contra a escravidão; certamente se referia à peça em questão. A alforria

2 A sentença de Eduardo: - “livre sentirás a necessidade do trabalho honesto, e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes” (Alencar, 1977-a: 98).

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promovida por Eduardo não seria a forma de Alencar estar propondo a abolição por meio da mudança dos costumes?

Na obra literária de Alencar existem vários “demônios” ameaçando a família e o caráter nacional brasileiro. O casamento por interesse, a influência estrangeira e a corrupção moral introduzida pelos escravos. Se José Bonifácio viu a necessidade da abolição da escravidão como garantia de uma ordem política estável, Alencar queria salvar a família patriarcal pela alforria.

Os “mestiços políticos” em Joaquim Nabuco3 Descendente pelo paterno de senador do Império e, pelo materno, de

senhores de engenho, Joaquim Nabuco é um autor obrigatório quando o assunto é o abolicionismo. Ainda hoje, jornais e revistas dão destaque ao político – encarnado no público – que lutou em prol do povo e para modernizar o país. Durante quase uma década (1879-1888), foi o intelectual e político que batalhou pela abolição da escravidão e construiu um projeto para o país. Nesse período, envolveu-se em campanhas eleitorais, destacando-se no Parlamento e na imprensa e escreveu, em 1883, o livro O abolicionismo (1988). Neste livro estão as idéias fundamentais sobre o diagnóstico dos “males de origem” da sociedade brasileira, os quais seriam os responsáveis pelo atraso do país frente às nações modernas da Europa e frente aos Estados Unidos. Estuda a história do Brasil, e identifica o “mal de origem” de uma “sociedade fossilizada”: a escravidão. Depois de três séculos, observa Nabuco, a escravidão tornou-se um “estado dentro do estado”. Vinculou esta instituição à corrupção moral, à inibição da inteligência, à deformação moral da família, ao estado corporativo, à grande propriedade (os “feudos agrícolas”) – sinônimo de arbítrio –, à servidão do homem do campo, ao aviltamento da noção de trabalho (associado a castigo e indignidade), ao impedimento da indústria e do comércio, à imigração livre e ao “feudalismo do voto”.

O seu projeto de reforma previa, em primeiro lugar, a extinção da escravidão; essa ruptura institucional suprimiria as barreiras que impediam o progresso e a civilização e, deste modo, tornava-se possível incluir o país na grande comunidade internacional. O fim da escravidão transformaria o escravo e os homens livres e pobres do campo e da cidade (os artífices) em cidadãos. Libertar o homem e, também, libertar a terra - através da “democratização do solo”. O país moderno imaginado por Nabuco pressupunha indústrias, comércio, imigração livre, imprensa livre, liberdade do voto, pequena propriedade, leis que garantissem o direito do trabalhador, utilização racional do solo e educação. O seu projeto articulava-se com o ideal de direito, de justiça e de liberdade.

Joaquim Nabuco se referiu, ainda, às influências da escravidão sobre a nacionalidade e a população. A relação entre escravidão e nação foi um tema que preocupou José Bonifácio, como vimos anteriormente. Nabuco conhecia os textos de Bonifácio e os citava. Em ambos a mesma preocupação com a formação da nacionalidade, em uma sociedade na qual a população compunha-se de índios, 3 Abordei o assunto na minha dissertação de mestrado (Uemori, 2001).

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negros e mestiços. Bonifácio pensava no momento em que o Estado nacional estava se formando nos anos que se seguiram à Independência; Nabuco abordou a questão no contexto dos debates e das lutas pela abolição do trabalho escravo.

Nabuco utiliza o recurso da especulação para abordar a problemática da influência dos negros na população e na nacionalidade. 1) Se o Brasil tivesse sido descoberto no século XVIII; 2) se Portugal tivesse colonizado o Brasil com africanos livres; 3) se leis tivessem proibido o tráfico e Portugal se visse obrigado a colonizar com europeus. A primeira hipótese, não explicada pelo autor, se refere certamente à impossibilidade de implantar o regime da escravidão em um contexto internacional diferente do século XVI. Ele pensou no impacto do poder e dos interesses ingleses, do Iluminismo e da Revolução Francesa (Mello, 2000). Na segunda, ele especula sobre as vantagens e os prejuízos. Sem escravos os portugueses não teriam conseguido expulsar os estrangeiros - os holandeses, por exemplo; mas o Brasil estaria “crescendo sadio, forte e viril como o Canadá e a Austrália”. A terceira, implicaria em uma ocupação territorial mais lenta, porém seria “infinitamente mais vantajosa”. Do exposto, levanto a questão: para o abolicionista, o “problema” é o africano ou o regime servil?

“O mau elemento da população não foi a raça negra, mas essa reduzida ao cativeiro” (1988: 109), afirmou Nabuco; que, sem a escravidão, a mestiçagem ocorreria, porém, ver-se-ia a formação da família e teria sido evitado a “o cruzamento pelo concubinato, pela promiscuidade das senzalas, pelo abuso da força pelo senhor”. Por essas afirmações não resta dúvida de que é a escravidão toda a influência negativa. No entanto, é possível detectar outras opiniões que corroboram a negação dessa afirmação. Observe o que ele escreveu: “O principal efeito da escravidão sobre a nossa população foi, assim, africanizá-la, saturá-la de sangue preto, como o principal efeito de qualquer empresa de imigração da China seria mongolizá-la, saturá-la de sangue amarelo” (1988: 104).

Nabuco reafirma uma certa visão amplamente sancionada no século XIX, de empregar generalizações, por meio das quais as sociedades humanas são divididas segundo a língua, a raça, a cor da pele e as mentalidades, sobressaindo o Homem Branco europeu, considerado superior. Esse esquema prestava-se para definir o binômio “nós” e “eles”. O primeiro elemento incluía-se entre os povos civilizados e cultos; o segundo era o seu antípoda, visto como bárbaro - os colonizados. Nabuco, homem culto, cosmopolita, admirador dos grandes escritores de sua época, embora tenha se esforçado para ver com simpatia os negros, não conseguiu escapar da força cultural do racismo científico de sua época. Ele reconheceu o valor do negro como o elemento que produziu a riqueza do país e, por isso, tinha o direito a ser cidadão como qualquer outra pessoa branca. Mas percebe-se pela citação acima que africanos (também os chineses) eram “problemas”, pois tinham “naturezas” distintas se comparado com o homem branco ocidental4.

4 Ele contestou aqueles que afirmavam que, de acordo com as leis da seleção natural, uma raça inferior não podia absorver a superior. Ele afirmou: “a história do mundo é a prova de que as raças mais inteligentes, mais brilhantes, postas em contato com raças

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Como Sílvio Romero e Nina Rodrigues, Nabuco percebeu a influência africana na religião, na língua, nas maneiras sociais, na educação, na constituição física do povo. Em todos esses elementos ele viu os sinais da “africanização”: o “desenvolvimento mental atrasado”, os “instintos bárbaros”, as “superstições grosseiras”, as doenças, a corrupção do idioma etc. O “abastardamento” dos brancos ocorreu por causa da escravidão; sem esta instituição teria acontecido a elevação dos negros. Esse ponto de vista não significa que tenha negado a inferioridade dos africanos e seus descendentes. Para Nabuco, eles estavam “num período mais atrasado de desenvolvimento”.

Quero agora comentar a análise de Nabuco sobre as influências sociais e políticas da escravidão. Essa questão remete a um tema central da sua época: a mestiçagem. No Brasil, ao contrário dos Estados do Sul, não se viu a segregação racial e a “prevenção de cor”, disse o abolicionista. No seu julgamento, a miscigenação que aqui ocorreu trouxe vantagens, pois evitou as tensões sociais e políticas que teriam se verificado se a sociedade brasileira tivesse se baseado “sobre a diferença de duas raças”. Os negros alforriados, imediatamente, eram considerados cidadãos, “com direitos políticos e grau de elegibilidade”. E mais: “esse sistema de igualdade absoluta abriu, por certo, um melhor futuro à raça negra, do que era o horizonte na América do Norte” (1988: 126).

A comparação com os Estados Unidos não parou por aí. Lá, a escravidão ficou restrita aos Estados do Sul e uma linha imaginária separou brancos e negros; no Brasil ela existiu em todas as partes do país. Lá, se viu a nítida separação das classes sociais, que coincidia com as raças. Aqui, ocorreu, como já foi mencionada, a “extensão ilimitada dos cruzamentos raciais”. O resultado em ambos os países, em conseqüência, foi diverso. Nos estados do Sul, a escravidão afetou apenas as “raças oprimidas”; no Brasil, senhores e escravos foram vítimas.

No raciocínio de Nabuco a escravidão é o único sujeito da história; senhores e escravos não eram mais que objetos; a instituição alienou as duas classes. “A escravidão é que é má e obriga o senhor a sê-lo” (1988:103). Essa característica não era um dado peculiar da escravidão brasileira, pois consistia em uma vocação (aconteceu em qualquer sociedade e época), qual seja a de produzir o mau senhor e o escravo submisso. Senhor e escravo agiam inconscientemente. Aquele, o algoz, o déspota; este, a vítima submissa (“o morto civil”)5.

Por um lado, no Brasil, a escravidão não criou “castas sociais perpétuas” como nos Estados Unidos; por outro, ela produziu um problema explosivo e de efeito duradouro: é o que ele chamou de “mestiços políticos”, ou seja, o fato de na maior parte dos brasileiros coexistirem “duas naturezas opostas: a do senhor de nascimento e a do escravo domesticado” (1988:126). Esse fenômeno foi o resultado da confusão das classes, dos cruzamentos entre escravos e livres e,

inferiores, são muitas vezes vencidas e sucumbem. Não é o grau de civilização que perpetua a raça” (1949, XI: 63). 5 O objetivo de Nabuco, ao assim proceder, era duplo: de um lado, isentar o senhor de todos os abusos que ele, aliás, contundentemente denunciou; de outro, afirmar que o escravo não tinha consciência de sua condição e, por isso, estava inapto a participar das lutas pela abolição como sujeito político.

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sobretudo, graças ao fato de a escravidão ter sido uma instituição “democrática”, pois abriu a todos – brancos ou negros, ingênuos ou libertos, escravos ou estrangeiros – a possibilidade de possuir escravos. O abolicionista estava pensando na cristalização de costumes e práticas que continuariam a existir depois de extinta a instituição, uma vez que se tratava de algo internalizado na psicologia coletiva do cidadão brasileiro, o qual não deixaria de existir mediante um decreto.

A questão que estava por trás do raciocínio de Nabuco, a meu ver, era a seguinte: como construir uma sociedade em bases modernas, no sentido democrático-liberal, que pressupõe o primado da lei – de relações impessoais - para regular o convívio entre os cidadãos e entre estes e as autoridades, se o “caos étnico” transformou o brasileiro num misto de senhor e escravo e o que se vê é “um cidadão arrogante no poder, submisso fora dele, que manda com prepotência e obedece com subserviência, que quer a liberdade para si e nega aos outros” (Carvalho, 2000).

Machado de Assis: escravidão, alforrias e mentalidade senhorial Os efeitos psicológicos e sociais da escravidão sobre a classe dominante e

sobre os escravos, a mentalidade senhorial autoritária e a mentalidade subserviente dos escravos, a alforria e a impossibilidade de transformar o escravo em homem livre são temas que Machado de Assis abordou e que, agora, serão objeto de análise.

Esses assuntos, lembro, mereceram a atenção do abolicionista Joaquim Nabuco, que foi amigo e interlocutor de Machado de Assis. Não seria descabido afirmar que tenha existido uma mútua influência. As origens sociais não poderiam ser mais opostas: o primeiro descendia de senhores de engenho e de senador do Império; o segundo, mulato, descendente de escravo e pobre. Nabuco, segundo seus admiradores, “separou-se da aristocracia”, solidarizou-se com escravos e “fez a abolição”; Machado de Assis fez o caminho inverso: foi “da plebe à aristocracia espiritual” (Graça Aranha, 1942: 11-2).

As comparações não param por aí. Ambos buscavam, influenciados, quem sabe, pelo pensamento socialista, anarquista e comunista6, as significações econômicas e sociais por trás dos fatos, diferenciando dos moralistas, que os vinculavam aos “motivos das ações como pecados capitais” (Faoro, 2001: 360); os dois viram a condição real do trabalhador submetido à exploração pela escravidão e que os hábitos e as práticas engendrados, produzidos e reproduzidos pela escravidão continuariam a exercer sua ação sobre os trabalhadores assalariados. Foi este um dos argumentos que Nabuco usou para repudiar a imigração chinesa7; Machado de Assis, segundo Faoro (2001: 357), teve a mesma percepção. O romancista e o abolicionista diferenciaram o que era visto como natural (“índole 6 Os dois, em algum momento, mencionaram Proudhon; Machado de Assis lembrou o nome de Marx (Faoro, 2001:360); Marco Aurélio Nogueira (1984: 115-6) especulou se Nabuco teria lido O manifesto comunista. Para Paula Beiguelman (1976:174) o pensamento abolicionista “correspondia ao raciocínio socialista”. 7 Outro argumento de Nabuco foi o perigo da “mongolização” da população, como já foi mencionado, em clara manifestação de preconceito racial.

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original”) do que era resultado das relações sociais - isto ficou mais claro na obra de Machado. Enfim, em ambos a mesma noção segundo a qual a instituição servil absorve e comanda os destinos individuais dos membros das duas classes – os senhores e os escravos. Abordarei este último item na obra de Machado de Assis.

A instituição servil, secularmente enraizada na história do país, assentada solidamente na economia e na sociedade, criou uma oligarquia perversa e violenta nas condutas sociais e políticas, que se apossou do público como um bem particular, que via no trabalhador, objeto possuído, uma máquina de produzir e dar lucro. Fechados nos “feudos rurais”, os senhores pairavam sobranceiros sobre a Lei e arredios ao poder do Estado. Machado de Assis e Nabuco concordariam com essa afirmação. Para o segundo, “os fazendeiros, como classe, possuem a terra, o homem e o Parlamento” (1949, XI: 310).

A escravidão criou comportamentos arraigados, produziu valores e relações baseadas na rígida hierarquia entre governantes e governados, entre possuidor e coisa possuída; que ensinou que ser livre significa possuir, sejam coisas, sejam homens; que o homem possuído é um objeto; que a violência é uma prática “natural” nas relações entre senhores e escravos. O sociólogo Machado de Assis avisa que, como lembrou Faoro, a vontade humana e o protesto são impotentes frente à armadura exterior – a ordem social. Acrescento: para o psicólogo as regras, as práticas e as formas de pensamento, criadas e re-criadas no tempo e no convívio social, foram sendo incorporadas no inconsciente coletivo do brasileiro. Acreditar que uma sociedade baseada nos valores liberais (ideal de igualdade, liberdade individual e de consciência) viria com a extinção da escravidão seria dar crédito a uma idéia falsa. A retórica do discurso abolicionista, com todas as belas frases sobre a transfiguração de máquinas de produção e “coisas” em cidadãos não passava, parecia afirmar Machado de Assis, de mascaramento. Essa máscara encobria o essencial: os valores seculares criados pela escravidão cristalizaram-se no inconsciente, sejam dos homens livres, sejam dos escravos, daí a inutilidade das leis e das alforrias.

Essa idéia aparece em dois capítulos do romance Memórias póstumas de Brás Cuba, publicado em 1881 – “O menino é o pai do homem” e “O vergalho”. No primeiro Machado descreve como se forma a mentalidade senhorial.

O romancista narra a relação entre o menino Brás (filho do senhor) e o moleque Prudêncio (escravo). Ficamos sabendo que “nhonhô cresceu sem que lhe fosse colocado qualquer impedimento à sua vontade. Mentiroso, sádico, intrigueiro, o “menino-diabo” cresceu “como crescem as magnólias e os gatos”. Prudêncio, seu “cavalo de todos os dias”, sofria calado, aceitava tudo com resignação e no máximo balbuciava um tímido “ai, nhonhô”, ao que o traquinas “retorquia: - cala a boca, besta”.

Como na peça de José de Alencar, estamos na presença do convívio do escravo doméstico na família patriarcal. Machado de Assis identificou o menino Pedro como o “Fígaro brasileiro” (Prado, 1974: 29). A personagem de Alencar se tornou o moleque arrogante, perturbador, o “demônio familiar” pelo excesso de mimo que recebeu; Prudêncio, por sua vez, comportava-se como Pai Tomás – subserviente e resignado – pela rigidez de sua “educação”. Pedro tinha vontades,

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agia como sujeito; o escravo dominava os senhores. Prudêncio era somente objeto das pancadas de Brás, nunca reagia. Eduardo alforriou Pedro para salvar a família e para educá-lo. Para Alencar, a alforria significava salvar o mundo dos brancos e a reeducação do ex-escravo. Na sua perspectiva, a liberdade tinha um sentido de mudança, de redenção, tanto para os senhores quanto para os dependentes. Para Machado, por outro lado, a alforria não tinha poder de redenção, nem da família, nem da sociedade e nem dos ex-escravos. Vê-se isso no capítulo “O vergalho”.

Machado narra o reencontro, anos depois, de Prudêncio (já alforriado) e Brás Cubas. Numa praça pública Brás assistiu a uma cena que o impressionou. Observou, atônito, o seu antigo “cavalo de todos os dias”, agora homem juridicamente livre, chicoteando um outro negro que adquirira para ser seu escravo. O ex-escravo agia como o senhor. Eduardo esperava redimir Pedro o libertando; a responsabilidade de ser livre mudaria o seu comportamento e ele passaria a se comportar como os brancos, pois teria adquirido a moral e os “bons costumes” e a suposta polidez dos senhores. Para o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas o ex-cativo reproduzirá a educação que tivera; agirá como se espera dos senhores; agora, Prudêncio é livre, logo é senhor. Ele fez aquilo que era permitido a qualquer pessoa – como lembrou Joaquim Nabuco -, ou seja, tornou-se proprietário de escravo. E este, conforme aprendera com o convívio com os brancos, era um objeto, não uma pessoa.

A tirania e o sadismo dos senhores, numa sociedade escravocrata, formam-se na infância, por isso “O Menino é o Pai do Homem”. A respeito, Gilberto Freyre escreveu: “Nascem, criam-se e continuam a viver rodeado de escravos, sem experimentarem a mais ligeira contrariedade, concebendo exaltada opinião de sua superioridade sobre as outras criaturas humanas, e nunca imaginando que possam estar em erro” (1987: 337).

A sociedade patriarcal brasileira formou uma classe dominante autoritária, para quem tudo, coisas e homens, pertence-lhes. Nada pode se contrapor à sua vontade. O sentimento de superioridade o faz dono de tudo que o cerca. Possuir, apropriar-se é a razão de ser dos senhores. Brás Cubas, depois de perder a cadeira de deputado, desabafou: “tudo tinha a aparência de uma conspiração das coisas contra o homem: e, conquanto eu estivesse na minha sala, olhando para a minha chácara, sentado na minha cadeira, ouvindo os meus pássaros, ao pé dos meus livros, alumiado pelo meu sol, não chegava a curvar-me das saudades daquela outra cadeira, que não era minha (Assis, 1982: 159) [grifos no original].

A mentalidade senhorial está, como revela a arte de Machado de Assis, profundamente enraizada na história, resultando de séculos de escravidão, e se transformou num dado cultural hegemônico, do qual os dependentes não podiam escapar. Decretos e leis agem e querem alterar a superfície da realidade; o romancista pensa em uma realidade interior, inconsciente, e por isso mais difícil de mudar. A mentalidade autoritária das oligarquias resistirá às mudanças políticas - como a abolição.

Os membros da oligarquia são, nos textos de Machado de Assis, maquiavelicamente astutos, oportunistas e confiantes de que seu poder permanecerá intocado. Eles captam no ar as idéias de mudanças e se antecipam. É

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o que faz o proprietário Santa Pia, na narração do Conselheiro Aires, personagem do livro Memorial de Aires, publicado em 1908.

O Conselheiro Aires descreve o momento em que Santa Pia resolve libertar os seus escravos. Quer fazê-lo, pois a escravidão está com os dias contados. Mais dia menos dia, virá por decreto, pela ação do Estado. Resolve, assim, antecipar. Aires expõe o motivo de Santa Pia: “o ato que resolve fazer exprime apenas a sinceridade das suas convicções e o seu gênio violento. Ele é capaz de propor a todos os senhores a alforria dos escravos já, e no dia seguinte propor a queda do governo que tentar fazê-lo pela lei” (Assis, 1985: 34).

Em uma crônica de 18888, Machado conta a história de uma alforria. Segue um resumo da crônica: um senhor convida seus amigos para anunciar a alforria do menino Pancrácio. Ele o fez em nome do elevado ideal cristão (a “liberdade era um Dom Deus”). Depois de assistir às lagrimas de Pancrácio e receber os cumprimentos dos amigos, diz o benfeitor a Pancrácio:

- “Tu és livre, podes agora ir para onde queres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens ainda um ordenado, um ordenado que... -” Oh! Meu senhô! Fico.” “Pancrácio aceita tudo. Aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por não me escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que eu lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos” (apud Chaloub, 1990: 96).

Tudo compreendeu o bom Pancrácio, inclusive os pontapés. Candidato a deputado, o senhor tenta convencer a platéia, seus eleitores, de que libertou seu escravo por um princípio nobre: “que os homens puros, grandes e verdadeiros políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre”.

Historicamente a alforria foi uma prerrogativa conferida ao senhor, que tinha o objetivo de produzir dependentes e garantir a fidelidade dos escravos aos senhores; a submissão e a fidelidade eram os únicos meios de obter a liberdade, excetuando as fugas e outras formas de resistência (Chalhoub, 1990:100). A alforria, por um lado, era a recompensa pela dedicação e pela fidelidade; por outro, tinha a força moral de persuadir o ex-escravo a permanecer servindo o patrão. Confiando nisso, quem sabe, Santa Pia afirmou: “- estou certo que poucos deles deixarão a fazenda; a maior parte ficará comigo, ganhando o salário que lhes vou pagar, e alguns até sem nada” (Assis, 1985: 35).

Os fazendeiros estão confiantes na sua capacidade de controlar as “mudanças”. O movimento abolicionismo não abalará o status quo. Santa Pia e o dono de Pancrácio são típicos membros da elite proprietária, apropriando-se de idéias e teorias liberais para garantir a permanência de privilégios seculares, como o direito de propriedade. Nos discursos de ambos, o interesse de classe aparece encoberto por princípios abstratos – o “direito natural” ou o “dom de Deus”. Há em Machado – também em Nabuco – a noção segundo a qual a oligarquia queria

8 A crônica está no livro de Chalhoub (1990: 95-7).

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transformar o regime escravista “numa espécie de modelo permanente de trabalho” (Candido, 1990: 7). Ela continuaria acima da Lei e do Estado; os alforriados permaneceriam cativos de quem os “libertou”.

***

A escravidão foi vista pelos autores analisados como a causa estrutural dos diversos males de origem que recaiu sobre a sociedade brasileira. Bonifácio e José de Alencar quiseram ver a sua extinção para expulsar o “demônio” que inoculava o vício da corrupção moral, seja na nação, seja na família. Em ambos o desejo de salvação: da família patriarcal e da nação. Seguindo o raciocínio do “Patriarca da Independência”, Nabuco identificou o “caos étnico” criado pela escravidão e expôs a sua preocupação quanto à possibilidade de construir uma sociedade democrática, baseado na relação jurídica entre indivíduos iguais e livres, se o brasileiro se acostumou a pensar e agir segundo os valores modelados pela escravidão. Se esses autores viam com certo otimismo o potencial redentor da alforria e da abolição, o mesmo não pode ser atribuído a Machado, para o qual a classe dominante controla e conduz as “mudanças”, utilizando os instrumentos que pretensamente deveriam servir para transformar a natureza na relação entre autoridade e cidadãos e, ainda, fazer do escravo trabalhador assalariado e pessoa livre.

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HERRAMIENTA Revista de debate y

crítica marxista

INTERNACIONAL Cinco polémicas sobre

el pronósticos de El Capital y el balance de

la historia

AMÉRICA LATINA La compleja conyuntura

TEORÍA Habermans y la

complejidad social

El Estado como institución. Una

lectura de las “obras históricas” de Marx

DEBATES La política como

estrategia

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O nacionalismo popular e a crise do populismo no início dos anos 60∗

Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida**

Resumo: A partir da tentativa de examinar as diferentes apropriações sociais, procura-se formular uma periodização que apreenda as continuidades e rupturas do nacionalismo populista brasileiro. O foco incidirá especialmente sobre a última fase, no início dos anos 60, marcada por intensa apropriação do nacional-populismo pelas classes populares, o que contribuiu para aprofundar a crise política cujo desfecho foi o golpe de 1964, marco inicial de 21 anos de ditadura militar.

A imensa maioria das análises sobre o caráter do nacionalismo populista brasileiro apresenta três limitações principais: 1) prende-se demasiadamente à dicotomia conflito-complementaridade; 2) centra-se na relação entre a ideologia nacional e um único setor.da sociedade brasileira, além de apresentá-lo como se fosse dotado de homogeneidade ao longo de todo o período 1930-64; 3) carece de uma concepção teórica mais rigorosa acerca da ideologia nacional e do nacionalismo.

O primeiro problema impediu a apreensão do caráter contraditório do nacionalismo populista brasileiro, contribuindo para que este fosse identificado equivocadamente com o antiimperialismo. O que significava, em última análise, ficar aprisionado no interior das formulações produzidas pela própria ideologia nacionalista, sem perceber, por um lado, os limites precisos dos movimentos que ela expressava, a se articular a lutas pelo desenvolvimento capitalista dependente no Brasil. Por outro lado, também ficavam obscurecidos os confrontos reais (embora limitados) nos quais se envolveram as forças que em cada conjuntura “esgremiam” um discurso nacional-populista.

O segundo problema simplesmente bloqueou o estudo das distintas variantes do nacionalismo populista, assim como das relações entre elas. Como tentarei demonstrar, tal estudo é importante para a apreensão das sucessivas redefinições daquela ideologia. Finalmente, o terceiro problema, além de abrir a porta para empirismos de todos os tipos, impediu que se formasse sequer uma

∗ Texto apresentado no XVII Simpósio Nacional de História da ANPUH (Associação Nacional de História), realizado na USP, de 19 a 23 de julho de 1993 e publicado originalmente na coletânea organizada por Blaj e Monteiro (1996). Publico-o novamente com vistas a incentivar o debate sobre o golpe de Estado que completa 40 anos e a ditadura que a ele se seguiu. **Departamento de Política da PUC-SP. Participante do NEILS.

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linguagem comum capaz de possibilitar o mínimo de interlocução coerente sobre o tema.1

É por esse último ponto que inicio a apresentação de minha proposta de análise. Como se verá, mais do que apresentar algo totalmente original, recorro fartamente às contribuições já apresentadas por outros estudiosos, limitando-me, em larga medida, a um esforço de sistematização.2

Parto da hipótese de que a nação é indissoluvelmente ligada à legitimidade do tipo capitalista de Estado, sendo, no essencial, o resultado de um duplo movimento operado pelo estado burguês: O efeito de isolamento, que contribui para a constituição ideológico-jurídica das individualidades típicas da sociedade capitalista; e o efeito de representação da unidade, ou seja, de aglutinação dos agentes de produção, já constituídos como indivíduos-sujeitos jurídicos em uma comunidade de “cidadãos” (Poulantzas, 1968). Nesse sentido, a nação se constitui, na esfera ideológica, como um locus da igualdade e da comunidade no interior de uma ordem social que se apresenta como composta de individualidades iguais e competitivas.

Por intermédio daquele duplo movimento operado pelo Estado burguês, constitui-se um processo ideológico no qual o Estado, da perspectiva da chamada “sociedade civil”, aparece como o guardião do bem comum e ela (a “sociedade civil”), aparece, do ponto de vista do Estado, como sendo a “nação”. Esta delimita, portanto a esfera em cujo interior se goza do atributo de cidadania, de pertencimento a uma comunidade estatal. Ela é inseparável da encenação da soberania popular pelo Estado capitalista.

Se a nação nos remete à legitimidade do Estado capitalista, isso significa que não necessariamente a ideologia nacional apresenta um conteúdo democrático-burguês. No entanto, a forma que o Estado adquire não deixa de repercutir sobre a configuração nacional. Isso faz com que a nação, esta esfera da igualdade, seja um terreno cambiante, pois sua configuração depende de como as classes em luta definem o âmbito da igualdade entre os “cidadãos”, ou seja, entre os membros da comunidade estatal-nacional.

A nação é relativamente autônoma frente às classes sociais. É autônoma, pois o igualitarismo dos nacionais configura uma esfera de igualdade formal, por oposição à dominação (à “desigualdade”) de classe. E relativamente autônoma porque o caráter dessa igualdade depende das relações de classes na luta político-ideológica.

Ao centrar a questão da igualdade no âmbito do Estado-nação (ou seja, de um Estado burguês real ou desejável), a ideologia nacional termina por absolutizar, de algum modo, a igualdade de todos os cidadãos enquanto membros da comunidade nacional expurgando-a de qualquer caráter antagonístico. Esta 1 É o caso, por exemplo, do debate travado por Francisco Weffort (“Notas sobre a teoria da dependência: teoria de classe ou ideologia nacional?”) e Fernando H. Cardoso (“Teoria da dependência ou análises concretas de situações de dependência?”). O primeiro texto pode ser encontrado na coletânea de ensaios de Weffort (1980); o segundo, na coletânea de Cardoso (1973). 2 Citações mais detalhadas podem ser encontradas em Almeida (1984).

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fetichização da esfera nacional é, portanto, o corolário da fetichização do Estado como uma entidade situada acima das classes. A ideologia nacional opera uma separação estanque entre esse âmbito da igualdade (a nação) e a dominação de classe. É nesse sentido que independentemente da classe ou fração de classe (ou mesmo categoria social) que melhor explicita o discurso (e a prática) nacionalista em determinada conjuntura, a ideologia nacional é estruturalmente burguesa.

Leopoldo Mármora afirma que, do ponto de vista conceitual, o processo de constituição nacional está inseparavelmente articulado ao processo de constituição do Estado moderno. Todavia, Mármora ressalva que, “de uma perspectiva histórico-genética”, não existe razão para que isto venha a ocorrer, pois a nação pode preceder o Estado burguês, o que, no caso europeu, segundo o autor, teria sido a regra (Mármora, 1986: 168). Acredito que, sob a passagem do “teórico” ao “histórico”, oculta-se uma diferença entre duas ordens de relações e que sua indistinção pode levar a análise a impasses de caráter conceitual e historiográfico.

A dificuldade teórica consiste justamente em explicar como poderia a ideologia nacional se reproduzir lentamente sem a estrutura do Estado burguês. As dificuldades de caráter historiográfico poderão ser melhor explicadas por intermédio da distinção teórica entre ideologia nacional e nacionalismo (termos que têm sido considerados intercambiáveis). Sugiro reservar para a primeira o significado de uma estrutura ideológica fundamental do capitalismo, pois ela tem sido, como já foi afirmado, indissoluvelmente ligada à legitimidade do tipo burguês de Estado. Neste sentido, pode-se afirmar que em qualquer formação social capitalista existe, em épocas “fastidiosas”, algum tipo de nacionismo, ou seja, de reprodução da ideologia nacional. Trata-se de um elenco de práticas que expressam o sentimento de que todos os agentes da formação social constituem, em alguma dimensão, uma coletividade singular de indivíduos essencialmente iguais.

O nacionalismo, por sua vez, remete-nos a um processo que, do ponto de vista da ideologia nacional, é mais específico, pois se trata de um determinado tipo de apropriação dessa ideologia. Mais precisamente, um determinado modo de apropriação/questionamento do fetichismo do Estado burguês que, ao testemunhar a crise daquela ideologia, expressa uma “questão” nacional. Aqui o nacionalismo configura aquela apropriação — por uma ou mais classes ou frações de classe — da ideologia nacional, apropriação que, de algum modo, questiona, pela ótica do critério de constituição da comunidade nacional, a forma de legitimidade de um Estado burguês já constituído.

Por outro lado, o nacionalismo apresenta uma amplitude maior no que se refere ao espaço histórico de suas manifestações, pois este transcende o âmbito das formações sociais capitalistas. Isso porque, neste caso, ele expressa o clamor por uma cidadania que só tem condições de se constituir com base no Estado burguês. Mais precisamente, o nacionalismo pode expressar as “dores do parto” (ou mesmo da impossibilidade do parto) da ordem política burguesa, isto é o questionamento da legitimidade de um Estado pré-capitalista, problematização

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esta que toma – diretamente ou não – como referência a legitimidade de um Estado burguês.3

Também neste segundo caso, o nacionalismo expressa uma “questão” nacional, mas distinta da mencionada anteriormente. Lá se tratava de uma questão nacional, nos quadros da ordem política burguesa já constituída; aqui, esta ideologia está em questão justamente porque as condições estruturais não favorecem sua reprodução e o nacionalismo adquire inteligibilidade justa mente como uma das forças ideológicas potenciais dos processos de revolução burguesa (cujos desfechos concretos não são, evidentemente, pré-determinados).

Recuperamos, agora, a afirmação sobre o caráter relativo da autonomia da ideologia nacional, pois ele nos obriga a nos referir aos conteúdos concretos que as diferentes classes em luta lhe imprimem. Mesmo sofrendo a dominação ideológica, os dominados vivem a ideologia dominante de modo particular, chegando, inclusive, em certos períodos a expressar o protesto contra a dominação nos termos da região dominante da ideologia dominante.4

É justamente buscando apreender os movimentos contraditórios por intermédio dos quais a ideologia nacional perpassa as diferentes classes sociais e frações de classe que recorro a noção de variante ideológica. Ela nos remete, ao mesmo tempo, à autonomia relativa da ideologia e ao conteúdo concreto que diferentes classes e frações em luta lhe imprimem. A noção de variante ideológica refere-se às modalidades de realização de conteúdos ideológico dominantes sob a determinação de prática de classe ou fração que incorpora tais conteúdos e dos aparelhos em que tais práticas se materializam.

A noção de variante ideológica talvez nos auxilie a distinguir, por um lado, uma determinada matriz ideológica do nacionalismo populista e, por outro, suas variantes específicas, em cada fase do período 1930-64. Nesse sentido, o nacionalismo de uma fração burguesa, a burguesia industrial, já não apareceria como idêntico ao nacionalismo burguês, no sentido ainda demasiadamente indeterminado ao qual me referi, mas como uma variante dele. Da mesma forma, poderia ser distinguida uma variante burocrática, assim como, em determinadas fases do período, uma variante popular do nacionalismo populista.

O nacionalismo populista no Brasil: uma tentativa de periodização A partir de digressões como as que termino de expor, o trajeto de minha

pesquisa consistiu, essencialmente, nos seguintes passos: 1) detectar a matriz ideológica do nacionalismo populista, ou seja, identificar as linhas de força dessa ideologia que estiveram subjacentes às distintas manifestações do nacionalismo populista ao longo do período; 2) examinar as variantes que se constituíram em cada fase, ou seja, o modo como determinados grupos sociais vivenciaram, em 3 Nesse sentido, parece-me correta a observação de Anthony Smith segundo a qual pode haver nacionalismo “sem nações pré-existentes” (Smith, 1976: 247). 4 A formulação é poulantzana. Inúmeros autores têm examinado esta questão. Algumas contribuições brilhantes podem ser encontradas em Hill (1987); Rudé (1982); Badiou & Balmès (1976). A esse respeito, o texto clássico é de Engels (1975).

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cada fase, essa ideologia; 3) examinar as relações, em cada fase, entre essas variantes, relações que imprimiram modulações específicas à matriz ideológica.

Assinalemos, portanto, os principais aspectos da matriz ideológica do nacionalismo populista. Em primeiro lugar, os setores da burocracia estatal mais comprometidos com uma política que, em última análise, favorecia o processo de industrialização dependente constituiu a mais importante base social da ideologia nacional populista no Brasil. Com os tenentes, na primeira metade dos anos 30, ou com os militares nacionalistas durante a “campanha do petróleo”; com Vargas, na luta pela implantação da grande siderurgia ou com os militares (e civis) que capitanearam o processo de implantação da indústria automobilística, o movimento nacionalista, independentemente de suas sucessivas redefinições, sempre teve suas raízes mais profundas em segmentos da burocracia estatal.

Uma segunda característica relacionava-se estreitamente com a anterior. Não apenas parcelas da burocracia de Estado eram o principal suporte do nacionalismo, como o próprio aparelho de Estado constituía a arena privilegiada dos embates entre as tendências nacionalistas e seus adversários. O aparelho estatal era quase sempre o ponto de partida e, invariavelmente, o ponto de chegada do movimento nacionalista. Já no imediato pós-30, posições chaves do aparelho estatal seriam ocupadas pelos “tenentes”, cujo papel seria importante na conquista ou mesmo na eliminação de órgãos ocupados pelas “oligarquias”. Tal cenário não era exclusivo dos embates entre os membros “profissionais” da burocracia estatal. Nele também se defrontaram empresários encastelados em “órgãos técnicos”, como foi o caso de Simonsen (Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial) em sua célebre polêmica com Eugênio Gudin (Comissão de Planejamento Econômico). Finalmente, no que se refere à incorporação dos setores populares ao movimento nacionalista, pode-se mencionar a importância adquirida pelos sindicatos oficiais na última fase do período populista.

Em terceiro lugar, os movimentos informados pela ideologia nacional- populista visavam sobretudo redefinir a política estatal. Seja no que se refere à necessidade de um protecionismo industrial — uma das mais constantes reivindicações do empresariado manufatureiro ao longo do período — seja em relação aos movimentos diretos do Estado na economia; seja quanto a implementação das “reformas de base” ou à planificação da economia, o nacionalismo populista visava ou reforçar uma política do Estado já em fase de execução ou cobrar do Estado, visto como, tendo abandonado suas “verdadeiras” finalidades, a definição de uma política específica.

Em quarto lugar, no que se refere à relação com o imperialismo, o nacionalismo populista adquiria eficácia política na medida em que lutava para redefinir a posição da formação social brasileira na divisão internacional do trabalho, não visando eliminar, mas redefinir a dependência. Isso se aplica tanto à luta de Vargas para implantar a grande siderurgia como aos protestos dos empresários nativos contra a implantação de indústrias estrangeiras que concorreriam com as já existentes no país. Tanto em um caso como no outro, o nacionalismo não se chocava com uma política sistemática de atração de investimentos estrangeiros diretos em amplos setores da economia brasileira. Isso

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implicaria, ao longo do período, uma postura seletiva frente ao capital estrangeiro, a qual buscava conferir prioridade aos investimentos que contribuíssem efetivamente para o avanço da industrialização capitalista no país.

Finalmente, entre as linhas de força do discurso nacionalista poderiam ser destacadas duas idéias principais. Seja com Simonsen, ao afirmar — recorrendo a Calógeras — que o país jamais seria forte e independente enquanto continuasse como simples produtor de “gêneros coloniais”, seja com os ideólogos do ISEB ao se referirem à “alienação nacional”, seja com os “tenentes” ao bradarem contra a ausência de “organização nacional”, o nacionalismo populista insistia, sob variadas formas, na idéia de uma nação incipiente, incompleta, carente de uma identidade própria e, portanto, frágil. A segunda idéia-força aludida à necessidade de um Estado forte, dotado dos meios adequados para integrar o conjunto dos cidadãos na comunidade nacional e enfrentar, assim, os agentes corrosivos, internos e externos, que ameaçavam a nacionalidade e buscavam impedir sua marcha rumo à plena emancipação.

Como já foi observado, com este grau de indeterminação ainda é impossível dar conta do movimento contraditório da ideologia nacional-populista. Procurarei, então, analisar como, sob o efeito das práticas de certas classes sociais e frações de classe, essa matriz se atualizou de diferentes modos, constituindo, em cada fase do período, uma constelação ideológica específica.

Acredito que, ao se trabalhar com três variantes do nacionalismo populista (a burocrática, a da burguesia industrial e a popular), pode-se chegar a uma classificação (ainda que provisória) de pelo menos quatro fases desse nacionalismo: 1) o nacionalismo militar (1930-45); 2) o nacionalismo trabalhista (1951-4); 3) o nacionalismo triunfante (1956-60); 4) o nacionalismo reformista (1961-4).

O nacionalismo militar correspondeu a um momento de combate ofensivo, nos quadros de um regime mais ou menos abertamente autoritário, aos núcleos de poder dos setores agro-mercantis, por um lado, e, por outro, às organizações independentes do proletariado. Ao mesmo tempo em que se operavam esses rearranjos no aparelho estatal, conseguia-se dar passos significativos no sentido de implementar medidas de caráter econômico importantes para o desenvolvimento do capitalismo industrial. Na arena internacional, a crise do campo imperialista contribuiu para- sucesso desta política. O principal centro de articulação ideológica era constituído pelo núcleo do aparelho repressivo e, em termos de discurso, articulava-se à industrialização principalmente à segurança e a coesão nacionais.

O nacionalismo trabalhista adquire sentido no bojo de uma tentativa — em grande parte frustrada — de compor um amplo leque de forças voltado para a superação dos impasses com os quais se defrontava a chamada “industrialização restrita”, numa fase de acirramento do conflito entre os dois blocos mundiais e de rígido alinhamento do campo imperialista hegemonizado pelos EUA. O “aparelho ideológico” predominante ainda é o exército, embora tentativas tenham sido feitas de ativar o nacionalismo do aparelho sindical, O discurso articulava a industrialização ao aumento do nível de vida e da participação política dos

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trabalhadores. O nacionalismo triunfante foi a articulação em que mais se evidenciou a

variante empresarial do nacionalismo populista. Constitui-se, no plano político-ideológico, o leque de forças que na fase anterior se mostrara inviável. No panorama internacional, a relativa abertura do campo imperialista hegemonizado pelos EUA não deixaria de contribuir para o sucesso da política de aprofundamento do processo de desenvolvimento capitalista dependente no Brasil. Esta foi a fase em que o aparelho repressivo do Estado mais se apresentou como unificado, o que lhe conferiu a aparência de imunidade frente aos conflitos ideológicos. O discurso apresentava a industrialização dependente como condição de emancipação nacional.

A ascensão do nacionalismo popular Sob o impacto da crise do capitalismo dependente no Brasil e da

incorporação da ideologia nacionalista pelo movimento popular em ascensão, o nacionalismo reformista expressou a ruptura do leque de forças que se constituíra na fase anterior. Uma análise dos efeitos, no interior do aparelho estatal brasileiro, da radicalização do movimento popular pode contribuir para revelar os avanços e limites que marcaram a fase final do nacionalismo populista no Brasil. No plano internacional, a fase é marcada pela instabilidade do campo imperialista hegemonizado pelos EUA. (sob o impacto dos movimentos de libertação colonial, movimentos dos “não alinhados” e revolução cubana) e pelo início da divisão no interior do outro bloco.

Dedicarei o restante do texto a uma breve menção ao processo de constituição de uma variante especificamente popular do nacionalismo em questão. Para isso, abordarei alguns aspectos da greve de 5 de julho de 1962, que é considerada a principal greve política do período.

Deflagrada durante a vigência do sistema parlamentarista, o objetivo da greve era pressionar o Congresso para que se aprovasse a constituição de um gabinete favorável às “reformas de base”, num momento em que a primeira resposta de Goulart havia encontrado resistências no legislativo, onde estava praticamente vitoriosa a tentativa de impor ao presidente um ministério chefiado pelo deputado conservador Auro de Moura Andrade.

Três semanas antes, diversas organizações sindicais já haviam ameaçado desencadear a greve. Finalmente esta se iniciou um pouco antes da notícia de que Moura Andrade, pressionado por Goulart, renunciara à pretensão de se tornar primeiro-ministro. A greve se desencadeara contra a vontade do próprio Goulart, que aparentava estar seguro de solucionar a crise ministerial sem a interferência do movimento operário (Maia Neto, 1965: 148).

Frente ao fato consumado, Goulart ainda tentaria reverter a situação, enviando emissários, entre os quais o Gal. Osvino Alves, comandante do 1 Exército, para conseguir, junto ao presidente da CNTI (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria) a suspensão da greve. Este respondeu que estava ao lado de Goulart, “mas não sob seu comando” e que, se a greve não se

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realizasse, os dirigentes sindicais ficariam “desmoralizados” (Erickson, 1979: 151).

A greve durou 24 horas e sua efetividade foi diferente segundo as regiões e os setores da economia. Foi mais ampla na região do Grande Rio, onde, em particular nas cidades de Caxias, São Gonçalo e Austin, os acontecimentos escapariam totalmente ao controle dos dirigentes sindicais e do governo federal. Já a 6 de julho, o jornal O Estado de São Paulo, com um tom nitidamente alarmista, fazia o balanço de 35 mortos, 120 feridos graves, 125 lojas saqueadas, incendiadas ou apedrejadas e 300 feridos leves. Segundo o mesmo jornal, “milhares de pessoas apedrejavam, invadiam e destruíam as lojas (...)” (O Estado de São Paulo, 6/7/62).

No mesmo dia, uma comissão de representantes sindicais foi a Brasília, onde Goulart os convenceu a se dedicarem ao encerramento da greve.

O fato de que alguns setores já estavam paralisados devido a reivindicações salariais contribuiu para a amplitude do movimento. Foi o caso, em particular, dos trabalhadores do setor de transporte, cuja greve, aliás; se prolongaria por vários dias após o 5 de julho. Ainda no dia 11, todo o setor permanecia paralisado no Grande Rio, o sindicato realizava uma assembléia-geral e cerca de 90 piquetes haviam sido organizados desde o amanhecer (Jornal do Brasil, 12/7/62).

Ao longo desses acontecimentos, a comissão de trabalhadores permaneceu em Brasília, em contato com Goulart, e com ele discutiu a designação do novo ministério. Quase todo o contingente da polícia do Estado da Guanabara foi mobilizado para reprimir a greve dos trabalhadores de transportes e várias prisões foram feitas, inclusive a do presidente do sindicato. Em 11 de julho, a Comissão Executiva do Comando Geral da Greve, reunida na sede da CNTI, convocou, em nota oficial, os sindicatos para uma assembléia com o objetivo de “examinar as perseguições pelo governador do Estado [Carlos Lacerda] aos trabalhadores que lutam por suas reivindicações e direitos”, ao mesmo tempo em que, por intermédio da comissão que estava em Brasília, ela exigia providências do governo federal para a libertação dos presos (Jornal do Brasil, 12/7/62).

Isso me leva a tecer algumas considerações sobre as relações entre os sindicatos e os demais ramos do aparelho estatal. A direção da CNTI havia sido eleita com o auxílio de uma formidável pressão do governo Goulart sobre os dirigentes sindicais. Com este objetivo, Goulart havia se deslocado pessoalmente para o Rio de Janeiro, onde, em dezembro de 1961, realizava-se o Congresso da CNTI (Erickson, 1979: 148).

Em um sistema onde os sindicatos eram diretamente subordinados ao Ministério do Trabalho e onde as direções careciam de vínculos mais estreitos com a massa dos trabalhadores, a existência política dos dirigentes sindicais dependia, em grande parte, de suas relações com o governo federal.

Em conseqüência, o movimento sindical tendia a marchar na cúpula e não na base. Salvo em certas categorias onde se dependia da sindicalização para obter o emprego (portuários, marítimos) ou naquelas mais politizadas, a grande maioria dos trabalhadores não se associava aos sindicatos (Tavares, 1970). Além disso a participação dos sindicalizados era muito fraca, só aumentando na época das

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campanhas salariais, que de resto se faziam segundo um calendário estabelecido pelo governo.

Esta dependência dos sindicatos em relação ao Estado, assim como seus frágeis vínculos com a massa dos trabalhadores, também repercutiria sobre o peso extraordinário que as empresas estatais tiveram para o sucesso de um movimento como a greve do 5 de julho. Uma vez que o Ministério do Trabalho não considerasse a greve ilegal, tais empresas não demitiriam seus empregados, nem bloqueariam seus salários. Assim, a greve do 5 de julho, embora obtendo sucesso nas empresas estatais, teve fraquíssima repercussão na maior parte das empresas juridicamente privadas (Tavares, 1970).

Portanto, a dependência do movimento sindical em relação ao Estado não se efetivava apenas ao nível da própria estrutura sindical, mas também se estendia às dimensões mais imediatas da relação capital-trabalho. Em outros termos, mesmo no interior das empresas onde mais se desenvolvia, o movimento sindical estava enredado nas malhas do Estado burguês sob direção populista.

Uma das conseqüências desse embaraçamento era o caráter, por assim dizer, estratégico da posição ocupada pelos diretores das empresas estatais no que se refere ao sucesso da mobilização sindical. Assim, os trabalhadores dessas empresas eram tanto mobilizados como desmobilizados, dependendo da posição política daqueles funcionários do capital. Se considerarmos que a aceitação de um diretor dependia de sua classificação como “nacionalista” segundo os critérios não muito precisos de uma estratégia que, ao considerar o movimento nacionalista como a encarnação da frente única com a burguesia nacional, abandonava a luta pela hegemonia no interior deste movimento, é fácil imaginar os efeitos políticos e ideológicos que essas reviravoltas infligiam à massa dos trabalhadores. Essa dinamização do movimento sindical para a luta no interior do aparelho de Estado, segundo as conveniências de uma hipotética frente única, ao mesmo tempo em que limitava as possibilidades de um sindicalismo mais autônomo e impulsionador de uma participação política mais ampla dos trabalhadores, era apresentada como a expressão de uma relação privilegiada que estes manteriam com o Estado. Evidentemente, tal procedimento não contribuía para a compreensão do papel desempenhado pelo Estado e, em particular, pelas empresas estatais, no aprofundamento das formas da dominação capitalista no Brasil, aliás em estreita ligação com o capital imperialista.

Por outro lado, é inegável que o próprio fato do crescimento do papel do aparelho sindical no interior do Estado exprimia uma ascensão real do movimento popular. Neste sentido, é preciso levar a sério a declaração do presidente da CNTI de que, caso a greve fosse suspensa, os dirigentes sindicais ficariam desmoralizados. Aliás vinte e quatro horas após o seu término, a falsa notícia de uma outra greve paralisaria novamente o Rio de Janeiro e os dirigentes sindicais tiveram de reconhecer que não dispunham de meios para deter o movimento (Erickson, 1979: 152).

Reafirmava-se, portanto, que nenhuma das forças políticas organizadas tinha condições para; uma vez desencadeado o movimento, dirigi-lo. Tratava- se, assim, de uma relação difícil entre um movimento popular que, embora

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ascendente, permanecia difuso e incapaz de encontrar formas políticas, ideológicas organizacionais próprias e, por outro lado, uma direção que, sempre tentando conduzi-lo para a luta no interior do aparelho de Estado, não dispunha de meios para enquadrá-lo segundo seus objetivos. De qualquer forma seria esta direção que colheria (e o futuro mostraria que não por muito tempo) os frutos imediatos dessa ascensão do movimento popular.

A greve do 5 de julho de 1962 exprimiu e aprofundou uma nova dimensão do nacionalismo populista brasileiro: mobilização dos trabalhadores por objetivos claramente políticos; mobilização não convocada por qualquer setor dirigente do aparelho estatal, mas por diretorias sindicais; criação no mês seguinte, do CGT, ou seja, de uma central sindical nacional cuja existência se chocava com a legislação corporativista; certa capacidade de intervenção no sentido de alterar a correlação de forças no interior do regime; difusão, pelos setores organizados do movimento operário e popular, em uma conjuntura de crise do regime, de um programa que, apesar de suas limitações, apresentava às massas populares um instrumento de crítica do conjunto da organização social brasileira.

O nacionalismo reformista, além de contribuir para reforçar a representação de que era possível um desenvolvimento capitalista nacional independente nos quadros do sistema imperialista, também alimentou a ilusão de que o movimento popular, enquadrado pelo aparelho estatal, imprimiria ao nacionalismo uma mudança de rota no sentido de uma profunda transformação social.

A História pode não fornecer lições, mas é pródiga em referências para se pensar (e agir sobre) o presente.

Bibliografia: ALMEIDA, L. F. R. de. (1984). As redefinições do nacionalismo populista no Brasil (1930-1964). Campinas: UNICAMP-IFCH. Dissertação de Mestrado. Mimeo BADIOU, A.& BALMÈS, F. (1976). De L’ldeologie. Paris: Maspero. BLAJ, I. & MONTEIRO, J. M. (1996). Histórias & utopias. Textos apresentados no XVII Simpósio Nacional de História. São Paulo: ANPUH. CARDOSO, F. H. (1973). O modelo político brasileiro e outros ensaios. São Paulo: Difusão Européia do Livro. ENGELS, F. (1975). As guerras camponesas na Alemanha. Lisboa: Presença. ERICKSON, K. P. (1979). Sindicalismo no processo político do Brasil. S Paulo: Brasiliense. HILL, C. (1987). O mundo de ponta-cabeça: idéias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras. JORNAL DO BRASIL, 12/7/62. MAIA NETO, J. (1965). Brasil — guerra quente na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. MÁRMORA, L. (1986). El concepto socialista de nación. México: Pasado y Presente. O ESTADO DE SÃO PAULO, 6/7/62. POULANTZAS, N. (1968). Pouvoir politique et classes sociales. Paris: Maspero. RUDÉ, G. (1982). Ideologia e protesto popular. Rio de Janeiro: Zahar. SMITH, A. (1976). Las teorías del nacionalismo. Barcelona: Península.

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Gênese do clientelismo na organização política brasileira Elsio Lenardão*

“ . . .quando o tempo t raz bor rasca, o me lhor é manter f i rme o l eme e o lhar para t rás , ass im temos cer teza de não perder a d i reção. ” (Vouga, 1998)

Resumo: Este artigo pretende contribuir para a elucidação das condições sócio-

históricas que estimularam o aparecimento do fenômeno do clientelismo político no Brasil. Dá-se atenção especial ao estudo de sua origem durante o período da Colônia, através da organização de observações relevantes de uma série de autores importantes da historiografia brasileira sobre o período. O esforço para a compreensão do clientelismo no Brasil justifica-se em razão de ele ter-se firmado como um atributo recorrente da organização política do país,o que, por sua vez, acarreta conseqüências políticas negativas do ponto de vista dos interesses das classes populares, da gente pobre do Brasil.

Introdução Este artigo pretende passar em revista as condições sócio-históricas que

envolveram a gênese e a consolidação da prática política de tipo clientelista na organização política brasileira. Partiu-se da hipótese de que a origem do clientelismo no Brasil dá-se no período colonial, no qual ele vai firmar aquelas que serão suas principais práticas: o uso do favor como moeda de troca nas relações políticas; a instalação do controle político através do mecanismo da cooptação; a negação às classes populares do seu direito à participação política direta e de maneira autônoma; o uso privado dos recursos públicos e dos aparelhos estatais.

Nota-se, ainda, a presença recorrente do clientelismo no quadro da política brasileira, a despeito da crescente industrialização e urbanização, da emergência de novos movimentos sociais e das alterações legais que vêm ampliando os canais formais de participação da população na gestão do Estado.1

A expressão mais recente das práticas políticas caracterizadas como clientelistas é aquela dada pela ação dos políticos que “baseiam sua carreira e máquina eleitorais na capacidade de atender demandas de benefícios visíveis e * Prof. do Depto. de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina e doutorando em Ciências Sociais pela Unesp. 1 Exemplos de práticas clientelistas podem ser encontrados em jornais e revistas atuais. Ver bibliografia.

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imediatos em troca da garantia de votos” (Dicionário de Ciências sociais, 1987: 277). De fato, a impressão que se tem não é a de que o fenômeno esteja de volta, mas sim que ele nunca deixou de existir. Como aparece recorrentemente, é bem provável que o correto seja considerá-lo como um dos aspectos que compõem a vida política brasileira, um continuum, e não um adendo a ela.

A referência ao clientelismo como mecanismo de poder comum à organização política brasileira não significa dizer que ele simboliza a totalidade desta organização, nem que configura uma prática política típica e exclusivamente brasileira. A prática clientelista foi observada, também, em outras sociedades. (Avelino Filho, 1994).

Neste texto as práticas clientelistas serão tratadas como mecanismos de controle político baseados na troca de favores e barganhas entre sujeitos desiguais e que miram a conquista da cooptação na relação social e política. À medida que tais práticas se consolidam, passam a ser um atributo da organização política brasileira juntamente com outros traços que a caracterizam. Dessa maneira é que a prática do clientelismo ajudará a compor as várias formas de domínio que a vida política brasileira conheceu: o mandonismo, o patrimonialismo, o coronelismo, o populismo. Tendo sido, até mesmo, componente relevante na forma de domínio ditatorial-militar implantada em 1964. Vê-se, portanto, a importância de se aprofundar a compreensão desse fenômeno político para o entendimento da realidade política brasileira atual.

A escolha da revisão de parte da trajetória do clientelismo brasileiro justifica-se se for considerada a instigante reiteração deste atributo na organização política do país. Ele permanece fortalecendo-se pelo uso de práticas conhecidas desde a Colônia, e, ao mesmo tempo, transmuta-se alterando sua fonte de recursos, incorporando novas práticas mais próprias da época contemporânea. De qualquer modo, o clientelismo sobrevive “como peça integrante das engrenagens de um sistema global de exploração e dominação” sobre as classes populares brasileiras, ao qual recorrem, em certas circunstâncias, grupos políticos ligados às classes dominantes (Martins, Carlos Estevam. In: Diniz, 1982: 19). O recurso à compreensão da gênese e consolidação histórica do fenômeno faz-se importante quando a sobrevivência de atributos políticos “antigos, tradicionais” é aceita como uma possibilidade.

É possível tal abordagem, pois encontram-se nas várias “características de base” da formação econômico-social brasileira elementos que permitem compreender as razões do aparecimento e desenvolvimento de algumas das práticas singulares que se consolidaram e sobrevivem na organização política desta formação, entre as quais, a prática do clientelismo como articulador importante da estrutura política. Estas “características de base” seriam especialmente aquelas ligadas à ordem da “imensa reserva de necessidades e carências” que afligem os indivíduos das classes populares desde o período colonial.

A condição social das classes populares no Brasil está historicamente assentada na dimensão da “dependência”: em termos materiais (derivada da condição de pobre, quando não, miserável); em termos políticos (dada a ausência

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de direitos e espaços de representação, o que caracteriza o traço autoritário da organização política e do Estado brasileiro) (Schwarz, 1977: 15-6). O estado de “dependente” sujeita os membros das classes populares, primeiro, ao poderio das elites econômicas latifundiárias e, depois, às elites políticas condutoras dos aparelhos do Estado. De um modo geral, são as situações sociais derivadas das condições de dependência as responsáveis pelo desenvolvimento do clientelismo, cujo elo de sustentação mais elementar é o favor.2

A sobrevivência das práticas sociais do favor e do arbítrio na sociedade brasileira refere-se a traços vinculados à “(...) eternidade das relações sociais de base (...)”. Dado que o “arbítrio e o favor” colocaram-se por muito tempo como um fundo mais vasto sobre o qual apareceram e vicejaram as idéias e práticas políticas no Brasil. E, este “fundo”, este “chão social é de conseqüência para a história da cultura” no Brasil, especialmente da cultura política brasileira (Schwarz, 1977: 21-3).3 Características essenciais das relações sociais básicas __ referimo-nos às relações sociais de produção __ desenvolvidas no período colonial, irão reproduzir-se nos períodos seguintes, e serão as responsáveis pela gestação de uma sociedade onde dominam relações sociais profundamente marcadas pela pessoalização, afetividade, particularismo e clientelismo (Gomes,1990: 17).4

A observação de que houve alguns padrões sociais que teriam influenciado significativamente a organização política brasileira, dando-lhe uma conformação particular mereceu também a atenção de Graham (1997: 27), para quem esses padrões teriam sido “(...) o peso da família e da casa, a tensão latente entre pobres e ricos, um agudo senso de hierarquia social e a prática constante de prestar favores em troca de obediência”.

Supõe-se aqui que a “experiência histórica de vivência dos indivíduos, num dado território, submetido a determinado regime político”, é um “dado relevante” na consideração das variáveis que colaboram na composição do conteúdo da cultura política de um povo. Trata-se de considerar “a cultura política como espaço de fusão entre a tradição e a inovação”. Não se trata de ver o fenômeno da cultura política “como legado histórico, mas como prática viva e atuante. A interação permanente entre valores antigos (que persistem por meio das tradições) e valores novos (que são agregados ao repertório das pessoas...) faz com

2 De acordo com Schwarz (1977), o favor tornou-se um elemento interno e ativo da cultura brasileira, como um verdadeiro “mecanismo de reprodução das relações sociais” (p. 16). Em Martins (1994), o favor é considerado um “mecanismo de poder” responsável por “boa” parte das mediações nas relações sociais e nas práticas políticas no Brasil (p. 20-4). 3 Uma definição de cultura política que é satisfatória aos propósitos desta pesquisa é a dada por Jacobi (1988): “Por cultura política entendemos valores políticos que configuram a base tanto do discurso e das ideologias políticas como da prática política a partir da configuração de valores formados historicamente” [grifo nosso] (p. 49; ver também Gohn,1999:61). 4 Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda, embora ele não se guie pelo fator preponderante das relações sociais de produção, aponta inúmeros argumentos a favor do papel do processo histórico na consolidação de elementos singulares nas relações sociais.

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que a cultura política seja resultado de um processo que a constrói cotidianamente, por meio de um jogo de reciprocidade” (Gohn, 1999:52-57).

Defendendo também a possibilidade desse tipo de abordagem histórico-sociológica, Duarte (1939: 11) observa que, para refletir sobre a organização social e política do Brasil torna-se indispensável começar pelas origens dessa organização, onde teriam sido imprimidas suas primeiras formas e índole. Mesmo que fossem se modificando desde o instante inicial de instalação, certos traços e atributos, aí surgidos, contribuíram definitivamente para o desdobramento daquela organização. Tal forma de abordagem privilegia a singularidade brasileira e as conseqüências destas diferenças na estruturação de uma vida social própria, única. Quer dizer que a sociedade brasileira seria tratada como “uma sociedade estruturalmente peculiar, cuja dinâmica não se explica por processos políticos e históricos dos modelos clássicos” (Martins, 1994: 30).

Portanto, percorrer a história da constituição e desenvolvimento da prática política do tipo clientelista é fazer também o estudo histórico-sociológico “daquilo que permanece, isto é, a história da constituição de mecanismos de poder (...)” (Martins, 1994: 24), especialmente no caso da prática do clientelismo, com o favor como conteúdo principal, que é ainda um forte suporte da legitimidade política no Brasil.

Sustenta-se, neste artigo, que uma experiência longa de acentuada desigualdade social e exclusão política das classes populares foi capaz de firmar na organização política e na cultura política brasileira, mecanismos sociais como o favor e o arbítrio que, dada a freqüência com que aparecem, acabaram por se tornarem marcas distintivas desta organização e desta cultura. Na atualidade, a presença freqüente e historicamente consolidada destes “mecanismos” de relações sociais facilita e estimula a adoção do clientelismo como prática política.

Sendo assim, a reconstrução da trajetória histórica do clientelismo revela, também, o desenvolvimento das particularidades do processo de edificação do Estado brasileiro, em cujo processo teve papel essencial a maneira própria de articulação entre poder privado e poder público. Tal propriedade recebeu certa atenção diluída no texto. Observa-se que não há preocupação com os demais aspectos da história política do Brasil a não ser revelar aqueles que são básicos quanto à presença do clientelismo.

O Clientelismo no Período Colonial O clientelismo na política brasileira tem sua origem no período colonial. É

possível vislumbrá-lo nas relações estabelecidas entre os grandes senhores de engenho e seus colonos livres, seus agregados e os agricultores pobres que rodeavam os latifúndios. É sabido que o poder econômico, ou a ascendência econômica, desses grandes fazendeiros, era enorme. Eram homens de muitas posses. Na primeira parte do período colonial eles eram até mesmo as únicas autoridades de certas regiões (Duarte, 1939: 169). A ausência quase total do Estado na primeira parte do período colonial levava ao reforço do privatismo dos colonizadores, despontando o senhor de engenho como senhor absoluto, não só do poder econômico como também do poder político.

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Na época, o poder econômico/privado e o poder político/público habitavam o mesmo lugar: a Casa Grande. Dessa maneira, o núcleo familiar, representado pela figura do pai/senhor, era o núcleo de poder econômico e de domínio político, onde se centralizava a tomada das principais decisões sociais. Neste tempo, o espaço público e o privado realizavam-se como indistintos. O espaço das relações políticas e públicas dava-se a partir e através do espaço da comunidade doméstica. A Casa Grande era o lugar a partir de onde se organizavam atividades potencialmente de caráter público como as de governo, as de trabalho e até as de religião. Esta última praticava-se nas capelas dos engenhos, subordinando o poder espiritual do clero ao mandonismo senhorial.

Os grandes proprietários de terras acabavam por cumprir também funções públicas de caráter administrativo e até policial (Duarte, 1939: 169). A avantajada concentração de poder político nas mãos dos senhores rurais era possível porque estes se colocavam como

(...) a vanguarda da Coroa na ocupação da terra nova, defendida pelo gentio belicoso e ameaçada por outras potências européias, [portanto] não era muito considerável a margem de conflito entre o poder privado da nobreza territorial e o poder público, encarnado no Rei e em seus regentes. Por isso mesmo, a Metrópole, não somente se resignava ante a prepotência dos colonos, como ainda lhes conferia prerrogativas especiais. Protegia, por exemplo, os grandes fazendeiros contra a concorrência dos pequenos produtores de aguardente, mandando destruir as engenhocas; tornava as câmaras privativas dos proprietários de terras, vedando a eleição de mercadores; resguardava o patrimônio dos senhores de engenho, proibindo que fossem executados por dívidas etc. Por tudo isso, o latifúndio monocultor e escravocrata representava, a essa época, o verdadeiro centro de poder da colônia: poder econômico, social e político (Leal, 1975:67-68).

A privilegiada situação econômica e social do grande fazendeiro, dono das terras e dos engenhos, permitia a construção em volta de si, de sua família, de uma larga esfera de influência, que ia até a jurisdição sobre seus dependentes, permitindo-lhe arbitramento nas variadas rixas e desavenças havidas entre eles. Também lhe competiam extensas funções policiais, muitas vezes exercidas apenas com base em seu prestígio social, mas que não raro podiam tornar-se efetivas através do auxílio de outros empregados, agregados e até de capangagem. Tal ascendência derivava portanto, quase que naturalmente, da sua posição de grande proprietário rural (Leal, 1975: 24).5

Mesmo não sendo tão rico quanto consta na mitologia sobre seu poder, não era pequena a distância entre sua riqueza e a de seus dependentes. A condição dos segundos beirava a “pobreza sem remédios”, completamente sujeitos aos favores que eventualmente recebiam do fazendeiro (Vianna, 1987: 146-7).

A dependência – especialmente material __ era a marca das condições subalternas a que estavam sujeitos os homens livres pobres, especialmente os agregados e pequenos lavradores (Bosi, 1992: 24). “Nem proprietários [de fato] nem proletários, o acesso dos homens livres pobres à vida social e a seus bens

5 Observações idênticas são feitas por Holanda (1988: 48).

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depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande” (Schwarz, 1977: 16). O favor, neste caso, nasce da relação de desigualdade, geradora da dependência. Quanto às condições de dependência nas quais viviam os lavradores pobres no primeiro período da colônia, adianta-se o que disse Antonil (1982: 75): “Dos senhores dependem os lavradores que têm partidos arrendados em terras do mesmo engenho, como os cidadãos dos fidalgos; e quanto os senhores são mais possantes e bem aparelhados de todo o necessário, afáveis e verdadeiros, tanto mais são procurados, ainda dos que não têm a cana cativa, ou por antiga obrigação, ou por preço que para isso receberam” [grifo nosso].

Consolidada como prática nas relações sociais básicas entre aquelas duas classes sociais, a relação de clientela passava a recortar todas as demais atividades sociais: “E assim como o profissional dependia do favor para o exercício de sua profissão, o pequeno proprietário depende dele para a segurança de sua propriedade, e o funcionário para o seu posto” [grifo nosso] (Schwarz, 1977: 16).

Se por um lado a amizade, o mutualismo e o compadrio expressavam o conteúdo de dependência das relações sociais de produção entre os homens livres ricos e pobres, por outro lado, a rede de dependência que amarrava os pequenos lavradores aos latifundiários não deixava de ser também produto da violência dos últimos sobre os primeiros. A luta entre essas duas classes derivava quase sempre da sanha do fazendeiro que buscava permanentemente obstar as culturas

(...) e produções mais ao alcance dos minguados recursos dos modestos lavradores. É assim com a aguardente que se fabricava em simples molinetes ou engenhocas de reduzido custo. Como tal produção desfalcasse os engenhos da cana de que necessitavam, sofreu o fabrico da aguardente sucessivos golpes das autoridades da metrópole e da colônia, até ser definitivamente proibido, sob penas severas, que iam até o confisco dos bens dos transgressores. Caso análogo dá-se com o algodão. Como o seu cultivo desviasse esforços do plantio da cana em prejuízo dos engenhos, foi igualmente proibido. Mais tarde, quando os ricos proprietários o julgaram suficientemente remunerador, conseguem por todos os meios e modos açambarcar toda a produção, obrigando os pequenos lavradores a lhes venderem o seu produto (Prado Jr, 1966: 19).

Na ordem econômica da colônia o ‘sucesso’ econômico estava ligado à capacidade de dispor de braços escravos em grande quantidade, que é o que exigia a produção em larga escala e extensão (Faoro, 1989: 125-6). Portanto, era uma condição possível a poucos. Aos demais restava a aproximação dependente e subordinada, confirmada por Duarte (1939: 158):

O escravo que bastava ao senhor era a condição, ou melhor, o trunfo econômico de que dispunha este para impor o estilo do domínio social e econômico que o fez procurado e obedecido – domínio que constrange e subordina os demais homens livres, que não participam do senhorio, mas que, por sua vez, constitui a única força de proteção e amparo a que o fraco era forçado a recorrer. Além dos filhos e dos escravos, a pequena classe dos livres, sem especialização profissional nem poder econômico autônomo em face da propriedade senhorial, constituía o mundo dos agregados mais ou menos vinculados ao engenho ou à fazenda, lavradores de ‘cana obrigada’, numa incipiente forma de servidão da gleba, rendeiro, meeiros, ‘sitiantes’, vaqueiros de ‘quarto’ ou ‘terço’, formado pelos laços da sujeição econômica e da proteção moral e política, uma

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verdadeira clientela para maior tipificação desse patronato. Essa situação colocava os homens livres pobres numa condição de grande

dependência em relação ao senhor de engenho. Dependiam dele para socorro material em casos de calamidade climática, de doença, etc.; para a compra de um outro produto que produziam, ou para o arrendamento do plantio de cana; e, muitas vezes para a proteção policial contra bandidos e outros posseiros que ameaçassem suas terras (Prado Jr, 1966: 25-6). Tamanho grau de dependência dava ao fazendeiro a oportunidade de ampliar seu poder econômico através da ascendência social e política. Para isso buscava transformar sua capacidade de ‘ajudar’ os dependentes em dívida e favor que estes ficariam lhe devendo.

Trocava seus favores por lealdade, transformando esses colonos, agregados e camponeses pobres, em sua clientela, quer dizer, num grupo de homens vinculados ao senhor, leais a ele, dispostos a servi-lo e a segui-lo, tanto em contendas com outros senhores por disputa de novas terras, na defesa das terras do senhor, como na prestação de inúmeros serviços não remunerados. Do lado dos homens livres pobres, na ausência de um poder público estatal que pudesse socorrê-los na miséria e no abandono, restava-lhes “encostar” em algum grande potentado, esperando ajuda nos piores momentos que não eram poucos, por certo (Martins, 1994: 20-4; Schwarz, 1977: 15-6).

O quadro das posições sociais instaladas a partir da formação dos engenhos no começo da colonização, isto é, início do século XVI, apresentava-se da seguinte forma:

Um engenho era de montagem custosa; somente quem tivesse posses se abalançava a montá-lo no Brasil. Os sesmeiros menos abastados, impossibilitados de montar engenho, tornavam-se tributários dos senhores ricos, dando-lhes a cana para moer e pagando-os com uma parte da safra, formando uma espécie de “clientela” dos grandes proprietários. Em torno destes grandes proprietários e dos colonos simples, seus tributários, havia a turma dos agregados, gente de poucas posses que vinha do Reino e se encostava noutro mais poderoso vivendo de pequenos serviços, ou de um ofício remunerado, ou mesmo admitido a plantar em terras de um senhor [grifo nosso] (Queiroz, 1969: 10).6

Desenvolveram-se entre todos esses indivíduos “laços de serviços mútuos e de amizade”, resultando no compadrio: o senhor do engenho era solicitado para o apadrinhamento dos filhos dos colonos e agregados que, com a sanção religiosa do fato, reforçava ainda mais os compromissos de amizade, dos quais se esperava “auxílio, defesa e lealdade”. Joaquim Nabuco reitera esta interpretação quando considera que havia uma relação de causalidade entre a escravidão e o mando do tipo patronato, com a centralização do poder na pessoa, no chefe. Isto implica que a escravidão não teria sido só uma instituição econômica, mas também uma “instituição política”, onde os que ocupam o poder público e se “(...) alternam no exercício do patronato e na guarda do cofre das graças, distribuem empresas e favores e por isso têm em torno de si, ou às suas ordens e sob seu mando – num

6 Ver também Faoro (1989: 215-6).

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país que a escravidão empobreceu e carcomeu – todos os elementos dependentes e necessitados da população” (Nabuco, 1988: 34) [Grifo nosso].

A presença do favor como mecanismo da relação social, instalado a partir de uma estrutura social fundada na escravidão, tem uma relevância singular, porque ao lado da violência como meio principal de controle social sobre o escravo,7 ele fornece meios particulares de controle social sobre o homem livre pobre. E o principal traço desse mecanismo é circunscrever ao espaço privado, sob controle do “grande senhor”, uma série de atividades, tarefas e ações de caráter público e estatal (oferta de serviços, justiça, de moradia, de apoio material à subsistência, etc.).

Por certo, conforme se viu, que tal situação resultava também da ausência do poder público, ou de sua fraca presença, que acabava por levar os grandes senhores de terras a tornarem-se os únicos em condições de exercer, “extra-oficialmente”, grande número de funções do Estado em relação aos seus dependentes. Assim, o espaço público que poderia colocar-se com suas ações e serviços, como espaço de exercício de direitos e deveres, é substituído pelo espaço privado ocupado pela influência, favores e mando do senhor de terras. Como observa Duarte (1939: 54), “(...) o fenômeno que desejamos retraçar e apontar consiste menos nessa simples ocupação de todo o solo pela propriedade privada, do que na circunstância do proprietário privado guardar e exercitar o governo, precedendo ao poder político, propriamente dito, que só surge e vive, modificado pela concorrência e hostilidade daquele”.

Dessa maneira, risca-se das alternativas sociais a possibilidade da cidadania, só possível na vigência do espaço público efetivamente realizado. A organização política, girando em torno do poderio absoluto privado, impede-a, nega-a. É a cultura política do cliente e não a do cidadão. E, a relação de cliente é uma relação privada, não-pública, ainda que possa ser realizada no espaço público. Portanto, ligada diretamente às desigualdades econômicas e sociais, que se transformam em desigualdades políticas.

No caso, por exemplo, dos direitos dos camponeses que viviam como agregados no período colonial, notava-se que seus direitos políticos, sociais e até individuais, só eram reconhecidos na medida em que eram extensão dos direitos do fazendeiro, enquanto concessão do mesmo. Dessa forma os direitos de foro público inscreviam-se, articulavam-se a partir da esfera privada. Aqui já se instalava a mistura, a confusão entre a questão pública e a questão privada (Martins, 1986: 32-37). A relação social colocada entre o fazendeiro e o agregado

(...) era essencialmente a relação de troca – troca de serviços e produtos por favores, troca direta de coisas desiguais, controlada através de um complicado balanço de favores recebidos. Nesse plano, a natureza das coisas travadas sofria mutações pelo fato de viver e trabalhar autonomamente nas terras de um fazendeiro, um agregado podia retribuir-lhe defendendo o seu direito de se assenhorear de mais terras, de litigiar com fazendeiros vizinhos etc. Com isso, o agregado defendia também o seu direito de estar na terra do fazendeiro. Mas

7 Quanto ao uso da violência para controle social ver Guimarães (1989).

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não podia defender o direito de estar na terra, sem fazer dessa terra propriedade do seu fazendeiro. A sua luta era luta do outro (Martins,1986: 35-6).

No final do século XVI começam a se firmar as vilas, que eram pequenos povoados habitados pelos homens livres pobres (escravos libertos, pequenos artesãos), pelos comerciantes e financistas ligados ao comércio da cana e de escravos. Nas vilas funcionavam a incipiente administração pública e um certo aparato policial. Serão os espaços da administração da Colônia. O principal órgão da administração pública na vila era a câmara municipal (Avellar, 1970: 101). Com elas já se instalou também uma estrutura de poder público que, no entanto, não permitia a inclusão da participação dos setores pobres da população (Silva apud Linhares, 1996: 36-9). Por exemplo, para as câmaras só podiam ser eleitos os “homens bons”, que na verdade eram os proprietários de certas posses (Queiroz, 1969: 12).

Observa-se que já no primeiro espaço público estatal construído no Brasil não havia lugar para a participação dos setores populares. As câmaras irão colocar sua estrutura e autoridade pública a serviço dos potentados rurais e dos interesses comerciais da metrópole. Ou seja, mesmo aparecendo um poder público estatal na Colônia, este não se coloca como espaço de poder que possa ser disputado também pelos pobres. Estes continuarão a, necessariamente, depender dos chefões locais, dos mandões locais. E quando buscam apoio junto às câmaras, recebem o atendimento à sua demanda como favor do chefão que manda na câmara e representa um ou outro potentado local. Duarte (1939: 142) chegou a referir-se às câmaras deste período como “feudos municipais”, quer dizer, elas seriam órgãos, no fundo, comandados pelos onipotentes senhores das Casas-Grandes.

Com as câmaras, aquele poderio privado isolado do grande proprietário de terra reparte-se com o poder público reinol instalado. Mesmo assim, a situação de desamparo continua castigando os homens livres pobres. Aos olhos das classes dominantes e do poder público estatal, por esse período, o “povo” não passava de “ficção”, já que a representação de seus interesses nunca coube nos aparelhos do Estado. As câmaras vão reproduzir o esquema clientelista nascido em torno do engenho, ao distribuir os serviços e a autoridade pública como doação, como concessão dos mandões locais. Os ocupantes daquelas eram seus prepostos. As decisões da justiça, ligada à câmara, estavam na completa subordinação à decisão final do chefão local do momento. Por exemplo, para o homem livre pobre, fazer parte da clientela do chefão podia ser a diferença entre ser bem tratado ou não pela polícia local, caso se envolvesse em alguma contenda (Faoro, 1989: 202; ver por exemplo, o caso citado por Graham, 1997: 39).

Portanto o poder político dos proprietários rurais foi também exercido através das administrações municipais, colocando-se estas como “instrumento do seu poder na ordem política” (Leal, 1975: 66), ou seja, um mecanismo a mais no domínio que essa classe de plantadores exercia sobre as classes populares locais. Este singular sistema de supremacia política constituiu-se o antecedente colonial do coronelismo.

Da Segunda metade do século XVII em diante inicia-se um processo de fortalecimento do poder real, com a “vitalização da autoridade pública e a

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decadência do poder privado” (Leal, 1975: 70)8. Internamente, a consolidação da economia colonial com o incremento do comércio, a descoberta e exploração das minas de ouro e diamante; e como fator externo, a decadência do comércio de Portugal com as Índias, foram elementos fundamentais para a valorização da colônia por parte da metrópole, alterando, daí para a frente, o exercício da autoridade metropolitana (Prado Jr, 1966: 30).

Ao mesmo tempo, a estrutura social brasileira se complexifica, paralelamente ao seu desenvolvimento econômico, que inclui ao lado da atividade agrícola, as ligadas ao comércio e ao crédito, favorecendo o aparecimento e consolidação de uma burguesia comercial e financeira. Seus membros são na maioria reinóis que deterão, por um bom tempo, o monopólio dessas atividades, excluindo os nativos de tal oportunidade, até meados do Império.

Até o final do século XVII é reconhecida a expressiva autonomia política da qual gozavam os senhores rurais na colônia. Porém, daí por diante conhecer-se-á uma série de iniciativas da metrópole visando a diminuição dessa autonomia, já que a Coroa via com grande preocupação o elevado grau de poder daqueles senhores, que com insolência enfrentavam o poder central, expresso nas figuras dos governadores e nas leis régias. Nota-se, porém, que o poder de fato, aquele imediato e real, era dos colonos ricos. “Sempre, na primeira linha, estão os interesses dos grandes proprietários rurais. É destes portanto, e só destes, o poder político da colônia” (Prado Jr, 1966:28). Parece certo que “(...) a formação colonial no Brasil vinculou-se: economicamente, aos interesses dos mercadores de escravos, de açúcar, de ouro; politicamente, ao absolutismo reinol e ao mandonismo rural, que engendrou um estilo de convivência patriarcal e estamental entre os poderosos, escravista ou dependente entre os subalternos” (Bosi, 1992: 25) [Grifo nosso].

Conclusão Fica evidente que em sua origem o clientelismo aparece em função da

especificidade das relações sociais entre os potentados rurais e os homens livres pobres, exatamente pela marca da desigualdade social havida entre os dois grupos de sujeitos. O fato do 'mandão', do potentado, controlar recursos estratégicos para a época, colocava em situação de dependência, em relação a ele, a população pobre, o que lhe permitia, por conseqüência, exercer sobre essa última um domínio pessoal e arbitrário.

Neste contexto é que se firma, nas relações sociais, o mecanismo do favor, que por sua vez, supõe a instalação de uma barganha por obediência e lealdade. A troca, entre o favor e a lealdade, passa a ser atributo essencial nas relações sociais. Mas que, por certo, era uma troca entre desiguais, portanto eram barganhas desiguais. De fato, a barganha servia como uma técnica de dominação que 8 A tese da mudança significativa na forma e conteúdo do mando político a partir de meados do século XVII é compartilhada também por Prado Jr (1966), Faoro (1989) e Avellar (1970), por exemplo. Há autores, no entanto, que vêem mais continuidade do que mudança na vida política que segue a esse período. Entre eles pode-se ver Queiroz (1939) e Leal (1975).

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acabava por permear as relações sociais como um todo. Dominação que interessava aos potentados, que buscavam, através da política de clientela, uma maneira singular de exercício da autoridade, do mando. Bibliografia ANTONIL, A. J. (1982). Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP. AVELINO FILHO, G. (1994). “Clientelismo e política no Brasil. Revisitando velhos problemas”. Novos Estudos. São Paulo, n° 38. AVELLAR, H. de A. (1970). História administrativa e econômica do Brasil. Rio de Janeiro:FENAME. BOSI, A. (1992). Dialética da colonização. São Paulo:Cia. Das Letras. BURSZTYN, M. (1985). O poder dos donos: planejamento e clientelismo no nordeste. Petrópolis/RJ:Vozes. DINIZ, E. (1982) Voto e máquina política: patronagem e clientelismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra. DICIONÁRIO de ciências sociais. (1987). Rio de Janeiro, FGV/MEC. DROULERS, M. (1989). “Clientelismo e emprego público”. Sociedade e Estado. Brasília, vol.4. DUARTE, N. (1939). A ordem privada e a organização política nacional. São Paulo:Cia. Ed. Nacional. FAORO, R. (1989) Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Globo. GAZETA do Povo – PR (1999). 15 de maio. GOMES, A de C. (1990) “A dialética da tradição”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, n 12, vol. 5, fev. GRAHAM, R. (1997). Clientelismo e política no Brasil do séc. XIX. Rio de Janeiro:Ed. UFRJ. GOHN, M. da G. (1999) Educação não formal e cultura política. São Paulo:Cortez. HOLANDA, S. B. de. (1988) Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio. JACOBI, P. R. (1988) “Ação coletiva, atores sociais e cultura política”. Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo:Cortez, n° 28, ano IX. LEAL, V. N. (1975) Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo:Alfa-Ômega. LINHARES, M. Y. (Org.) (1996) História geral do Brasil. 6° ed. Atualizada. Rio de Janeiro:Campus. MARTINS, J. S. (1994). O poder do atraso: ensaios de sociologia da história lenta. São Paulo: Hucitec. NABUCO, J.. (1988) O abolicionismo. Petrópolis:Vozes. O ESTADO de São Paulo (1999). 20 de maio. PANDOLFY, M. L.. (1987). “O trabalhador sertanejo e a ‘sujeição’”. Cadernos de Estudos Sociais. Recife:Ed. Massangana, v. 3, nº 1. PRADO JR., C. (1966). Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Brasiliense. QUEIROZ, M. I. P. de. (1969) O Mandonismo local na vida política brasileira. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros/Universidade de São Paulo. SCHWARZ, R. (1977). Ao Vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades. VIANNA, O. (1987). Populações meridionais do Brasil. Belo Horizonte/Rio de Janeiro:Ed. Itatiaia/UFF. VOUGA, C.; QUIRINO, C. & BRANDÃO, G. (orgs.) (1998). Clássicos do pensamento político. São Paulo:EDUSP.

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DOSSIÊ

De uma América à Outra

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Revista Sem Terra Ano VI – Nº 22 Jan/Fev 2004

POLÍTICA O primeiro ano do

Governo Lula

AGRICULTURA A ideologia dos

transgênicos integra a mesma lógica que mantém a fome no

mundo

MOVIMENTO SOCIAL

O MST comemora em 2004 seus 20 anos de

lutas, desafios e conquistas

Contato: Al. Barão de Limeira, 1232, Campos Elísios – CEP.: 01202-

002 – SP/SP – Fone/Fax: 11 3361 3866

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A cor das nossas lutas Antonio Martins*

Resumo: Que há em comum entre o levante popular que derrubou o presidente da Bolívia e o mundo novo que o Fórum Social de Porto Alegre quer construir?

E se os anos 90, vistos até agora como um período de vitórias do

neoliberalismo e refluxo dos movimentos populares na América Latina, tiverem sido, ao mesmo tempo, o contrário de tudo isso? E se estiverem nessa década as origens de novas batalhas, nas quais mudam os programas, as formas de ação e os próprios personagens – mas apenas para dar mais força e viço à luta pela emancipação social? E se o levante de índios e camponeses na Bolívia, o país mais pobre de um continente empobrecido, for um sinal de que as utopias estão vivas, como quer o Fórum Social Mundial de Porto Alegre?

“Na política, como na natureza, a vida nasce nas pocilgas”, gosta de lembrar Eduardo Galeano. Estão circulando, pela internet, as primeiras análises mais profundas sobre o vendaval boliviano e suas causas. Elas sugerem algo surpreendente. A Bolívia, um dos países cuja sociedade foi mais esgarçada pelo “ajuste estrutural” previsto no Consenso de Washington, foi também o primeiro a completar uma ampla renovação social e política da esquerda. As forças que este processo despertou fizeram a rebelião vitoriosa de La Paz e derrubaram o presidente ultra-liberal Sanchez de Losada.

A história começa em 1985, conta o jornalista boliviano Walter Chávez (2003), num breve ensaio escrito para o Le Monde Diplomatique. Num tempo em que Brasil, Argentina e Uruguai viviam a euforia do fim das ditaduras e o ascenso dos movimentos sociais, a Bolívia era arrastada para as águas turbulentas da privatização e do desmonte do Estado. Nesse ano, o presidente Victor Paz Zamora assina o decreto nº 21.060, cujo objetivo é desmantelar o setor estatal da economia, e abri-la aos produtos e capitais externos. A Corporação Mineira da Bolívia (Comibol), principal empresa pública e guardiã das riquezas minerais, é desmantelada. Nos anos seguinte, mais de 20 mil mineiros perderão seus empregos. Simultaneamente, a entrada de alimentos importados e a autorização para o estabelecimento de grandes propriedades agrícolas capitalizadas no campo arruínam boa parte da agricultura familiar. A fértil planície de Santa Cruz de la Sierra é colonizada por estrangeiros. Até hoje está instalado ali, e é considerado o “rei da soja”, o empresário Olacyr de Moraes, que transferiu seus negócios ao país vizinho, depois de falir no Brasil.

De uma resistência a outra

* Quem sou eu?

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Às levas de trabalhadores que perdem seu sustento restam duas opções. No campo, planta-se cada vez mais coca. Os que perderam suas terras, ou jamais as tiveram, amontoam-se em condições degradantes na periferia das grandes cidades. El Alto, o bairro de La Paz que se transformou em epicentro de levante deste mês, é o retrato vivo desse movimento. Seis em cada dez de seus 800 mil habitantes, vive com menos de um dólar por dia. São, em sua maioria, índios aimarás expulsos.

Concentrado na região de Cochabamba, o plantio de coca enraizou-se tanto que o próprio Paz Zamora evitou reprimi-lo. Via nele uma válvula de escape para a crise social. Gostava de dizer, àquela época, que “a coca não é a cocaína”. Ao final daquele período, passou a ser hostilizado por Washington. Um de seus ministros foi preso nos EUA e ficou quatro anos encarcerado. Ao próprio Zamora, foi negado visto de entrada no país.

A desorganização da atividade mineira e industrial solapou as bases do velho poder proletário. A legendária Confederação Operária Boliviana (COB), protagonista da revolução de 1952 e de levantes poderosos nas décadas seguintes, foi agora um personagem secundário. Outros atores tomaram seu lugar, conta a jornalista e escritora Cácia Cortez (2003) em entrevista ao excelente boletim Expresso Zica, editado pelo jornalista Gilberto Maringoni. Autora de A travessia do Rio dos Pássaros, sobre conflitos de terra na fronteira entre Bolívia e Brasil, (1985); foi também jornalista e educadora voluntária durante um ano em El Alto e La Paz. Teve a sorte de presenciar in loco uma rebelião indígena anterior e muito semelhante à atual: a de fevereiro de 2000, primeira batalha popular em defesa do direito à água neste século.

Duas faces da identidade indígena Cácia explica que, embora tenha golpeado a organização operária, o ajuste

neoliberal acabou despertando um outro sentimento até então reprimido: o da identidade indígena. Os bolivianos já não podem se reconhecer por sua classe social – mas se enxergam, coletivamente, como membros de uma nação espoliada que luta para se afirmar. A nova resistência dos movimentos da América Latina, acredita ela, “começa por se espelhar em si próprio. Quem mira seu espelho, reconhece a si mesmo. Depois, adquire visibilidade nas ruas, rompe o cerco da mídia, rompe a estética das ruas, cria novas formas de luta (...) multiplica em si muitas vozes”.

A nova identidade é menos homogênea. Cácia explica que há, por exemplo, diferenças importantes entre as duas forças principais que promoveram o levante deste mês: o Movimento al Socialismo (MAS), dirigido por Evo Morales Morales, e a Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponses da Bolívia (CSTUCB), cuja liderança principal é Felipe Quispe.

Morales surgiu como grande expressão da luta dos cocaleiros. Em meados dos anos 90, o presidente Hugo Banzer firmou acordos com os EUA para reprimi-los – e o compromisso foi mantido no segundo mandato de Sanchez de Losada. Municiadas e treinadas com apoio da Agência de Combate às Drogas (DEA) norte-americana, forças policiais e militares bolivianas foram responsáveis por

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mais de 250 execuções de camponeses, nos últimos 15 anos. Morales soube dar repercussão nacional a sua resistência. É hábil e articulado. Relaciona-se muito bem com os intelectuais e as classes médias urbanas, tem trânsito entre movimentos sociais do resto do mundo. Candidato à presidência de República em junho de 2002, alcançou 20,9% dos votos – apenas 1,1 ponto percentual a menos que Sanchez de Losada.

Quispe expressa mais profundamente a identidade aimará. Ex-guerrilheiro nos anos 70, passou cinco anos encarcerado num presídio de segurança máxima. Solto, dedicou-se ao trabalho político entre os índios do Atiplano Boliviano. Tornou-se conhecido como El Malku, o título dos príncipes aimarás. É a principal liderança de uma região onde há, hoje, diversas “zonas liberadas”, semelhantes aos “municípios” zapatistas. Nestes territórios não chegam nem a lei, nem a polícia. Os prefeitos são destituídos quando não obedecem à vontade da comunidade. A organização social é vertical, baseada na tradição do líder comunal, que tem ascendência mística sobre sua aldeia. Apoiado na coesão de sua etnia, Quispe, também candidatou-se à Presidência. Obteve 6% dos votos, mas Cácia crê que sua capacidade de mobilização direta do povo é superior à de Morales.. Uma greve de fome iniciada por ele em El Alto, em setembro último, foi o estopim da última rebelião.

Na prática, Fórum Social é aqui A resistência boliviana não se limita aos indígenas. Fazem parte dele a

histórica Confederação Operária (menos influente, mas sempre ativa), grupos de sem-terras, estudantes, professores, ONGs, setores da classe média urbana. Como todos os grandes movimentos transformadores, este novo arco-íris de forças busca inspiração e energia nas revoluções do passado. Cácia relata, por exemplo, que uma das marcas do novo cenário boliviano é “a recuperação de líderes como Tupac Katari, o primeiro a comandar um cerco a La Paz, com mais de 10 mil homens, já em 1781”. A revolução de 1952 é outro emblema, e se valoriza especialmente o que ela tem de mais profundamente nacional e indígena: “a reforma agrária que determinou a propriedade comunal da terra, o ensino das línguas dos povos originários, a educação baseada no multiculturalismo, com princípios construtivistas”.

Os bolivianos espelham-se nas batalhas históricas, mas promovem ao mesmo tempo uma renovação notável de reivindicações e programas. Ao revalorizarem sua identidade nacional, eles tomam consciência do saque a que foram submetidas suas riquezas – e as reivindicam para todos. Eduardo Galeano (2003) escreve, numa crônica para o jornal argentino Pagina 12: “O povo se levantou porque se nega a aceitar que ocorra com o gás o que antes ocorreu com a prata, o salitre, o estanho e tudo. A memória dói e ensina: os recursos naturais não renováveis vão sem dizer adeus, e jamais regressam”...

A nova afirmação da Bolívia só se completará se o saque terminar. Corporações transnacionais – norte-americanas e inglesas, em especial – cobiçam, além do gás, a água. Ao defendê-los, os novos sujeitos sociais vão assumir, na prática, alguns temas que o Fórum Social Mundial toca em teoria.: o direito à

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água; a noção de bens comuns; a luta contra as transnacionais; a proteção da natureza, ameaçada pelos grandes gasodutos por onde escoaria a riqueza nacional.

Água, onde tudo começou A Guerra da Água, em abril de 2000, foi o momento fundador desta nova

etapa. Uma insurreição popular eclodiu quando o presidente Banzer quis entregar à corporação norte-americana Bechtel o controle dos sistemas de abastecimento. Ela durou várias semanas, apesar da repressão policial e militar, que provocou dezenas de mortes. Indígenas ocuparam as cidades em todo o país e, como se fossem novos Tupac Katari, rumaram para La Paz. As marchas receberam a adesão de estudantes, professores, mineiros, taxistas. As estradas encheram-se de barricadas. A ação só terminou com o recuo de Banzer.

Em 2002, os dois principais partidos indígenas elegem 41 deputados. Fiéis a um programa oposto ao do novo presidente, Sanchez de Losada, e respaldados pelo ascenso das lutas populares, eles conquistam uma vitória histórica: os idiomas indígenas (aimará, quéchua, guarani) são transformados em línguas oficiais, ao lado do espanhol. Em fevereiro deste ano, mais um levante. Cocaleiros, trabalhadores, professores, estudantes universitários e policiais rebelados protestam contra um pacote de corte de investimentos públios (ordenado pelo Fundo Monetário Internacional) e novas medidas de repressão aos cultivos de coca (financiadas e apoiadas pelos EUA). A repressão policial mata 33 manifestantes. O movimento não se rende

Losada parte para o confronto. Tem apoio internacional. Em 6 de outubro, o FMI libera mais US$ 15 milhões de dólares de um empréstimo de US$ 5 bilhões. A diretora Anne Kruger pede contrapartidas: “passos corretivos”. Cortar gastos “menos prioritários”. Adotar um novo sistema de tributos, para continuar pagando a dívida. Baixar o “custo” das aposentadorias. Flexibilizar o mercado de trabalho. Entregar as gigantescas reservas de gás boliviano a um consórcio liderado pela corporação petroleira britânica BP, que o distribuirá na Califórnia. O valor é irrisório: ao Estado boliviano caberão apenas 18% do valor declarado na venda do gás. O FMI, porém instiga. A venda “é importante para alcançar o potencial de crescimento boliviano”...

O desafio das alternativas Eclode novo levante – a Guerra do Gás – e a repressão é de novo

sangrenta. Outras dezenas de bolivianos são mortos. O povo não recua. “Eles não têm mais nada a perder”, lembra Cácia Cortez. Em 17 de outubro, a sandice chega ao fim. Após intervenção diplomática do Brasil e da Argentina, Losada renuncia. Seu vice, Carlos Mesa, assume, sob promessa de convocar uma Assembléia Constituinte, realizar um plebiscito sobre a venda do gás e debater uma nova lei de hidrocarbonetos.

Até onde avançará o arco-íris da insurreição boliviana? Cácia não arrisca previsões. Lembra que falta uma alternativa clara e cita o exemplo do levante de 2000, no Equador, que também presenciou. Os indígenas chegaram a tomar o poder por dois dias, mas não o conservaram. “Ouvi de uma liderança que eles

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tinham tudo planejado para tomar a capital e derrubar o presidente. Mas depois, não sabiam o que fazer”, diz ela.

Seja como for, a América Latina respira melhor. Porque outro tirano se foi para Miami. E porque partiu, do país mais espoliado da região, um aceno ao futuro. Sim, uma nação indígena é capaz de lutar pelos bens comuns da humanidade – um dos conceitos mais avançados em debate no Fórum Social Mundial. Não, não estamos condenados ao continuísmo e à mediocridade. Bibliografia: CHÁVEZ, W. (2003). “Une nouvelle gauche à l’offensive”. Le monde diplomatique. Maio. CORTEZ, C. (1985). A travessia do Rio dos Pássaros. Belo Horizonte: Segrac. __________. (2003). “Cácia Cortez em entrevista a Gilberto Maringoni”. Boletim Expresso Zica. GALEANO, E. (2003). “El país que quiere existir”. Página 12. 19 de outubro.

Recherches internationales

Nº 67-68 (1/2 – 2003)

ALGÉRIE: ÉTAT

DES LIEUX

Politique Hassane Zerrouky Sid Ahmed Ghozali

Madeleine Rebérioux

Société

Hassan Remaoun René Arrus Abdenour Keramane

Culture

Benamar Mediene Marie Virolle

Naget Khadda

Correspondance: 64, boulevard Auguste Blanqui, 75013 Paris

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Allende outra vez: no limiar de um novo período histórico∗

Aníbal Quijano**

Resumo: Este artigo resgata o início de um processo histórico contra-revolucionário, tendo como marco a destruição do regime da Unidade Popular de Salvador Allende, no Chile, em 1973. Recupera a omissão do chamado “campo socialista”, bem como a participação efetiva dos Estados Unidos a fim de derrotar processos revolucionários que colocavam em risco a hegemonia norte-americana na América Latina. Essas experiências se nos apresentam hoje como formas de resistência à ofensiva neoliberal.

Nos últimos trinta anos, temos visto ditaduras mais prolongadas e mais

brutais, dentro e fora da América Latina. Por que, então, tantos em todo mundo se prestam a comemorar precisamente o lamentável começo desta particular história? Aquilo que produziu o regime de Salvador Allende não era o mais radical, nem o mais profundo, dos processos de mudanças históricas que teriam lugar nesse mesmo momento na América Latina. Por que, então, suscitou, sobre todos os outros processos de mudança, a esperançosa atenção de todo o mundo? E, uma vez que era um regime estabelecido segundo todas as regras da democracia liberal, legitimado novamente dois anos depois nas eleições municipais, por que os Estados Unidos, cuja hegemonia não era então contestada entre os sócios do mundo capitalista, decidiu, junto com seus sócios chilenos, destruí-lo de maneira sangrenta, alegando que era em defesa da democracia?

Trinta anos nem sempre são suficientes para produzir uma perspectiva eficaz que desvele os sentidos históricos dos processos e dos sucessos ocorridos no seu curso. Fechado este último, no entanto, agora não é difícil advertir que estas não são três décadas qualquer, mas o tempo de um período histórico específico cuja singular importância apenas começamos a entrever, porque as implicações das mudanças históricas que produziu apenas estão começando a soltar-se, inclusive um modo diferente de produzir nosso conhecimento da história. Tendo em vista que não disporei aqui do espaço necessário para apresentar e discutir de modo sistemático as respectivas questões, me restringirei a assinalar e abrir aquelas que podem ser consideradas decisivas.

Crise e globalização da contra-revolução

∗Tradução de Ramon Casas Vilarino, doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP e membro do NEILS. Uma versão resumida deste artigo foi publicada em Il Manifesto, 11 de setembro de 2003, Roma, Itália. **Sociólogo do CEIS – Centro de Investigaciones Sociales, Lima, Peru.

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Aníbal Quijano 121

Este período histórico se abriu com a mais profunda e duradoura das crises do atual padrão de poder mundialmente dominante, crise esta que ainda não terminou. E se desenvolveu, até aqui, como um vitorioso processo contra-revolucionário. Esta última dimensão do processo não consiste somente, e talvez nem tanto, na derrota e na desintegração do “campo socialista” como rival principal do imperialismo, e, junto com ele, das então minoritárias correntes e organizações antagônicas ao capitalismo. Consiste também, e antes de tudo, na aceleração e no aprofundamento abruptos das tendências centrais deste padrão de poder, a partir daquelas derrotas de seus rivais e antagonistas. Isso não podia deixar de implicar na rápida intensificação da dominação política imperialista e da exploração capitalista do trabalho em escala mundial. Em outras palavras, este processo produziu as derrotas social e política extremas dos dominados e explorados do mundo. Trata-se, por isso, de um processo mundial de contra-revolução do imperialismo capitalista. Tal é o caráter básico do que a imprensa capitalista chama de “globalização”. E o Golpe de Pinochet, o 11 de setembro de 1973, que levou à morte de Salvador Allende e à destruição do regime da Unidade Popular no Chile, foi o evento maior com o qual se iniciou este específico período histórico, e, em particular, sua dimensão contra-revolucionária1.

O contexto histórico que produziu a crise O que a imprensa estrangeira batizou como “stagflation”, a inusitada

combinação de estancamento produtivo com inflação, inédita na história capitalista, estourou nesse mesmo ano de 1973, quase ao mesmo tempo em que se formava a OPEP e pouco depois do golpe de Pinochet.

A associação histórica entre esses acontecimentos não é difícil de ser estabelecida. A OPEP era uma marca dramática, pela importância do petróleo para o capitalismo, pela intensificação da luta mundial pela desconcentração do controle do poder, recomeçada ao fim da Segunda Guerra Mundial como um processo anticolonial e antiimperialista na Ásia, África e América Latina, e que em alguns poucos casos havia avançado para uma redistribuição real do controle (China, Cuba, ou Bolívia, esta última derrotada muito cedo entre 1952 e 1964).

Na América Latina, em particular, ambas dimensões desse conflito apareceram associadas. Os “nacionalistas” e os “socialistas” davam-se as mãos, pois tinham um interesse comum: o controle do Estado. De um lado, as lutas guerrilheiras que depois de Cuba se estenderam à Colômbia, Venezuela, Argentina, Uruguai, Bolívia, buscavam uma redistribuição do controle do poder, e os próprios trabalhadores, de maneira muito mais profunda e radical no caso da Assembléia Popular da Bolívia, vítima de um Golpe Militar um ano antes que o de Pinochet. De outro lado, as correntes “modernizadoras” e “desenvolvimentistas” 1 Não se deve esquecer as implicações estratégicas do golpe de Suharto na Indonésia, em 1968, nem o do Brasil, em 1964. Tampouco o da Bolívia, em 1972, antecedente direto do Golpe de Pinochet no Chile, em 1973. Porém, não foi com eles que começaram a crise e a neoliberalização mundiais do capitalismo, com todas as suas implicações no agravamento e na aceleração da crise do “socialismo realmente existente”.

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das camadas médias e de algumas frações burguesas, lutavam também por alguma desconcentração do controle de poder, como nos casos da Democracia Cristã, sobretudo no Chile e Venezuela, e do militarismo reformista e nacionalista, como nos casos de Velasco de Alvarado, Rodríguez Lara, Juan José Torres, Torrijos, no Peru, Equador, Bolívia, Panamá, todos empenhados em evitar processos revolucionários.

Simultaneamente, os trabalhadores explorados de todo o mundo, e em particular no “centro” do universo capitalista, não só continuavam como estendiam e aprofundavam suas próprias lutas negociando os limites da exploração, e, antes de tudo, aumentos salariais e melhores condições de trabalho. Desse modo, a disputa mundial se desenvolvia em dois canais e em dois níveis simultâneos. De um lado, entre os grupos burgueses do mundo, pela desconcentração ou a redistribuição do controle do capital e da mais-valia entre os grupos burgueses de acesso desigual ao controle de poder capitalista. De outro, as lutas dos trabalhadores de todo o mundo punham em questão a distribuição da mais-valia entre a burguesia e os explorados, em escala mundial, porém especialmente no “centro” do capitalismo.

O crescente agravamento desses dois tipos e níveis de conflito social e político mundial – que já havia começado a gerar seus efeitos desde 1969 com a decisão norte-americana de anular os acordos de Breton Woods sobre a relação dólar-ouro e com a crescente extensão da inflação mundial, que chegava já a dois dígitos nos Estados Unidos pela primeira vez em sua história –, desembocou em fins de 1973 na brusca queda mundial da taxa de lucro, e, com ela, no também abrupto estancamento da produção, enquanto continuava crescendo a inflação.

A magnitude e a profundidade da crise na estrutura de acumulação capitalista, de um lado derrubou os grupos capitalistas que ocupavam o “centro” do controle mundial do padrão de poder, isto é, os principais grupos imperialistas. De outro lado, porém, sem dúvida gerou nos seus rivais do “socialismo real” a ilusão de avançar na disputa pela hegemonia mundial, e entre as correntes e organizações anticapitalistas a ilusão de que, enfim, estava perto a revolução socialista como efetiva liberação do poder. Para essas correntes, a liberação do trabalho era, certamente, a questão predominante, seguida da “liberação nacional”. Porém, se recordamos bem, os movimentos de liberação feminina, anti-racistas, anti-homofóbicos, de jovens, estavam em pleno desenvolvimento. E o próprio padrão eurocêntrico de produção e de controle do conhecimento estava já em questão. Quando estourou a “stagflation”, todo esse contexto entrou em combustão. Era, desse modo, um momento de genuína crise de poder, em todas as suas dimensões. Por que esta crise se desenvolveu e, ainda que parcial e temporária, se resolveu como uma vitoriosa contra-revolução capitalista global?

Pinochet e o começo da contra-revolução Pode-se entender agora que a decisão dos Estados Unidos, então sob a

condução de Nixon e Kissinger, primeiro de impedir a eleição de Allende, e depois de destruir a qualquer preço o regime da Unidade Popular que ele presidia, não foi somente, nem principalmente, o resultado da pressão das empresas

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estadounidenses afetadas pela política de nacionalizações, nem das disputas hegemônicas com a então União Soviética na chamada “Guerra Fria”, ainda que, sem dúvida, esses elementos não deixaram de estar em jogo. Após as derrotas no Vietnã e na Argélia, além das ocorridas na China e na Coréia do Norte, para a coalizão imperialista e seu Estado hegemônico a revolta nacionalista e socialista latino-americana, no momento mesmo em que apareciam explicitamente dificuldades crescentes na estrutura mundial de acumulação, não podia ser tolerada. E, sobretudo, um regime como o de Allende, que era nada menos que o resultado do desenvolvimento de um movimento político-social que havia conseguido, depois de várias tentativas, usar com êxito as próprias regras de jogo da democracia liberal para estabelecer o controle dos representantes políticos dos trabalhadores e das camadas médias associadas sobre o Estado, e que, por isso, era mundialmente acolhido pelos trabalhadores e socialistas de todo o mundo como uma genuína alternativa ao “socialismo real”. O gênio malvado de Kissinger, na vigia principal da fortaleza imperialista, não podia não perceber os sinais da crise mundial que chegava, quando muitos dos observadores do mundo já estavam discutindo sobre a mesma, nem os riscos da proposta de Allende para o poder capitalista mundial e em primeiro lugar para a hegemonia dos Estados Unidos2.

Outra questão histórica deve ser aqui aberta novamente, ainda que não seja esta a ocasião para uma indagação mais precisa. Os Estados Unidos é um caso excepcional na história, pois o seu desenvolvimento nacional está estruturalmente associado à sua constituição, primeiro, como sede imperial regional, e, depois, à sua consolidação como sede imperial mundial. As etapas são, em geral, conhecidas. A conquista das terras dos “índios” e o virtual extermínio deles; a imposição de seu domínio no Caribe; a conquista da metade norte do México; a guerra com o moribundo império colonial espanhol e a conquista de Cuba, Porto Rico, Filipinas e Guam, que impulsionou os Estados Unidos à categoria de poder imperial mundial; sua intervenção política no final da Primeira Guerra Mundial, já como protagonista, impondo a doutrina Wilson como a ideologia principal do período pós-guerra; sua intervenção militar na Segunda Guerra Mundial e sua definitiva entronização como o Estado hegemônico do imperialismo capitalista frente ao “campo socialista”, e, finalmente, com a desintegração deste último e, depois da Guerra do golfo, como o Estado hegemônico do Bloco Imperial global3.

O que se depreende disso tudo, é que nenhuma explicação da decisão do Estado norte-americano de destruir a qualquer custo o regime de Allende, e da Unidade Popular, pode ser completa sem inseri-la nesse padrão histórico específico da história nacional, imperial e hegemônica dos Estados Unidos. Porque, nessa perspectiva, para o Estado e a burguesia ianques, Allende e a Unidade Popular não representavam somente os específicos problemas da guerra fria ou os riscos de um processo que conquistava simpatia pelo mundo a fora por

2 Hoje, há informações suficientes sobre o debate dentro do Estado norte-americano acerca dessas questões, assim como sobre as principais decisões e ações dirigidas por Nixon-Kissinger contra o regime de Allende e da Unidade Popular. Para as demais regiões, veja-se, por exemplo, Ambrose (1985). Para o caso chileno, Kornbluh (2003a; 2003b) 3 Sobre este conceito, ver Quijano (2000).

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trilhar um caminho socialista não-stalinista. Tais elementos, por ocorrerem precisamente nesse contexto, punham em questão, de forma dramática, um dos elementos centrais, uma das condições decisivas do padrão histórico mesmo do desenvolvimento nacional-imperial dos Estados Unidos: o domínio imperialista sobre a América Latina.

Historicamente, o Estado ianque reagiu sempre com violência, direta e indireta, em todos os casos em que pudesse estar em jogo sua hegemonia imperial na América Latina. Não se poderia explicar de outro modo a recorrente intervenção dos Estados Unidos, já desde os fins do século XVIII no Caribe e na América Central, especialmente na Nicarágua, e em toda a América Latina desde os primeiros anos do século XX, começando com a sua intervenção na derrota da revolução latino-americana entre 1925-19354. Certamente, o novo caráter revolucionário dos processos da Bolívia ou do Chile, no início da década de 1970, no contexto da disputa hegemônica e da crise mundial que se iniciava, exacerbou essa tendência constitutiva da história das relações entre o Estado hegemônico do capitalismo imperialista e a América Latina. O Estado norte-americano não retrocedeu em nada para manter e ampliar essa dominação. Inclusive, se foi se convertendo, como afirma Chomsky, no principal Estado terrorista do mundo depois da Segunda Guerra Mundial, essa trajetória foi exercida e desenvolvida, primeiramente, na América Latina.

Derrota e desintegração do socialismo do período No entanto, nada disso é suficiente para explicar a derrota dos processos

mais importantes para os trabalhadores latino-americanos nesse período: a Assembléia Popular Boliviana, em 1972, e a Unidade Popular, presidida por Allende, em 1973. Aqui, só anotarei duas questões. Primeiro, é que ambos, cada qual a seu modo, foram processos que propunham opções distintas ao despotismo burocrático batizado pelo stalinismo como “socialismo real” e que essa foi, precisamente, a razão da atenção esperançosa dos socialistas de todo o mundo. Essa é uma indicação do descrédito do stalinismo, sobretudo depois da derrota da onda revolucionária de 1968 em todo o mundo e, especialmente, após a invasão russa à Tchecoslováquia, em 1969, para derrotar os objetivos de democracia do regime de Dubcek. É indicativo da profunda e decisiva crise do pensamento socialista dominado pela perspectiva eurocêntrica de conhecimento. E, talvez, da política do que então se admitia como a versão dominante do socialismo, particularmente no denominado “campo socialista”, e que se resolveria precisamente durante esse período com a desintegração desse “campo”. Este último já estava começando o curso que o levaria à sua rápida desintegração na década seguinte, culminando com a súbita implosão da União Soviética. Tal implosão mostrou, além disso, que seu Estado e seu Partido de Estado estavam já sob a direção daqueles que, depois, apareceram como agentes da neoliberalização capitalista em todos seus países.

4 Este foi um dos resultados de um estudo feito entre 1986-1988, intitulado Estados Unidos, Reagan y Centro América. Lima, 1987-1988. Não foi publicado, porém circulou amplamente.

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Nesta perspectiva, talvez não seja difícil entender porque a União Soviética não esteve interessada em apoiar nenhum desses processos. Não seria ocioso recordar que uma semana antes do Golpe de Banzer, na Bolívia, quando virtualmente todos ali sabiam que o golpe estava próximo, os embaixadores dos Estados Unidos, este, acusado de ser um homem da CIA e um dos organizadores do golpe, e o da URSS, saíram do país, no mesmo dia, de férias. Também, pouco depois a URSS outorgou a Banzer um crédito que havia negado ao governo de Torres. O governo de Allende também não conseguiu ajuda financeira ou técnica do “campo socialista”.

Nenhum daqueles processos, nem o da Bolívia, nem o do Chile, puderam contar com a ajuda do “campo socialista”, exatamente quando o “campo imperialista” voltava todo seu poder material e político à destruição e derrota da revolução socialista latino-americana. Os bolivianos resistiram abertamente com as armas nas mãos e foram vencidos. Os chilenos, não obstante a amplitude e a profundidade crescentes da distribuição de acesso ao controle do trabalho, dos recursos e dos produtos em prol dos trabalhadores, impelissem a um enfrentamento violento dos dominadores, recusaram-se a defender esse processo. O Allendismo mostrou, assim, que era possível começar a redistribuição do poder segundo as próprias regras da democracia liberal. Porém, também deixou claro que sem uma consistente preparação material e política para defendê-lo, tal processo não pode continuar com êxito.

Todavia, há outra questão que não pode ser evitada, mas que não será discutida aqui. Enquanto toda a ideologia formal dos revolucionários socialistas de todo o mundo defendia o internacionalismo, o fato é que os processos revolucionários da Bolívia e do Chile não só emergiram separados, como também, e sobretudo, não produziram e nem tentaram formas de coordenação, de assistência e de apoio recíproco, apesar da sua proximidade territorial, num momento em que era mais necessário. Além disso, o processo que produziu a Assembléia Popular boliviana era, certamente, o mais radical e o mais profundo dos processos revolucionários nesse momento na América Latina. Porém, não atraiu a atenção nem a simpatia devidas por parte do movimento socialista mundial, nem antes, nem depois da derrota. A submissão colonial5 do poder na América Latina é parte necessária desses desencontros (Oruro, 1980: 25-42).

Allende outra vez: da resistência mundial à revolução Durante estes trinta anos, dois processos têm dominado o capitalismo,

principalmente depois da desintegração do “campo socialista”. Ambos consistem na aceleração e no aprofundamento das tendências centrais do capitalismo. De um lado, a reconcentração do controle político mundial em mãos do Bloco Imperial mundial. Este processo acelerou-se bruscamente após o outro 11 de setembro, o de 2001, e ameaça com a recolonização imperialista do mundo. E, de outro, a crescente e extrema polarização social da população mundial, entre os 80% que não têm acesso senão a 18% do produto mundial e os 20% que têm o controle de mais de 80% do produto mundial. Seu desenvolvimento ameaça com uma 5 No original, “colonialidad”. (Nota do tradutor).

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catástrofe demográfico-social sem precedentes na história conhecida, tendo já começado em parte da África, Ásia e América Latina. A exacerbação de ambos processos começou com o golpe Militar de Pinochet, e o Chile foi o primeiro cenário da neoliberalização do capitalismo.

O século XXI começou com o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, de um lado, e, de outro, com a recessão mundial ainda em curso. Quase uma década de contínua resistência ao aprofundamento das tendências centrais do capitalismo, conseguiu avançar até abrir de novo, também mundialmente, a questão da revolução como destruição do atual padrão de poder. Essa é a questão central do debate que já começou. Estamos, portanto, no limiar de um novo período histórico. Por isso, na comemoração mundial do funesto 11 de setembro de 1973, é Allende quem volta, não Pinochet.

Bibliografia: AMBROSE, S. E. (1985). Rise to globalism. New York: Penguin Books. KORNBLUH, P. (2003a). The Pinochet file. A declassified dossier on atrocity and accountability. New York: New Press. __________. (2003b). “Opening up the files. Chile declassified”. NACLA, Vol. XXXVII, n°. 1, july/august. ORURO, J. (1980). “Bolívia: La tragédia de las equivocaciones”. Sociedad y Política, n°. 10. QUIJANO, A. (2000). “Colonialidad del poder, globalización y democracia”. In: Tendencias basicas de nuestro tiempo. Caracas: Instituto de Altos Estudios Internacionales “Pedro Gual”.

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Partido socialista chileno: adeus ao povo∗

Leandro Vergara-Camus∗∗

Resumo Neste artigo analiso o papel e a responsabilidade do Partido Socialista na inconclusa democratização do Chile. Identifico a decisão do partido de desmobilizar o movimento contra a ditadura como um momento fundamental da reintegração dele à política institucional em voga. Argumento que essa reintegração foi possível porque os socialistas adotaram uma nova visão de política que privilegiou as negociações e rejeitou a mobilização social como um recurso político. A prática política correspondente teve a conseqüência de desacreditar os políticos e os partidos. Através de entrevistas com líderes socialistas o autor demonstra o quanto a concepção elitista e institucional dominante de política e de poder impede, mesmo setores de esquerda do partido, de mudar essa situação e pensar alternativas que poderiam pôr um fim à legalidade institucional de Pinochet.

A última eleição presidencial chilena surpreendeu muitos observadores.

Joaquín Lavín, candidato da direita, desafiou seriamente o candidato da coligação governista de centro (a Concertación), Ricardo Lagos, forçando-o a um apertado segundo turno. No primeiro, ínfimos 30.781 votos separaram ambos os candidatos. No segundo, Lagos ganhou com 51,31%, e Lavín obteve 48,69% dos votos. O que também é notável, é que nos dois turnos as abstenções atingiram 26%, incluindo os cidadãos que não se registraram, o que significa que algo em torno de 55.000 a mais eleitores se apresentaram para votar no segundo turno (Blomeier, 2000). Como pode, uma sociedade que sofreu 17 anos de regime militar e experimentou dois governos democráticos de centro-esquerda, abrigar as forças que sustentaram a ditadura militar? Como as forças que se abstiveram de votar não se mobilizaram nem mesmo neste momento peculiar?

Se examinarmos os resultados eleitorais desde 1997 (www.elecciones.gov.cl), muitos sinais indicavam um crescimento da indiferença chilena com relação à política (Ortúzar, 1997, Riquelme, 1999). Entre os analistas da política chilena, esta indiferença e os encraves autoritários internos à Constituição1 têm sido salientados

∗ O autor agradece a Angelica Camus, por se encarregar da tediosa tarefa de transcrever todas as entrevistas. Enrique Semo, por tornar esse projeto possível, e Paula Hevia-Pacheco, Judy Adler-Hellman, Matt Davies e Philip Oxhorn por seus comentários generosos ∗∗ Doutorando do Departamento de Ciência Política da Universidade de York, Canadá. 1 Em 1980, Pinochet organizou um referendum para legitimar uma nova Constituição, que reformava substancialmente a ordem institucional pré-existente. Essa nova Constituição criou o Conselho de Segurança Nacional e atribuiu-lhe um grande poder, portanto, às forças armadas. Entre outros mecanismos, tais como 9 senadores designados e um dispositivo de emenda altamente restritivo, combinado com o sistema eleitoral bi-nominal, a Constituição garante também uma maioria artificial à direita. No

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como evidência dos limites da democratização. Neste artigo, meu propósito é enfrentar a questão da natureza limitada da democratização no Chile examinando o papel desempenhado pelo Partido Socialista Chileno (PSC). Para isso, escolhi enfatizar as opções feitas pelo PSC e sua concepção de política e poder. Meu principal argumento é que a concepção dominante, fundamentalmente institucional, eleitoralista e elitista, impede o PS de avançar a democratização no Chile. Sustento que essa concepção resulta da opção por abandonar o recurso da mobilização social, feita pelos socialistas no momento da transição para a democracia, que a transformou em uma exigência de participação na política institucional. Além disso, esta concepção, que permeia todos os setores do PSC,2 tem aprisionado até mesmo correntes mais à esquerda do partido, levando-as a subordinar a mobilização da sociedade civil à política institucional.

A reintegração do Partido Socialista à política chilena em voga Em seguida ao golpe militar em 1973, o PSC embarcou num processo de

reavaliação do seu papel no governo de Unidade Popular. Com o passar do tempo, as divergências ideológicas fundamentais emergiram e produziram um racha que dividiu o partido em duas organizações com visões e projetos políticos completamente diferentes (Puccio Huidobro, 1993: 128). A ala conhecida como PS-Almeyda representava a “continuidade do partido”, tinha o apoio da militância, permanecia fundamentada no marxismo-leninismo e era reconhecida pela liderança nacional. A outra ala tornou-se conhecida por PS-Altamirano, depois PS-Briones e, finalmente, PS-Nuñez. Ela era muito menor, tinha apoio principalmente entre a militância exilada e pouca presença no Chile, a não ser nos círculos intelectuais. Este segundo partido, que participou do processo denominado renovação socialista,3 desempenhou um papel muito importante na renovação política e ideológica da esquerda chilena e teve presença decisiva no tipo de transição para a democracia.

Os movimentos de protesto, que se estenderam de maio de 1983 a meados de 1986, são fundamentais para se entender a natureza da democracia chilena hoje

momento da transição do poder, de Pinochet a Aylwin, foram negociadas 50 modificações, mas nenhuma tocava essas características fundamentais. 2 Desde a reunificação, em 1989, a militância do PSC está organizado em torno de três tendências principais. A tendência majoritária é a Nova Esquerda, que representa os setores mais à esquerda do partido e foi aliada do Partido Comunista durante grande parte do período da ditadura. A Renovação, ou Megatendência, representa a minoria mas domina predominantemente a imagem pública do partido por ocupar muitas posições no parlamento e no governo. Trata-se da ala moderada e foi o instrumento que conduziu o partido para o centro, firmando aliança com o Partido Democrata Cristão (PDC). Entre essas duas tendências, os terceiristas têm tentado se apresentar como uma ala intermediária. Mas, recentemente, eles têm sido absorvidos por uma das duas principais tendências ou se juntado a um quarto grupo de militantes de base, que surgiu em 1998, denominado Coletivo de Identidade Socialista para pôr fim ao facciosismo criado pelas tendências. 3 O processo de renovação socialista se refere à transformação política e ideológica de setores da esquerda chilena, ao longo do eixo eurocomunismo/social-democracia. A este respeito: Nuñez (1987), Lagos (1989), Garretón (1989), Walker (1991) e Tironi (1993)

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e a relação entre os partidos políticos, particularmente o PSC, e a sociedade civil. Se considerarmos a forma espontânea e descoordenada que os protestos tiveram e acrescentarmos o fato de que os partidos políticos foram desarticulados, torna-se difícil argumentar que eles controlavam tais movimentos (Salazar-Mancilla-Durán, 1999: 259, Oxhorn, 1994a: 51, Oppenheim, 1993: 186). Mas certamente eles levaram em conta sua própria revitalização bem como a reemergência da vida pública.

Após o sucesso relativo dos poucos protestos iniciais, foram criadas duas coalizões de partidos de oposição. A Alianza Democrática (AD), dominada pelo Partido Democrata Cristão (PDC), claramente centrista, que incluía, entre outros, o PS-Nuñez. O PS-Almeyda foi convidado a participar, mas declinou por recusar-se a aceitar a exclusão do Partido Comunista (PCC) exigida pelo PDC; em lugar disso, optou por participar de uma coalizão claramente de esquerda, o Movimiento Democrático Popular (MDP), que incluía o PCC, o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), o Movimiento de Acción Popular Unitaria (MAPU) e outros pequenos grupos de esquerda.

As duas coalizões divergiram muito quanto ao papel dos protestos na derrota de Pinochet. A AD os via mais como uma ferramenta tática que forçaria o regime militar a negociar, enquanto o MDP os via como uma estratégia para forçar o regime a renunciar ao poder. Essas duas estratégias também implicaram diferentes tipos de liderança: uma visão tradicional e elitista por parte da AD, em contraste com uma ênfase mais de base por parte do MDP, hegemonizado pelo PCC, que tinha uma forte presença nas poblaciones (espécie de favelas). Segundo Roberto Pizarro4, a liderança do PS-Nuñez entendia antecipadamente que a transição caminhava para negociações internas à elite chilena. Sob essas circunstâncias, o PS-Nuñez procurava quadros com vínculos pessoais próximos às estruturas de poder da política chilena (os militares, a igreja e os grupos econômicos).

Embora o crescimento do nível de violência tenha sido mais uma reação espontânea dos setores populares à repressão do Estado, do que uma tática consciente do MDP (Guillaudat-Mouterde, 1998), a violência generalizada dos protestos distanciou ainda mais as duas coalizões. À medida que o tempo passava e os protestos eram acompanhados por maior brutalidade da polícia, eles encontravam oposição crescente da classe média (Oxhorn, 1994a; Garretón, 2001). Assim, a AD optou por mudar o formato dos protestos para eventos mais pacíficos, tais como comícios em locais fechados (Moulián, 1997: 297).

Já no primeiro estágio deste duplo assédio do período, a AD rebaixou substancialmente suas demandas ao regime e se prontificou a reconhecer a

4 Pizarro não foi membro de qualquer um dos principais partidos socialistas, mas participou de pequenos grupos que adotaram esta perspectiva. É um dos indivíduos a quem se credita a elaboração do documento de unificação do partido, em 1980. Foi embaixador no Equador durante o governo Aylwin e, por um curto período, ministro do desenvolvimento e planejamento econômico (MIDEPLAN), sob a administração Frei, de agosto de 1996 a janeiro de 1997. Há muitos anos tem se engajado ativamente na comissão de programa do Partido Socialista e se identifica como membro do Nueva Izquierda.

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Constituição de 1980. O momento decisivo ocorreu em setembro de 1986, quando a Frente Patriótica Manuel Rodriguez, um movimento de guerrilha urbana, próximo ao PCC, falhou na sua tentativa de assassinar Pinochet. Com o início de um segundo estágio deste assédio e uma onda de repressão brutal, Pinochet espalhou o medo do caos na classe média e tornou a transição pactuada repentinamente mais atraente. Foi então que a grande maioria dos partidos políticos optou por participar do plebiscito de 1988, sobre a permanência de Pinochet. Como um momento róseo para essa estratégia, o PS-Almeyda abandonou a aliança com o PCC e o MIR e juntou-se à Consertación de Partidos por el No.

A decisão de participar do plebiscito empurrou os partidos da Concertación para a cena eleitoral e institucional. Pensava-se que a campanha para o cadastramento de eleitores e o acesso à mídia e à televisão seriam um meio fácil de se reinserir na sociedade civil (Oxhorn, 1994b: 54) a partir de cima. Matt Davies argumenta que: “O uso da televisão como o lugar da mobilização política significou que o povo, como protagonista político, foi retirado das ruas e enviado de volta para a sala de estar, para a frente da tela; de público voltou a privado” (1999: 157).

Foi aí que os movimentos de protestos perderam sua vez. Não tanto porque os partidos fossem suas fontes de energia e liderança, como argumenta Moulián (1997: 300), mas, antes, por causa de uma estratégia consciente dos líderes da AD. De fato, partidos como o PS-Almeyda e o PDC minaram e desmobilizaram ativamente a participação popular (Oxhorn, 1994a, Salazar et al. 1999).

A escolha dos partidos da Concertación de priorizar a política institucional não só marginalizou a mobilização popular como, também, levou à monopolização do espaço político pelos partidos. Ainda mais importante, estabeleceu-se esta forma particular de fazer política, caracterizada pela negociação entre os partidos. Para os dois partidos socialistas, especialmente o mais tradicional (o PS-Almeyda), isto significou também adotar uma nova imagem de moderação e conciliação. Com a vitória da Concertación de Partidos por la Democracia nas eleições de 1989, esta forma de fazer política foi internalizada pelos principais atores políticos, inclusive a grande maioria dos líderes de ambos os partidos socialistas. Segundo Posner, da maneira como o processo foi conduzido, “criou-se um fosso entre a elite e a base partidária, o qual, aparentemente só tem se ampliado desde a transição para a democracia” (1999: 61).

O PS pós-ditadura Após a experiência das campanhas para o plebiscito e para as eleições de

1989, estabeleceu-se a pauta para a reunificação do PS. O PS unificado incluía o PS-Almeyda, o PS-Nuñez, o MAPU e outro pequenos grupos. As bases doutrinárias da unificação incorporaram muitas das formulações desenvolvidas anteriormente pela renovación, tal como um papel mais restrito e institucionalizado do partido na sociedade política, embora mantido um certo conteúdo de classe caro aos almeydistas (Ayala, 1993).

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Entretanto, a integração de novas figuras políticas (particularmente aquelas sem tradição socialista) durante a reunficação deixou suas marcas. Em alguma medida, existe um certo ressentimento em relação a eles porque estão entre as figuras públicas mais visíveis do PSC (Roberts, 1995: 510). Isto se deve parcialmente ao fato de os ex-líderes do MAPU terem sido decisivos na formação da Concertación e para mantê-la como coalizão governista nos últimos 14 anos.

Segundo Pizarro (1998), a questão não é simplesmente ideológica e tem a ver com a origem de classe de muitos daqueles líderes. Os ex-membros da MAPU, agora da renovación, são fundamentalmente de origem pequeno-burguesa, enquanto os membros da nueva izquierda vêm principalmente da base da classe trabalhadora. Em contraste com outros setores do partido, os renovados são figuras públicas reconhecidas e sabem manipular os mecanismos do poder (Hite, 1996: 318). Conseqüentemente, eles se beneficiam do seu status e de suas conexões com setores poderosos da sociedade, tais como os grupos econômicos, a igreja, a mídia e até mesmo, em certos casos, os militares (Pizarro, 1998). A análise que este autor faz, da situação da sociedade chilena sugere uma política de classe na qual os renovados encontraram seu lugar.

Os líderes renovados da megatendencia têm uma “vida social”. Eles aparecem nas páginas sociais do El Mercúrio.5 Podem ser vistos em recepções das embaixadas e nos principais eventos sociais e culturais do país. São vistos em grandes eventos organizados no La Moneda6 em homenagem a chefes de Estado estrangeiros. Há uma vida social entre eles, que se visitam e são amigos. (...) Suas esposas e cônjuges são conhecidos socialmente. Isto é uma cultura na vida dos subúrbios ricos de Santiago” (Pizarro, 1998).

Para o PSC, isto representa uma mudança significativa da sua imagem passada de um dos representantes da classe trabalhadora, na medida em que os setores renovados o levaram a transformar-se em um “partido de cidadãos” e representante de “todos os setores progressistas da sociedade”. A reação da nueva izquierda e dos terceristas tem sido insistir na identidade do partido da classe trabalhadora e eles têm zelado para manter isto nos documentos oficiais do partido. Todavia, com esta nova imagem, o PSC tem perdido sua capacidade de representar os setores populares.

A legalidade da ditadura e a “Concertación” Quando Pinochet derrubou o governo Allende, o regime militar reverteu a

quase totalidade das reformas e iniciou, poucos anos depois, um profundo processo de reformas de tipo oposto, neoliberais, sem precedentes no continente americano, que tiveram um enorme impacto social, econômico, político e cultural na sociedade chilena (Moulián, 1997). Entre as reformas neoliberais, a promulgação do novo código trabalhista, em 1979, foi provavelmente a que teve impacto de maior alcance nas estruturas econômica e social do país (Lear-Collins, 1995, Vergara-Camus, 1999). Essa reestruturação neoliberal, a Constituição de

5 Jornal mais influente do Chile. 6 Palácio presidencial, sede do governo em Santiago.

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1980 e o sistema eleitoral binominal7 são conhecidos como a “legalidade da ditadura”, que ainda hoje estrutura a política e a sociedade chilenas.

Para explicar a atual situação de desgaste da democratização, que é acompanhada pelo crescimento da apatia política, muitos socialistas recorrem a essa legalidade da ditadura. Se muitos líderes socialistas tendem a se eximir da responsabilidade pela situação atual, alguns estão dispostos a aceitar uma parte mínima da culpa. Reconhecendo que durante o processo de negociação da transição para a democracia, alguns erros importantes foram cometidos. German Correa8 comenta:

Uma vez conquistado o plebiscito, houve uma discussão importante no interior da Concertación (...) durante a ditadura, a Constituição de 1980 incluiu o plebiscito nacional como matéria de interesse político nacional. Quando estávamos negociando a reforma, alguns almeydistas - infelizmente apenas alguns - apoiaram a idéia de negociar a manutenção do plebiscito na Constituição (...) Mas perdemos (...) Perdemos esta discussão e todos os nossos amigos democratas-cristãos, do PS-Nuñez e todos os outros (Correa, 1998).

Construída a Concertación como coalizão governista e a confirmação do PDC como primeira força eleitoral, o PSC unificado teve que assumir o papel de segundo parceiro da Democracia Cristã e moderar sua estratégia, seu discurso e seu projeto político (Roberts, 1996). Uma das primeiras transformações políticas foi abandonar definitivamente a idéia de recorrer ao povo e adotar o entendimento estritamente institucional de política. A entrevista de German Correa demonstra como essa transformação não foi automática, mas acabou sendo imposta pelos setores dominantes da Concertación que, há muito tempo, tinha tomado esse caminho:

No governo Aylwin, optamos por uma determinada estratégia, embora houvesse alternativas. A estratégia adotada... foi de institucionalizar o conflito, confrontar a direita no terreno da institucionalidade. (...) Em várias ocasiões, em discussões que tivemos internamente ao governo do presidente Aylwin, alguns de nós argumentavam: “vamos confiar no povo, não vamos confrontar a direita no parlamento (...)”. Mas esta opção era sempre rejeitada: “Não, não, agora estamos no governo. Agora é diferente”. As pessoas até faziam piadas quando eu propunha essas coisas: “Aí vem ele outra vez, o presidente do

7 No sistema eleitoral chileno, um partido ou coalizão precisa ter duas vezes mais votos que a oposição para ganhar as vagas distritais; de outra maneira, a segunda vaga é atribuída a segunda maioria. Atualmente, isso tem significado que a expressiva maioria eleitoral da Concertación (coalizão governista) não tem sido traduzida proporcionalmente em termos de vagas e a direita tem sido constantemente recompensada porque ela tende a conquistar em torno de 33,4% dos votos. Para os custos em termos de deputados e senadores, ver Posner, 1999: 75. 8 Ele é membro do PSC desde os anos 1960. Após o golpe militar, tornou-se membro do Comitê Central interno na clandestinidade do partido. Ele participou do PS-Almeyda e foi presidente do MDP. Em seguida, participou da Concertación por el No e tornou-se ministro dos transportes e das comunicações durante o governo Aylwin, antes de resignar-se a ser presidente e administrar o PSC unificado. No primeiro gabinete Frei, ele teve uma rápida passagem, de março a setembro de 1994, como ministro do interior. Por longo tempo, ele foi reconhecido como o líder da tendência tercerista e tornou-se parte do Coletivo de Identidad Socialista, em 1998.

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MDP”, ou “O chinês,9 o presidente do MDP em seu ressurgimento, novamente!” (Correa, 1998).

Essas piadas indicam o quanto a mobilização social era anacrônica para a maioria da elite dirigente, já no primeiro governo da Concertación. A política tornara-se coisa para políticos, não para o povo. Pactos políticos, negociações centradas exclusivamente nas elites e a pretensa política de los consensos foram estabelecidos como a principal forma de operar as políticas públicas (Posner, 1999: 64). Os “limites do possível” deviam ser considerados delineados pelo arranjo institucional herdado da ditadura; qualquer modificação da ordem neoliberal teria de vir de fora dos partidos envolvidos na via parlamentar ou de fora das “negociações informais” com os militares.

Para os renovados, esse é o resultado do processo de “normalização da política”, que tinha se estabelecido desde o retorno ao governo democrático, que contrasta com o período de luta contra a ditadura. O comentário de Antonio Viera-Gallo10 ilustra a questão:

Penso que o maior problema com o partido socialista é que ele não fez a paz com a sociedade. Ele ainda está preso na guerra fria. Dito isto, estar em paz não significa evadir-se ou aquiescer. Como Delor, o importante socialista francês, acho que não devemos pretender uma mudança de sociedade mas, de preferência, mudar a sociedade, melhorá-la para que ela venha a funcionar melhor (Viera-Gallo, 1998).

Essa “normalização da política” coloca novos limites para a responsabilidade dos diferentes agentes políticos. Como em qualquer democracia liberal, o papel dos partidos e dos políticos está agora limitado a representar os interesses do eleitorado no parlamento. Essa visão da política corresponde a uma concepção particular de poder político, bem como a um entendimento particular da relação entre a política e a sociedade civil, o que não se restringe aos renovados. Setores de esquerda também partilham uma concepção de poder centrada nas instituições políticas.

Antes, não havia parlamento, conseqüentemente os parlamentares não contavam. Hoje, há parlamentares e o parlamento é um espaço de poder. Antes, não estávamos no governo, por isso não tínhamos um relacionamento constitucional. Hoje, estamos no governo e temos tal relacionamento e este também é um espaço de poder, um espaço político. (...) Hoje, o poder está em outros lugares. Está no parlamento, no governo. (...) Antes, a liderança social era muito relevante. Hoje, quando os espaços de poder se abrem, a influência dessas lideranças declina. (...) Em outras palavras, durante o período da ditadura, a presidente da CUT era a figura política chave. Hoje não é. Um ministro ou o presidente da Câmara é (Aleuy, 1998).11

9 Apelido dado às pessoas com olhos amendoados. 10 Ele esteve envolvido na política chilena desde os anos 1960. Durante a ditadura, foi membro do MAPU-Obrero-Campesino e participou do processo de renovación. Desde 1990 ele tem sido eleito deputado, foi líder da bancada socialista no parlamento e, atualmente, é senador. Está entre as maiores figuras renovadas da renovación ou megatendencia. 11 No momento da entrevista, em 1998, Francisco Aleuy era membro do comitê editorial do jornal La Nación, de propriedade do governo, e vice-presidente do PSC. Ele foi da Nueva Izquierda.

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Claro, fazer política sob uma ditadura militar implica táticas e estratégias particulares que não são necessárias sob uma democracia liberal. Entretanto, essa diferença adquire um outro significado quando se considera a organização da sociedade civil e a mobilização social apenas correspondente à luta contra a ditadura. Esse tipo de posição esquece que política, mesmo numa democracia, é uma luta pelo poder em que os atores mobilizam as forças relativas que possuem e que, historicamente, para a esquerda, essa força tem se apoiado na mobilização social.

“Os Limites do Possível”: a legalidade de Pinochet, a “Concertación” e a “Realpolitiks” De 1990 a 2004, a Concertación administrou com vistas à manutenção do

nível de crescimento acima de 8%, reduzir a inflação e o desemprego em torno de 7% e elevar substancialmente o salário mínimo. Ela acumulou superávit orçamentário enquanto cresciam significativamente os gastos sociais e diminuía o número de famílias vivendo na pobreza. Entretanto, ela o fez por seguir a diretriz econômica estabelecida pelo regime militar e, por isso, não tem sido capaz de reduzir as disparidades entre ricos e pobres, que está entre as maiores da América Latina (Vergara-Camus, 1999). Em questões chaves, a Concertación não tem feito progresso significativo. A reforma da legislação trabalhista de Pinochet é um exemplo. Desde 1990, a coalizão governista tem tentado estender a política de consenso e cooperação à esfera das relações trabalhistas e algumas melhoras têm sido obtidas (Cortázar, 1995). Mas o cerne da legislação trabalhista, que impede a sindicalização, por exemplo, continua intacto. Isto se deve, principalmente, ao fato de que a direita, usando sua maioria no senado, garantida pela Constituição de Pinochet, bloqueia qualquer reforma substancial.

Conseqüentemente, a necessidade de eliminar os entraves autoritários da constituição de 1980 e o sistema eleitoral binominal tem estado em todos os programas do PSC. Além da direita, a maioria dos atores e partidos políticos concorda que a Constituição tem de ser modificada para uma democracia completa no Chile. Para a maioria dos renovados, o canal apropriado para resolver essa questão continua sendo o dos mecanismos institucionais ou das práticas estabelecidas no interior do sistema político. Em suma, principalmente a contínua procura de consensos e acordos com a direita. Para a esquerda do PSC, entretanto, os dois primeiros governos da Concertación mostraram que a direita não tem intenção de abandonar sua posição privilegiada. Muitas vozes no interior do partido vêm, por isso, formulando a possibilidade de criar um expressivo movimento social em favor das mudanças institucionais que, finalmente, permitirá fechar a transição para a democracia.

Mas em entrevistas com socialistas que defendem essa mudança, são claramente perceptíveis os efeitos contraditórios da concepção dominante de política e de poder. A solução que eles propõem exige uma ruptura decisiva com a linha política adotada pelo partido, mas, constantemente, acaba girando em torno da tática que tem sido seguida até agora. Algumas entrevistas ilustram o beco sem saída em que o PSC se encontra, como parte de um sistema institucional que fixou

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um determinado código de conduta para a esquerda: Precisamos fazer modificações para que a “Realpolitiks” seja capaz de re-encantar o povo. Não se pode propor tarefas políticas ilusórias. O povo não acredita quando vê que você não é capaz de se livrar dos senadores designados, de Pinochet, dos juizes da Corte suprema (...) quando não se é capaz de lutar (...). Esse é o problema. As pessoas sabem disso. É por isso que elas não acreditam nos partidos. Elas sabem que no Chile os partidos não têm poder para assegurar que a maioria governe. No Chile isto não acontece. No Chile, a minoria governa. No Chile, a direita governa e controla tudo: os senadores designados, a Corte Suprema (Aleuy, 1998).

O dilema dos militantes que se batem pela construção de um apoio popular ativo pelas reformas institucionais consiste em achar uma maneira de lidar com a situação de desencanto político e falta de credibilidade dos políticos que prevalecem na sociedade chilena. Essa falta de credibilidade tem, certamente, algo a ver com o discurso neoliberal durante o período da ditadura; mas é notável que a escolha da política do consenso foi um tiro pela culatra para os socialistas. Apesar disso, para Camilo Escalona,12 o dilema de mobilizar um forte apoio social em favor de mudança institucional poderia ser resolvido pela liderança política:

O que precisamos é de uma liderança política capaz de dar um novo impulso ao processo democrático. Não tenho dúvida de que o poder que Ricardo Lagos13 tem aos olhos da opinião pública é devido ao fato de que o povo progressista deste país, predominantemente, vê nele a liderança que conduzirá o processo além do emaranhado em que tem estado nos últimos anos. Não é uma questão de formulação teórica. É uma questão de vontade política prática (Escalona, 1998).

Com efeito, em 1998, para muitos socialistas de todas as tendências, a possível eleição de Ricardo Lagos representou a possibilidade de dar uma orientação mais progressista à Concertación e adotar uma linha política que enfatizaria a necessidade das reformas institucionais. Mas, com Lagos presidente desde 2000, não mudou muito. Com o crescimento do desencanto da cidadania com a Concertación, acentuada por muitos escândalos no governo Lagos, a direita pode muito bem ganhar a próxima eleição presidencial. Mesmo sob esse cenário catastrófico, a chance de imprimir outra orientação ao partido é quase nula. Mas até mesmo o estimado PSC agora tem menor presença nas poblaciones do que a direita (Lazo, 1998) e não canaliza os recursos necessários para os ativistas de base (Posner, 1999: 68). Mais importante ainda, apesar de algumas diferenças, a

12 Militante do PSC, de longa data. Durante a ditadura ele participou do PS-Almeyda. Ocupou todas as posições de liderança dentro do partido. Desde o fim da ditadura, elegeu-se deputado em duas ocasiões e foi presidente do partido duas vezes, de 1994 a 1998 e de 200 a 2003. É muito popular junto aos soldados rasos e ao líder da Nueva Izquierda. 13 Lagos é uma figura política peculiar dentro da esquerda chilena. Vindo do centro e do pragmático Partido Radical, tornou-se membro do PSC em 1972. Ele conquistou fama quase instantânea em 1988, durante a campanha para El No, quando, em rede nacional de televisão, virou-se para a câmara e desafiou diretamente a Pinochet (Ortúzar, 1998: 51). Tão excepcional é sua situação dentro da esquerda parlamentar que ele é a única pessoa admitida como membro do PSC e do PPD. Em 1992, todos os demais membros foram instados a escolher seu partido.

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maioria esmagadora das lideranças partilha uma visão de política elitista e institucional. Isto impede qualquer estratégia que considere o poder político como um fenômeno que se manifesta por toda a sociedade e no qual a mobilização é uma das forças da esquerda. Bibliogafia: ALEUY, F. (1998). Interviewed by author. Santiago, June 4th. AYALA MORALES, P. (1993). Socialisme et démocratie : conflit idéologique au sein du parti socialiste du Chili (1974-1989). Montréal: Université du Québec. Master’s Thesis in Political Science. BLOMEIER, H.-H. (2000). “Elecciones presidenciales en Chile. Doble virtual empate con un ganador”. http://www.kas-ciedla.org.ar/archivo/blomeier.pdf CORREA, G. (1998). Interviewed by author, Santiago, June 8th. CORTÁZAR, R. (1995). “Équité, flexibilité et croissance: l’expérience chilienne”, in OCDE. Tension sociales, création d’emplois et politique économique en Amérique Latine. Paris: OCDE. DAVIES, M. (1999). International Political Economy and Mass Communication in Chile. National Intellectuals and Transnational Hegemony. London: Macmillan Press. ESCALONA, C. (1998). Interviewed by author. Santiago, June 9th. GARRETÓN, M. A. (1989). “The Ideas of the Socialist Renovation in Chile”. Rethinking Marxism, vol. 2, no. 2, summer. __________. (2001) [1989], “Popular Mobilization and the Military Regime in Chile: the Complexities of the Invisible Transition”. In: Eckstein, Susan, (org.). Power and Popular Protest. Latin American Social Movements. Berkeley: University of California Press. GUILLAUDAT, P. & MOUTERDE, P. (1998). Los movimientos sociales en Chile, 1973-1993. Santiago: LOM Ediciones. HITE, K. (1996). “The Formation and the Transformation of Political Identity: Leaders of the Chilean Left, 1968-1990”. Journal of Latin American Studies, vol. 28, no. 2, may. LAGOS, R. (1989). “Dos conceptos clave de la renovación socialista en Chile”. Nueva Sociedad, no. 101, June. LAZO, C. (1998). Interviewed by author. Santiago, June 4th. LEAR, J. & COLLINS, J. (1995). “Working in Chile’s Free Market”. Latin American Perspectives, issue 82, vol. 1, no. 1. MOULIÁN, Tomás (1997). Chile Actual. Anatomía de un mito. Santiago: LOM Ediciones-ARCIS. NUÑEZ, R. (1987). “Foro latinoamericano. Ideología, democracia, partidos II.”. Nueva Sociedad. no. 92, November-December. OPPENHEIM, L. H. (1993). Politics in Chile. Democracy, Authoritarianism, and the Search for Development. Boulder: Westview Press. ORTÚZAR, X. (1997). “Chile: las últimas elecciones parlamentarias, voto de castigo para la coalición gobernante”. Proceso, 1103, December 21st. __________. “Los debates internos por la sucesión presidencial hacen tambelear a la coalición gobernante en Chile”. Proceso, 1125, May 24th. OXHORN, P. (1994a). “Where Did All the Protesters Go? Popular Mobilization and the Transition to Democracy in Chile”. Latin American Perspectives, Issue 82, vol. 21, no. 3, summer. __________. (1994b). “Understanding Political Change After Authoritarian Rule: The Popular Sectors and Chile’s New Democratic Regime”. Journal of Latin American Studies, vol. 26, no. 2, May. PIZARRO, R. (1998). Interviewed by author. Santiago, June 9th.

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Cuba: uma resistência socialista na América Latina Rémy Herrera*

Resumo: Este artigo tem por objetivo lutar contra este pensamento único

anticubano, ao qual sucumbem inclusive, diversos círculos da esquerda, e que constitui uma das múltiplas faces ideológicas da mundialização neoliberal–guerreira atual. A idéia central é que a experiência cubana tem demonstrado a possibilidade de uma resistência socialista, antiimperialista e anticapitalista na América Latina.

Entre todas as resistências populares anti-sistêmicas que sublevam atualmente a América Latina – e são inúmeras – , uma delas conseguiu fazer malograr a estratégia de dominação dos Estados Unidos: a do povo cubano. Única experiência revolucionária do Continente até ao momento vitoriosa, a mais antiga e radical das lutas latino-americanas coloca à hegemonia capitalista um problema insolúvel, que faz dela um perigo inaceitável pelo exemplo que dá: Cuba é a prova de que é possível na América Latina uma resistência socialista, antiimperialista e anticapitalista.

É esta presença do socialismo – revelando simultaneamente uma perda de controle, por parte das forças dominantes do capital, de uma das peças da sua zona de influência máxima e o local preservado de uma alternativa para esta região devastada pelo neoliberalismo – que motiva os esforços de isolamento dirigidos contra ela (“elemento do eixo do Mal”) pela facção mais reacionária do poder estabelecido nos EUA. Apesar de mais de 40 anos de guerra não declarada contra a Ilha, concretizada por inúmeras agressões diretas ou terroristas, pelo mais longo bloqueio da história, pela ocupação militar de uma parte do território (base de Guantánamo) e por uma propaganda midiática, o governo dos Estados Unidos não conseguiu minar a base popular da Revolução, nem a dos apoios externos a favor da Cuba socialista, pois o fato é que esta goza de um prestígio imenso nos meios populares e progressistas. Muitos são os que, especialmente no Sul, admiram, aderem e desejam partilhar os seus valores e o seu projeto social. Há uma razão para isto, que é simples: os motivos que impulsionaram outrora a Revolução em Cuba – os estragos sociais causados pelo capitalismo e a violência imperialista dos EUA – não desapareceram nem da América Latina nem dos outros países do Sul; apesar de dificuldades reais de todos os tipos, os princípios originais – justiça social e independência nacional – continuam a animá-la; para muitos, os objetivos almejados – um poder íntegro ao serviço da grande maioria do povo e uma sociedade socialista – continuam a constituir uma necessidade de futuro. * Pesquisador do CNRS (Université de Paris 1 Panthéon-Sorbonne).

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Mas a reação norte-americana não é a única, longe disso, a obstinar-se contra a Ilha. “À esquerda”, há quem esteja persuadido da justeza da sua luta ao condenar Cuba, sem julgar necessário saber mais sobre o que se passa realmente na Ilha do que aquilo que é dito pelos órgãos de comunicação – unilateralmente hostis e posicionados nos seus chavões midiáticos (prostituição, corrupção, mercado negro, fachadas em ruínas… e “ditadura castrista”) – ou pelo turismo intelectual. Os próprios comunistas, jurando que não voltariam a cair noutra, desorientados por uma série de derrotas e erros, preferem alinhar-se: como parece não ser nada além de um resíduo anacrônico do sovietismo, Cuba deve cair. Este artigo tem por objetivo lutar contra este pensamento único anticubano, que constitui uma das múltiplas faces ideológicas da mundialização neoliberal–guerreira atual.

A URSS e Cuba: “pacto neocolonial” ou detonador de desenvolvimento? Surgida do húmus comum latino-americano, a Revolução apoiou-se em

séculos de resistência de um povo multirracial: das revoltas de escravos aos exércitos mambises (negros e mestiços) das guerras de independência, das ocupações de latifúndios pelos camponeses sem terra às lutas de resistência e sindicais progressistas… As cadeias que prendiam a Ilha aos Estados Unidos, a violência da reação destes últimos a qualquer progresso (reforma agrária…) e a desproporção da relação de forças explicam o fato de a Revolução só ter triunfado graças à conjugação da determinação do povo cubano e do apoio que lhe foi dado pela União Soviética. No entanto, a ajuda desta não deve fazer esquecer que, em Cuba, o socialismo não foi importado nem imposto. Foi o clímax de um processo interno de radicalização da luta de classes, ao fim do qual as forças revolucionárias convergiram quanto à necessidade de uma emancipação nacional (antiimperialista) e social (anticapitalista). Após um debate profundo entre revolucionários (Rodriguez, Guevara…), foram decididos o regresso ao açúcar, do qual dependia, após mais de um século de dominação estadunidense, toda a economia, e a frente operário-camponesa como base da Revolução. Esta decisão foi adotada sob pressões internas e externas extremamente fortes, que causaram as dificuldades iniciais: mobilização do povo em armas para defender a Revolução, exigência de obter divisas face ao bloqueio estadunidense, inexperiência da planificação e penúria de quadros, complexidade da reforma agrária… Foi possível censurar (mais freqüentemente após ter acontecido o inimaginável: o fim da URSS) o excesso da estratégia açucareira ou determinadas insuficiências da sua planificação, mas é difícil negar que, durante 30 anos, o motor açucareiro do país permitiu-lhe, apesar dos fracos recursos em 1959 (nem indústria, nem petróleo…), fazer trocas comerciais vantajosas com o bloco soviético e impulsionar um desenvolvimento que, pela primeira vez na história, respondia às necessidades do seu povo.

Significa isto que este desenvolvimento era “autocentrado” ou que a Ilha era, em 1989, um país “desenvolvido”? Claro que não. Devemos por isto ocultar a diferença de natureza existente entre a Cuba de 1959 e a de 1989? Embora a ruptura com o neocolonialismo deva ser situada no âmbito das rígidas estruturas

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que este lhe legava – e, em primeiro lugar, a da especialização açucareira – e das pressões que o sistema mundial capitalista continuou a exercer – bloqueio dos EUA –, as transformações operadas pela Revolução foram radicais. A cooperação com o COMECOM “estabilizou” o comércio, mas inverteu sobretudo o sentido da transferência de excedentes. A propriedade nacional dos meios de produção comandou a acumulação e controlou a importação e a repartição. Foi deste modo que se tornou possível incentivar o desenvolvimento industrial, de fato parcialmente articulado – mas adaptado às condições de um pequeno país – em torno do complexo mineiro-metalúrgico-mecânico ou do agroalimentar. Foram impulsionadas novas produções até então inexistentes: fabrico de maquinaria agrícola (ceifadeiras), pesca, produtos farmacêuticos… A edificação de serviços sociais, uma forte redistribuição da renda e a instauração da caderneta alimentar reduziram as desigualdades e garantiram progresso, homogeneizando a sociedade, liberta dos males do passado (analfabetismo, desemprego, miséria, segregação, corrupção, máfia…). Os cientistas cubanos não só atingiram muitas vezes o melhor nível mundial (farmácia, agronomia…), como servem ao seu povo – e por vezes mesmo a outros. Em outras palavras, no final dos anos 80, as condições de vida eram bastante boas em Cuba – decerto melhores do que noutros países da América Latina–Caraíbas. Embora se continue a associar socialismo e “penúria alimentar”, os dados fornecidos pela FAO mostram que em 1990, mesmo para a alimentação, Cuba vinha no topo da lista do continente no que se refere à disponibilidade quotidiana em calorias por pessoa, no mesmo ano em que os dados do PNUD a classificam no 4° lugar em 30. Um estudo estatístico da situação social a partir dos indicadores das organizações internacionais revela que Cuba conservava o seu avanço em 1994-95, no auge da crise do pós-URSS, em quase todos os itens de desenvolvimento humano: saúde (segurança social, médicos, enfermeiros, camas de hospital, esperança de vida…), educação (taxas de escolaridade líquidas, êxito escolar e testes internacionais, bolsas, formação de adultos…), igualdade (coeficiente de Gini…), proteção da criança (cuidados pré-natais, creches, ausência de trabalho infantil…), condição feminina (melhor “índice de participação econômica, política e profissional”...), trabalho (índices muito baixos de desemprego...), segurança (mortalidade por homicídio quase nula, rara delinqüência...), diferença cidade-campo (infra-estruturas rurais, ausência de “bairros de lata”...), ambiente (reflorestamento, projetos de agricultura biológica...), cultura (bibliotecas, filmes, esporte...). A OMS indica que, apesar da crise dos anos 90, a taxa de mortalidade por carências nutricionais manteve-se excepcionalmente baixa em Cuba –16 vezes menos do que no México... Relativamente a 1996, a FAO publica indicadores de “subalimentação” em Cuba 2 vezes inferiores aos da Costa Rica, 3 vezes inferiores aos do Chile... Não se morre de fome na Ilha, mesmo depois de 1990. Será pelo fato de Cuba se ter mantido socialista?

Após o “fracasso” soviético: desmoronamento ou recuperação de Cuba? O desmoronamento do bloco soviético mergulhou a economia cubana

numa crise gravíssima. O desmantelamento do COMECOM, no interior do qual

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estavam integradas as trocas comerciais de Cuba, provocou a queda das exportações e das importações. Sucedeu-se uma forte baixa do investimento e do consumo, e, por conseguinte, do PIB (-35% entre 1989 e 1994, ponto baixo da crise) e da produtividade. Depois da relativa abundância da década de 80, no início dos anos 90 começou a faltar tudo materialmente na Ilha.

As fábricas ficaram sem combustível, matérias-primas, peças sobressalentes... O déficit orçamentário aprofundou-se sob o efeito da deterioração das contas das empresas públicas e de uma vontade política de manter tanto quanto possível os níveis salariais, o emprego e as despesas sociais, o que resultou em desvalorização do peso, ou seja, forte inflação. O país entrou em “período especial em tempo de paz”.

Apesar do endurecimento do bloqueio e das condições de vida se terem tornado muito difíceis (consumo, transportes...), os cubanos suportaram o choque. Esta crise foi tanto mais visível quanto, contrariamente aos planos de ajuste estrutural capitalistas que concentram os seus efeitos nos grupos economicamente pobres e sem representação política, foi toda a sociedade cubana que sofreu o impacto. Embora seja evidente que o seu igualitarismo e a sua homogeneidade não ficaram intactos – as desigualdades aumentam pela primeira vez desde 1959 –, a estratégia de recuperação implementada em 1993-94 pela revolução atingiu parcialmente os seus objetivos: a partir de 1995, a economia restabeleceu-se (em 2000 a produção global subiu para 85% do nível de 1990); a sociedade cubana, apesar de muito chocada pelo ressurgimento de desigualdades, não se desmantelou; os pilares do sistema social cubano, abalados, mantêm-se de pé: a educação e a saúde continuam a ser gratuitas, o emprego e a reforma amplamente garantidos, a alimentação de base e os serviços sociais (eletricidade, água, telefone, transportes, habitação...) a preços módicos, a pesquisa e o internacionalismo dinâmicos...

Embora tenha procedido a reformas profundas, o Estado cubano não efetuou nenhuma privatização do aparelho produtivo nacional, nem introduziu um real mercado financeiro.... Será o impossível possível? Não, mas Cuba demonstra que um povo pode optar por resistir à ordem mundial imposta pela hegemonia dos Estados Unidos. Pois a orientação tomada, pela firmeza dos seus objetivos – salvar a todo custo a sociedade socialista construída pela Revolução – e as conseqüências assumidas – a penúria devida ao endurecimento do bloqueio – foi uma decisão política coletiva: as diferentes opções que se desenhavam (código do trabalho, sistema educativo, segurança social, aposentadoria...) foram objeto, em plena crise, de deliberações e de análises no seio das organizações de massa e das unidades de produção.

As medidas fundamentais consistiram em dotar a economia de novos motores de crescimento, destinados a substituir o setor açucareiro. As entradas de capitais associadas ao turismo, aos investimentos diretos estrangeiros (IDE) e às transferências de divisas do exterior (remesas) permitiram à economia, parcial e temporariamente dolarizada, retomar um crescimento sustentado e restabelecer o valor da moeda nacional. O número de turistas duplicou entre 1993 e 1996 e aproximou-se dos 1,8 milhões em 2001. Estão registradas mais de 400 sociedades mistas ou ligadas ao capital estrangeiro na Ilha, onde o total dos IDE se eleva a 4,5

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mil milhões de dólares. Os rendimentos privados ultrapassavam os mil milhões de dólares em 2000. O peso, depreciado contra o dólar em 150/1 em 1994, revalorizou-se – fenômeno raro na América Latina – tendo-se estabilizado em 21/1 desde 1996 até ao final de 2001 – antes de aumentar para 26/1 após o 11 de setembro e a redução do turismo em escala mundial. A taxa de crescimento do PIB voltou a ficar significativamente positiva: 2,5% em 1995, 7,8% em 1996, 2,5% em 1997, 1,2% em 1998, 6,2% em 1999, 5,6% em 2000, 3% em 2001, 1,5% em 2002, e provavelmente 5% em 2003.

Como já observamos, embora o processo de reforma e recuperação tenha sido até o momento relativamente controlado pelo governo, nem todos os seus efeitos foram positivos. Tamanhas são as ameaças que pesam sobre a sociedade cubana que o próprio governo se encarrega de lembrar regularmente a sua vontade de pôr termo à dolarização assim que as condições permitam. Além disso, o turismo introduziu um desvio no acesso da população ao dólar, mesmo se existem amortecedores, informais (solidariedade espontânea) ou formais (empregados de hotéis ou motoristas de táxis que dão uma parte das gorjetas a fundos coletivos redistribuídos aos que não têm contacto com a clientela). Do ponto de vista macro-econômico, este setor pode acabar por absorver mais recursos do que aqueles que gera, como acontece em inúmeros países do Sul. Os IDE que vêm a Cuba em busca de lucro acarretam fluxos autônomos de saídas de capitais. Podem desestabilizar as relações de trabalho e é necessária uma atenção particular por parte do Estado e dos sindicatos para que os direitos sociais fiquem garantidos nas sociedades mistas. As remesas cavam as desigualdades de forma preocupante – 12% das contas bancárias em dólares concentram 80% dos depósitos em 2000 – e podem comprometer os valores da Revolução.

Todavia, não é sustentável declarar que se reconstituiu em Cuba uma classe burguesa: o Estado continua a bloquear com firmeza as possibilidades de acumulação nacional de capital privado – e os seus altos dirigentes não enriqueceram nem são corruptíveis (os empresários estrangeiros sabem-no, na medida em que não podem proceder em Cuba como o fazem noutros locais). É um fato que o Estado autorizou o trabalho por conta própria, que permite o despontar de múltiplas atividades (comerciantes, artesãos, prestadores de serviços...), mas proíbe a contratação de assalariados exteriores à família detentora de licenças. Decidiu abrir lojas em que as compras se fazem em dólares (tiendas de recuperación de divisas) e mercados agrícolas (agropecuários) nos quais camponeses privados, recentes beneficiários de medidas de distribuição de terras, cooperativas (especialmente Unidades Básicas de Produção Cooperativa) e propriedades agrícolas estatais vendem uma parte dos seus produtos, mas continuam a atender a uma porção não negligenciável do consumo de base a preços reduzidos e mobilizam regularmente o exército para abastecer os mercados estatais – o que retira toda a pertinência à idéia de reformas piores em Cuba do que as PAE (Políticas de Ajuste Estrutural) impostas pelo FMI. O Estado encoraja joint ventures e zonas francas, mas nelas protege os direitos do trabalho e o papel dos sindicatos, e limita ao máximo as diferenças de rendimento: a firma estrangeira paga salários em dólares a uma empresa-ponte que, por sua vez, paga aos trabalhadores remunerações em pesos, sendo que a diferença financia as

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despesas públicas. A planificação perdeu terreno, mas as transferências monetárias, utilizando habilmente a dupla taxa de câmbio (uma oficial superavaliada e a outra semi-oficial sem dúvida subavaliada), asseguraram a continuidade dos serviços sociais (educação, saúde, reforma, alimentação, habitação, infra-estruturas...) por perequação inter-setorial das entidades emergentes para as entidades tradicionais – simultaneamente implicadas na racionalização da sua gestão (perfeccionamiento empresarial). Embora tenha de admitir provisoriamente o avanço dos mecanismos de mercado, o Estado parece ter conseguido submetê-los aos interesses do povo. Não é possível falar atualmente de transição para o capitalismo em Cuba.

Estas mutações levaram a uma reestruturação do sector açucareiro, acelerada em 2002 pelo encerramento de centrales e pela reconversão dos seus efetivos, levando à previsão de uma “saída do açúcar” após dois séculos de especialização – o que é, em si, positivo no contexto atual. Com exceção do tabaco, cuja procura é forte, é na agricultura que os resultados foram mais decepcionantes. Há quem proponha como solução para as dificuldades a privatização da terra, a fim de estimular o campesinato. Isto não deu bons resultados no Vietnam, que se tornou auto-suficiente em vários produtos e grande exportador de arroz? Mas esta opção não pode nos levar a esquecer, por um lado, que a coletivização tinha possibilitado fortes subidas de produção e, por outro lado, que uma eventual escolha desta alternativa se depararia com problemas ligados às especificidades do pequeno campesinato cubano. Devido a fatores históricos, este não tem nem a mesma implantação nem a mesma experiência que o do Vietnam. A história de Cuba é a do desaparecimento das culturas e saberes ameríndios (século XVI), das grandes propriedades de criação de gado para o couro (XVII), das plantações escravistas de cana (XVIII-XIX), das açucareiras nas quais trabalhava um proletariado operário assalariado (1886-1958)... e por conseguinte a de um pequeno campesinato expelido para as margens dos latifúndios e obrigado a fornecer a mão-de-obra para a produção de açúcar. Apesar da reforma agrária e da manutenção do setor privado (tabaco...), quatro décadas de Revolução não foram suficientes para constituir um tecido camponês secular noutros locais. Em resumo, uma forte privatização da terra conduziria muito provavelmente ao ressurgimento de uma estrutura de propriedade rural não igualitária e polarizada. A venda “livre” de produtos agrícolas permitiu a muitos camponeses enriquecer, mas por ora essa liquidez não incrementa uma dinâmica de capital controlando de forma privada uma criação de valor pelo emprego de trabalho assalariado. Pode-se considerar que estes “bloqueios” derivam de um autoritarismo incapaz de extrair lições do êxito asiático; de nossa parte, pensamos que é necessário evitar a universalização de “receitas”, tolerar trajetórias diferentes em função do terreno e da história, e ter consciência de que o latifúndio é um dos piores inimigos da América Latina.

O sucesso da investigação médica: “fachada do regime” ou realidade social? No momento mais duro da crise (1994-95), Cuba continuava a investir na

ciência e ocupava o primeiro lugar na América Latina no que se refere à

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participação da pesquisa no PIB, à frente da Costa Rica, e percentual de pesquisadores em relação à população ativa, muito à frente da Argentina e do Chile. O número de cientistas em tempo integral elevava-se a 29.000 em Cuba, mais do que no México (19.500), pouco menos do que no Brasil (32.000) para 12 e 163 milhões de habitantes, respectivamente. Os alicerces deste sucesso foram implantados pelas medidas revolucionárias, que fizeram de Cuba, a partir dos anos 60, o país mais igualitário do continente americano (coeficiente de Gini de 0,55 em 1955, 0,35 em 1962, 0,22 em 1986), e pela campanha de alfabetização que, em um ano (1961), reduziu a taxa de analfabetismo de 35% para 3%, tendo depois sido consolidadas por um sistema de educacional universal e gratuito, igualitário e despojado de discriminações sexistas e raciais, que dotou a Ilha de pesquisadores de alto nível.

O voluntarismo cubano em matéria científica pode ser ilustrado pela descoberta, pela equipe do Dr. Campa, do Instituto Finlay, em Havana, da primeira vacina contra a meningite B em 1985. Para demonstrar a sua eficácia, os pesquisadores testaram-na em si próprios antes de os peritos estrangeiros (incluindo norte-americanos) terem sido associados à verificação dos resultados. Em 1989, foi lançada em todo o país uma campanha de vacinação da população com idades situadas entre os 3 meses e os 24 anos. Desde então foram ministradas milhões de doses na América Latina, especialmente no Brasil – para onde foram enviadas gratuitamente quando o bloqueio dos EUA impediu a assinatura já combinada dos contratos. Uma quinzena de países (Coréia do Sul, Rússia...) utilizara esta vacina em períodos de recrudescimento da epidemia. Única eficaz até hoje no mundo, esta vacina recebeu em 1993 a medalha de ouro da International Property Organization, o que pôs fim às difamações de que foi alvo. Perante a agressividade das transnacionais farmacêuticas, foi patenteada (Va-MenGOC-BC®) e previu-se a sua comercialização por intermédio de uma companhia estrangeira. Durante dois anos, as negociações com a firma anglo-americana Smith-Kline-Beecham foram atravancadas pelo Departamento do Tesouro, encarregado do controle da aplicação do bloqueio. Entretanto, mais de 500 pessoas morriam nos Estados Unidos de meningite por meningococos do Grupo B. Foram necessárias a intervenção de cientistas do mundo inteiro e a mobilização de deputados e de cidadãos dos EUA para autorizar a importação da vacina “por motivos sanitários favoráveis aos Estados Unidos”. Pela primeira vez, uma vacina descoberta e produzida num país do Sul era ministrada num país do Norte.

Será um caso isolado, utilizado como “fachada do regime”? Não é C. Campa membro do Comité Central do Partido Comunista de Cuba? Os laboratórios cubanos comercializam uma gama de vacinas concebidas na Ilha (algumas compradas pela Organização Mundial de Saúde) contra a hepatite B, a leptospirose, o tifo, o hemophilus influenza..., assim como combinados (difteria-tétano-coqueluche...). Os resultados dos testes da nova vacina contra a cólera – propagada em determinadas zonas da América Latina – são comparáveis aos das fabricadas nos EUA. Registraram-se igualmente progressos em matéria de interferon, de fator de crescimento epidêmico, de genética médica, de tratamento do colesterol (PPG), de diagnósticos por sistemas ultramicroanalíticos, de

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anticorpos monoclonais, de medicina tropical, de tratamento do vitiligo, de hemologia, de tratamento de doenças mentais... Os centros de imunologia molecular cubanos aperfeiçoaram vários tratamentos contra o cancro. Uma pré-vacina contra a aids está sendo objeto de análise clínica avançada. Os nossos meios de comunicação preferiram difundir o boato de doentes presos em “aidatórios”, enquanto Cuba ministra aos portadores do vírus HIV os cuidados terapêuticos disponíveis mais avançados, totalmente gratuitos e em meio aberto a familiares e amigos. Por que não se pronunciaram sobre o fato de médicos cubanos se terem oferecido como voluntários para serem inoculados com o vírus do aids e testar em si próprios os tratamentos que descobriram?

O que levará um jovem cirurgião de Havana a operar os doentes por 480 pesos por mês, quando recebe ofertas de emprego de clínicas privadas dos Estados Unidos? O que liga à sua profissão um dos 60.000 médicos de família cubanos, que exerce suas atividades no edifício em que habita, ele que não tem acesso ao dólar? O que fará vir uma investigadora para Cuba após uma conferência dada no estrangeiro, conhecendo a diferença de riqueza que separa o seu país do Norte? Em 1959, metade dos 6.000 médicos, quase todos privados, urbanos, desafogados, partiram da Ilha. Se, hoje em dia, alguns se deixam tentar, a grande maioria dos cérebros fica em Cuba. Por “impossibilidade de sair”, diz-se? São numerosos os pesquisadores e médicos cubanos que viajam no mundo inteiro (seria melhor denunciar a política dos EUA, perfeitamente criminosa, que recusa a emissão de vistos legais mas concede a nacionalidade a todo emigrante, exclusivamente cubano, que chegue ilegalmente ao seu território, incitando à travessia perigosa do estreito da Flórida). Por que ficam eles? Talvez porque saibam que o sistema público que construíram – e que os Estados Unidos se obstinam em destruir – põe à sua disposição, apesar da crise, os meios para exercerem os seus talentos. Porque um dos sentidos de suas vidas é afirmar cada dia a sua decisão de fazer com que o povo tenha uma vida melhor. Porque são produtos da Revolução, que fez dos filhos e filhas de operários e camponeses que eles eram os cientistas que são, animados por um ideal alheio ao lucro. Face às pilhagens materiais, destruições ambientais e desperdícios humanos do capitalismo planetário, aquelas mulheres e aqueles homens demonstram que uma sociedade pode existir colocando o “bem-estar das crianças no primeiro lugar da sua lista de prioridades”, para utilizar as palavras do Diretor Regional da UNICEF para a América Latina.

O bloqueio: “pretexto” ou guerra não declarada? O bloqueio é por vezes apresentado como um fenômeno secundário ou

mesmo sem importância. Para bem avaliar o bloqueio, devemos nos lembrar que Cuba infligiu aos Estados Unidos, quando da invasão da Playa Girón, a sua única derrota militar na América. Trata-se de uma guerra não declarada de Washington contra a Ilha. Embora o bloqueio total tenha sido decretado em fevereiro de 1962, Eisenhower já havia proibido o comércio entre os dois países; por sua vez, Kennedy restringiu a liberdade de circulação dos cidadãos norte-americanos que desejassem viajar para Cuba. Desde 1964, firmas estrangeiras que vendiam medicamentos ou material médico a Cuba sofreram pressões para denunciarem os contratos. Os EUA opõem-se à entrada de Cuba nas organizações financeiras

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internacionais. A Lei Torricelli, de outubro de 1992, tinha por objetivo travar o ímpeto dos motores da economia, golpeando as entradas de capitais e de mercadorias mediante a cessação das transferências de mais de 100 dólares por mês por parte dos exilados, a proibição, por seis meses, aos barcos que tivessem feito escala em Cuba, de atracarem nos EUA e sanções contra as firmas que negociassem com a Ilha abrangidas pela jurisdição de Estados terceiros. A sua vertente política pretendia virar os espíritos contra a Revolução pelo “intercâmbio de informações”. Este dispositivo foi criticado inclusive nos meios de negócios e nas fileiras conservadoras dos Estados Unidos por impedir a circulação de capitais.

Estas reações, muitas vezes brutais, eram menores se comparadas com as que iria suscitar a Lei Helms-Burton. Esta lei, que reúne os 9 projetos redigidos pelos deputados de extrema-direita, aprovada em março de 1996, pretende reforçar as sanções “internacionais contra o governo de Castro”. O seu Título I generaliza a proibição de importar bens cubanos, exigindo principalmente dos exportadores que provem que nenhum dos seus produtos contém açúcar cubano, como já acontecia com o níquel. A lei Helms–Burton condiciona a autorização das transferências de divisas para a Ilha à criação de um setor privado e do trabalho assalariado. Mais audacioso ainda, o Título II estabelece as modalidades da transição para um poder “pós-castrista” – estando excluída a possibilidade de Fidel ou Raúl Castro se apresentarem às eleições –, bem como a natureza das relações a manter com os EUA (adesão à NAFTA...). O Título III concede aos tribunais dos Estados Unidos o direito de julgar ações por prejuízos e danos introduzidas por uma pessoa singular ou coletiva de nacionalidade norte-americana que se considere lesada pela perda de propriedades nacionalizadas pela Revolução e que reclame uma indenização aos utilizadores ou beneficiários desses bens. A pedido dos antigos proprietários, o cidadão de um país terceiro (e respectiva família) que tenha realizado transações com esses utilizadores ou beneficiários pode ser objeto de um processo judicial nos EUA. As sanções incorridas estão expostas no Título IV, que legaliza a recusa de vistos de entrada a esses indivíduos e seus familiares pelo Departamento de Estado. O tumulto provocado por esta lei, em especial na Europa e entre os democratas nos Estados Unidos, foi insuficiente para levar o presidente Clinton a vetá-las. As críticas concentraram-se na extraterritorialidade destas normas, que pretendem unilateralmente mundializar a aplicação do bloqueio à comunidade internacional. A Lei Helms-Burton viola o direito internacional e o princípio de soberania nacional, ao imiscuir-se nas opções políticas de um Estado vizinho. As reticências diante das pressões exercidas em favor da economia de mercado demonstram que não existe, em escala mundial, consenso a este respeito, nem sobre a concepção do liberalismo como condição da democratização.

O bloqueio imposto a Cuba pelos EUA é condenado por uma maioria cada vez mais ampla de países membros da Assembléia Geral das Nações Unidas. Em novembro de 2002, pelo 11° ano consecutivo, o representante dos Estados Unidos declarou que o seu governo não cumpriria as injunções da ONU (Resolução 56/9).

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Votos da Assembléia Geral da ONU sobre “a necessidade de retirar o bloqueio” A favor Contra países contra a retirada do bloqueio

1992 59 2 EUA, Israel 1993 88 4 EUA, Israel, Albânia, Paraguai 1994 101 2 EUA, Israel 1995 117 3 EUA, Israel, Uzbequistão 1996 138 3 EUA, Israel, Uzbequistão 1997 143 3 EUA, Israel, Uzbequistão 1998 157 2 EUA, Israel 1999 155 2 EUA, Israel 2000 167 3 EUA, Israel, Ilhas Marshall 2001 167 3 EUA, Israel, Ilhas Marshall 2002 173 3 EUA, Israel, Ilhas Marshall

Segundo Cuba, as perdas para a economia ultrapassam 70 bilhões de

dólares. Embora todos os setores sejam afetados (saúde, educação, consumo...), o bloqueio trava sobretudo os motores da recuperação e em primeiro lugar o turismo – previsões de fluxo de turistas norte-americanos em caso de autorização de viagem a Cuba: 1 milhão no 1° ano, 5 milhões 5 anos depois. A direção da filial britânica do grupo Hilton teve de cessar há pouco tempo as negociações para a gestão de hotéis, pois os seus advogados previam que os EUA considerariam o contrato uma violação da Lei Helms-Burton. A aquisição, por um grupo norte-americano, de sociedades européias de cruzeiros marítimos que atracavam em Havana levou à anulação dos projetos com Cuba em 2002. Violando a Convenção de Chicago sobre a Aviação Civil, os obstáculos que os Estados Unidos colocam à compra ou aluguel de aviões, ao aprovisionamento de querosene e ao acesso às tecnologias (localização por rádio, reservas através da Internet...) teriam acarretado perdas de 153 milhões de dólares em 2002. O impacto sobre os IDE (investimentos estrangeiros diretos) é igualmente negativo. Os institutos de promoção dos IDE em Cuba receberam até à data cerca de 530 projetos de cooperação de firmas estadunidenses sem que nenhum tenha podido realizar-se. Só para o setor das biotecnologias, o montante não ganho está avaliado em 200 milhões de dólares. Os setores em que a propriedade estadunidense era dominante antes de 1959 estão hoje muito afetados pelo endurecimento do bloqueio, tal como o açucareiro, cuja recuperação é torpedeada pela proibição de acesso à primeira Bolsa mundial das matérias-primas (Nova Iorque): a perda elevou-se a 195 milhões de dólares em 2001. Determinados bancos europeus decidiram reduzir os seus compromissos quando os EUA advertiram que exigiriam indenizações se os créditos fossem mantidos. Outras firmas, pelo contrário, reafirmaram a sua vontade de prosseguir as atividades. A Sherritt (Canadá) anunciou mesmo uma diversificação (níquel, construção, petróleo, telecomunicações...), apesar dos ataques na Bolsa contra a cotação das suas ações e as recusas aos seus dirigentes de vistos de entrada nos EUA. A Domos (México), co-proprietária da nova

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companhia cubana de telefones Etecsa, ampliou igualmente as suas atividades – o seu presidente declarou que iria gastar os seus dólares em outro lugar que não os EUA.

A chegada ao poder de George W. Bush reforçou ainda mais o dispositivo anticubano, até porque nomeou para seu gabinete e para o Departamento de Estado funcionários de origem cubana conhecidos por serem responsáveis reacionária Fundación Nacional Cubano-Americana e por outros grupos de extrema-direita cuja atuação é de natureza comprovadamente terrorista, fato que foi denunciado pelas administrações democratas. As restrições à liberdade de circulação agravaram-se: em 2001, 698 cidadãos norte-americanos, contra 178 em 2000, foram condenados a sanções penais por terem viajado para Cuba sem autorização de saída do território.

Toda a estratégia dos Estados Unidos repousa na procura de uma condenação da Ilha por “violação dos Direitos do Homem”, a fim de poder justificar a sua recusa em terminar o bloqueio. Na sessão da Comissão dos Direitos do Homem, uma resolução inspirada pelos EUA “convidou” Cuba a “realizar progressos no domínio dos Direitos do Homem civis e políticos”, acrescentando “sem ignorar os esforços desenvolvidos para efetivar os direitos sociais da população apesar de um ambiente internacional desfavorável”. A nítida clivagem Norte-Sul que o voto desta resolução anticubana revelou só foi atenuada pela submissão dos delegados latino-americanos que, tendo engolido a vergonha, a aprovaram – com exceção de um voto contra (Venezuela) e abstenções (Brasil...).Tamanha foi a pressão dos EUA que conseguiu neutralizar, na Comissão, o efeito das manifestações populares de apoio a Cuba (México, Montevidéu, Santiago do Chile)... O representante cubano perguntou se o modelo que lhe propunham era o de um país do Norte no qual um homem acabava de ser eleito presidente após um roubo eleitoral, ou o de um país do Sul no qual a população, exasperada pelo caos causado pelo FMI, saqueava caminhões e supermercados para se alimentar...

O tema dos Direitos do Homem é demasiado grave para ser tratado com ligeireza ou tolerar aproximações e boatos. Vamos direto ao assunto: a chamada “violação dos Direitos do Homem em Cuba” constitui a arma ideológica mais perniciosa utilizada pelos EUA contra a Ilha. Portanto é preciso se perguntar quais são os mecanismos pelos quais o governo de um país que se sabe ter nascido de um genocídio recente (século XIX), onde a segregação racial manteve até tarde a seqüela da escravidão mais massiva do mundo, que exibe o espetáculo das suas desigualdades abissais e de uma violência social patológica, que apoiou as ditaduras mais sanguinárias da América Latina, impondo-as por vezes através da liquidação de experiências autenticamente progressistas, que mantém pela força armada a ordem da sua hegemonia sobre um sistema mundial iníquo, que não reconhece o Tribunal Penal Internacional com receio de ver alguns dos seus antigos dirigentes serem obrigados a comparecer perante a Justiça por crimes contra a Humanidade... acusa de “violação dos Direitos do Homem” o governo de um país onde nenhuma criança morre de fome nem trabalha, onde a escola e a saúde são gratuitas, onde as discriminações recuaram bastante mais do que no Norte, onde todos têm acesso a uma alimentação a preços módicos, onde o povo

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conquistou direitos sociais amplos e é efetivamente associado à construção político-econômica de um projeto de sociedade, onde a segurança está garantida e a violência é mínima, onde – segundo o Presidente da Associação Americana de Juristas declarou em 1994 – não há “nem desaparecidos, nem assassinatos, nem torturas”.

Com certeza, um dos elementos de resposta reside na natureza do conflito que opõe os dois países, o qual, antes de ser compreendido através do confronto Leste-Oeste, deve ser considerado do ponto de vista das suas relações bilaterais, extremamente singulares. São estas relações que explicam simultaneamente a persistência do conflito após o desaparecimento da URSS e o tratamento diferenciado que os EUA aplicam a Cuba em relação a outros países “comunistas”, tais como a China. Os Direitos do Homem nunca ocuparam um lugar privilegiado nas considerações que guiam a estratégia externa dos Estados Unidos, e a violação desses direitos jamais acarretou (exceto por calculismo), para as inúmeras ditaduras aliadas dos EUA, a suspensão de relações comerciais ou da ajuda militar e econômica. Aliás, nunca é evocada a violação dos Direitos do Homem em Cuba antes de 1959, numa época em que uma real ditadura, pró-Estados Unidos, prendia, torturava e assassinava os opositores.

A retórica de geometria variável dos Direitos do Homem é dirigida contra Cuba porque a sua revolução é um “pesadelo”, não para os cubanos que a fazem há mais de 40 anos, mas para o poder estabelecido norte-americano: anticapitalista, antiimperialista, anti-racista, Cuba defende a emancipação social, a libertação nacional e a mestiçagem igualitária – ou seja, o extremo oposto do projeto neoliberal imposto pelos EUA.

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Cooperação e cooperativas: instrumentos de organização e de resistência dos trabalhadores sem-terra Claudete Pagotto*

Resumo: O objetivo deste artigo é contribuir para a reflexão sobre o duplo caráter

do cooperativismo: como instrumento de organização política e econômica dos trabalhadores. Em algumas vertentes teóricas do socialismo do século XIX verificamos que há uma presença destes pensamentos, no que se refere à análise da manifestação ampliada de alternativas de trabalho em moldes cooperativos. Nesta perspectiva, evidencia-se a existência do duplo caráter do cooperativismo, nas organizações cooperativas recriadas no interior de lutas sociais, cujos resultados tem buscado atender as necessidades mais imediatas e mais amplas dos trabalhadores sem-terra na construção dos assentamentos rurais conquistados e, sobretudo, em construir espaços de resistências às políticas econômicas neoliberais e às contradições do capitalismo.

Temas contemporâneos que nos remetem à Europa do século XIX Esta temática nos remete a um conjunto de questões, com as quais se

articulam e se desenvolvem, às vezes contraditoriamente, variadas concepções teóricas. Noções carregadas de maior ou menor “utopismo”, no bojo das lutas operárias do século XIX, indicavam uma alternativa às contradições das relações capitalistas com o objetivo de realizar transformações sociais, mediante a constituição de associações e cooperativas, que de modo geral, não buscavam abalar as estruturas do sistema. Entretanto, estes projetos utópicos foram as principais manifestações de solidariedade operária antes mesmo do seu desenvolvimento como organização, como classe social. As práticas de ajuda mútua e autogestionárias que se ampliaram no interior do processo de desenvolvimento capitalista na Europa do século XIX, se incorporavam distintamente tanto aos lineamentos do sistema econômico como às lutas sociais.

Articuladas a estas práticas encontram-se distintas denominações tais como: “associacionismos”, “comunalismos”, “conselhos operários”, “anarco-sindicalismo”, “sovietes”, “autogestão socialista” e “cooperativismo”. Para o desenvolvimento deste artigo, procuramos analisar as potencialidades de transformação social no processo de constituição e funcionamento de cooperativas.

* Mestre em Ciências Sociais pela PUC/SP e membro do NEILS

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A busca da vida, da liberdade e da felicidade humana foi a principal “herança” legada, por algumas das principais correntes do ideal iluminista, aos socialistas. O ideal rousseauniano de distribuição igualitária da riqueza exerceu forte influência sobre as criticas socialistas da sociedade, estimulando a crença numa ação social voltada para o interesse geral, em clara contraposição ao crescente individualismo (outra “herança” iluminista) que se desenvolvia principalmente na Inglaterra e na França do século XIX, no bojo da expansão da sociedade capitalista industrial.

A crítica social e as análises econômicas centralizavam-se na construção de uma sociedade a partir de um modelo associacionista ou cooperativo. A influência do igualitarismo rousseauniano dava aos chamados socialistas utópicos um certo caráter crítico. Havia, ainda que embrionária, a identificação de socialismo com uma sociedade baseada na propriedade coletiva e na gestão comum dos meios de produção1. Bem menos presente era a concepção de como transitar para este novo tipo de sociedade.

Num período em que a designação de socialismo significava uma oposição clara ao individualismo, ao modelo liberal-capitalista de mercado competitivo, era natural, segundo Hobsbawm, a imprecisão do termo, sendo, portanto “necessário distinguir dois aspectos no primeiro socialismo”: o crítico e o programático. O socialismo crítico se constituía por dois elementos principais: a teoria da natureza humana e da sociedade, derivada de diversas correntes do pensamento setecentista e a análise da sociedade na perspectiva do desenvolvimento histórico. E, o socialismo programático, se definia pela variedade de propostas para a criação de uma nova economia sobre a base da cooperação e, ainda, pelas tentativas de reflexão sobre a construção de uma sociedade ideal (1980: 44).

Para grande parte do movimento operário, socialismo implicava adesão à conotação “programática”: à construção dos meios que pudessem organizar a sociedade num modelo associacionista e cooperativo e oferecer elementos concretos para levar adiante o sonho de uma atividade produtiva independente.

A conotação programática de socialismo, ou melhor, o sonho de utopia cooperativista capaz de emancipar o trabalho da exploração capitalista, diluiu-se numa gama de cooperativas de consumo e de produtores, em especial nas cidades industriais da Inglaterra – construiu-se, assim, o chamado “movimento cooperativo”.

O curso deste “movimento” passou pela sua identificação conservadora ou renovadora, no interior de um processo histórico de formação da classe operária. O caráter ideológico do cooperativismo começa a delinear-se: por um lado, cerca a autonomia das cooperativas, condicionando suas particularidades aos interesses da classe dominante, mas, por outro, pode desdobrar e superar este condicionamento em favor dos interesses das classes subalternas.

1Identificação essa, segundo Hobsbawm, que só foi incorporada ao uso comum com “o nascimento dos partidos políticos socialistas”. O autor ressalva que, mesmo atualmente, esta identificação é incompleta (1980: 43).

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Já no século XIX, no auge das crises, das altas dos preços dos gêneros de primeira necessidade e das greves, as cooperativas exerceram um papel importante na organização dos trabalhadores. Recorrendo-se à ajuda mútua entre os trabalhadores qualificados foi possível garantir fundos que pudessem assegurar, pelo menos durante um determinado tempo, sua condição de vida, ou ainda criar outros projetos de atendimento coletivo a outras necessidades.

Voltadas para a organização do trabalho de forma voluntária, através da troca eqüitativa entre produtores organizados individualmente ou em associações, desenvolveram-se as idéias coletivistas, associacionistas e mutualistas. Estas últimas serviram de base para as formulações elaboradas por P-J Proudhon. Para este pensador a sociedade é um organismo que se desenvolve de acordo com seu ordenamento natural, pela autodisciplina e cooperação voluntária das pessoas. As contradições existentes na sociedade são de ordem econômica e podem ser resolvidas por meio de relações mutualistas. Estas, baseadas na justiça e no progresso, podem promover redes de solidariedade social capazes de assegurar a harmonia e o equilíbrio entre as gerações, desde que façam da concorrência, da entrada e saída de capitais e do monopólio, um benefício, uma igualdade política entre os cidadãos e uma garantia de seguridade a todos (Proudhon, 1974: 358).

O trabalho, organizado por meio do mutualismo pode reger a organização da economia e a organização política da sociedade. Sob esta condição, é possível que cada família, cada indivíduo, possa receber segundo o resultado de seu trabalho, de acordo com o princípio de “troca justa”. Neste sentido, a organização do Estado se confunde com a própria organização do trabalho a partir da implementação de reformas na esfera econômica, tendendo a aproximar cada vez mais a possibilidade de uma organização baseada na igualdade “em outras mãos que não as do Estado”, que possa garantir a combinação de trabalho e da instrução, e permitir que cada trabalhador, de “simples operário industrioso e artista”, se torne um “assalariado patrão” (Proudhon, 2001:129-130).

Tendo em vista que o mutualismo prevê uma concorrência solidária entre capitais, Proudhon concebe a formação de um “Banco do Povo” com a finalidade de assegurar as reformas econômicas necessárias à realização da organização do trabalho em moldes autogestinários. Os ativos deste Banco seriam provenientes de contribuições impositivas aos capitalistas e também aos próprios trabalhadores, cabendo-lhe a função de oferecer a disponibilidade de créditos reduzidos.

Entre a “comunidade estatal”, apregoada por algumas das doutrinas socialistas e a sociedade fundada na “propriedade capitalista”, para Proudhon, a solução para as mazelas sociais decorrentes das contradições puramente econômicas, seriam advindas da constituição de um “mundo autogestionário”. A “propriedade capitalista dominante social deve se tornar função social, função dependente da sociedade”. O Estado, “dominador da sociedade”, deve também se tornar uma função social, um “funcionário da sociedade”, uma federação de grupos autônomos. (Bancal, 1984: 83, 176-182).

Para além da perspectiva proudhoniana, na produção capitalista, as cooperativas aparecem como uma forma essencialmente contraditória. Internamente, os trabalhadores são responsáveis pela produção coletiva, neste caso

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há uma negação do processo de exploração da força de trabalho mas, por se encerrarem na lógica da concorrência, permanecem sujeitas ao processo de acumulação do capital. Deste modo, encerradas numa perspectiva de transformação meramente econômica estas organizações coletivas tendem a degenera-se ou a se transformar em empresas capitalistas.

Esta tendência pode ser analisada no exemplo das cooperativas de consumo dos Pioneiros de Rochdale. Sob forte influência do owenismo, os trabalhadores desempregados na cidade de Rochdale, norte da Inglaterra, em 1844, resolveram organizar um armazém de consumo. Esta cooperativa foi uma das experiências de ajuda mútua, de compra e venda de artigos de primeira necessidade a preços baixos e, assim como na atualidade, tinham o objetivo de minimizar os efeitos da fome, da pobreza, das extensas jornadas de trabalho, das baixíssimas remunerações e do desemprego. Mas, de uma cooperativa de consumo operária, as dos Pioneiros de Rochdale, assim como outras, se converteram numa associação de comerciantes inserida no sistema como mais uma empresa capitalista.

Entretanto, no Manifesto Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores de 1864, K. Marx, destaca a importância do “movimento cooperativo” e das fábricas cooperativas criadas sem apoio do governo, mas por iniciativa dos trabalhadores, como parte de um processo de reorganização dos trabalhadores após as derrotas transcorridas após 1848 e que culminou na redução, por lei, da jornada de trabalho para dez horas.

O “movimento cooperativo” pôde comprovar na prática que uma produção em escala era possível sem que os meios de produção estivessem nas mãos de um capitalista. E ainda, que o “trabalho sob as formas de emprego assalariado, de trabalho servil e de trabalho escravo é somente uma forma transitória e inferior destinada a desaparecer ante o trabalho associado” (Marx, 1983: 11).

Em oposição a esta perspectiva, também após as revoluções de 1848, começava a se delinear um cooperativismo adaptado ao liberalismo econômico, que incorporava tanto as experiências cooperativas exitosas, como a dos Pioneiros Eqüitativos de Rochdale como os pensamentos de Robert Owen, Charles Fourier, Louis Blanc, Phillipe Buchez e Charles Gide.

Na Crítica ao Programa de Gotha, e diretamente a Lassalle, Marx expõe as incongruências do programa do recém-fundado Partido Operário Alemão, especialmente quanto às propostas sobre as cooperativas. A crítica a Lassalle constituiu a principal manifestação de que os princípios fundamentais, reunidos na organização das cooperativas pelos próprios trabalhadores, demonstravam os sinais de suas profundas “deformações” (Fals Borba, 1973), adaptando-se aos lineamentos do liberalismo econômico. Dentre as propostas do Partido Operário Alemão, as cooperativas eram vistas como “meio para solucionar o problema social, com a ajuda do Estado e sob o controle democrático do povo trabalhador, e que delas pudesse surgir uma organização socialista de todo o trabalho” (Programa do Partido Operário apud Marx, 1975: 237). Para Marx, Lassalle considerava que o conceito de “povo trabalhador” definido no Programa não era consistente para definir a composição da classe trabalhadora que, na Alemanha

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daquela época, consistia numa maioria de camponeses e não de proletários. Além disso, a noção de democracia, apontada no Programa, não estava adequada à noção de governo do “povo trabalhador”, porque este, “nem está no poder e nem se acha maduro para governar”. Para Marx, o Programa adequou as “receitas” dos socialistas franceses e abandonou o ponto de vista do movimento de classes, para “retroceder ao movimento de seitas”, uma vez que “as sociedades cooperativas só têm valor na medida que forem organizadas pelos próprios trabalhadores, sem estar vinculadas ao Estado e a burguesia” (Marx, 1975, 237-238 grifos do autor).

A social-democracia, tradição herdada de Lassalle2, adquiriu um caráter revisionista das obras de Marx a partir de Eduardo Bernstein, nos últimos anos do século XIX. Rosa Luxemburgo demonstrou que as propostas de Bernstein promoviam uma ruptura entre a luta por reformas sociais e a luta pela revolução socialista. Seguindo os passos do idealismo de Bernstein, Rosa demonstrou as incongruências de cada um deles. E, no que se refere às cooperativas de produção, há uma clara apreensão do que elas representam para o sistema capitalista. Para Luxemburg, elas são “seres híbridos” porque, de dentro da economia capitalista, são capazes de produzir de forma “socializada”, mas estabelecem a troca de forma capitalista. Se a troca capitalista domina a produção, por sua vez domina também o processo produtivo nos patamares de empresa capitalista. Tal forma “socializada” de produzir ocorre pela “necessidade de intensificar o trabalho o mais possível, de reduzir ou prolongar as horas de trabalho, de empregar ou não conforme a situação do mercado de trabalho”. Resulta daí que os operários, na condição de governarem-se a si mesmos, vejam-se no papel absolutista de patrão capitalista. É sob esta contradição que as cooperativas de produção “morrem” (Luxemburgo, 1999:80-81). Para enfatizar o caráter contraditório das cooperativas de produção, Rosa cita textualmente Marx: “as fábricas cooperativas de operários são em si mesmas, nos quadros da forma antiga, a primeira ruptura dessa forma antiga, se bem sejam forçadas, naturalmente, a reproduzir em tudo, na sua verdadeira organização todos os defeitos do sistema existente”(Marx, O Capital, tomo III, apud Luxemburgo, 1999:81).

A forma de evitar a reprodução destes problemas para assegurar a existência de cooperativas no interior da economia capitalista está relacionada a um mercado, a um círculo constante de consumidores. Sob estas condições, as cooperativas de consumo são capazes de ampliar sua base, enquanto as de produção ficam limitadas ao mercado local, de preferência de produtos alimentícios, e acabam por se constituírem em anexos das de consumo. Levando em conta seu caráter híbrido,

2 Ferdinand Lassalle (1825-1864) compreendia que a “burguesia alemã era incapaz de uma luta revolucionária séria, e embebido de uma boa dose de nacionalismo alemão, deixou de apoiar os liberais e negociou com Bismarck, na vã esperança de alcançar, através dele e da monarquia, os dois grandes objetivos que apresentara ao movimento dos trabalhadores em sua ‘Carta Aberta’, ou manifesto, de fevereiro de 1863. Um destes objetivos era o sufrágio universal para democratizar o Estado; o outro era tornar o Estado, um participante ativo na mudança social, assegurando créditos às cooperativas de trabalhadores através das quais a economia seria aos poucos socializada” (Bottomore, 1988: 210-211).

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as cooperativas de produção não podem ser consideradas uma reforma social geral, pela simples razão de pressupor a sua realização geral, antes de tudo, a supressão do mercado mundial e a dissolução da economia mundial atual em pequenos grupos locais de produção e de troca, constituindo no fundo, por conseguinte, um retrocesso da economia do grande capitalismo à economia mercantil da Idade Média (Luxemburgo, 1999:82-83).

Deste modo, a realização destas cooperativas (de produção ou de consumo) se estabelece, nos limites das lutas internas por melhores mercados consumidores; reduzindo a luta contra o capital a uma luta contra os pequenos ramos do capitalismo.

As cooperativas apresentam, nesta perspectiva, uma importância limitada para a transformação das estruturas sociais – mas devem ser instrumento para isto e não um fim em si. Ao se tornarem meio e fim, os seus protagonistas concedem às suas conquistas imediatas uma grande realização, sem considerá-las como produto de relações de produção estabelecidas entre classes sociais antagônicas.

A partir da realização dos Congressos da Aliança Cooperativa Internacional em Hamburgo e o da Internacional Socialista em Copenhague em 1910, o “movimento cooperativo” deixou de pertencer ideologicamente ao socialismo, tendo em vista que a idéia de cooperação deixou de ser contrária à concorrência. A experiência e os princípios dos Pioneiros de Rochdale tornou-se a base para a elaboração de leis e regulamentações específicas.

Procuramos ressaltar a importância de algumas vertentes do pensamento socialista sobre o “movimento cooperativo” com o objetivo de situar o cooperativismo como uma forma de organização do trabalho inseparável das lutas de classes. Pela sua natureza, o cooperativismo pode ser organizado contra ou a favor da emancipação dos trabalhadores e depende, portanto, de qual classe social o impulsiona e como. Neste sentido, há um abismo entre os dois pólos: de um lado, os trabalhadores que o organizam no sentido da superação dos mecanismos de exploração capitalistas; do outro, ou é empregado como meio de exploração do trabalho dos não cooperados ou é utilizado na condução de reformas sociais objetivando transformações graduais e pacíficas na sociedade.

Organizações cooperativas na contemporaneidade: soluções para o desemprego? No Brasil, assim como em outros países latino-americanos, as leis

cooperativistas foram criadas a partir da incorporação do modelo europeu, ou seja, dos Pioneiros de Rochdale a partir das orientações da Associação Cooperativista Internacional – ACI, com o objetivo de desenvolver e modernizar o processo de produção agrícola no país. O cooperativismo foi implementado a partir de um decreto em 19323 e transformado em lei em 1971, de modo autoritário, com 3 Entre o final do século XIX e começo do XX tem-se o registro de algumas cooperativas: em 1893 foi criado o Instituto de assistência e previdência na fábrica de Carlos A. Menezes em Camaragibe/PE; em 1894 as “casas operárias” e, em 1896, a “cooperativa do proletário industrial”, como cooperativas de empregados e operários da Usina de Goiana; havia ainda uma corporação operária constituída por “sindicatos mistos” de patrões e empregados; em 1847 sob influência do pensamento de Fourier,

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controle e intervenção do Estado e voltado essencialmente para a exploração agrícola em moldes de empresa agro-exportadora.

A partir do final dos anos 80, se iniciou uma nova etapa da história do cooperativismo no Brasil, iniciando-se uma ampliação e uma diversificação das atividades cooperativas sem precedentes.

Em decorrência da reconcentração do capital industrial e financeiro, acompanhado do processo acelerado de renovação tecnológica e de reorganização do trabalho, a mão-de-obra desempregada passa a ser apropriada por iniciativas que, freqüentemente, estão à margem da lógica mercantil e do trabalho formal. Atividades de produção artesanal, domiciliar ou ainda, de venda de produtos no mercado informal demonstram que a exploração do trabalho ocorre de modo brutal: condições precárias de trabalho, extensão da jornada, intensificação do trabalho e remuneração que não ultrapassa os limites mínimos de subsistência. A não obrigatoriedade do vínculo empregatício, entre as cooperativas e os tomadores de seus serviços, apropriada no meio empresarial como mais um mecanismo de exploração do trabalho, contribuiu para a criação, no país, de um contingente amplo de “falsas cooperativas”. As mudanças legais estabelecidas num contexto de abertura política no Brasil deram o incentivo necessário à formação de cooperativas constituindo por um lado, um movimento que tem fortalecido a organização autônoma dos trabalhadores, mas de outro, se constitui como um mecanismo, uma estratégia que busca neutralizar os conflitos entre capital e trabalho.

Seguindo uma ideologia neoliberal, a “cooperação” e o espírito “empreendedor das bases” passaram a fazer parte dos métodos de administração e gerenciamento com o objetivo de reduzir custos, aumentar a produção e a produtividade, aliados à intensificação do uso de novas tecnologias. Formas flexibilizadas – terceirizadas e precarizadas – de organização do trabalho, como estas cooperativas, vêm sendo incentivadas, inclusive com a parceria do Estado, universidades e sindicatos. As cooperativas passaram a funcionar como “empresas” que terceirizam serviços e propiciam a redução de gastos com a gestão da força de trabalho, visando manter o controle da produção e dos lucros.

Há atividades que compreendem uma variedade de trabalhos exercidos sob determinações diversas. As cooperativas constituem parte destas atividades e uma alternativa de trabalho, que representam, para o trabalhador, uma promessa de mudança e transformação social. Assim mistificadas, as cooperativas passam a funcionar como dispositivo ideológico, por meio do qual são ocultadas as causas da crise e atenuadas as contradições sociais. Enquanto forma de trabalho, Jean Maurice Favre fundou com um grupo de europeus, nos sertões do Estado do Paraná, uma colônia de base cooperativa denominada “Tereza Cristina”; em 1889 sob influência do socialismo libertário, Giovanni Rossi fundou uma cooperativa no Paraná e em 1902 o jesuíta Teodor Amstadt introduziu as cooperativas de crédito – as “caixas rurais” - tipo Raiffeisen no Rio Grande do Sul (Chacon:1959; Pinho, 1966). Outras iniciativas se sucederam, mas vale destacar que a legislação cooperativista se confundia com a de sociedade anônima, pois permitia a distribuição de lucros e perdas: metade em partes iguais aos sócios e metade proporcionalmente entre os capitais, contrariando os princípios de Rochdale (Pinho, 1966:161).

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organizada na pequena produção ou na terceirização de serviços, as cooperativas podem ser analisadas nos marcos de uma produção artesanal e/ou domiciliar. Os trabalhadores organizados sob estas condições acabam por ser vendedores de mercadorias e não propriamente de sua força de trabalho. Mas, ao trabalhar com meios de produção próprios e ao reproduzir sua própria força de trabalho é possível que as cooperativas criem mais-valia, ou seja, acabam por se apropriarem do próprio trabalho excedente. Podem transformar a produção artesanal - a cooperativa - numa pequena produção capitalista que pode, inclusive, explorar o trabalho alheio. Ou perder os meios de produção e converter seus sócios cooperados em trabalhadores assalariados em outros empreendimentos ou, ainda, em mais um membro nas fileiras do exército industrial de reserva. Estas são as tendências que movimentam estas atividades sob a égide do modo de produção capitalista.

As cooperativas passam a fazer parte de um projeto pelo qual se procura compensar a miséria por meio da combinação entre a concorrência capitalista com a solidariedade entre os indivíduos associados com mesmas habilidades laborativas. Segundo esta perspectiva atualmente predominante, as contradições do sistema podem ser resolvidas por meio da solidariedade, transformando-se a concorrência em um benefício para o indivíduo.

A idéia progressista de uma economia voltada para a solidariedade tende a se perder no cotidiano destes trabalhadores em busca de um alternativa de trabalho, ao se depararem com as relações de concorrência mercantil consolidadas e tendentes à oligopolização. A possibilidade de estabelecimento de um padrão de produção capaz de reverter de modo efetivo as condições materiais destes trabalhadores se restringe cada vez mais. Reproduzem-se relações de produção à margem da lógica mercantil, porém sob condições precárias e terceirizadas. Esvaem-se, nos planos subjetivo e objetivo, as possibilidades de que essas cooperativas possam contribuir para o incremento da organização política dos trabalhadores. Trata-se, ao nosso ver, de um processo objetivo, embora não seja, obviamente, irreversível, na medida em que pode ser afetado pela correlação de forças mais ampla.

Há neste processo algo que já estava contido nas primeiras experiências coletivas dos trabalhadores no século XIX. Destituídas de um conteúdo político mais amplo, acabam por reproduzir noções utópicas ou programáticas com o objetivo de minimizar os efeitos das contradições das relações capitalistas que se explicitam com maior agudeza nos períodos de crise econômica sobre a maioria dos trabalhadores.

Novas formas de luta e de resistência: a cooperação no MST No Brasil, as primeiras experiências cooperativas foram baseadas nos

princípios dos Pioneiros de Rochdale, não no ideal original de sua formação, mas num modelo criado pela gradual adaptação de seus princípios às relações econômicas capitalistas. Chamado “tradicional”, o cooperativismo brasileiro foi (e ainda é) utilizado como modelo de gestão de empresas comerciais, agroindustriais ou bancárias, que exploram trabalhadores não cooperados.

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A partir dos anos 1990, o cooperativismo vem se articulando ao conjunto de programas sociais, destinados a oferecer, especialmente aos trabalhadores de baixa renda e que possuam uma habilidade profissional comum ou àqueles que integram uma parcela crescente de desempregados, assistência social, técnica e administrativa necessária para a formação de cooperativas. Tais “modelos” podem desenvolver mudanças sociais, mas no geral acabam por se converter em mecanismos de “ajustes” ou “correção” do sistema.

Na contra-mão deste processo, o surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) recolocou a emergência da luta pela reforma agrária e por transformações sociais. Aí as experiências associativas e cooperativas também se articularam como instrumentos importantes de organização destes trabalhadores.

Segundo James Petras, o MST combinou ocupação de terras e manifestações massivas para exercer pressão sobre o governo para legalizar e financiar a redistribuição de terras. E, assim como os outros movimentos de base camponesas na América Latina, o MST difere dos movimentos do passado pelas seguintes razões: é autônomo e independente em relação aos partidos; seus líderes não formam parte de um aparelho burocrático; vincula as lutas setoriais a problemas políticos nacionais; possui vínculos com organizações regionais e internacionais; como outros movimentos camponeses, têm estado na vanguarda, buscando aliados nas cidades e nos parlamentos nacionais; e, por último, estão aprendendo uns com os outros quanto à elaboração de táticas concretas (2002).

O que confere ao MST uma característica inovadora deve-se, conforme Almeida e Sánchez, a um aparente paradoxo: “não haver abandonado, mas, ao contrário, desenvolvido criativamente, algumas características que marcaram os movimentos sociais” na segunda metade dos anos 1970 (1998:82).

Sob efeito dos episódios repressivos sofridos durante o governo Collor e enfrentando a baixa capacitação dos trabalhadores, o MST decide consolidar a formação de instâncias internas com a finalidade de promover a cooperação agrícola nas mais variadas formas, com acompanhamento técnico; organizar a produção e comercialização; administrar os créditos e fomentar o trabalho de base com o objetivo de propagar a noção pela qual ao tomar para si o controle do processo produtivo agrícola e da propriedade coletiva da terra, estes trabalhadores que antes se encontravam destituídos de recursos e de condições materiais, recobram-se como força social e, a partir de métodos próprios, restituem as tradições das lutas dos trabalhadores.

A Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil – (CONCRAB), tem o papel de subsidiar a estrutura autônoma do movimento e de ser instrumento para das transformações sociais almejadas. Conforme descrito em um de seus documentos, “o cooperativismo que nos propomos a construir defende a autonomia de organização e representação. O desafio é construir o próprio modelo do MST: que abarque as diferenças regionais, que aponte um modelo tecnológico alternativo; deve organizar a base para contribuir na transformação da sociedade” (Concrab, 1998:11).

Na década de 1990 o governo federal lançou uma série de programas – O

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Novo Mundo Rural – que atuavam diretamente no âmbito econômico das cooperativas agroindustriais. O RECOOP - Revitalização das Cooperativas de Produção Agropecuária teve o propósito de reorganizar administrativa e gerencialmente as cooperativas de produção, impondo critérios de seleção que privilegiavam e concentravam as cooperativas agropecuárias e agroindustriais de grande porte sob o controle da OCB – Organização das Cooperativas do Brasil. A ênfase no modo empresarial de gestão, visando à geração de lucros e à adequação aos ditames neoliberais, teve também o objetivo de assegurar o controle político sobre elas, objetivando diminuir o avanço das formas de organização e de gestão cooperativa descentralizada, autônoma, voltada para o desenvolvimento dos cooperados e da comunidade em âmbito geral – como, por exemplo, as cooperativas vinculadas à CONCRAB.

Sob estas circunstâncias, é importante destacar que as lutas de classes no campo não estão, apesar de suas especificidades, submetidas apenas às influências da realidade agrária, mas inseridas num contexto político, econômico e ideológico mais amplo. Deste modo as mobilizações dos trabalhadores (desde a ocupação da terra até a organização dos assentamentos) são passíveis de interpretações economicistas, uma vez que as bases sociais deste movimento, se desenvolvem a partir da inserção dos trabalhadores na esfera produtiva. Mas os fatores econômicos tornam-se insuficientes para a apreensão do processo como um todo, na sua complexidade. O que não significa dizer que estes devam ser relegados a um plano secundário. As mudanças nas relações sociais de produção, fomentadas nos assentamentos do MST, implicam, necessariamente, mobilizações e enfrentamento político.

As transformações capitalistas no campo não se processaram de modo análogo ao do mundo urbano e industrial. Lá, houve uma adaptação da realidade agrária brasileira às relações capitalistas contemporâneas na medida em que houve sim, uma modernização econômica transformando os latifundiários em capitalistas e diversos tipos de pequenos produtores, em trabalhadores assalariados.

Nos anos 1980 apesar da crise econômica, a agricultura empresarial brasileira, segundo Germer (2002:267), foi o setor que mais cresceu. Obteve por meio de subsídios oficiais “uma seqüência de safras extremamente favoráveis decorrente de uma elevação sustentada e expressiva da produtividade”. Em contrapartida, a massa de pequenos agricultores vem prosseguindo “numa trajetória de empobrecimento e de proletarização”. Parte desta massa de trabalhadores é formada por semi-assalariados rurais, os quais, segundo Germer (2002:276) formam a principal “base social” do MST. Também denominados pequenos produtores semi-autônomos, em áreas menores que 20 ha, não dispondo de terra própria ou de equipamentos de tração animal para ou de ambos. Formam, portanto, um contingente de trabalhadores que vivenciam as contradições do desenvolvimento capitalista da agricultura de modo mais acentuado e de onde se originam as contestações ao regime.

De um lado a burguesia no campo se reconhece como classe empresarial, como possuidora de terras e de recursos produtivos. De outro, um grande bloco heterogêneo da força de trabalho rural com diferenciações internas e sem

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uniformidade política. A polarização entre as classes sociais no campo só ocorrerá quando estes trabalhadores se identificarem como classe social e assumirem, na esfera política, o espaço que já ocupam na econômica Germer (2002:276).

As estruturas agroindustriais montadas no passado estão cedendo espaço para a introdução de novas formas de organizar o trabalho agrícola nos assentamentos como mecanismo de resistência. A Comuna da Terra nos assentamentos próximos às cidades (“Dom Tomás Balduíno”, “Terra Sem Males” e “Irmã Alberta”) nas Comunidades de Resistência nos assentamentos mais distantes dos centros urbanos, no Pontal do Paranapanema e em Andradina.

Estas experiências de controle do processo produtivo pelos trabalhadores questiona a separação entre o trabalhador e os meios de produção, bem como os produtos. Pode contribuir para desvendar os segredos da exploração capitalista. Apesar das deficiências que apresentam e da crise que as atinge, sinalizam em escala reduzida, por meio da cooperação e das cooperativas, que os trabalhadores podem dirigir o conjunto da economia, podem, portanto, ser condutores do seu próprio destino. Bibliografia: ALMEIDA, L. F. R. de. & SANCHEZ, F.R.(1998). “Um grão menos amargo das ironias da história: o MST e as lutas sociais contra o neoliberalismo”. Lutas Sociais, nº 5. BANCAL, J. (1984). Proudhon, Pluralismo e autogestão: os fundamentos. Brasília: Novos Tempos. BOTTOMORE, T. (1988). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar CHACON, V. (1959). Cooperativismo e comunitarismo. Universidade de Minas. CONCRAB (1998). “Sistema de Crédito Cooperativo”. Caderno de Cooperação Agrícola, nº 8. GERMER, C. (1994). “Perspectivas das lutas sociais agrárias nos anos 90”. In: STÉDILE, J. P. (org.) A questão agrária hoje. Porto Alegre: UFRGS. HOBSBAWM, E. J. (1980). “Marx, Engels e o socialismo pré-marxiano”. In: História do Marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra. MARX, K. (1975). “Crítica ao programa de Gotha”. In: Textos. Vol. I. São Paulo: Edições Sociais. __________. (1983).”Mensagem inaugural da associação internacional dos trabalhadores”. In: Obras Escolhidas. Tomo II. Lisboa: Edições Avante. PETRAS, J. (2002). “El campesinado y el Estado en la América Latina”. 7/03/02 (www.rebelion.org). PINHO, D. (1966). O que é cooperativismo. São Paulo: Buriti. PROUDHON, P-J. (1974). Sistema de las contradicciones económicas o filosofía de la miseria. Vol. 2 Madri: Ediciones Júcar.

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Movimento socioterritorial e “globalização”: algumas reflexões a partir do caso do MST Jean-Yves Martin∗ & Bernardo Mançano Fernandes∗∗

Resumo: Será que a dita dita “globalização”, tema central do discurso ideológico ultraliberal, anuncia o fim da geografia? Por meio das reflexões apresentadas neste artigo e a partir da análise do caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), buscamos mostrar que a geografia dispõe de um conjunto de conhecimentos que objetiva fazê-la uma ciência social do espaço em multiescalas, da conflitualidade territorial, da emergência de novas identidades socioespaciais, da pesquisa participante dos geógrafos e de seu comprometimento com a realidade. Desse modo, defendemos que a geografia possa ser capaz de esclarecer e de acompanhar a emergência em curso de uma nova realidade.

Introdução O Fórum Social Mundial de Porto Alegre de 2003 destacou novamente que

um “outro mundo é possível”. O encontro de militantes e cientistas de diversas partes do mundo revelou a diversidade dos movimentos socioespaciais e dos movimentos socioterritoriais e suas ações em todo o mundo. Esse evento nos possibilita entender melhor a falsa afirmação ultraliberal: “não há alternativas fora do capitalismo”. Desse modo, buscamos compreender como as ações desses movimentos são um contraponto aos mitos criados pelos discursos da globalização neoliberal e a todos os becos criados pelo discurso da “pós-modernidade”. E nesta busca refletimos a respeito da participação da Geografia, como ciência social crítica.

Procuraremos situar geograficamente a emergência dos movimentos socioterritoriais, considerando a produção geográfica recente e retornando de modo breve ao pensamento pioneiro de filósofos franceses, utilizando como referência os trabalhos: “A Produção do Espaço” de Lefebvre e “Outros Espaços” de Foucault. Apresentamos algumas considerações de nossa análise geográfica do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), como movimento socioterritorial. Será, ao mesmo tempo, uma reflexão e uma contribuição ao debate lançado e desenvolvido por Fernandes (1996, 2000, 2001 e 2002) e Martin (1997, 2000, 2001). Nessa reflexão, procuramos pensar nosso mundo, que não é

∗ Doutor em geografia, professor da Universidade Michel de Montaigne (Bordeaux III). ∗∗Geógrafo, professor e pesquisador da Universidade Estadual Paulista (Presidente Prudente); pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico – CNPq.

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unicamente o da globalização neoliberal, porque é mais amplo. E esta amplitude deve-se também às ações dos movimentos socioterritoriais.

Breve retorno ao pensamento filosófico espacial francês. Modos de pensar o espaço foram criados na França, particularmente nos

escritos de Lefebvre e de seus colegas, mas também, embora menos visivelmente, nos trabalhos de Foucault. Contudo, segundo Soja, por quase 20 anos, esses “modos” ficaram inexplorados e substancialmente mal entendidos mesmo para os estudiosos das obras de Lefebvre e Foucault (Soja, 1996).

Lefebvre compreendia que a sua “crítica da vida quotidiana” foi a mais importante contribuição à teoria social marxista. Ele insistiu na importância, nos fundamentos e na essência do pensamento materialista dialético. Todavia, é inegável, igualmente, que a sua contribuição maior, nas disciplinas intelectuais, foi sua investigação da construção social e das convenções do espaço.

O autor compreendeu o espacial como dimensão atravessando todas as disciplinas, que pode ser usada como um exemplo ideal para ilustrar o seu desejo do fim da especialização tecnocrática da pesquisa acadêmica e da organização das políticas governamentais. Ele estendeu, assim, progressivamente, o seu conceito inicial da vida quotidiana, primeiro na vida rural do campesinato, depois na extensão dos subúrbios e, finalmente, para discutir a geografia das relações sociais. (Shields, 1999: 141).

A tese central da obra máxima de Henri Lefebvre “A Produção do Espaço” é que o modo de produção organiza, ao mesmo tempo, as relações sociais e os seus espaços. Assim, o espaço não pode ser confundido com os objetos, as coisas e os produtos, Ele as envolve e é por elas constituído. Efeito de ações passadas, o espaço possibilita ações, sugere ou impede outras. O modo de produção de uma sociedade apropria-se, produz seu o espaço, remodelando-o. A organização de espaços centralizados e concentrados serve ao poder político e à produção material.(Lefebvre, 1974: 88-9).

Ora, as classes sociais se realizam nesse espaço. A violência subversiva responde à violência do poder. A luta das classes intervém na produção do espaço, cujas classes, frações e grupos de classes são os sujeitos. A luta de classes, hoje mais do que nunca, pode ser lida no espaço. As formas dessa luta são muito mais diversificadas do que no passado. Fazem parte delas, com certeza, as ações políticas das minorias. Às formas de resistência jamais existirá última palavra. Derrotadas, renascem no estreito fio da contestação e da liberdade. Elas lutam, às vezes ferozmente, para afirmarem-se e transformarem-se através de uma prova. Lefebvre chega à conclusão de que tudo o que provém do tempo histórico é submetido, hoje, a uma “prova do espaço”.

As culturas, as consciências dos povos, dos grupos e mesmo dos indivíduos, não escapam à perda da identidade, que vem se juntar aos outros terrores. Referências e referenciais vindos do passado, dissolvem-se. Os valores, erigidos nos sistemas mais ou menos coerentes, desagregam-se, confrontando-se. Ora, ninguém pode evitar a prova do espaço. Mais e melhor: um grupo, uma classe ou uma fração de classe, só constitui-se e reconhece-se como sujeitos

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produzindo espaço. Os ideais, as representações, os valores que não conseguem inscrever-se no espaço, produzindo uma morfologia apropriada, dessecam-se em signos, dissolvem-se em narrações abstratas, transformam-se em fantasmas. O investimento espacial, a produção do espaço, isso não é um incidente de percurso, mas uma questão de vida e de morte. (Lefebvre, 1974: 478-9).

De acordo com Lefebvre, 1974, o espaço não é somente o teatro ou o receptáculo, nem a cena indiferente ou o simples cenário, nem o quadro das ações. Ele é cada vez mais ativo, é o lugar dos recursos, o meio onde são desenvolvidas as estratégias, como instrumento, objetivo, meio e fim. É assim que ele se torna trunfo principal das lutas e das ações ao suscitar sempre a contestação. Assim, conforme Soja, 1993, através de toda a sua obra, Lefebvre:

define uma ampla problemática espacial do capitalismo e a eleva a uma posição central dentro da luta de classes, inserindo as relações de classe nas contradições configuradoras do espaço socialmente organizado. Ele não afirma que a problemática espacial sempre tenha tido essa centralidade. Tampouco apresenta a luta pelo espaço como um substituto ou uma alternativa da luta de classes. Em vez disso, afirma que nenhuma revolução social pode ter êxito sem ser, ao mesmo tempo, uma revolução conscientemente espacial. Exatamente da mesma maneira que outras “abstrações concretas” (como a forma mercadoria) foram analisadas na tradição marxista, para mostrar como contém em seu bojo, mistificadas e fetichizadas, as verdadeiras relações sociais do capitalismo, também devemos agora abordar a análise do espaço. A desmistificação da espacialidade revelará as potencialidades de uma consciência espacial revolucionária, os fundamentos materiais e teóricos de uma práxis espacial radical está voltado para a apropriação do controle da produção do espaço. (Soja, 1993: 116).

Pois, o intento do pensamento de Lefebvre não é somente um estudo linear do espaço social na sua história e na sua gênese, mas procura compreender melhor o presente para antever o possível futuro. Esta intenção abre-se para os estudos locais, em diversas escalas, inserindo-os na análise geral, na teoria global. Esse propósito inclui os conflitos, as lutas, as contradições. Se o local, o regional, o nacional, o mundial implicam-se e imbricam-se. Assim, o mundial não pode abolir o local.

Há dois momentos na pesquisa de Lefebvre sobre o espaço. O primeiro trata do que ele denominou de urbano, e o segundo do espaço social, o qual ele foi o primeiro a nomear como planetário ou global. Foi o primeiro a falar da necessidade de uma escala planetária de análise. (Shields, 1999: 144-5). O seu projeto é orientado na direção do futuro, oferecendo a possibilidade de gerar uma nova espacialização, uma constante leitura do movimento do mundo – um mundo mais eqüitativo – para além das contradições contemporâneas e das relações de globalização (Shields, 1999: 183). As idéias de Henri Lefebvre iluminaram diversas gerações de esquerda e deixaram as suas marcas não somente na França ou mesmo na Europa, nem somente na academia ou nos partidos, intelectuais e militantes, mas imprimiram as suas marcas nas comunidades, nos bairros, nos movimentos, por meio de debates e ações que contribuíram para a produção e transformação dos espaços e territórios.

Como Lefebvre dizia, “não há saber sem crítica do saber e sem saber

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crítico”. Assim, seu pensamento ainda contribui hoje para a emergência de uma teoria crítica do espaço. Esta teoria crítica, levada até a contestação ou mesmo até a contestação radical, quer substituir a ideologia dominante da “globalização” de um mundo neoliberal, por um pensamento crítico que possa produzir conhecimento a partir da oposição da espacialização das possibilidades.

Nessa lógica de resistência e na perspectiva de superação, outro filósofo francês tem contribuído nesse sentido. Numa conferência proferida em 1967, Michel Foucault descreve da seguinte forma o novo mundo em formação – aquele da globalização nascente – e a angústia que ele já engendrava: “nós vivemos na época da simultaneidade, na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado-a-lado e do disperso. Em todos os casos, acredito que a ansiedade da nossa época tem a ver, fundamentalmente, com o espaço, muito mais do que com o tempo”. (Foucault, 1988). Ele fez, ainda, esta observação: “Como sabemos, a história é a obsessão do século dezenove. A nossa época talvez seja, acima de tudo, a época do espaço”. Em outras palavras, os séculos XIX e XX foram, sobretudo, marcados pela História. O século XXI poderá ser o marcado pela Geografia em construção.

Nesta perspectiva, ainda há muito que fazer para desvendar a constante “natureza do espaço”. Uma primeira dificuldade, para Foucault, é a sacralização do espaço.

Apesar em toda a técnica desenvolvida na apropriação do espaço, apesar de uma rede de relações entre saberes que nos ajuda a delimitá-lo ou formalizá-lo, o espaço contemporâneo não foi ainda totalmente dessacralizado. A nossa vida ainda é determinada por certas dicotomias inultrapassáveis, invioláveis; dicotomias as quais as nossas instituições ainda não tiveram coragem de dissipar. Estas dicotomias são oposições que tomamos como dados desde início: por exemplo, entre espaço público e espaço privado, entre espaço familiar e espaço social, entre espaço cultural e espaço útil, entre espaço de lazer e espaço de trabalho. Todas estas oposições se mantêm devido à presença oculta do sagrado. (Foucault, 1988: 16).

Para avançar em direção a desmistificação do espaço sagrado, as “representações do espaço” devem marcar a emergência de outro mundo. Foucault sublinha toda a importância de analisar os “outros espaços”, quer dizer os espaços que se encadeiam uns nos outros, mas que, por outro lado, contradizem todos os outros. Estes são de dois tipos, que ele chama de “heterotopias”, e “utopias”. As utopias são, literalmente, sítios sem lugar real, que têm uma relação analógica direta ou invertida com o espaço real da sociedade. As heterotopias são espaços reais, onde se desenvolvem, embrionariamente, parcialmente, as utopias em todas as suas contradições. São diversos os movimentos socioterritoriais que procuram realizar esses outros espaços. Foucault evoca as heterotopias da crise, e nesse sentido, destacamos a heterotopias da resistência ou das lutas populares, da territorialização dos movimentos populares.

Ainda, no sentido de conceber a importância de aprender o valor das idéias que nos levam à espacialidade das possibilidades, Harvey, 2000, destaca a importância geográfica do pensamento espacial de Foucault:

Foucault nos oferece e nos nutre de idéias a respeito de espaços de

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outraneidade (otherness), ou seja, da alteridade, onde as alternativas podem ser exploradas não como meros produtos da imaginação, mas através do contato com processos sociais que já existem. É dentro destes espaços que as experiências podem tomar formas e, a partir destes espaços, que uma crítica de normas e de processos existentes pode mais eficazmente ser elaborada. (Harvey, 2000: 184).

Harvey considera também que o conceito de heterotopia tem a virtude de insistir num melhor entendimento da heterogeneidade do espaço em suas dimensões e possibilidades (Harvey, 2000: 185). De fato, Foucault não explora toda a diversidade possível dos “outros espaços”. Apesar disso, ele é explícito ao tratar dos conflitos e trunfos de poder e que os espaços portam esse antagonismo.

Nesse sentido, a geografia das confrontações locais de poder foi, em parte, problematizada por Foucault na temática de uma verdadeira “microfísica do poder”. Perguntado por geógrafos, em 1976 – numa entrevista publicada no primeiro número da revista de geografia crítica Hérodote - após uma certa irritação inicial, ele reconheceu: “a geografia deve estar bem no centro das coisas de que me ocupo. Táticas e estratégias que se desdobram através das implantações, das distribuições, dos recortes, dos controles dos territórios, das organizações de domínios que poderiam constituir uma espécie de geopolítica, por onde minhas preocupações encontrariam os métodos de vocês” (Foucault, 1979:165).

Este tipo de abordagem nos parece importante na análise geográfica das lutas dos movimentos socioterritoriais.

O MST: um movimento socioterritorial. Iniciamos esta parte refletindo a respeito do debate recentemente lançado

por Fernandes, 2000, tomando a territorialização do MST como exemplo para sua reflexão sobre “movimento social como categoria geográfica”. Reflexão continuada em Martin, 2001, que também compreende o MST como movimento socioterritorial, mais do que socioespacial. Desenvolvendo essa discussão, nos parece que alguns pontos do debate devem ser reconsiderados aqui, no sentido de esclarecer, através do caso do MST, não somente as distinções entre espaço e território, mas também, entre os processos de espacialização e de territorialização, assim como entre os movimentos socioespaciais e os movimentos socioterritoriais.

É fundamental fazer nitidamente a distinção entre o espaço e o território. É muito mais do que uma simples questão de terminologia. Assim, após Raffestin, 1993, que já fez considerações a respeito da anterioridade do espaço, Oliveira argumenta que:

Desvendar o território pode e deve ser uma perspectiva científica para a geografia. Por isso, insistimos, temos que aprofundar as diferenças que nos move perante essa luta de cunho teórico, e por isso reafirmamos que o território não pode ser entendido como equivalente, como igual ao espaço, como propõem muitos geógrafos. Nesse caminho, torna-se fundamental compreender que o espaço é uma propriedade que o território possui e desenvolve. Por isso, é anterior ao território. O território, por sua vez, é um espaço transformado pelo trabalho e, portanto, uma produção humana, logo, espaço de luta de classes ou

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frações de classes sendo, pois, o lugar da luta cotidiana da sociedade pelo seu devir. (Oliveira apud Fernandes, 1996:12-13).

A distinção espaço/território torna-se muito mais necessária ainda, no contexto atual da globalização, com a emergência de movimentos populares de contestação, como, entre outros, o MST no Brasil:

O capital mundializou-se, mundializou seu território. Produziu, construiu, transformou seu território. E qual foi o resultado desse processo? Uma pequena parte da humanidade apropriou-se, de forma privada, do mundo. O território capitalista, confiscado historicamente no processo de sua construção, agora é contestado. As lutas dos Sem Terra são marcas visíveis dessa contestação. E, mais do que isso, pequenas parcelas estão sendo retomadas pelos Sem Terra. Nelas estão semeando a utopia, reencontrando sua identidade e se tornando cidadãos. (Oliveira apud Fernandes, 1996:13).

Vejamos o problema do campesinato no espaço rural brasileiro, como exemplo. O campesinato é um grupo social – parte da classe trabalhadora – que historicamente tem resistido a desterritorialização. Mas é um grupo social singular, porque a sua subordinação ao capital não é total, como é a do assalariado. Essa distinção é importante, porque no caso do assalariado não existe um território de resistência, mas somente um espaço político de resistência – expressa pelas reivindicações salariais. No caso do campesinato, a terra de trabalho é um território de resistência. Na luta pela terra, na ocupação do território do latifúndio, o acampamento é um espaço de resistência. A diferença entre território e espaço para a leitura da resistência é fundamental, porque o capital em sua reprodução ampliada (que é também um processo tanto de espacialização quanto de territorialização) domina ou tenta dominar todos os espaços e todos os territórios. Ao mesmo tempo em que a resistência e o enfretamento são formas de apropriação de espaços e territórios.

Mesmo na condição da subalternidade, o campesinato tem resistido e enfrentado o processo de territorialização do capital. Conforme Oliveira (1999:107), “a territorialização do monopólio e a monopolização do território podem se constituir em instrumento de explicação geográfica para as transformações territoriais do campo. O território é assim produto concreto da luta de classes travada pela sociedade no processo de produção de sua existência” (Oliveira, 1999:74). Complementarmente, Fernandes (2000) analisa um outro lado desse processo, que é a territorialização da luta pela terra.

O território é o resultado do processo de apropriação permanente do espaço geográfico através de práticas territoriais individuais, de classes sociais e ou institucionais. Esse processo pode ser materializado e/ou ideologizado permanentemente por meio de trocas materiais e da produção ideológica, podendo ir até o sonho, o mito, a utopia (Martin, 2000: 79-82). É precisamente dessa multiplicidade das práticas territoriais que provém a multidimensionalidade do território. A apropriação do espaço geográfico como território, segue um processo histórico cíclico de T-D-R (Territorialização–Desterritorialização–Reterritorialização).

Decerto que o capital subordina a tudo e a todos, quem resiste e quem não resiste, os que ficam e os que partem, porque o capital vai alcançá-los. Sem

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entender a produção do espaço capitalista em suas T-D-R, não compreendemos esse processo. Este pode ser um exemplo que esse processo historio não escapa a prova do espaço, como afirmou Lefebvre. Mas nesse entretanto são construídas as heterotopias, quando o processo de territorialização do capital é interrompido por sua própria lógica de reprodução contraditória ou por um conjunto de ações de enfrentamento, na apropriação de frações do território capitalista, transformando-o em território camponês. Conforme já afirmou Raffestin (1993:59), o território é um trunfo no movimento contínuo de enfretamento e resistência ao capital, ao seu processo de territorialização.

É fundamental lembrar, para fugir dos “becos sem saída” da pós-modernidade, que quando falamos de território, estamos falando de conflito. Porque território é poder e dominação, é autonomia e subordinação, é liberdade e prisão. É, portanto, luta e resistência. Por essas razões, o território carrega em si o contraditório e, portanto, a possibilidade de superação e de subordinação; de apropriação e de expropriação. E na sociedade capitalista, a territorialização do capital também acontece desterritorializando o campesinato ao mesmo tempo em que o campesinato se reterritorializa desterritorializando o capital.

Para melhor compreender esses processos é preciso discutir os conceitos de espacialização e de territorialização. Do mesmo modo que o território não é a mesma coisa que o espaço, há também que distinguir, cuidadosamente, os processos de espacialização e territorialização. Espacialização é o processo do movimento concreto da ação e sua reprodução no espaço e no território. É expansão, multidimensionamento e reprodução contínua do espaço político. Territorialização é o processo de reprodução, recriação e multiplicação de frações do território.

Dessas ações provém a eficácia reconhecida do MST, enquanto movimento socioterritorial, de conseguir realizar a combinação destes dois processos – espacialização e territorialização – diferentes é certo, mas que se revelam, de fato, complementares e indissociáveis. “Os movimentos socioterritoriais realizam a ocupação através do desenvolvimento dos processos de espacialização e territorialização da luta pela terra. Ao espacializarem o movimento, territorializam a luta e o movimento. Esses processos são interativos, de modo que espacialização cria a territorialização e é reproduzida por esta” (Fernandes, 2001:69).

No processo de espacialização, os acampamentos são resultados das ocupações. São espaços heterotópicos, de concretude política, da perspectiva e da esperança da transformação das realidades. E para mudar a realidade é preciso transformar o espaço em território. Desde esse ponto de vista, é preciso levar cuidadosamente em consideração todos “os grupos expropriados cujos acampamentos, circunstanciais, fazem parte de sua estratégia de resistência, como é o caso dos acampamentos, às vezes altamente organizados, dos sem-terra e dos sem-teto” (Haesbaert, 1995:191). Nos casos das ocupações, há, claramente, um questionamento imposto ao espaço. Estas são possibilidades para introduzir, tanto em escala local, como estadual e nacional, uma novidade radical que põe em questão a organização estabelecida do espaço. A ocupação é um processo

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socioespacial e político complexo compreendido como forma de luta popular de resistência do campesinato, para sua recriação e criação. Nesse sentido, a ocupação da terra e sua espacialização levam a transformação do espaço em território, com a conquista da terra.

É na preparação e na realização de uma ocupação, mais ou menos massiva, que os sem-terra dão-se os meios de pôr, radicalmente, em questão o tabu sócio-histórico do latifúndio. A ocupação constitui uma transgressão dos limites, no caso fundiário, oficialmente traçada. Mas, ela é, ao mesmo tempo, um conjunto de práticas sociais que constroem e estruturam o movimento.

Com essas práticas, os sem-terra reúnem-se em movimento. Superam bases territoriais e fronteiras oficiais. Na organização da ocupação massiva, agrupam famílias de vários municípios e de mais de um Estado, quando em áreas fronteiriças. Desse modo, rompem com localismos e outras estratégias advindas de interesses que visam impedir e ou dificultar o desenvolvimento da luta pelos trabalhadores. (Fernandes, 2001: 72-73).

A ocupação, como prática socioespacial e territorial radical, caracteriza fortemente o processo de formação do MST. Também os acampamentos, as marchas ou caminhadas são formas de luta que têm sido utilizadas por diferentes organizações políticas. Assim entendidas, compreende-se melhor porque o poder neoliberal busca, desde a segunda metade dos anos 1990, criar muitos obstáculos a fim de enfrentar mais eficazmente esse movimento popular considerado insuportável: judiciarização, militarização, repressão, prisão e elaboração de políticas voltadas para o mercado, como por exemplo, o Banco da Terra.

Com essa estratégia, o governo Fernando Henrique Cardoso tentou dominar a lógica do conflito, porque por meio do Banco da Terra é o mercado que passa a ser a condição de acesso à terra e não mais as ações dos sem-terra.

Movimentos socioespaciais e movimentos socioterritoriais Em primeiro lugar é necessário informar que a denominações movimento

socioespacial e movimento socioterritorial têm um significado lógico. Ao cunharmos esses conceitos, nossa principal preocupação é a possibilidade de realizarmos uma leitura geográfica dos movimentos sociais. O conceito sociológico de movimento social tem como conteúdo e significado o estudo da organização e das relações desenvolvidas pelos movimentos. Não há a preocupação com a leitura geográfica ou com os processos geográficos constituídos pelas ações dos movimentos sociais.

Ao analisarmos as ações de movimentos sociais a partir de suas práticas socioespaciais e socioterritoriais, estamos realizando uma leitura diferenciada daquela feita pelos sociólogos. Não estamos preocupados somente com a compreensão das formas e das relações, mas principalmente com a compreensão dos espaços produzidos e dos territórios conquistados.

Nesse sentido, existindo uma prática socioespacial ou socioterritorial dos movimentos sociais existe também uma forma de leitura e denominação dessas práticas. Evidente que todos os movimentos sociais produzem espaços, que sejam sociais, políticos e, culturais. Por essa razão, esses movimentos também podem ser

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chamados de movimentos socioespaciais. Enquanto os sociólogos estão preocupados em estudar o desenvolvimento

das ações para compreender a transformação da forma do movimento, observado qual a forma institucional que este vai assumir, ou se vai ser extinto, quando atingir os seus objetivos e reivindicações, nós estamos preocupados em compreender os tipos de espaços e de territórios produzidos e conquistados pelos movimentos. São, portanto, métodos de análise diferenciados.

Geógrafos e sociólogos se preocupam com os movimentos sociais de diferentes maneiras. Ambos querem compreender as ações e os seus resultados na transformação da realidade em questão. Mas, procuram ver de pontos diferenciados. Os sociólogos têm os movimentos sociais como objeto de análise, pesquisando uma parte da realidade que são as dimensões sociopolíticas e culturais. Os geógrafos também têm os movimentos sociais como objeto de análise, pesquisando uma outra parte da realidade que são as dimensões socioespaciais e socioterritoriais. Quando um geógrafo estuda os movimentos sociais como conceito sociológico, pode estar utilizando –o como metáfora. Afinal, como afirmou Santos (1996:70): “conceitos em uma disciplina são freqüentemente apenas metáforas em outras, por mais vizinhas que se encontrem. Metáforas são flashes isolados, não de dão em sistemas e não permitem teorizações”.

Igualmente é importante esclarecer que os sociólogos trabalham com o espaço social e político. Todavia, a leitura sociológica do espaço é diferente da leitura geográfica do espaço. O espaço pode ser lido como relação social, como produto ou como objeto e até como metáfora. Para o geógrafo, o espaço é processo, é movimento, é materialização ou como prefere Santos (1996) “é indissociavelmente sistema de ações e sistema de objetos”. E mais, é no processo de produção do espaço geográfico que o território é formado e conquistado, apropriado e expropriado, porque o território contém o espaço e neste está contido.

Também é importante esclarecer que não estamos querendo “disputar espaços” com os sociólogos, porque a questão não é apenas de denominação, mas de método e conceitual. Ao se utilizar um método sociológico, coerentemente usa-se o conceito de movimento social. Aos se utilizar um método geográfico é coerente que empreguemos os conceitos de movimento socioespacial ou de movimento socioterritorial.

Nessa reflexão, também é importante fazer a distinção entre movimento sindical e movimento social. São instituições distintas. Os movimentos sociais autênticos não são instituições jurídicas, normativas controladas pelo Estado, pois são criados como instituição alternativa, é uma possibilidade de mudança das estruturas oficiais. Mas um movimento sindical pode ser um movimento socioespacial, como por exemplo, os sindicatos de professores ou de metalúrgicos. Da mesma forma, um movimento sindical pode ser um movimento socioterritorial, como por exemplo, os sindicatos de trabalhadores rurais ou sindicatos de agricultores familiares.

O conceito de movimento socioespacial contém diferentes dimensões do espaço geográfico: social, política, econômica, cultural e ambiental. Nesse sentido,

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os movimentos socioespaciais têm esses espaços como trunfo. É para a compreensão da produção desses espaços que utilizamos o conceito. São exemplos, os movimentos contra a carestia, os movimentos sindicais, os movimentos pela preservação do meio ambiente, pela preservação de áreas tombadas como patrimônio público, entre outros.

Os movimentos socioterritoriais têm o território como trunfo. Da mesma foram que a existência dos movimentos socioespaciais está diretamente relacionada com determinados espaços, a existência dos movimentos socioterritoriais está absolutamente vinculada ao território. Um movimento socioterritorial como o MST tem como um de seus principais objetivos a conquista da terra de trabalho.

Os movimentos socioespaciais e os socioterritoriais podem ser isolados, espacializados ou territorializados. Os significados desses tipos de movimentos têm como referência o espaço geográfico e a organização social. Os movimentos isolados em espaços ou em territórios determinados, não se espacializam e não se territorializam. Os movimentos espacializados e os movimentos territorializados organizam-se e atuam em diferentes espaços e territórios ao mesmo tempo. (Fernandes, 2001: 64).

Não se trata aqui do problema do planejamento oficial do espaço – mesmo dito, às vezes, notadamente na França, “do território” – mas é, de preferência, questão das práticas emergentes dos movimentos socioespaciais e socioterritoriais, até agora sempre deixadas à parte do problema. É na e para uma tal territorialização deliberada que o espaço torna-se verdadeiramente um trunfo, não mais entregue às elites dominantes apenas, mas acessível às camadas populares, através, notadamente, dos movimentos urbanos ou rurais.

Eles reorganizam porções do espaço geográfico com o desenvolvimento de práticas socioterritoriais e socioespaciais alternativas, como, por exemplo, quando uma fração de latifúndio é transformada em assentamento, mediante a pressão de uma ocupação de sem-terra, ou quando os sem-teto ocupam uma parcela vazia num bairro urbano ou ocupam um conjunto de casas.

Um movimento socioterritorial, como é o MST, longe de encerrar-se nas estruturais herdadas e impostas do espaço produzido pela sociedade capitalista, na sua etapa da globalização, desenvolve práticas alternativas que põem em questão a estruturação espacial. As chaves do relativo êxito de um tal movimento – comparativamente ao fracasso da maioria dos movimentos sociais urbanos – são as seguintes: As ocupações permitem de desestabilizar o tabu sócio-histórico brasileiro do latifúndio. Compreende-se bem todos os esforços do poder neoliberal para pôr fim às ocupações dos sem-terra. Portanto, elas não são somente uma resposta local a uma determinação global, mas também os firmes pontos de apoio para uma interatividade multiescalas do movimento, do local até o internacional, como no seio da Via Campesina, movimento camponês transnacional, por exemplo. Enfim, ultrapassando a estigmatização anti-rural, o movimento é também portador, sobretudo através de suas lutas, da afirmação de uma identidade camponesa enfim reconhecida.

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Considerações finais As ações dos movimentos socioespaciais e dos movimentos

socioterritoriais no enfretamento contra a perversidade da globalização podem ser vistas contidianamente por meio das diversas formas de mídias.

Nessas considerações finais, queremos lembrar da Via Campesina – nosso atual objeto de estudo, como importante exemplo do pensamento que estamos desenvolvendo. Durante as três versões do Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, nos anos 2001, 2002 e 2003, foi notável a participação da Via Campesina nas plenárias e nos diversos debates temáticos do evento.

A Via Campesina foi criada em 1992 e é uma articulação de diversas organizações camponesas da América Latina e do Norte, da Europa, da Ásia e da África. Em seus documentos, a Via Campesina registra que tem como objetivo a construção de um modelo de desenvolvimento da agricultura, que garanta a soberania alimentar como direito dos povos de definir sua própria política agrícola, bem como a preservação do meio ambiente, o desenvolvimento com socialização da terra e da renda (Via Campesina, s.n.t.). No Brasil, estão vinculados à Via Campesina: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST; Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA; Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, Comissão Pastoral da Terra – CPT e Associação Nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais – ANMTR. Na França, estão vinculados à Via Campesina: a Fédération Nationale des Syndicats d’Exploitants Agricoles e a Confédération Paysanne.

A partir da articulação da Via Campesina, esses movimentos socioterritoriais conquistaram uma representação mundial. A constituição dessa articulação tem possibilitado aos movimentos camponeses a organização de ações conjuntas em escala mundial, bem como a troca de experiências no que se refere aos processos de espacialização e territorialização da luta pela terra e pela reforma agrária e no enfrentamento com políticas impostas por instituições nacionais e supranacionais, como por exemplo o processo de mercantilização da reforma agrária, denominado Banco da Terra, implantado pelo Banco Mundial em convênio com governos das Filipinas, África do Sul, Brasil, Colômbia, Guatemala e Chile.

Como contribuição, para compreender essa nova realidade em curso, esperamos que as reflexões aqui apresentadas sirvam de referência para um debate com os estudiosos do tema, em especial para os geógrafos preocupados com essa questão. É um trabalho hercúleo superar a idéia de globalização como fábula, pois essa realidade é perversa e por essa razão é preciso pensar outra globalização, como defende Santos (2000).

Acreditamos que o conteúdo deste artigo seja obejto de discussão para que possamos pensar os movimentos socioterritoriais como sujeitos desafiadores dessa ordem e protagonistas de uma transformação porvir.

Bibliografia FERNANDES, B. M. (1996) MST, formação e territorialização. São Paulo: Hucitec. __________.(2000). “Movimento social como categoria geográfica”. Terra Livre, n°15.

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__________. (2001) Questão Agrária, Pesquisa e MST. São Paulo: Editora Cortez, 2001. FOUCAULT, M. (1979). Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal. __________. (1976)”Questions à Michel Foucault”. Hérodote, n° 1. __________. (1988). “Des espaces autres”. in: Dits et écrits. Gallimard: Paris.HARVEY, D. (2000). Spaces of Hope. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2000. HAESBAERT, R. (1995). “Desterritorialização: entre as redes e os aglomerados de exclusão”. In: CASTRO, I. Elias de; GOMES, P. C.r da Costa; CORRÊA, R. Lobato. Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. LEFEBVRE, H. (1974). La production de l’espace. Paris: Anthropos. __________. (1986). Le retour de la dialectique. Paris: Ed. Messidor. MARTIN, J-Y. (1997). “A geograficidade dos movimentos socioespacais”. Caderno Prudentino de Geografia n° 19/20. __________. (2000). Identités et territorialités dans le Nordeste brésilien, le cas du Rio Grande do Norte. Villeneuve d’Ascq: Ed. Septentrion. __________. (2001). Les Sans-Terre du Brésil, géographie d’un mouvement socio-territorial. Paris: l’Harmattan OLIVEIRA, A. U. (1999). “A Geografia Agrária e as transformações territoriais recentes no campo brasileiro”. In CARLOS, A. F. A. Novos Caminhos da Geografia. São Paulo: Contexto. RAFFESTIN, C. (1993). Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática. SANTOS, M. (1984). Pour une géographie nouvelle, de la critique de la géographie à une géographie critique. Paris: Publisud. __________. (1996). A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec. __________. (2000). Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Editora Record. SHIELDS, R. (1999) Lefebvre, Love and Struggle, Spatial dialectics. London-New York: Routledge. SOJA, E. W. (1993). Geografias Pós-Modernas, a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro: Zahar.

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A atualidade da luta de classes nos Estados Unidos∗

Samuel Holder∗∗

Resumo: A campanha de preparação da guerra no Iraque feita pela administração Bush provocou inquietação no mundo inteiro. A partir do estouro da bolha especulativa das ações da nova economia e do atentado do 11 de setembro de 2001, a resposta econômica e bélica da primeira potência imperialista apareceu, como nunca, uma ameaça para a humanidade. Mas um antiimperialismo que se reduziria essencialmente a uma forma de antiamericanismo seria uma armadilha. Seria facilitar os planos da burguesia americana de conceber a população dos Estados Unidos como um todo, nacionalista e reacionária, docilmente enfileirada atrás de seus dirigentes, com exceção de um punhado de intelectuais de esquerda.

Antiamericanismo ou antiimperialismo? A “outra América” responde A atualidade mais imediata desmente a unanimidade. Está nascendo um

movimento antiguerra com a iniciativa de um coletivo chamado Not in our name (Não em nosso nome)1. Durante o final de semana de 5 a 6 de outubro de 2002, um ano depois do início da guerra no Afeganistão, dezenas de milhares de pessoas fizeram manifestações contra o projeto de guerra no Iraque em cerca de trinta grandes cidades. Uma mobilização dos estivadores bloqueou durante vários dias as 29 portas da costa Oeste dos Estados Unidos. Após o lock-out2 dos patrões, Bush decidiu impedir os estivadores de voltar ao trabalho durante 80 dias. Ele recorreu à lei Taft-Hartley, de 19473.

Não se trata de exagerar a abrangência de tais fatos, mas de constatar dois fenômenos importantes: 1) se considerarmos as recentes pesquisas, veremos que a população americana se sente cada vez menos decidida a apoiar Bush nos seus projetos de guerra. Uma fração da juventude estudantil tem mostrado hostilidade à guerra. 2) o pretexto da “cruzada antiterrorista” não consegue impedir que setores do mundo do trabalho recorram à luta coletiva para defender seus interesses. Além

∗ Artigo publicado inicialmente na revista Carré rouge, nº. 23, em outubro de 2002. Traduzido do francês por Renata Gonçalves, membro do NEILS. ∗∗ Membro do comitê de redação da revista Carré Rouge, editada em Paris; e responsável pelo sítio web Cultura e Revolução: http://culture.revolution.free.fr1 Consultar o sítio: www.nion.us. 2 Artifício de um empregador que se recusa a admitir os trabalhadores em seus cargos. Não são os empregados que não querem trabalhar; é o empregador que não os deixa entrar. 3 Jimmy Carter aplicou esta lei contra os mineiros do carvão, cuja greve durou 110 dias (de dezembro de 1977 a março de 1978).

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do movimento dos estivadores, assinalamos a forte mobilização, durante várias semanas, notadamente em Boston, dos janitors, trabalhadores de manutenção alocados como vigias, porteiros, zeladores e faxineiros de grandes edifícios4.

Estereótipos e realidades sociais É impossível precisar as complexas e contraditórias tendências que afetam

um corpo social de 285 milhões de habitantes. Além disso, o quadro que se tinha da sociedade americana há dois anos, foi modificado atualmente pelo movimento de uma economia em recessão. A isto se agrega a intervenção de um Estado hipertrofiado que dispõe de fundos consideráveis para, em parte, mascarar as falhas dessa economia, à custa de subvenções para fins protecionistas, sobretudo nos setores do aço e da agricultura; de refluxos de grupos em falência, tais como as companhias aéreas; de encomendas massivas, principalmente nas indústrias ligadas ao armamento.

No início de setembro de 2001, no momento em que as somas anunciadas pelas grandes firmas eram calamitosas, o atentado contra as Twins Towers ofereceu para a burguesia americana a oportunidade de reforçar seu arsenal repressivo contra seus próprios cidadãos, antes de tudo contra os trabalhadores e aqueles e aquelas que contestam sua dominação. Ela aproveitou a ocasião para injetar uma forte dose de patriotismo em toda a sociedade e para submeter as classes populares à sacrifícios em nome da defesa de “nossos valores”. Estes valores só poderiam ser fictícios, mas nos planos da “Moral”, da “Liberdade” e da “Nação”. Para defender com eficácia os interesses do capitalismo americano, os dirigentes dos Estados Unidos precisaram recrutar ideologicamente todas as classes sociais. Com esse objetivo, precisaram dissolvê-las em agrupamentos míticos: os Estados Unidos, eixo do Bem e “país livre”, “país das oportunidades” oferecidas a todos, o Povo americano constituindo uma Nação unida e democrática por excelência.

O mito de uma sociedade sem classes O grande capital zela meticulosamente pelas informações e imagens

difundidas pelos meios de comunicação que possui e controla. Em tempos de crise, as nuanças entre os formadores de opinião têm de ser atenuadas. O objetivo é que o máximo de indivíduos, de todas as classes, tenha uma visão padronizada, comum, de todos os problemas, em consonância com os interesses da classe dirigente. Os canais de televisão devem produzir um prêt-à- penser, pensamentos prontos para usar, tão rigorosamente idênticos como um cheeseburger pode ser igual a um outro cheeseburger. O princípio da “democracia” americana e da eficácia de sua economia é que o máximo de pessoas, soldadas pela mesma ideologia e pelas mesmas práticas sociais, pense e consuma a mesma coisa para satisfazer suas necessidades essenciais.

A burguesia desenvolveu meios consideráveis para sufocar qualquer possibilidade de consciência de classe e para propagar o mito de uma sociedade

4 Consultar o sítio: www.jwj.org

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democrática e igualitária. Os jornalistas podem até investigar e exibir traços espetaculares sobre os mais ricos ou os mais pobres. Ideologicamente, isso não tem nada de inconveniente e não pode desestabilizar o sistema. Sempre é possível mostrar um punhado de pobres que conseguiram enriquecer. Quanto aos pobres desclassificados, descontentes com seus destinos, o sistema, em seu conjunto, é suficientemente maduro para enquadra-los na categoria de reais ou supostos delinqüentes. Foi assim que as autoridades encarceraram 2% da população ativa. Uma parcela dos prisioneiros trabalha para ganhar um salário de 25 centavos a 1,15 dólar por hora! A este preço, é viva a concorrência entre as empresas para fazer contratos com organismos ligados às prisões federais ou às dos Estados. Os afro-americanos, particularmente os jovens, são grande maioria nas prisões e nos circuitos da justiça criminal. O poder instaura nos fatos e nos espíritos dos “cidadãos respeitáveis” (leia-se brancos) uma fronteira ao mesmo tempo social e racial com a população dos guetos, a mais pobre e a mais desprezada (Wacquant: 1999; 2001).

Quem construiu a América? A história dos Estados Unidos é de numerosas lutas sociais que

freqüentemente tiveram uma característica grandiosa. As revoltas dos escravos negros e a guerra de Secessão no século XIX, o movimento pelos direitos civis dos anos 1950-1970, as lutas radicais dos negros pela emancipação, a dos estudantes contra a guerra do Vietnã contribuíram para o progresso do conjunto da sociedade americana, apesar da burguesia ter sido a principal beneficiária. As grandes lutas da classe operária americana, desde suas origens, contribuíram fundamentalmente na moldagem dos Estados Unidos num sentido progressista e democrático; e isto de modo quase ininterrupto há 140 anos5. Esse país que, como dizia o escritor Helman Melville, é mais um mundo do que uma nação, tornou-se, assim, um espaço e uma sociedade atraente para milhões de pessoas vindas de todos os continentes. O dinamismo e a criatividade artística, tecnológica e científica dos Estados Unidos provêm do fato de serem um país de imigrantes, de trabalhadores, que gastaram sua energia em todas as direções. Não há arranha-céus, jazz, cinema, homens pisando na lua sem eles.Não há uma única conquista social que não tenha sido arrancada por eles em grande luta. Foram eles que construíram a América6.

É sintomático da consciência de classe da burguesia americana, ou pelo menos de seu instinto de classe, que tenha investido grandes recursos para que seu proletariado fosse invisível e mudo, para que a história de suas lutas se apagasse da memória dos trabalhadores e das jovens gerações. É bastante significativo que

5 Ver Who built America? (dois tomos). Obra coletiva da American Social History Project (1992). 6 Ver Guérin (1968; 1973).

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os Estados Unidos sejam o único país no mundo onde o 1o. de Maio não é comemorado com manifestações.7

A riqueza esquecida e escondida do movimento operário O proletariado americano é como um gigante que, apesar dos severos

golpes que sempre recebeu, sempre se ergueu de maneira inesperada, como uma força ameaçadora. O fato de numerosas greves serem acompanhadas, em qualquer época, de apelos aos fura-greves e de uma repressão sangrenta, freqüentemente com a morte de vários grevistas, jamais provocou recuos de longa duração. Na verdade, foi o peso das burocracias sindicais, das suas traições, do papel do stalinismo e das fraquezas internas ao movimento operário que deram o tom em vários momentos.

Olhando do lado de cá da América, é difícil imaginar o que fez a riqueza de experiências e heroísmos do movimento americano. A fortiori é impossível avaliar o que se transmitiu até hoje destas exaltadas, mas também amargas experiências8. Tratavam-se de organizadores sem igual de grandes greves, de sindicatos abertos a todos, homens e mulheres, operários sem qualificação, negros e brancos, imigrantes recém-chegados ao país. Ainda hoje, o que seus militantes realizaram só pode inspirar todos aqueles que, nos Estados Unidos ou fora dele, concretamente se preocupam em intervir no seio da classe operária com um projeto revolucionário e internacionalista de transformação da sociedade.

O movimento operário americano adquiriu um caráter bastante ofensivo alguns anos depois da crise de 1929, por meio de três grandes greves em 1934: a dos Auto-Lite, em Toledo; a dos Caminhoneiros, em Minneapolis; a dos Marinheiros e Estivadores de São Francisco9. Mas o caráter massivo desse movimento surgiu com as greves e a ocupação de 1937 que, segundo Art Preis (1982), atingiram 1.861.000 trabalhadores. Sabe-se pouco sobre as greves que eclodiram nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial e que 3.470.000 trabalhadores fizeram greve em 1945 e que, em 1946, foram 4.600.000! Nos dois anos do pós-guerra aconteceram também manifestações de soldados americanos em Manille, em Guam e em Paris, exigindo sua retirada.

Porém, quanto mais a classe operária ganhava força nas greves, mais as suas potencialidades políticas iam estiolar-se e quase desaparecer ao longo da Guerra Fria. A perspectiva de fazer emergir um Labor Party, um partido dos trabalhadores autônomo apresentou-se em vários momentos do século XX, mas sempre foi minada pelas manobras dos stalinistas e dos burocratas sindicais ligados ao Partido Democrata. Os anos do macartismo foram de guerra contra 7 Data precisamente escolhida pelo movimento internacional em homenagem aos oito trabalhadores enforcados após violentos confrontos com a polícia em Haymarket, Chicago, no dia 4 de maio de 1886. 8 Ver um magnífico testemunho de uma das pioneiras do movimento operário do fim do século XIX e do início do século XX: Mary Jones, mais conhecida como Mother Jones (1977). Ver também Flynn (1976); Haywood (1974; 1985); Cannon (1980); Jackson (2001 e notas de leitura na página www.culture.revolution.free.fr). 9 Sobre o Movimento dos Caminhoneiros dirigido pelos militantes trotskistas ver Dobbs (1981a; 1981b).

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todos os militantes operários radicais. Os comunistas, os trotskistas e todos aqueles considerados como tais foram eliminados da direção dos sindicatos, freqüentemente despedidos e colocados em uma lista negra. Todavia, nas grandes mobilizações dos anos 1960 e 1970, puderam desempenhar seu papel contra a guerra do Vietnã e de apoio à revolução cubana.

No plano das reivindicações, um importante recuo da classe operária se produziu em seguida. Pode-se datar esse recuo a partir das concessões (particularmente, salariais) impostas aos trabalhadores da Crysler em 1979 e 1980, sob a presidência de Carter e, sobretudo, a partir de 1981, quando Reagan demitiu 11.500 controladores aéreos que estavam em greve. Desde então, lutas importantes eclodiram, como a greve na Caterpillar, que durou 205 dias, em 1982 e 1983, mas estas não permitiram reconquistar o terreno perdido. Paralelamente a este recuo, o avanço da ideologia liberal e o enriquecimento financeiro de setores das classes médias fizeram recuar as idéias na academia. O alcance da campanha Not in Our Name e sua repercussão nas universidades ganham ali toda sua importância.

Retorno a uma “revolta social híbrida” Em 1991, George Bush pai, diante de um grupo de estudantes da

Universidade de Michigan, declarou: “nós nos tornamos o sistema mais igualitário da história e um dos mais harmoniosos”. Alguns meses mais tarde, em 29 de abril de 1992, estourou um motim em Los Angeles, após a absolvição de policiais que esbordoaram de maneira selvagem um condutor negro que havia cometido uma infração. Esse motim durou uma semana. Supermercados foram saqueados por pobres de todas as origens. Comerciantes coreanos foram massacrados por amotinados negros. A repressão policial foi particularmente feroz. Esse motim, que foi um dos mais terríveis da história dos Estados Unidos, deixou 58 mortos e 2.300 feridos. O motim da primavera de 1992, em Los Angeles, segundo a expressão do crítico sociólogo Mike Davis (2000), foi “uma revolta social híbrida”, expressando cóleras e processos sociais diferentes. Apesar deste não ser o tipo de acontecimento que as autoridades americanas quisessem comemorar no décimo aniversário, as experiências deformadas ou inacabadas da luta de classes não desapareceram da memória dos seus protagonistas. O episódio sangrento de Los Angeles juntou ingredientes que não deixarão de se manifestar novamente quando houver uma ou outra injustiça flagrante. Mas ninguém pode prever o que brotará das futuras revoltas urbanas. A única certeza é que a grande burguesia se prepara minuciosamente para um estado de guerra civil, reforçando a repressão policial e seu arsenal judicial, colocando as diferentes componentes da população umas contra as outras e, sobretudo, atomizando e enfraquecendo ao máximo a classe trabalhadora.

A ofensiva da burguesia americana contra seu próprio proletariado Há 25 anos a realidade primeira da luta de classes nos Estados Unidos é a

potência e a coerência da ofensiva da classe dirigente contra a dos trabalhadores. Em 2001, o sociólogo americano Rick Fantasia, de modo significativo e sem

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exagero, pôde intitular o estudo sobre esta ofensiva de A ditadura sobre o proletariado. Esse estudo mostra como os patrões contrataram a taxas exorbitantes todo um exército de empresas de consultoria para erradicar o máximo de sindicatos e para ajudá-los a substituir os trabalhadores que estavam em greve. Essa ofensiva profunda e de longa duração foi vitoriosa. Ela é fator explicativo dos pretendidos milagres realizados pelo “crescimento da economia americana” ao longo dos anos oitenta.

A supressão de um sindicato numa empresa teve três efeitos para o empregador: 1) as defesas dos trabalhadores se enfraqueceram consideravelmente e as greves tiveram mais ainda um caráter ilegal; 2) os patrões não têm mais de suportar o custo e os inconvenientes ligados à existência de contratos e à sua renegociação; 3) uma empresa sem sindicatos atrai mais facilmente os investimentos.

O democrata Carter inaugurou, em 1977, a primeira reforma fiscal e regressiva em benefício dos mais ricos, assim como o congelamento dos gastos sociais. Os outros o seguiram. O republicano Reagan preparou o desmantelamento do amparo social e foi o democrata Clinton que o realizou em 1996. Essa “reforma” obrigou qualquer pessoa a aceitar qualquer tipo de trabalho. Em todas as outras áreas relativas às classes populares, como as aposentadorias, os seguros desempregos, os custos com saúde ou gastos com escolaridade, todas as conquistas e garantias dos trabalhadores foram progressivamente destruídas. Essa destruição foi planejada por “auditores” reacionários (os think thank) pagos por grandes empresas.

O big business ganhou a aposta. Com uma mão-de-obra cada vez mais flexível, precarizada, desnuda de qualquer rede de proteção, foi possível para os capitalistas reerguer suas taxas de lucro. Os progressos tecnológicos foram associados a formas de exploração clássicas e até mesmo arcaicas. O taylorismo jamais conheceu tal extensão ao conjunto dos setores industriais e dos serviços. O sucesso das “livres” empresas concorrentes da high tech na Silicon Valley confiou nos investimentos massivos do Estado em termos de financiamento em pesquisa e no ensino, e na compra de seus produtos (Fligstein: 2001). Outro pilar dessa success story foi o emprego em grande escala de uma mão-de-obra mal paga, pouco qualificada, submetendo-se a ritmos de trabalho extremamente rápidos e sendo obrigada a respirar produtos tóxicos.

O impulso das cadeias de fast food corresponde à entrada massiva das mulheres na esfera produtiva ao longo dos anos setenta. O trabalho das mulheres era indispensável para compensar a perda de poder aquisitivo de seus lares e não mais lhes deixavam a possibilidade de preparar todas as refeições para a família. Uma empresa como a Mc Donald’s lançou-se nessa brecha, propondo uma comida padronizada, servida rapidamente e com um preço relativamente baixo. Para alcançar o máximo de lucros, a Mc Donald’s recorreu, como em seguida todas as outras cadeias de fast food, a uma mão-de-obra suscetível de ser formada em um tempo recorde e de ser dispensada mais rapidamente ainda. Inúmeros dentre eles são jovens entre apenas 14 e 17 anos, o que, desde os anos 70, é permitido por

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lei10. O sucesso fulgurante da Mc Donald’s nos Estados Unidos, em grande parte, deve-se ao fato de que 80% de sua mão-de-obra são de tempo parcial e 100% dos trabalhadores são não-sindicalizados. Nas usinas e matadouros atuais, a mão-de-obra é majoritariamente latina. Os braços e dedos cortados são muito freqüentes. Dezenas de trabalhadores também são decapitados ou triturados pelas máquinas, como revela a apaixonante pesquisa do jornalista Eric Schlosser, chamada Fast food Nation (2002)11.

As formas de exploração mais odiosas proliferam igualmente no setor do vestuário que, em 2002, contribuiu amplamente para o aumento dos lucros das grandes marcas como Gap, Nike ou Donna Karan.

As lutas, os assalariados, o Estado e a burocracia sindical Em escala nacional, em média, não há mais que 13,5% de trabalhadores

sindicalizados, ou seja, uma diminuição de 20% em vinte anos. No setor privado, os sindicalizados não ultrapassam os 9%. Na agricultura eles são apenas 2%. As estatísticas oficiais das greves só consideram aquelas com mais de 1000 assalariados. Nestas bases, elas são dez vezes menos numerosas hoje do que há trinta anos. Houve 424, em 1974; 187 em 1980 e apenas 29 em 2001.

Os trabalhadores tiveram sistematicamente contra eles os burocratas sindicais. Foram inúmeros os esforços para constituir equipes sindicais de permuta, combativas e independentes da burocracia e da máfia. Porém, salvo em combates setoriais, locais ou regionais, esses esforços militantes não conseguiram modificar a situação geral. A greve mais importante, que marcou o último decênio, estourou durante o verão de 1997. Ela atingiu os 185.000 trabalhadores do UPS (United Parcel Service), o gigante da distribuição de encomendas a domicílio12. Esta greve foi organizada pelo sindicato dos transportes, a International Brotherhood of Teamsters. Foi o movimento mais importante que questionou o trabalho temporário e os empregos em tempo parcial. A greve, que contava com grande popularidade no país, foi em parte vitoriosa. Mas os trabalhadores da UPS não puderam ampliar essa tentativa por causa das manobras do Estado, com a cumplicidade dos burocratas dos Teamsters. Estes queriam se livrar do líder dos Teamsters, Don Carey, e conter a influência da tendência de esquerda do sindicato, a TDU (Teamster for a Democratic Union). Carey que havia sido eleito em 1996, foi barrado e proibido de ser representado pelo Ministério da Justiça. A decisão interveio, como um mero acaso, três dias depois do vitorioso final da greve! Para o grande alívio do patronato dos transportes, James Hoffa Junior pôde tomar as rédeas da direção dos Teamsters.

A burocracia sindical americana forma uma equipe com o Partido Democrata desde os anos trinta. A AFL-CIO é um dos grandes colaboradores nas campanhas desse partido. Apesar dos oito anos de ataques de Bill Clinton contra as classes populares, a AFL-CIO transferiu 46 milhões de dólares para a 10 Entre 13 e 16 anos, é necessária a autorização dos pais. 11 Sobre as condições de trabalho, ler principalmente o capítulo 8: “The most dangerous job”. 12 A análise deste movimento foi feita no calor dos acontecimentos por Udry (1997).

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campanha de Al Gore, em 2000. Esta cotização sindical para os inimigos da classe operária, se comparada à de 1996, aumentou em dez milhões. O obstáculo da burocracia da AFL-CIO é considerável, sobretudo porque esse aparelho compartilha freqüentemente o ponto de vista do patronato em matéria de protecionismo dos produtos “made in the USA” ou contra a “invasão” mão-de-obra imigrante. Nesse terreno, a AFL-CIO evoluiu, em parte, sob a pressão de greves de operários agrícolas organizados na United Farm Workers ou das mobilizações dos janitors, notadamente na Califórnia13. A burocracia sindical percebeu que lhe seria benéfico acompanhar o movimento de sindicalização dos imigrantes para preencher os efetivos e encher os cofres, e para retomar a influência sobre a classe operária.

Ante o conjunto de obstáculos com os quais se confrontam os trabalhadores, torna-se ainda mais curioso constatar sua determinação em um certo número de greves bastante difíceis de conduzir. Por exemplo, no final de novembro e início de dezembro de 2001, professores de uma cidade de Nova Jersey, contrariados com suas más condições de trabalho e remuneração, decidiram pela greve, apesar de legalmente proibidos de fazê-la em virtude da função que exercem. As autoridades quebraram o movimento prendendo, durante vários dias, 228 professores grevistas.

A “classe média”: presa da crise Para compreender como a grande burguesia conseguiu conduzir

vitoriosamente sua ofensiva contra a classe operária, sem provocar grandes movimentos sociais, é preciso ter em mente a pressão exercida pela “classe média” ao longo deste período. As aspas que colocamos na designação desse importante conjunto social nos Estados Unidos visam simplesmente a sublinhar sua heterogeneidade em vários aspectos. O componente anglo-saxônico é, de longe, o mais importante. Mas, existe também uma parte minoritária da população negra que se integrou a essa classe ao longo dos anos setenta, além de, nos últimos vinte anos, frações hispânica, asiática e até ameríndia. As camadas superiores dessa classe média são próximas do grande capital, mas as camadas inferiores distinguem-se pouco das camadas melhores pagas da classe operária.

A existência de uma classe média numerosa, que teve, durante mais de dez anos, oportunidades de enriquecimento e de consumo excepcionais, funcionou como um forte fator de estabilidade. Ela adquiriu ações e participou da euforia das bolsas de valores do final do século XX. A embriaguez da especulação atraiu, inclusive, parte dos trabalhadores que tinham remuneração suficiente para adquirir ações. Dezenas de milhões de americanos fizeram abundantes empréstimos sem que se sentissem endividados, pois suas rendas investidas nas ações estavam freqüentemente em alta. Segundo Robert Reich, ex-ministro do Trabalho de Clinton, 50% dos lares se tornaram acionistas ao longo dos anos 90. A maioria era de apenas minúsculos acionistas, e pode-se dizer que a classe média se retraiu e se endividou consideravelmente nos últimos anos. O número de declarações de 13 O filme Pão e Rosas, de Ken Loach, descreve uma das lutas dos janitors de Los Angeles.

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falência pessoal aumentou 400% entre 1979 e 1997. Desde então, esta tendência só piorou. Passam muito bem as empresas pagas pelos bancos para recuperar, por falta de pagamento, sem ordem judicial carros, móveis ou computadores.

Assistiu-se a uma curvatura de várias redes sociais. O medo da perda do emprego e da falência pessoal alimentou várias formas de ansiedade. A mobilidade e a brutalidade dos movimentos dos capitais atingem todas as classes sociais e alimentam o medo dos outros e o medo do amanhã. Estes medos se traduzem por diversas patologias, violências incontroladas, uso de drogas, obesidade, antidepressivos, “medicamentos” para acalmar o nervosismo das crianças e adolescentes, etc. Num outro terreno, o desespero na pequena burguesia arruinada ou em certas camadas da classe operária branca pode fornecer tropas ainda maiores às milícias de tipo fascista, tais como a Ku Klux Klan e as 500 organizações do mesmo gênero que existem atualmente nos Estados Unidos. É um dos maiores trunfos que resta nas mãos do big business, no caso de uma retomada do movimento operário.

O crescimento dos homeless e dos working poors Este contexto do “cada um por si e o deus dólar para todos” agravou a

desmoralização e o isolamento daqueles deixados por conta do crescimento, os homeless (os sem-teto), os desempregados, os trabalhadores precarizados ou os de tempo parcial. A população afro-americana é a principal entre as categorias sociais mais exploradas e mais esmagadas pela pobreza e humilhação. O romance de McCann (1998) fornece um quadro interessante da passagem do status de proletário ao de sem-trabalho e de sem-teto.

Os working poors (os pobres com trabalho) ficaram não somente à margem das oportunidades das bolsas de valores, mas suas condições de vida foram terrivelmente degradadas. Esses trabalhadores têm, num mesmo, dia três, quatro, ou até cinco, empregos parciais. Alguns trabalhadores chegam a fazer 80 horas por semana, sem um único dia de repouso. Em um documentário, feito em 1998, alguns working poors testemunhavam que: “Na América, quando se terminou de trabalhar, só se é bom para o cemitério”. Um deles havia trabalhado arduamente em período integral durante dez anos. Seu patrão o colocou brutalmente em regime parcial para não ter mais que pagar os encargos sociais. Este trabalhador perdeu automaticamente tudo, suas férias e sua aposentadoria.

É necessário colocar nuanças, sobretudo regionais e mesmo locais, a este rápido quadro. Alguns membros da pequena ou média burguesia foram arruinados ou postos em dificuldades pelo desaparecimento de atividades industriais locais, sem poder retomar o status quo onde quer que seja14. Em alguns condados do Middle West onde os pequenos agricultores naufragaram e as atividades industriais desapareceram, as usinas foram substituídas por cassinos e outras atividades turísticas. A admissão no setor de serviços foi relançada e inúmeros comerciantes são prósperos15. Porém, neste mesmo Middle West, redes

14 Ver a este respeito o romance de Russo (2002), cuja trama se desenvolve em Maine. 15 Ver reportagem do New York Times de 26 de maio de 2002.

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ferroviárias julgadas não-rentáveis foram desmanteladas. A uma hora de carro de Chicago, existem zonas de miséria, isoladas geograficamente, onde não há nem trabalho nem meios de transporte, onde famílias vivem em barracos de madeira e sem água encanada.

A reportagem do New York Times, do dia 06 de outubro de 2002, sobre uma família negra da região de Pembroke é eloqüente. Relata que uma mãe e seus cinco filhos devem viver com somente 450 dólares em vale-refeição, o que permite apenas uma refeição por dia, mas, por outro lado, ela tem de pagar um aluguel de 125 dólares. Esta mãe não recebe nada do governo em virtude da decisão, tomada por Clinton em 1996, que retira a cesta básica dos indivíduos “com boa saúde” para obrigá-los a aceitar qualquer trabalho. Esta mãe faz parte dos 32,9 milhões de cidadãos americanos que vivem oficialmente na pobreza; dentre estes, há 11,7 milhões com menos de dezoito anos. Mesmo querendo trabalhar, mas sendo impossibilitada de encontrar um contrato, ela faz parte daqueles milhões de americanos que não são oficialmente contabilizados como desempregados. Apesar das manobras que os eliminam das estatísticas, o número oficial de desempregados aumentou em dois milhões nos dois últimos anos e chega atualmente a 6% da população ativa. Ao longo da década de 90, inúmeros trabalhadores viviam períodos de alternância entre desemprego e pequenos bicos mal pagos. No presente, eles já somam 5,4 milhões a receber uma aposentadoria por invalidez, ou seja, um número que dobrou desde 1990. Hoje, 41 milhões de americanos não têm seguridade social. O seguro-desemprego só atinge um terço dos que perdem seus empregos. Quarenta milhões de americanos não têm água potável.

Perda de confiança no sistema e tomada de consciência A onda de demissões havia começado nove meses antes do 11 de

setembro. Porém, o tempo das grandes falências e, conseqüentemente, de nova grande onda de demissões, chegou em 2002 com a queda das companhias aéreas, Enron, Tyco, Anderson, WorldCom, etc. Na atmosfera do atentado de 11 de setembro, as companhias aéreas anunciaram dezenas de milhares de demissões, ao mesmo tempo em que embolsavam as substantivas “ajudas” do Estado Federal. A United Airlines exigia que o pessoal que ela ainda não havia demitido aceitasse importantes diminuições de salários para os próximos seis anos. A WorldCom, a maior empresa de toda a história do capitalismo americano, anunciou 17.000 supressões de empregos ao mesmo tempo em que declarava sua falência. A Enron deu exatamente um prazo de duas horas para que 4.500 pessoas deixassem a sua sede em Houston; forneceu uma caixa de papelão para que cada uma delas colocasse seus objetos pessoais e deixou obscura a questão bastante aleatória referente às indenizações.

Os demitidos de que falamos tinham, em sua maioria, um bom salário e um certo número de stock-options cujo valor virou fumaça. O caso de uma ex-funcionária da WorldCom entrevistada por um jornalista do New York Times é edificante: “eu pensava estar no mesmo patamar que Bernie Ebbers [diretor geral], na ponta do progresso tecnológico. Trabalhava muito e, para mim, as demissões só

aconteciam com os outros”. Em julho de 2002, ela perdeu seu emprego, seus

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1.600 stock-options que não valem mais nada e, para fechar com chave de ouro, não terá nenhuma indenização e seu fundo de pensão constituído de ações WorldCom não tem mais valor algum. A esta altura, a funcionária lamenta amargamente a ausência de um sindicato na WorldCom.

A atitude no tocante à sindicalização está mudando. O que poderia aparecer como inútil, torna-se uma necessidade imperativa para encarar as agressões patronais devastadoras. A evolução social atual sugere que os maiores dilaceramentos sociais ainda não aconteceram. Uma alteração política em vasta escala e com base nas idéias de emancipação dos trabalhadores ainda não pôde vir à luz. Mas, é a partir do estudo minucioso da história, evocada rapidamente, que o proletariado escreverá uma nova página. Com uma nova geração militante inspirando-se no que há de melhor das experiências passadas.

As duas Américas face ao declínio do imperialismo As medidas do New Deal de Roosevelt para salvar os interesses gerais do

grande capital americano, ao mesmo tempo em que desmantelava o caráter ameaçador do movimento operário dos anos trinta, foram logo seguidas por um War Deal; o “trunfo de guerra” preparava o imperialismo americano para se engajar na Segunda Guerra Mundial. Sem precisar da fase de um novo New Deal, George W. Bush passou a um novo War Deal com uma série de medidas econômicas em favor do setor bélico e de medidas sociais e jurídicas colocando na população americana as algemas do “patriotismo”. Ele lançou mão dos discursos de guerra, preparando a opinião pública para um estado de guerra permanente e adotou uma série de disposições legislativas repressoras16. Porém, não está dado que a classe operária, que já sofreu golpes severos, se deixe aprisionar; também não está dado que a “dona de casa”, aquela que os meios de comunicação chamam tradicionalmente de “soldado Smith”, mantenha o fôlego para continuar consumindo e se endividando mais do que já faz atualmente.

No tocante à economia mundial, os Estados Unidos estão numa situação de predador e de dependente: precisam de fluxo de capitais de cerca de um bilhão de dólares por dia para financiar o déficit comercial. Assim, a corrida da administração Bush para o Iraque ou outras destinações é estimulada pelas contradições do capitalismo americano em que empresas e o Estado atingem níveis vertiginosos de endividamento. Isto sinaliza do que a primeira potência imperialista é capaz para se apossar das riquezas e dos mercados mundiais.

Duas Américas estarão novamente face a face no futuro, a exemplo daquelas evocadas em um outro contexto, em 1948, por James P. Cannon:

Uma é a América dos imperialistas da pequena corja de capitalistas, de proprietários fundiários e de militares que ameaçam e inquietam o mundo. É a América que os povos do mundo temem e detestam. Há uma outra América, a dos operários, dos pequenos agricultores e das ‘gentes simples’. Estes constituem a ampla maioria da população. Fazem o trabalho necessário ao país. Mantêm suas

16 Sobre este assunto, ler os textos de intelectuais americanos de esquerda (Collectif: 2002), apresentados por Daniel Bensaïd, Sebastian Budger e Eustache Kouvélakis.

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antigas tradições democráticas, sua história de amizade antiga com os povos de outros países, das lutas contra os reis e os tiranos, o asilo generoso que a América dava outrora aos oprimidos.

O desenvolvimento da luta de classes nos Estados Unidos mostrará se esses propósitos se tornarão atuais. Se este fosse o caso, permitiriam oferecer uma saída positiva para a crise do sistema capitalista. Permitiriam retirar o poder das classes mais perigosas para a humanidade: as burguesias imperialistas européias, japonesa e americana.

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Classificação dos governos latino-americanos pelos Estados Unidos∗

James Petras∗∗

Resumo Este artigo examina a classificação dos governos latino-americanos

pelos EUA segundo os critérios de disposição para implementar a agenda neoliberal e a capacidade de obtenção de legitimidade popular para essa política.

O que emerge de entrevistas e conversas com investidores e gerentes de

risco, de Wall Street, e autoridades comerciais em Washington, bem como da leitura atenta de relatórios do Banco Mundial e do FMI, do Wall Street Journal, do Financial Times e das páginas financeiras do New York Times nos primeiros seis meses de 2003, é que há uma hierarquia de preferidos e inimigos entre os governos latino-americanos. Os critérios utilizados para julgar os governos são a disposição para adotar as políticas neoliberais do eixo Wall Street-Washington, a habilidade para implementá-las e para assegurar-lhes legitimidade política.

A avaliação dos países latino-americanos por meio do estabelecimento de categorias mudou nos últimos anos, particularmente onde os governos favoritos foram ineficientes para impor tais políticas ou se isolaram politicamente. Por exemplo, há um ano, ou menos, os presidentes boliviano, Sánchez de Lozada, e peruano, Toledo, e o governo Uribe, na Colômbia, ocupavam alta posição por causa do forte apoio que davam ao livre comércio na América Latina, a seus programas de privatização, compromisso com o pronto pagamento da dívida e o apoio incondicional às intervenções militares de Bush na Colômbia, no Afeganistão e no Iraque.

Este ano eles foram rebaixados, não porque tenham mudado suas políticas, mas porque estão quase privados de apoio político – clientes isolados e desacreditados – de valor limitado na agenda especulativa de Washington e Wall Street.

Os favoritos de Wall Street em 2003 No topo da lista estão os governos do Brasil e do Equador. Embora a

maioria dos mais astutos e experientes diplomatas e veteranos do Departamento de Estado dos EUA soubessem, antes da eleição presidencial de 2002, que Lula não era mais uma ameaça radical, nem mesmo um reformista conseqüente, a maioria dos estrategistas de Wall Street e de Washington, surpresa por Lula escolher uma ∗ Traduzido por Jair Pinheiro e Claudete Pagotto (pesquisadores do NEILS). ∗∗ Departamento de sociologia da State University of New York, Binghamton.

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equipe econômica liberal ortodoxa, ficou verdadeiramente pasma quando ele começou a impor, vigorosamente, uma completa e radical agenda neoliberal, incluindo a privatização da seguridade social, a redução da aposentadoria dos servidores públicos e a diminuição das exigências para os capitalistas demitirem trabalhadores, além de diminuir os custos da demissão. Uma autoridade de Washington disse-me que é correto o repúdio de Lula e do PT às políticas distributivas keynesianas, o que o fazia lembrar a rejeição de Gorbatchov ao comunismo e a guinada da Europa Oriental para as políticas de Washington, sem coerção nem perdas.

O consenso em Wall Street é que a diferença econômica significativa entre Lula e Bush, é que o presidente brasileiro é um defensor mais conseqüente do livre mercado, do que Bush, ao pedir que Washington reduza suas barreiras comerciais sobre uma lista de produtos protegidos (suco de laranja, aço, texteis, etc.). O Brasil ocupa, atualmente, a mais alta posição na classificação feita pelas instituições econômicas nos EUA devido a quatro fatores: 1) o que um corretor cínico de Wall Street (antes de esquerda) chamou de “neoliberaslismo taleban” de Lula (referindo-se a seu apego dogmático a todo o repertório do FMI de austeridade fiscal ao apelo às multinacionais para combater a pobreza); 2) a implementação imediata e vigorosa de uma agenda neoliberal severa, aliando-se a partidos de direita e enquadrando deputados dissidentes de esquerda do seu próprio partido, que discordavam; 3) o fato de Lula manter uma maioria popular nas pesquisas de opinião e tem sido bem-sucedido em cooptar ou neutralizar a organização sindical de esquerda (CUT) e ignorar as demandas do MST; 4) que Lula continua a impor a agenda do FMI apesar da taxa de crescimento negativa nos primeiros seis meses de 2003.

O segundo presidente mais popular é Lucio Gutierrez, do Equador, que tem reiterado a economia dolarizada, confirmado a base militar dos EUA em Manta, apoiado a intervenção militar dos EUA na Colômbia (Plano Colômbia) e proposto a privatização de indústrias chaves dos setores petrolífero e elétrico. Antes das eleições, Gutierrez era visto em Washington como um tipo particular de oportunista que se pronunciaria a favor de Pinochet ou Castro, dependendo de quem pagasse suas despesas de viagem. Logo após o primeiro turno das eleições, Gutierrez foi a Washington onde foi considerado um “ouvinte dócil”, de acordo com a opinião de uma autoridade de Washington. Eleito, Gutierrez “discursou para os índios mas trabalhou conosco”, segundo um consultor de investimento em petróleo. Em Washington, as autoridades estão satisfeitas que ele, com suas ações, tem dividido de uma vez o forte movimento indígena, cooptando a esquerda Pachacuti, dando-lhes postos ministeriais pouco notáveis (com pouco poder efetivo) e alguns postos políticos menores na administração local.

O movimento indígena CONAIE se encontra ainda mais dividido entre lideres e sua base no que se refere a questão de romperem ou não com Gutierrez, enfraquecendo os esforços para unificar a oposição. O mesmo processo de cooptação ocorre com o poderoso sindicato dos trabalhadores do setor petroleiro. Tudo isso são boas notícias para o establishment em Washington, na medida em que o Equador já vira dois presidentes subservientes aos EUA serem derrubados pelo CONAIE e seus aliados dos sindicatos dos setores elétrico e petrolífero.

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Pior posicionados na classificação estão os presidentes Fox, do México, Uribe, da Colômbia, e Lagos, do Chile. Todos são dedicados discípulos da agenda neoliberal da ALCA proposta pelos EUA. Vários fatores levaram esses presidentes a perderem posições. Primeiro, Fox tem sido incapaz de impor toda a agenda de privatização dos setores petrolífero e elétrico, que Wall Street promove, e Fox ainda insiste no quid pro có” da legalização de quatro milhões de trabalhadores mexicanos nos EUA. Segundo, Fox permitiu que o número um preferido de Washington, Jorge Castañeda, fosse desalojado do ministério das relações exteriores. Além disso, Fox não alinhou-se a Bush no voto pela invasão do Iraque pelos EUA no Conselho de Segurança da ONU.

Do mesmo modo, Uribe despencou ladeira abaixo por sua falha e incompetência em implementar a guerra de Washington contra a guerrilha e por seu crescente isolamento político e social. Uribe prometeu que militarizaria o país e destruiria a guerrilha. Após mais de um ano de combate, falhou completamente. Fontes do Pentágono dizem que o comando militar de Uribe está mais interessado em confiscar drogas para revender do que se engajar num combate cerrado à guerrilha.

Lagos ainda é bem cotado em Washington, mas com a direita neo-Pinochet ganhando força e a coalizão de Lagos imersa em escândalos de corrupção, discretamente, Washington o tem rebaixado, principalmente após ele embromar sobre a resolução do Conselho de Segurança com relação ao Iraque. Assim, o segundo colocado no ranking tem a virtude, aos olhos de Wall Street, de ser um aliado estratégico, mesmo se sua expressão ocasional de leve dissenso irrita o Pentágono de Rumsfeld.

O terceiro nível positivo na classificação inclui vários dos anteriormente posicionados no primeiro: Batle, do Uruguai, Sanchez de Losada, da Bolívia, e Toledo, do Peru. Batle está administrando um regime falido e estruturalmente corrupto que permanece no poder graças à inércia do sistema político e ao ultra-legalismo e à prudência da oposição parlamentar de centro-esquerda. Sánchez de Lozada e Toledo têm menos de 10% de apoio e estão, constantemente, enfrentando uma oposição massiva nas ruas. Eles são completamente ineptos e falta-lhes poder para implementar a agenda de privatização de Wall Street e os programas de Washington de repressão aos plantadores de coca, tal como eles gostariam.

Washington e Wall Street continuam a apoiar esses governos até agora, mas consideram descartá-los se a pressão popular se consolidar. Eles têm, portanto, a escolha de procurar um centrista “responsável” (como Alan Green do APRA, no Peru) para por água na fervura ou uma junta cívico-militar na Bolívia (como pede o embaixador Greenlee) para tomar o poder e “salvar a democracia”, segundo a fórmula de Rumsfeld.

Em posição intermediária no ranking, está o novo presidente argentino, Nestor Kirchner. Washington demonstrou reação negativa à derrota dos seus dois candidatos preferidos de extrema direita (Menem/Murphy) ao enviar um imigrante cubano para a posse do governo Kirchner. Wall Street está alerta para ver como Kirchner encaminha as negociações com o FMI, quando ele vai restaurar o

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pagamento da dívida e quanto tempo ele pode manter em ordem e segurança um acordo com a elite financeira e as multinacionais.

Tanto Washington como Wall Street não gostaram da declaração de independência política de Kirchner das elites corporativas e da prioridade dada à integração regional como oposição à ALCA. Mas, tanto os observadores de Wall Street como os profissionais de Washington estão acostumados a uma retórica pós-eleição, populista e nacionalista e aguardam as políticas concretas que Kirchner executará. “Como governador na rica província de oléo de Santa Cruz, Kirchner subsidiou a privatização de uma indústria de petróleo lucrativa, e isto vale para alguma coisa”, disse-me um jornalista da área financeira.

Washington e Wall Street situam Kirchner num quadro no qual não lhe conferem nenhuma classificação, mas com um asterisco sinalizando: “aguardando implementação da agenda política econômica”.

Sob classificações negativas permanecem, nesta ordem: Venezuela e Cuba. Para Washington, a Venezuela está negativa, mas nem tanto para Wall Street. Esta diferença, entre os dois organismos, tem a ver com a política heterodoxa do Presidente Chavez. As dívidas são pagas em dia aos bancos de Wall Street; ele tem sido um fornecedor leal de óleo para os EUA mesmo durante a guerra imperialista; não nacionalizou nenhuma propriedade dos EUA ou impôs redução de tarifas. A equipe econômica neoliberal e suas políticas são vistas como positivas em Wall Street. Entretanto, ele demitiu os mais influenciáveis e corruptos executivos pro-Wall Street da companhia estatal de petróleo, desviando lucros para investimentos em desenvolvimentos internos, em vez do mercado de ações de Nova York, para sustentar as comissões lucrativas das firmas de Wall Street. Ele instituiu controles para limitar fuga de capitais e dos lucros, lícitos e ilícitos, para os bancos dos EUA e para os investidores em propriedades imobiliárias.

Embora haja algumas ambigüidades em Wall Street com relação à performance econômica da Venezuela, em Washington a sua classificação é totalmente negativa, pois Chavez derrotou a CIA dirigida por “agentes” venezuelanos e políticos de Washington – clientes econômicos que por duas vezes tentaram destituir o presidente eleito. Chavez tem tomado posição crítica com relação à guerra dos EUA ao terrorismo, ao Plano Colômbia e à ALCA, em nome da paz, da anti-militarização e da integração latino-americana. Com Chavez, a Venezuela tem mantido a comercialização e as relações diplomáticas com Cuba. Na visão de mundo da dupla Rumsfeld-Wolfowitz, a Venezuela precisa “mudar o governo”.

Cuba está, obviamente, no mais baixo pedestal da classificação de Washington. A administração Bush tem rotulado Cuba como um alvo militar, na medida em que é parte do “eixo do mau”, um alvo militar a ser invadido, não tivesse Cuba a mais bem treinada força armada no Terceiro Mundo, um excelente sistema de segurança e um apoio popular de milhões de cubanos.

Cuba é o inimigo número um porque é uma clara alternativa às colônias neoliberais da região; além de ser a principal força, nas Nações Unidas e nos demais fóruns internacionais, que expressa solidariedade aos movimentos

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antiglobalização e antiimperialista e opõe-se aos desígnios imperiais dos EUA na Ásia, no Oriente Médio e especialmente na América Latina. Embora Washington conceda à Cuba a mais baixa classificação, Wall Street ou setores minoritários dos agro-negócios de grande porte nem sempre estão de acordo.

A Câmara de Comércio dos EUA, os principais exportadores agrícolas e os gigantes no transporte de cereais têm dado à Cuba uma classificação econômica positiva no que se refere à sua viabilidade como mercado, na medida em que tem importantes indústrias, turismo, linhas aéreas e serviços.

Conclusão As classificações dos EUA refletem as mudanças na complexa atuação das

forças políticas e sociais no interior da América Latina, bem como o sucesso e os fracassos das políticas de Washington e Wall Street.

Embora os movimentos populares tenham solapado a base de classificação de vários governos subservientes como efetivo instrumento da política dos EUA, em outros casos importantes. a guinada à direita de certos lideres políticos populares resultou na inclusão de seus países nos mais altos postos da classificação em Washington.

Em larga medida, a classificação dos governos latino-americanos pelos EUA resulta da política interna e das lutas de classes, da falência das políticas econômicas neoliberais e de lutas entre a intervenção imperial e os movimentos e as nações antiimperialistas. Está claro que, embora Washington e Wall Street coincidam na classificação de muitos casos, há alguns sobre os quais divergem.

Finalmente, no caso de Lula, temos uma situação peculiar sobre a qual a administração Bush-Rumsfeld e os políticos de centro esquerda na América Latina convergem quanto à alta classificação. A avaliação positiva de Washington está baseada nas políticas efetivas de Lula e nas ilusões e expectativas equivocadas da centro-esquerda.

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LIVROS - As ditaduras envergonhada, escancarada e derrotada 190

LIVROS

As ditaduras envergonhada, escancarada e derrotada∗

de Elio Gaspari

Uma grande obra com grandes lacunas por Waldir José Rampinelli∗∗

O trabalho desenvolvido pelo jornalista Elio Gaspari analisa um período

importante da história do Brasil, já que medidas tomadas lá são sentidas amargamente ainda hoje. Uma delas foi a política de extermínio de grupos armados que se opuseram ao fim do Estado de direito; outra, o endividamento externo imposto ao país pelos banqueiros internacionais e o conseqüente aprofundamento do grau de dependência. Ambas, tratadas longamente nessa obra.

Quanto à estratégia para derrotar os oponentes, os generais-presidentes utilizaram a tortura e o terror estatal, descritos em detalhes pelo autor. No entanto, ele esquece de dizer que tais métodos visavam não apenas a destruir os opositores ideológicos, mas também preparar o caminho para uma acumulação capitalista internacional sem precedentes na história. A própria redemocratização, apoiada até pelo governo Ronald Reagan, buscou consolidar, dentro de um Estado de direito, o objetivo que a ditadura perseguia por meio da tortura: a transferência de nosso excedente econômico para o centro hegemônico de poder mundial.

No que toca ao crescimento da dívida externa, o autor faz uma análise da conjuntura internacional e de como os petrodólares foram encaminhados ao país. Porém, não comenta que toda essa operação foi possível graças à liquidação física, quando não moral, dos oponentes.

Jango: um provocador? A Política Externa Independente (PEI), criada por Jânio Quadros e seguida

por João Goulart, causava muitos problemas aos interesses estadunidenses, já que ela defendia a preservação da paz, por meio da prática da coexistência e do apoio ao desarmamento geral e progressivo; reafirmava o fortalecimento dos princípios de não-intervenção e autodeterminação dos povos; buscava a ampliação do

∗Refiro-me aos livros A ditadura envergonhada: as ilusões armadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002a, 417 p; A ditadura escancarada: as ilusões armadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002b, 507 p; e A ditadura derrotada: o sacerdote e o feiticeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, 538 p. ∗∗Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Ciências Sociais – Política pela PUC-SP e membro do NEILS.

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mercado externo brasileiro mediante o desarmamento tarifário da América Latina e a intensificação das relações comerciais com todos os países, inclusive os socialistas; apoiava a emancipação dos territórios não-autônomos, fosse qual fosse a forma jurídica utilizada para a sua sujeição à metrópole; e tentava uma política de autoformulação dos planos de desenvolvimento econômico e de prestação e aceitação da ajuda internacional (Dantas, 1962: 5).

Esses princípios fizeram da PEI a mais avançada e a mais progressista política de toda a história do país. Tal política, mesmo quando sob a chancela de Afonso Arinos, sofreu duras críticas do seu próprio partido, a União Democrática Nacional (UDN). Pedia-se, então, o regresso às normas do Itamaraty, para a política externa deixar de ser instrumento de decisões alheias; exigia-se cuidado com o avanço do comunismo, sendo os udenistas contrários a uma aproximação com a África e o Leste Europeu e favoráveis a uma intervenção militar em Cuba; enfim, solicitava-se o retorno a um alinhamento com os Estados Unidos (Benevides, 1981: 117).

A PEI, embora o embaixador Lincoln Gordon afirmasse ser mais amistosa em relação a Washington que ao bloco socialista, deixou alguns governantes estadunidenses “alarmados por certa falta de flexibilidade das políticas brasileiras” (Parker: 1984: 30), o que foi, com certeza, uma das causas do apoio da Casa Branca ao golpe de Estado de 1964.

Uma vez deposto o presidente Goulart, o novo ministro das Relações Exteriores – Vasco Leitão da Cunha – rechaçou a PEI, invocando razões geopolíticas que vinculariam estreitamente o Brasil ao mundo ocidental e de modo especial aos Estados Unidos. Vasco Leitão declarou que o conceito básico da diplomacia brasileira passava a ser o da interdependência continental (Marini, 1985: 66-67).

Castello Branco adotou uma política internacional intervencionista comandada pelos interesses do Departamento de Estado, conferindo prioridade ao enfoque Leste-Oeste em detrimento do Norte-Sul. A ruptura de relações diplomáticas com Cuba; o apoio à invasão da República Dominicana; o aplauso à decisão de Washington de encaminhar parte de sua ajuda militar à América Latina por meio da Organização dos Estados Americanos (OEA); a reivindicação de que se reativasse o dito “protocolo adicional”, vinculando a ajuda militar à econômica; por fim, a defesa da tese da integração militar do continente com a criação de um exército interamericano permanente são políticas internacionais de Castello Branco em clara oposição ao governo de João Goulart (Marini, 1985: 66-67).

Elio Gaspari, na sua Ditadura envergonhada, não se refere em nenhum momento à Política Externa Independente quando analisa a queda de João Goulart, e tampouco à Política de Interdependência Continental ao falar da ascensão de Castello Branco ao poder. Sem dúvida, uma grande lacuna nessa grande obra.

Quando começa a ditadura? O golpe de 1964 violentou o Estado de direito, e o Ato Institucional n. 5

(AI–5) foi apenas uma conseqüência do seu aprofundamento. Considerar que a

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ditadura escancarada começou com a edição do AI–5, em 13 de dezembro de 1968, significa relativizar o período anterior que derrubou um presidente constitucional, desrespeitou as liberdades individuais e coletivas e submeteu o país aos interesses do capital internacional. Essa ditadura, inclusive, não estaria envergonhada, mas muito bem assumida. Daí que, se o exército dormiu janguista, acordou golpista e não revolucionário. Portanto, o AI–5 não é o resultado do crescimento do terror de esquerda, mas sim da necessidade de institucionalização do terror de Estado.

A periodização da ditadura militar de segurança nacional, segundo Gaspari, é a seguinte: “de 1964 a 1967 o presidente Castello Branco procurou exercer uma ditadura temporária. De 1967 a 1968 o marechal Costa e Silva tentou governar dentro de um sistema constitucional, e de 1968 a 1974 o país esteve sob um regime escancaradamente ditatorial. De 1974 a 1979, debaixo da mesma ditadura, dela começou-se a sair. Em todas essas fases o melhor termômetro da situação foi a medida da prática da tortura pelo Estado” (Gaspari, 2002: 129).

Para Gaspari, embora todo o período seja denominado de ditadura, ele reforça o termo com a qualificação escancarada para os anos de 1968 a 1974 devido à intensificação do mecanismo da tortura. Com isso, ameniza o trabalho dos ditadores Castello Branco, Costa e Silva, Geisel e da junta militar. Se Médici foi quem mais baniu, exilou, torturou e matou, coube aos demais preparar as forças repressoras para atuar nos porões do regime e inocentá-las posteriormente. Por isso, não há mais ou menos ditador nessa longa noite sem luar de nossa história.

“A esquerda se arma, a direita se arma” – diz o autor –, como se uma guerra estivesse em marcha. Na realidade, são pequenos grupos com armas – e muito mal equipados – que enfrentam as forças armadas que chegaram ao poder e à Presidência por meio de um golpe de Estado. Não há uma guerra, já que não há dois Estados em litígio, muito menos dois exércitos em confronto. A falta de liberdade e a supressão dos elementos básicos da democracia burguesa levaram as pessoas a se organizarem clandestinamente na luta contra uma feroz ditadura, cujos pilares fundamentais estavam fincados no grande capital internacional1. Tampouco Cuba dispunha de tanto poder e tamanha influência, como quer fazer crer o autor dos livros, para ser responsabilizada pelas guerrilhas que atuavam no Brasil e na América Latina. Treinar pessoas, sim; ser responsável por tudo o que acontecia, não.

Gaspari diz, em vários trechos, que a ditadura e o terrorismo de Estado originaram-se da anarquia militar. Penso que não, pois a matriz ideológica do regime foi a Escola Superior de Guerra (ESG), que por sua vez reproduzia no Brasil o pensamento de duas escolas estadunidenses: o National War College e o Industrial College of the Armed Forces. Enquanto a primeira estudava e 1 Theotônio dos Santos e Vania Bambirra perguntam: “no interesse de que classes se concebe e se implanta a política da ditadura brasileira? Obvia e prioritariamente no interesse da grande burguesia monopolista nacional e estrangeira, isto é, das burguesias industrial, financeira e comercial integradas em uma unidade econômica nacional por meio de seus sócios maiores: o grande capital internacional”. (Bambirra & Dos Santos, 1986: 156).

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aperfeiçoava a estratégia global dos Estados Unidos, com base na doutrina de segurança nacional, a segunda divulgava a sua respectiva teoria. A ESG do Rio de Janeiro foi um reflexo daquelas instituições de Washington, como fora também a Escola das Américas, do Panamá. Portanto, nada de anarquia e tudo de planejamento.

O “sacerdote” e o “feiticeiro”: ambos macabros O autor das ditaduras envergonhada, escancarada e derrotada teve acesso

direto aos arquivos pessoais do grande mentor intelectual do golpe de Estado de 1964: Golbery do Couto e Silva. No entanto, é preciso tomar muito cuidado com o documento, já que ele pode mostrar tão-somente um aspecto da história: o daquele que está no poder. As cartas, telegramas e memorandos do Ministério de Relações Exteriores, por exemplo, expressarão sempre a visão do governo. O pesquisador terá de fazer o documento falar, interrogando-o sistematicamente. “Não há pior conselho a dar a um iniciante” – afirma Marc Bloch – “do que [dizer para ele] esperar, numa atitude de aparente submissão, a inspiração do documento. Com isso, mais de uma investigação de boa vontade destinou-se ao fracasso ou à insignificância” (Bloch, 2001: 79).

O sacerdote (Geisel) e o feiticeiro (Golbery) são apresentados como os desmontadores de uma longa ditadura militar, tendo para com eles uma atitude de simpatia, quando não de admiração, embora discordando de suas posturas em direitos humanos. Na verdade, ambos arquitetaram e executaram uma ditadura implacável para com seus opositores políticos, benevolente para com seus apoiadores empresários e toda submissa a seus mentores e admiradores capitalistas nacionais e internacionais.

O sacerdote e o feiticeiro foram dois permanentes fora-da-lei. Não apenas trabalharam pelo fim do Estado de direito, golpeando um governo constitucional, como também apoiaram a criação de um ordenamento jurídico autoritário e espúrio. Dizer que um desmontou a ditadura e que o outro chegava às lágrimas quando ouvia relatos do martírio imposto a jovens estudantes é ser benévolo para com um regime autoritário que por mais de 20 anos desrespeitou os direitos fundamentais das pessoas, já proclamados no século 18 pela Revolução Francesa. Gaspari não apenas dedica um espaço desmedido a Geisel nessa sua obra, como também passa a idéia de o general-presidente ter sido um estadista pelo trabalho de desarticulação do regime.

Geisel, na verdade, foi um homem autoritário na caserna, para mais tarde tornar-se um presidente ditador na República. Conspirou contra vários mandatários eleitos, sempre dentro de uma perspectiva reacionária. Procurou eximir-se da responsabilidade da tortura exonerando o general Ednardo D’Ávila Mello do comando do II Exército, em São Paulo, não pelo desrespeito aos direitos fundamentais do homem e da mulher, mas sim pelos acidentes ocorridos com Manoel Fiel Filho e Vladimir Herzog. Vendeu a imagem de um soldado não envolvido com a política, mas dela se utilizou para dirigir o país autoritariamente. Mostrou ser um desenvolvimentista, sem quebrar os laços da dependência com o capitalismo internacional. Eurocêntrico, com críticas aos Estados Unidos, era

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preconceituoso em relação à índole do brasileiro. Golbery trabalhou sempre nos bastidores do poder. Indicou muitos de seus

companheiros da ESG para ocupar cargos importantes no governo. A res-publica, com ele, tornou-se uma res-privada, atendendo prestimosamente aos interesses do capital internacional. Seus representantes eram sempre bem-vindos ao Palácio do Planalto. Alguns deles, como Mr. Ludwig, do Projeto Jari, eram tão íntimos que entravam pela porta dos fundos. Arquitetou a criação de um partido político – o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – para apoiar a ditadura, com lideranças confiáveis e manipuláveis, em substituição aos nacionalistas-desenvolvimentistas. Trabalhou, como Salazar, o saber durar. Deixou o governo por discordar da condução da apuração do caso Riocentro. Na verdade, o aumento da luta dos povos em várias partes do mundo contra as ditaduras, como a ocorrida no Irã com a queda do Xá Reza Pahlevi; a pressão dos governos dos países centrais em favor de democracias burguesas, confiáveis e submissas; as sucessivas crises na economia com o fim de milagres econômicos; e a perda constante e sucessiva de legitimidade foram alguns dos fatores que ajudaram o velho golpista a abandonar o barco. Comparando as jogadas políticas com os movimentos de sístole e diástole do coração, viu que chegara o momento de entregar os anéis para não perder os dedos.

Agora, denominar esses dois senhores de “sacerdote” e “feiticeiro” é ser leniente com todo um período de arbítrio e de ruptura do Estado de direito.

Algumas imprecisões O autor analisa o Brasil grande-potência do governo Médici, referindo-se

à alegria trazida pela Copa do Mundo de 1970, bem como pela “temporada de patriotismo no ano do Sesquicentenário da Independência”. Nesse contexto, “D. Pedro I regressaria ao Brasil, deixando a cripta do mosteiro dos Jerônimos, em Portugal, onde descansava desde 1834” (Gaspari, 2003: 189-190). Na verdade, D. Pedro I – que em terras lusitanas leva o nome de D. Pedro IV – não estava nos Jerônimos, mas no mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa. Na igreja dos Jerônimos estão somente os grandes nomes da história portuguesa, como Vasco da Gama, que achou o caminho para as Índias; a estátua de Luís de Camões, que descobriu o caminho para chegar a Portugal (Saramago, 1995: 291); D. Sebastião e seu messianismo e outros. Já a família Orleans e Bragança, de somenos importância, tem seu panteão no São Vicente de Fora.

O autor, quando trata das relações políticas da ditadura brasileira com a portuguesa cita Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde como as colônias lusitanas existentes em março de 1974 (Gaspari, 2003: 364). Esqueceu-se de outras três: as ilhas de São Tome e Príncipe, na África, Timor-Leste, na Oceania, e Macau, na Ásia.

Ainda sobre o colonialismo português, o autor diz que “todos os governos brasileiros apoiaram Portugal na sua guerra contra os africanos” (Gaspari, 2003: 365). A guerra colonial começou em novembro de 1961, com um grande massacre de angolanos, no norte do país. Jânio Quadros, com a sua PEI, já se distanciara do colonialismo português, no que fora seguido por João Goulart. O primeiro voto

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contra esse colonialismo se deu em 31 de julho de 1963, quando o Brasil, no Conselho de Segurança da ONU, disse sim a um projeto de resolução que convidava Portugal a reconhecer imediatamente o direito à autodeterminação e à independência de seus territórios ultramarinos (Magalhães, 1999: 106). Isso preocupou profundamente o governo português, tanto que Salazar ficou esperançoso quando do golpe de Estado de 1964, pois vislumbrava a instalação de um regime autoritário, anticomunista e de apoio à manutenção do império ultramarino português. Acertou nas duas primeiras previsões, não na terceira. Castello Branco não apoiou integralmente o colonialismo português e sugeriu “a formação gradual de uma Comunidade Afro-Luso-Brasileira, em que a presença brasileira fortificasse economicamente o sistema” (Ministério da Relações Exteriores, 1966). A ditadura militar, de 1964 a 1974, não hostilizou Portugal, já que este era um aliado estratégico dos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria2, mas se distanciou do apoio dado a Lisboa pelo governo Kubitschek (1956–1961). Adotou, então, com alguma ambigüidade, uma posição de abstenção. Portanto, é um equívoco dizer que “os governos brasileiros apoiaram Portugal na sua guerra contra os africanos”.

A obra de Elio Gaspari – as ditaduras envergonhada, escancarada e derrotada – é muito importante para a historiografia brasileira, que tem se dedicado parcimoniosamente a esse período. O trabalho, muito mais de um jornalista do que de um historiador, embora tenha recebido muitos elogios, apresenta grandes lacunas e alguns equívocos.

Apenas duas curiosidades: o autor não falou da morte de Costa e Silva e demonstrou ter grande amizade com Golbery, Geisel e Heitor Ferreira, tornando-se o depositário de todo um acervo que, por certo, interessa ao país. Não deveriam esses documentos estar sob a guarda de um arquivo público para que todos tivessem acesso a eles? Bibliografia: BAMBIRRA, V. & DOS SANTOS, T. (1986). “Brasil: nacionalismo, populismo y dictadura: 50 años de crisis social”. In: GONZÁLEZ CASANOVA, Pablo (Org.). América Latina: história de medio siglo. México: Século XXI. BENEVIDES, M. V. de M. (1981). A UDN e o udenismo: ambigüidades do liberalismo brasileiro (1945-1965). Rio de Janeiro: Paz e Terra. BLOCH, M. (2001) Apologia da história: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar. DANTAS, S. T. (1962). Política externa independente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. GASPARI, E. (2002a). A ditadura envergonhada: as ilusões armadas. São Paulo: Companhia das Letras. __________. (2002b). A ditadura escancarada: as ilusões armadas. São Paulo: Companhia das Letras.

2 Refiro-me à cedência dos Açores para a instalação de bases militares do Pentágono. Estas ilhas, diz Fernando Rosas (2002), “são um elemento imprescindível para as tropas estadunidenses, sendo uma espécie de porta-aviões no meio do Atlântico (e ainda hoje o são essencial para as manobras militares dos Estados Unidos)”.

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__________. (2003). A ditadura derrotada: o sacerdote e o feiticeiro. São Paulo: Companhia das Letras. MAGALHÃES, J. C. de. (1999). Breve história das relações diplomáticas entre Brasil e Portugal. São Paulo: Paz e Terra. MARINI, R. M. (1985). Subdesarrollo y revolución. 12 ed. México: Século XXI. MINISTÉRIO das Relações Exteriores. (1966). A política exterior da revolução brasileira. PARKER, Ph. R. (1984). Brasil y la intervención silenciosa – 1964. México: Fundo de Cultura Econômica. ROSAS, F. (2002). “A Europa, os Estados Unidos e o Brasil de JK apoiaram a ditadura de Oliveira Salazar”. Universidade e Sociedade. Brasília, ano XI, nº 26, fev. Entrevista concedida a Waldir José Rampinelli. SARAMAGO, J. (1995). Viagem a Portugal. 18 ed. Lisboa: Caminho.

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LIVROS - Democracia e participação na “reforma” do Estado 197

Democracia e participação na “reforma” do Estado

de Ilse Gomes Silva∗

“Reformas” para quê e para quem?

por Tânia Marossi∗∗

Resultado de sua tese de doutorado, o livro de Ilse Gomes Silva apresenta

o intrincado contexto em que se gestou a recente “reforma” do Estado brasileiro, ao mesmo tempo em que desmistifica, um a um, os argumentos daqueles que a elaboraram e a defenderam. Para realizar tal desmistificação, a autora se apropriou, durante os anos em que realizou sua pesquisa, de um vasto conhecimento teórico, ao qual aliou sua experiência de ativista dos movimentos sociais.

Diferentemente de outros autores que ignoraram a análise do Estado e foram direto às “reformas” – muitos deles apenas para enaltecê-las – , a autora efetua, com rigor, a análise do papel desempenhado pelo Estado no modo de produção capitalista, notadamente nos seus momentos de crise, mostrando os elos entre a propalada “reforma” e o processo de reorganização desse sistema. Ao mesmo tempo, articula a esse eixo de análise o papel dos movimentos sociais e seus impasses nos anos 1980/90, inserindo-os nas transformações ocorridas no conjunto das relações sociais.

O livro divide-se em duas partes. Na primeira, a autora dialoga com as principais teorias, ou modelos, sobre a democracia do século XX, preocupada em rastrear qual concepção de participação apresentavam. A questão central é a de como a participação foi pensada pelas frações de classe nos aparelhos de Estado, pelos movimentos sociais e pelos segmentos da esquerda. Tal recuperação do debate lança uma nova luz sobre a revalorização da democracia na América Latina e no Brasil, ocorrida no final dos anos 1970, no contexto das lutas pelo fim da ditadura militar.

Fica demonstrado, pela análise realizada, que os avanços em direção a uma maior democratização da sociedade ocorreram justamente nos momentos em que a força organizativa das classes populares conseguiu impor às classes dominantes o aprofundamento dos direitos políticos e sociais. E vice-versa, nos momentos de debilitação das lutas sociais, o Estado, enquanto articulador das relações de produção e de reprodução do sistema capitalista, pode estreitar a esfera da participação. Foi o que ocorreu na década de 1990, quando, para o governo brasileiro, a participação somente era considerada legítima se fosse feita por meio

∗ São Paulo: Cortez, 2003. ∗∗Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP , professora da Rede Municipal de Ensino e membro do NEILS.

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LIVROS - Democracia e participação na “reforma” do Estado 198

de canais institucionais, qualquer outra forma de manifestação dos trabalhadores era rapidamente criminalizada.

A segunda parte do livro examina a “reforma” propriamente dita do Estado brasileiro e o discurso que a sustentou, desmistificando a propaganda de que a mesma promoveria um alargamento da participação e do controle das classes populares sobre as políticas estatais. O argumento governamental apresentava as “reformas” – leia-se desregulamentação da economia e flexibilização da legislação do trabalho, diminuição dos gastos públicos, privatização das empresas estatais, gestão privada de recursos e serviços públicos, e outras medidas – como condição para a retomada do crescimento e a suposta inserção do Brasil na economia “globalizada”, além de ser fundamental para a promoção de políticas sociais eficientes.

Seu significado real, contudo, é desvendado pela autora em todos os seus múltiplos aspectos e conexões: sob a denominação de quase-mercado, operou-se uma construção ideológica para mascarar a expansão do capital em áreas antes consideradas essencialmente públicas, colocando em xeque o caráter universalista de serviços como saúde e educação, entre outros. E através das chamadas organizações sociais (objeto de análise no terceiro capítulo) o governo transferiu para o chamado terceiro-setor a prestação de serviços antes exclusivos do Estado, “desmantelando todo um sistema público nacional e universal de prestação de serviços, edificado, principalmente a partir da Constituição de 1988” (2003: 105). Desta maneira, fica evidente que – ao contrário do que foi divulgado pelo governo e pela imprensa, que fez coro com ele – o espaço de participação da pretensa sociedade civil não foi ampliado e o “público não-estatal expressa uma nova gestão privada dos recursos públicos, adaptada às necessidades atuais de dominação de classe” (2003:99).

Para finalizar, resta apenas uma observação quanto à ordem dos capítulos. Talvez o argumento desenvolvido ficasse mais bem encadeado se a discussão sobre a trajetória dos movimentos sociais estivesse situada na segunda parte do livro, juntamente com a análise do papel desempenhado pelas atuais Organizações Não-Governamentais (ONGs), que também foram objeto de exame crítico pela autora.

A “reforma” do Estado brasileiro ainda não terminou. Continua na agenda do novo governo a defesa de “novas reformas”, na qual ainda observamos os velhos argumentos: a defesa da “governabilidade”, da “eficácia administrativa” e (por que não?) de uma maior “justiça social”. Após a leitura do livro de Ilse Gomes, fica mais fácil perguntar (e responder): reformas para quê e para quem?

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LIVROS - Actuel Marx, nº 30: Les rapports sociaux de sexe 199

Actuel Marx, nº 30: Les rapports sociaux de sexe

de Annie Bidet-Mordrel & Jacques Bidet (orgs.)∗

Marxismo e feminismo: dimensões de um imprescindível diálogo por Renata Gonçalves∗∗

A revista francesa Actuel Marx, conhecida em determinado meio

acadêmico-político brasileiro, deu uma importante contribuição ao diálogo entre o marxismo e o feminismo. Esta contribuição veio em dose dupla, pois este trigésimo número se apresenta como um aporte lateral aos debates da seção “Relações sociais e gênero” do III Congresso Marx Internacional, ocorrido em setembro de 2001, na Universidade de Paris X.

O título relações sociais de sexo chama a atenção para o fato de que apesar das inúmeras lutas e conquistas, as desigualdades entre homens e mulheres não cessaram. O capitalismo tem demonstrado agilidade para se apropriar das diferenças de sexo, de raça/etnia, de classe para se reproduzir. Mas como o marxismo lida com estas questões? Quais os limites e alcances do marxismo nas análises das relações de gênero? Como as questões relativas ao gênero podem ser colocadas dentro do marxismo? Como as relações de gênero se articulam com as relações de classe?

A Actuel Marx assumiu o desafio de confrontar diferentes abordagens analíticas para tentar investigar estas questões. Mantendo a vocação internacional da revista, recorreu a especialistas originários de múltiplas disciplinas e de diversas correntes de pensamento feminista. O ponto comum, exigido pela tradição crítica, foi considerar que a desigualdade não é um fato da natureza, mas um dado cultural e historicamente construído. As interpretações divergentes que decorrem daí, têm o mérito de tentar elucidar os pontos estratégicos da relação classe-gênero no que tange, por exemplo, à divisão sexual do trabalho ou à clivagem entre o espaço privado doméstico e o espaço público ou ainda à exclusão das mulheres da política.

A opção adotada por Annie Bidet-Mordrel e Jacques Bidet, ambos filósofos, organizadores deste número, foi de priorizar os debates filosóficos e políticos acerca das relações de gênero de maneira a atualizar seus pressupostos teóricos e seus laços com a obra de Marx e Engels. Só a apresentação feita pelos dois filósofos, já vale o volume. O diálogo estabelecido com as autoras é o tempo todo enriquecido por instigantes esclarecimentos conceituais do campo marxista procurando sempre “salientar os limites do possível uso do conceito marxiano de classe, inseparável de sua matriz analítica muito particular que é a sociedade de classe” (p. 19). O leitor é também contemplado com vasta bibliografia atualizada sobre o assunto; e, particularmente, o leitor brasileiro, familiarizado com as ∗ Paris: L’Harmattan, 2001. ∗∗ Doutoranda em Ciências Sociais pela Unicamp e pesquisadora do NEILS.

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traduções da vertente anglo-saxônica, pode se surpreender com a imensa e profunda pesquisa desenvolvida por feministas francesas que, sobretudo a partir do início da década de 70, têm procurado examinar de perto a relação classe-gênero, correndo o risco muitas vezes de receber o rótulo de um feminismo “à francesa”, como se houvesse apenas possibilidade para um pensamento único.

Logo nas primeiras (e longas) páginas introdutórias, percebe-se que o que está em jogo é o marxismo e, mais ainda, que não se trata de medir o “feminismo” à luz do paradigma marxista, mas sim de fazer um esforço recíproco que consiste em analisar o uso que a literatura feminista faz das categorias classe, reprodução, etc., e o uso que a literatura marxista faz das categorias gênero, sexualidade, etc. na busca de ultrapassar justificativas, tais como a do “peso da tradição”, para sair do impasse e atualizar os laços entre os dois campos.

O mundo capitalista é apresentado como um turbilhão com seu sistema de Estados-nações, com centros dominando as periferias, com afirmações nacionalistas, violências racistas, colonialismos e onde todas as determinações de classe, de raça, de sexo se sobrepõem umas às outras. “Estas se espalham na complexidade das instituições econômicas, políticas e culturais que transforma constantemente o desenvolvimento das forças produtivas-destrutivas cada vez mais mundializado” (p. 32). E, nesta perspectiva, as lutas sociais adotam, outras formas que a clássica “luta de classes”.

A dezena de artigos que compõem esta Actuel Marx se aloca em dois eixos. Um trata dos temas “dominação, lutas, discursos e construção da subjetividade”. Outro se volta para as “relações sociais de sexo e as relações de produção”. Enquanto num eixo é o “sujeito das lutas” que emerge da crítica ao Sujeito universal, no outro são as produção e reprodução que aparecem como ponto nodal da análise. O que se procura não perder de vista são os complexos fios que tecem a relação classe-gênero. Frigga Haug retoma a crítica da abordagem de Marx e Engels que, para ela, cometem o erro de não conceber as relações entre homens e mulheres como relações sociais e propõe uma crítica à noção de relações de produção a partir das contribuições de Althusser e Gramsci. A questão da instrumentalização do corpo feminino é tratada no artigo que Paola Tabet intitula “grande fraude” que consiste na (im)possibilidade das mulheres expressarem seu próprio desejo (p. 142). A submissão ao desejo do homem torna a sexualidade das mulheres um simples serviço, pago ou gratuito. Françoise Collin, a propósito de como abolir a desigualdade, retoma uma reflexão filosófica sobre a (in)diferença como substituto do universalismo que mascara a dominação.

O debate fica tenso quando a questão é o pós-modernismo. Enquanto para Chantal Mouffe uma política feminista deveria considerar a diversidade dos jogos da linguagem através dos quais os sujeitos se identificam (p.182), para Catharine Mackinnon, este pós-modernismo feminista, em nome das diferenças, acaba reforçando o liberalismo econômico. Martha Gimenez, por sua vez, observa que “a própria idéia de uma opressão das mulheres e de lutas para sua liberação pressupõe a realidade material de sua condição assim como a validade de suas reivindicações, noções incompatíveis com as teorias que pretendem que tudo é relativo e construção discursiva” (p. 64). Nancy Fraser numa tentativa de unir o antigo e o novo, analisa, de um lado, a virada que houve no movimento feminista

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dos anos 70, quando prevalecia a idéia de luta contra a injustiça econômica, e, de outro lado, a reivindicação atual que gira em torno de um reconhecimento. Os dois pontos estão ligados: não há reconhecimento sem paridade econômica.

A alusão à obra de Engels está presente no artigo de Judith Butler que estabelece um laço estreito entre família, capitalismo e heterossexualidade. Muito mais que um fenômeno puramente “cultural”, este laço estabelece a regulação normativa da sexualidade. Se produção e reprodução da vida imediata são próprios ao funcionamento da economia política, “como é possível não ver a que ponto a homofobia está no coração da economia política?” (p. 212). Danièle Kergoat dá ao trabalho o centro de sua reflexão. Pelo trabalho há a “produção do viver” numa dupla dimensão: coletiva, que inclui o trabalho profissional e o doméstico; e individual, onde o trabalho é tido como transformação de si (p. 88). Mostra de maneira luminosa como a luta das mulheres se inscreve na articulação das relações sociais de sexo e de classe, mas não pode se reduzir a esta.

De maneira geral, observa-se que as dimensões da relação classe-gênero que se pretende abordar neste número, muitas vezes ficam no terreno da abstração. Quando se evoca a classe, há uma proeminência em esquecer o que se propunha evidenciar: a classe tem dois sexos, várias raças/etnia. O mesmo ocorre no que diz respeito à questão de gênero. Neste caso, é o corte de classe que fica vago. Se, de um lado, conquistas como uma creche – para dar apenas uma ilustração – podem beneficiar a quase todas as mulheres, de outro, no entanto, deixam obscurecidos os pólos da relação de classe. No Brasil, por exemplo, o fato da existência de uma creche torna possível a uma mulher deixar seu filho para ir trabalhar como empregada doméstica para (e cuidar dos filhos de) uma outra mulher.

Apesar das limitações, compreensíveis quando se trata de avançar num debate complexo, esta Actuel Marx é um desafio nos quais muitos querem, senão apostar, pelo menos saber do que se trata. Afinal, lançada no final de 2001, encontra-se completamente esgotada! Uma razão a mais para sugerir a tradução deste e de outros trabalhos para leitores de língua portuguesa que buscam referências teóricas para avançar no imprescindível diálogo entre o feminismo e o marxismo.

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Abstracts

Labor Training: Instruction or Freedom? Antonio Thomaz Jr. In this text we discuss efforts to train labor, in order to reflect on the consequences of the productive restructuring of capital for the labor movement. We try to go beyond geography, in an attempt to understand the contemporary world in terms of its continuities and discontinuities. In order to do that we must contemplate the underpinnings of work-related education, in particular the increasing role of the state, through the FAT and PLANFOR, the institutions of the S system, non-governmental organizations, union organizations, etc. That will allow us to discuss the insertion of the union movement in labor training, as well as the new forms of control and improvement of labor, linked to the new instruments of domination at the disposal of the dominant classes and their consequences for the union movement. Local Power and the Technical and Productive Restructuring of Capital Terezinha Ferrari More than a decade of experiences of Workers’ Party governance at the municipal level has yielded a set of ideas that constitute a new regionalism. These ideas presuppose the submission of capital to politics and the construction of networks of partnerships in production chains, with less emphasis on competition. Urban productivity allows the circulation-less circulation of goods, which is the major goal of capital in an era of high labor productivity. Comparisons with centers of capital that have also carried out restructuring in labor processes have shaped the ideas discussed here. The Genesis of Clientelism in the Brazilian Political Organization Elsio Lenardão This article attempts to contribute to the elucidation of the social and historical conditions that stimulated the appearance of the phenomenon of political clientelism in Brazil. We focus special attention on its origins during the colonial period, by organizing relevant observations from a series of important historical works on this period. The effort to understand clientelism in Brazil is justified by the fact that it has established itself as a recurring feature of the country’s political organization, which has brought negative political consequences from the point of view of the interests of the popular classes -- the poor people of Brazil. The Paulista Liberal Nationalists and the Construction of the Brazilian Nation Cássia Chrisiniano Adduci With this article I attempt to present, in general terms, the proposal of a group of paulista intellectuals who, during the 1920s mobilized around the elaboration of a response to the challenge facing all Brazilian intellectuals: (re-) constructing the Brazilian nation. Popular Nationalism and the Crisis of National Populism in the Early 1960s Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida In an attempt to examine different social appropriations, we formulate a periodization that comprehends the continuities and ruptures in Brazilian national populism. The focus is especially on the final phase, at the beginning of the 1960s, marked by an intense appropriation of national populism by the popular classes. This appropriation

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Abstracts 203

would contribute to the deepening of the political crisis, whose end result was the coup of 1964, the starting point for 21 years of military dictatorship. Slavery, Nationality and “Political Half-Breeds” Celso Uemori This article deals with the following themes: the influence of slavery on the constitution of Brazilian society; the abolition of slavery and the concessions of liberty as instruments capable of extirpating the “original evils” produced by the social system of servitude; and the effects of this system on the creation of what Joaquim Nabuco termed “the political half-breeds” or, in other words, the coexistence in the Brazilian mindset of the authoritarianism of the master and the submissiveness of the slave. The Wars of National Liberation and the Process of Global Expansion of Capital Marcelo Buzetto The objective of this article is to reflect on the role of wars of national liberation during the process of capitalist development, as well as to better understand, through a reading of classic authors on Marxism and the art of war, the behavior of the United States in two of the most important wars of the contemporary world: Vietnam, in the twentieth century, and Iraq, at the beginning of the twenty-first. Unsustainable Development Célia M. Motta Theories, strategies and promises of development sustained the programs of various Brazilian governments (whether dictatorial, “democratic” or “re-democratizing”), justified successively by the need to “reestablish” political, economic and social order. There was no economic development, political order is questionable and society is mired in misery – but the argument continues to be repeated. Imperialist Globalization Marcos Del Roio One debate that is underway today and that has important political implications involves the character of the current phase of capitalist development. There exist different ideas about whether there is a unipolar or multipolar tendency, if the concept of imperialism continues to be useful, or whether today we are in the midst of a new and unprecedented phase. This article defends the idea that the current phase of capitalism is a phase that approximates the realization of a universal empire. This is a perspective that existed even before capitalism, buts its fundamental characteristics are expressed in a deepening of capitalist imperialism, particularly financially and militarily. Nevertheless, the very contradictions of imperialism will impede the realization of world empire. The Debate on Central Bank Independence Jorge Alano Silveira Garagorry This article addresses the debate on the autonomy of the central bank, which is taking place in Brazilian society. It seeks to analyze its economic and political significance, in particular its coherence with the ideology of popular sovereignty. The Color of Our Struggles Antonio Martins What is there in common between the popular uprising that overthrew the president of Bolivia and the new world that the Porto Alegre Social Forum wants to build?

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Allende Once Again: At the Threshold of a New Historical Period Aníbal Quijano This article analyzes the beginning of a counter-revolutionary process, focusing on the destruction of the Popular United regime of Salvador Allende in Chile in 1973. It discusses the omissions of the so-called “socialist field,” as well as the effective participation of the United States, with the goal of defeating revolutionary processes that put American hegemony in Latin America at risk. We can see these experiences as models of resistance to the neoliberal offensive. The socialist party of Chile to the people Leandro Vergara-Camus, The article analyses the role and responsibility of the Socialist Party in Chile’s unconcluded democratisation. It identifies the decision of the party to demobilise the popular movement against the dictatorship has a fundamental moment in the party’s re-integration into mainstream institutional politics. The author argues that this re-integration was possible because socialists adopted a new understanding of politics that privileged elite negotiations and rejected social mobilisation as a political recourse. The correspondent political practice has had the consequence of discrediting politicians and political parties. Through extracts of interviews with socialist leaders, the author shows how the dominant institutional and elitist conception of politics and power impedes, even the leftist sector of the party, from changing this situation and thinking of alternatives that could put an end to Pinochet’s institutional legacy. Cuba: Socialist Resistance in Latin America Rémy Herrera This article seeks to struggle against the unified anti-Cuban thinking, which even some leftist circles have succumbed to and which constitues one of the many ideological faces of the current neoliberal and warlike model of globalization. The central idea is that the Cuban experience has demonstrated the possibility of a socialist, anti-imperialist and anti-capitalist resistance in Latin America. Cooperation and Cooperatives: Instruments of Organization and Resistance of Landless Workers Claudete Pagotto The goal of this article is to contribute to the reflections on the double character of cooperativism: as an instrument of both political and economic organization for workers. In some nineteenth century socialist theoretical currents we find this kind of thinking in analyses of cooperative work alternatives. From this perspective, we can see the double character of cooperativism in the cooperative organizations created within social struggle. These have attempted to meet both the more immediate and the broader needs of landless workers in the construction of rural settlements and, above all, in the construction of spaces of resistance to neoliberal economic policies and to the contradictions of capitalism. The Socio-Territorial Movement and “Globalization”: Some Reflections Based on the Case of the MST Jean-Yves Martin and Bernardo Mançano Fernandes Does so-called “globalization,” the central theme of the ultraliberal ideological discourse, announce the end of geography? Through reflections presented here and an analysis of the case of the Movement of Landless Rural Workers (MST), we seek to show that geography is a body of knowledge that seeks to make itself a social science of space at many levels, including territorial conflict, the emergence of new socio-spacial identities, participant observation by geographers, and the commitment of geographers to improving their own world. In this way, we argue that geography should be able to clarify and accompany the ongoing emergence of a new reality.

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Abstracts 205

The Current State of the Class Struggle in the United States Samuel Holder The Bush administration’s preparations for war in Iraq provoked unease throughout the world. After the bursting of the speculative stock market bubble associated with the new economy and the September 11, 2001 attack, the economic and military response of the major imperialist power has shown itself to be, more than ever, a menace to mankind. But any anti-imperialism that reduces itself to essentially a form of anti-Americanism would become a trap. It would aid the plans of the American bourgeoisie to present the population of the United States as a unified whole, nationalist and reactionary, docilely lined up behind their leaders, save for a handful of leftist intellectuals. The Classification of Latin American Governments by the United States James Petras This article examines the classification of Latin American governments by the United States according to the criteria of willingness to implement the neoliberal agenda and capacity to obtain popular legitimacy for this policy.

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Revistas Recebidas 206

Revistas Recebidas

ALFAGUARA Política, sociedad, cultura Montevidéu, Centro de Encuentro y Estúdios Carlos Marx no 22, ano 7 – março de 1999. ¿Cuál alternativa construir? no 25, ano 9 – maio de 2001. 130 años de la Comuna de Paris ALTERNATIVES SUD Louvain-La-Neuve (Bélgica), Cetri/L’Harmattan vol. VIII (2001) 1: Socialisme et marché: Chine, Vietnam, Cuba. vol. VIII (2001) 2: L’avenir des peuples autochtones: le sort des “premières nations”. vol. VIII (2001) 3: Et si l’Afrique refusait le marché? vol. VIII (2001) 4: L’eau, patrimoine commun de l’humanité. vol. IX (2002) 2-3: Raisons et déraisons de la dette – le point de vue du Sud ANÁLISE SOCIAL Lisboa, Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. vol. XXXVI, nº 160 – 2001. Biografias. CAHIERS DES AMÉRIQUES LATINES Paris, CNRS/Iheal nº 35 – 2000/3. Dossiê Métropoles d’Amérique Latine: de l’espace publique aux espaces privés. nº 36 – 2001/1. Dossiê: Les experiênces de la guérilla. nº 37 – 2001/2. Dossiê: Le Mexique, vieux démons, nouveaux défis. nº 38 – 2001/3. Dossiê: Images de la violence. nº 39 – 2002/1. Dossiê: Rapports de genre et masculinités. CAHIERS DU BRÉSIL CONTEMPORAIN Paris, Maison des Sciences de l’Homme; Centre de Recherches sur le Brésil Contemporain (EHESS); Institut des Hautes Études d’Amérique Latine (Paris VIII). no 23-24 – 1994. Pouvoir et nation

CARRÉ ROUGE Paris. nº 12 – outubro de 1999. nº 13 – fevereiro de 2000. nº 18 – verão, 2001. nº 20 – inverno, 2001-2002. nº 21 – 27. 2003 CONTRADICTIONS Bruxelas/Paris nº 100 – outubro/dezembro de 2002. Dossiê: 100% contradiction. CUADERNOS DE LA FISYP Buenos Aires, Fundación de Investigaciones Sociales y Políticas no 7, série 2 – dezembro de 2001 e janeiro de 2002. Rebeliones e puebladas: viejos y nuevos desposeidos em Argentina. ESTRATEGIA INTERNACIONAL Revista de teória y política marxista revolucionaria. no 17, ano IX – abril de 2001. Um monde inestable. ESTUDOS SOCIEDADE E AGRICULTURA Rio de Janeiro, Universidade Federal Rural. no 11 – 1998. O novo mundo rural: sustentabilidade, globalização. ESTUDOS DE SOCIOLOGIA Araraquara, Departamento de Sociologia e Programa de Pós-Graduação em Sociologia/FCL-UNESP. no 9, ano 5 –2o semestre de 2000. no 11, ano 6 –2o semestre de 2001. HERRAMIENTA revista de debate y crítica marxista Buenos Aires. nº 13, ano V – 2000; no 16 e no 17, ano VI – 2001; nº 22, ano VII – 2003. RECHERCHES INTERNATIONALES Paris, Centre Nationale du Livre. nº 60-61 (2/3) – 2000. Un monde à vendre ou à construire? La portée de Seatle. nº 63 (1) – 2001. Dépenses militaires

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Revistas Recebidas 207

(L’idée nationale au Brésil). no 33-34 – 1998. LE développement, qu’est-ce? L’apport de Celso Furtado. no 35-36 – 1998. Religions: orthodoxie, heterodoxie et mysticisme MARX AHORA Habana. nº 8 – 1999. A los 40 años de la Revolución Cubana. nº 9 – 2000. Indagaciones. NORD-SUD XXI Paris, Institut Nord-Sud pour le dialogue interculturel nº 17 (5) – 2001. Droits de l’homme, liberté, culture. LATIN AMERICAN PERSPECTIVES Riverside, University of California nº 5, vol. 27 – setembro de 2000. Radical left response to global Imporverishment. LIBERTAS Juiz de Fora, Revista do Serviço Social, Universidade Federal. nº 2, vol. 1 – 2001. MONDES EN DÉVELOPPEMENT Paris/Bruxelas, Fondation Universitaire de Belgique. nº 106, vol. 27 – 1999. Kalecki et le développement. PERIFERIAS Buenos Aires, Revista de Ciencias Sociales, Fundación de investigaciones sociales y políticas nº 1, ano 1 – 2o semestre de 1996. Marxismo y Estado. nº 8, ano 5 – 2o semestre de 2000. Representación política y movimiento social. nº 9, ano 6 – 2o semestre de 2001. Capitalismo global y alternativas. nº 10, ano 7 – 2o semestre de 2002. Escritos de Gramsci.

et élaborations stratégiques. nº 64 (2) – 2001. Économie maffieuse, Asie Centrale, Manhattan: quelle grille de lecture? nº 66 (4) – 2001. Le monde après le 11 septembre. REVISTA CRÍTICA DE CIÊNCIAS

SOCIAIS Coimbra, Centro de Estudos Sociais. nº 60 – outubro de 2001. Observar as justiças nº 61 – dezembro de 2001. nº 64 – dezembro de 2002. REVISTA PORTUGUESA DE

EDUCAÇÃO Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho. nº 1 e nº 2, vol. 14 – 2001. SOCIEDADE EM DEBATE Pelotas, Escola de Serviço Social, Universidade Católica de Pelotas. nº 3, vol. 4 – novembro de 1998. TEORIA & PRÁTICA São Paulo, Conselho Regional de serviço Social. nº 1, ano 1 – maio de 1998. VIENTO DEL SUR Ideas, história, política, cultura. México. nº 17, ano VI – agosto de 2000.

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Normas para colaboração 208

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1. Lutas Sociais aceita artigos, resenhas de livros e teses. As colaborações serão analisadas pelo Conselho Editorial da revista, que decidirá sobre sua publicação.

2. Os artigos não poderão exceder 36.000 caracteres com espaços (incluídas notas de rodapé e bibliografia). As resenhas não poderão exceder 8.000 caracteres com espaços.

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4.1. Título: Primeira letra maiúscula e restante minúsculas, centralizado.

4.2. O nome do autor deve ser seguido de nota remissiva feita por asterisco que o identifique (instituição, formação e/ou publicações etc.), na primeira página.

4.3. O resumo e abstract deverão estar alinhados à esquerda, fonte Times New Roman, corpo 11, espaço simples.

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a) Livros:

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Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais (PUC-SP).

Rua Ministro Godói, 969 – 4o. Andar,

Cep 05015-001 (Perdizes) São Paulo – SP – Brasil.

Fone/Fax: (5511) 3670 8517.

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