Lutas_Camponesas_vol2

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Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas vol. II Fernandes, Medeiros e Paulilo (Orgs.)

de rua em camponeses, e novas perspectivas de casos bastante conhecidos, caso da luta pela terra em Eldorado dos Carajs. Ao final, em uma perspectiva geogrfica, surgem os mapas dos conflitos que marcam o campo brasileiro. As anlises mostram como a partir da capacidade de mobilizao e organizao do campesinato retoma-se o debate sobre a questo fundiria; a preservao ambiental e a sobrevivncia das populaes tradicionais. As formas e os espaos das diversidades so tratados com base em estudos sobre ocupaes de terra e acampamentos, valorizando o papel das redes de relaes de parentesco, solidariedade e conflitualidade, por meio das quais os sujeitos em movimento constroem suas organizaes. Em seu conjunto, os textos aqui reunidos revelam a complexidade da questo agrria e do campesinato nacional. Mostram como os camponeses, estes novos sujeitos sociais, constroem seu futuro, rompem com as separaes entre campo e cidade e buscam o direito de viver na terra mesmo tendo de enfrentar processos expropriatrios, polticas de criminalizao e estratgias de controle poltico.

Ampliando os horizontes possveis para a anlise, os artigos aqui reunidos recuperam e atualizam leituras de algumas das formas de resistncia e de recriao do campesinato, de maio de 1978 at o comeo do sculo XXI. Revelam a complexidade da questo agrria e mostram como os camponeses enfrentam processos expropriatrios, polticas de criminalizao e estratgias de controle poltico.

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistasvol. IIA diversidade das formas das lutas no campoBernardo Manano Fernandes, Leonilde Servolo de Medeiros e Maria Ignez Paulilo (Orgs.)

A coletnea Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas da Histria Social do Campesinato oferece compreenso mais ampla do mundo cultural, poltico, econmico e social em que o campons produz e se reproduz. Neste segundo volume, quinze artigos mostram como as lutas camponesas nas diferentes regies do Brasil se transformam em espaos de resistncia e de luta contra a desterritorializao. Abordando conflitos desde a expulso dos posseiros da Reserva Indgena de Nonoai, no Rio Grande do Sul, em maio de 1978, at o comeo do sculo XXI, estes trabalhos partem de variada inspirao terica e se valem de amplo contexto emprico concreto e dados etnogrficos. Ampliando os horizontes possveis para a anlise, recuperam e atualizam leituras de algumas das formas de resistncia e de recriao do campesinato. Discutem-se aqui questes como as implicaes e a continuidade das desigualdades de gnero e a represso sexual, a reforma agrria de mercado, as formas de organizaes criadas no processo de luta, assim como as complexas redes e articulaes existentes nos acampamentos e em outros espaos de resistncia. Tambm h temas pouco comuns, como a transformao de ex-moradores

Coleo Histria Social do Campesinato no Brasil

NEAD

UNESP

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

FUNDAO EDITORA DA UNESP

LUIZ INCIO LULA DA SILVA Presidente da Repblica GUILHERME CASSEL Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrrio DANIEL MAIA Secretrio-executivo do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio ROLF HACKBART Presidente do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria ADONIRAM SANCHES PERACI Secretrio de Agricultura Familiar ADHEMAR LOPES DE ALMEIDA Secretrio de Reordenamento Agrrio JOS HUMBERTO OLIVEIRA Secretrio de Desenvolvimento Territorial JOAQUIM CALHEIROS SORIANO Coordenador-geral do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural VINICIUS MACRIO Coordenador-executivo do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural MINISTRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRRIO (MDA) www.mda.gov.br NCLEO DE ESTUDOS AGRRIOS E DESENVOLVIMENTO RURAL (NEAD) SBN, Quadra 2, Edifcio Sarkis Bloco D loja 10 sala S2 CEP: 70.040-910 Braslia/DF Tel: (61) 2020-0189 www.nead.org.br PCT MDA/IICA Apoio s Polticas e Participao Social no Desenvolvimento Rural Sustentvel

Presidente do Conselho Curador Herman Voorwald Diretor-Presidente Jos Castilho Marques Neto Editor-Executivo Jzio Hernani Bomm Gutierre Assessor Editorial Antonio Celso Ferreira Conselho Editorial Acadmico Alberto Tsuyoshi Ikeda Clia Aparecida Ferreira Tolentino Eda Maria Ges Elisabeth Criscuolo Urbinati Ildeberto Muniz de Almeida Luiz Gonzaga Marchezan Nilson Ghirardello Paulo Csar Corra Borges Srgio Vicente Motta Vicente Pleitez Editores-Assistentes Anderson Nobara Arlete Zebber Ligia Cosmo Cantarelli

BERNARDO MANANO FERNANDES LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS MARIA IGNEZ PAULILO (Orgs.)

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistasA diversidade das formas das lutas no campovolume 2

2009 Editora UNESP Direitos de publicao reservados : Fundao Editora da UNESP (FEU) Praa da S, 108 01001-900 So Paulo SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br [email protected]

CIP Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ L991 v.2 Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas, v.2: a diversidade das formas das lutas no campo/Bernardo Manano Fernandes, Leonilde Servolo de Medeiros, Maria Ignez Paulilo (orgs.). So Paulo: Editora UNESP; Braslia, DF: Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural, 2009. 369p. (Histria social do campesinato brasileiro) ISBN 978-85-7139-969-3 (Editora UNESP) ISBN 978-85-60548-54-5 (NEAD) 1. Camponeses Brasil Histria. 2. Camponeses Brasil Condies sociais. 3. Trabalhadores rurais Sindicatos Brasil Histria. 4. Camponeses Brasil Atividades polticas. 5. Brasil Condies rurais. 6. Posse da terra Brasil. 7. Movimentos sociais rurais Brasil Histria. I. Fernandes, Bernardo Manano. II. Medeiros, Leonilde Servolo de. III. Paulilo, Maria Ignez Silveira. IV. Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural. V. Srie. 09-4543. CDD: 305.5633 CDU: 316.343

Editora aliada:

Histria Social do Campesinato no Brasil Conselho Editorial Nacional MembrosMembros efetivos Ariovaldo Umbelino de Oliveira (Universidade de So Paulo) Bernardo Manano Fernandes (UNESP, campus de Presidente Prudente) Clifford Andrew Welch (GVSU & UNESP, campus de Presidente Prudente) Delma Pessanha Neves (Universidade Federal Fluminense) Edgard Malagodi (Universidade Federal de Campina Grande) Emilia Pietrafesa de Godoi (Universidade Estadual de Campinas) Jean Hebette (Universidade Federal do Par) Josefa Salete Barbosa Cavalcanti (Universidade Federal de Pernambuco) Leonilde Servolo de Medeiros (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, CPDA) Mrcia Maria Menendes Motta (Universidade Federal Fluminense) Maria de Nazareth Baudel Wanderley (Universidade Federal de Pernambuco) Maria Aparecida de Moraes Silva (UNESP, campus de Araraquara) Maria Ignez Paulilo (Universidade Federal de Santa Catarina) Marilda Menezes (Universidade Federal de Campina Grande) Miguel Carter (American University, Washington DC) Paulo Zarth (Uniju) Rosa Elizabeth Acevedo Marin (Universidade Federal do Par) Sueli Pereira Castro (Universidade Federal de Mato Grosso) Wendy Wolford (Yale University) Coordenao Horcio Martins de Carvalho Mrcia Motta Paulo Zarth

SUMRIO

APRESENTAO COLEO 9 PREFCIO 19 INTRODUO 23Bernardo Manano Fernandes, Leonilde Servolo de Medeiros e Maria Ignez Paulilo

1 Consideraes sobre uma dcada de lutas sociais no campo no extremo sul do Brasil (1978-88) 33Anita Brumer

2 A engrenagem das ocupaes de terra 53Lygia Sigaud

3 Para alm da barraca de lona preta: redes sociais e trocas em acampamentos e assentamentos do MST 73Nashieli C. Rangel Loera

4 A forma movimento como modelo contemporneo de ao coletiva rural no Brasil 95Marcelo Rosa

5 Mobilizao camponesa no sudeste paraense e luta pela reforma agrria 113William Santos de Assis

6 A fresta: ex-moradores de rua como camponeses 139Marcelo Gomes Justo

7 As faces ocultas de um conito: a luta pela terra em Eldorado dos Carajs 159Luciana Miranda Costa

Sumrio

8 Movimentos das mulheres agricultoras e os muitos sentidos da igualdade de gnero 179Maria Ignez S. Paulilo

9 A participao da mulher na luta pela terra: dilemas e conquistas 203Snia Ftima Schwendler

10 Hoje, a mulher a estrela diviso sexual do trabalho guerreiro nas lutas camponesas no Maranho 223Maristela de Paula Andrade

11 De pobre e sem-terra a pobre com-terra e sem sossego: territorializao e territorialidades da reforma agrria de mercado (1998-2006) 247Eraldo da Silva Ramos Filho

12 Neoliberalismo e lutas camponesas no Brasil: contestao e resistncia reforma agrria de mercado do Banco Mundial durante o governo FHC 279Joo Mrcio Mendes Pereira

13 A Articulao do Semi-rido brasileiro: camponeses unidos em rede para defender a convivncia no Semi-rido 303Ghislaine Duque

14 A maior estrutura sindical do Brasil: papel do sindicalismo de trabalhadores rurais no ps-64 321Rud Ricci

15 Geograa da conitualidade no campo brasileiro 339Eduardo Paulon Girardi e Bernardo Manano Fernandes

Sobre os autores

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APRESENTAO COLEO

Por uma recorrente viso linear e evolutiva dos processos histricos, as formas de vida social tendem a ser pensadas se sucedendo no tempo. Em cada etapa consecutiva, apenas so exaltados seus principais protagonistas, isto , os protagonistas diretos de suas contradies principais. Os demais atores sociais seriam, em concluso, os que, por alguma razo, se atrasaram para sair de cena. O campesinato foi freqentemente visto dessa forma, como um resduo. No caso particular do Brasil, a esta concepo se acrescenta outra que, tendo como modelo as formas camponesas europias medievais, aqui no reconhece a presena histrica do campesinato. A sociedade brasileira seria ento congurada pela polarizada relao senhorescravo e, posteriormente, capitaltrabalho. Ora, nos atuais embates no campo de construo de projetos concorrentes de reordenao social, a condio camponesa vem sendo socialmente reconhecida como uma forma ecaz e legtima de se apropriar de recursos produtivos. O que entendemos por campesinato? So diversas as possibilidades de denio conceitual do termo. Cada disciplina tende a acentuar perspectivas especcas e a destacar um ou outro de seus aspectos constitutivos. Da mesma forma, so diversos os contextos histricos nos quais o campesinato est presente nas sociedades. Todavia, h reconhecimento de princpios mnimos que permitem aos que investem, tanto no campo acadmico quanto no poltico, dialogar em torno de reexes capazes de demonstrar a presena da forma ou condio camponesa, sob a variedade de possibilidades de objetivao ou de situaes sociais. Em termos gerais, podemos armar que o campesinato, como categoria analtica e histrica, constitudo por poliprodutores, integrados ao jogo de foras sociais do mundo contemporneo. Para a construo da histria social do campesinato no Brasil, a categoria ser reconhecida pela produo, em modo e grau variveis, para o mercado, termo que abrange, guardadas as singularidades inerentes a cada forma, os mercados locais, os mercados9

Apresentao coleo

em rede, os nacionais e os internacionais. Se a relao com o mercado caracterstica distintiva desses produtores (cultivadores, agricultores, extrativistas), as condies dessa produo guardam especicidades que se fundamentam na alocao ou no recrutamento de mo-de-obra familiar. Trata-se do investimento organizativo da condio de existncia desses trabalhadores e de seu patrimnio material, produtivo e sociocultural, varivel segundo sua capacidade produtiva (composio e tamanho da famlia, ciclo de vida do grupo domstico, relao entre composio de unidade de produo e unidade de consumo). Por esses termos, a forma de alocao dos trabalhadores tambm incorpora referncias de gesto produtiva, segundo valores sociais reconhecidos como orientadores das alternativas de reproduo familiar, condio da qual decorrem modos de gerir a herana, a sucesso, a socializao dos lhos, a construo de diferenciados projetos de insero das geraes. O campesinato emerge associadamente ao processo de seu reconhecimento poltico, ora negativo, ora positivo. Por tais circunstncias, a questo poltica, constituda para o reconhecimento social, enquadrou tal segmento de produtores sob a perspectiva de sua capacidade adaptativa a diferentes formas econmicas dominantes, ora pensadas pela permanncia, ora por seu imediato ou gradual desaparecimento. Como em muitos outros casos de enquadramento social e poltico, uma categoria de auto-identicao, portanto contextual, produto de investimentos de grupos especficos, desloca-se, sob emprstimo e (re)semantizao, para os campos poltico e acadmico e, nesses universos sociais, sob o carter de signo de comportamentos especialmente htero-atribudos ou sob o carter de conceito, apresenta-se como generalizvel. Vrios autores, retratando a coexistncia do campesinato em formaes socioeconmicas diversas, j destacaram que o reconhecimento dessa nominao, atribuda para efeitos de investimentos polticos ou para reconhecimento de caractersticas comuns, s pode ser compreendido como conceito, cujos signicados denem princpios gerais abstratos, motivo pelo qual podem iluminar a compreenso de tantos casos particulares. Para que a forma camponesa seja reconhecida, no basta considerar a especicidade da organizao interna unidade de produo e famlia trabalhadora e gestora dos meios de produo alocados. Todavia, essa distino analiticamente fundamental para diferenciar os modos de existncia dos camponeses dos de outros trabalhadores (urbanos e rurais), que no operam produtivamente sob tais princpios. Percebendo-se por essa distino de modos de existncia, muitos deles se encontram mobilizados politicamente para lutar pela objetivao daquela condio de vida e produo (camponesa). Em quaisquer das alternativas, impe-se a compreenso mais ampla do mundo cultural, poltico, econmico e social em que o campons produz e se reproduz. Da coexistncia com outros agentes sociais, o campons se10

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

constitui como categoria poltica, reconhecendo-se pela possibilidade de referncia identitria e de organizao social, isto , em luta por objetivos comuns ou, mediante a luta, tornados comuns e projetivos. A esse respeito, a construo da histria social do campesinato, como de outras categorias socioeconmicas, deve romper com a primazia do econmico e privilegiar os aspectos ligados cultura. Ao incorporar as mltiplas dimenses da prtica dos agentes, destacamos o papel da experincia na compreenso e explicitao poltica das contradies do processo histrico. Essas contradies revelam conitos entre normas e regras que referenciam modos distintos de viver, em plano local ou ocupacional, colocando em questo os meios que institucionalizam formas de dominao da sociedade inclusiva. Tais postulados sero demonstrados nos diversos artigos desta coletnea, voltada para registros da histria social do campesinato brasileiro. A prtica faz aparecer uma innidade de possibilidades e arranjos, vividos at mesmo por um mesmo grupo. Quanto mais se avana na pesquisa e no reconhecimento da organizao poltica dos que objetivam a condio camponesa, mais se consolidam a importncia e a amplitude do nmero de agricultores, coletores, extrativistas, ribeirinhos e tantos outros, nessa posio social ou que investem para essa conquista. A diversidade da condio camponesa por ns considerada inclui os proprietrios e os posseiros de terras pblicas e privadas; os extrativistas que usufruem os recursos naturais como povos das orestas, agroextrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais e catadores de caranguejos que agregam atividade agrcola, castanheiros, quebradeiras de coco-babau, aaizeiros; os que usufruem os fundos de pasto at os pequenos arrendatrios nocapitalistas, os parceiros, os foreiros e os que usufruem a terra por cesso; quilombolas e parcelas dos povos indgenas que se integram a mercados; os serranos, os caboclos e os colonos assim como os povos das fronteiras no sul do pas; os agricultores familiares mais especializados, integrados aos modernos mercados, e os novos poliprodutores resultantes dos assentamentos de reforma agrria. No caso da formao da sociedade brasileira, formas camponesas coexistem com outros modos de produzir, que mantm relaes de interdependncia, fundamentais reproduo social nas condies hierrquicas dominantes. Assim, a ttulo de exemplo, ao lado ou no interior das grandes fazendas de produo de cana-de-acar, algodo e caf, havia a incorporao de formas de imobilizao de fora de trabalho ou de atrao de trabalho livre e relativamente autnomo, fundamentadas na imposio tcnica do uso de trabalho basicamente manual e de trabalhadores familiares, isto , membros da famlia do trabalhador alocado como responsvel pela equipe. Esses fundamentais agentes camponeses agricultores apareciam sob designao de colonos, arrendatrios, parceiros, agregados, moradores e at sitiantes, termos que no podem ser compreendidos sem a articulao11

Apresentao coleo

com a grande produo agroindustrial e pastoril. Se recuarmos um pouco no tempo, veremos que, ao lado de donatrios e sesmeiros, apareciam os foreiros, os posseiros ou designando a condio de coadjuvante menos valorizada nesse sistema de posies hierrquicas os intrusos ou invasores, os posseiros criminosos etc. Os textos da histria geral do Brasil, nos captulos que exaltam os feitos dos agentes envolvidos nos reconhecidos movimentos de entradas e bandeiras, trazem tona a formao de pequenos povoados de agricultores relativamente autrquicos. Posteriormente, tais agentes produtivos sero celebrados pelo papel no abastecimento dos tropeiros que deslocavam metais e pedras preciosas, mas tambm outros produtos passveis de exportao e de abastecimento da populao das cidades ou das vilas porturias. Desse modo, o campesinato, forma poltica e acadmica de reconhecimento conceitual de produtores familiares, sempre se constituiu, sob modalidades e intensidades distintas, um ator social da histria do Brasil. Em todas as expresses de suas lutas sociais, seja de conquista de espao e reconhecimento, seja de resistncia s ameaas de destruio, ao longo do tempo e em espaos diferenciados, prevalece um trao comum que as dene como lutas pela condio de protagonistas dos processos sociais. Para escrever sobre essa histria preciso, portanto, antes de tudo, reetir sobre a impositiva produo dessa amnsia social ou dessa perspectiva unidimensional e essencializada, que apaga a presena do campesinato e oculta ou minimiza os movimentos sociais dos camponeses brasileiros, consagrando com tradio inventada a noo do carter cordato e pacco do homem do campo. Ou fazendo emergir a construo de uma caricatura esgarada do pobre coitado, isolado em grande solido e distanciamento da cultura ocial, analfabeto, mal-alimentado. Ora, tais traos aviltantes, para olhares que os tomassem como expressivos da condio de vida e no do sujeito social, revelavam as bases da explorao e da submisso em que viviam, seja como agentes fundamentais ou complementares do processo produtivo da atividade agroindustrial e exportadora. Estimulados a coexistirem internamente, ao lado ou ao largo da grande produo, os agentes constitudos na condio camponesa no tinham reconhecidas suas formas de apropriao dos recursos produtivos. Assim sendo, so recorrentemente questionados e obrigados a se deslocar para se reconstituir, sob as mesmas condies, em reas novamente perifricas. Da mesma forma, em outras circunstncias, so submetidos a regras de coexistncia consentidas e por vezes imediatamente questionadas, dada a exacerbao das posies hierarquizadas ou das desigualdades inerentes s condies de coexistncia. A presena dos camponeses , pois, postulada pela ambigidade e desqualicao, quando os recursos por eles apropriados se tornavam objeto de cobia. Entendemos, no entanto, que, sob processos relativamente12

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

equivalentes, esses agentes elaboraram, como trao comum de sua presena social, projetos de existncia fundamentados em regras legtimas e legais, princpios fundamentais para a construo de um thos e de regras ticas, orientadores de seu modo de existncia e coexistncia. Sob tais circunstncias, a constituio da condio camponesa torna o agente que lhe corresponde o portador de uma percepo de justia, entendida aqui no como uma abstrao terica sobre o direito aos recursos produtivos, e sim como uma experincia baseada em modos de coexistncia: sob formas de comunidade camponesa; na labuta diria pela sobrevivncia; na relao com a natureza; e nas prticas costumeiras para a manuteno e a reproduo de um modo de vida compatvel com a ordem social, institucionalizada por aqueles que se colocam socialmente como seus opressores. Levando em considerao o conjunto de fatores que vimos destacando, podemos caracterizar alguns elementos constitutivos de certa tradio do campesinato brasileiro, isto , como expresso da existncia permitida sob determinadas constries e provisoriedades e sob certos modos de negociao poltica. Essa negociao no exclui resistncias, imposies contratuais, legais ou consuetudinrias, ou questionamentos jurdicos, que revelam e rearmam a capacidade de adaptao s condies da produo econmica dominante. Menos do que um campesinato de constituio tradicional, no sentido da profundidade temporal da construo de um patrimnio material e familiar, vemos se institucionalizar, como elemento distintivo, um patrimnio cultural inscrito nas estratgias do aprendizado da mobilidade social e espacial. Estratgias que visam, entre outros objetivos, busca do acesso aos recursos produtivos para a reproduo familiar e a explorao de alternativas, oferecidas pelas experincias particulares ou ociais de incorporao de reas improdutivas ou fracamente integradas aos mercados. Os camponeses instauraram, na formao social brasileira, em situaes diversas e singulares e mediante resistncias de intensidades variadas, uma forma de acesso livre e autnomo aos recursos da terra, da oresta e das guas, cuja legitimidade por eles rearmada no tempo. Eles investiram na legitimidade desses mecanismos de acesso e apropriao, pela demonstrao do valor de modos de vida decorrentes da forma de existncia em vida familiar, vicinal e comunitria. A produo estrito senso se encontra, assim, articulada aos valores da sociabilidade e da reproduo da famlia, do parentesco, da vizinhana e da construo poltica de um ns que se contrape ou se rearma por projetos comuns de existncia e coexistncia sociais. O modo de vida, assim estilizado para valorizar formas de apropriao, redistribuio e consumo de bens materiais e sociais, se apresenta, de fato, como um valor de referncia, moralidade que se contrape aos modos de explorao e de desqualicao, que tambm foram sendo reproduzidos no decorrer da existncia da posio camponesa na sociedade brasileira.13

Apresentao coleo

As formas exacerbadas de existncia sob desigualdades socioeconmicas se expressam, sobretudo, na explorao da fora de trabalho coletiva dos membros da famlia e na submisso aos intermedirios da comercializao, que se associam a outros agentes dominantes para produzir um endividamento antecipado e expropriador. Essas formas de subordinao, que pem em questo as possibilidades de reproduo da condio camponesa, contrapem-se avaliao de perenizadas experincias positivas de construo da condio camponesa. Um exemplo de experincias positivas a institucionalizada pelos sitiantes, dotados de autonomia para se agregarem por vida coletiva em bairros rurais. No contexto de lutas sociais, os trabalhadores foram construindo um sistema de crenas partilhadas e inscritas em seu cotidiano de lutas pela sobrevivncia e reproduo social. Essas lutas so orientadas pela denio do acesso aos recursos produtivos, de forma legal e autnoma, como fator fundamental para sua constituio como agente produtivo imediato, isto , contraposto ao cativo ou subjugado no interior das fazendas e, por tal razo, dispondo de relativa autonomia. Nos termos dessa tradio, a liberdade um valor para expandir uma potencialidade, ou seja, capacidade para projetar o futuro para os lhos e para socialmente se valorizar como portador de dignidade social. Na construo da formao social brasileira, o modo de existir reconhecido pela forma camponesa, menos que um peso da tradio da estabilidade e de longas genealogias, como ocorre, por exemplo, em formaes sociais europias, uma idia-valor, orientadora de condutas e de modos de agregao familiar ou grupal. Na qualidade de valor, um legado transmitido entre geraes, reatualizado e contextualizado a cada nova gerao que investe nessa adeso poltica. O peso desse legado, quando no compreendido, leva aos estranhamentos muito comuns em relao persistncia da luta pelo acesso aos recursos produtivos e mesmo em relao ao deslocamento de trabalhadores denidos como urbanos, que engrossam movimentos de sua conquista. As possibilidades de existncia que a condio camponesa permite vo se contrapor, em parte por equivalncia comparativa, s condies de explorao de trabalhadores da indstria, do comrcio e de servios. Esses traos, sempre presentes porque realimentados como um legado de memrias familiares e coletivas, vo atribuir sentido s constantes mobilidades de trabalhadores. Os deslocamentos justicam-se pela busca de espaos onde haja oportunidade de pr em prtica modos de produzir e de existncia, desde que fundamentados pela gesto autnoma dos fatores produtivos, das condies e produtos do trabalho e da orientao produtiva. Levando em conta tais elementos, denidos como constitutivos de uma tradio e alargando a compreenso da diversidade de situaes, rearmamos a presena do campesinato como constitutiva de toda a histria do Brasil. Tais produtores estiveram vinculados explorao colonial,14

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

integrando-se a mercados locais ou a distncia; rearmaram-se como posio desejada no decorrer da transio do trabalho escravo para o trabalho livre; abasteceram os processos de agroindustrializao de produtos destinados exportao; e, entre outras tantas situaes, por mais de um sculo, vm ocupando a Amaznia. Atualmente, apresentam-se como um dos principais atores da cena poltica, constituda para tornar possvel a construo de sociedade erguida sobre bases mais igualitrias, capazes, ento, de fundamentar os princpios democrticos de coexistncia social e poltica. Portanto, as negociaes em torno das alternativas de ocupao do espao fsico e social marcaram e impregnaram a proposio de modos de vida orientados por valores cuja elaborao tornou possvel a legitimidade da coexistncia poltica e cultural. Modos de vida que tambm rearmam o direito luta pela autonomia, emblematizada pela clebre referncia vida na fartura. Ora, tudo isso, relembramos, fora construdo no contexto de imposio de formas de dominao objetivadas com base na grande produo. Por esse motivo, a vida segundo a lgica expropriatria objetivada na grande propriedade foi concebida como destruidora da dignidade social. A honra estava (assim e inclusive) pautada pela defesa do acesso alimentao, todavia em condies socialmente concebidas como adequadas reproduo saudvel do trabalhador e dos membros de sua famlia. Dessa forma, no Brasil, os produtores agregados pela forma de organizao camponesa esto presentes como atores sociais que participaram e participam da construo da sociedade nacional. Esse reconhecimento no se funda to-somente em uma dimenso politizada de defesa dessa visibilidade social. Ele tambm se explica pelos princpios de constituio das formas hegemnicas de organizao da produo social. Destacaremos trs dimenses desse protagonismo. Em primeiro lugar, o campesinato representa um plo de uma das mais importantes contradies do capital no Brasil, que consiste em sua incapacidade de se libertar da propriedade fundiria. O signicado que a propriedade da terra tem at hoje, como um elemento que ao mesmo tempo torna vivel e fragiliza a reproduo do capital, gera uma polarizao (de classe) entre o proprietrio concentrador de terras (terras improdutivas) e aquele que no tem terras sucientes. Desse fato decorrem duas conseqncias principais. Por um lado, essa contradio no residual na sociedade brasileira, constituindo-se um dos pilares de sua estrutura social; por outro, a principal luta dos camponeses pela construo de seu patrimnio, condio sine qua non de sua existncia. Essa luta foi e continua sendo muito forte em diversos momentos e sob as mais variadas formas. Ela tem um carter eminentemente poltico e corresponde ao que se costuma chamar o movimento campons. Assim, a luta pela terra e pelo acesso a outros recursos produtivos no assume apenas a dimenso mais visvel das lutas camponesas. Ela se processa igualmente em um nvel menos perceptvel, por outras formas de resistncia15

Apresentao coleo

que dizem respeito s estratgias implementadas pelos camponeses para trabalhar, mesmo em condies to adversas, e assegurar a reproduo da famlia. Essa dimenso tem, de fato, menor reconhecimento pela sociedade e mesmo na academia. Ao se armar historicamente essa dimenso, importante ressaltar a capacidade dos camponeses de formular um projeto de vida, de resistir s circunstncias nas quais esto inseridos e de construir uma forma de integrao sociedade. Essas so prticas que tm um carter inovador ou que revelam grande capacidade de adaptao e de conquistas de espaos sociais que lhes so historicamente inacessveis. Consideramos necessrio registrar e reconhecer as vitrias, por mais invisveis que sejam. Por ltimo, h uma terceira dimenso, tambm pouco reconhecida, at mesmo entre os acadmicos, que consiste na valorizao da forma de produzir do campons. Esta se traduz pela adoo de prticas produtivas (diversicao, intensicao etc.), formas de uso da terra, relaes com os recursos naturais etc. Formam-se, assim, os contornos de um saber especco que se produz e se reproduz contextualmente. claro que o campesinato no se esgota na dimenso de um mtier prossional, nem a ela corresponde um modelo imutvel, incapaz de assimilar mudanas, mas imprescindvel para que se possa compreender seu lugar nas sociedades modernas. Sua competncia, na melhor das hipteses, um trunfo para o desenvolvimento de uma outra agricultura ou para a perseguio da sustentabilidade ambiental e social como valor. E, na pior das hipteses (para no idealizar a realidade), um potencial que poderia ser estimulado na mesma direo. No sem conseqncia que sua existncia seja hoje to exaltada como um dos pilares da luta pela reconstituio dos inerentes princpios de reproduo da natureza, to subsumidos que estiveram e continuam estando a uma racionalidade tcnica, em certos casos exagerada pela crena em uma articializao dos recursos naturais reproduzidos em laboratrios e empresas industriais. Ora, os princpios de constituio e expanso do capitalismo desconhecem e desqualicam essa competncia. Do ponto de vista poltico, a negao dessa dimenso, tanto direita (que defende a grande propriedade como a nica forma moderna ou modernizvel) quanto esquerda (que terminou enfatizando apenas a dimenso poltica da luta pela terra), tem como conseqncia a negao do campons como agricultor. As polticas agrcolas chamadas compensatrias s reforam a viso discriminadora. Em concluso, reiteramos, por um lado, a universalidade da presena do campesinato, que abarca os diversos espaos e os diferenciados tempos. E tambm, por outro, a variedade de existncias contextuais, visto que essa variedade s indica a valorizada adaptabilidade dos agentes e dos princpios abrangentes de constituio da forma camponesa. Portanto, mesmo que corresponda revalorizao de uma tradio (patrimnio de valores institucionalizados nas memrias e na projeo social), a reproduo do campesinato nas sociedades contemporneas um fato social do mundo16

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

moderno, e no resqucio do passado. Por essa perspectiva, ultrapassa-se a velha e surrada concepo unilinear da inexorvel decomposio do campesinato. Como os processos histricos tm demonstrado, ela no tendncia geral ou lei inevitvel. Em vez dessa concepo, que, rearmando a substituio das classes fundamentais, augura (e at vaticina) o m do campesinato, escolhemos pensar e registrar as mltiplas alternativas, resultado de conquistas e resistncias de atores sociais que se referenciam a um modo de produzir e viver coexistente com um mundo moderno. Entrementes, nesse mesmo mundo, cujos analistas vm acenando (e, por que no, tambm vaticinando) com o desemprego em massa como princpio de constituio econmica, em que a diversidade cultural rearmada para fazer frente a uma vangloriada homogeneizao poltica e cultural, que os camponeses se reorganizam em luta. Por essa conduta clamam exatamente pela manuteno da autonomia relativa, condio que o controle dos fatores de produo e da gesto do trabalho pode oferecer. Conselho Editorial

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PREFCIO

Apresentamos aos leitores especialmente aos militantes camponeses, aos interessados e aos estudiosos da questo camponesa no Brasil uma obra que o resultado de um fantstico esforo intelectual e coletivo. A elaborao da Histria Social do Campesinato no Brasil envolveu grande nmero de estudiosos e pesquisadores dos mais variados pontos do pas, num esforo conjunto, planejado e articulado, que resulta agora na publicao de dez volumes retratando parte da histria, resistncias, lutas, expresses, diversidades, utopias, teorias explicativas, enm, as vrias faces e a trajetria histrica do campesinato brasileiro. A idia de organizar uma Histria Social do Campesinato no Brasil aorou no m de 2003, durante os estudos e os debates para a elaborao de estratgias de desenvolvimento do campesinato no Brasil que vinham sendo realizados desde meados desse ano por iniciativa do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), com envolvimento, em seguida, da Via Campesina Brasil, composta, alm de pelo prprio MPA, pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pelo Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), pelo Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), pela Comisso Pastoral da Terra (CPT), pela Pastoral da Juventude Rural (PJR), pelo Conselho Indigenista Missionrio (Cimi) e pela Federao dos Estudantes de Agronomia do Brasil (Feab). Essa idia foi ganhando corpo quando se envolveram, primeiro, o pesquisador Horcio Martins de Carvalho e os pesquisadores Delma Pessanha Neves, Mrcia Maria Menendes Motta e Carlos Walter Porto-Gonalvez, que decidiram, em reunio nas dependncias da Universidade Federal Fluminense (UFF), no incio de 2004, com dirigentes da Via Campesina, lanar o desao a outros tantos que se dedicam ao tema no Brasil. O resultado foi o engajamento de grande nmero de pesquisadores, todos contribuindo de maneira voluntria. Foram consultadas cerca de duas centenas de pesquisadores, professores e tcnicos para vericar se a pretenso de elaborar uma Histria Social do19

Prefcio

Campesinato no Brasil tinha sentido e pertinncia. A idia foi generosamente aceita, um Conselho Editorial foi constitudo, muitas reunies foram realizadas, os textos foram redigidos e o resultado a publicao destes dez volumes da Coleo Histria Social do Campesinato no Brasil. Nesta Coleo apresentamos diversas leituras sobre a histria social do campesinato no Brasil. Nossa preocupao com os estudos sobre o campesinato se explica pelo fato de, na ltima dcada, ter havido um avano dos trabalhos que promoveram os mtodos do ajuste estrutural do campo s polticas neoliberais. Nessa perspectiva, a realidade do campo foi parcializada de acordo com os interesses das polticas das agncias multilaterais que passaram a nanciar fortemente a pesquisa para o desenvolvimento da agricultura. Esses interesses pautaram, em grande medida, as pesquisas das universidades e determinaram os mtodos e as metodologias de pesquisa com base em um referencial terico de consenso para o desenvolvimento da agricultura capitalista. Desse ponto de vista, o campesinato tornou-se um objeto que necessita se adequar ao ajuste estrutural para que uma pequena parte possa sobreviver ao intenso processo de explorao e expropriao do capitalismo. Poucos foram os grupos de pesquisa que mantiveram uma conduta autnoma e crtica a essa viso de mundo em que o capitalismo compreendido como totalidade e m de todas as coisas. Nesse princpio de sculo, o conhecimento ainda mais relevante como condio de resistncia, interpretao e explicao dos processos socioterritoriais. Portanto, control-lo, determin-lo, limit-lo, ajust-lo e regul-lo so condies de dominao. Para criar um espao em que se possa pensar o campesinato na histria a partir de sua diversidade de experincias e lutas, a Via Campesina estendeu o convite a pesquisadores de vrias reas do conhecimento. Quase uma centena de cientistas responderam positivamente nossa proposta de criar uma coleo sobre a histria do campesinato brasileiro. Igualmente importante foi a resposta positiva da maior parte dos estudiosos convidada para publicar seus artigos, contribuindo com uma leitura do campesinato como sujeito histrico. O campesinato um dos principais protagonistas da histria da humanidade. Todavia, por numerosas vezes, em diversas situaes, foram empreendidos esforos para apag-lo da histria. Esses apagamentos ocorrem de tempos em tempos e de duas maneiras: pela execuo de polticas para expropri-lo de seus territrios e pela formulao de teorias para exclu-lo da histria, atribuindo-lhe outros nomes a m de regular sua rebeldia. Por tudo isso, ao publicar esta importante obra, em nosso entender, de flego e profundidade, queremos fazer quatro singelos convites.20

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

Convite Leitura Esta obra merece ser lida pela riqueza de informaes, pela abrangncia com que aborda o tema e pela importncia da histria social do campesinato para compreender o Brasil. Convite ao Estudo Alm da mera leitura, uma obra que deve ser estudada. preciso que sobre ela nos debrucemos e reitamos para conhecer esse tema em profundidade, quer em escolas, seminrios, grupos de estudo, quer individualmente. Esta Coleo um desao, pois retrata uma realidade que, aqueles que estiverem comprometidos em entender o Brasil para transform-lo, precisam conhecer profundamente. Convite Pesquisa Esta obra, composta de dez volumes, fruto e resultado de muita disciplinada e dedicada pesquisa. , portanto, desao a mais investigaes e a que outros mais se dediquem a esses temas. Embora uma obra vasta, com certeza mais abre do que encerra perspectivas de novos estudos, sob novos ngulos, sobre aspectos insucientemente abordados, sobre realidades e histrias no visibilizadas, com enfoques diferenciados. H muito que desentranhar da rica e variada histria social do campesinato brasileiro, e os autores desta obra sentir-se-o imensamente realizados se muitas, rigorosas, profundas e novas pesquisas surgirem estimuladas por essa sua importante iniciativa. Convite ao Debate Esta no uma obra de doutrina. E mesmo as doutrinas devem ser expostas ao debate e ao contraditrio. Quanto mais uma obra sobre a histria. Convidamos ao debate dos textos, mas, alm disso, ao debate sobre o sujeito social do qual a Coleo se ocupa: o campesinato e sua trajetria ao longo da histria do Brasil. E que esse no seja um debate estril ou esterilizante que se perde nos meandros da polmica pela polmica, mas que gere aes na sociedade, nas academias, nos centros de pesquisas e nas polticas de Estado em relao aos camponeses e ao mundo que os circunda e no qual se fazem sujeitos histricos. A Via Campesina do Brasil reconhece e agradece profundamente o trabalho rduo e voluntrio dos membros do Conselho Editorial e de todos os envolvidos no projeto. Sem o desprendimento e o zelo desses professores, sem essa esperana renovada a cada dia pelas mais distintas formas e motivos, sem a acuidade acadmica, o cuidado poltico e a generosidade21

Prefcio

de todos os envolvidos no teramos alcanado os resultados previstos. De modo especial nosso reconhecimento ao professor Horcio Martins de Carvalho. Agradecemos tambm ao Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural (Nead), do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio. Ao promover estudos e pesquisas sobre o universo rural brasileiro o Nead viabilizou, com a Editora da UNESP, a publicao desta Coleo. A Via Campesina experimenta a satisfao do dever cumprido por ter participado desta importante iniciativa, desejando que se reproduza, se multiplique e gere frutos de conscincia, organizao e lutas nas bases camponesas em todo o territrio nacional. Via Campesina do Brasil agosto de 2008.

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INTRODUO A DIVERSIDADE DAS FORMASDAS LUTAS NO CAMPO

As lutas camponesas so sinais da resistncia do campesinato contra a desterritorializao. Compreendendo o territrio como espao de realizao da vida em suas diferentes dimenses (econmicas, sociais, culturais, polticas etc.), entende-se melhor no s a existncia de diferentes formas que o campesinato assume, como tambm a diversidade de lutas vericadas no campo, com o sentido de garantir a existncia dessa categoria social num contexto em que ocorre intenso processo de expropriao. Para resistir a esse processo, o campesinato procura se reterritorializar de diversas formas, que se modicam, avanam ou reuem conforme as conjunturas econmicas, sociais e polticas. No presente volume, o segundo do tomo Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas da Histria Social do Campesinato, esto reunidos quinze artigos que recuperam e atualizam leituras de algumas das formas de resistncia e de recriao do campesinato, desde a dcada de 1980 at o comeo do sculo XXI. Com eles, buscamos oferecer um panorama das lutas recentes. Embora muito longe de ser exaustivo (e o leitor facilmente poder identicar ausncias), trata-se de uma contribuio para a compreenso das mudanas, permanncias, criao e diversidade no s das formas de lutas camponesas, mas tambm dos sujeitos e suas organizaes. Buscamos oferecer tambm uma diversidade de leituras e abordagens, abrigando perspectivas sociolgicas, geogrcas, histricas e antropolgicas, com distintas inspiraes tericas presentes no meio acadmico contemporneo, de forma a ampliar os horizontes possveis para a anlise das formas de luta e organizao, e no nos prendermos a uma nica chave interpretativa. Desde o nal dos anos 70, as lutas no campo tiveram um papel central tanto no processo de redemocratizao do pas, quanto para colocar na pauta poltica temas que muitos consideravam desatualizados (caso da reforma agrria) ou questes que emergiam de forma embrionria (a preservao ambiental). Foram elas, ainda, que deram visibilidade a segmentos sociais23

Introduo

que, embora h muito presentes, no apareciam na cena como sujeitos polticos (os chamados pequenos agricultores, camponeses ou produtores em base familiar), e que permitiram a emergncia e o reconhecimento de demandas relacionadas extenso de direitos de cidadania (igualdade de gnero, direito aposentadoria, uma educao voltada para os assentamentos rurais, num primeiro momento, e, depois, para as demais populaes do campo, mas que tivesse em conta as especicidades desse meio etc.). Nesses anos, como resultado dessas lutas, constituram-se identidades mltiplas, que armam a diversidade de situaes e demandas: seringueiros, quebradeiras de coco, ribeirinhos, sem-terra, agricultores familiares, quilombolas, assentados, atingidos por barragens; so apenas indicativos da emergncia poltica de uma innidade de segmentos que buscam armar suas particularidades e reivindicaes no espao pblico, e obter reconhecimento social e poltico. Em razo de sua fora, expressa na capacidade de mobilizao e organizao, retoma-se o debate em torno da questo fundiria; a preservao ambiental e a sobrevivncia das populaes tradicionais entram na agenda; arma-se o signicado econmico dos que sobrevivem com base na agricultura familiar (tendo ou no propriedade da terra), ganhando visibilidade o seu papel na produo para os mercados locais, regionais e nacionais; questionam-se as relaes domsticas e arma-se a necessidade de convivncia de vrias culturas. Esse processo foi marcado por tenses e enfrentamentos, que estiveram presentes desde as grandes manifestaes pblicas (as marchas dos sem-terra, das Margaridas, os Gritos da Terra Brasil, entre outras), at as relaes no interior da famlia. Recorrentemente, a emergncia desses novos sujeitos teve como contrapartida a violncia, tanto a tradicional, caracterizada pelas aes das milcias privadas, quanto a judicial e policial, por meio de despejos, represso, prises etc. Essas manifestaes, bem como os conitos que elas espelham, so elementos importantes para entender algumas disputas que permeiam a poltica brasileira, nem sempre ganhando visibilidade na mdia. Elas provocam a necessidade de explicitar propostas, tiram do silncio os adversrios, produzem polarizaes de posies, desvendam poderes. esse universo que buscamos abordar neste volume, embora, como j dito anteriormente, de forma parcial, uma vez que seria impossvel recobrilo em sua totalidade. Apresentamos artigos derivados de pesquisas nas diferentes regies do pas. Nelas, as formas e os espaos das diversidades so tratados a partir de estudos sobre ocupaes de terra e acampamentos, valorizando o papel das redes de relaes de parentesco, solidariedade e conitualidade, por meio das quais os sujeitos em movimento constroem suas organizaes. Tambm inclumos artigos que revelam frestas e faces pouco abordadas, como os que esmiam os casos de ex-moradores de rua que, no processo de luta social, se tornaram camponeses, bem como textos sobre situaes mais conhecidas, como o caso da luta pela terra24

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

em Eldorado dos Carajs. Ainda neste volume discute-se o protagonismo das mulheres na formao e reproduo do campesinato; as polticas de acesso terra por meio da criao de polticas de incentivo ao mercado fundirio; as organizaes criadas no processo de luta, como a Articulao do Semi-rido (ASA) e o sindicalismo rural, por meio da Contag. Fechando o volume, a conitualidade e a violncia so abordadas numa perspectiva geogrca, mostrando que as lutas de resistncia tm enfrentado diferentes formas de brutalidade, como expulses, despejos, ameaas e assassinatos. O primeiro artigo, de autoria de Anita Brumer, aborda a retomada das lutas camponesas durante a ditadura militar, centrando-se nos principais eventos do perodo 1978-88 na Regio Sul do pas e interpretando-os como produto do contexto no qual surgem diferentes reaes dos atingidos e marginalizados pela modernizao tecnolgica, concomitante ao desenvolvimento industrial no campo e na cidade. A luta pela terra analisada a partir da expulso dos posseiros da Reserva Indgena de Nonoai, no Rio Grande do Sul, em maio de 1978, deagrando intensos conitos na regio e tornando-se um marco no processo de redemocratizao do pas. A partir dessa referncia, a autora se volta para a discusso da questo agrria no quadro poltico da poca, salientando a importncia do sindicalismo, seja de trabalhadores ou patronal, o surgimento de novas formas de organizao como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Unio Democrtica Ruralista (UDR), bem como os embates derivados. A autora tambm discute a formao da Comisso Regional dos Atingidos pelas Barragens (CRAB), as lutas dos pequenos produtores em defesa de melhores preos para seus produtos, com o objetivo de garantir ou aumentar suas rendas. Finalmente, so tratadas as lutas das mulheres agricultoras para serem benecirias diretas da Previdncia Social, seminais para o processo subseqente de organizao das mulheres no campo. Ao longo do texto, Brumer procura apontar impasses e contradies que se geraram no interior desse processo, produzindo uma leitura problematizadora, que aponta as potencialidades que as lutas analisadas carregavam. Na seqncia, so apresentados artigos que analisam acampamentos e seu signicado como forma de luta, tanto para obter acesso terra, quanto pela melhoria das condies dos agricultores. As ocupaes e acampamentos so abordados por Lygia Sigaud como fatos relativamente recentes, produtos de uma nova congurao social. Estudando ocupaes nas terras de engenhos da Zona da Mata de Pernambuco, a autora discute o acampamento a partir de sua forma de organizao, tempo de existncia e as relaes produzidas desde esse espao. Sigaud analisa a forma acampamento como um modo de pressionar o governo a realizar desapropriaes, mostrando que, do total de dezesseis reas desapropriadas nos municpios de Formoso e Tamandar, sua rea de estudo, catorze delas haviam sido previamente ocupadas. Ela demonstra tambm como as aes do MST estimularam o25

Introduo

sindicalismo de trabalhadores rurais, por meio da Federao dos Trabalhadores da Agricultura de Pernambuco (Fetape), a realizar ocupaes, o que ampliou a luta pela terra no estado. Pela descrio de situaes em que se explicita a diversidade de motivaes para acampar e as relaes construdas, a compreenso desse processo enriquecida e complexicada. Segundo a autora, a crena na importncia da lona preta para a melhoria das condies de vida dos sem-terra mostra que os acampamentos tambm se constituem em um ato fundador e legitimador da luta, uma linguagem simblica, pela qual os sem-terra conseguem fazer avanar as negociaes para a criao de assentamentos de reforma agrria. Para alm da retrica belicosa, ela encontra aes de cooperao e dependncia entre Estado e movimentos, marcadas, no entanto, pela tenso permanente. Na ampla e profunda anlise de Sigaud explicita-se a rede de relaes de compromissos e obrigaes, fundamentais na formao dos acampamentos. Apresentado-as, a autora mostra os equvocos das leituras de investigadores que traduzem essas redes numa lgica linear de relaes de autoritarismo entre acampados e lideranas. A tese da importncia das redes de parentesco e conhecimentos prvios reiterada no artigo de Nashieli Loera, que estuda as formas de participao das famlias nas ocupaes e acampamentos em So Paulo. Relaes de compromisso so construdas e incorporadas pelo MST no fazer-se em movimento das pessoas que participam dos diversos setores, comisses e ncleos dos acampamentos de luta pela terra. Loera registra diversas formas de apoio ou ajuda entre os assentados, que contribuem, coletiva ou individualmente, levando alimentos aos acampados. So parentes e amigos que criam uma relao de solidariedade fundamental para ajudar a suportar as severidades da resistncia nos acampamentos. A importncia das relaes de consanginidade, dos vnculos de amizade e dos valores morais destacada, mostrando, nas comparaes entre acampamentos e assentamentos, a presena de trocas de bens que levam a autora a evocar o Kula malinowskiano. Marcelo Rosa, na mesma trilha dos dois textos anteriores, analisa o que chama de forma movimento, valendo-se do estudo de algumas situaes em Pernambuco e um caso no estado do Rio de Janeiro. O o condutor de sua discusso a tese de que as lutas dos movimentos sociais, ao contrrio do que pretende Axel Honnet, no so por reconhecimento e tampouco so lutas que revelam, antes de qualquer coisa, sentimentos de injustia, como pretende Barrington Moore Jr. Segundo o autor, o reconhecimento que produz a prpria existncia social das lutas. Analisando o embate entre movimento e Estado, Rosa defende a existncia de uma legitimao ambivalente do conito que, ao mesmo tempo que permite a interlocuo, reconstitui o poder estatal de controle e emprego da fora (seja burocrtica ou fsica). O texto tambm aponta os meandros da produo social desse26

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

reconhecimento, mostrando que, entre a ocupao e a abertura do dilogo com o Estado, h vrias mediaes que precisam ser conhecidas nas suas particularidades para evitar interpretaes apressadas e generalizantes. nesse quadro que surgem diferentes movimentos, como formas de conseguir estabelecer um dilogo em situaes nas quais ele aparece aos atores de maneira truncada. O artigo de William Santos de Assis, sobre os acampamentos em Marab, no estado do Par, mostra uma luta pouco estudada: o acampamento como forma de enfrentamento entre as organizaes representativas dos camponeses da regio e o governo federal; no caso, o embate que colocou de um lado a regional da Federao dos Trabalhadores da Agricultura e o MST e, do outro, a Superintendncia de Marab do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra). Trata-se de entender o sentido dessas mobilizaes, que trouxeram cidade, um plo regional, milhares de agricultores para negociar uma ampla pauta de reivindicaes, envolvendo os sem-terra e os j assentados: desapropriao de novas reas, mudana de gestores do Incra, crdito, assistncia tcnica, recursos para capacitao e educao etc. O autor detalha a preparao dos acampamentos, as demandas, a complexidade das relaes polticas no plano local, com o governo estadual e com o poder federal, ao mesmo tempo em que mostra como a ao conjunta entre MST e Fetagri Regional, apesar de divergncias pontuadas ao longo do texto, foi importante para o reconhecimento das demandas. Marcelo Gomes Justo trabalha um tema pouco explorado na literatura: a transformao de ex-moradores de rua em camponeses, tomando como ponto de partida as experincias do MST e da organizao pastoral catlica Fraternidade Povo da Rua, no bairro do Brs, prximo ao centro da cidade de So Paulo. As aes dessas entidades levaram ao engajamento de moradores de rua na luta pela terra e a um esforo de ressocializao desses excludos pelo modo capitalista de produo. O autor analisa as relaes e os conitos vericados em um assentamento no interior paulista, formado por esses ex-moradores de rua vindos da cidade de So Paulo, e por famlias de demandantes de terra, que vieram de municpios das regies de Campinas e Sorocaba. O estudo se volta para a constituio de redes sociais e de conitos internos em torno das formas de gerir a produo e utilizar os recursos, tendo sempre por referncia esses dois grupos de assentados. Ao longo do texto, Justo discute o que ser campons, tentando entender as potencialidades da situao particular gerada naquele assentamento e a natureza dos conitos engendrados. Na seqncia, Luciana Costa d um panorama das lutas de posseiros em Eldorado dos Carajs, Par, municpio que se tornou conhecido em razo do massacre ocorrido em abril de 1996, quando dezenove membros do MST foram assassinados pela Polcia Militar durante uma marcha que reivindicava reforma agrria. No artigo, tendo por base conitos ocorridos27

Introduo

em trs fazendas, so analisadas a expropriao e a resistncia dos posseiros para permanecer na terra. Trabalhando com as categorias utilizadas pelos entrevistados (velhos posseiros, novos invasores, cabea de grilo e fazendeiro), a autora mostra o complexo jogo que se estabelece entre esses personagens e delineia tanto o perl dos fazendeiros locais, o signicado das ocupaes de terra, o papel das madeireiras, as disputas em torno da responsabilidade sobre o desmatamento, quanto a forma como esses agentes se percebem e constroem suas relaes e oposies num universo dominado pela violncia. Costa chama ateno para o fato de que pelo conito que os posseiros reivindicam o reconhecimento de seus direitos terra, direitos fundados no trabalho e nas marcas de sua ocupao. Os trs artigos seguintes apresentam uma reexo sobre o lugar das mulheres que, pelas suas aes, vm superando posies subalternas nas relaes sociais. No primeiro deles, Maria Ignez Paulilo analisa o protagonismo, no trabalho e na famlia, de mulheres organizadas no Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), em especial no que se refere peculiaridade de suas reivindicaes de teor feminista. A partir de discusses sobre matrimnio, famlia e trabalho, a autora chama ateno para temas como diculdade de acesso terra pelas mulheres, represso sexual, participao nos espaos pblicos, trazendo tona diferentes elementos para se entender as implicaes e a continuidade das desigualdades de gnero. Debatendo as relaes entre gnero e classe social, e utilizando-se de vasto material de entrevistas com lderes dos movimentos estudados, aponta os desaos da conciliao entre a militncia, a participao na vida pblica e familiar, bem como a especicidade das reivindicaes feministas. No texto seguinte, Snia Schwendler discute a recriao das identidades de gnero e o papel da mulher na luta pela terra e na constituio do MST, apresentando as condies, dilemas e conquistas da participao feminina nos movimentos sociais. No mesmo diapaso do artigo anterior, aponta o paradoxo, ao mesmo tempo em que a participao das mulheres ampliada pelas lutas, muitos dos espaos concebidos como femininos e masculinos ainda permanecem, marcados pela diviso sexual do trabalho, sustentados por uma cultura patriarcal e pelo modo de produo social. Segundo Schwendler, mesmo no MST, em que pese a forte presena do debate em torno das questes de gnero, as mulheres ainda enfrentam enormes obstculos para a conquista da igualdade, nos espaos da luta social, do trabalho ou da vida familiar. Maristela de Paula Andrade trata da organizao econmica e poltica das quebradeiras de coco de babau, no Mdio Mearim, no Maranho. Apresentando um histrico do processo de ocupao da rea, e a forma como os camponeses foram progressivamente expropriados da terra e do acesso aos babauais para coleta do coco, a autora mostra como se constituiu a categoria poltica quebradeiras de coco, muito embora a luta tenha28

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

envolvido homens, mulheres e crianas em estratgias de resistncia, que incorporavam o conjunto das famlias, segundo valores, regras e padres culturais que regem localmente as relaes de gnero. Mostra ainda as condies de participao nas lutas pelo acesso aos babauais, que no envolveram, da mesma forma e na mesma medida, os diferentes segmentos camponeses existentes. Valendo-se de depoimentos de lideranas e de trabalhadores, enfatiza como se constitui a diviso sexual do que chama de trabalho guerreiro durante as lutas pela terra e pelo acesso aos babauais, num esforo de garantir a sobrevivncia da unidade familiar. Aponta ainda como o tema gnero, inicialmente ausente, acaba sendo incorporado em funo das relaes com agentes de mediao. Os dois artigos seguintes tratam da reforma agrria de mercado. Nos anos 90, a questo da luta pela terra e por reforma agrria ganhou novas nuances, com a introduo, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, de propostas de estmulo ao acesso terra por meio de mecanismos de mercado. O tema tratado neste volume a partir de um estudo de caso em Sergipe, e por anlise de carter nacional das formas de resistncia proposta governamental. Eraldo da Silva Ramos Filho discute a reforma agrria de mercado como resultado de ajustamento lgica neoliberal que, com a globalizao, determinou a internacionalizao de polticas pblicas para o campo. Segundo o autor, com a difuso da concepo de alvio da pobreza rural e da substituio da questo agrria pelas polticas de desenvolvimento rural, foram implementadas diferentes modalidades de polticas de crdito fundirio. Analisa os problemas enfrentados pelos camponeses muturios dos empreendimentos rurais adquiridos por meio dessa modalidade de nanciamento, demonstrando a artimanha dessas polticas. Com essa estratgia, o campesinato viu ser minado seu poder de negociao poltica com o governo. O autor elucida o signicado das polticas pblicas neoliberais de recriao do campesinato por meio do capital, discutindo os impasses atuais como os produzidos pela criminalizao das ocupaes de terra. Conclui que no ser pelo mercado que o Estado combater a pobreza, at porque esta um produto da prpria reproduo do capital. Joo Mrcio Mendes Pereira analisa as contestaes e resistncias reforma agrria de mercado proposta pelo Banco Mundial durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O autor aponta que, embora o tema da reforma agrria fosse inexpressivo durante a disputa eleitoral que resultou no primeiro governo FHC, ele entrou na pauta poltica principalmente pelas lutas dos movimentos camponeses. O massacre de Eldorado dos Carajs resultou numa tomada de posio do governo federal e na criao do cargo de ministro Extraordinrio de Poltica Fundiria (MEPF) que, logo depois, originou o Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA). O aumento das ocupaes de terras provocou o aumento de assentamentos rurais. A29

Introduo

criminalizao das ocupaes, por meio de medida provisria, e as disputas polticas entre as entidades de representao do campesinato possibilitaram o avano do modelo de reforma agrria de mercado. O autor analisa os embates institucionais em torno da criao de diferentes formas de crdito fundirio. Segundo Pereira, a implementao da reforma agrria de mercado expressou um novo momento da questo agrria que exige repensar o prprio conceito de reforma agrria. Conclui que esses programas no conseguiram atender demanda da luta pela terra e as ocupaes de terra continuaram, como uma forma de enfrentamento das polticas vigentes. Uma caracterstica das formas de luta e resistncia no campo a valorizao das relaes de compromisso entre pessoas e organizaes, que se desdobram em redes e articulaes. O tema tratado no artigo de Ghislaine Duque, que nos apresenta uma leitura da histria da Articulao do Semi-rido (ASA), tendo como referncia a experincia da Paraba. Para a autora, essa entidade constitui-se como um espao de contestao s tradicionais formas de apoio aos agricultores, baseadas no assistencialismo e no clientelismo. D relevo atuao das organizaes no-governamentais, que articularam um conjunto de aes, promovendo novas relaes entre as pessoas e seus territrios. Assim, fundos rotativos solidrios, bancos de sementes, encontros de comunidades, onde as experincias eram intercambiadas, e, nalmente, o programa Um Milho de Cisternas tiveram um papel importante na mudana de compreenso da relao socioterritorial: a seca, que levava desistncia e migrao, torna-se motivo de resistncia, pela busca de formas de convivncia com o Semi-rido. Ao mesmo tempo, a ASA construiu um processo pedaggico baseado em princpios como a garantia da participao e o resgate da auto-estima dos camponeses, valorizando suas prticas por meio da organizao e da interveno poltica, e deu importncia busca de formas de desenvolvimento sustentvel em oposio s formas assumidas pelo agronegcio na regio. O artigo registra os avanos dessas polticas na transformao das realidades das famlias camponesas, a territorializao da ASA no Nordeste, o maior territrio campons do pas, e a expanso de suas aes pela criao da ASA-Brasil. O artigo seguinte, de Rud Ricci, discute o sistema sindical da Contag numa leitura histrica de sua formao e os desdobramentos com o surgimento de novas formas de organizao do campesinato. O surgimento do MST, como a mais atuante organizao camponesa do pas e, depois, a criao da Federao Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil (Fetraf-Brasil) so resultados da diversidade de formas do campesinato, mas tambm representam vises distintas sobre suas necessidades de organizao e projetos polticos. O autor analisa a multiplicao de pautas e identidades tomando como referncia as relaes dos movimentos com outras instituies. Mostra ainda como as polticas de governo inuem sobre as aes das organizaes e de como estas pro30

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

duzem polticas. Os embates entre as organizaes desenvolvem-se em aproximaes e afastamentos que no permitem a construo de pautas conjuntas. Isso no signica fechar possibilidades, mas uma indeterminao na construo de polticas. Fechando o volume, Eduardo Paulon Girardi e Bernardo Manano Fernandes destacam a geograa da conitualidade no campo brasileiro, tomando como referncia diferentes formas de conitos e de violncia a partir dos conceitos de territrio, movimentos socioterritoriais e agronegcio. Os autores mapeiam dois tipos de conitos: ocupaes e acampamentos, e seis formas de violncia: despejos, expulses, ameaas de morte, tentativas de assassinatos, assassinatos e trabalho escravo. Conceituando cada uma delas, os autores apresentam, por mapas e grcos, a distribuio espacial e temporal dos fatos, o histrico e as tendncias das diferentes formas de conitualidade, possibilitando uma leitura em escala nacional. Alm dos mapas, os grcos possibilitam diversas leituras das territorialidades e temporalidades pelas quais os conitos se manifestam. A partir de uma discusso paradigmtica, Girardi e Fernandes analisam como essa conitualidade fundamenta a disputa territorial entre campesinato e agronegcio e, conseqentemente, entre os diferentes modelos de desenvolvimento. O conjunto dos textos do presente volume, expressando algumas faces da diversidade de lutas no campo, possibilita uma compreenso ampla de formas, relaes, espaos, gneros, tempos, escalas e modelos, revelando a complexidade da questo agrria e do campesinato. Permite aos leitores compreender que o tema atual, intenso e que emerge a cada dia com novas possibilidades de criao. Mesmo enfrentando os lancinantes processos expropriatrios, as polticas de criminalizao e as estratgias de controle poltico, os camponeses seguem construindo seu futuro, rompendo com as separaes entre campo e cidade e buscando o direito de viver da terra, de produzir alimentos, de constituir suas comunidades. No interior da diversidade de formas de organizao e de lutas camponesas surgiu, no comeo da dcada de 1990, a Via Campesina, uma articulao mundial de movimentos camponeses que tem defendido a existncia dos diferentes modos de organizao do trabalho familiar, comunitrio e associativo em diversas partes do mundo. O campesinato neste comeo de milnio rearma o seu lugar histrico no mundo como forma de organizao social que se liga a um territrio determinado, onde a vida se reproduz. Bernardo Manano Fernandes Leonilde Servolo de Medeiros Maria Ignez Paulilo

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1 CONSIDERAES SOBRE UMADCADA DE LUTAS SOCIAIS NO CAMPO NO EXTREMO SUL DO

BRASIL (1978-88)*

Anita Brumer

As lutas sociais no Brasil, tanto urbanas como rurais, ocorrem num contexto de grandes transformaes socioeconmicas. A dcada de 1950 marca um intenso processo de industrializao, o qual se estende ao meio rural, a partir dos anos 60. De um lado, a industrializao toma corpo, e o setor desenvolve-se rapidamente; do outro, o setor rural, paralelamente a sua modernizao, expulsa uma parte considervel da populao. Essas transformaes, de modo geral, propiciam aos grupos de mdia e alta renda da populao brasileira o acesso a bens de consumo e servios de melhor qualidade, mas levam marginalidade ou ao setor informal da economia uma quantidade impressionante de pessoas. As vilas de malocas proliferam em ritmo crescente, a criminalidade aumenta e a misria em que vive uma parte no negligencivel da populao se torna cada vez mais evidente. Essas transformaes no so realizadas sem que uma parcela dos atingidos por elas reaja. Ao mesmo tempo que o desenvolvimento industrial acompanhado por greves e manifestaes de operrios, os anos 50 registram o aumento da violncia no campo e o surgimento de organizaes camponesas que lutam contra a expropriao ou as ameaas de expulso feitas pelos proprietrios de terras. Essas lutas sociais se intensicam no incio dos anos 60, principalmente devido crise econmica que acompanha as transformaes. Em 1964, os militares tomam o poder e conseguem, com sucesso, controlar os sindicatos, os partidos polticos e a imprensa, bem como reprimir as manifestaes dos oprimidos e descontentes. O controle e a represso* Este texto foi originalmente publicado na revista Ensaios FEE (Porto Alegre), ano 11 (1), p.124142, 1990. Uma verso anterior foi apresentada no II Encontro Regional-Sul do Programa de Intercmbio de Pesquisa Social na Agricultura, em Florianpolis, em maio de 1989.

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Consideraes sobre uma dcada de lutas sociais

so facilitados entre 1968 e 1974, durante o perodo denominado milagre brasileiro, em que ocorre um crescimento industrial real e aumento das taxas de emprego urbano. A partir do nal dos anos 70, no entanto, o pas comea a sofrer os efeitos de uma nova crise econmica que vai se agravando e, at o presente, no mostra sinais de arrefecimento. A legitimidade do poder militar deteriora-se, voltando os civis ao poder em 1985, e as greves e outras lutas sociais recomeam. A grande maioria das lutas registradas em todo o territrio nacional, a partir de 1978, apresenta como causa imediata a situao socioeconmica dos trabalhadores envolvidos, resultado do agravamento de suas condies de vida e da diminuio do ritmo de crescimento do emprego industrial. Geralmente, elas se voltam contra o Estado como oponente principal, essencialmente devido ampliao de sua interveno em todos os nveis da produo social; e ao fato de que, no capitalismo contemporneo, cabe a ele oferecer os equipamentos de consumo coletivo populao como um todo, embora tenha assumido, no Brasil, um carter essencialmente centralizador e excludente. Existem estudos especcos sobre quase todas essas lutas, o que possibilita um detalhamento emprico. So raros, entretanto, os estudos que procuram abrang-las em seu conjunto, tratando de destacar os pontos que tm em comum e examinando seu alcance no sentido de transformao da realidade. A maior parte desses estudos se refere aos movimentos urbanos (Jacobi, 1987a e 1987b; Cardoso, 1983), sendo praticamente inexistentes os estudos mais tericos sobre os movimentos rurais (constituindo exceo o trabalho de Grzybowski, 1987). O objetivo deste trabalho fazer uma reexo sobre as principais lutas sociais registradas no meio rural do sul do Brasil a partir de 1978, levantando algumas questes que dizem respeito tanto sua situao no presente como s suas perspectivas futuras. A principal contribuio do trabalho deriva do exame do conjunto das lutas sociais, o que permite a obteno de uma viso realista de seu alcance em termos polticos, e de suas fraquezas e limites. Mais especicamente, a anlise feita permite observar o confronto que se d entre os diferentes grupos de interesses e comparar os resultados das lutas que colocam dois grupos opositores diretamente em conito (latifundirios versus trabalhadores sem terra, homens versus mulheres) com lutas em que um grupo se coloca em oposio ao Estado. As lutas sociais no campo, que servem de base para essas reexes, so pela manuteno (o caso da construo de barragens) ou pela obteno de terra, pela defesa de preos de produtos e pela obteno de direitos de cidadania (incluso das mulheres como benecirias da Previdncia Social). As questes sobre as quais se faz alguma reexo so a organizao do movimento de luta pela terra, a natureza das lutas, a inuncia dos agentes externos sobre as lutas sociais e a autonomia dos grupos em ao.34

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

A LUTA PELA TERRANo Rio Grande do Sul, o primeiro movimento a registrar-se no nal da dcada de 1970 foi a luta dos sem-terra, aps a expulso de mil famlias de posseiros da reserva indgena de Nonoai, em maio de 1978. Esse movimento teve um impacto considervel sobre a sociedade gacha que, repentinamente, foi colocada diante de um problema que fora levada a desconhecer. O movimento testou tambm a capacidade de resistncia dos colonos (ou camponeses), muitos dos quais se instalaram precariamente, durante alguns meses, em acampamentos beira da estrada. Provou, ainda, sua coragem e determinao, as quais levaram um grupo deles a invadir terras em litgio a granja Brilhante, de 1.500 hectares, e a fazenda Macali, de 1.600 hectares, ocupadas de forma ilegal, cujo aproveitamento para ns de reforma agrria aguardava deciso da Justia desde o incio da dcada de 1960, organizando um acampamento durante vrios meses, em 1978 e 1979 (Gehlen, 1983). Em outubro de 1980, os sem-terra acampados na granja Brilhante, que no foram contemplados pelo Estado com terra naquela regio, invadiram a fazenda Annoni. Foram expulsos pela Brigada Militar, e oito dos invasores foram presos. Dois outros acampamentos seguiram-se: o de Encruzilhada Natalino, nos anos de 1981 e 1982, e o de Erval Seco, em 1983. Deve-se destacar o fato de que a deciso de invadir terras privadas vai de encontro a uma noo profundamente arraigada na mentalidade dos colonos: o respeito propriedade privada. Essa noo s passa a ser desmisticada quando os colonos podem contrapor a idia do que consideram um direito natural terra de trabalho, relacionado ao direito vida e sobrevivncia, o que traz, pelo menos num primeiro momento, a manuteno do respeito propriedade privada, desde que ela seja utilizada de modo produtivo.1 De importncia fundamental para a superao dessa noo foi a contribuio dos setores progressistas da Igreja Catlica que, no incio de 1980, na XVIII Assemblia Geral da CNBB, realizada em Itaici, condenaram a terra de explorao, da qual ... o capital se apropria para crescer continuamente, para gerar novos lucros... e valorizaram a terra de trabalho, aquela possuda por quem nela trabalha (Silva, 1985a). O Estado no cou passivo diante da ao dos sem-terra. As invases de terras foram reprimidas pela polcia que, quando no obteve xito na expulso dos invasores, montou guarda nos acampamentos, atuando de forma repressiva, com ameaas e prises. Promoveu, ainda, campanhas de persuaso e fez tentativas de desarticular o movimento de luta pela terra. A nica proposta concreta para resolver o problema, feita pelo governo federal, foi a transferncia para reas de colonizao no Mato Grosso ou na Amaznia, rejeitada pela maioria dos acampados. A recusa a essa so1

Ver, a esse respeito, a anlise de Martins (1980 e 1981).

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luo deve-se principalmente ao fato de que uma parte considervel dos que emigraram para essas reas retornou depois de algum tempo, porque, devido s grandes diculdades de infra-estrutura a serem enfrentadas e aos problemas especcos referentes s condies de sade e trabalho, somente os que detm algum capital no incio de sua instalao tm a chance de ser bem-sucedidos naquela regio (Santos, 1985). Compelido, no entanto, a fazer alguma redistribuio de terras, em decorrncia da ao dos sem-terra, o Estado (de incio, no nvel estadual e, aps 1983, no nvel federal) passou a comprar e, em alguns casos, a desapropriar terras, a m de promover o assentamento de alguns dos sem-terra nas reas de conitos. Mais recentemente, em 1985, criou o Programa Especial de Crdito para a Reforma Agrria (Procera), destinado compra de equipamentos, insumos e animais e construo de benfeitorias nos novos assentamentos. Essas medidas, no entanto, so certamente insucientes, diante da grandeza do problema. Como os sem-terra no foram bem-sucedidos em 1988, durante a elaborao da nova Constituio Federal, em sua tentativa de obter a aprovao de uma lei geral de sustentao reforma agrria, as conquistas do movimento dos sem-terra tm sido reduzidas e pontuais: isto , com exceo dos originrios das reas desapropriadas para a construo de barragens, s so beneciados por algum programa de distribuio de terras aqueles que participaram diretamente das invases e/ou dos acampamentos. Isso leva a uma espcie de norma: embora essa no seja uma condio suciente, preciso participar individualmente das invases para que um sem-terra possa ter a esperana de ser um dia beneciado em algum plano governamental de distribuio de terras. Os lderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) esto conscientes dessa realidade, o que levou um deles a armar que as ocupaes devero proliferar com maior intensidade em 1989, porque ... agora, mais do que nunca, a nica alternativa que o agricultor tem de conseguir terra, j que a Constituio fechou todas as portas (Zero Hora, 11/12/88, p.53). O sucesso relativo dos participantes dos primeiros acampamentos na obteno de terras no Rio Grande do Sul foi um forte fator na diminuio da resistncia de muitos sem-terra s invases. Como resultado, a experincia relativamente exitosa dos acampamentos anteriores serve de estmulo para muitos sem-terra tentarem sua sorte da mesma forma. No entanto, na ausncia de um plano geral de apoio redistribuio de terras, cada acampamento um caso individual, cuja luta tambm individual; em cada caso, os participantes das lutas procuram novos caminhos e novas estratgias, visando tanto obteno de terras para os diretamente envolvidos, quanto a chamar a ateno da populao em geral para a necessidade de uma reforma agrria.36

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preciso registrar que uma das crticas que os participantes das lutas pela terra tm enfrentado o fato de muitos dos benecirios da distribuio de terras, aps algum tempo, venderem os direitos de uso dessa terra a outros.2 Sabe-se muito pouco sobre a proporo dos que tomam essa atitude, bem como as motivaes que levam alguns indivduos a participar das lutas pela terra, objetivando, em princpio, a terra de trabalho, e, logo aps, ao transferi-la a outros, utilizam-na como terra de negcio. A trajetria desses indivduos, antes e depois do recebimento da terra, tambm no conhecida. Pode-se supor que alguns deles utilizem a terra assim obtida como forma de acumulao de algum capital que lhes permita iniciar-se em outra atividade, no agrcola; alguns talvez vendam os direitos de uso dessa terra por no terem tido condies econmicas para iniciar uma explorao agropecuria, ou por se haverem endividado; tambm possvel que alguns utilizem esse capital para adquirir uma terra em melhores condies. O que evidente, entretanto, que assim como h algum que vende, h algum que compra, e esse comprador , em geral, um indivduo que vai se instalar na terra como pequeno produtor. Aps as primeiras experincias de distribuio de terras, tanto os participantes das lutas como as organizaes governamentais responsveis tm tentado evitar o processo de venda das terras assim obtidas. Um dos resultados da determinao e capacidade de luta demonstrada pelos sem-terra nas invases e nos acampamentos realizados no sul do Brasil foi a criao do MST, uma organizao de defesa dos interesses da camada dos produtores que no detm a propriedade da terra, a qual independente e paralela organizao sindical. O MST foi estruturado em 1981, a partir do acampamento de Encruzilhada Natalino, em Ronda Alta (RS), com o objetivo principal de lutar por uma reforma agrria radical. Embora sua fora seja mais expressiva nos trs estados do sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paran), o MST est organizado em dezessete estados brasileiros. Ele parcialmente nanciado por recursos de entidades ligadas ao Conselho Mundial das Igrejas e apoiado pela Comisso Pastoral da Terra (CPT), por alguns sindicatos de trabalhadores rurais das regies onde a luta pela terra mais intensa (principalmente aqueles considerados oposio sindical), pelo Partido dos Trabalhadores (PT), alm de outras organizaes. Apesar do apoio dessas organizaes, o MST cioso de sua autonomia e de seu carter democrtico, privilegiando, no seu interior, uma ampla participao nas decises. Segundo um analista, mais recentemente se observa uma tendncia para uma estrutura mais centralizadora no interior do MST (Navarro, 1988). No incio de 1985, o MST organizou, em Curitiba, seu I Congresso Nacional. Em maio do mesmo ano, durante o IV Congresso da Confederao2

Fato semelhante ocorre nas lutas pela habitao no meio urbano.

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Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) realizado em Braslia, foi denida mais claramente a posio do MST no que se refere terra:... exige-se a desapropriao no s dos latifndios (produtivos ou no), mas tambm das empresas rurais; supera-se a proposta da propriedade familiar individual em favor de novas experincias que contemplam o uso comunitrio e coletivo das terras; e as invases de terras so legitimadas como um direito dos trabalhadores sem-terra para garantirem a sua sobrevivncia. (Silva, 1985a)

As principais formas de luta do MST tm sido a invaso de terras e a criao de acampamentos; peregrinaes aos gabinetes das autoridades estaduais e federais responsveis pelos programas de reforma agrria e redistribuio fundiria; a tentativa de inuenciar a redao da nova Constituio; e o apoio aos assentados em programas de distribuio de terras. Como resposta ao fracasso em obter a aprovao de uma lei sobre a reforma agrria na Constituio de 1988, a estratgia dos sem-terra pode mudar. Um dos lderes do MST, por exemplo, declarou que ... at aqui entrvamos na terra, montvamos acampamentos e cvamos esperando as autoridades para negociar. Agora a disposio entrar e se instalar (Zero Hora, 11/12/88, p.53). Alm disso, muitos dos lderes dos sem-terra apresentaram-se como candidatos nas eleies de 15 de novembro de 1988, resultando eleitos, segundo um membro do grupo, 97 vereadores e trs prefeitos, alm de j terem ajudado a eleger um deputado estadual, Ado Pretto, e um deputado federal, Antonio Marangon, pelo Partido dos Trabalhadores, nas eleies de 15 de novembro de 1986. A eleio desses parlamentares e executivos indica que suas estratgias podero tomar novos rumos em 1993, quando a atual Constituio dever ser revista. A participao dos sem-terra no poder, em regies onde a questo da terra representa um problema central a ser resolvido, sugere alguns aspectos para reexo. Por um lado, coloca-se a questo da continuidade do apoio, por uma autoridade constituda, a aes consideradas ilegais; por outro, coloca-se a questo da relao entre um governo municipal potencialmente controlado pelos sem-terra e os poderes estadual e federal. Trata-se, em resumo, de examinar a eccia poltica dos sem-terra pelos canais legais de poder. importante ressaltar que a organizao paralela ao movimento sindical ocorreu num contexto em que a Federao dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag), liderada pelos produtores familiares modernizados, assumindo uma posio que pode ser denominada legalista defesa dos interesses de seus associados por meio legais , no apoiou a ocupao de terras e, de um modo geral, somente passou a dar sustentao aos acampamentos j implantados aps o crescimento do apoio popular ao movimento. Embora alguns sindicatos liados Fetag tenham38

Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

apoiado o movimento desde o incio, os sem-terra no se sentem, via de regra, representados pelo conjunto do movimento sindical. A diculdade que o sindicalismo gacho apresenta para defender os interesses dos sem-terra pode ser considerada uma das principais razes para o surgimento de uma organizao alternativa. Questionam-se, assim, as razes para a incapacidade de o movimento sindical liderado pela Fetag promover a defesa dos trabalhadores sem-terra. Uma dessas razes pode estar na composio dos sindicatos em que trabalhadores assalariados, pequenos parceiros, ocupantes e proprietrios, bem como produtores familiares modernizados que so empregadores, mesmo que em carter eventual, esto reunidos numa mesma associao, com o predomnio, em nmero e poder econmico, destes ltimos. Outra razo pode estar no carter essencialmente assistencialista assumido pela maioria dos sindicatos de trabalhadores rurais, devido ao fato de terem sido encarregados pelo Estado da intermediao no que se refere distribuio dos benefcios da Previdncia Social. Outra razo, ainda, pode residir no carter institucional do sindicato e na sua diculdade de justicar, por esse motivo, diante do Estado, aes consideradas ilegais, tais como a invaso de terras. De forma semelhante, os grandes proprietrios de terras, mesmo contanto com associaes de defesa de seus interesses de classe tais como a Federao da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), em nvel estadual, a Confederao Nacional da Agricultura (CNA), em nvel nacional, e a Sociedade Rural Brasileira (SRB), organizao constituda em 1919, em So Paulo, a partir da cafeicultura, mas que apresenta atualmente um carter mais abrangente , criaram, em 1985, uma nova organizao. Essa organizao surgiu logo aps a divulgao, durante o IV Congresso da Contag, da proposta do Mirad/Incra, rgos do governo federal, para elaborao de um plano de reforma agrria do governo Sarney.3 Trata-se da Unio Democrtica Ruralista (UDR), uma organizao paralela ao movimento sindical, sem o carter institucional das demais associaes, o que possibilitou, alm da utilizao de instrumentos legais (pela contratao de uma equipe de assessores jurdicos que efetuam aes visando sustar desapropriaes de terras, por exemplo), a execuo de aes no permitidas legalmente (nanciamento das campanhas de candidatos a cargos eletivos nas cmaras municipais, estaduais e federal e a cargos executivos, principalmente em nvel municipal, alm de sustentao de milcias armadas para defender terras dos membros da organizao, no caso de ameaas de invases). O3

Poucos meses aps a apresentao dessa proposta, o governo federal recuou, apresentando, em outubro do mesmo ano, o Plano Nacional da Reforma Agrria (PNRA), de alcance muito mais limitado do que a proposta anterior (ver, a esse respeito, FACHIN, 1985; SILVA, 1985a). Mesmo esse plano mais restrito, elogiado pelos latifundirios por ocasio de sua divulgao, acabou depois, em 1988, graas ao lobby desses mesmos latifundirios junto aos constituintes, sendo excludo da nova Constituio.

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fato de a UDR executar aes consideradas ilegais em defesa dos interesses de seus associados, no signica que essas prticas no fossem utilizadas pelos grandes proprietrios de terras anteriormente sua organizao. Martins (1981), por exemplo, relata como essas prticas eram comuns entre os grandes proprietrios. O novo, aqui, que elas sejam assumidas por uma organizao e no apenas praticadas individualmente. Como inexistem estudos aprofundados sobre as bases da UDR, formulam-se hipteses distintas. Para uns, a base de sustentao da UDR d-se em regies onde a grande propriedade territorial importante para ns especulativos (o que est, no Brasil, geralmente associado pecuria extensiva), entre as quais pode-se incluir os estados de So Paulo, Minas Gerais, Gois, Mato Grosso, Maranho e Par, sendo menos signicativa em outras regies, como no Rio Grande do Sul (onde, em 1985, menos de 1% dos estabelecimentos agrcolas possuam mais de mil hectares).4 Os que sustentam essa hiptese consideram, no entanto, que, dados os recursos nanceiros disponveis s aes de rejeio reforma agrria, a partir de uma postura geral neoliberal e antiestatista, a UDR consegue ter inuncia nacional, e seu poder manifesta-se mesmo nas regies onde o nmero de pecuaristas mais reduzido. Uma outra hiptese formula que a base de sustentao da UDR est nos setores capitalistas da agricultura.5 O elemento comum a ambas as hipteses a relao da UDR com os interesses ligados grande propriedade territorial. preciso destacar que a UDR, embora represente os interesses dos grandes proprietrios de terras, capitalistas ou no, tem conseguido o apoio de mdios e at mesmo de pequenos proprietrios rurais. Seu sucesso, nesse sentido, deve-se principalmente ao fato de ter-se dirigido questo da defesa da propriedade e feito apelo aos defensores da livre iniciativa, como princpios gerais, sendo bem-sucedida na campanha contra a reforma agrria, e, mais recentemente, por ter sido vencedora no lobby feito junto aos constituintes para a obteno do perdo das dvidas contradas pelos produtores rurais durante o Plano Cruzado, quando tanto os juros como os preos haviam sido congelados pelo governo federal. Ela pretende, assim, assumir o papel de verdadeira defensora dos interesses dos produtores rurais, grandes e pequenos. De acordo com Plnio de Arruda Sampaio, um dos mais importantes intelectuais brasileiros ligados questo da reforma agrria, o sucesso dos latifundirios na sua presso contra a reforma agrria deve-se a cinco fatores: (a) contam com o apoio da grande imprensa; (b) dispem de recursos nanceiros elevados para gastar no lobby anti-reforma; (c) esto umbilical4

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Tavares (1988), por exemplo, refere que a UDR foi criada em Gois e que sua primeira diretoria nacional foi formada, basicamente, por pecuaristas do Centro-Oeste, So Paulo e Norte do pas. Como Sampaio (1985), por exemplo.

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Lutas camponesas contemporneas: condies, dilemas e conquistas

mente ligados a setores dinmicos do capitalismo, de modo que conseguem neutralizar presses reformistas de setores industriais e comerciais que s se beneciariam com uma repartio mais eqitativa da terra e da renda rural; (d) continuam a manter estreitos laos com a cpula poltica do pas; (e) apesar de suas divises e disputas, eles souberam compor suas diferenas para fazer frente unidos ameaa comum a todos. Ao mesmo tempo,enfrentando a m vontade dos meios de divulgao, os trabalhadores rurais no conseguem obter um apoio efetivo do operariado e das classes mdias urbanas para sua causa, no obstante a adeso formal das cpulas sindicais e de algumas entidades da sociedade civil. Pior do que isso: no conseguiram sequer forjar uma slida unidade na luta pela reforma. (Sampaio, 1985, p.3)

Embora o Estado assuma o carter de poder decisrio supremo no que diz respeito luta pela terra, o surgimento da UDR e a oposio direta que essa organizao passou a fazer ao MST, bem como as aes legais e ilegais que desenvolve na defesa da propriedade da terra, evidenciam que a luta pela terra se d num verdadeiro contexto de luta de classes. A invaso da fazenda Santa Elmira, situada entre o Salto do Jacu e Tupanciret, no Rio Grande do Sul, em maro de 1989, por cerca de 3 mil trabalhadores sem terra, tornou evidente o