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www.lusosofia.net Reflexões em torno do conceito de Felicidade inspiradas na Ética de Espinosa e em Michel Henry Ana Paula Rosendo 2013

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iiiiiiiiwww.lusosoa.netReexes em torno doconceito de Felicidadeinspiradas na tica deEspinosa e em Michel HenryAna Paula Rosendo2013iiiiiiiiiiiiiiiiCovilh, 2013FICHA TCNICATtulo: Reexes em torno do conceito de Felicidade inspiradas natica de Espinosa e em Michel HenryAutor: Ana Paula RosendoColeco: Artigos LUSOSOFIADesign da Capa: Antnio Rodrigues TomComposio & Paginao: Filomena S. MatosUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2013iiiiiiiiiiiiiiiiReexes em torno do conceito deFelicidade inspiradas na tica deEspinosa e em Michel HenryAna Paula Rosendondice1 A razo claricadora da vida afectiva 52 Da Alegria de Deus ou o triunfo do Corao 12Pretendemos apresentar uma reexo em torno do conceito deFelicidade presente nas IV e V parte da tica de Espinosa. Estesdois livros so,a nosso ver,indissociveis porque se constituemcomo um corpus que nos permite perceber a passagem do planoda particularidade para o da universalidade que um processo deconverso e de conquista da interioridade. Sem perdermos muitotempo coma descrio do contedo e da estrutura dedutiva da obra,consideramos que nestas duas partes que se encontra a respostamais decisiva para a to almejada procura de felicidade. Os ttulosdos captulos so, respectivamente, DaServidoHumanaoudafora das Afeces e A questo da potncia da inteligncia ou da3iiiiiiii4 Ana Paula Rosendoliberdade humana.1Como a Felicidade o resultado de uma vidamoral e geralmente o culminar de um processo de conhecimentoedebusca, tentaremosperceberapropostadesteautorparaumdos problemas que mais preocupam os Homens de todas as pocasqueodarespostaquestocomopossoserfeliz. Tentare-mos perceber porque que em Espinosa no existe uma receita ouuma concepo de Felicidade previamente estabelecida como en-contramos, por exemplo, no estoicismo. Num segundo momentofar-se- a leitura do conceito de Felicidade a partir de uma inter-pretao henriana de Espinosa. O pensamento de Michel Henrygrandementeinuenciadopeloautordaticaeasuatesedelicenciatura intitulada Le bonheur de Spinoza apresenta-se comoumareexooriginalsobreaideiadeFelicidade. AFelicidadecomo o motor da vida que perspassa todos os modos da substn-cia2. Encontramo-la no princpio da obra, como pura fora espon-tnea, princpio irracional e fora elementar da Natureza, partindoda ideia de Deus como Natureza (Deus sive natura) e deduzindotodo o particular a partir deste universal. Mas a preocupao deEspinosa com os seres humanos e a sua vida concreta e a vidahumana tem como modo distintivo a conscincia porque atravsdela que a substncia se reecte, adquirindo conscincia de si. AFelicidade como princpio irracional e espontneo que emerge naprimeira parte da tica acaba por, aos poucos, ir dando lugar aomomentoinauguraldomodosuperioratravsdoqualavidasemanifesta, a tica. Num dado momento, a vida acaba por pedir es-clarecimentos razo para a legitimar. Porque que a espontanei-dade, aaparenteirracionalidadeprecisadaconscinciaracionalparaselegitimar? Talvezporqueguardaumanostalgiadaob-jectividade e da claridade visvel3. A Vida tem uma necessidade1Espinosa, B., tica, trad. Joaquim de Carvalho, Lisboa, Relgio de gua,1992.2Henry, M., A Felicidade de Espinosa, Lisboa, Mathesis, U.L., s.d., p. 12.3Idem, ibidem, p. 16.www.lusosoa.netiiiiiiiiReexes em torno do conceito de Felicidade inspiradas... 5intrnseca de esprito porque o esprito conscincia que claricae ilumina O pensamento racional pensa os afectos e as impressessensveis, d-lhes um revestimento inteligvel, trazendo-os ao x-tase do ser. Em Espinosa encontramos uma potncia imanente eorganizada, umconatusquepoderamosidenticarcomosendoa Alegria e que de uma innita riqueza intrnseca. Contudo, asuprema Alegria ou a Felicidade, fora espontnea de realizaoda potncia imanente a todos os seres e que est presente em tudo,realiza-se de modo mais pleno na conscincia humana. Na pticahenriana encontramos na teoria de Espinosa uma terceira dimensoque completa e opera a converso suprema felicidade ou beati-tude, esta dimenso de profundidade o sentimento. Conclumosreferindo que a tica de Espinosa uma teoria tridimensional eque esta dimenso a profundidade a imanncia e essa imannciapresenteemtudorealiza-sedeummodomaisplenonainterio-ridade humana,razo de ser e signicado de todo o percurso deuma moral4. Ser atravs do Livro V da tica de Espinosa quepretenderemos esclarecer o papel do sentimento e o da razo en-tendidos como as condies sine qua non para atingirmos a metanal de todo o percurso das nossas vidas: o da a conquista da Feli-cidade.1 A razo claricadora da vida afectivaPorque que a razo o modelo da natureza humana?A resposta de Espinosa a esta questo parte da consideraode um modelo progressivo de desenvolvimento em trs etapas:1o4Idem, ibidem, p.18.www.lusosoa.netiiiiiiii6 Ana Paula RosendoOegosmobiolgico,52ooutilitarismoracional6eem3ooin-telectualismo7. Estas etapas esto integradas umas nas outras, nohavendo ruptura, mas continuidade e mudana qualitativa na unida-de. No fundo, trata-se do esquema formal, maneira dos geme-tras atravs do qual se descreve o processo de realizao do cona-tus. Este desenvolvimento progressivo do conhecimento em trsetapas tem como ponto de partida uma proposio incontestvelqueexprimealgodeaindamaisprofundoeessencialnopensa-mento deste autor, isto , que cada umtende a perseverar no seu ser,perseverando naquilo que considera ser bom para si e afastando-sedaquilo que considera ser mau para si. Este movimento de perse-verar no seu ser corresponde a um movimento de realizao dessemesmo ser. No pensamento de Espinosa esta uma lei universalquenoadmitequalquertipodeexcepo. Estaleiuniversalvlida para as paixes assim como para a razo, porque os funda-mentos da vida passional e da racional so os mesmos, no se pro-duzindo uma ruptura ou hiato entre estes dois modos de expressodo ser. A principal diferena entre ambas (paixo e razo) quea vida passional movida por factores externos, contrariamente vida racional que movida por factores internos. O desenvolvi-mento do conatus ou movimento de realizao caracteriza-se poresta perseverana que permite o progresso de um ser menos, paraum ser mais. O pensamento de Espinosa optimista e no cre-mos que considere a possibilidade de movimentos reversveis. Omovimento de todos os seres naturados na realizao do seu cona-tus sempre ou de progresso, ou de uma inibio desse mesmoprogresso, mas nunca de um retrocesso. Contrariamente Alegriaque permite a passagem de um ser menos a um grau maior de rea-lizao, a tristeza inibe o desenvolvimento no permitindo que omovimento de realizao se opere.5Cf. tica IV, prop. 19 a 22.6Cf. tica,IV, prop. 23 e 24.7Cf. tica IV, prop. 25 a 28.www.lusosoa.netiiiiiiiiReexes em torno do conceito de Felicidade inspiradas... 7J vimos que a principal distino entre a razo e a paixo re-side no facto de os mandamentos da razo se inspirarem exclusi-vamente em si mesmos e nos valores por si enunciados. Qual ,ento, o modo pelo qual divergem das paixes?Divergem apenasno ponto em que tentam esclarecer a paixo pela centrao em simesmo, pelo esclarecimento a partir dos princpios imanentes aoconatus e pela ruptura com a dependncia dos factores externosque caracterizam a paixo, tornando-a clara a nossos olhos. Na p-tica espinosista produzimos dois tipos de ideias8, as adequadas eas inadequadas. As ideias inadequadas so ideias com origem napaixo e em factores externos, contrariamente s ideias adequadasque so produzidas pela razo e por factores exclusivamente in-ternos. Assim, arazoaquiloquenosajudaatransformarasideias inadequadas em ideias adequadas. Podemos armar, comsegurana, que no existe uma diferena de natureza entre razo epaixo. A razo no contraria a paixo ditando-lhe valores tran-scendentais a serem cumpridos, porque em Espinosa no existe umidealismo dualista, uma dicotomia entre matria e esprito, corpoe alma, paixo e conscincia. O movimento de realizao ummovimento concreto e o papel da razo o de nos ajudar a desen-volver o nosso conatus, o de nos ajudar a perseverar no nosso serde um modo mais efectivo. O ser quando movido pelo conatustende a procurar alegria e prazer para conseguir ser mais s que,na maior parte das vezes, passivo, movido por causas exterioresaoqualalheio. ImportafrisarqueapassividadeemEspinosano tem nenhum aspecto positivo. Quando somos passivos, isto ,quando andamos movidos por paixes e entregues quilo que nosacontece porque movidos por uma causa exterior a ns, no s ten-demos a ter ideias inadequadas produzidas pela imaginao, comotendemos a no realizar e a no intensicar a nossa potencialidade.8Convm referir que no h qualquer tipo de idealismo em Espinosa e quea ideia e o ser coincidem absolutamente. A ideia de alma como ideia de corpoilustra bem o concretismo presente neste pensamento.www.lusosoa.netiiiiiiii8 Ana Paula RosendoEspinosa, discpulo de Descartes, tentou resolver o marcante dua-lismo presente no pensamento cartesiano, mas no deixa de fazerparte da tradio, quer judaica (um Deus impessoal), quer intelec-tualista do sculo XVII. Por isto a afeco, essencialmente passivae produtora de ideias inadequadas, nunca poderia ser consideradacomo portadora de algum elemento positivo no desenvolvimentodo conatus.O conatus que realizao da nossa potencialidade constitui-se como sendo o verdadeiro conhecimento e o verdadeiro conhe-cimento coincide com o ser. Nesta ptica no existe qualquer dis-tino entre o desenvolvimento cognoscitivo e o desenvolvimentotico, havendo um paralelo entre ambos, porque ser e conhecer souma unidade. Portanto, qualquer ser humano aquilo que sabeser e o seu conhecimento acaba por se reectir no seu modo deestar. um pensamento que rejeita todo o tipo de idealismo ou deracionalismo e no jargo losco considerado como sendo ummonismo. O que so, ento, a virtude e a realizao moral para Es-pinosa? Para Espinosa virtude e realizao moral no so mais doque a realizao da nossa natureza9, daquilo para que fomos feitos.No h qualquer espcie de meta ideal na sua proposta terica.H um problema que inegvel e que complica toda a lgicaanteriormente enunciada que o facto de quer o pensamento deEspinosa, quer a sua obra serem extraordinariamente abertas, pelascaractersticas formais e metodolgicas da mesma, o que originavrios tipos de interpretao. Por exemplo, Alexandre Matheronprope que se possa considerar o conatus como anlogo ao ins-tinto de conservao,10armando que o movimento perptuo doser o de uma permanente produo, repetio e reproduo de simesmo na existncia. Arma, inclusivamente, que a partir desteinstinto de conservao conseguiu dar o contedo que tanto procu-9Cf. tica IV, prop. 18 e esclio.10Matheron, A., Individue et communaut chez Spinoza, Paris, Ed. Minuit,1988, p.245.www.lusosoa.netiiiiiiiiReexes em torno do conceito de Felicidade inspiradas... 9ravaparaoconceitodevirtude(quecoincidecomoderealiza-o do conatus): plus nous conservons notre tre et plus nous enavons le pouvoir, plus nous sommes virtueux.11Nesta ptica, omodelo ideal de Homem aquele que, em todas as circunstncias,faz exactamente aquilo de que necessita para se realizar como talneste empreendimento de expandir e de intensicar o seu ser. Seassim , qual ento, a distino entre agir por si mesmo ou agirde modo racional e agir por uma causa que lhe seja exterior,oude modo passional? que movidos pela razo, isto , movidosapenas pelas nossas causas internas e sem nenhuma inuncia ex-terior, tornamo-nos na verdadeira e nica causa dos nossos actos,tornamo-nos seres livres. As afeces ou paixes so importantesporque nos mostram o caminho que devemos seguir contudo, nodevemos permitir que o mundo exterior e as suas causas nos dirijamporque deixamos de depender de ns mesmos para passarmos a sermovidos por esse mundo exterior a ns. Poder este movimentode realizao do conatus ser considerado como algo de instintivo?Se sim, ento qual ser o signicado exacto de nos conduzirmosracionalmente?Oprincpio fundamental que nos deve sempre guiar no que con-cerne ao pensamento de Espinosa a certeza de que a razo nosignica uma conduta ideal e diferente que nortear as nossas vi-das de modo distinto do modo afectivo ou passional. Como no hracionalismo, a razo no encarada do ponto de vista do ideal,no dita leis nem normas transcendentes a cumprir. Nesta pticaviver sempre viver at ao m tendo a realizao pessoal comometa, sendo esta a principal misso de todos os viventes e, parti-cularmente, do Homem. Fazendo uso da razo ou no fazendo usodela, a causa que nos leva a perseverar no ser nunca uma causade outra coisa, uma causa exterior a ns mesmos.12No monismo antropolgico de Espinosa o conatus no uma11Idem, ibidem, p.246.12Cf. tica IV, prop. 25.www.lusosoa.netiiiiiiii10 Ana Paula Rosendoparte de ns que possa vir a ser distinguida da razo, porque noh qualquer espcie de dualismo. Portanto, oesforo para con-servarmos o nosso ser no se distingue em nada do ser que nsnos esforamos por conservar. Somos uma unidade que consti-tui uma totalidade, um sistema em ciclo fechado que no se man-tm na existncia a no ser na medida exacta em que esta tem opoder de atualizar as suas consequncias.13Portanto, perseverarno meu ser tender a reproduzir innitamente aquilo que eu sou eesta verdade real e independente de todas as afeces que pos-sam surgir.14Quando nos esforamos por perseverar no nosso ser,mesmo que sejamos afectados por uma causa exterior e particularno signica que poremos esta modalidade ao servio de todo onosso ser, pois tendemos a realizar aquilo que deriva directamenteda nossa essncia e a razo no , em Espinosa, considerada comouma faculdade lgica puramente instrumental e de natureza distintada paixo porque ambas fazem parte da nossa natureza que una.Tomamos como exemplo a proposio II do livro IV Ns padece-mos porque somos uma parte da Natureza que no pode conceber-se por si mesma e sem as outras.Assim, podemos armar que a principal distino entre a afec-o ou paixo e a razo reside no facto de a partir da primeira seproduzirem ideias inadequadas e a partir da segunda ideias ade-quadas. As ideias inadequadas podem ser agradveis, mas o inte-lectualismo presente em Espinosa mostra-nos que se por um lado onosso ser esforo de perseverar em si mesmo e de fazer em todasascircunstnciasaquiloquenecessrioparaserealizarplena-mente, isto , fazer coisas agradveis, preferir o esforo primeiroe nico que o de compreender de modo claro e distinto a sua na-tureza e razo de viver. O esforo do conhecimento no mais doque o do conatus no seu supremo desenvolvimento e este desejo deconhecer de modo claro e distinto, atravs de ideias claras, meta13Cf, tica IV, prop. 26 e demonstrao.14Matheron, A., Ibidem, p. 251.www.lusosoa.netiiiiiiiiReexes em torno do conceito de Felicidade inspiradas... 11e aspirao de realizao de todos os seres racionais. Conheceratravs de ideias adequadas ou de modo que seja claro e distintosignica conhecer de modo a poder organizar melhor o seu mundoe tal representa o ciclo completo da vida razovel que nos permitira realizao plena do nosso conatus.Assim, a plena realizao dapotncia consiste no conhecimento pelo conhecimento. Aquilo quea razo julga de modo claro e distinto sempre bom, porque nos til para a plena realizao como tambm necessrio para amesma. Segundo Espinosa, s a razo poder esclarecer, com todaa certeza, aquilo que para ns til e necessrio.Nas duas primeiras etapas do conhecimento que so o intelec-tualismobiolgicoeoutilitarismoracional onossomovimentoderealizaodapotnciadesconheceascausasqueolevamatal e tendemos a mover-nos exclusivamente levados pelo instintodeconservao. ComonosdizA. Matheron, indubitvelqueem Espinosa existe um primum vivere e que este primum vivere condio sine qua non para as potenciais realizaes de todos osseres. Contudo, importante realar que Espinosa no reduz tudoa um mero desenvolvimento do esprito de conservao erigido aprincpio supremo.15Quando Espinosa reala a importncia de umprimum vivere suscita a possibilidade de uma m interpretao doseu pensamento, na medida em que parece ceder ao dualismo cls-sico da oposio entre paixo e razo. Poderamos ser induzidosa interpretar que as nossas realidades empricas e passionais tmpouco em comum com a realidade intelectual e racional e esta ideiano certa. Em Espinosa o conhecimento no procede por etapas,no partimos de um biologismo primeiro para um intelectualismocomo realidade ltima e suprema. Apesar de encontrarmos umahierarquia no conhecimento espinosano, a ser feita, teria que pas-sar a ser descrita como uma paixo maior que se sobrepusesse srestantes. A paixo maior que os seres racionais tm, mais do que apaixo pela sua vida e pelo facto de a poderem manter a paixo15Matheron, A., ibidem, p.255.www.lusosoa.netiiiiiiii12 Ana Paula Rosendomaior pelo conhecimento. A razo ocupa o topo da hierarquia dasperfeies possibilitando ao homem situar-se num plano superiorao da animalidade. Contrariamente s afeces cuja origem sub-jectiva e singular, a razo uma faculdade universal que se encon-tra presente em todos os seres racionais. A universalidade da razopermite-nos superar os limites da nossa singularidade, pela realiza-o que transcende a particularidade. Qual a paixo da razo?Arazo deseja conhecer e o modo universal como o faz produtorde ideias claras e distintas. Estas so as ideias adequadas, as maisprximas da causa sui que aquilo cuja essncia envolve a exis-tncia: ou por outras palavras, aquilo cuja natureza no pode serconcebida seno como existente.16Como responder possibilidade de conciliao entre um cona-tus singular e uma razo universal? A possibilidade de conciliaode um conatus individual com uma razo universal reside no factode esta ao desenvolver-se tender, progressivamente, a personalizar-se, pois os esclarecimentos por ela feitos sero levantados por cadaum dos seres que vivem e que na sua actividade pretendem a rea-lizao plena da sua potencialidade ou a realizao plena do seuconatus. Assim como o ser racional se realiza plenamente atravsda razo universal, esta tambm se humaniza atravs da sua uniocom o ser contingente e particular. E parece que sem querer setende a cair novamente nas malhas do dualismo. Qual a soluoencontrada por Espinosa para este problema?2 Da Alegria de Deus ou o triunfo do CoraoJvimosqueconhecimentoeprogressomoralsoemEspinosauma e a mesma realidade, mas h o problema da individuao, so-16Cf. tica I, denio 1.www.lusosoa.netiiiiiiiiReexes em torno do conceito de Felicidade inspiradas... 13mos sujeitos vivos e encarnados e, por isso, Por mais absoluto queseja o valor do conhecimento humano que, enquanto modo nito,nos pareceu no poder ir muito alm das ideias inadequadas.17Ora, anecessidadedeultrapassarestadiculdadefazcomque,segundoHenry, Espinosatenhasentidoanecessidadedesede-bruar constantemente sobre o pensamento cartesiano. O conheci-mento racional ou conhecimento de terceiro grau o conhecimentodeDeus, umconhecimentoquederivadomaisfundodanossaimanncia porque Deus a mais pura interioridade e no possuiqualquertipodeafecooupaixo. Decertomodo, aideiadeDeus cartesiana e a espinosana coincidem. Portanto, o conheci-mento de terceiro grau mostra-nos esse princpio absoluto e pura-mente racional que Deus porque o Homem no existe pelo seulimite que apenas uma determinao extrnseca, uma negao,que no , mas pelo princpio interno que lhe d o ser e que lhed a fora para perseverar no ser. S existe enquanto por e emDeus.18Assim,o conhecimento de terceiro grau mostra-nos,precisa-mente, esse princpio interno e absoluto que Deus, causa de todasas coisas, de todas as essncias e de todas as existncias e sobre oqual tudo repousa. No conhecimento de terceiro grau ou conheci-mento de Deus, o entendimento e o objecto so um s, no frutode uma percepo, mas de uma intuio que une o pensamento aoser e que lhe proporciona uma fruio total, isto , um gozo totale absoluto. Conhecer reconhecer essa identidade essencial e n-tima da alma com Deus, experienci-la num gozo supremo, eis emque consiste a beatitude.19A beatitude a experincia suprema para a qual toda a losoade Espinosa se orienta e como sempre acreditou na possibilidadedo Homem ser feliz, demonstrou que a beatitude consiste no amor17Henry, M., A Felicidade de Espinosa, Lisboa, Mathesis, U.L., s.d., p.79.18CF. A Felicidade de Espinosa, p.81.19CF. Ibidem, p.85.www.lusosoa.netiiiiiiii14 Ana Paula RosendoaDeusequeoamor aDeusumasupremaalegria.20Estaideia ecoa na proposio XXVII do Livro V da tica, que nos diz:Deste terceiro gnero de conhecimento provm o maior contenta-mento da Alma, que pode existir.O racionalismo de Espinosa considera que s atravs das ver-dades racionais se pode aceder eternidade porque s se atingeafelicidadeabsolutaquandooobjectodanossapaixomaiorno tem qualquer relao com o tempo. A conscincia individual sempre particular, emprica e sujeita temporalidade contraria-mente razo que conhecimento universal, necessrio, intempo-ral e eterno.Apesar de sermos seres individuais e empricos, con-seguimos participar da intemporalidade atravs da razo porque AAlmahumananopodeserabsolutamentedestrudajuntamentecom o Corpo, mas alguma coisa dela permanece, que eterna.21O conhecimento eterno da alma um conhecimento de terceirograu, intuitivo e permite-nos tambm o conhecimento das coisasparticulares.O motor que possibilita todo este movimento de conquista daFelicidadequemaisnodoqueconversoeadesointerio-ridade ou a Deus a Alegria. A Alegria como sentimento umapassagem de uma menor perfeio a uma maior perfeio, do sermenos ser ao mais. A Alegria permite o desenvolvimento do nossoconatus, isto , da nossa potencialidade e atravs dela que nosrealizamos como pessoas porque possibilita o encontro com a fe-licidade. Contrariamente alegria, a tristeza inibe o movimento,impedindo a realizao do ser. Espinosa considera que a supremafelicidaderesidenanossauniocomDeus, oquelevouMichelHenry a questionar da possibilidade de sermos felizes ao unir-nosa uma criatura impassvel, porque Deus no sente nem afectado.A resposta que encontrou para esta pergunta mgica e como quesubverte todos os desenvolvimentos anteriores, porque a Alegria20Cf. Ibidem, p.91.21Cf. tica, Livro V, prop. 23.www.lusosoa.netiiiiiiiiReexes em torno do conceito de Felicidade inspiradas... 15osentimentoquesedesenvolvenapresenadoserabsoluto,napresenadeDeus. NapresenadeDeussentimosAlegriaeeste sentimento provoca a mudana para um estado de perfeiomaior. No contacto com Deus desenvolve-se uma perfeio maiorporque o sentimento gozoso de fruio que a Alegria no seu es-tado mais puro no se modica, no se altera, nem alterna com atristeza, o que nos proporciona a conquista da Felicidade total quese traduz por um estado de beatitude. Neste sentido, o sentimentode beatitude completamente diferente da ataraxia dos gregos ouda tradio oriental porque um sentimento que no se pretendever aniquilado. O ideal presente na tradio grega e na oriental aaniquilao do sentimento como principal fonte de perturbao.Conclumos considerando que, num primeiro momento, pareceque pela razo que conquistamos a felicidade, o que faria comquenohouvessequalquerdistinoentreumaconquistaseca,racional e isenta de sentimento e o sentimento de beatitude. Con-tudo, aquilo que nos proporciona a felicidade autntica tem a suaorigem num sentimento que o da Alegria. este sentimento quenos mantm unidos a Deus. Contrariamente s expectativas enun-ciadas, aquilo que h de mais profundo na nossa vida intelectuale que nos permite alcanar a felicidade no tanto a razo, mas o sentimento. o sentimento de Alegria que estabelece a nossaunio com Deus e atravs da qual atingimos a suprema Felicidade,o gozo supremo. Nada melhor para as almas romnticas do queo triunfo do corao como centro anmico, tornado a nossa essn-cia e sem o qual resvalaramos para um formalismo destitudo dequalquer contedo real, isto , destitudo de contedo humano que corao.www.lusosoa.net