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ROTEIROS L IVROS Pedro Cardoso e as informações em Portugal Terrorismo O Alargamento da UE O Quarto Equívoco Precisará a América de uma Política Externa? Machiavel: a Ciência Política Novos Países na União Europeia Portugal e os Novos Desafios Ensino Livre Educação do Carácter BOLETIM DO NOVA SÉRIE | MAIO 2004 | Nº2 INSTITUTO D.JOÃO DE CASTRO

Machiavel: a Ciência Política Novos Países na União

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ROTEIROS

L I VRO SPedro Cardoso e as informações em Portugal

Terrorismo

O Alargamento da UE

O Quarto Equívoco

Precisará a América de uma Política Externa?

Machiavel: a Ciência Política

Novos Países na União Europeia

Portugal e os Novos Desafios

Ensino LivreEducação do Carácter

BOLETIM DO

NOVA SÉRIE | MAIO 2004 | Nº2INSTITUTO D.JOÃO DE CASTRO

Índice

Nota do Director

Um lugar próprio..............................................................3Miguel Anacoreta Correia

Ensaio

Nicolas Machiavel: a Ciência Política ..............................5Adriano Moreira

Actualidade

Que Europa? De encruzilhada em encruzilhada....................................14Maria Eduarda Azevedo

Uma nova Europa - Um novo tempo ..............................17Guilherme d´Oliveira Martins

A Europa no momento actual..........................................21Joaquim Miranda

As lições do 11 de Março ..................................................24Paulo Casaca

Na hora do alargamento ..................................................27Miguel Anacoreta Correia

O alargamento da União Europeia - Novos vizinhos ......35Maria Regina de Mongiardim

Debate

Portugal e os novos desafiosA adesão de novos países à UE ........................................46Manuel Monteiro

Ensino livreA derradeira salvaguarda da educação do carácter ..........55João Carlos Espada

INSTITUTO D. JOÃO DE CASTRO – ROTEIROS – Nova Série – Maio 2004 Nº2

INSTITUTO D. JOÃO DE CASTRO – ROTEIROS

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Recensão

Informações e Segurança ................................................62Adriano Moreira

As informações em Portugal ............................................67Adriano Moreira

Terrorismo ......................................................................71Helena Matos

O alargamento da União EuropeiaNovos Vizinhos ................................................................75Adriano Moreira

O Quarto Equívoco ........................................................79Maria Emília Brederode Santos

Precisará a América de uma Política Externa?Uma Diplomacia para o século XXI ................................83Maria Regina de Mongiardim

Nota do Director

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Um lugar próprio

As numerosas cartas e outras mensagens que recebemos, a propósito do número anterior de “ROTEIROS”, foram amelhor recompensa para o trabalho de relançar uma revista que

se pretendia que, simultaneamente, apresentasse características novas e guardasse os traços fundamentais do anterior Boletim!Neste número, além da inclusão de comunicações feitas pelos oradoresnos debates que mensalmente animam a nossa Sede, ROTEIROSinclui, também, um conjunto de artigos sobre a temática europeia,escritos por conceituados especialistas na matéria. Pretendemos, assim,associar-nos à reflexão sobre a Europa, que umas eleições para o Parlamento Europeu devem provocar!No capítulo das recensões apresentamos alguns nomes que, doravante,passarão a colaborar regularmente com o Instituto D. João de Castro.Com mais de 1200 exemplares distribuídos através de um “mailing” exi-gente e criterioso, “ROTEIROS” tem, a partir de agora, um lugar própriono conjunto das publicações que se dedicam à Reflexão Política e à temáti-ca da Cultura em Portugal.Ainda neste ano de 2004, procuraremos fazer sair a publicação referente ao Curso “Presença Portuguesa no Oriente” e um novo númeroda Revista, a sair no Outono, dedicado aos problemas do multilateralismo.É nossa intenção aumentar a circulação da Revista. Muitos pedidos nostêm chegado nesse sentido. Tal só será possível, mantendo o caráctergratuito da mesma, se as empresas a quem fizemos um apelo paraconnosco colaborarem, nos derem o necessário suporte publicitário.O Instituto pensa poder cumprir estas metas e agradece o apoio quenos têm transmitido.+

Miguel Anacoreta Correia

Luis Filip

e Cun

ha

Ensaio

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Nicolas Machiavel: a Ciência Política

Adriano Moreira*

Nicolas Machiavel, que nasceu em Florença em 1469 e morreu em 1527, escreveu na última página da suaArte da Guerra (L’Art de la Guerre, Berger - Levrault, Paris,

1980), estas palavras que fecham um discurso de esperançasobre o futuro de Florença: “quanto a mim, queixo-me do des-tino que me recusou o conhecimento destas importantes máxi-mas, ou dar-me os meios de as praticar... a nossa pátria parecedestinada a fazer reviver a antiguidade... Não posso conceberpara mim essa esperança, estando já no declínio da idade... masse a fortuna me tivesse dado um Estado suficientemente pode-roso... tê-lo-ia elevado a um alto grau de esplendor, ou teriapelo menos sucumbido gloriosamente”.Esta declaração não impediu que o seu nome ficasse para sem-pre ligado aos juízos condenatórios da amoralidade do poder,tudo porque se dedicou, com liberdade renascentista, à obser-vação científica da luta pela aquisição, manutenção, e exercíciodo poder, que viria a ser o núcleo central da ciência políticaque autonomizava. Sem necessidade de largas indagações, talvezpossa compreender-se a novidade da perspectiva, e a fixação dopejorativo sentido do adjectivo - maquiavélico, recordando queum dos seus escritos, depois de em 1502 ter praticado comCésar Borgia, Duque Valentino, quando este lutava para conso-lidar os Estados do seu pai Papa Alexandre VI, foi sobre - Méto-

do adoptado pelo Duque Valentino para assassinar Vitellozo Viteli.

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Estes factos políticos, na tormentosa Itália do seu tempo, veri-ficaram-se quando a aventura das grandes descobertas marítimas,das quais o Infante D. Henrique (1394-1460) fora o inspira-dor, alterou definitivamente a percepção europeia do mundo,e exigiu a reformulação do aparelho político para responder àsexigências novas e sem precedente. Durante a sua vida, Bartolomeu Dias dobrou o Cabo da Boa-Esperança (1485), Vasco da Gama chega à Índia (1498),Colombo tocou São Salvador nas Bahamas (1492), Magalhãescomandou a demonstração da esfericidade da terra (1521-1522), o Novo Mundo foi submetido por Cortez (1519-1521), e também Pizarro (1531-1533). A economia europeia inicia então a globalização que hoje nosinquieta, a frente atlântica europeia ganha um predomínio quedetermina o declínio dos portos mediterrânicos, as reservas deouro crescem expressivamente, e porque os peninsulares é sobretudo no exterior que se abastecem, o ouro de Sevilha e as especiarias de Lisboa, enriquecem a Europa.A redefinição do Estado, para enfrentar esta mudança, dá ori-gem ao novo facto da soberania, poder sem igual internamente e sem superior externamente, um poder que agora, completadaa globalização, parece tender para a submissão ao processoinverso de adoptar as cooperações em grandes espaços, ou a transferência de capacidades para redes emergentes, comoacontece na Europa.Entre nós, explica João de Barros no Capítulo Primeiro do LivroSexto da Primeira Década, como El-Rei Dom Manuel, depois quePedro Álvares Cabral veio da Índia, por razão deste descobri-mento e conquista dele, tomou o título que ora tem a Coroadeste reino de Portugal, e razão e causas dele. A principal notaé que “...os reis, como não têm superior de quem possam rece-ber algum novo e ilustre nome para a campa da sua sepultura...lançam mão...de feitos excelentes que lhe podem dar títulos”.Este exemplo pode ajudar-nos a compreender porque é que

Ensaio

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O Príncipe é a peça fundamental da verdadeira pirâmide consti-tuída pela Triologia de que se compõe a sua obra: O Príncipe, A

Arte da Guerra, e o Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio.Talvez seja útil avaliar em que medida o ambiente dos príncipes da combinazione, de que os Médicis eram caso de estudo, limitou a perspectiva do autor, não lhe dando oportunidade de apreen-der e avaliar o facto de estarem em formação as potências queviriam a definir a ordem internacional dos Estados, para res-ponder à globalização dinamizada pela assumida maritimidade.Trata-se de uma circunstância que sublinha a qualidade cientí-fica da pirâmide organizada pela Triologia, porque sobreviveuà mudança sucessiva dos paradigmas da ordem mundial.Por outro lado, conviria lembrar que tendo vivido na época emque a Renascença atingiu na Itália o maior esplendor, esseambiente político de pequenos principados não impediu, e dealguma maneira propiciou, a coexistência de artistas comoLeonardo da Vinci, Miguel Ângelo, Rafael, de Papas como Ale-xandre VI e pregadores de futuros como foi o padre florentinoSavonarola, filósofos como Picco della Mirandola ou GiordanoBruno, ao lado de príncipes que ao contrário do que se passa-va com D. Manuel I de Portugal, ou Francisco I de França, ouos Reis Católicos ou Carlos V, estavam longe do globalismo quese iniciava e com a duvidosa fidelidade a uma escala de valorespraticada por Lourenço de Médicis e do filho de “coito dana-do” que era César Borgia.Embora tivesse colhido alguns sucessos na sua carreira diplo-mática com a rendição de Pisa, e fosse conhecido como “Secre-tário Florentino”, assumindo a proeminência no “Conselhodos 10”, e o estatuto de grande servidor do Estado, nunca teveo exercício do poder, foi antes um observador da política naforma perene da luta pelo poder.A mediocridade dos procedimentos, a falta de programação e de racionalidade, os conflitos armados sucessivos, a destrui-ção, as brutalidades contra as populações, impuseram-lhe tal-

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vez a frieza científica com que observa essa gélida criatura que é o poder em acção. Foi pessoalmente experiente desse desem-penho, quando a restauração dos Médicis em 1512 o afastoucomo servidor que fora de Piero Soderini, o prendeu, tortu-rou, e finalmente o exilou.Nesse longo afastamento convive com os clássicos, Tito Lívio,Aristóteles, Políbio, e escreve racionalizando a longa experiên-cia e memória dela. A breve chamada ao serviço público peloPapa Clemente VII, para dar aplicação à sua Arte da Guerra, nãofoi inutilizada pelo saque de Roma pelas tropas de Carlos V,vindo a morrer em 20 de Junho de 1527.De tudo ficou portanto o legado da experiência, e a sua racio-nalização em termos de ficar como o fundador da ciência política,tendo esta como núcleo duro e identificador a luta pela aquisição, manutenção

e exercício do poder.

A guerra é a subida aos extremos dessa luta, e por isso talvezdeva considerar-se A Arte da Guerra como a pedra angular da teo-ria. Escreveu que “tudo o que respeita à arte da guerra foi sempre a minhaprincipal ocupação”.Como defendeu Georges Buis (1978), “Machiavel compreen-deu perfeitamente que a estratégia global é a síntese de estraté-gias gerais: militar, financeira, económica, diplomática, cien-tífica, etc. Por isso assenta a estratégia global de O Príncipe, sobrea estratégia geral que é A Arte da Guerra, e sobre a estratégia diplo-mática e governamental que são os Discursos”. Entre as traves mestras do seu pensamento está a consideraçãode que sem boas armas não existem boas leis, e por isso dá espe-cial atenção às boas armas, pelo que, afirma, “um Príncipe nãodeve ter outra ocupação nem outro pensar, nem tomar a peitooutra matéria que não seja o facto da guerra e a organização dadisciplina militar”.Naturalmente não era possível ignorar a importância da nego-ciação, da estratégia diplomática, da arte da composição, queexerce e documenta com o seu Relatório sobre a França escrito

Ensaio

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depois de três missões àquela corte, ou com o seu Relatório sobrea Alemanha no qual documenta a sua missão junto do ImperadorMaximiliano, iluminado pelo estudo da história.Finalmente, a definição da liderança em O Príncipe, publicado jádepois da sua morte, livro que organiza todo o saber que lega a respeito da condução do Estado, síntese de uma estratégiaglobal, e que será a sua consagração.Tentemos organizar o conjunto das principais interrogaçõesque o livro suscita, e que estiveram presentes na decisão de oincluir no volume 23 da famosa série - Great Books of the WesternWorlds, publicado com o apoio editorial das Faculdades da Uni-versidade de Chicago, em 1952.Começando pela importância cimeira da estratégia a primeiraquestão é a da importância que atribui aos exércitos constituí-dos pela milícia dos cidadãos, e não pelos mercenários. A suarotunda afirmação é que “mercenários, auxiliares, ou tropasmistas, são inúteis e perigosas”. De facto é a defesa do quehaveriam de ser chamados os exércitos nacionais, a nação em armasda Revolução Francesa, a mudança radical que Goethe anotouna batalha de Valmy ao verificar que os exércitos já não comba-tiam gritando, Viva o Rei, mas sim gritando, Viva a França.Depois do desastre que foi a Segunda Guerra Mundial, e ven-cido o período da guerra fria, esta questão volta à ordem do diacom o discurso sobre o fim do serviço militar obrigatório, a crise do Estado soberano, e o regresso do modelo das socie-dades cosmopolitas e multiculturais.A segunda pergunta, relacionada ainda com a segurança, é a desaber se a neutralidade é conveniente aos príncipes, sobretudohavendo guerra entre Estados vizinhos. A resposta é que a neu-tralidade desacredita o Príncipe, porque “o vencedor não queramigos duvidosos que não o ajudam em tempos de combate; e o que perde não o respeitará porque não quis, com decisão, a espada na mão e correr os seus riscos”.A questão da fidelidade dos povos em relação ao Príncipe,

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é mais discutida em função da manutenção do poder do que dalegitimidade da obtenção do mesmo. E a regra é que o amordepende dos súbditos, mas impôr o receio depende do Prínci-pe. Escreve: “existem duas maneiras de combater, uma pela lei,a outra pela força; o primeiro método é próprio dos homens,o segundo das feras; mas porque o primeiro frequentementenão é suficiente, é necessário recorrer ao segundo. Um prínci-pe, por isso, sendo obrigado conscientemente a adoptar a fera,deve escolher entre a raposa e o leão...”.Esta questão conduz directamente à debatida avaliação moral deO Príncipe, em vista dos conselhos propostos para a conquista e conservação do poder. Tem sido notado que Aristóteles, noCapítulo 11 da sua Política, já considerava apropriado, para umtratado da matéria, analisar os meios que uma tirania usa parase manter no poder, e a via mais desenvolvida é claramentemaquiavélica. Talvez a síntese do nosso autor esteja nesta passa-gem do Capítulo XVIII intitulado - Da maneira de os príncipes man-terem a palavra dada: “por isso é desnecessário que um príncipetenha todas as boas qualidades que enunciei, mas é muitonecessário parecer que as tem. E acrescentarei ainda que tê-lase observá-las sempre é prejudicial, e que parecer tê-las é útil”.Acrescenta ainda: “Tendes de compreender isto, que um prín-cipe, especialmente um novo príncipe, não pode respeitartodas as coisas pelas quais os homens são estimados, sendo porvezes forçado, com vista à manutenção do Estado, a agir violan-do a confiança, a amizade, a humanidade e a religião”.Deve ainda ser imune a toda a lisonja, porque (Capítulo XXIII) “os homens são tão complacentes em relação às suas acções, e decerto modo tão insatisfeitos com elas, que se defendem comdificuldade desta peste... porque não existe outra maneira de sedefender da lisonja excepto fazendo compreender que dizer-lhe a verdade não o ofende, mas quando todos vos dizem a ver-dade, o respeito por vós diminui”.Uma das questões suscitadas por esta perspectiva de relacionar

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o poder com os seus objectivos, é a de saber como se diferenciados grandes mestres clássicos, designadamente de Aristóteles e Platão, igualmente presentes nas inquietações contemporâneas.Que o realismo não está ausente daqueles autores comprova-sepor exemplo no Livro V da Política do primeiro, onde aconselha osdéspotas sobre os métodos destinados a manter o poder, temaque elabora consistentemente no Capítulo XI, de um ponto devista friamente científico: morte aos homens de espírito,espionagem, dividir para reinar, desconfiar dos apoiantes, semdescurar desenvolver uma imagem que inspire louvor da partedos cidadãos.Também Platão, no Livro II da República, coloca na boca de Glau-con palavras de pouca esperança no destino dos governantesjustos, mas é pessoalmente que assume o uso da mentira real,uma senda incoerente para que deste modo os cidadãos se man-tenham felizes com as circunstâncias do governo.Todavia, se existe alguma coincidência no reconhecimento dosfactos da política, é diferente a posição no que respeita aosobjectivos considerados justos. Enquanto que Platão se afadigana busca da justiça e do Estado que a realize, e Aristóteles deduza Política da Ética que também escreveu, vinculando a constituiçãodo Estado à salvação dos homens, o Príncipe de Machiavel temcomo objectivo o triunfo, sem cuidar da origem e necessidadedo Estado, da valoração dos meios alternativos ao dispor dogovernante, dos critérios de fixação dos deveres do poder.É discutido se o último capítulo - Exortação para libertar a Itália dosBárbaros - não vem finalmente vincular o panfleto que é o Prín-cipe a um objectivo ético, visto que o patriotismo ilumina o dis-curso, ficando porém a dúvida de saber se considera esta guer-ra justa porque é necessária, ou se a guerra necessária é semprejusta. A sentença que se destaca é a seguinte: “o fundamentoessencial de qualquer Estado... são boas leis e boas armas; e porque não podem existir boas leis onde o Estado não estábem armado, sugere-se que onde estiver bem armado existirão

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boas leis”. Finalmente, discutindo o papel da Fortuna no des-tino dos homens, conclui: “ainda assim, para eliminar o livrearbítrio, admito ser verdade que a Fortuna é o árbitro de meta-de das nossas acções, mas deixa-nos o poder de pilotar a outrametade, ou talvez um pouco menos”.É difícil concluir que a obra de Machiavel - especialmente O Príncipe - é uma das que mudaram o destino do mundo. Sugi-ro que nos orientou no sentido de compreender, cientifica-mente, uma actividade inseparável da vida em sociedade, que é a luta pela aquisição, manutenção, e exercício do poder político.Deste modo identificou o núcleo duro da ciência política,independentemente da variação das formas de governo, e da suarelação com a sociedade, eticamente plural, ou culturalmentehomogénea, cosmopolita ou fundamentalista, territorial ouglobalizante, progressiva ou reaccionária.O século passado multiplicou os exemplos dos Estados alheiosàs escalas de valores humanos, os totalitarismos de vários sinais,como o sovietismo, o nazismo, o maoísmo, o fascismo, comuma terrível sementeira de crimes contra a Humanidade, e umaordem mundial baseada no medo recíproco das superpotências,com o holocausto no horizonte.A tentativa mais conseguida de estabelecer a paz pelo Direito,que foi a Carta da ONU, recebeu dois legados que fazem partedo património ocidental, o legado humanista com sede na Assem-bleia Geral, e o legado maquiavélico com sede no Conselho deSegurança. Pretender que coexistam harmoniosamente temmuito de utópico, mas também de irrenunciável para que nãodesapareça a luz ao fundo do túnel, sustentada pela longa teoriados Projectistas da Paz.Entrámos no terceiro milénio com essa dialéctica entre os dois legadosexpressa na ambiguidade da situação do Tribunal Penal Internacional,que democracias fundamentais hesitam em reconhecer porquenenhum poder está seguro de não ser obrigado a adoptar, entre o justoe o injusto, a flexibilidade da “ mentira real”. O Iraque está a servir de

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exemplo, de caso de estudo, e de advertência. E também apontandopara reler Machiavel.O unilateralismo dos EUA, a crise de credibilidade que rodeia a inter-venção, a invocação dos grandes princípios democráticos e o recurso àsboas armas, a recusa da jurisdição penal internacional e o embaraçoquanto ao tratamento dos prisioneiros, tudo confere actualidade aoPríncipe, à mentira real, ao conflito entre o legado humanista e o legadomaquiavélico, desafiando os príncipes que nos governam a meditar sobrea neutralidade e a aliança, a escolher entre a justiça e o êxito, entre a razão de Estado e a autenticidade. A tentar manter e exercer o poder,pilotando a liberdade que a Fortuna desdenha, num ambiente de per-plexidade geral e incerteza absoluta sobre a paz.+* Conferência proferida no Auditório da Câmara Municipal de Oeiras, em 18 de Janeiro de 2004

Ensaio

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Que Europa? De encruzilhada em encruzilhada

MARIA EDUARDA AZEVEDO*

Àbeira do novo século, o cenário geoestratégico europeumudou radicalmente com o colapso da Cortina deFerro. O fim do mundo bipolar assente em duas super-

potências, dois sistemas político-ideológicos antagónicos, duasalianças militares, duas Europas e duas Alemanhas deixou deenformar o mapa geopolítico do pós-guerra e abriu o caminhoà reunificação europeia, que passou a constituir um desafiohistórico inevitável e irrecusável.Desde 1989, a adesão colectiva e sem precedentes dos novoscandidatos emergentes do Centro e Leste europeu prefigurou-se como uma das maiores apostas políticas da construção euro-peia, o grande desígnio político da União no início do séculoXXI.O binómio alargamento-aprofundamento voltou a marcar pre-sença na agenda política europeia, na certeza de que se tratanão só de um teste decisivo à dinâmica comunitária e à efectivavitalidade do projecto europeu, mas também de uma molaimpulsionadora da real vontade política e do fidedigno empe-nhamento dos Estados membros para novos níveis da integra-ção.Associando o mercado único às dimensões territorial e demo-

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gráfica decorrentes das novas adesões, a União passa, indiscuti-velmente, a constituir um grande mercado alargado. Mas, seráque a União pretendia ir mais longe?Em face de uma União que usou cláusulas de "opt-out" emSchengen e na adesão ao Euro, admitindo modelos e ritmosdiferenciados de integração, e quase só aceita instrumentos deintegração política na vertente monetária, tornou-se pertinen-te reflectir sobre o futuro e indagar o que pretendem os cida-dãos europeus para a Nova Europa.Uma potência económica num mundo globalizado, apenascapaz de dar resposta aos objectivos enunciados nos Tratados deRoma a Maastricht?Uma potência que assume as suas responsabilidades na gestãoda globalização, a que pretende conferir uma dimensão ética,luta contra todas as formas de violência, terror e fanatismo e deseja também afirmar-se politicamente na cena e governaçãomundiais?Não restam dúvidas de que a imagem de uma Europa democrá-tica e protagonista a nível mundial corresponde plenamente à vontade e aos anseios da maioria dos povos europeus.Dos cidadãos europeus que apoiam a ambição expressa pelaUnião de desempenhar um papel mais importante nos domí-nios da justiça e da segurança, da luta contra a criminalidadeorganizada transfronteiriça, do controlo dos fluxos migrató-rios, do acolhimento dos requerentes de asilo.Dos cidadãos que querem igualmente resultados nas áreas doemprego e da luta contra a pobreza e a exclusão social e, bemassim, no domínio da coesão económica e social. Dos cidadãosque reclamam ainda uma abordagem comum nas áreas doambiente e do desenvolvimento sustentável.Mas trata-se, também, de cidadãos que acalentam expectativasem relação à União Europeia e que esta por vezes defrauda.Que consideram a intervenção da União demasiado alargada e excessivamente burocrática. Que sentem as decisões comuni-

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tárias longe do quotidiano, pouco transparentes e pouco com-preensíveis.Neste contexto, uma ambição europeia orientada para umaintegração política mais consistente carece de reflexão e dedebate.Hoje, a Comunidade vive um período crucial e encontra-semais uma vez numa encruzilhada, embora seja comumentementeaceite ser chegado o momento de assumir com clareza o papel que a União deve desempenhar no xadrez político mundial.Neste contexto, a União Europeia não podia pretender progredirpara novos e mais exigentes patamares da integração sob a ameaça dedesfechos inconclusivos como nas últimas Conferências Intergover-namentais do século XX. Foram experiências que afectaram a imagemda Europa enquanto União e parceiro internacional credível tantoaos olhos do mundo, como, em particular, perante os próprioscidadãos europeus.Por isso, a aposta na Convenção Europeia, enquanto modelo maisdemocrático e, sobretudo, mais participado, susceptível de dar vozàs opiniões públicas nacionais e ao sentir dos povos europeus.Modelo manifestamente mais transparente e inteligível por contra-posição às tradicionais reserva e opacidade das negociações diplomáticas.Com um consenso "à Giscard" encerraram-se os trabalhos da Con-venção, ficando em palco a Conferência Intergovernamental de quese esperava a curto trecho a aprovação do projecto de Tratado Cons-titucional. Em Dezembro, ao manifesto e irrecuperável deslize docalendário, sucederam-se as fricções nacionais e a incerteza quantoao acordo e ao próprio conteúdo do texto final.Hoje, alimentam-se as especulações quanto aos bons ofícios dapresidência irlandesa - num complexo período de eleições emvários Estados membros e para o Parlamento Europeu - e, porven-tura, da presidência holandesa que tomará o leme a partir de Julho.E a encruzilhada teimará em manter-se?+* Deputada à Assembleia da República

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Uma nova EuropaUm novo tempo

GUILHERME D’ OLIVEIRA MARTINS*

OCentro Europeu de Cultura de Genebra homenageou,com toda a justiça, em Lisboa, a memória de Denis deRougemont. É importante que se volte a ouvir esse

visionário da construção europeia, que está nos antípodas demuitos dos que continuam a olhar o nosso velho continentecomo fosse apenas um clube de Estados incapazes de renunciaraos seus egoísmos nacionais. Rougemont dizia: “A Europa nãoé para nós, federalistas, um campo de batalha onde se trate devencer ou morrer, nem um império a edificar como uma gran-de fortaleza. É um meio de compor de tal maneira que os espí-ritos e os corpos possam desenvolver-se nele tão livrementecomo imaginam. (…) Se me disserem agora que não passa deutopia querer ultrapassar o Estado-nação, respondo que setrata, ao contrário, da grande tarefa política do nosso tempo…Na verdade, só a este preço faremos a Europa e fá-la-emos paratoda a Humanidade, pois devemos-lhe isso” (Carta Aberta aosEuropeus).Entrámos num novo paradigma na vida da Europa. Depois deem 1945 os europeus terem sido chamados a reconstruir umcontinente dizimado pela guerra e pelo totalitarismo – e deentão se ter iniciado um caminho duro e incerto de divisão e deconfronto, com a Europa dividida pela guerra-fria – chegámosagora à consumação da mudança de circunstâncias ocorrida em1989. Depois da queda do muro de Berlim, os europeus passa-

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ram a ser responsáveis por todo o velho continente. Alarga-mento e aprofundamento deixaram de ser termos de umaalternativa, para passarem a ser pólos complementares deuma mesma estratégia. A União Europeia muda de natureza e poucos o compreendem plenamente. Já não estamos peran-te uma União económica homogénea. Estamos diante de umaentidade supranacional com características pioneiras, quedeve ser caracterizada como uma União de Estados e Povoslivres e soberanos. A União passou a ter vinte e cinco mem-bros, com economias heterogéneas, com graus diferentes decompromisso, mas possuindo interesses e valores comuns.Muito se tem discutido sobre se Jean Monnet apadrinhariaeste projecto. Se lermos o que escreveu, temos de considerarque o pai fundador da Comunidade Europeia teria desejadochegar – em nome de um projecto de paz e de segurança, dedesenvolvimento e de diversidade cultural. No entanto,ainda estaria insatisfeito e preocupado – uma vez que veriafaltarem as instituições adequadas, capazes de harmonizar a democracia e a eficiência. Daí que seja muito importante a possibilidade de a Presidência irlandesa obter um resulta-do positivo no Conselho Europeu de Junho próximo – demodo a que possamos ter um tratado constitucional, baseadonuma vontade comum e numa sábia ligação entre as sobera-nias nacionais e a soberania europeia.Há, no entanto, nuvens ameaçadoras no horizonte. A posi-ção britânica é ambígua. A posição frágil de Tony Blairperante a opinião pública britânica dificultará a criação, tãonecessária, de uma “Entente Cordiale”, como defendemosrecentemente. E o certo é que a União Europeia apenaspoderá ser sólida se envolver uma solidariedade clara entre astrês componentes do continente: a atlântica, a da EuropaCentral (Mitteleuropa) e a do Mediterrâneo. E enganam-seaqueles que julgam que o directório europeu se irá constituirse o tratado constitucional avançar, tal como está delineado.

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O directório europeu constituir-se-á se não houver tratadoconstitucional - e terá a configuração que as circunstânciasditarem, numa lógica de geometria variável, com várias velo-cidades, com pouca solidariedade e com cada vez menos coe-são… Esse caminho pode acontecer. E se dúvidas houversobre os riscos, basta recordarmos as divisões a propósito dacrise do Médio Oriente (como antes sobre os Balcãs) paraentendermos qual a tendência natural da fragmentação. Nãose pense, pois, que o tratado constitucional resolve os prin-cipais problemas europeus. Não resolve. Trata-se, sim, deuma boa base de trabalho, desde que lance os fundamentosde mais Europa política, de mais método comunitário, demais solidariedade e coesão. Mas ainda se exige mais governoeconómico, mais coordenação das políticas de investimento ede emprego e maior empenhamento na Estratégia de Lisboa.A revisão constitucional portuguesa acaba de preparar (comprudência e espírito de autonomia) a nossa ordem jurídicapara uma nova fase da vida constitucional europeia. Trata-sede lidar com uma Constituição europeia de tipo novo, nãoconfundível com as Constituições nacionais, que prevalecesobre estas apenas no tocante às competências da UniãoEuropeia. A nova Constituição Europeia não resulta de umpoder constituinte correspondente a uma ideia de naçãoeuropeia. É um tratado constitucional que consagra a com-plementaridade entre uma soberania europeia, livrementecompartilhada pelos Estados e pelos cidadãos, e as soberaniasnacionais. Adopta a limitação dos poderes comunitários,segundo os princípios da subsidiariedade e da proporciona-lidade. Concretiza um quadro jurídico fundamental, centra-do na Carta Europeia de Direitos Fundamentais, na defini-ção das competências da União e partilhadas entre esta e osEstados e na definição do perfil das instituições comunitá-rias e dos respectivos poderes. Não se trata, assim, de nossubmetermos a algo que não sabemos o que venha a ser, mas

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de consagrar, sem sombra para dúvidas, uma ordem constitu-cional europeia que já existe e que terá de ter no futuro umaimportância acrescida. Entrámos num novo paradigma na vidada Europa, que obriga a maior exigência e a maior audácia,num caminho cheio de incertezas e de escolhos.+*Deputado à Assembleia da República

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A Europa no momento actual

JOAQUIM MIRANDA*

1.

Arealização de eleições para o Parlamento Europeu, emJunho próximo, e a possibilidade real de os governos dosvinte e cinco chegarem a acordo, na mesma altura, sobre

a futura “constituição europeia” constituem elementos de particu-lar relevância e que exigem reflexão especialmente cuidada nomomento actual. Até porque se é óbvio que a União Europeia, nos seus contornos e competências actuais, pouco se assemelha às Comunidades paraque Portugal entrou em 1986 – tal o salto qualitativo entretantodado, especialmente com o Acto Único, com Maastricht e com ossucessivos alargamentos –, não é menos evidente que a União Euro-peia de amanhã será sensivelmente diferente da actual, mesmo senão é ainda claro o perfil que ela assumirá a partir do novo alarga-mento e da nova arquitectura institucional decorrente das previstasalterações aos Tratados.Neste contexto e tendo em conta a enorme incidência das decisõescomunitárias na nossa vida colectiva, a participação activa dos cida-dãos no debate das questões europeias apresenta-se como questãocentral. De tal forma que, uma vez firmado um consenso intergo-vernamental sobre matéria institucional, nos parece inevitável a realização de um referendo em que aspectos fulcrais como a efectivaigualdade entre os Estados – especialmente com a previsível supres-são da rotatividade das presidências –, a representação e o respectivo

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peso relativo nas diferentes instituições – nomeadamente numaComissão com competências exclusivas em matéria de iniciativa legis-lativa –, a ponderação dos votos no Conselho e, em geral, o processo de formação de maiorias, ou o equilíbrio interinstitucio-nal prevalecente, não poderão deixar de ser decisivos na posição polí-tica a adoptar, em definitivo.

2.

Importará ter presente, entretanto e sem prejuízo da importância das questões institucionais – até pelo que elas implicam nos processos de exercício do poder – que outros domínios são igualmente me-recedores de atenção, até pela relevância que têm assumido e continuarão certamente a assumir no processo de construção europeia. É o caso do modelo económico e social a adoptar pela União Euro-peia no futuro. Aliás, a maior ou menor mobilização dos cidadãos relativamente aoprocesso de integração depende e dependerá em larga medida dasorientações e medidas que vão sendo e vierem a ser adoptadas nessedomínio, até pelas incidências directas e crescentes que delas resul-tam para o respectivo quotidiano. A transparência, o controlo democrático e a garantia de ampla e profícua participação nos processos de decisão; a prioridade à convergência real das economias, ao progresso social e ao empre-go com direitos e o simultâneo abandono de actuais orientaçõesliberalizadoras e monetaristas, nomeadamente assentes num cum-primento aberrante e irracional do PEC; a assunção, o respeito peloconceito e uma efectiva implementação de serviços públicos; a mobilização de recursos orçamentais correspondentes às ambiçõesque se preconizam e uma adequada e solidária afectação dos mesmos;tais são alguns dos elementos que julgamos essenciais para o êxito futuro da União Europeia, nos planos económico e social.Ao que deverá acrescer uma nova perspectiva no contexto das relaçõeseconómicas internacionais: menos determinada por uma competi-

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ção acéfala com os Estados Unidos pelo domínio do comércio mundiale menos empenhada nas orientações neo-liberais da OMC (quandoo fracasso não acontece, como em Seattle ou Cancun) e mais res-peitadora das decisões de sucessivas conferências das Nações Unidasnomeadamente sobre comércio e desenvolvimento. Uma tal perspectiva, mais empenhadamente solidária, constituirianão só um elemento de afirmação e de distinção da Europa no planointernacional como poderia constituir-se como factor decisivo parauma nova ordem económica mundial, indispensável e urgente nosdias que correm.

3.

É, porém, ao nível da política externa e de segurança que são espe-cialmente evidentes as dificuldades actuais da União Europeia; e é neste âmbito que se apresentam mais complexos e imprevisíveisos caminhos que a UE trilhará no futuro. A crise em torno da intervenção no Iraque apenas veio confirmar o que já era patente: não só não existe um projecto de consensocomo há, assumidamente e neste terreno, projectos diferentes oumesmo antagónicos no seio da União Europeia. Sendo certo que a ausência de uma perspectiva clara neste domínio e, especialmen-te, a incapacidade de afirmação duma vontade de emancipação e deautonomia são e serão factores de inferiorização dum projecto quese pretende afirmar como global e determinante no plano interna-cional. O qual se afiguraria especialmente importante num momento mar-cado pela deriva autoritária e intervencionista da administraçãoBush, para a qual se apresenta indispensável uma alternativa – quenão se constitua num novo bloco político-militar - e especialmentealicerçada no respeito pelas Nações Unidas, pelo multilateralismo e pelo direito internacional.+* Economista e deputado ao Parlamento Europeu

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As lições do 11 de Março

PAULO CASACA*

1. Segurança

Asedução pela cabalística é um dos traços mais constantes nasseitas fanáticas que ao longo dos tempos se têm especializadoem trazer a guerra, a morte e a destruição. Esse preciosismo

cabalístico deixou as suas marcas nos trinta meses exactos passadosentre a grande matança de Nova Iorque e a primeira matança emlarga escala em território da União Europeia. Com o 11 de Março desapareceu a ilusão de que estaríamos perantealgo que teria apenas a ver com os nossos vizinhos da outra margemdo Atlântico, embora tenha ficado a não menos perigosa ilusão deque se pode contornar, domesticar e conviver com esta acção extre-ma do fanatismo islâmico. Como foi salientado logo de imediato pelo responsável máximo daComissão Europeia pela Justiça e Segurança Interna, torna-seurgente integrar e racionalizar os meios de defesa perante estaameaça que é tanto interna como externa. A esse propósito, há naturalmente que dar a máxima atenção à preservação de mecanismos independentes de controlo que per-mitam evitar a erosão do nosso sistema de liberdades e garantias,mas não me parece legítimo utilizar sistematicamente esse argu-mento de forma assimétrica para justificar o que nem sempre é justificável. Não é compreensível, por exemplo, que a legislação europeiaimponha a destruição automática de ficheiros de telefonemas

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efectuados, quando em Portugal se vulgarizaram escutas telefóni-cas e o seu uso em violação da privacidade do cidadão. Tão pouco é compreensível que a legislação europeia em matéria deterrorismo seja tão escandalosamente aberta ao arbítrio e que a União Europeia pretenda ser restritiva em matéria de utilização deficheiros de companhias aéreas sobre passageiros. Em qualquer caso, como os acontecimentos de 11 de Setembrodemonstraram, em termos de sistema de informação, o essencial é ser-se competente e saber-se o que se quer.

2. Civilização, cultura e compreensão

O desafio colocado pelos fanatismos, e em especial pela vaga defanatismos islâmicos desencadeada a partir da chamada revoluçãoislâmica iraniana, não pode ser reduzido a uma questão de seguran-ça, nem tão pouco a uma questão de terrorismo, que me parece deresto um conceito equívoco e incapaz de tipificar o problema comque estamos confrontados. Não é possível exorcizar uma religião, um grupo étnico, uma cultura ouuma civilização - mais a mais com o âmbito e a escala dados pela religiãoislâmica - sem negar os princípios e os valores da sociedade aberta tole-rante e democrática, ou seja, não é possível utilizar esse remédio sem tera certeza de que se mata em vez de se curar o doente. Acresce a este facto que o Islão não tem o monopólio do fanatismo,que não é sequer um fenómeno exclusivamente religioso, pelo queassumir um "conflito de civilizações" poderia vir a revelar-se como umaforma de fomentar e não de combater o fanatismo. Se olharmos para o Irão - primeiro país que soçobrou à vaga contem-porânea de fanatismo - facilmente poderemos observar que foram e sãoos cidadãos iranianos os que se opuseram e se opõem de forma maisempenhada a esse fanatismo, e que são as potências ocidentais querapidamente embarcaram numa "real-politik" de compromisso e apaziguamento do regime (incluindo o perdão a inúmeros ataquesterroristas em solo europeu).

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Quer isto dizer que é nas sociedades islâmicas que poderemosencontrar os melhores aliados para esta batalha. Para que essa aliançafuncione eficazmente torna-se necessária muita compreensão e entendimento por civilizações e culturas diferentes das nossas emvários pontos, mas que comungam connosco de muito do que é essencial.

3. Uma estratégia diplomática global

Diz-se frequentemente, para justificar a não ligação do fenómenodo combate ao fanatismo a toda uma política de desenvolvimento,que os principais líderes do fanatismo islâmico são por normaoriundos das camadas mais privilegiadas das suas sociedades de ori-gem. Trata-se de um argumento não só redundante (em regra, os líderescomunistas não foram proletários, foram oriundos das classes abas-tadas) mas também que não consegue apreender o essencial: o problemanão são os líderes fanáticos, que se existissem isoladamentepoderiam ser tratados apenas como vulgares criminosos, mas é antes o impacto que a mensagem desses líderes tem em tão vastas camadasda população. Para combater o fanatismo, é também necessário ganhar a batalha daopinião pública nos países onde o fanatismo ataca directamente e ganhar como aliados os que se encontram no novo "terceiromundo" deste século, e isso implica - entre outras coisas - transfor-mações profundas na política de desenvolvimento do Ocidente, a começar também pela da União Europeia.+* Deputado ao Parlamento Europeu

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Na hora do alargamento

Miguel Anacoreta Correia*

1. Os Multidesafios da União Europeia

Ao escrever sobre este tema, na última semana de Abril, a minha leitura do momento político europeu é a de que os pon-tos principais da agenda nos próximos meses deverão ser os

seguintes:

a) Consolidação do Alargamento

É indispensável que o alargamento – que foi preparado de forma insufi-ciente e em algumas situações de modo confuso – resulte bem! Voltare-mos a este ponto.

b) Conclusão do Tratado Constitucional

No final do Conselho de Roma (Dezembro de 2003), pensou-se que a nova Constituição Europeia só estaria concluída no próximo ano(2005). Há, porém, sintomas muito fortes de que a Presidência Irlande-sa quer (e talvez consiga) “fechar o assunto” em Junho. Os acontecimen-tos dramáticos do 11 de Março em Madrid tornaram evidente que a Euro-pa precisa de ter “ a casa arrumada” para poder reagir, em quaisquer cir-cunstâncias, de forma ordenada e em tempo útil.Integrando mais 10 países em 1 de Maio, é essencial ter definidos osesquemas de decisão e de repartição do poder. Nesse contexto, é primor-dial encontrar resposta a algumas questões fundamentais tais como:

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Qual o papel da Comissão Europeia? Como e por quem é composta?Como vai ser a Política Externa da União? Como e com que maio-rias se tomam decisões?

O risco do “Directório” é real e os países mais pequenos inquietam-se.Não querem perder voz e poder em questões fundamentais. A História da Europa mostra que o “jogo” entre os países grandes daUnião não foi exemplar em matéria de estabilidade…A recente revisão da Constituição Portuguesa, concluída em 23 de Abril,permitiu compatibilizar a nossa Constituição com o Tratado Constitu-cional Europeu, ultrapassando dúvidas legítimas mas que, a meu ver,são, sobretudo, o resultado de uma visão de pendor académico que nãocoincide com as necessidades do processo de construção Europeia.

a) A Luta contra o Terrorismo

A luta contra o terrorismo é reconhecida como “a prioridade dasprioridades”. Nos últimos meses houve uma evolução no sentido dese considerar que, pelo menos, um certo grau de multilateralismo é indispensável. Tal facto resulta de ser crescente a convicção de quea luta contra o terrorismo tem de envolver todos os meios disponí-veis e de que é incontornável uma articulação entre OTAN, UNIÃOEUROPEIA e NAÇÕES UNIDAS. Como vai evoluir a Política Europeia e de Segurança e de Defesaneste contexto? A Europa descurou (ou evitou…) tratar da sua polí-tica de Defesa ao longo dos anos. As primeiras intervenções euro-peias no exterior, no quadro das acções de Petersberg, são positivas,mas vai ser preciso ir muito mais longe, se se quiser combater efi-cazmente o terrorismo.O desenvolvimento da PESD será, também, o quadro para a garantiado empenhamento dos quatro países neutralistas (Irlanda, Suécia,Finlândia e Áustria) que integram a União e dos que se seguem noquadro do alargamento: Chipre e Malta.

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b) Perspectivas financeiras

As perspectivas financeiras em discussão são uma outra questão fun-damental. É sabido que alguns dos “países contribuintes” (eles pró-prios com dificuldades financeiras veja-se o caso da Alemanha) que-rem diminuir o seu esforço financeiro. É obvio que essa situação vaiatrasar o processo de coesão que é um dos “brasões” da União e umamarca distintiva europeia, relativamente a outros processos de inte-gração (lembremo-nos do caso da NAFTA e do processo da integra-ção das Américas).

Para nós, Portugal, esta eventualidade é preocupante. Os fundosfazem-nos falta! Não os temos empregado da melhor forma, é certo,nem fizemos sempre as escolhas dos melhores projectos em termosde futuro! (Existe ainda, quem pense que, no futuro, será possívelaplicá-los da forma como o temos feito!...). Há muito a progredirem Portugal em matéria de critérios de sustentabilidade e de auste-ridade na utilização de fundos públicos concessionais. Em todo o caso, a discussão das perspectivas para os anos de 2006 a 2010 é um assunto a seguir muito de perto.

2. O Quarto e Maior Alargamento da UE

Quando, em 1950, Robert Schuman fez a declaração anunciandoque 6 Países colocavam sob controlo supranacional a produção docarvão e do aço para evitar novas guerras estava longe de supor que50 anos depois, após passar pela Comunidade e pela ComunidadeEconómica Europeia da Energia Atómica, aquele núcleo de países setransformaria numa União Política e Económica, unindo 25 países(e mais alguns, certamente, dentro de breves anos), com 450milhões de habitantes, e na maior economia do Planeta.

Com o actual alargamento não só é reforçada a Paz e a Segurança nonosso Continente, como se afirma uma vitória do Atlantismo e da

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Economia Livre. Com efeito, 8 dos novos países (todos os do recentealargamento, menos Chipre e Malta) há pouco mais de uma décadaintegravam o Pacto de Varsóvia e as suas economias eram “economiasde Estado”. Hoje, são, além do mais, membros da OTAN.O alargamento constitui um teste difícil para a Europa já que, emalguns destes países, persiste uma forte mentalidade estatista. Ape-sar do formidável esforço de adaptação que fizeram, nem sempre o “acervo comunitário” foi totalmente absorvido. Quem conhecemedianamente os corredores de Bruxelas dá-se conta da apreensãoque existe a este respeito.

Noutro plano, a UE passou a ter fronteiras com a Rússia. As longasdiscussões havidas a propósito do enclave de Kalinin demonstramcomo podem surgir surpresas com o impetuoso novo vizinho, face aosentimento, muito nacionalista, dos Estados bálticos e da Polónia.

Outros países que não “são fáceis” passam também agora a estar juntoàs fronteiras da União. A Ucrânia e a Bielorrúsia, são disso, exemplos.

Um grande teste vai ser, segundo muitos observadores, e tambémem minha opinião, o que se vai passar em Chipre. Há poucos dias,num referendo acerca da reunificação da Ilha, com participação elevada(88%), 76% dos cipriotas gregos disseram “não” à reunificação daIlha, segundo os termos propostos pela ONU, enquanto 65% doscipriotas turcos disseram “sim”.

E quem entrou na União foi a parte grega! Parece óbvio que teriasido preferível condicionar essa adesão à reunificação…

A Europa tem, pois, uma nova fronteira problemática (a que separaas duas Comunidades) e, pela primeira vez, tem no seu interior“capacetes azuis”, e um território em situação de “stand by”, numaespécie de limbo político. Penso que a solução se resolverá através deum novo referendo, provavelmente mais cedo do que o que se imagina,

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dada a firmeza da reacção europeia e a “clareza” dos sinais enviados:- Mais de 250 Milhões de Euros foram concedidos para ace-lerar o desenvolvimento do “sector” turco da Ilha;- Decidido o alívio de boicote a que a parte turca tem esta-do sujeita;- Nomeação de um representante da União para a parte Turca.

O que os cipriotas gregos não deverão poder supor, é que ficam coma “chave” do problema turco na mão. Ou seja, que a eventual futu-ra adesão da Turquia possa ser “vetada” por eles (por querelas his-tóricas ou por servirem de “mensageiros” dos países que, não que-rendo a adesão da Turquia, preferem não o declarar abertamente).

Todo o problema da Turquia é demasiado complexo e não necessi-ta de “catalisadores” de dificuldades. A Europa precisa de encarar defrente as suas relações com a Turquia e também com Marrocos (a nossa fronteira Sul) e, de uma forma geral, com a bacia mediter-rânica. Valerá a pena equacionar se não haverá alternativas à adesão(mutuamente mais vantajosas…).

Chipre será, pois, um teste à firmeza da União e pensamos que serápossível que esta pequena, mas antiga, questão não se venha trans-formar num “abcesso”.

3. Portugal e o Quarto Alargamento

Este alargamento pode ser olhado como um desafio ou como pre-texto de resignação.

A tendência em Portugal é para exageradamente sobrevalorizar asdificuldades. Não foi assim quando aderimos à Comunidade Eco-nómica Europeia? Não foi assim quando as fronteiras económicasse esbateram e passámos a viver em Mercado Único? Não foi assimcom o terceiro alargamento? Não foi assim a propósito do Euro?

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É certo que o alargamento se traduz em alguns grandes desafios!É evidente que a nossa parcela de poder é menor a 25 do que era a 15. Mas, em contrapartida, o poder que há a repartir é tambémmaior. É de prever, aliás, que a Europa se habituará a viver em regi-me de coligações e geometrias variáveis.

É quase certo – por enquanto é apenas “fortemente evidente” – que nosvão calhar menos ajudas quando forem decididas as perspectivas finan-ceiras. Diz, quem estudou a matéria, que receberemos menos 3 a 5%...Mas, isso, pode afinal não ser um grande problema. Não é, hoje, a nossabase muito diferente da de há 20 anos? A solidariedade não pode “ficarà porta” dos países de Leste… No fim de contas, e se escolhermos melhoras nossas prioridades e administrarmos os fundos com rigor e eficácia, oresultado final pode, até, ser muito mais favorável.

Há, é certo, o risco de deslocalização de actividades, porque a mão--de-obra é, no Leste, mais barata e bem qualificada. Mas não nos esque-çamos de que o maior factor de atractividade desses países são as refor-mas, designadamente fiscais, que fizeram a tempo.

Ora esse tipo de reformas estão ao nosso alcance. E são mesmo umquase factor de sobrevivência nacional! Não podemos continuar a adiá-las, nem a escamotear as causas das nossas dificuldades: o paístem de ser competitivo; temos que reforçar a nossa capacidade deexportação não só para os países clientes tradicionais mas também paraesses novos 10 países, com quem as nossas relações económicas sãomínimas, e para outros países e para outros espaços económicos.

O que é nos aconselhou, repetidamente e ao longo dos anos, a Comissão Europeia? Recordemo-lo:

- Que se promova maior envolvimento das empresas em acçõesde I a D e maior utilização de tecnologias de informação;

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- Que se melhore a eficácia das despesas com a educação (NB –não mais dinheiro…) e se combata o abandono escolar.- Que se aconselhe os parceiros sociais a assegurar moderaçãosalarial.

Saliento a preocupação pela redução do abandono escolar, que o país político, agora, parece ter descoberto. Somos (abaixo de nós estáapenas Malta) entre os 25, o país com menor percentagem (20%) decidadãos entre os 20 e os 65 anos que concluiu o ensino secundário...)Na maioria dos países a taxa supera os 70%!

Resolvermos as reformas estruturais, melhorarmos a educação, reduzin-do o abandono escolar, dando aos Jovens verdadeiras saídas profissionaise não fabricando frustrados candidatos a “doutores de qualquer coisa,mas doutores…”; recuperar o atraso em relação à “estratégia de Lisboa”;definir, de forma inovadora e pragmática, um novo quadro de relaçõesna CPLP, aproveitando a sua inserção geográfica e reforçando laços comÁfrica e América Latina; olhar de frente para Espanha, são desafios quedependem de nós e só de nós!!

Se não formos capazes de ter a audácia de vencer estes e outros desafios,preparemo-nos, pois a “resignação” rapidamente passa a “sentimento dederrota”.

Vêm aí umas eleições europeias. Se os candidatos forem capazes deexplicar que a Europa é mais que as arrelias da pesca, dos direitosalfandegários e das quotas leiteiras, e que o Quadro Comunitário deApoio não é a coisa mais importante do mundo, já será muito bom!Daríamos menos atenção a certo tipo de análises doentias.

A Europa é muito mais do que isso! É um espaço de solidariedade(é, por exemplo, quem mais ajuda os países menos desenvolvidos),de paz e de prosperidade para os seus cidadãos.E também de respeito pelos Direitos Humanos e pelos muitos com-

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promissos em que deve assentar uma globalização de onde a Ética nãose ausente. Por isso, assinámos o Protocolo de Quioto e defendemos a necessidade do Tribunal Penal Internacional.

Por isso, é tão importante a adopção da Carta Europeia dos Direi-tos Fundamentais no quadro do novo Tratado Constitucional.

Um jornalista queixou-se há semanas que não obtinha respostaspara uma série de questões e rematava assim o seu artigo:

“São questões que não envolvem a tradicional negociação do quan-to nos darão no próximo QCA mas, sim, ideias e ideais para a Europa. São o tipo de coisas que seria legítimo esperar ver discu-tidas numa campanha eleitoral. Infelizmente, parece que ficamos sópela linguagem dos cartões amarelos e vermelhos. Depois queixem-se por as pessoas preferirem o futebol!”

Acho, justamente, que o futebol é um bom exemplo! É um domínioonde a ideia de Europa se instalou definitivamente: hoje, há portugue-ses que são pelo Barcelona, outros pelo Real, outros ainda pelo Lazzioou pelo Manchester.

O futebol soube aproximar-se dos cidadãos!

O grande desafio que está lançado na Europa é, precisamente, o deas suas instituições descobrirem como torná-la mais próxima doscidadãos, para que eles percebam o grande capital económico, sociale político que conseguimos congregar desde a declaração de Schu-man, nestes cinquenta anos de Paz.

Essa aproximação faz-se, sobretudo, com ideias e ideais, mas também como gosto pela vitória e não com a preocupação de pequenas vitórias pírri-cas, sem ambição maior do que a de olhar para o próximo umbigo!+*Deputado à Assembleia da República

O Alargamento da União EuropeiaNovos Vizinhos

MARIA REGINA DE MONGIARDIM*

Antes de me pronunciar sobre qualquer aspecto deste meuúltimo livro, quero, em primeiro lugar, expressar os meusmais sinceros agradecimentos ao Senhor Professor Doutor

Adriano Moreira, seu verdadeiro mentor, por ter aceite apresentá-lo, o que constitui, para mim, uma enorme honra e mais uma opor-tunidade de poder partilhar do seu convívio, da sua sabedoria e dosseus profundos conhecimentos sobre temas internacionais. Agradeço, também, ao Dr. Nuno de Carvalho, responsável pelaEditora Prefácio, o esforço que desenvolveu para tornar possível a publicação desta obra, a escassas semanas da data marcada para o alargamento da UE, em Maio próximo, conferindo-lhe, assim,uma moldura temporal de actualidade, que reputo de extremaimportância, por uma variedade de óbvias razões.

O conteúdo deste livro não pretende dar respostas às inúmerasquestões que se colocam sobre o presente alargamento da UE, querno plano interno, quer a nível da sua geografia exterior de proxi-midade. É, pelo contrário, o resultado de uma reflexão sobre a maisrecente problemática da Europa, tendo em conta os enormes desa-fios que se desenham no horizonte futuro da União Europeia alargada. É por demais evidente que, neste contexto, não poderia deixar defazer referência a Portugal e à sua situação de país periférico da

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União, que vê aumentados, quer os riscos dessa mesma periferiza-ção, quer as suas responsabilidades como Estado-membro, e dimi-nuídos os seus benefícios, à medida que o centro de gravidade dapolítica europeia se continentaliza e que as novas fronteiras daEuropa se tornam mais longínquas e se aproximam de outros luga-res da geografia planetária, relativamente aos quais não existe, daparte do nosso País, nem tradição histórica de relacionamento, nemcapacidade de influência ou penetração. Esta reflexão funda-se, pois, na necessidade de adopção de um con-ceito estratégico da nova Europa alargada, teimosamente inviabilizadopela falta de uma única identidade europeia, e de uma revisão doconceito estratégico nacional, em mudança, face às alterações políti-cas estruturais internas e aos ditames da nova ordem em construção.

O próximo alargamento da UE a dez novos Estados-membros doLeste e do Sul do continente europeu (Estónia, Letónia, Lituânia,Polónia, República Checa, Eslováquia, Hungria, Eslovénia, Malta e Chipre) veio suscitar a necessidade de uma reflexão sobre as novasfronteiras da Europa, tanto mais necessária, quanto é certo estarmosa viver uma época particularmente conturbada, em que o território,delimitado por fronteiras físicas, já não constitui, como antes, umespaço vital de segurança e de regulação das necessidades das popu-lações; em que os Estados-soberanos – velhos pilares do sistema –entraram em crise; em que a política parece ter cedido lugar à eco-nomia, e em que a globalização é vista como a própria ordem mun-dial e não como um seu elemento dinamizador; em que o factormediático, através das novas tecnologias de informação e comunicação, adquiriu uma função operativa prevalecente; emque a geopolítica viu reduzida a sua importância, como elemento deponderação das políticas externas; e em que as sedes de poder sepolarizaram, como se polarizaram, também, as ameaças. Actualmente, a questão das fronteiras da Europa suscita mais inter-rogações do que respostas, na medida em que se desconhece quaisserão os seus limites físicos, como se irão articular os respectivos

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processos de alargamento e de aprofundamento, quais serão as suaspotencialidades e capacidades, e quais as consequências que daíadvirão, nos diversos campos político, económico, social, cultural,de segurança e defesa.Como responder aos desafios da proximidade e da interdependência?Como lidar com o isolamento de Estados, que ainda oscilam entrea nova e a velha ordem ideológica bipolar do mundo, como a Bie-lorrússia, por exemplo? Como ultrapassar os vestígios da Guerra Fria, designadamente, noque se refere ao relacionamento entre a UE e a Rússia?Como solucionar os riscos da aproximação da Europa a outras zonasconturbadas da geografia mundial? Quais as relações com os Novos Vizinhos, não apenas no que diz res-peito à União Europeia, mas, também, no que se refere à NATO, à OSCE e ao Conselho da Europa, cujas fronteiras físicas de refe-rência e de matriz conceptual se tocam e entrecruzam, sem, todavia,coincidirem no mesmo perímetro geográfico e sem que definam umsó território de convergências comuns? Como harmonizar o deslocamento do eixo gravitacional da Europa,para Leste, com as suas periferias marítimas? Como evitar novas linhas divisórias neste enorme e heterogéneoespaço geográfico? Como acomodar as diferentes vocações geoestratégicas do espaçointraeuropeu? Qual será, efectivamente, o papel que a nova Europa irá desempe-nhar no mundo? No presente quadro de reunificação da Europa, e de criação deum novo modelo de convivência interna e externa, em que sãodelineadas novas fronteiras geográficas indicativas e ampliados oscompromissos para com países e regiões circundantes da novaEuropa alargada, a problemática dos Novos Vizinhos veio colocar-secom especial acuidade, tendo em conta os desequilíbrios e assi-metrias existentes, as diferentes culturas e civilizações em presen-ça e os valores ocidentais por que se rege a construção da nova

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Europa, ainda pendentes, quer de aplicação, quer de aceitação universais.Por essa razão, um novo conceito estratégico de segurança – o con-ceito operativo da Wider Europe/Iniciativa da Europa Alargada, em torno doqual se articula uma nova política de vizinhança e de proximidade –ocupa hoje um lugar cimeiro da agenda política dos responsáveiseuropeus, conscientes dos desafios que se colocam a um extenso ter-ritório em processo de tendencial desenvolvimento harmónico e cujas fronteiras externas devem, para tanto, ser preservadas dasnovas ameaças e dos riscos decorrentes dos desníveis sócio-econó-micos, de largos períodos históricos de incompreensão e de dife-rentes cosmovisões.Decorre desse conceito uma nova filosofia sobre a segurança euro-peia, aplicada às relações com Estados-terceiros, geograficamentecontíguos e próximos, que pretende sustentar uma política de vizi-nhança, mediante a qual se pretende estabelecer uma “nova fronteira depaz e prosperidade”, delimitando um “arco crescente” em torno da Europa,numa extensão territorial que abarca desde a Rússia euroasiática,passando pelos antigos estados-satélite do imperialismo soviético(Bielorrússia, Ucrânia e Moldávia), até ao problemático corredorislâmico, que vai desde as costas do Mediterrâneo ocidental, noMaghreb, até às margens do Mediterrâneo oriental, no Mashrek,culminando no Mar Negro. Não contemplados nesta nova “fronteira de vizinhança externa” da União,encontram-se os futuros candidatos à adesão: a Roménia, a Bulgá-ria, os Países Balcânicos e a Turquia, objecto de uma política dife-renciada de pré-adesão e de distintos calendários, estabelecidos emfunção dos progressos desses mesmos instrumentos europeus auxi-liares de harmonização político-económica.Com referência explícita a elementos indicativos de natureza geo-gráfica e a factores de natureza política, económica, social e cultu-ral, este conceito de vizinhança traduz-se num novo “regionalismo”,em cuja arquitectura a União Europeia constitui o seu epicentro,mercê da interdependência crescente, da incorporação dos valores e princípios políticos que fundamentam a dinâmica interna da

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União, da aplicação e desenvolvimento progressivo do conceito deMercado Único (as 4 liberdades), bem como de uma dimensão opera-tiva no relacionamento com estes países limítrofes de tipo horizontal,que, a partir de agora, incluirá a execução de programas de coope-ração regional e transfronteiriça, em todas as áreas pertinentes, à semelhança da dinâmica empreendida no tecido regional intraeu-ropeu. A futura conglomeração dos vários instrumentos financeirose de cooperação externa da União num único instrumento, similarao actual INTERREG, servirá de sustentação à irradiação e desen-volvimento deste novo “regionalismo” alargado a outros espaços geo-gráficos extra-europeus, fomentado a partir da Europa.O duplo conceito da Wider Europe/Novos Vizinhos surge como funda-mento de uma aliança estratégica entre a Europa alargada e os paí-ses das diferentes regiões geográficas limítrofes, presentementearredados de quaisquer perspectivas de uma futura adesão, aliançaessa que importa impulsionar e desenvolver, de molde a reduzir osriscos emergentes de novas e velhas fracturas existentes no seu espa-ço circundante. É do conhecimento geral que a Europa não pode pretender posicio-nar-se como uma potência hegemónica de âmbito mundial. Os desajustamentos e ambiguidades na elaboração de uma políticaexterna da União, as divergências nacionais quanto a uma políticaeuropeia de segurança e defesa comum, e as diferentes posturasquanto à natureza e funcionamento da União Europeia, por afecta-rem o que se considera ser o núcleo central da soberania dos Esta-dos, mostram à exaustão essa mesma impossibilidade. Ao ser assim, resta à UE assumir-se como um factor de equilíbrio dealcance mundial, agindo, predominantemente, na área da coopera-ção, na prevenção e solução pacífica dos conflitos, no respeito pelalegalidade internacional e na defesa do multilateralismo, segundoum método e instrumentos adequados que privilegiam a ajuda aodesenvolvimento, a extensão do bem-estar, dos valores democráti-cos e do Estado de Direito, a defesa dos direitos humanos e o estrei-tamento das relações com outras culturas e civilizações.

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Em vez de pretender sustentar a sua própria segurança em conside-rações de índole exclusivamente militar, inexequíveis, a UE norteiaa sua intervenção externa pela tentativa de solução das causas em queassentam as grandes ameaças da actualidade (terrorismo e prolifera-ção de armas de destruição maciça), como sejam, a fome, a pobreza,o desrespeito pela dignidade da pessoa humana, as carências educa-tivas e a destruição do meio-ambiente.É óbvio que, em semelhantes circunstâncias, as questões da paz e daestabilidade devem ser perspectivadas atendendo, em particular, à proximidade geográfica dos locais de risco e instabilidade, comose, através de uma panorâmica em “zoom”, de um primeiro plano setratasse. Donde, uma visão prioritária para as regiões e países cir-cundantes da Europa alargada, com o consequente delinear de umaestratégia de segurança, que passará por reforçar, quer a vocaçãopan-europeia dos países limítrofes da nova Europa, quer os factoresapelativos e atractivos da União alargada, numa acção conjugada quevisa: - criar e consolidar uma maior identificação com os valores huma-nistas existentes no seio da Europa; - atrair os países-terceiros e incentivá-los para um maior esforço decoesão política, económica e social, envolvendo toda essa extensaárea geográfica de vizinhança e proximidade, através da eliminaçãodas assimetrias, dos desníveis sócio-económicos e das barreiras polí-ticas e culturais existentes; - e disponibilizar, de forma mais articulada, coerente e eficaz, umamaior ajuda aos Novos Vizinhos, aproveitando das diferentes voca-ções geoestratégicas, de novos recursos e das diferentes dinâmicasinerentes ao processo de construção da nova Europa.O conceito de vizinhança europeia tem contornos tanto políticos e de segurança, como económicos, sociais e culturais, o que impli-ca uma política de proximidade norteada pelos princípios humanis-tas da UE e assente em benefícios mútuos e obrigações recíprocas.No entanto, não se afigura ser possível exigir dos países vizinhos o cumprimento das suas obrigações de proximidade, sem que, em

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contrapartida, lhes sejam facultados determinados direitos e bene-fícios. Por outro lado, considera-se que a política de vizinhançadeve ter uma dimensão global e não selectiva, se bem que diferenciadae baseada na ideia de que a sua implementação deverá ser feita casoa caso, em função dos progressos de aproximação registados.Coerentemente com a sua opção de potência militar de segundagrandeza, com a sua vocação humanista e com uma agenda políticaem que a paz e a estabilidade surgem como primeira prioridade, a Europa pretende conduzir uma política de diálogo e de coopera-ção reforçadas, favorável à redução das “zonas de incerteza” entre associedades e dentro delas, enquadrando o Estado soberano, comoprodutor e regulador do sistema, e desencadeando um processo deregeneração das estruturas, instituições e procedimentos políticos.A ajuda aos processos de transição dos países-terceiros situados nasua área geográfica de proximidade, seja aquela política, económi-ca, social ou cultural, constitui, pois, um objectivo prioritário daUnião Europeia, tendente a erradicar os factores de risco e de con-flituosidade, e a reduzir o fosso de incompreensão e as assimetriasentre a Europa e as regiões e países vizinhos.A verdade é que, junto às novas fronteiras da Europa, continuam a observar-se problemas e conflitos que não foram resolvidos com o encerramento de Yalta, e de onde sopram ventos de instabilidadee chegam avisos de insegurança. As feridas sangrentas na região dosBalcãs, as tensões entre a Grécia e a Turquia, a divisão de Chipre, asquestões húngara na Transsilvânia, romena na Moldávia, macedóniana Grécia, turca na Bulgária, as incógnitas sobre o futuro da grandeRússia, os milhares de exilados e deslocados que pululam em terri-tórios que lhes são estranhos e hostis, a busca e afirmação de umaidentidade nacional pós-comunista, o déficit de uma cultura e ins-tituições democráticas, a dificuldade em fazer vingar o Estado deDireito e o respeito pelos direitos humanos, os desequilíbrios eco-nómicos, as fracturas culturais e civilizacionais, motivadas por dife-rentes credos religiosos e por uma história adversa, o vigor do isla-mismo e o arrebatamento das suas facções mais radicais, conjugam-se

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para tornar mais vulneráveis as novas fronteiras externas da Europa.Em semelhante arquitectura, parece inquestionável a necessidadeestratégica da União agir, de forma dinâmica e concertada, nessesdiferentes cenários, mediante políticas diferenciadas mas coerentes,em função dos riscos, dos objectivos adequados a atingir e dos meiosdisponíveis. Aproximar da União a Roménia, a Bulgária e os paísesbalcânicos ocidentais, inscritos nos processos de pré-adesão, deestabilização e de associação, promover o estreitamento das relaçõescom esse actor global, que é a Rússia e em cuja órbita ainda se movi-mentam outros três Estados vizinhos da Europa Central (a Ucrânia,a Moldávia e a Bielorrússia), e estabelecer um quadro de entendi-mento recíproco e de colaboração para o desenvolvimento com ospaíses mediterrânicos do Sul, parceiros da Europa no âmbito doProcesso de Barcelona, constitui o cerne da política de vizinhançada Wider Europe. Nesta nova Europa alargada, onde o peso da sua extensão continentalfez deslocar para Leste o centro de gravidade da política europeia, a adesão de Malta e de Chipre veio significar, também, o reforço da ancoragem europeia no Mediterrâneo. Daí o facto deter sido considerada politicamente oportuna e estrategicamentenecessária a inclusão dos parceiros do Processo de Barcelona napolítica europeia de proximidade. Na realidade, é no Mediterrâneoque a fronteira externa da União, em regra, mais estanque do queporosa, apresenta um grau de maior conflitualidade, suscitandoforte preocupação pela precariedade da situação política, económi-ca e social dos países da margem Sul, pelos diferendos territoriais,pelos fluxos migratórios, pelos conflitos no Médio Oriente, pelaincompreensão e desconfiança, e pelo problema candente do fun-damentalismo islâmico, cuja influência perniciosa e desestabilizadorase vem fazendo sentir ao longo de toda a geografia circundante daEuropa, penetrando nela.Perante a nova geografia política europeia e as vicissitudes da épocade anarquia madura em que nos encontramos, somos levados a con-cluir que, à medida que avançam e se concretizam os vários processos

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de alargamento, as fronteiras da Europa são menos coesas e solidá-rias, na sua vertente interna, e mais difusas e problemáticas, na suavertente externa. Derrubados os velhos projectos imperialistas europeus, é o próprioprojecto da Europa Unida que, hoje, está em causa. Não apenas sobo ponto de vista da sua viabilidade interna - dado o seu caráctermultinacional, multiestatal, pluricultural e plurilinguístico, e o perigo de novas cisões internas, fruto de projectos hegemónicosque lançam para uma posição marginal outras nações europeiasmenos dotadas de poder político-económico - mas, também, sobuma perspectiva de fortalecimento e consolidação da sua imagemexterna, que permita à nova Europa alargada afirmar-se, interna-cionalmente, como um bloco alternativo de poder mundial.Construído sobre as ruínas de parte do antigo império soviético,sobre a linha divisória entre o Leste e o Oeste, e as experiênciashistóricas da “cortina de ferro” e da Guerra Fria, o projecto da Iniciativada Europa Alargada/Novos Vizinhos defronta-se, não apenas, com a pro-blemática do reforço de uma matriz federalista, com os riscos derecomposição do directório europeu, com uma evolução interna a diferentes velocidades, contida no mecanismo das “cooperaçõesreforçadas”, tendencialmente desagregadoras, e com a questãoinconclusiva da identidade europeia, mas, sobretudo, com a perdade velocidade estratégica da Europa, com a ausência de uma políti-ca externa e de segurança comum, que sirva de pilar à política euro-peia de cooperação para o desenvolvimento, e com a aproximação daUnião Europeia a outros espaços geográficos de histórico antago-nismo e de potencial conflitualidade interna e externa. Nesta pers-pectiva, a Europa posiciona-se, face ao exterior, com uma imagemde marcada vulnerabilidade, o que reduz a sua própria capacidadede intervenção e afirmação nos âmbitos político, económico, desegurança e defesa.Se, no plano interno da UE, se têm vindo a acentuar os interessesnacionais em detrimento de uma Europa mais unida e solidária, noplano externo, as suas diferentes e complexas vizinhanças colocam

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problemas diversos, a que não são alheias nem as distintas vocaçõesgeopolíticas de cada um dos Estados-membros, nem a questionávelcapacidade da União em desenvolver soluções para esses mesmosproblemas, que não passam, somente, por uma estratégia conjuga-da de vários formatos de diálogo, mas, que dependem, sobretudo,de um fortíssimo investimento político e financeiro, de uma conju-gação de esforços e de uma estratégia coerente e eficaz. Neste sentido, mais do que uma visão economicista da paz e da esta-bilidade, tão correntemente difundida na actualidade, crê-se que a opção mais válida será, pelo contrário, ter sobre elas uma visãopolítica estratégica.Não obstante os esforços desenvolvidos para dotar a UE de alicercescapazes de concretizar, na prática, o conceito da Wider Europe (a futuraConstituição, o documento “One Europe” e o futuro conceito estraté-gico europeu), a verdadeira realidade da nova Europa alargada é ainda pouco promissora, sobretudo, para os pequenos Estados,sejam eles velhos ou novos membros. Preocupante é, também, a problemática da nova vizinhança europeia, situada quase nos confinsda Eurásia ou adentrada na Umma, em estreito contacto com diferentesculturas e civilizações, desde sempre pouco conhecidas e vistas sob o diapasão de preconceitos ideológicos e religiosos, relativamente àsquais se podem atribuir poderosos ressentimentos face à civilizaçãoocidental. O recente alargamento veio provocar, de facto, um deslocamentopara Leste do centro de gravidade da política europeia e um dese-quilíbrio interno de poderes e de orientação das políticas, que tendea remeter para a periferia alguns dos Estados-membros, como Portugal.Apesar de acompanhar, em termos institucionais, geográficos econceptuais, as novas fronteiras da União, da NATO, da OSCE e do Conselho da Europa, o nosso País carece de tradição no seurelacionamento externo com os novos Estados-membros da União. Numa perspectiva periférica face ao núcleo central estratégico e desegurança da nova Europa alargada, Portugal encontra-se, efectiva-mente, numa situação de maior vulnerabilidade, tendo em conta

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o cruzamento de três factores: a emergência deste novo desequilíbrioLeste-Oeste; o facto de ele se somar ao velho desequilíbrio Norte--Sul; e a localização do País na linha da frente da UE face aos vizi-nhos islâmicos do Norte de ÁfricaNeste cenário, as desvantagens do nosso País são evidentes, donde a sua aposta em incluir os países mediterrânicos do Sul na Iniciativa daEuropa Alargada/Novos Vizinhos, como forma de desviar as atenções dosseus parceiros europeus para o flanco sul da Europa, em resposta a uma estratégia de reforço da sua própria fronteira meridional.País bifocal, em termos geopolíticos, esta estratégia portuguesa dedesviar para o Mediterrâneo parte do esforço da Iniciativa da EuropaAlargada/Novos Vizinhos, não poderia ser desligada da componenteatlântica, geograficamente próxima, onde se concentram os seusprincipais interesses como nação independente e soberana, quer noplano interno do Estado, quer no quadro da sua vocação e orientaçãopolítica externa.+*Diplomata e Professora Universitária. Texto lido na apresentação do seu último livro

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Portugale os novos desafios

A adesão de novos países à UEManuel Monteiro*

Manda a educação, que comece por agradecer o convite quea Direcção do Instituto D. João de Castro entendeufazer-me, para aqui reflectir sobre a União Europeia,

actual e futura, e nela sobre o papel de Portugal.Creiam que me sinto muito honrado. Desde logo pelo facto de virà casa, penso que pela primeira vez, sede de uma Instituição cujonascimento presenciei. Embora seja o mais ausente dos sócios, segu-ramente o menos cumpridor dos seus deveres, não esqueço, nemquero esquecer, que sou um dos Fundadores do Instituto D. Joãode Castro e que o sou por convite do Senhor Professor Doutor AdrianoMoreira, ao tempo Presidente do CDS, era eu então Presidenteda Juventude Centrista, numa época em que a luta pelos direitos dospobres, pela defesa das classes médias, pela preservação e respeitodas Instituições, pareciam sonho conspirativo de Avós e netos, unidoscomo nunca contra os barões do politicamente correcto. Estou certo,que um dia se escreverá sobre esse particular momento vivido emPortugal e que, com a tranquilidade devida, se homenageará quem,contra os ventos do utilitarismo político, não cedeu nas posiçõesprecisamente para não ter de ceder nos Princípios.Mas vamos por agora ao tema que aqui nos trouxe. Seja-me permitidoque recorde, e que recorde porque a memória não pode estar ausenteda vida política, que, desde o seu início até aos dias de hoje, a UniãoEuropeia, antes chamada de Comunidade Económica Europeia

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(CEE), conheceu 5 TRATADOS: Roma, Acto Único, Maastricht,Amesterdão e por último Nice.Repare-se que falei de Tratados. E falei de Tratados, porquetodos os intervenientes no processo da chamada construçãoeuropeia assim se referiram, sempre, aos textos que ao longo dosanos foram aprovando desde a fundação das ComunidadesEuropeias.Este ponto, como veremos adiante, é da mais elementar importância,pelo que quando nos falam de constituição europeia ou, eufemistica-mente, de Tratado Constitucional, isso significa que não estamosa falar da mesma coisa. Querer confundir Tratado, com Consti-tuição, pode ser útil à arte de confundir os cidadãos, mas é, no mínimo,um acto de desrespeito pela verdade que o combate político devesempre ter e, no máximo, uma manifestação de má-fé política.Como referi noutro momento da minha intervenção, dedicareimais algum tempo a esta matéria.

IAnalisemos por agora o alargamento da União Europeia e as conse-quências que dele podem, realisticamente, advir para Portugal.Uma nota desde já é aqui devida. Esta análise não pode ser dissociadada marcha da globalização económica, a que muitos chamam antesde mundialização, precisamente para evidenciar as consequênciassociais, culturais e políticas, que o mercado dito livre, e sem qual-quer barreira ou restrição, inevitavelmente transporta e espalha.A União Europeia não é uma ilha isolada do resto do Mundo, peloque estudar ou debater o que nela se passa sem atender ao que à suavolta acontece, seria sinal de puro autismo. É que a realidade da livrecirculação de pessoas, de capitais, de empresas e de mercadorias,das boas ou das más, já não é um exclusivo do espaço europeu, logodiscutir as consequências do alargamento sem as enquadrar nesteoutro contexto é um erro que não queremos cometer.Dito isto vejamos tão concretamente quanto possível, o que nos esperaa curto e a médio prazo.

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Destacaria 5 pontos:1°) Diminuição progressiva e rápida das transferências de fundoscomunitários;2°) Maior distanciamento do grande centro de interesses económicose financeiros;3°) Concorrência aberta com países muito mais fortes do que Portu-gal, em domínios como o agrícola;4°) Competitividade directa com mão-de-obra mais barata e, em várioscasos, mais especializada e mais, ou mesmo muito mais, dispostaa sacrifícios;5°) Vontade de afirmação e de triunfo, por parte de quem acabade entrar no clube da União Europeia.Quanto ao 1° ponto - diminuição das transferências de fundoscomunitários, penso não ser novidade para ninguém.É perfeitamente compreensível que quem entra, disponha em géne-ro e número, do mesmo tipo de apoios que ao longo de anos fomosrecebendo. Esta ideia de que podemos continuar a evocar semprea nossa especificidade para receber, só receber, depressa se esgotará.Como é óbvio esta diminuição não será fácil para Portugal. Em mui-tos aspectos, conduzidos por políticos eleiçoeiros e sem visão defuturo, criámos o hábito de respirar porque outros por nós faziamo movimento de inspiração e expiração.Ora esse tempo está a acabar. Contamos cada vez mais connosco,com a riqueza que soubermos produzir ou captar, pelo que este é umdos principais desafios que nos próximos anos temos pela frente.Quanto ao 2° ponto - maior distância do grande centro económico- Portugal corre o risco de ser na Europa aquilo que o nosso interioré em relação a Lisboa e Porto. O exemplo esta aí. Não são precisosgrandes estudos para perceber o que políticas erradas fizeramdo nosso país. Um barco desequilibrado, sem pólos intermédiosde desenvolvimento.Conclusão: O interior está mais só e no litoral não se vive melhor.Imaginem então as Senhores e os Senhores se o nosso litoral fôr,progressivamente, caminhando para ser o interior distante da UniãoEuropeia.

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Esta questão tem de envolver, e com a máxima urgência, a definiçãode uma Ideia de Portugal. Sem uma Ideia para Portugal, anteriorà Política e às Políticas, viveremos do acaso, e um país que vive doacaso, e ao acaso, não tem grande futuro.Quanto ao 3° Ponto - a concorrência directa de países fortes em domí-nios como o agrícola, não posso deixar de pensar, desde logo, na Poló-nia. Estudos de há cinco anos atrás revelavam que a Polónia com a dimensão territorial que lhe é conhecida, possuía tantas explora-ções agrícolas quantas as registadas em Portugal. É motivo para dizer: Sem comentários.A verdade é que hoje, salvo honrosas e raras excepções, repito salvohonrosas e raras excepções, não temos Agricultura, temos apenasMinistério da Agricultura. O que fazemos é algo semelhante a umaespécie de jardinagem agrícola e de quando em quando, de prefe-rência com o aproximar dos actos eleitorais, lá vamos indo ao encontrodos agricultores, se para cá do Mondego nos encontrarmos, ou doslavradores se para cima deste rio português nos posicionarmos. Masatenção esta jardinagem vai ser afectada, ninguém o duvide, peloque seria do mais elementar bom senso uma abordagem totalmentedistinta deste sector.Quanto ao 4° ponto - a competitividade da mão-de-obra ela já ai está,e não foi preciso que a União Europeia se alargasse ao centro e a leste,para começar a ser uma realidade no nosso quotidiano. É um quo-tidiano que está nas nossas casas, nos restaurantes, nas bombas degasolina, nas oficinas, na construção civil e nas obras públicas.Significa isto que a competitividade neste campo, está não só nospaíses com mão-de-obra residente mais barata, como no nosso pró-prio território. Fácil será concluir que teremos de alterar hábitosde trabalho, modelos de organização e acima de tudo, de uma vezpor todas, de ligar a Escola às Empresas.Por último o 5° ponto - a vontade de afirmação de quem acabade entrar. Este é, Minhas senhoras e meus Senhores, para mim, o principaldesafio. A maioria dos cidadãos que recentemente votaram simà entrada na União Europeia, querem triunfar. Estão confiantes

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e têm pressa do futuro. E nós? O que se passa connosco? Muitosestão conformados, outros deixaram de acreditar e uma larga per-centagem tem a tristeza espantada nos olhos.E agora? Perante isto o que fazer?Agora vamos em frente. Vamos trabalhar e trabalhar bem porqueo País que nos legaram não foi para ser gasto ou extinto por nós.Temos de transmitir o legado e um legado mais forte e mais rico,se quisermos honrar o nosso nome e ser dignos da nova geraçãoportuguesa.

IIPermitam-me agora que olhe para o palco político e veja como estãoos nossos representantes a preparar a União Europeia para recebermais países. Cabem aqui então as considerações que inicialmente fiza propósito de tratados e de constituições.Porquê? A razão é simples.Acabaram os trabalhos de uma convenção reunida propositadamen-te para reformar os Tratados comunitários e prepara-se a Confe-rência Intergovemamental que analisará o documento proposto,para posteriormente o submeter à votação dos Parlamentos nacio-nais, ou, sendo disso caso, dos cidadãos eleitores através de referendos.E o que nos ofereceu a convenção?Ofereceu-nos uma Constituição, não nos ofereceu outro Tratado,ofereceu-nos, repito, uma Constituição!E como é óbvio se a convenção nos oferece uma Constituição e nãoum Tratado, um outro Tratado, é porque assim o quis. É elaprópria a distinguir a natureza das coisas, pelo que não colhem asintervenções de quem por cá tenta esconder o facto e silenciar a consequência.Um Tratado, como refere o Doutor Paulo Ferreira da Cunha, temforça jurídica dependente e derivada de poderes públicos nacionais,uma Constituição é, continuando a citar o mesmo autor, "sempre,uma fundação ou uma refundação, não um corolário, uma abóbadanum edifício institucional".

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Mas devemos ir ainda mais longe apoiando-nos agora, para não sermosacusados de sectarismo intelectual, em Gomes Carrotilho que nosdiz o seguinte: "Com Tratados temos relações de tipo horizontalentre os Estados, nomeadamente quando estes definem o sistemajurídico-político em que se movem e apoiam, já com as Consti-tuições essas relações passam a ser de tipo vertical.Ou seja, quando falamos de Tratados falamos, preferencialmente,de relações entre Estados, quando falamos de Constituições falamosde relações entre o Estado e o Povo. Ora minhas Senhoras e meusSenhores falar de relações entre Estados, não é a mesma coisa do quefalar de relações entre um Estado e o seu povo. Então se o que temospela frente é uma Constituição e não um Tratado, isto quer dizerque estamos em vésperas de uma das mais profundas mudanças polí-ticas no quadro da União Europeia.É legítimo que haja quem o deseje, é legítimo que haja quem o pro-ponha, é legítimo que haja quem o defenda, mas não é legítimo queo esconda, não é legítimo que o negue, não é legítimo que o confunda,não é legítimo, numa palavra, que se diga igual o que notoriamenteé diferente e o que manifestamente tem consequências políticastotalmente distintas e opostas. Mas se nos querem impôr uma Constituição temos de fazer perguntas,e começamos desde já: a quem pertence o Poder Constituinte nasDemocracias? É aos Governos, é aos representantes dos governose dos parlamentos, sem que para tal estejam devidamente mandata-dos? O que sabemos é que o poder Constituinte pertence ao Povo,porque só o povo pode decidir sobre a sua própria ordem política.Ora, do que se trata aqui senão da definição de uma nova ordem polí-tica, de uma nova ordem económica e de uma nova ordem social?Como admitir então que o Povo, directamente ou através de repre-sentantes devidamente mandatados para o efeito, seja o último a pronunciar-se sobre o assunto?Mas há ainda uma outra questão que se nos afigura pertinente: se exis-tirá uma Constituição, qual será o seu referente? A sociedade ouo Estado? Dito doutra forma: faz sentido que exista uma Constituição

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Europeia, sem que venha a existir um Estado Europeu? Pergun-temos ainda doutra forma: pode haver uma Constituição Europeiasem existir um Estado Europeu?Para mim esta Constituição é a antecipação de um Estado, um Esta-do dotado de poderes, com órgãos para os executar e fazer cumprir.Um Estado que já tem em embrião uma polícia, que prepara umExército e que já se apresenta com um Ministro dos NegóciosEstrangeiros.Assim sendo, e pese embora a boa vontade dos que defendema Constituição Europeia e lhe dão como referente a sociedade, tal-vez para evitar a ideia de um Estado centralizado com sede legal emBruxelas, temos de lhes dizer: desiludam-se porque ao poderde facto só faltava a consagração legal e ela aí está e chama-se Cons-tituição Europeia e prepara-se para exercer, talvez sem pompa mascom muita circunstância, o seu verdadeiro poder relegando paraplano secundário as Constituições dos Estados- Membros.

IIIVejamos agora, ainda que sumariamente, o que nos reserva de maisrevelador esta Constituição Europeia:1°) Define, para que nenhuma dúvida reste, o que são ou possamser, as funções essenciais dos Estados, dos Estados-Membros. Trata--se de algo que não pode passar em claro. Qual Assembleiada República que aprova o Estatuto das suas Regiões Autónomas,também a Constituição Europeia estipula e limita as competênciasdos Estados Nacionais;2°) Atribui Personalidade Jurídica à União Europeia. Conferindo--lhe assim o atributo de sujeito internacional, de pleno direito,na elaboração e aprovação de tratados.Aquilo que estava reservado aos Estados- nacionais, passa agora a serda competência da União Europeia;3º) Assume, taxativamente, que, passo a citar: "A Constituição e odireito adoptado pelas Instituições da União no exercício das com-petências que lhe são atribuídas têm primazia sobre o direito dosEstados-Membros.

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O que quer isto dizer? A resposta é simples: que a Constituiçãoeuropeia prevalece sobre as Constituições dos Estados-Membros;4) Dota a União Europeia de competência em todos, repito, todos,os domínios da política externa;5) Cria um Ministro dos Negócios Estrangeiros da União, que passaráa ser um dos Vice-Presidentes da Comissão!É caso para perguntar: para que servem então, daqui para a frente,os Ministros dos Negócios Estrangeiros nacionais, bem comoos respectivos Ministérios? Tenho para mim que este ponto é doparticular agrado da Sra. Ministra das Finanças, Dra. Manuela Fer-reira Leite.Perante o que acabo de lhes expor acham as Senhoras e os Senhoresque o problema no texto proposto pela Convenção está na existênciade um Presidente eleito para o Conselho Europeu?Então não há outras questões, e bem mais relevantes, que deveriamincomodar os representantes portugueses? Ou será que estão de acordocom tudo o mais que está escrito neste projecto de Constituição?

IVPor último seja-me consentida uma reflexão breve sobre a possibili-dade de realização de um referendo a propósito desta matéria.Como sabem sempre me bati pela consulta aos portugueses. Sempre!E fico contente pela aceitação do princípio, numa questão comoaquela que aqui abordamos. Mas defender o princípio não significapactuar com quem queira desvirtuá-lo. Fará sentido que o Governovote na Conferência Intergovernamental uma Constituição paraa Europa e só depois pergunte aos portugueses se estão de acordo?O que vamos então votar? A Constituição ou a posição do governosobre essa mesma Constituição? Ou as duas coisas? E caso a maioriados eleitores diga “Não”, que consequências políticas daí retira o gover-no? Demite-se, pede a convocação de eleições gerais antecipadas?Diz a imprensa que o governo pondera propor a realização do refe-rendo no dia das eleições europeias. Mas, nesse caso, o que vamos fazer?Referendar a Constituição Europeia ou plebiscitar os candidatosao parlamento europeu?

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Como se vê de nada serve alimentar um consenso estéril, só porquefinalmente o poder, lá do seu alto, nos anuncia que vamos podervotar sobre a União Europeia. Esta consulta pode estar viciada e estarviciada quer nos termos em que é proposta, quer nos termos em queé feita. E nós não podemos colaborar com esse vício.Referendar esta proposta de Constituição Europeia é de facto umaexigência, mas precisamente por ser uma exigência é que esta consultanão pode ser adulterada.+*Político e docente universitário.

Conferência Proferida no Instituto D. João de Castro, em 17 de Julho de 2003

Ensino LivreA derradeira salvaguardada educação do carácter

JOÃO CARLOS ESPADA*

Vivemos tempos paradoxais e a escola parece concentrar em simuitos dos paradoxos dos tempos que vivemos.As modernasteorias emanadas das chamadas ciências da educação cele-

bram a diferença e a diversidade e questionam a própria existênciados conceitos de bem e de verdade - até mesmo o conceito de buscado bem e da verdade. O bem e a verdade deixam de ser vistos comopadrões exteriores que os homens procuram descobrir, ou dos quaisprocuram aproximar-se, e passam a ser declarados como construçõessociais arbitrárias, subjectivas e equivalentes.Paradoxalmente, os defensores destas teorias são também em regraos mais ardentes defensores da chamada "escola pública", na suaactual organização centralizada e comandada monisticamente a partirde cima, imune às escolhas das famílias. Este é o paradoxo: por queé que os defensores da inexistência de valores objectivos são simulta-neamente os mais acérrimos críticos da escolha das escolas pelasfamílias?Ao discutir este paradoxo, irei defender que três direcções princi-pais são, a meu ver, necessárias para reforçar a qualidade da educa-ção: descentralizar o sistema educativo, submetê-lo à disciplina daconcorrência, e torná-lo mais permeável à escolha das famílias.A razão é relativamente simples: o sistema educativo - tal como osmedia e outros sectores centralizados - está a ser crescentementedominado por uma cultura contrária à educação do carácter. Essacultura - em rigor, essa contra-cultura - é minoritária relativamenteao que pensa boa parte das famílias e das pessoas comuns. Mas elaalastra vertiginosamente entre sectores que se promovem mutuamente

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e que são muito “vocais”: eles são o alvo preferido e os protagonistasprincipais dos media.Há dois grandes tipos de solução para esta dominação crescente dacontra-cultura. Um consistiria em tentar substituir a actual contra-cultura centralizada por uma “contra-contra-cultura” centralizada.Além de vários outros inconvenientes, dificilmente este tipo desolução seria compatível com uma atmosfera liberal democrática.Outro tipo de solução consiste em quebrar a centralização monolí-tica da contra-cultura e introduzir concorrência e pluralismo nosistema - designadamente no sistema estatal de educação, masoutros poderiam ser citados. Esta solução consiste em apostar nagradual derrota da contra-cultura através das escolhas das famílias e das pessoas comuns.Tentarei defender este segundo tipo de solução. E o meu argumen-to terá três momentos principais: começarei por recordar o debatesobre o papel da família e do Estado na educação; a seguir, recordareicomo o sistema de ensino português está excessivamente centralizado;finalmente, argumentarei que o sistema deve ser reequilibrado a favor das famílias.

I. Família e Estado na Educação dos Menores

O problema de saber a quem compete em primeiro lugar a respon-sabilidade pela educação dos menores - se às famílias se ao Estado -tem sido um tema fundamental de separação das famílias políticasdesde, pelo menos, Platão e Aristóteles, há 2500 anos.Existe uma tradição de pensamento que remonta à República de Pla-tão - e na qual podemos incluir autores mais recentes, como Rous-seau, no século XVIII, ou Marx, no século XIX - que atribui aoEstado a primeira responsabilidade pela educação. Há diferençasimportantes entre as concepções de Estado destes autores: em Pla-tão temos um Estado dirigido pelos filósofos ou pelo Rei-filósofo,enquanto em Rousseau e Marx temos, pelo menos em teoria, umestado de todos, da chamada Vontade Geral, em Rousseau, ou da

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comuna autogovernada, em Marx. Mas em todos eles - Platão,Rousseau e Marx - temos sempre a prioridade do Estado sobre asfamílias na educação (bem como, aliás, em todas as outras áreasimportantes da vida social).Existe outra tradição, que também possui diferenças internas, masque reúne autores como Aristóteles, S. Tomás de Aquino, JonhLocke, Adam Smith, Edmund Burke, ou Alexis de Tocqueville.Todos eles concordam que a responsabilidade pela educação dosmenores cabe em primeiro lugar às famílias. A expressão “emprimeiro lugar” é apropriada porque nenhum dos autores destasegunda tradição considera que a responsabilidade das famílias é única, ou exclusiva, ou absoluta. Todos atribuem também umaresponsabilidade ao Estado, mas trata-se sempre de uma responsa-bilidade supletiva ou complementar - que visa sobretudo garantir, oufacilitar, e também regular o exercício efectivo das liberdades de aprendere ensinar.Tudo isto é relativamente conhecido e não desejo maçar-vos dema-siado com a história do pensamento político. Há um ponto, todavia,que me parece importante desenvolver e que se prende com o para-doxo que referi no início: porque é que uma cultura pública que sereivindica da liberdade ilimitada - a liberdade de emitir programaspornográficos na televisão à hora de jantar, por exemplo - recusa a liberdade básica de as famílias escolherem a escola dos seus filhos?Este é um ponto da maior importância filosófica, política e prática.Como é que se pode negar a liberdade em nome da liberdade?A resposta, creio, é a seguinte: a liberdade de que se reclamam aquelesque designarei por “estatistas” não é a liberdade dos indivíduos con-cretos, ou das pessoas, que conhecemos no dia-a-dia. As pessoasque nós conhecemos (e que nós somos) são pessoas enraízadas emmodos de vida realmente existentes - pessoas com uma família, uma profissão,alguma propriedade, eventualmente uma igreja, seguramente umaconcepção particular do bem e da vida. São pessoas concretas e, portanto,também pessoas variadas.Em contrapartida, os indivíduos a que se referem os defensores da

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liberdade ilimitada - os indivíduos de que falavam Rousseau ouMarx -não são estas pessoas concretas, ou, para ser mais exacto, sãoapenas algumas dessas pessoas. São aqueles que têm uma interpreta-ção muito especial de liberdade: os que vêem a liberdade comolibertação de todos os laços sociais particulares que nos ligam àquilo que nos é familiar. É por isso que, em bom rigor, esta liberdade como liber-tação do familiar supõe a ideia de um Homem Novo - um homem que,no dizer de Rousseau, Marx e até Platão, se desenraízou de todos oslaços particulares e que começou a raciocinar a partir do zero. É o cidadão espartano que Rousseau elogiava, o proletário comu-nista de Marx, ou o filósofo de Platão. Não é por acaso que todoseles condenavam a família e a propriedade privada, duas expressõesfundamentais de laços particulares ou familiares.O problema como esta doutrina da liberdade enquanto libertaçãodo familiar é bastante simples: a maior parte das pessoas não querlibertar-se do que lhe é familiar. As pessoas têm os seus modos devida aos quais estão “attached”, estão ligadas, e esses modos de vidatêm valores que não são os do Homem Novo. A construção do HomemNovo vai por isso requerer um enorme exercício de engenharia socialvisando redesenhar a partir de cima os modos de vida das pessoas. Essaengenharia social vai ter como alavanca fundamental a educação, a qual, pelos motivos enunciados, terá de ser centralizada, una e indivisível.

II

Gostaria agora de alertar para que não estou a pretender dizer, nemsequer insinuar, que as pessoas que defendem o ensino estatal sãonecessariamente subscritoras das teorias do Homem Novo ou daengenharia social. De facto, não estou. Existem muitas e nobres razõespara defender o ensino estatal que nada têm a ver com essas teoriasautoritárias. Mas, o que estou a tentar mostrar é a doutrina funda-mental que subjaz ao ensino estatal, quando este é visto como adversáriodo ensino particular e da liberdade de escolha das famílias. E estou a tentar alertar as pessoas que possam ter uma certa hostilidade

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contra o ensino particular para as premissas intelectuais e as conse-quências políticas que essa hostilidade teve no passado e continua a ter no presente.Pode agora ser-me contraposto que só alguns extremistas defendemem Portugal o ensino estatal enquanto adversário da liberdade dasfamílias e enquanto sistema centralizado, uno e indivisível. Infeliz-mente, não creio que isso seja verdade. É verdade que só algunsextremistas subscrevem as doutrinas de Platão, Rousseau e Marx.Mas, infelizmente, muita gente é hostil à liberdade das famílias, semsaber que está dessa forma a ser útil aos projectos extremistas herda-dos de Platão, Rousseau e Marx.Talvez poucos defendam abertamente o projecto de um sistemaeducativo centralizado, uno e indivisível, imune às escolhas dasfamílias. Mas o nosso sistema educativo está muito próximo disso.Vejamos alguns exemplos:

1. Até Agosto de 2001, os resultados obtidos pelas escolas nos examesnacionais eram mantidos secretos pelo Ministério da Educação.2. Ainda hoje, não pode haver escolha da escola estatal pelas famílias,sendo a escola atribuída obrigatoriamente de acordo com o local deresidência.3. Existe uma desigualdade chocante no tratamento das escolas e dasfamílias perante a lei: as escolas do Estado são gratuitas e pagas peloscontribuintes, quer os seus filhos as frequentem ou não; as escolasparticulares têm de cobrar propinas, pagando a dobrar os contri-buintes cujos filhos as frequentam - pagam as propinas dessas escolasparticulares e pagam os impostos para as escolas do Estado.

Em meu entender, um passo novo e muito grave foi dado pelo Esta-do na sequência do referendo sobre o aborto, em que a proposta delegalização do aborto gratuito a pedido foi derrotada. Esse passoconsistiu na introdução de um programa central, uno e indivisível de educaçãosexual nas escolas. Considero esse programa uma gravíssima manifes-tação de engenharia social autoritária. Trata-se de um típico programa

Debate

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de Homem Novo, contrário à maior parte das convicções da maiorparte das famílias. Nele se defende que todos os comportamentossexuais são igualmente válidos e dignos de adopção. O únicoconstrangimento colocado à promiscuidade sexual é o da segurança.Este é, aliás, o mesmo princípio explicitamente adoptado pelascampanhas sexuais do Ministério da Saúde, pagos pelo dinheiro doscontribuintes. Felizmente, estas atitudes foram corrigidas pelo actualGoverno.Julgo que aqui chegamos ao culminar do paradoxo de que falei noinício: em nome da liberdade, um grupo central de especialistasquer impor às famílias um código de valores que contraria flagran-temente os valores livremente assumidos por grande parte das famílias.É perante esta situação que urge tomar medidas sensatas para evitarque, mais tarde, venha a ocorrer um choque radical entre as famíliase os especialistas. Essas medidas devem visar reequilibrar o nossosistema de ensino. Dado que ele está desequilibrado para o lado doEstado, as reformas devem reequilibrá-lo para o lado das famílias.Não se trata de combater ou de privatizar as escolas estatais. Trata-sede as descentralizar, de lhes permitir que adoptem diferentes pro-jectos educativos e de as submeter em seguida às escolhas das famílias.Para isto ser possível, é ainda indispensável consolidar e reforçar adivulgação dos resultados obtidos pelas escolas - para que as famíliasos conheçam e possam escolher em conformidade.Mas há outro passo fundamental: é preciso terminar com o profundodesequilíbrio entre o financiamento das escolas particulares e dasescolas estatais. Neste capítulo, seria muito importante conhecer oscustos da educação por aluno em cada escola. Temos razões parapensar que, ao contrário do que se julga, o custo nas escolas doEstado é em média superior ao das escolas particulares - sendo queos serviços oferecidos não são em regra superiores. Isto pode ficar a dever-se a má gestão, o que não seria de espantar, dado que asescolas do Estado não estão submetidas à concorrência de ninguém,enquanto as escolas particulares estão submetidas à concorrênciadesleal das escolas do Estado. Se assim for, isso significa que a passagem

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para um sistema de financiamento às famílias, em vez de às escolas,custaria menos aos contribuintes.Não pretendo, no entanto, apresentar um programa sobre a reformado sistema. Pretendo apenas sublinhar os desequilíbrios que patenteiae apelar a uma vasta discussão pública sobre o tema. E pretendo apelara que essa discussão permita que as nossas escolas sejam cada vezmais, e não cada vez menos, escolhidas pelas famílias.+* Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

e da revista Nova Cidadania. Presidente da direcção da Associação Portuguesa

de Ciência Política e da secção Portuguesa da International Churchill Society.

Conferência proferida no Instituto D. João de Castro, em 6 de Novembro de 2003

Debate

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Este livro - Informações

e Segurança - é compostopor uma série de estudos

interdisciplinares escritos emhonra e memória do GeneralPedro Cardoso. Começarei portecer algumas consideraçõessobre o tema e, depois, lembrareias razões pelas quais os estudos seorganizaram tendo a figura doGeneral como referência.Entrámos no terceiro milénioenfrentando um desafio à valida-de de todos os conceitos relativosà segurança e defesa, partindo dofacto primeiro de estar em crise o modelo de Estado soberano emque assentou o clássico desenvol-vimento do tecido conjuntivo dacomunidade internacional, de

Informaçõese SegurançaEstudos em honrado General Pedro Cardoso Editora Prefácio, Lisboa, 2004

Adriano Moreira*

ser fluida a definição da polemo-logia do século XXI, de toda a prospectiva estar subordinadaao preceito de que “o presente é complexo e o futuro é radical-mente incerto”.Se todos os Estados e comuni-dades estão afectados por estatendência que os analistas maisesperançosos chamam “anarquiamadura”, os pequenos Estados,sobretudo os que participaramnas responsabilidades mundiaisaté a extinção do paradigmada colonização euromundista,foram os mais atingidos pelofim da vida habitual que se designapor ordem estabelecida.Portugal foi dos mais severamen-te atingidos, entre os países da

Recensão

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frente marítima atlântica, peloesgotamento do seu conceitoestratégico nacional secular,pagando o duro preço de umaguerra de treze anos.No período dos anúncios mallidos da mudança radical, que nadécada de sessenta iniciaria a reivindicação armada, as elitesresponsáveis, militares e civis,abarcaram subitamente o mundoem mudança, e tão contrário à então perspectiva portuguesada vida habitual, ao entraremrespectivamente na NATO e naONU.Não é oportuno recordar aqui o trajecto dos serviços de informa-ção, nas Forças Armadas e necessa-riamente no Ministério do Ultra-mar, porque a menção se destinaapenas a sublinhar que o GeneralPedro Cardoso teve as duas experi-ências, apoiado na formação obti-da na Military Intelligence School,quer porque foi em Angola o pri-meiro Director do CITA criadoem 1961, quer porque teve inter-venção pessoal na criação peloMinistério do Ultramar, em 29 de Junho de 1961, dos Serviços de Centralização e Coordena-ção de Informações (SCCI)nas províncias cujos governado-

res o considerassem necessário.É aconselhável não incluir, nasomissões que pontuam a históriada guerra no ultramar, quer o primeiro sinal de compreensãoda necessidade de um serviço deinformações que foi dado peloAlmirante Lopes Alves quando,em 1958, criou o Gabinete deNegócios Políticos do Ministériodo Ultramar, quer o processo alidesenvolvido a partir de 1961para enfrentar uma situação queultrapassou, e de algum modocontrariou, o pressuposto estra-tégico da NATO, onde predomi-navam os critérios da desmobili-zação colonial.Recentemente recordava John Kee-gan, no seu Intelligence in War (2003)“uma das mais importantes ver-dades sobre o papel da “intelli-gence” na guerra: por valiosa quepareça a informação disponívelantes de um empenhamento, o resultado, dada a igualdade depoder, continuará a ser decididopelo combate; num combate, a determinação, ainda quegarantida a igualdade de meios,será o factor principal”.Na data em que se iniciaram asoperações militares, no entãoultramar português, eram escassos

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os meios à disposição das ForçasArmadas, era rudimentar o apa-relho de recolha de informaçãodisponível, não eram numerososos oficiais que pudessem ter obtidoas experiências, que referi, naNATO e na ONU, não era aindamuito consistente o esforço emcurso para teorizar a articulaçãoentre os modelos de vida habitualda ordem euromundista emqueda, e os modelos de respostaem cuja formulação participaramcom notoriedade aquelas duasinstituições supranacionais.Foi um caso de estudo em que a determinação a que se refereKeegan avultou como factoressencial, e neste domínio daintelligence logo começou a desta-car-se o jovem Major PedroCardoso que tive a honra denomear para a direcção do pri-meiro CITA - Centro de Infor-mação e Turismo de Angola(1961).A sua lembrada formação naMilitary Intelligence Schoolapoiava o conceito profissionalque já então o distinguia, e essafoi uma escolha feliz, útil para osinteresses portugueses, o valiosoinício de uma experiência que o acreditou para o desempenho

de altas responsabilidades que aolongo dos anos, em clima decrise nacional, lhe viriam a serconfiadas.Naturalmente devem ser lembra-dos os estudos que, designada-mente neste Instituto de AltosEstudos Militares, anteciparamnesta área a crise iniciada em1961, recordando, apenas porexemplo, Hélio Felgas, Hermesde Oliveira, Nunes da Silva, osapontamentos ou guias organiza-dos para a formação na área daintervenção do exército na guer-ra subversiva, e que algumasvezes, por intervenção do Gene-ral Câmara Pina, puderam ajudarà docência no Instituto Superiorde Ciências Sociais e Políticas.Mas recordado isto, devo insistir,pela natureza do acto em queparticipamos, na excelência inte-lectual com que o General PedroCardoso, mantendo sempre vivaa curiosidade científica e cultural,conseguiu mobilizar os saberesdisponíveis para enfrentar umaconjuntura cuja mudança pro-grediu no sentido de entrarmosno milénio sabendo apenas que“o presente é complexo e o futuroé radicalmente incerto”.Não é certamente necessário

Recensão

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lembrar neste auditório a carreiramilitar brilhantíssima que teve,aliás magnificamente recordadapelo In Memoriam escrito para estevolume pelo seu ilustre camaradade armas, e autor reputado, que é o senhor General José LopesAlves. Mas será sempre oportunorecordar aquela virtude de ser fielao eixo da roda, isto é, à tábua devalores que certificam a integri-dade de um homem, provada sembeliscadura em resposta a todos osdesafios. Como se disse de SãoThomas Morus, proclamadopatrono de governantes e parla-mentares por João Paulo II, a manfor all seasons.

A partir daquele cruzar de vidas,na Angola de 1961, tive a felicida-de de consolidar uma amizadesem desencontros com o GeneralPedro Cardoso, a qual durou atéao fim dos seus dias.Foi a sua longa experiência e comprovado saber que me levoua pedir-lhe a colaboração, na qua-lidade de Professor Catedráticoconvidado, para integrar os regen-tes do Mestrado em Estratégia queorganizei no I.S.C.S.P., da Uni-versidade Técnica de Lisboa, e para me acompanhar na coorde-nação da Revista Estratégia, anual,

onde marcou uma intervençãodominante até ao 12º. Volume,aparecido em 2002. Está nestadata substituído pelo Major--General Pinto Ramalho, que noI.S.C.S.P. fez o mestrado.Foi o exercício da docênciauniversitária que inspirou a organização do livro que nosreúne nesta cerimónia, porqueessa é a tradição no que respeitaaos professores, mas sugerimosque esta publicação sirva deponto de partida no sentido de a tradição ser adoptada pelasForças Armadas.Finalmente desejo acrescentaralgumas palavras sobre o magisté-rio cívico e profissional doGeneral Pedro Cardoso, e o seulegado.A evolução da conjuntura, a pro-funda alteração da polemologia,a indefinição da ordem mundialdepois do fim da Ordem dosPactos Militares em 1989, a insegurança sem fronteiras, a criminalidade internacional,o terrorismo global que ameaçaos ocidentais sempre de algummodo desavindos, tudo aponta nosentido de que o 11 de Setembroseja aviso suficiente para que ospequenos países reforcem os ser-

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viços de informações, fortaleçamo aparelho diplomático, avaliemcom rigor a capacidade de esta-rem presentes nos centros dedecisão para não serem apenas osdestinatários das decisões alheias.Uma das lições deixadas peloGeneral Pedro Cardoso, autori-dade incontestada na área da intel-ligence, foi a de se manter firme noexercício do cargo de Secretário-Geral da Comissão Técnica doServiço de Informações, animan-do a perícia possível dos serviços,transferindo a experiência para adocência , sem deixar abalar a suafidelidade aos interesses nacionaispelo facto de os anos do seu últi-mo mandato terem corrido semque a agenda do responsável polí-tico pela coordenação dos váriosserviços de informação registasse

oportunidade ou necessidade deo encontrar.Este exemplo foi certamentedeterminante para o facto deserem tantos, e de mérito tãodestacado, os que quiseram jun-tar-se para organizar este livro,cuja realização editorial corres-ponde inteiramente à homena-gem. À homenagem que lhe édevida pelo civismo, pela dedica-ção à instituição militar, pelosserviços prestados à investigação eà docência, pelo legado.E também pelas qualidadeshumanas, que fizeram dele oexemplar chefe de família, oexemplar camarada e chefe, oexemplar docente, um senhorem todas as circunstâncias. Tudosintetizável numa palavra só: umportuguês.+

* Texto lido na apresentação do livro, no Instituto de Altos Estudos Militares, em 19 de

Feveriro de 2004

Recensão

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Quando, em 19 deFevereiro passado,no Instituto de Altos

Estudos Militares, foi lançado o livro intitulado – Informações e Segurança, conjunto de estudosem honra do General PedroCardoso, o tema das informa-ções fora colocado na primeiralinha das preocupações cívicaspelo atentado contra os EUAefectuado em 11 de Setembro de2001, pela série de intervençõesmilitares subsequentes, e peloenquadramento de gravesameaças todas filiadas nomodelo do terrorismo global com

AsInformaçõesem PortugalPedro CardosoEdição do Instituto de Defesa Nacional / Gradiva, 2004

ADRIANO MOREIRA*

que a frágil ordem internacio-nal foi desafiada e abalada.A imprevista humilhação dasuperpotência sobrante do fimda Ordem dos Pactos Militares,ela própria caracterizada pelaameaça do holocausto nuclear,tinha chamado a atenção para a continuidade dos acidentes de imprevisibilidade de que a administração americanatinha experiência e consciência,uma constante teorizada porJohn Keegan no seu Intelligence inWar, de 2003: o governo dos EUAfora designadamente surpreendi-do pela guerra do Médio Oriente

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de 1973, pela Revolução de Abrilem Portugal, pela crise de Chipre,pela chegada da União Indiana aopatamar nuclear, e agora pelopoder errático da Al Qaeda, a confirmar que “o presente é complexo e o futuro é radical-mente incerto”.A intensa concentração de todasas instâncias responsáveis sobre a desafiante problemática nãoimpediria que, no tempo acelera-do de todas as mudanças queenfrentamos, de novo fossemosbrutalmente surpreendidos peloatentado que em Madrid, no dia11 de Março corrente, mais umavez demonstrou que o martíriodos inocentes é o elemento maisimportante do “apocalipse daRazão”, como lhe chamou Adeli-no Torres, desta subida aos extre-mos sem modelo histórico dereferência.É justamente a incerteza quereferimos que desafia a inteligência,tanto neste domínio das infor-mações como na área das prope-dêuticas em que se apoia, porquenão é demais insistir no carácterracionalizador deste serviço doEstado, submetido à debilidadeestrutural de que é impossível iralém de tentar compreender

aquilo de que se conseguiuinformação ou indício.Esta perspectiva está presente emtodos os ensinamentos legadospela acção e pela teorização doGeneral Pedro Cardoso, de queo livro hoje lançado em nova edi-ção é apenas uma parte.Na data em que organizou os seusestudos destinados à Revista Naçãoe Defesa que recolhe grande partedo património deste Instituto deDefesa Nacional, o Generalexperimentado nos desafios daguerra colonial, e chamado a enfrentar a reorganização doEstado e da sociedade civil portu-guesa na década de 70 do séculopassado, surpreendia e anunciavaduas novidades afirmadas na fluidaconjuntura: a actividade sindicalque necessitaria de “ser esclarecidasobre os perigos que a ameaçavame apoiada para que sirva damelhor maneira os interesses dostrabalhadores”; e “a políticapartidária que tem de ser espe-cialmente apoiada com toda a equidade”, designadamente“no planeamento da segurançadas instalações e dos dirigentesquer em território nacional,quer no estrangeiro”. Nãoforam pacificamente recebidas

Recensão

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estas considerações dessa data,talvez porque ainda não puderamentão ser lidas à luz da ética doEstado democrático, porque pesa-va, como pesou na elaboração doestatuto legal do serviço nacionalde informações, a memória doscânones dos regimes autoritários.Não obstante, o saber do autornão foi dispensado desde a referi-da década de setenta até à suamorte em 5 de Agosto de 2002,porque aquela leitura foi sempreseveramente renovada ao ritmo daevolução intelegível da conjuntu-ra, que rapidamente determinouque os problemas domésticos fos-sem ultrapassados pelas depen-dências transnacionais crescentes,e nessa situação nos encontramosperante o terrorismo global.No entretanto, o problema daopinião pública, também ela subme-tida ao processo da mundializa-ção, emergiu como realidadenova, condicionadora dos movi-mentos do eleitorado, das massas,e da política dos governos emcrise de soberania.Como demonstrou a catástrofeque atingiu a Espanha, um dosnovos desafios que exigem con-ceptualização, racionalização,directivas e código de boas con-

dutas, é o da relação entre asinformações, os media, e os centros dedecisão política.Repensando apenas a variável quese afigura mais desafiante, aomesmo tempo que a opinião públicacondiciona já o processo interna-cional, também os centros de deci-são política internos se encontramfrequentemente ultrapassados pelainformação em tempo real, que os mediaexercem apoiados em investigaçõesautónomas.A capacidade de ter e exercer umafunção antecipadora, e no passadonão raramente mistificadora, daopinião pública que vai medindoa legitimidade de exercício dassoberanias, foi ultrapassada, e oscentros de decisão política encon-tram essa opinião pública já orga-nizada a partir dos media.No trágico atentado de Madridestá um caso de estudo desta rela-ção, que aponta para a actualida-de do tema da nova ordem da informa-ção, e para a premência de rever osconceitos governamentais da inte-ligência, o ambiente cultural que a rodeia, a consistência da educa-ção para o exercício da cidadaniaque esta actividade de Estado per-manentemente desafia.Que desafia designadamente em

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relação ao conceito do Estado deDireito, sempre em risco de desviossecuritários sobretudo se o martíriodos inocentes, em que fundamen-talmente se traduz o modus operanditerrorista, empurrar para directivasdesse tipo, em relação às quais o General Pedro Cardoso precavia.Uma relação consistente, normali-zada, responsável, entre inteligência e media, é básica para que a frentejurídica progrida sem desvios emrelação aos direitos e garantias,entre os quais avulta, por lição daexperiência em curso, o de elimi-nar a manipulação da informação.O governo britânico acaba deanunciar um plano, o qual deve-rá estar operacional em 2006,para combater a criminalidadede nova espécie, que inquieta o seu eleitorado, que ensombra a ordem mundial, e que abala aspossibilidades de uma sociedadecivil mundializada a viver em paz e segurança. O novo organismo –Serious Organised Crime Agency(SOCA) – toca deliberadamentena redefinição das garantias secu-lares da cultura jurídica britânica,e vai ganhando feição entre a ansiedade pública em relação às

ameaças pressentidas, e a preocu-pação cívica a respeito da integri-dade dos valores democráticos.Nenhum país, e sobretudonenhum país ocidental, podedeixar de assumir e participar em todas estas inquietações, e nenhum governo terá legitimi-dade assegurada se não assumir a urgência e o dever de se reorga-nizar para esta circunstância.É excelente que possa recorrer aopatrimónio legado por servido-res do Estado, como o GeneralPedro Cardoso, e que o sentidoda urgência encontre estímulono entendimento de que algumanegligência passada, que eledolorosamente viveu e testemu-nhou, seria retribuída, nas cir-cunstâncias presentes, com riscose penalizações que o 11 de Marçomadrileno anunciou. A lição doGeneral foi no sentido da pre-venção dos riscos. A imposiçãodos factos é a da incerteza daconjuntura, a exigência cívica é ado envolvimento da sociedadecivil bem informada, e confiantena legitimidade de exercício doscentros de decisão política. O livro de hoje é uma referência.+

* Texto lido na Apresentação do Livro, no Instituto da Defesa Nacional, em 29 de Março de 2004

Recensão

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Catorze autores analisamo terrorismo ao longode meio milhar de

páginas. Uma das vantagens destetipo de colectâneas é que permitemaquele ciclo do interromper-–retomar da leitura sem ficarmoscom a sensação de que quebra-mos e perdemos o fio de raciocí-nio da obra. Em contrapartidasomos confrontados com textosde carácter desigual quer no inte-resse quer na forma de aborda-gem. Assim, os 11 textos destelivro não constituem de modoalgum um “continuum”, antesuma espécie de mural e é umpouco como um mural que fazsentido abrir este livro.Guardem-se portanto para o fimos textos de reflexão de AdrianoMoreira, que, além do Prefácio, a que deu o título “Trajectóriainquietante”, assina também o segundo artigo desta colectânea,

TerrorismoCoordenador: Adriano Moreira

Edição Almedina, 2004

HELENA MATOS*

“Insegurança sem Fronteiras: o Martírio dos Inocentes”, e começa-se a leitura com“Terrorismo: o Apocalipse daRazão” de Adelino Torres. Cempáginas essenciais sobre o terro-rismo, escritas com fluência e muita informação. Particular-mente importantes são as contri-buições de Adelino Torres nadescrição de fenómenos como o ressentimento na génese para a descrição do terrorismo inte-grista. Igualmente perturbantessão as páginas que o autor dedicaà ciência, sobretudo ao desígniode vários países muçulmanos emcriar uma ciência muçulmana.Este é um dos “Apocalipses darazão” descritos por AdelinoTorres, a quem se deve tambémuma detalhada análise da situaçãoeconómica actual do PróximoOriente. Na mesma linha de des-crição do terrorismo integrista,

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temos o texto de Maria do CéuPinto, “A Jihad global e o contextoeuropeu”, cuja leitura é impres-cindível na sequência dos acon-tecimentos de 11 de Março emMadrid e que igualmente ajuda-rá a contextualizar a polémicasobre o uso do véu em França.Para a autora, a “Jihad globalpromove a teoria do Estado islâ-mico não-territorial que afirmaque as comunidades muçulma-nas no Ocidente deveriam serentendidas como um Estadoislâmico, territorialmente des-contínuo, mas onde existe a obrigação de impor a lei islâ-mica”. O facto de os islamitasserem uma criação do mundomoderno, usando as tecnolo-gias e circunstâncias dessemesmo mundo – políticas deacolhimento da UE, a propaga-ção da Internet e a própria glo-balização – para melhor conse-guirem os seus objectivos é umdos conceitos desenvolvidos porMaria do Céu Pinto e tambémpor Maria João Simões autorado texto “Terrorismo(s) e usosdas Tecnologias de Informaçãoe da Comunicação”.Menos descritivos e mais expla-nativos das diferentes formas de

combater o terrorismo são osartigos de dois militares quecolaboram nesta colectânea, o tenente-coronel José GarcíaSan Pedro e o tenente-generalGarcia Leandro, e de ManuelValente, Luís Fiães Fernandes e Nuno Rogeiro. Aqui o regis-to dos textos é claramenteoutro. Apesar das diferentesabordagens, jurídica no caso deJosé García San Pedro eManuel Valente, militar porGarcia Leandro, e de políticade segurança desenvolvida porNuno Rogeiro e Luís Fiães Fer-nandes, perpassa nestes textosum olhar simultaneamentepragmático e cauteloso, o olharde quem se assume numa pos-tura de especialista perante umpoder político que vive aoritmo dos ciclos eleitorais.“Ensinar o poder político a criar cenários e estratégias” –é uma frase de Nuno Rogeiro e de alguma forma é essa a ati-tude patente nestes quatro arti-gos. Nesta antevisão dos cená-rios é particularmente repre-sentativo o artigo de ManuelValente “Terrorismo, funda-mento de restrição de direi-tos?”.

Recensão

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De alguma forma os dois artigosde Adriano Moreira completameste livro. Adriano Moreiraassume-se claramente comoalguém a quem os anos e a expe-riência política deram um esta-tuto especial para falar sobre os EUA enquanto potênciasobrante e desse momento derotura em que, a propósito doIraque, o Ocidente se dividiuno Conselho de Segurança daONU. Aliás, o regresso à legiti-midade da ONU e à solidarieda-de atlântica são a espinha dorsaldas teses aqui desenvolvidas porAdriano Moreira.Pode perguntar-se: e os res-tantes textos ainda não referi-dos estão a mais? Deles sepode dizer que estão sobretu-do a menos, apesar de versa-rem uma temática crucial: “Ointelectual, a motivação artís-tica e o terrorismo”. Na ver-dade, apenas nos dois peque-nos textos que funcionamcomo introdução à temáticados intelectuais – “O intelec-tual e a criação artística” deJoão Pedro Silva e sobretudoem “A experiência dos escri-tores” de José Carlos Venâncio– se aflora a relação dos inte-

lectuais ocidentais com o ter-rorismo.Já os textos seguintes “A pers-pectiva dos pintores: umolhar perturbante” de JoãoPedro Silva; “A perspectivados músicos: a música que elesnão queriam que ouvíssemos”de António Luís Ferronha; “A experiência dos intelec-tuais do terceiro mundo” e “A experiência dos escrito-res” de José Carlos Venânciofigurariam com muito maispropriedade numa colectâneadedicada não ao terrorismomas sim à experiência dosintelectuais em regimes dita-toriais. Assim, por mais inte-ressante que seja recordar o percurso de Shostakovich naURSS estalinista ou de ZecaAfonso durante a ditaduraportuguesa, o que o leitoresperaria ver abordado nestestextos teria sido, por exem-plo, o caso do compositoralemão Karlheinz Stockhau-sen, que classificou o atenta-do terrorista de Setembro de2001 como “a maior obra dearte jamais realizada”, ou a recente problemática vividano meio cinematográfico

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a propósito do documentário“Pelota Basca”, que aborda o terrorismo etarra.Não deixa de ser significativo queesta colectânea seja muito equili-brada e informada quando falado terrorismo e dos terroristasenquanto entidades externas ao

nosso mundo, que igualmentetenha textos de enorme perti-nência sobre as formas de secombater esse mesmo terroris-mo e que fraqueje quando sepropõe olhar para o lado de cá,seja esse lado de cá o dos intelec-tuais ou o do cristianismo.+

* Jornalista e Escritora.Texto Crítico Publicado no Jornal “Público”, em 20 de Março de 2004

Recensão

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Anoção de fronteira, deconteúdo variável, é per-manente na obra já con-

siderável de Maria Regina Mon-giardim, a autora de O Alargamentoda União Europeia, Novos Vizinhos.

O seu Fundamentos Político-Diplomáticosda CPLP (2002) trata da definiçãode um espaço da lusofonia, comtodos os valores culturais, econó-micos e políticos, que a línguatransporta; depois, o estudochamado O Conceito de Fronteira naÉpoca da Mundialização (2002)ocupa-se da desfibração das fron-teiras geográficas, antes sagradaspelos valores patrióticos, hoje

reavaliadas pelas integrações emgrandes espaços variáveis; usandouma experiência participantede profissional escreveu sobreas fronteiras interiores daEspanha o ensaio que intitulouOs Nacionalismos Periféricos em Espanha

- Sua Projecção Internacional (2002),que analisa a evolução da Espanha,una, grande e livre para a Espanha das

nacionalidades, com a redefiniçãointerna de fronteiras que conti-nua fonte de incertezas; as ReflexõesSobre o Terrorismo Internacional (2003)enfrentam esse desafio sem fron-teiras que em 11 de Março corren-te fez de nós todos espanhóis.

O Alargamentoda UniãoEuropeia. Novos Vizinhosde Maria Regina de Mongiardim

Editorial Prefácio, Lisboa, 2004

ADRIANO MOREIRA*

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Agora, o trabalho sobre O Alarga-mento da União Europeia, Novos Vizinhos

(2004) tem como núcleo centraleste conceito: “tudo menos asinstituições é, segundo RomanoProdi, a palavra de ordem dapolítica europeia de vizinhançaou de proximidade. Ou seja, o reforço das dimensões política,económica, social, cultural e ins-titucional de relacionamentobilateral da União com todos ospaíses situados na vasta região quea cerca, e que se estende desde o Mar de Barents, a Norte, aoMar Negro, a Sul, desde a mar-gem sul do Mediterrâneo frente a Espanha, aos países mediterrâ-nicos situados a Leste deste Mar,sem naturalmente incluir a hipó-tese de uma futura adesão dessesmesmos países”.Na análise desta mudança, que é mudança profunda em relaçãoao projecto inicial de JeanMonnet, o Inspirador, que é mudança radical de conceitoestratégico, que é mudança semprecedente de integração cultu-ral, a autora alia à disciplina académica que lhe valeu o Douto-ramento em Relações Internacio-nais com a maior classificação, a experiência diplomática de

sobrepor a razão à emoção. O livro não descuida os reflexosdesta alteração do conceito euro-peu sobre a conjuntura portu-guesa, cuja evolução das frontei-ras foi acelerada, e até dramática,desde o fim da Segunda GuerraMundial e fundação da ONU:alteração das fronteiras geográfi-cas, e autonomização das fron-teiras económica, política, desegurança e cultural. Nem sequera mudança do conceito históricosecular que se traduzia em reco-nhecer o Muro de Castela comoo da única vizinhança política,quando agora o Marrocos, até aopresente com tendência ociden-tal, deverá ser reconhecido comoa segunda fronteira geográficaportuguesa. Todavia, inscritos nogrande espaço que é a UniãoEuropeia em alargamento, esteensaio da Maria Regina é umareferência oportuna, acrescenta-rei que indispensável na línguaportuguesa, para meditar sobreos efeitos, talvez nem todos pre-vistos e assumidos do alargamen-to. Referirei antes de mais a complexidade cultural crescen-te do espaço europeu: quer pelodesenvolvimento do fenómenodas minorias europeias que mul-

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tiplicaram as providências legaisdepois da guerra de 1914-1918;quer pela presença vultuosa dostrópicos na Europa, fenómenoonde avultam os 15 milhões demuçulmanos; quer pela previstaadmissão da Turquia que traráconsigo a questão dos curdos

a acrescentar aos problemas inte-riores dos bascos e dos irlandesesdo Norte; quer pela definição devizinhanças a sul com os países doNorte de África; quer pela vizi-nhança com a Rússia recuperadapara o estatuto de um Estado igualaos outros, e trazendo de acrésci-mo temas como os da Bielorrúsia,da Ucrânia, da Moldávia.Julgo que o primeiro trabalhoque se ocupou de Portugal nabalança da Europa, quando sedesenvolvia a primavera dasNações, foi o ensaio de AlmeidaGarrett, que é necessário recupe-rar para a leitura da conjunturaem que nos encontramos. Depoisdisso, sobretudo após a adesão dePortugal à Europa, sem outraescolha, multiplicaram-se osestudos, mesmo universitários,em parte procurando identificaro eixo da roda que defende as iden-tidades europeias para além detodas as mudanças. Todavia,

o presente trabalho é talvez o pri-meiro que se ocupa da verdadei-ra mutação causada pelo alarga-mento que foi inspirado pelaqueda do Muro de Berlim em1989, pela reunificação da Ale-manha que Estados europeus dalinha da frente temeram, e queparece ter levado a expropriarpara a União o conceito daNATO que prometeu e conse-guiu levar a liberdade do Atlânti-co aos Urais. Esta definição daEuropa, agora com programaconstitucional em discussão, nãotem precedente histórico, salvoantecedentes utópicos dos pro-jectistas da paz a lidar com estru-turas políticas e repartos territo-riais completamente diferentes.A percepção dos novos vizinhosque inspirou a autora deste livro,é uma premissa indispensávelpara reorganizar objectivos,inventariar capacidades, conciliarmemórias históricas, confrontarmodelos culturais, exercitarsoberanias cooperativas, formu-lar estratégias de segurança, deexpansão, de dinâmicas damudança que preservem a paz.Naturalmente, o ensaio nãopodia deixar de inventariar e sistematizar notas, pronuncia-

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mentos, inquietações sobre a Wider Europe, que de restoinquieta os parlamentos, os ana-listas, os comentadores, e desafiaescalas de valores historicamenteconsolidadas e experiênciassecularmente vividas. Mas essetrabalho académico é indispen-sável para articular as redes deinquietação, de inspiração, e dedecisão de cada país, com a redeem desenvolvimento da unidadeeuropeia, da sua forma política,da sua emergência como pilar dasegurança atlântica, programan-do a coerência do peso econó-mico com a influência política.Tudo a desafiar o conjunto quese torna progressivamente com-plexo, mas a desafiar também

cada unidade do sistema para o qual vai transferindo compe-tências, por vezes dependências,preferivelmente esperando for-talecer as solidariedades do con-junto. Por isso as páginas con-clusivas do ensaio são dedicadasaos reflexos assumidos ou cola-terais no que virá a ser o concei-to estratégico nacional, umtema que movimenta a socieda-de civil portuguesa, esperando--se que a caminho de as contri-buições serem avaliadas peloseleitorados e eventualmenteconsideradas pelos centros deci-sórios. Os trabalhos académi-cos, como o presente, não têmmaior ambição. Mas é umagrande ambição.+

* Texto lido na apresentação do livro, no Palácio Galveias, em 30 de Março de 2004

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Trata-se de uma obraque traduz "10 anosde estudo e reflexão"

de alguém que não é só um dosmaiores estudiosos destatemática como conjuga em sivárias qualidades: professor,investigador, erudito, jorna-lista e director de jornais, o primeiro provedor do leitor num jornal português e sobretudo o cidadão empe-nhado na construção de umademocracia moderna e digni-ficante para todos. Estas qua-lidades dão ao que escreve umaespessura e uma densidadeinvulgares e uma perspectivaoriginal.O livro reúne 27 textos, sendo7 inéditos e os restantes cor-

O QuartoEquívocode Mário Mesquita

Ed. Minerva, Coimbra, 2003

MARIA EMÍLIA BREDERODE SANTOS*

respondentes a artigos derevistas científicas, confe-rências, intervenções emcongressos nacionais e inter-nacionais da Universidade de Coimbra à de Vigo, da de Évora à de Lovaina, e de instituições como a Asso-ciação Portuguesa de Ciênciasda Comunicação ou o InstitutNacional de l'Audiovisuel -num período que abrangefundamentalmente a décadade 90.Poderíamos pensar estarperante um conjunto avulsode textos cuja republicação sejustificaria pelo nome do seuautor e pela qualidade de cadaum deles. Ora na realidade o livro lê-se como se tivesse

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sido escrito de uma formaordenada e planificada, commuito mais coerência internado que o próprio autor lheatribui.O título, em três palavras,sintetiza o conteúdo do livro e a sua forma de abordagem. "O Quarto Equívoco" remete-nos logo para "o quarto poder",expressão usada e abusada nostempos que correm não só paradenunciar o poder excessivo dosmedia, mas também para insi-nuar um paralelismo com os"poderes republicanos" e, por-tanto, evocar a necessidade delimites e contrapesos. Mas aosubstituir "poder" por "equívo-co", Mário Mesquita problema-tiza a questão: questiona e pro-voca.Logo a seguir vem o subtítuloexplicar tranquilamente: "O poderdos media na sociedade contempo-rânea".Esta é uma das características doestilo Mário Mesquita: questio-nar com erudição e ironia para,depois, reinventar um Norte,recriar uma "ordem"...É então dessa questão, hoje, defacto importantíssima, do poderdos media - e dos seus equívocos

- que o livro de M. Mesquita vaitratar.Recorda desde o papel daimprensa no caso Dreyfus àsgrandes sagas do jornalismoinvestigativo dos anos 70 - mastambém os diversos episódioslamentáveis que lhes sucederamnos anos 80 e 90 como o escân-dalo da reportagem ficcionada deJanet Cook no “WashingtonPost” em 1981 ou as manipula-ções do jornalismo televisivo noscasos da revolução romena em1989 e da Guerra do Golfo em1991 ... Estas sucessivas "derrapa-gens informativas" fizeram inci-dir sobre os media e os jornalis-tas um discurso fortemente críti-co - do qual ainda não saímos,sobretudo com as recentesdenúncias do jornalismo "enraí-zado".M. Mesquita analisa as possíveiscausas desta evolução, defendeque as imagens de "quartopoder" e de "contra-poder"foram enunciadas em situaçõesonde dominava a imprensaescrita, muito diferentes doactual universo mediático,dominado pela imagem televi-siva e pelo entretenimento.Hoje, a situação caracterizar-

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se-ia por uma contaminaçãoda informação pela lógica dodivertimento, "o reforço doscritérios de mercado emdetrimento das preocupaçõesintelectuais ou deontológicas, a introdução de novos ritmos e velocidades na divulgaçãodas notícias e a subordinação(...) das mensagens mediáti-cas a uma lógica de espectacu-larização".Trata-se, então, de encarar a "actividade jornalística nadiversidade de perfis dos seusprofissionais, na multiplicida-de dos seus géneros e na com-plexidade do questionamentoético e deontológico que deveestar associado ao seu exercí-cio" e tentar dar respostasactuais.As tarefas do jornalista seriam,hoje, "informar, narrar e con-vencer, sem se limitar a agra-dar" , como diria Ricoeur.E será essa a bússola que orien-tará Mário Mesquita já que,"em época de crise, perante osataques que visam reduzir a autonomia da informaçãojornalística, em nome de inte-resses estratégicos da política e da economia, a melhor defesa

do jornalismo consiste emproceder lealmente à sua pró-pria crítica. "Esta perspectivacrítica das práticas e dos dis-cursos do jornalismo contem-porâneo constitui uma posturaque, em educação, designaría-mos por "de amigo crítico":alguém que está do mesmolado, que compreende as difi-culdades, os dilemas, e as ten-tações do jornalista de hoje masque consegue manter algumadistância e dispõe de recursosinformativos, reflexivos, deon-tológicos para poder questionare criticar, não para anatemizaros jornalistas, o jornalismo ouos media, mas sim para os aper-feiçoar.Correndo o risco de ultrapas-sar as intenções do autor nabusca da coerência interna dasua obra, vejo nesta um verda-deiro fio condutor que con-sistiria, nas duas primeiraspartes, na apresentação dotema e sua problematização,ou seja, a identificação doactual poder dos media e danecessidade e possibilidade delimites e de regulações - "res-postas" que são tratadas naspartes seguintes: "Perspecti-

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vas" que inclui referências à Educação para os Media e à formação dos jornalistas;"Deontologias" onde, defendea actualidade e a utilidade dadeontologia e da função regu-ladora do meta-jornalismo. E "Cerimoniais" onde M.Mesquita se propõe integrar osgrandes acontecimentos ceri-moniais numa teoria do estadodemocrático.

Seguindo este fio condutor,compreendemos que esta obranão é só sobre o quarto poder,seus limites e regulações, masque traduz também uma preo-cupação com as insuficiênciase as imperfeições da nossa orga-nização democrática. E que visanão só o aperfeiçoamento jornalístico, mas, sobretudo,o aperfeiçoamento da própriacomunidade democrática.+

* Pedagoga

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Quando a política exter-na norte-americana –a empreendida pela

Administração Bush após osacontecimentos do 11 de Setem-bro - é objecto de significativascríticas, nos mais diversos qua-drantes, considera-se do maiorinteresse a leitura desta obra deHenry Kissinger. Importantereflexão crítica sobre a condutainternacional norte-americana,ela contém um vasto enunciado depropostas para responder aos

desafios mundiais do novo sécu-lo, bem como a denúncia dedeterminadas práticas e princí-pios que afectam a actual dinâmi-ca internacional, designadamen-te, o primado da economia sobrea política, o desvirtuamento dealguns princípios universais, ainadequação de certas institui-ções internacionais, e o facto deas políticas externas dos Estadosocidentais estarem, em grandemedida, hipotecadas aos jogospolíticos internos, o que lhes

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Precisará a América deuma PolíticaExterna?Uma Diplomaciapara o século XXI de Henry Kissinger, Gradiva, Lisboa, 2003

MARIA REGINA DE MONGIARDIM *

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retira coerência e lhes conferemaior vulnerabilidade face aosreptos do exterior.Toda a obra é articulada em tornoda defesa dos seguintes conceitos:o primado da diplomacia, enten-dida numa óptica de compreensãopelo “outro”, de negociação e com-promisso, a prevalência da políti-ca em detrimento de uma visãoeconomicista, a autonomia dapolítica externa face à políticainterna, numa perspectiva de sub-missão dos interesses conjunturaisaos superiores interesses do Esta-do, estruturais e permanentes, o abandono de uma políticaexterna orientada por factoresideológicos ou qualquer outraespécie de “clichés”, a defesaintransigente dos direitos dohomem, e a recuperação da geo-política, como factor de ponde-ração da política externa.Nela, o autor traça um quadro doactual ambiente internacional, daatitude e desafios dos EUA, dassuas relações com a Europa, dasmutações nas democracias oci-dentais, da Ásia e suas complexi-dades, do Médio Oriente e daÁfrica (que reúne num só capítu-lo, como “dois mundos em transição”),da globalização, dos princípios da

paz e justiça internacionais, dasociedade de informação e dostemas candentes da agenda inter-nacional, como o terrorismo, o conflito israelo-árabe, o Iraque,a Aliança Atlântica e a Rússia.Henry Kissinger acentua o papelde hiperpotência dos EUA, comresponsabilidades globais acresci-das e desfrutando “de uma supe-rioridade inigualável, mesmo quando

comparados com os maiores impérios do

passado”. Facilmente perceptívelnesta sua afirmação, é-o, tam-bém, na própria organização daobra, de recorte mundial. Noentanto, não escamoteia o para-doxo do escasso interesse america-no pela política externa, apontadocomo uma das causas da alegadaincapacidade dos EUA desenvol-verem políticas coerentes peranteas realidades internacionais emer-gentes, denunciando o que chamade “duplo mito” americano, conse-quência da sua prosperidade e davitória na Guerra Fria: o mito daesquerda, que confere aos EUAuma atitude missionária de der-radeiro árbitro dos problemasinternacionais; e o mito da direita,assente na afirmação da hegemo-nia americana e na imposição dassuas soluções. Para este analista

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político, mais importante do queo debate em torno dessas pers-pectivas – valores versus interesses -, interessa a sua fusão, únicaforma de conferir coerência e continuidade na orientaçãopolítica externa. Subtileza ideo-lógica e capacidade de delinearuma estratégia de longo alcance,são dois aspectos em falta nosEUA, onde o mundo tende a servisto sempre sob o prisma dosvalores que regem a própriasociedade norte-americana.Com semelhante espírito, a pre-sente geração de líderes norte-americanos tende a confundirpolítica externa com política eco-nómica e a insistir nas virtudesamericanas, razão pela qual a diplomacia dos EUA se tornou“uma série de propostas de adesão a um programa político americano”,ignorando que a globalizaçãoeconómica não substitui a ordeminternacional, apesar de ser umcomponente importante, que,paradoxalmente, acabaria porgerar maiores tensões, tanto den-tro como entre as sociedades, e por aumentar as pressões sobreas lideranças políticas mundiais.Acresce a tudo isto um cenário dereconstituição do Estado-nação,

velho pilar do sistema interna-cional, segundo duas tendênciascontraditórias: a sua diluição emgrandes espaços regionais e a desarti-culação, pela força, de comuni-dades étnicas. Considera o autor que a expe-riência histórica dos EUA pouco os preparou para afrontarem o mundo em mutação. Em segu-rança entre dois oceanos, rejeita-ram o conceito europeu de equi-líbrio de poderes, convictos deque a paz mundial radicaria napromoção universal dos seuspróprios valores, sem cuidaremda complexidade e heterogenei-dade desse mesmo mundo, dasrivalidades étnicas e culturaisexistentes, das diferentes atitudesem relação à vida humana, dadeslocalização das sedes de podere das alterações das próprias for-mas de poder, relativamente àsquais as decisões políticas e ascapacidades dos políticos corremo risco de ficar reféns dos avançostecnológicos e da sofisticação daeconomia. Na presente ordem internacio-nal, a impossibilidade de se ater a um só modelo de análise ou dese privilegiar uma só perspectiva(valores ou poder, ideologia ou

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“razão de Estado”) releva, segundoKissinger, da coexistência dequatro diferentes sistemas inter-nacionais e do respectivo estádiode desenvolvimento histórico: o sistema transatlântico, ondevingou a visão idealista norte-americana da democracia e dodesenvolvimento económico,apesar dos diferentes pontos devista internos, e onde as ameaçassurgem, principalmente, do exte-rior; o sistema asiático, de equilí-brio instável, onde as grandespotências são rivais estratégicos,com uma dimensão geográfica e populacional a ter em conta,sobretudo, quando comparadacom o mundo ocidental, masonde poderá vingar uma balançade poderes similar à da Europa denovecentos; o Médio Oriente,imerso em problemas de raizideológica e religiosa, tal como naEuropa do século XVII, e onde senão aplicam nem os critérios deWestfália, nem os fundamentoseconómicos, que regem a regiãoatlântica e o hemisfério ociden-tal, nem os estratégicos, que pre-dominam na Ásia; e a África,retalhada por fronteiras artificiaisherdadas do sistema colonial e abandonada aos conflitos étni-

cos, ao subdesenvolvimento, àsepidemias do século e à devasta-ção das guerras civis, em crise desobrevivência e à espera que a comunidade internacionalassuma a iniludível responsabili-dade de mitigar e erradicar osseus problemas. Refere Kissinger que, no hemis-fério norte, a guerra deixou deser um instrumento da políticaentre os Estados, apenas confi-nado às franjas da Europa e a determinados grupos étnicos.Pedra angular da política externaamericana, desaparecida a amea-ça soviética, a parceria atlânticapassava a representar o pilar fun-damental da ordem internacional,ao mesmo tempo que a globaliza-ção aprofundava os laços econó-micos e reforçava a interdepen-dência das economias de um e outro lado do Atlântico. No entanto, as relações transa-tlânticas não estão isentas decontrovérsias nos campos políti-co, económico e da segurança e defesa. Desaparecido o inimigocomum – a URSS –, reavivaram-se os métodos tradicionais da diplomacia nacional e produ-ziu-se uma acentuação das polí-ticas internas. Simultaneamente,

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a integração europeia deixava deser vista como um instrumento defortalecimento da parceria atlân-tica, sendo encarada por algunsdos seus adeptos como um con-trapeso aos EUA, ao mesmotempo que, de ambos os lados doAtlântico, os aliados tentavamredefinir as suas relações comMoscovo, em obediência a umjogo de compensações estratégicase de contrapesos políticos entreos três vértices do triângulo depoder formado por Berlim/Mos-covo/Washington. Este jogo have-ria de se repercutir na alteraçãoestrutural da Aliança Atlântica,como consequência dos sucessi-vos alargamentos e da criação deuma rede de estruturas institu-cionais cruzadas e paralelas,designadamente com a Rússia, ena diluição dos seus conceitos desegurança originais, desvirtuandoa sua natureza e pondo a nu a diversidade de interesses dosaliados. Neste contexto, deixariade haver de ambos os lados doAtlântico objectivos comuns e uma harmonização equilibradados interesses nacionais, enquan-to se aprofundava o fosso entre asdiferentes perspectivas sobre a ordem internacional e seus ins-

trumentos, dando azo a que o triunfalismo norte-americano,misto de arrogância e de indife-rença, derivasse numa perspecti-va hegemónica, e que a identida-de europeia emergente se posi-cionasse como contraponto aosEUA. Face a este cenário, Kissin-ger defende que, apesar de nãohaver uma ameaça comum quecongregue, de novo, os elementosdesgarrados da parceria atlântica,“a geopolítica não desapareceu como elemento da política internacional”, peloque, não apenas a Europa, semos Estados Unidos, poderá tor-nar-se uma “extensão peninsular, oumesmo um refém da Eurásia”, mastambém os EUA, separados daEuropa, correm o risco de setornarem “uma ilha ao largo das costasda Eurásia”, sendo obrigados a seguir, em relação à Europa, a estratégia do equilíbrio depoderes que sempre rejeitaram.Kissinger mantém que a Rússiacontinua a ser um elemento per-turbador da Europa e da ordemmundial, pelo que este recado nãotem apenas como destinatários osEUA, defendendo, neste contex-to, o abandono de posições pater-nalistas, de perspectivas políticasde curto prazo, a adopção de um

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sistema comum de defesa alarga-do, com cobertura europeia, e a criação de uma zona decomércio livre transatlântica. Estas considerações apoiam-se naconstatação de três desafiosdeterminantes para o futuro dospaíses da orla atlântica (económi-co, demográfico e evolução davasta região a leste e a sul daNATO e da UE), onde “o caosespreita”. É, portanto, do interessedos EUA envidar “todos os esforçospara revitalizar a relação atlântica e para

ajudar a definir um conjunto de objectivos

comuns, para tratar a Europa como um

parceiro próximo e para a consultar

devidamente antes das grandes decisões”. A parceria atlântica deveria,assim, ser estruturada em novosmoldes, visando o reforço daconfiança e da cooperação entreos aliados, mediante um novopadrão de consultas transatlânti-cas, em função dos avanços daconstrução europeia, e uma novaabordagem da cooperação,segundo um esquema de “círculossobrepostos” das áreas militar (ondea NATO não seria a única insti-tuição de referência), económica(Área de Comércio Livre Transa-tlântica), e política (ComitéDirectivo Atlântico).

Na América Latina, com a demo-cracia e a economia de mercadoinstaladas, e o processo de globa-lização em curso, as grandespreocupações radicam nas assi-metrias sociais, no aumento daviolência e na emergência de umnovo nacionalismo, que faz doconfronto com os EUA a princi-pal matriz da respectiva identida-de. Aqui, o grande desafio dosEUA consiste na capacidade de contrariar a fragmentação do continente em blocos con-correntes, através da Iniciativa das Américas, de abandonarem umavisão unilateral e militarista (ex.: Plano Colômbia), e deenveredarem por uma política decooperação, que elimine as resis-tências nacionais à estruturaçãodo hemisfério ocidental. Segundoo autor, esta região representa um“microcosmos” dos desafios interna-cionais que os EUA enfrentam,ilustrando as oportunidades deuma economia global baseada nasforças de mercado, e a necessida-de de construir “uma ponte entre asestruturas económicas e políticas”.Quanto à Ásia, complexa regiãoda geopolítica mundial, a ques-tão é conseguir um equilíbrioentre países ricos e pobres, países

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industrialmente avançados e paí-ses subdesenvolvidos, países degrandes e pequenas dimensões,de natureza arquipelágica oucontinentais, de elevada densida-de demográfica, de diferentescredos e religiões, países detento-res de armamento nuclear, paíseshegemónicos e dependentes, paí-ses rivais e de forte desconfiançarecíproca. Inviabilizar a emer-gência de um bloco hostil, queponha em causa a presença dosEUA na região (a economia daÁsia é responsável por mais de60% do total das trocas comer-ciais dos EUA), constitui o prin-cipal objectivo estratégico. Ao contrário do equilíbrio de poderesna Europa de novecentos, sustenta-do por Estados-nação de compo-sição etnocultural relativamentehomogénea, não existe na Ásiaum só equilíbrio, mas dois, emque o papel das principais potên-cias é instável: o do Nordeste(China, Rússia, Japão e EUA,diferentemente orientados sobre a questão coreana); e o do Sudeste(China, Índia, Japão, EUA e Indonésia, principais actores,obrigados a conciliarem os seus interesses com o Vietna-me, a Tailândia, as Filipinas

e a Austrália). Mesmo em ter-mos de segurança, os países asiá-ticos coexistem em dois sistemasdiferentes - o do equilíbrio glo-bal proporcionado pelos EUA e o do não-alinhamento - nãopermitindo uma abordagemuniforme sobre a construção daordem asiática. Apesar de, na Ásia, os EUAnunca terem conseguido imple-mentar um sistema de segurançasimilar ao adoptado para a Europa(NATO), os EUA beneficiam daambivalência que as realidadesgeopolíticas da região imprimemnas políticas nacionais de cadauma das potências, razão sufi-ciente para uma aposta nas rela-ções de cooperação com todosos países asiáticos, evitando situa-ções de confronto alimentadas porfalsos pressupostos político--ideológicos. Únicos pontos deintransigência deverão ser asameaças aos interesses nacionaisamericanos ou a defesa dos direi-tos humanos, tão intrinsecamen-te ligados à sua cultura.Ponto nuclear da afirmação dosEUA na Ásia, o relacionamentocom o Japão constitui um desafiotanto mais forte, é grande o abis-mo cultural existente e quanto às

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relações entre os dois paísespodem ver-se afectadas com a nova conjuntura mundial e regional, decorrente do desapa-recimento da ameaça soviética e da crescente influência daChina e da Coreia do Sul, a recu-peração da autoconfiança nipó-nica e os efeitos colaterais da pos-tura regional de Washington. E Kissinger alerta para o aumen-to do orçamento japonês de defe-sa (segundo maior do mundo),revelador da vontade nipónica demaior autonomia, pelo que sóum diálogo mais equilibrado serácapaz de relançar as relações bila-terais, impedindo o Japão deenveredar por uma via naciona-lista de tipo imperial. A dupla exigência dos EUA será,pois, redefinir a sua aliança como Japão e manter a sua ligaçãocom todos os países da região,cuidando de compreender assensibilidades culturais e estraté-gicas dos Estados em presença,quer no tocante às relações sino-americanas e suas repercussões norelacionamento bilateral com o Japão, quer no que se prendecom a política americana sobre o futuro da península coreana,atendendo ao desequilíbrio

estratégico que a alteração dopresente status quo poderá repre-sentar, a que não será indiferen-te a presença das tropas america-nas ao longo do paralelo 38, e o perigo de um recrudescimen-to dos sentimentos nacionalistascoreano, chinês e nipónico,nomeadamente, quanto ao futu-ro das bases americanas noJapão. A relações com a China têm queser reconsideradas. Refém dapolítica interna, a política dosEUA tem oscilado entre duasescolas de pensamento quedefendem, ora uma “parceriaestratégica”, negada pelos factos,ora uma postura semelhante à que foi mantida com a URSS,durante a Guerra Fria. O dife-rendo sobre Taiwan surge, nestequadro, como um instrumentodestinado a enfraquecer a China,o que, segundo Kissinger, cons-titui um erro estratégico, porquenem o contexto asiático é equi-parável ao da Guerra Fria, nemos EUA deveriam arriscar, sozi-nhos, uma política de contenção,salvo se fossem directamenteameaçados. Ao contrário daURSS, a liderança comunistachinesa não procura a dominação

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mundial, nem desafia a estruturainterna de outros países, com basena ideologia. É o nacionalismo, e não o comunismo, que poderálevar a China a um confrontocom os EUA, por causa de Tai-wan. É convicção de Kissingerque a política externa de Pequimtem um carácter mais defensivo,do que agressivo, em particularno que respeita aos EUA, geogra-ficamente distantes e sem nuncaterem representado uma ameaçaterritorial para a China.Face à China, o desafio dos EUAradica na capacidade de conduzirum diálogo permanente e cons-trutivo sobre questões sensíveis,como o futuro da Coreia, a pro-liferação de armas nucleares e toda uma panóplia de temas dachamada “New Age” (ambiente,cultura, educação, etc.). Dito deoutra forma, o desafio americanoestá, não em prosseguir umaestratégia de domínio, mas emprocurar estabelecer um equilí-brio entre as “várias constelações polí-ticas emergentes na Ásia”.Dividido pela religião e pela ide-ologia, o Médio Oriente encon-tra no conflito israelo-árabe a suacisão mais evidente, mas nãoexclusiva, relativamente ao qual os

EUA têm dedicado, de formainglória, parte do seu esforçopolítico-diplomático. Diz o autoracreditar que a solução desteconflito, por assentar em posiçõesreligiosas, culturais e territoriaisirredutíveis, passe pela exaustãofísica ou psicológica de uma daspartes e não pela celebração deum acordo. A proposta mais rea-lista seria, a seu ver, não umacordo definitivo, que as partesnão estão dispostas a aceitar, masa demarcação da coexistência e uma série de acordos provisó-rios e parciais. Desconhece se jáestarão reunidas as condiçõesnecessárias para o efeito ou se,pelo contrário, serão precisosmais “testes de força”. Sem coinci-dência entre as partes, designa-damente no que toca ao estatutode legitimidade e sua aceitaçãoirrevogável, será difícil uma aco-modação negociada de perspecti-vas tão antagónicas e interessestão opostos, como os que ali seobservam. Daí que a mediaçãode Clinton tenha optado poradiar a solução dos temas maissensíveis, mas essenciais, como o futuro de Jerusalém, os refu-giados palestinianos, a soberania,a água e o estatuto militar dos

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territórios palestinianos, privile-giando a dissuasão e a aceitaçãorecíprocas, entre Israel e a Auto-ridade Palestiniana. A realidade,porém, acabaria por desvendar asambiguidades, incentivando ascontrovérsias entre israelitas e palestinianos, enquanto nosEUA mantinham uma visãodemasiado idealista sobre o confli-to e a atitude das partes, agravadaspela natureza pan-islâmica que asnegociações assumiram devido à associação dos lugares sagradosàs disputas territoriais. Desacre-ditados pelos revezes anteriores,os EUA defrontam-se com o declínio da sua influência naregião, o qual é inversamenteproporcional à intransigência daspartes, ao incremento do terro-rismo subsidiado a partir do exte-rior e à recuperação de SaddamHussein. Num enunciado de nove propos-tas de solução para o conflitoisraelo-árabe, o autor dá prima-zia à coexistência e às questõesterritoriais. As demais questõesficariam para acordos posterio-res, em função da posição deforça de Israel na organização daagenda das negociações, o que é revelador da sua simpatia pela

parte israelita, e o leva a defendera exclusão desse processo, querdos europeus, por alegado favo-ritismo para com os palestinia-nos, se bem que advogue a neces-sidade de consultas aliadas, querde países árabes (Egipto ou Ará-bia Saudita), invocando razões deordem e coesão internas. ParaKissinger, o problema radica nosriscos de isolamento dos EUA e de imposição de uma solução a Israel, se bem que discorde queos EUA garantam a segurança deIsrael, visto considerar que arras-taria o país a envolver-se nosconflitos regionais.Mas, são as divisões no mundoárabe e as posturas do Iraque e doIrão, que o autor diz constituí-rem a maior ameaça para a segu-rança e prosperidade america-nas, devido, até, aos seus efeitosde propagação geográfica. Porrazões de regime e de condutainternacional dos dois países,associadas à proliferação dasarmas de destruição maciça, aoterrorismo e à exportação darevolução fundamentalista islâ-mica, os EUA adoptaram umaatitude de “dupla contenção”, cujosbenefícios têm decorrido, sobre-tudo, da hostilidade entre estes

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Estados mais poderosos daregião. Porém, os efeitos colate-rais da conduta dos mesmos reve-lam-se particularmente lesivos daestabilidade na zona. Considera o autor que os EUAtêm cometido vários erros tácti-cos, designadamente aquando daGuerra do Golfo, ao permitiremque Saddam Hussein, emboraderrotado, conseguisse escapar a todas as consequências da der-rota, reforçando a posição doIraque como elemento perturba-dor da região. No caso do Irão, a principalpreocupação reside na hostilidadede Teerão para com os EUA e nasua manifesta vontade em minar a diplomacia para a paz no MédioOriente, através, designadamen-te, do apoio ao terrorismo. Nãohavendo, afirma, uma motivaçãogeopolítica americana que funda-mente essa hostilidade, várias têmsido as ocasiões em que Washing-ton manifestou vontade paranormalizar as relações bilaterais,sob condição do regime de Tee-rão acatar as regras internacionaise as boas normas de convivência.Neste particular, a insistência dosaliados europeus sobre a conve-niência de prosseguir um “diálogo

crítico” com o Irão tem contribuí-do para afectar a relação atlânti-ca, se bem que Kissinger consi-dere que a administração ameri-cana tem feito também demasia-das concessões que, em lugar demoderar as posições iranianas, sópoderão reforçar a sua intransi-gência. Segundo o autor, a únicaabordagem a esta problemáticadeveria consistir num consen-so político transatlântico,firme e consistente, associan-do a diplomacia a pressões ade-quadas, e uma abertura diplomá-tica concertada em relação aoIrão.O fortalecimento das relaçõesdos EUA, mas, também, daEuropa, com a Turquia, pela sualocalização geoestratégica e orgu-lho nacional, e um diálogo estra-tégico mais intenso com a Índia,a prazo, devem fazer parte daperspectiva americana de mode-lar a estabilidade na zona. “A África pesa na consciência americana”,afirma Kissinger, pelo perfil dasociedade americana, pelas his-tóricas condições de vida dosafro-americanos, pelos endémi-cos problemas do continenteafricano e pelo alheamento dosEUA face a esta região, minada

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por guerras étnicas, pela corrup-ção, pela fome e pelas epidemias.“O desastre vivo da nossa época”, se nãohouver da parte do povo america-no e da comunidade internacio-nal um verdadeiro compromissocom o continente africano, refe-re o autor. Não são questões de segurança,mas sim exigências de ordemmoral que impõem uma novapolítica para a África, segundouma abordagem global, que alieos aspectos políticos, económicose sociais a considerações morais e práticas. Nesse sentido, a formade cooperação mais adequadapara fazer frente aos problemasestruturais do continente deveriaser a intervenção das Nações Uni-das, das ONG’s, de outras insti-tuições internacionais e do sectorprivado. O combate à sida seriaum dos planos prioritários destaacção conjugada, alargada a todoo continente. Os EUA e demais países indus-trializados seriam responsáveispela implementação urgente deum programa que materializasse a ajuda ao desenvolvimento, e contemplasse a formação técni-ca, o progressivo desmantela-mento alfandegário para os pro-

dutos agrícolas dos países querespondessem aos critérios dedesenvolvimento, e o perdão dadívida. As questões de segurançaficariam a cargo dos próprios afri-canos, com a Nigéria e a África doSul a desempenharem um papelde Estados directores, cabendoaos países industrializados a ajuda na criação e treino deuma força africana de manuten-ção da paz. A seguinte abordagem de Kissin-ger versa sobre a globalização,único sistema económico mun-dial jamais existente que, basean-do o crescimento na interdepen-dência e no mercado livre, pôsem causa o papel do Estado-nação – velho pilar do sistemainternacional -, sem contudoafectar os EUA, principal forçamotriz desta revolução económi-ca e tecnológica a nível planetá-rio. O autor mostra-se pessimis-ta perante a possibilidade de umacrise que, tendo apenas umcalendário imprevisível, temcomo certas as consequênciasavassaladoras do seu impacto.Regendo-se por critérios exclu-sivamente económicos, o sistemaglobal delapida compromissos e lealdades, sobretudo quando,

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no mundo em desenvolvimento,a penalização se impõe à recom-pensa, aumentando os sacrifíciose os ressentimentos por eles pro-vocados. Nesse mundo, a adop-ção do modelo americano consti-tui uma mudança revolucionáriaque não se compadece, nem comos padrões de vida habituais, nemcom os tempos demasiado longosdas reformas necessárias, gerandouma maior desestabilização sociale política. Ao contrário da eco-nomia, a política divide o mundoem unidades nacionais que, poruma questão de sobrevivência,procuram inverter ou amortecero impacto deste processo, medi-ante medidas de austeridade ouproteccionistas, que acabam porse revelar ainda mais nocivas.Concorrendo com este cenário, a vulnerabilidade do sistemafinanceiro internacional e a situ-ação indefesa dos países de menordimensão perante as crises desen-cadeadas e as soluções impostaspelo FMI, mostram à exaustãoquão penalizantes são as suas con-sequências que, de económicas e financeiras, se transformam empolíticas e sociais, agravando o fosso entre países ricos epobres. Mas o mundo globalizado

mostra uma outra tendência, quediz respeito ao fosso existentedentro das próprias sociedades,favorável à agitação política,entre os que têm acesso aos bensda globalização e os que deles sevêem privados.As manifestações antiglobaliza-ção, condenadas por Kissingerpela sua natureza “violenta, farisaicae niilista”, constituem, no entan-to, sérios avisos dos que se crêemà mercê de forças que são incapa-zes de combater, mas que seimpõem a todos os âmbitos maisrecônditos das sociedades caren-ciadas. Na hipótese de umarecessão no mundo industrializa-do, instalar-se-ia o caos e a imi-nência de um assalto políticodessas mesmas sociedades menosfavorecidas. Donde, o imperativode rejeitar a falsa ideia do carác-ter autocorrector e sem relaçãocom a política, dos fenómenoseconómicos, e o supremo desafiode humanizar o processo de glo-balização, mediante o reforço dabase política, dos compromissosnão eleitoralistas dos seus res-ponsáveis, e do sentimento deresponsabilidade social. Para alémdisso, requer o auxílio dos EUAna identificação dos problemas

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e na definição de fóruns de deba-te e decisões, que não sejam o espelho da ineficácia do actualG-8, mero “exercício de relaçõespúblicas”.Considera Kissinger que, a acei-tação quase generalizada dedeterminados princípios univer-sais de aplicação compulsiva pelaONU ou por um grupo de Esta-dos, em nome da paz e da justiçauniversais, indo contra os princí-pios tradicionais da soberania e da não-ingerência nos assuntosinternos dos países constituemuma das mais profundas alteraçõesinternacionais produzidas nasúltimas décadas. Diz ainda tratar-se de princípios de chancela oci-dental que, até finais da GuerraFria, se tinham limitado quaseexclusivamente aos EUA, o quepode apontar para um interven-cionismo global de consequênciasimprevisíveis. Em nome dosdireitos humanos, a separaçãoentre os domínios interno e externo da política deixou deexistir, ao mesmo tempo que jánão se confia no Estado-naçãopara que a justiça seja feita,devendo esta ser delegada numaautoridade supranacional, decarácter técnico, com direito

a utilizar a força para o cumpri-mento das suas leis. Fervorososcríticos do intervencionismosubversivo soviético, os EUAjamais aceitaram o princípio danão-ingerência quando se tratade agir em nome dos seus pró-prios valores, julgados excepcio-nais, o que revela a sua incon-gruência. O salto histórico do“destino manifesto” à “fé na missão uni-versal da América” fez-se em curtasdécadas, mediante o prisma dosvalores americanos e a adopçãoda força como sanção derradeira,a transposição das característicasmais genuínas do isolacionismoamericano para um globalismomessiânico, donde resultariauma “desastrosa combinação de

impulsos globalistas e missionários”, quepretende refazer a nova ordem a partir da interferência nosassuntos domésticos, descurandoas sensibilidades das bases popu-lacionais. Depois do interregnoda presidência Clinton, impreg-nada pela defesa dos direitoshumanos como objectivo funda-mental da política externa, estatornava-se cada vez mais depen-dente da política interna, graças à falta de um poder alternativo,ao fim do conflito ideológico

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maior, à prosperidade americanae à adopção do modelo america-no por quase todo o mundo. A nova doutrina da intervençãohumanitária que daí decorreria e onde não entravam considera-ções de ordem estratégica ou deequilíbrio de poder, se acalentavao multilateralismo, acarretava o risco, segundo Kissinger, detransformar os EUA e os seusaliados nos “polícias do mundo”, emespecial, quando se verifica a impossibilidade de verificaçãode factores elementares para a suavalidade como, a aplicação uni-versal do princípio, a sustentaçãodas acções pela opinião públicaamericana, a aceitação pela comu-nidade internacional, e a relaçãocom o contexto histórico. Em vezde vingar, foram mais os casos emque a nova doutrina se viu condicionada na sua aplicabilida-de (Rússia/Chechénia, Sudão,Somália), pela incompatibilidadede princípios antagónicos ou dís-pares, pela desproporção entremeios e fins, pela incerteza dosucesso e pelo divórcio entre inte-resses humanitários e nacionais.“A doutrina da intervenção humanitáriaacabaria por se tornar um paradoxo: um

princípio universal em busca de consenso”,

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correndo o risco de “chocar com o próprio

conceito de humanitarismo”, sobretudoquando, apresentada como ver-dade universal, entra em conflitocom outras verdades imanentes e concorrentes. Na realidade, ospaíses em desenvolvimento ten-dem a interpretar a intervençãohumanitária como um mecanis-mo neocolonialista, suscitandoreservas mesmo em países demo-cráticos. Em semelhante cenário, afirmaKissinger, os EUA estão obriga-dos a encontrar uma nova defi-nição de interesse vital, seja eleestratégico ou moral, sendo certoque esta última acarretaria desafios internacionais de extre-ma complexidade. Confrontadacom desafios tão complexos, emque a sua proeminência mundialé um dado mais a considerar, a América vê-se forçada, pelaprimeira vez, a organizar umaestratégia global para um futuroindefinido, num mundo que,caracterizado por uma multipli-cidade de contextos históricos e em constante mutação, onde o papel da sociedade de informa-ção e do conhecimento é umdado incontornável, exige estra-tégias selectivas, com visão de

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futuro, e que consigam o equilí-brio entre os valores e os interes-ses, entre a paz e a justiça. Sem sedeixar arrastar por um debate esté-ril e pueril sobre questões demoralidade nos assuntos interna-cionais, na procura deliberada dahegemonia, deve, pelo contrário,promover os seus valores através dasua aceitação consensual, elimi-nando linhas de fractura e murosde resistência. Defende o autorque, só assim a América poderámanter o seu papel central, semincorrer nos riscos de vingança oude ser apodada de colonialista. Querendo fazer uma actualizaçãotemática em face dos atentados ter-roristas do 11 de Setembro, entre-tanto ocorridos, no Posfácio,

Henry Kissinger limita-se a tecerconsiderações correntes sobre taisacontecimentos, a concluir que a questão do terrorismo se fundecom o desafio da ordem interna-cional e a enaltecer a política anti-terrorista da Administração Bush,reiterando, no entanto, muitosdos princípios que explanou aolongo da obra, em especial, sobrea conveniência do consenso e osefeitos perniciosos do unilatera-lismo, sobre a graduação do trata-mento devido a cada um dos paí-ses do “eixo do mal” ou sobre o pre-domínio de uma estratégia deprevenção de ameaças nas relaçõescom a Rússia e com a China, emdetrimento de manobras tácticasde desgaste e confrontação.+

* Diplomata e Professora Universitária

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NOVA SÉRIE | MAIO 2004 | N.º2INSTITUTO D.JOÃO DE CASTRO

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