Mallart Rui Anpocs 2015

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Trabalho completo anpocs

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    39 Encontro Anual da Anpocs

    GT34 - Sobre periferias: novos conflitos no espao pblico

    Por uma etnografia das transversalidades urbanas:

    entre o mundo e os dispositivos de controle

    Fabio Mallart

    Taniele Rui

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    Ao longo dos ltimos dez anos temos circulado por distintos territrios urbanos

    da cidade de So Paulo, entre os quais, espaos de internao para adolescentes que

    cometeram os chamados atos infracionais, unidades prisionais do sistema carcerrio,

    comunidades teraputicas destinadas ao tratamento religioso de dependentes qumicos,

    centros de ateno psicossocial especializados em lcool e drogas (CAPSad), albergues,

    hospitais de custdia e tratamento psiquitrico, periferias, favelas, espaos de consumo

    de drogas nas ruas e regies como a chamada cracolndia paulistana. Dessas experincias

    etnogrficas que so tambm experincias urbanas (Telles, 2013) advm a presente

    tentativa de propor uma agenda de pesquisa e de situar, de modo bastante preliminar, um

    campo comum de indagaes, desafios e inquietaes que atravessa nossos estudos1.

    Explicamos. Ao partilhar algumas questes de nossas recentes experincias de

    pesquisa, nos demos conta das ressonncias e das transversalidades que atravessam e

    aproximam, como que costurando, esses distintos territrios urbanos: era possvel, por

    exemplo, vislumbrar as quebradas nas cadeias, assim como as cadeias nas quebradas; as

    cadeias nas unidades de medida socioeducativa de internao da Fundao CASA, a

    comunidade teraputica nos albergues, a priso na cracolndia, a rua nos Centros de

    Deteno Provisria (CDPs), a cracolndia nos hospitais de custdia. Esse imbricamento

    foi to recorrente que uma reflexo sobre ele nos pareceu, mais do que nunca, necessria.

    Mas, desde logo, preciso ressaltar que no se trata apenas de reafirmar o que j

    foi dito e muito bem dito, alis por uma srie de pesquisadores que demonstraram a

    potencialidade de se pensar os bairros perifricos em continuidade analtica com as

    prises, ou os albergues com as ruas, haja vista que, no cenrio contemporneo, as

    fronteiras entre o dentro e o fora esto cada vez mais borradas (Cunha, 2002; Godoi,

    2010; Telles, 2010; Biondi, 2010; De Lucca, 2013). Trata-se, como pretendemos propor,

    de ampliar o escopo analtico e o flego etnogrfico de nossas pesquisas, atentando para

    o fato de que parece haver, na atualidade, linhas de fora que conectam TODOS esses

    territrios urbanos, e no apenas os mais evidentes.

    Nosso argumento mais geral o de que estes distintos territrios podem e devem

    ser conectados analtica e empiricamente, precisamente porque so esses os espaos onde

    1 Parte das reflexes que sero apresentadas ao longo deste trabalho esto sendo desenvolvidas no mbito

    do Projeto Temtico Fapesp 2014-2018: A gesto do conflito na produo da cidade contempornea: a

    experincia paulista, sob coordenao da Profa. Vera da Silva Telles (Departamento de Sociologia, USP).

    Fbio Mallart Mestre em Antropologia pela USP e Doutorando em Sociologia pela mesma universidade

    (bolsista Fapesp). integrante do Ncleo de Etnografias Urbanas (Cebrap). Taniele Rui Doutora em

    Antropologia pela Unicamp. Pesquisadora Ps-doutoranda do Ncleo de Etnografias Urbanas (Cebrap).

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    se realiza, por excelncia, a gesto populacional dos marginais e nos quais, da

    perspectiva estatal, as lgicas da punio, represso e controle se combinam, no na

    mesma intensidade claro, s preocupaes de assistncia, sade e cuidado.

    Portanto, de partida, preciso salientar que nosso interesse se concentra nos

    vrios e mltiplos espaos urbanos (todos eles tambm mveis ao longo do tempo), em

    que vivem e sobrevivem aqueles homens e mulheres minsculos com suas histrias

    infames (Foucault, 2003). Aqueles que, na linguagem dos operadores estatais da

    assistncia e sade, no aderem s polticas, escorregam pelas frestas das aes

    governamentais, so desprezados pelo crime, especialmente por faces como o PCC,

    e constroem as suas trajetrias de vida no entra e sai de instituies de controle (como,

    por exemplo, as prises) e de assistncia (como, por exemplo, os albergues). Infames,

    transitam inclusive por espaos subterrneos das prprias instituies de controle, como

    os seguros das prises, ou que foram expulsos de suas quebradas por criminosos locais,

    ou mesmo que habitam as cracolndias dos coisa; em suma, aqueles cujas existncias

    deixam apenas rastros, em virtude mesmo de acionarem vrias polticas, equipamentos,

    discursos, saberes e poderes...Eles no so mais, nem menos, do que aquilo que quer

    abat-los, control-los, marc-los, mas tambm cuid-los e disciplin-los.

    Interessa-nos perseguir a vida desses seres e dos espaos urbanos pelos quais eles

    transitam, pois sobre ambos que, afirmamos, nota-se a operao e a reposio de uma

    srie de dispositivos de gesto da ordem e do cuidado, que combinam polticas estatais e

    tambm as polticas criminais o que, da nossa perspectiva, advm especialmente do

    processo de encarceramento em massa, e sobretudo do encarceramento provisrio, como

    opo poltica estadual para a rea da segurana pblica.

    Essas proposies mais gerais sero melhor apresentadas a partir das cenas que

    seguem. Nesse exerccio, apostamos na potencialidade de apreender relacionalmente

    esses mltiplos espaos urbanos, destacando as ressonncias e as transversalidades que

    os atravessam, e que so o produto desses dispositivos de gesto da ordem e do cuidado

    pelos quais circulam sujeitos especficos. Atentos ao fluxo e circulao, apostamos, em

    suma, em uma etnografia dessas transversalidades urbanas.

    1. Valria chegou Fundao CASA aos 14 anos, acusada de roubo. At os 17,

    entrou e saiu da instituio por trs vezes, circulando entre as unidades de

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    internao, as ruas do centro de So Paulo, os servios destinados ao atendimento

    de crianas e adolescentes em situao de rua (como o Quixote) e a casa do pai,

    localizada em So Miguel Paulista, zona leste de So Paulo. Do perodo de

    internao na Fundao CASA, poca antiga FEBEM, tem at boas lembranas,

    pois diz que foi onde aprendeu a ler. Aos 19 anos, grvida de cinco meses, pegou

    cadeia pela primeira vez. Teve o pequeno Luan no presdio e mantem com o

    menino uma ligao intensa, de um tempo de muito sofrimento. Na sada s ruas,

    nova gravidez. O pequeno Thales nasceu quando a jovem morava em uma das

    ocupaes do centro de So Paulo, que lhe havia sido indicada por uma amiga de

    dentro da priso. Prostituindo-se e traficando para consumir crack, Valria logo

    foi parar na regio conhecida como cracolndia, deixando seus filhos com uma

    senhora, conhecida da ocupao. Durante um ano foi beneficiria do programa De

    Braos Abertos, da Prefeitura de So Paulo, mas foi presa novamente em

    novembro de 2014, acusada de roubo nos arredores da Estao da Luz. Em maro

    de 2015, estava de volta ao fluxo, cena de uso e comrcio de crack. Seu corpo,

    com alguns quilos a mais, provavelmente decorrentes de sua estadia forada no

    Centro de Deteno Provisria de Franco da Rocha, voltou revigorado s ruas.

    2. Vincius est no fluxo. Sentado ao lado de sua esposa, ambos preparam os seus

    cachimbos cuidadosamente. As suas mos, cheias de graxa, ajudam-nos a

    entender a grande quantidade de bicicletas em sua barraca. trabalhando como

    bicicleteiro que nosso interlocutor consegue levantar uma pequena quantia em

    dinheiro para manter a ele e a sua esposa, que pinta as bike com presteza.

    Juntos, eles dizem quebrar as pernas de todos os bicicleteiros da regio, que no

    conseguem competir com o baixo preo da mo-de-obra. A trajetria de Vincius

    caracteriza-se pelas entradas e sadas do sistema penitencirio. Na ltima dcada,

    acumulou trs passagens por Centros de Deteno Provisria, relacionadas a

    trfico de drogas e assaltos: todas elas de pouco tempo, tipo um ms, trs meses,

    cinco meses. Ao narrar as suas passagens pelo sistema enfatiza: Olha, eu vou falar

    a verdade pra vocs, pra mim, estar na cadeia tipo tirar um lazer. Eu tomava

    banho todo dia, me alimentava, dormia, da ltima vez engordei quatro quilos. Na

    cadeia, ao invs do consumo de crack, usava cocana. Recentemente, foi

    informado de que a prefeitura estuda oferecer um quarto de hotel para ele e para

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    sua mulher e empreg-los para o conserto de bicicletas do banco Ita, que se

    proliferam pela cidade. A poucos metros dali, em um hotel ento credenciado pelo

    Programa De Braos Abertos, o porteiro nos conta que tem dificuldades para lidar

    com a indisciplina dos beneficirios. Em algumas situaes, a nica sada para

    resolver os conflitos acionar o disciplina, que cuida do proceder local. Este

    mesmo hotel alvo de uma transao mercantil em que um irmo da Favela do

    Moinho o potencial comprador. No mesmo espao, um assistente social que ali

    realiza um trabalho dirio analisa: parece estranho o que eu vou falar, mas para

    mim se d melhor no programa [De Braos Abertos] quem j passou pela cadeia,

    pois quem j passou entende a importncia de cuidar do quarto e de manter a

    disciplina; quem s ficou na rua no entende essa etiqueta.

    3. Maio de 2006. Os momentos que antecedem a rebelio so tensos. No interior das

    muralhas da unidade de internao 29 da Fundao CASA, os lderes esto

    reunidos. Os lenis adquirem outro significado: transformam-se em bandeiras

    que estampam os ideais do PCC. As naifas, facas artesanais elaboradas com

    barras de ferro, so desentocadas. Pedro, um dos faxineiros da unidade assim

    como todos os outros disciplinas est ansioso. Nesse contexto, os celulares so

    ferramentas essenciais, na medida em que possibilitam o contato com integrantes

    do PCC, tanto com aqueles que se encontram espalhados pelo sistema prisional,

    como com aqueles que esto do lado de fora das muralhas, em quebradas

    controladas pelo Partido. Em poucos segundos, as lideranas recebem a ligao,

    vinda de um irmo, situado em uma favela de Jundia. Este, por sua vez,

    encontra-se conectado com outros irmos, de outras quebradas e de outras

    cadeias. O motim comea, a fumaa dos colches ganha o cu de Franco da

    Rocha. Unidades de internao, cadeias e quebradas esto na mesma sintonia.

    4. Aos 14 anos de idade, Jlia teve a sua primeira experincia institucional, sendo

    internada em uma clnica de reabilitao porque usava muita droga. Nos anos

    seguintes, circula entre as clnicas de reabilitao e, posteriormente, aps

    completar 18 anos de idade, d incio sua trajetria prisional, sempre em

    decorrncia de seus pequenos furtos e assaltos, os quais a jovem justifica para

    sustentar o vcio em crack. Entre as entradas e as sadas do sistema carcerrio, o

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    consumo de crack era algo rotineiro, sempre no local que ela mesma define como

    a cracolndia de Campinas. Em uma de suas passagens por uma cadeia do PCC,

    um Centro de Deteno Provisria Feminino, cometeu um ato indevido: numa

    tentativa desesperada de suicidar-se, retalhou os seus dois braos em pleno dia de

    visita. Foi essa atitude que a impossibilitou de retornar ao convvio, sendo enviada

    ao seguro, de onde s saiu para cumprir medida de segurana em um Hospital de

    Custdia e Tratamento Psiquitrico.

    5. dia de audincia na Vara da Infncia e Juventude de Campinas e Diego, um

    menino que vivia nas ruas da cidade, mas que estava h quinze dias numa

    Unidade de Atendimento Inicial da Fundao CASA, receber a sentena sobre a

    acusao de trfico que lhe pesa. A estratgia da defensoria levar o juiz a

    perceber que se trata de um usurio, no de um traficante. Quando confirma

    que consumidor de maconha, ao invs de ser direcionado unidade de

    internao ou s medidas socioeducativas, Diego orientado ao tratamento da

    dependncia em uma comunidade teraputica da cidade. Assim que chega CT,

    o menino passa por um processo de triagem e acolhimento onde lhe so

    informadas as regras e normas da instituio, as quais ter que seguir por no

    mnimo nove meses. Visivelmente desconfortvel, ele afirma: no quero ficar

    aqui, igual Fundao CASA.

    6. Na Cristolndia, um servio batista de converso dos usurios de crack, um

    missionrio explica o funcionamento do programa de tratamento: assim, voc

    fica a primeira parte do tratamento em uma casa, de regime fechado, depois vai

    pra outra casa, que funciona como o semiaberto. A lgica que nem a de ficar

    preso mesmo, da vai progredindo conforme o tempo. Algo semelhante se observa

    quando o CAPSad (lcool e outras drogas) vem sendo indicado pelos juzes como

    uma espcie de progresso de pena para pacientes dos hospitais de custdia ou

    mesmo quando as medidas socioeducativas em meio aberto so utilizadas por

    juzes das Varas de Execuo da Infncia e Juventude como progresso de

    regime para os adolescentes que se encontram nas unidades de internao.

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    Esto descritas nessas seis cenas etnogrficas trajetrias pessoais construdas por

    meio dos trnsitos incessantes entre rua, quebradas, diversas instituies de assistncia e

    de controle. Esto descritas tambm conexes discursivas, prticas e arquitetnicas entre

    unidades de encarceramento para adolescentes e adultos, entre dispositivos de controle e

    de tratamento, entre os servios de represso e de ateno. Como se nota, unidades de

    internao da Fundao CASA, cracolndias, periferias de So Paulo ou de Campinas,

    comunidades teraputicas, prises, hospitais de custdia e tratamento psiquitrico,

    servios de assistncia e servios de converso: uma espcie de roteiro lgico pelo qual

    circulam, quo fios condutores, pessoas como Valria, Vincius, Julia e Diego. Previsveis

    e ininterruptos trnsitos que nos interessa perscrutar.

    De partida, o primeiro ponto: a experincia prisional constitui boa parte das

    trajetrias aqui anunciadas. O aumento vertiginoso da populao carcerria do estado de

    So Paulo h pelo menos duas dcadas, em compasso com a proliferao de unidades

    prisionais por todo o estado, sobretudo pelo interior paulista o que se convencionou

    chamar de encarceramento em massa uma das evidncias, incontornveis, da

    reconfigurao que perpassa as atuais formas de controle do crime. Apenas para se ter

    uma ideia, em 1994, havia 43 unidades prisionais em So Paulo, abrigando cerca de

    32.000 presos. Em 1999, a Secretaria de Administrao Penitenciria (SAP) j contava

    com 64 unidades para cerca de 47.000 detentos (SALLA, 2007). Em 2006, ao final da

    gesto Alckmin, tais cifras se multiplicam a uma velocidade inimaginvel. A estrutura

    penitenciria passa a abrigar mais de 130.000 presos, distribudos em 144 unidades

    prisionais. Dados recentes evidenciam que a expanso do sistema carcerrio paulista est

    longe do fim. No incio de 2014, So Paulo j contava com uma populao de mais de

    200.000 presos, distribudos em 160 unidades prisionais2.

    Esse processo de opo pelo encarceramento massivo como resposta poltica para

    a questo da segurana pblica trao local de um processo global entre outras

    reflexes, nos remete funo social que a priso ocupa no cenrio contemporneo de

    controle do crime. Autores como Garland (2008) e Bauman (1999), alm de sugerirem o

    abandono do ideal de reabilitao como objetivo central das instituies penais,

    salientam que a priso opera como um dispositivo de neutralizao e incapacitao de

    2 Informaes retiradas do stio eletrnico da SAP: http://www.sap.sp.gov.br/ e de uma nota pblica emitida

    pela Pastoral Carcerria sobre a atual situao do sistema penitencirio paulista, que pode ser acessada em:

    http://carceraria.org.br/pastoral-carceraria-divulga-nota-publica-sobre-sistema-prisional-paulista.html.

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    amplos contingentes populacionais marginalizados. Nessa chave, a priso aparece como

    uma instituio de confinamento, que teria por funo manter os indesejveis e

    perigosos, por considervel perodo de tempo, longe da sociedade. Contudo, o que nossas

    pesquisas tm apontado o fato de que a priso no deve ser lida apenas dessa

    perspectiva. Se h aqueles que permanecem anos e anos trancafiados atrs das grades e

    que podem nesse processo se profissionalizar no crime, h outros, os que aqui nos

    interessam, que entram e saem, entram e saem, num movimento incessante e frentico

    entre o dentro e o fora das muralhas, movimento, alis, muito bem definido por um de

    nossos interlocutores como ping-pong. Nesse sentido, e essa a perspectiva analtica que

    adotamos, trata-se de apreender a priso sobretudo a priso provisria como um

    dispositivo de circulao, indutor de mltiplas velocidades e ritmos variados3, no limite,

    tambm como um mecanismo de produo e de recomposio corprea.

    Sujeitos como Vincius entraram e saram por diversas vezes dos Centros de

    Deteno Provisria (CDPs), espaos institucionais onde permanecem os presos e as

    presas que ainda no foram julgados4. Ainda que haja muitos casos de presos que passam

    anos aguardando o julgamento e que, em algumas ocasies, quando condenados, j

    cumpriram as suas penas. Ainda tambm que existam detentos que aps a condenao

    recebem penas alternativas e, portanto, no privativas de liberdade, o que aponta para

    uma evidente incoerncia processual penal (ITTC; Pastoral Carcerria, 2012), o que nos

    interessa, no mbito desta proposta de trabalho, apontar para o fluxo incessante e

    frentico de pessoas entre as muralhas e o mundo. Instigam-nos as mltiplas passagens

    rpidas e velozes de um, trs, cinco, sete meses que, entre outros efeitos, devolvem

    corpos revigorados s ruas e chamada cracolndia, como no caso de Vincius e Valria,

    ambos inseridos numa rotina de disciplinamento do corpo e da higiene, e

    impossibilitados de consumir crack dentro da priso, haja vista que se tratava de unidades

    3 O trabalho de Rafael Godi (2015, p.19) iluminador ao propor alguns deslocamentos nas formas de se

    compreender as prises, entre os quais, o fato de que a priso, em sua figurao atual, no deve ser

    compreendida apenas como uma instituio de confinamento, mas tambm como um espao poroso no interior de um dispositivo de governo, como uma tecnologia (entre outras) de gesto de populaes, de

    agenciamento e regulao de fluxos (de pessoas, objetos e informaes), de conduo de condutas, de

    produo e administrao de determinadas formas de vida. 4 Alguns presos provisrios, em nmero reduzido, ainda permanecem em carceragens de delegacias, sob

    custdia da Secretaria de Segurana Pblica (SSP). Atualmente, segundo informaes da SAP, existem 41

    CDPs no estado de So Paulo. Tais unidades so as mais superlotadas e, segundo os presos, as que possuem as piores condies de existncia, haja vista que a alimentao horrvel e que no h trabalho.

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    prisionais que operam a partir de princpios e polticas do Primeiro Comando da Capital5.

    Nesse ponto, aproximamo-nos mais de algumas contribuies trazidas da perspectiva

    analtica de Michel Foucault que, em Vigiar e Punir (2009 [1987]) e Microfsica do Poder

    (1990 [1979]), nos ensina a no tomar a priso, e os sistemas punitivos de modo geral,

    apenas em seus efeitos repressivos isto , s em seu aspecto de sano (Foucault,

    1987, p.23) e nem o poder como relao meramente negativa, afinal, as produtividades

    e as positividades devem ser levadas em conta, por mais que, primeira vista, paream

    laterais. Como sintetiza o autor, a priso fabrica delinquentes, mas os delinquentes so

    teis tanto no domnio econmico como no poltico. Os delinquentes servem para alguma

    coisa (Foucault, 1979, p.132).

    No que tange ao fluxo incessante de corpos entre as muralhas e o mundo, um

    caso emblemtico dessa circulao frentica merece destaque: em 25 de fevereiro de

    2010, em uma operao da Polcia Civil na chamada cracolndia paulistana, cerca de 200

    pessoas que estavam no local, em sua maioria usurios de crack, foram abordadas. Ao

    todo, 32 indivduos foram indiciados sob a acusao de promover o trfico de drogas na

    regio ou de agir em associao ao narcotrfico. Parte dos homens detidos permaneceu

    por cerca de um ms no Centro de Deteno Provisria de Pinheiros IV, ao passo que as

    mulheres ficaram confinadas no Centro de Deteno Provisria Feminino de Franco da

    Rocha, cadeias que operam a partir das diretrizes do PCC. Dessa priso no atacado,

    para usar os termos da sentena proferida pelo juiz, de todos os acusados, apenas uma

    mulher, que permaneceu cerca de sete meses no CDP Feminino, foi denunciada sendo,

    posteriormente devido inconsistncia das provas produzidas e das verses dspares

    apresentadas pelos policiais civis durante a audincia absolvida6. Ou seja, uma simples

    5 Como mostrou Karina Biondi (2011 e in Manso, 2009), a extino do crack nos presdios paulistas no

    ocorreu repentinamente, mas foi fruto de um processo: em meados de 2004, proibiu-se a venda da droga

    por irmos (membros batizados do PCC), que depois foram proibidos de consumi-la. Mais tarde, a

    populao prisional tambm no podia vend-la e quem quisesse teria que conseguir por conta prpria;

    finalmente o consumo foi extinto no interior das cadeias do PCC. O fim tanto do uso quanto da venda de

    crack foi registrado em um manuscrito que circulou no interior das prises e, junto com outras medidas

    (como diminuio no nmero de homicdios e das agresses entre presos, fim dos abusos sexuais, fim da

    venda de espao na cela, fim da troca de favor com agentes penitencirios em benefcio prprio em

    detrimento de outros, repdio ao uso de palavres), essa proscrio marcou um momento menos

    conflituoso nos recintos prisionais. Notcias recentes, entretanto, tm apontado para o retorno do crack nos

    presdios o que indica reconfiguraes em curso, que precisam ser melhor observadas, e sobre as quais estamos atentos. Cf.http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/03/1604387-apreensoes-de-crack-

    disparam-em-conexao-paraguaia-do-pcc.shtml 6 Ressaltamos que temos acesso ao contedo desse processo judicial e que ele est sendo minuciosamente

    analisado por ns para outras produes textuais ainda em elaborao. Agradecemos ao Instituto Terra,

    Trabalho e Cidadania (ITTC), sobretudo Lusa Luz, por facilitar o acesso ao processo.

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    operao da Polcia Civil resultou na priso provisria de 32 indivduos de uma s vez. E

    parte desses indivduos permaneceu encarcerada por aproximadamente um ms, logo

    depois sendo devolvida s ruas, ou melhor, cracolndia.

    Nessa direo, ponderamos a necessidade de conferir ateno especial

    experincia prisional disseminada entre essa populao. Como dispositivo indutor de

    fluxos e velocidades, nos interessa no somente a experincia prisional, mas tambm o

    que ocorre nesse entra e sai que, de to repetitivo, ao invs de separar, faz exatamente o

    oposto: conecta, ainda com mais intensidade, o dentro e o fora das muralhas. Milhares de

    pessoas adentram prises, unidades de internao da Fundao CASA e comunidades

    teraputicas todos os meses e tambm todos os meses milhares de presos e reclusos so

    devolvidos s quebradas e s ruas. Pelo seu carter de transitoriedade e fluidez, a nossa

    hiptese de que esse movimento incessante e frentico, menos do que inserir homens e

    mulheres no mundo do crime (ainda que isso seja possvel, haja vista que vrias

    conexes podem ser feitas de dentro para fora), acaba por alastrar difusamente um

    repertrio prisional e um modo especfico de conduta moral que se torna visvel em todos

    os espaos urbanos por onde esses sujeitos circulam. De modo que no de estranhar a

    disseminao de toda uma gramtica prisional pelo tecido social urbano.

    Os trabalhos de Gabriel Feltran (2012), Fbio Mallart (2014) e Karina Biondi

    (2014) anotaram que a sintonia entre priso e quebradas, evidenciada principalmente a

    partir de 2006 como inclusive mostra a cena 3, conformou um momento em que no

    exagerado aferir a ampla presena do PCC nos mais variados cantos da cidade, o que no

    significa argumentar em favor dos supostos tentculos repressivos do Partido, que

    dominaria a tudo e a todos, na medida em que as prticas, os discursos e as prescries

    do Primeiro Comando da Capital assumem configuraes distintas em cada territrio,

    ainda que haja ressonncias inegveis. Se esta conexo j parece evidente, o novo foi

    perceber que, em ritmo semelhante, esto tambm os albergues, as unidades de

    internao da Fundao CASA, as tendas destinadas ao acolhimento de moradores de

    rua, as comunidades teraputicas, e mesmo a regio conhecida como cracolndia.

    Funcionrios do Complexo Prates (equipamento partilhado da assistncia social e

    da sade, que atende moradores em situao de rua e dependentes de lcool e drogas),

    nos anunciaram que os moradores em situao de rua passaram a gerir o espao de

    acolhimento de modo semelhante gesto feita pelo PCC nas prises. Redutores de

    danos nos confidenciaram a dificuldade de ordenar o dia-dia nas tendas de acolhimento

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    de moradores de rua sem que isso passe pelo proceder. E, como mostramos na cena 2,

    disciplinas, que operam a partir dos preceitos do Comando, tm gerido estritamente

    hotis na regio da cracolndia, o que, por sua vez e para confirmar a impresso do

    funcionrio, denota que no toa que aqueles que passaram pela priso se adequam

    melhor, inclusive, aos servios assistenciais. Ressalta-se ainda que os indivduos que no

    esto nos hotis do Programa De Braos Abertos, permanecendo no chamado fluxo,

    tambm so geridos por disciplinas ligados ao Partido, muitas vezes, em compasso com

    a gesto das foras da ordem, sobretudo da Guarda Civil Metropolitana.

    Portanto, atravs desse entra e sai incessante, desse fluxo que implode as

    fronteiras entre o dentro e o fora, e dessa modalidade de priso ping-pong rpida e

    veloz que, argumentamos, encontra-se uma chave analtica potente para compreender a

    disseminao de toda uma gramtica prisional pelo tecido urbano. dessa perspectiva

    que a presena do PCC na cracolndia ou nos servios de acolhida locais em que, nos

    parece, no h membros do Partido, os chamados irmos deve ser elucidada7.

    Se so os sujeitos infames os alvos principais da modalidade priso provisria, se

    so eles que se constroem no entra e sai dos dispositivos de represso e assistncia, so

    eles tambm os que tm a potencialidade de conectar territrios antes no pensados como

    estando em sintonia. Como o ritmo intenso, as conexes entre dispositivos de controle

    e de assistncia ficam cada vez mais evidentes, sugerindo mesmo que a experincia

    prisional pode inclusive ser funcional aos dispositivos de assistncia e cuidado: no limite,

    por meio dessa gesto que eles ficam em ordem.

    Desta percepo emprica, por demais provocadora, advm a nossa aposta, que

    orienta uma nova agenda de pesquisa: a de que uma etnografia das transversalidades

    urbanas vigorosa tanto por permitir um ngulo privilegiado para captar os processos de

    gesto e circulao dos mais marginalizados das cidades quanto por possibilitar conexes

    inditas entre crime, punio, represso e controle; sade, assistncia, ateno e cuidado.

    guisa de concluso, pontuamos que a produo de uma etnografia das

    transversalidades urbanas coloca uma srie de desafios de ordem metodolgica. Afinal,

    atravessar vrios territrios, que princpio estariam desconectados constitui uma das

    7 Essa gramtica prisional no pode ser atribuda, nica e exclusivamente, aos princpios e polticas do

    PCC, haja vista que o Partido tambm atualiza cdigos, prticas e discursos h muito tempo presentes no

    universo do crime. Contudo, como tm demonstrado alguns autores, o Comando , de longe, a faco

    criminosa mais disseminada nos presdios de So Paulo atualmente, alcanando cerca de 90% das unidades

    prisionais paulistas (Salla; Dias, 2011; Marques, 2009).

  • 12

    dificuldades a serem enfrentadas. Nesse sentido, indicamos a necessidade de adotar

    estratgias metodolgicas que facilitem o mapeamento das transversalidades e que sejam,

    elas mesmas, tambm transversais, na medida em que nos guiam pelos caminhos

    tortuosos da cidade e pelos espaos ocupados pelos sujeitos infames.

    Sendo assim, um procedimento que consideramos central a reconstituio das

    trajetrias desses personagens infames, cujas marcas indelveis cravadas na carne

    (Mallart, 2014), se moldam nos trnsitos incessantes entre o mundo e os dispositivos

    de controle. Reconstrudos os traados de tais personagens, em seus mltiplos

    deslocamentos, ficam perceptveis as vrias ressonncias entre distintos territrios

    urbanos8. Ainda que as trajetrias sejam potentes guias urbanos, que nos conduzem pelas

    sendas da cidade, observamos que igualmente preciso lanar um olhar sobre os

    territrios que as prprias trajetrias vo enlaando, com o objetivo de flagrar, produzir e

    complexificar cenrios etnogrficos mais amplos, que tambm comportam cheiros, cores,

    gestos, movimentos, corpos, enfim, outros personagens, prticas e discursos.

    Finalizamos observando que, nos ltimos tempos, temos circulado igualmente

    de maneira incessante e frentica pelos espaos pelos quais transitam velozmente os

    personagens infames que perseguimos. A isso chamamos de uma produo etnogrfica

    transversal, cujos primeiros esforos e potenciais rendimentos apresentamos nesse texto.

    8 Tais apontamentos aproximam-nos da perspectiva delineada por Vera Telles. A autora, ao debruar-se

    sobre as transformaes de fundo que redesenharam a paisagem urbana da cidade de So Paulo nas ltimas

    dcadas, redefinindo a dinmica societria, a ordem das relaes sociais e os usos da cidade, opta por

    compreender tais mudanas tendo como base as trajetrias urbanas de indivduos e suas famlias. Nas

    palavras de Telles (2006, p. 85), tais trajetrias operam como prismas pelos quais o mundo urbano vai ganhando forma em suas diferentes modulaes.

  • 13

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