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Manejo dos Recursos Comunse Reciprocidade: os Aportesde Elinor Ostrom ao Debate

O artigo analisa a importância da reciprocidade nos processos e dis-positivos de manejo de recursos comuns. Primeiro, examina o papelque Ostrom atribui à norma de reciprocidade na sua abordagem dagestão dos recursos em propriedade comum. Uma segunda parte apre-senta a leitura das relações econômicas e sociais no manejo de recur-sos comuns pela ótica da teoria da reciprocidade da antropologia eco-nômica. Finalmente, a conclusão apresenta um início de diálogo entreas propostas de Ostrom e a teoria da reciprocidade.

Eric Sabourin1

1Antropólogo e sociólogo, Pesquisador Titular do CIRAD, Montpellier,França, Unidade “Ação coletiva, políticas públicas e mercados”;

Pesquisador Associado do Centro de Desenvolvimento Sustentável,Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

RESUMO

ABSTRACT

This paper analyzes the importance of reciprocity in the processes andprocedures recorded in the management of common resources. It exa-mines first the role that E. Ostrom attributes to the norm of reciprocityin her approach to common property resources. A second part interpretseconomic and social relations in the management of common resourcesas seen by economic anthropology’s theory of reciprocity. Finally, theconclusion attempts to establish a dialogue between Ostrom’s proposalsand the theory of reciprocity.

Recebido em 13.01.2010Aceito em 04.05.2010

Palavras-Chave:Manejo de recursoscomuns, Reciprocidade,Troca, Recursosnaturais, ElinorOstrom, Brasil, NovaCaledônia.

Key-words:Common resourcesmanagement,Reciprocity,Exchange, Naturalresources, ElinorOstrom, Brazil, NewCaledonia.

S u s t e n t a b i l i d a d ee m D e b a t e

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Sustentabilidade em Debate

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Introdução

No marco dos debates sobre asustentabilidade, tornou-se particularmentecrucial a questão da transformação e moderniza-ção das estruturas tradicionais de manejo dosrecursos naturais de uso comum. Mais recente-mente, a transferência da sua gestão para orga-nizações de produtores ou de usuários constituium desafio e uma fonte inesgotável de debates,principalmente após a implementação dos pro-gramas de descentralização da sua governança(RIBOT e PELUSO, 2003; OSTROM, 1990,2008; BOUTINOT, 2008).

Vários trabalhos, em particular em tornoda IASCP (International Association for Studyof Common Property Resources) e da equipe deElinor Ostrom, remobilizaram as teorias socio-lógicas e políticas da ação coletiva. Em particu-lar, levaram ao reexame do dilema da tragédiados comuns. De acordo com Hardin (1968), asterras e pastos em propriedade comum estariamcondenados a um uso excessivo e a um esgota-mento se não fosse realizada a sua privatização egestão pelo mercado de troca. Portanto, essedesafio é ponto central no tocante ao papel dasorganizações camponesas e nativas.

Além das suas fortes bases empíricas,Ostrom utiliza cada vez mais, desde 1997, a no-ção de reciprocidade como componente centraldos atributos, permitindo que as comunidades deusuários gerenciem os recursos comuns(OSTROM, 1998). Os objetivos desse trabalhosão analisar o papel da reciprocidade no manejodos recursos comuns segundo Ostrom e verifi-car a possibilidade de um diálogo entre a abor-dagem de Ostrom e a teoria da reciprocidade naantropologia econômica.

Isso se justifica porque a gestão dos recur-sos naturais comuns (terras, águas, pastos, flo-

restas etc.) e a produção e manutenção de equi-pamentos coletivos constituem formas de ajudamútua, freqüentemente encontradas nas comu-nidades camponesas e indígenas. Para a teoriada reciprocidade, esse tipo de cooperaçãocorresponde a uma estrutura elementar de reci-procidade binária: o compartilhamento ou a par-tilha. Trata-se de uma estrutura simétrica entre oindivíduo e o grupo e entre cada um dos indiví-duos e o grupo. Nos diferentes casos que estu-dei na França, Guiné Bissau, Nova Caledônia,Peru e Brasil, encontrei a universalidade da es-trutura de partilha e as contradições que ela apre-senta em relação à lógica da troca e daprivatização.

O presente artigo está divido em três par-tes. A primeira apresenta os aportes de Ostromem matéria de análise do manejo de recursoscomuns e o papel que ela atribui à reciprocidade.A segunda parte propõe uma leitura do manejode recursos de uso comum pela ótica da teoriada reciprocidade. Nas considerações finais, ten-to esboçar um diálogo entre a abordagem deOstrom e a teoria da reciprocidade. A argumen-tação se apóia em aplicações dos dois enfoquesteóricos na análise de dispositivos de manejo derecursos comuns no Nordeste do Brasil e na NovaCaledônia.

1. A governança dos recursos comunse a reciprocidade em Ostrom

1.1 Ação coletiva e manejo dos recursoscomuns

Segundo Ostrom (1990), para atender a si-tuações de interdependência entre atores hete-rogêneos, a ação coletiva é implementada com ouso de instituições, definidas como um conjuntode regras e normas efetivamente aplicadas por

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um grupo de indivíduos para organizar as suasatividades. As normas correspondem a valoresinternos ao grupo e as regras são representaçõescompartilhadas com o exterior. Eventualmente,a violação das normas gera sanções (OSTROM,1998). A ação coletiva depende da capacidadede elaboração e adaptação de regras comuns, cujainstitucionalização dentro de um grupo constituiuma incitação à cooperação e aocompartilhamento.

Como Gouldner (1960), Ostrom consideraa reciprocidade como uma norma social univer-sal, entre outras. Ela procurou explicar os seusefeitos específicos e, se não a sua natureza, pelomenos a sua origem (OSTROM, 2003, 2005a).Portanto, procurei aplicar as suas propostasmetodológicas ao Nordeste do Brasil(SABOURIN, 2001a, 2003, 2008, 2009;SABOURIN e ANTONA, 2003) e à NovaCaledônia (SABOURIN, 2001; SABOURIN ePEDELAHORE, 2002; SABOURIN e DJAMA,2003), para propor um diálogo entre a sua abor-dagem e a teoria da reciprocidade.

Em 1990, em Governing the Commons,Ostrom mostra, com exemplos de manejo de re-cursos naturais de propriedade comum, que ofuncionamento da ação coletiva não segue as hi-póteses habituais da economia clássica. Criticaassim os modelos ditos de primeira geração dateoria da escolha racional - RAT (OLSON, 1966;HARDIN, 1968) e as suas hipóteses em termosde racionalidade e de informação perfeita dosatores. Ostrom (1990) mostra que tais modelossão raramente validados e são até contestadospelas observações da realidade e pelos resulta-dos experimentais: jogos, modelos e simulações.Para ela, os atores em situação real fazem op-ções melhores em termo de ganhos coletivos queaqueles previstos pelas teorias da escolha racio-nal (CARDENAS e OSTROM, 2001; KAHAN,

2005). Esta situação explica-se, em parte, pelaimportância do face to face ou do inter-conheci-mento entre os atores, o que leva a umengajamento mútuo. Por outra parte, dependeda capacidade de inovação dos atores, a qual lhespermite, ao fazerem evoluir as regras, aprenderjuntos, reduzir as assimetrias e aumentar os gan-hos coletivos (OSTROM, 1990).

Ostrom de fato descreve estruturas elemen-tares de reciprocidade: binária (o face to face, apartilha: o aprender juntos), ternária (o inter-conhecimento levando a um engajamentomútuo). Logo, verifica empiricamente que a pro-cura de relações simétricas (a redução dasassimetrias) gera mais riqueza a ser dividida (au-mentar os ganhos coletivos). Vemos assim comoas observações da realidade concordam com aspropostas da teoria da reciprocidade.

A partir de 1997, Ostrom propõe a cons-trução de «modelos de segunda geração», base-ados em mecanismos de elaboração de normas,de regras e processos de aprendizagem que per-mitem aumentar o grau de cooperação(OSTROM, 1998, 1999). Logo, as análises deOstrom dão uma importância particular à reci-procidade, à confiança (e à reputação) comonoções-chave da ação coletiva (OSTROM,2003), presentes em dispositivos que associamsentimentos morais e interesses materiaiscomo fundamentos da cooperação na econo-mia humana (GINTIS et al., 2005).

1.2 Reciprocidade, confiança e reputaçãono manejo dos recursos comuns

Para Ostrom (1998), não há cooperaçãosem reciprocidade, ou seja, sem retorno ou semcompartilhamento por parte dos usuários. Osatores se esforçam para identificar os outros ato-res envolvidos e os consideram como possíveiscooperadores. Cooperam, a priori, com aqueles

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que manifestam tal intenção e se recusam a coo-perar se não houver reciprocidade. Existem san-ções para aqueles que traem a confiança dos ou-tros (OSTROM, 1998, p. 10). Ostrom critica ainterpretação redutora da norma de reciprocida-de na estratégia do “tit for tat” (toma lá, dá cá)da teoria dos jogos, que consiste em fazer ape-nas aquilo que o outro faz. Para ela, é a confian-ça mútua que explica a reciprocidade, conside-rada como uma norma moral internalizada, oucomo um princípio de troca social, caracteriza-do pela vontade de cooperar. Por outro lado,segundo ela, a reciprocidade implica a conside-ração do outro como um cooperador potencial ea expectativa de uma sanção, caso não haja coo-peração.

Participants must also have some level oftrust in the reliability of others and be willingto use broad strategies of reciprocity. Ifparticipants fear that others are going totake advantage of them, no one will wishto initiate costly actions only to find thatothers are not reciprocating (OSTROM,2003, p. 21).

A confiança é definida como um nível es-pecífico de probabilidade atribuído por um agentea outro no sentido de que uma ação determinadaseja realizada.

[…] we define trust as a particular level ofthe subjective probability with which anagent assesses that another agent or groupof agents will perform a particular action.Thus, trust allows the trustor to take anaction involving risk of loss if the trusteedoes not perform the reciprocating action[…]. Another crucial aspect of trust is thatit involves an opportunity for both thetrustor and the trustee to enhance theirwelfare (OSTROM e WALKER, 2003, p.8-9).

Uma das pistas exploradas por Ostrom, pormeio da teoria dos jogos e da modelagem, paraexplicar a permanência da reciprocidade é a san-ção, ou pelo menos a confiança no cumprimentoda sanção (OSTROM, introdução a GINTIS etal., 2005a)

Ostrom procurou na teoria dos jogos a ex-plicação dos comportamentos de reciprocidade,por meio da repetição de experimentação na basede modelos (SETHI e SOMANATHAN, 2003),fazendo intervir, a partir da confiança entre os in-divíduos, a vontade de coordenar a sua ação. Defato, tal processo supõe um mínimo de informa-ção sobre as disposições recíprocas dos outros.

That the norm of reciprocity prevails in asociety implies that a significant proportionof individuals in the society are trustworthy.Reciprocity as a prevailing pattern ofinteraction among individuals is, in game-theoretic terms, an efficient equilibrium ofrepeated social dilemma games with multipletypes of individuals and incompleteinformation. For reciprocity to prevail aspatterns of social interaction trustworthyindividuals need not only to overcome thetemptation to free-ride but they also needto coordinate their actions successfully(OSTROM, 2008, p. 16).

Neste sentido, Ostrom considera que a re-putação constitui uma dessas informações quemotivam a confiança no outro e, portanto, a re-ciprocidade na cooperação (OSTROM, 1998, p.12). Finalmente, a densidade das redes de agen-tes cooperadores (strong reciprocators) e a pro-babilidade de eles interagirem são dadas comouma condição da expressão da norma de reci-procidade, Visto que os indivíduos“reciprocitários” são minoritários numa socieda-de, o seu impacto depende da densidade das suasinterações:

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When reciprocal agents using conditionallycooperative strategies have a higher chanceto interact with one another than with thesurrounding population in general, they caninvade a population composed of agentswho always defect (OSTROM, 2008, p.16).

Ostrom propõe assim adaptar as políticasem função da proporção ou da densidade de in-di v íduos « reci proci tár i os » ou egoístas(OSTROM, 2005a).

Assim, a formalização ou ainstitucionalização das organizações de produ-tores pode se tornar necessária para legitimar,em um contexto novo, práticas camponesas dereciprocidade ou normas sociais ancestrais, taiscomo a ajuda mútua ou a gestão partilhada dosrecursos comuns.

[…] creating institutional mechanisms thatlocal participant can use to organizethemselves, such as through special districts,private associations, and local/regionalgovernments. It is also important thatpolicymakers not presume that they are theonly relevant actors in efforts to solvecollective action problems. They havepartners if they are willing to recognize them(OSTROM, 2005b, p. 26).

Para resumir, Ostrom, reúne numerosasevidências de dispositivos de cooperação e dereciprocidade as quais contradizem as teoriaseconômicas da ação racional (RAT). Os indiví-duos obtêm resultados « melhores que racio-nais », construindo as condições para que reci-procidade, confiança e reputação contribuam parasuperar ou reduzir as tentações de interesses ego-ístas.

The central theme that links all discussionsrelates to the gains from association thatare achieved when individuals are able to

develop trust and reciprocity. Whether theycome in the form of market exchange orpersonal relationships, the gains fromassociation depend on the willingness ofindividuals to take risks by placing their trustin others. Whether that trusting behavior ismutually beneficial and lasting depends onthe trustworthiness of those in whom trusthas been placed (OSTROM e WALKER,2003, p. 8).

2. Manejo compartilhado dos bens ourecursos comuns e produção devalores

2.1 Retorno sobre a teoria da reciprocidade

O primeiro elemento próprio à teoria dareciprocidade envolve a definição do conceito doponto de vista sócio-antropológico. O princí-pio de reciprocidade não se limita a uma rela-ção de dádiva/contra dádiva entre pares ougrupos sociais simétricos. O reducionismo dessadefinição, que por muito tempo prevaleceu e ain-da prevalece às vezes na antropologia, conduz,de fato, a uma confusão entre troca simétrica ereciprocidade. Esse impasse persistirá enquantoa reciprocidade for interpretada com a lógica bi-nária que convém à troca. Temple e Chabal(1995) propõem recorrer à lógica ternária deLupasco (1951), a qual faz aparecer um terceiroincluído na relação de reciprocidade. Permite,assim, interpretá-lo como o ser dessa relação edar conta dela como parte da estrutura originá-ria da intersubjetividade, irredutível à troca debens ou de serviços que libera do elo social ouda dívida.

Do ponto de vista econômico, a reciproci-dade constitui, portanto, não somente uma cate-goria econômica diferente da troca mercantil,

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como identificou Polanyi (1944, 1957), mas umprincípio oposto ao da troca ou mesmo antagô-nico a ela.

O segundo elemento da teoria, que partici-pa do seu caráter universal, é que a reciproci-dade pode recobrir várias formas. De formageral, a antropologia e a etnologia consagraramsob essa terminologia apenas a reciprocidade dasdádivas: oferendas, partilhas, prestações totais,potlatch, que constituem o que Temple e Chabal(1995) designam como forma positiva da reci-procidade. Mas, existe, igualmente, uma formanegativa de reciprocidade, a dos ciclos de vin-gança. Diferentemente da troca, cujo desenvol-vimento ou extensão é associado à lógica de con-corrência e de acúmulo pelo lucro, a lógica davingança está ligada a uma dialética de honra, talcomo a da dádiva está ligada a uma dialética doprestígio. Contudo, a sede de prestígio (fonte deautoridade nas sociedades de reciprocidade)motiva o crescimento da dádiva - “quanto maiseu dou, mais eu sou”. Entre as expressões ex-tremas das formas negativas e positivas da reci-procidade, as sociedades estabeleceram, então,diversas formas intermediárias. Trata-se, em par-ticular, de controlar o crescimento da dádiva, aostentação, o potlatch, a dádiva agonística quedestrua e submeta o outro mediante o prestígio.

Em terceiro lugar, as relações de recipro-cidade podem ser analisadas em termos deestruturas, no sentido antropológico. Assim, elasse declinam segundo algumas estruturas elemen-tares, conforme propostas inicialmente por Mauss(1924), Lévi-Strauss (1949) e Temple (1998).

O quarto elemento da teoria envolve os dife-rentes níveis do princípio de reciprocidade e osmodos que lhe são específicos. Existem três pla-nos ou níveis de reciprocidade: o real, o simbólico(a linguagem) e o imaginário (as representações).

Para resumir, existem várias estruturasfundamentais de reciprocidade, que geram

sentimentos diferentes e, portanto, valores dife-rentes. Existem, igualmente, várias formas dereciprocidade as quais lhe conferem imagináriosdiferentes. O sentimento do ser originário podeser capturado no imaginário do prestígio ou noda vingança, dando lugar a formas de reciproci-dade positivas, negativas e simétricas. Estrutu-ras, níveis e formas se articulam para formar sis-temas de reciprocidade.

A gestão dos recursos comuns repousa so-bre uma estrutura de reciprocidade binária cole-tiva específica, o compartilhamento. Na estrutu-ra do compartilhamento todos estão de frente unspara os outros. Os valores afetivos e éticos gera-dos pelas relações de partilha correspondem aum sentimento de pertencimento e de confiança.O sentimento de pertencer a um todo é muitoforte e aparece de forma espontânea na maioriados depoimentos de camponeses, associado auma noção de unidade, de solidariedade, de for-ça e de vida do ser coletivo ou comunitário.

Chabal (2005, p. 5) insistiu no fato que nãoé tanto o objeto da partilha que importa, masas ações dos sujeitos. É esse exatamente o pro-blema das infra-estruturas hídricas ou dos equi-pamentos “recebidos” do exterior. Não se divideda mesma forma o que foi construído e mantidoem conjunto entre pares e o que se origina de umcentro de redistribuição exterior ao grupo. Naestrutura de compartilhamento, o fazer em con-junto e o fato de depender de uma mesma fontelimitada de recursos criam um sentimento de gru-po. Podemos simbolizar a estrutura de partilhapor um círculo extensível em função do númerode participantes.

A partilha procura produzir união. A pala-vra expressa isso com “nós”. O lema é: umpor todos, todos por um. É a idéia de tota-lidade que domina (CHABAL, 2005, p. 5,tradução nossa).

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A reciprocidade recorre, ao mesmo tempo,à identidade e à diferença, para produzir umaconsciência, um sentimento de ser um todo oude pertencer a um todo. De fato, não existe pos-sibilidade de perda de personalidade. “Ao con-trário, se tudo desaparece no homogêneo, nãoexiste mais reciprocidade, solidariedade autênti-ca, verdadeira consciência” (CHABAL, 2005, p.10, tradução nossa).

A alienação específica desta estrutura dereciprocidade é expressa pelo fechamento do cír-culo sobre o grupo ou a comunidade. Chabal(2005, p. 6) adverte: o grande perigo docompartilhamento é o fechamento do círculo.

2.2 Aplicações em matéria de partilha deconhecimentos e aprendizagens

Hess e Ostrom (2007) propõem consideraro conhecimento e os saberes locais como partedos bens comuns ou compartilhados. No casodas estruturas de partilha de saberes e experiên-cias comuns, por exemplo, a Universidade Cam-ponesa no Brasil (SABOURIN, 2009; COUDEL,2009), ouvi depoimentos referindo-se a diversosvalores éticos. Os agricultores mencionam o res-peito pelo outro (aluno ou professor), a capaci-dade de escuta que traz confiança quanto às ca-pacidades do grupo; o reconhecimento da capa-cidade do outro num quadro de interação; e osencontros com outros profissionais ou atoressociais e técnicos (agricultores, artesões, poetas,artistas).

A confiança em si mesmo e nos outros nas-ce de experiências coletivas que colocam cadaum em situação de paridade frente aos outros,formadores ou alunos. Na Universidade Campo-nesa, a prática coletiva do trabalho manual nasaulas de artes plásticas, com a participação dosprofessores, permitiu criar uma relação horizon-tal de paridade entre mestres e alunos. Criou-se,

pedagogicamente, uma estrutura binária simé-trica no marco da sala de aula ou de artes.(COUDEL e SABOURIN, 2005; SABOURIN,2009).

As aprendizagens mais notáveis são asso-ciadas a relações que produzem valores huma-nos e sentimentos importantes: confiança (em sie nos outros), respeito mútuo e reconhecimentodo outro, sentimento de justiça (a noção essen-cial do direito e do dever de “tomar” ou “dar” apalavra); enfim, responsabilidade (em relação aparceiros de formação e em relação à comunida-de ou organização de origem).

Esses valores éticos são produzidos graçasàs relações estruturadas de reciprocidade simé-trica:

• a confiança coletiva é produzida pelaestrutura de compartilhamento no âm-bito do grupo: partilha dos saberes,aprendizagens mútuas ou cruzadas, par-tilha das responsabilidades e solidarie-dade;

• a aquisição do sentimento de justiçapela aprendizagem, graças à tomada deconsciência, é produzida pelaeqüidistância entre a necessidade de co-nhecimento (a sua aplicação, a si pró-prio e aos outros) e a fonte do conheci-mento (personificada pelo formador);ele corresponde a uma relação de reci-procidade ternária bilateral.

2.3 Reconhecimento do manejocompartilhado e re-adaptação dareciprocidade

Quando os dispositivos de gestão de recur-sos comuns baseados na reciprocidade são reco-nhecidos pelo Estado e pelas políticas públicas,as relações de partilha conseguem, de forma ge-ral, reorganizar-se (atualizar-se) no âmbito de

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estruturas institucionais novas, mais bem adap-tadas ao contexto atual.

No Brasil

No Nordeste brasileiro, as especulaçõesfundiárias das zonas de implantação de períme-tros irrigados trouxeram invasões ilegais e a apro-priação privada das terras comunitárias, os fun-dos de pasto. A solução negociada entre o Esta-do e os camponeses do norte da Bahia – a atri-buição de títulos coletivos de propriedade des-sas partes comuns para as associações de produ-tores – foi um precedente em matéria de reformaagrária sustentável e local (SABOURIN et al.,1995, 1999).

Na região de Juazeiro, Senhor do Bonfime Uauá, essa legislação permitiu reconstituirum corpo de regras coletivas decompartilhamento e responsabilidade, atravésde uma forma de organização nova, a associa-ção. De fato, há atualização, não das estrutu-ras, mas do quadro da partilha, do receptor darelação de reciprocidade.

Instituindo o reconhecimento jurídico dapropriedade coletiva dessas terras, o Estado daBahia permitiu que as associações de produtorestivessem acesso a apoios e financiamentos reser-vados aos beneficiários da Lei de Reforma Agrá-ria. Foi o caso da infra-estrutura para recursoshídricos (poços, barragens, pequena irrigaçãocom bombas ou sifão). Ainda no Nordeste doBrasil, o Estado da Paraíba reconheceu e finan-ciou os bancos de sementes comunitários desti-nados à conservação e produção de variedadeslocais de milho e de feijão, por motivos de segu-rança alimentar e considerações ecológicas emtermos de conservação da biodiversidade(SABOURIN, 2003, 2008).

Contrariamente às profecias de Hardin(1968, p. 1243-1248), as quais prevêem a de-

gradação inevitável dos bens comuns devido aoexcesso de uso, os camponeses do Nordeste bra-sileiro souberam, no decorrer da sua história,encontrar modos de gestão comum das reser-vas d’água, dos baixios ou dos fundos de pasto,sem sistematicamente comprometer o seu aces-so e a sua reprodução (SABOURIN et al.,2002). As práticas de gestão compartilhada nãosão todas observáveis na escala da comunidadelocal. Existe uma repartição espacial e tempo-ral do acesso ao recurso. Por exemplo, para afloresta seca, a caatinga e a água, essa regulaçãose exerce mais facilmente na escala da micro-região ou da bacia do que dentro de uma únicacomunidade.

Da mesma forma, no caso dos fundos depasto, a repartição dos animais entre os des-cendentes por meio do dote e das dádivas paracada filho é uma prática destinada a limitar aacumulação de gado no nível de uma só gera-ção e de uma mesma localidade. Ao mesmotempo, isso assegura a capacidade de produ-ção da próxima geração. Assim, as comunida-des camponesas criaram uma série de meca-nismos que permitem que cada família partici-pante desse sistema de reciprocidade produzae consuma de acordo com as suas necessida-des (SABOURIN, 2009).

É precisamente no campo do manejo dosrecursos coletivos que as organizações profis-sionais de agricultores podem, às vezes, con-duzir à adaptação ou a atualizações das regrasde reciprocidade. Essas organizações consti-tuem um espaço jurídico local, reconhecido po-liticamente pela sociedade e pelo Estado, o quenão é o caso das estruturas comunitárias in-formais. Além do mais, elas oferecem um qua-dro regulatório capaz de adaptar novas nor-mas e regras de gestão que sejam sistematiza-das, e, se não entendidas, pelo menos respei-

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tadas, ou até mesmo aceitas pela sociedadeglobal (SABOURIN, 2001a).

Na Nova Caledônia

Desde os acordos de Nouméa (FREYSS,1995), o reconhecimento do direito fundiárioKanak deixou a responsabilidade da gestão co-mum das terras nas mãos do sistema consuetu-dinário. Isso trouxe novas perguntas: quais sãoos respectivos papéis das chefias, dos conse-lhos dos anciões, dos clãs, mas também dasmulheres, dos jovens, das novas estruturas co-letivas ou associativas dentro das tribos?(SABOURIN e PÉDELAHORE, 2001). Apósas revoltas Kanak de 1984, o GDPL (Agrupa-mento de Direito Particular Local) foi criadopara gerenciar as terras tribais e, ao mesmo tem-po, tentar conciliá-las com as exigências de pro-dução da legislação francesa e da economia detroca. Esse estatuto procura adequar as regrasdo direito consuetudinário (aplicado aos indiví-duos) com as do direito romano comum (apli-cado aos bens), assim como criar uma via depassagem entre os mundos Kanak e Europeu.Aliás, não se pode idealizar o modelo tribal queapresentava, e apresenta ainda, fortes desigual-dades de repartição fundiária, visto que osmelanésios são organizados em sociedades dechefias relativamente hierarquizadas(SABOURIN e PÉDELAHORE, 2002).

Entretanto, a gestão fundiária tradicional,de acordo com as regras da reciprocidade, deveassegurar a satisfação das necessidades elemen-tares de cada família. Eis a razão pela qual o sis-tema de atribuição feito pelos guardiões das ter-ras era relativamente flexível e previa modalida-des de acolhimento das famílias dos clãs sem ter-ra ou deslocadas em decorrência de conflitos.Assim, na Nova Caledônia, evoca-se a possibili-dade de criar um cadastro consuetudinário; no

entanto, a fixação pelo cadastro da atribuição deterras tribais pode, por exemplo, entrar em con-tradição com a prática consuetudinária de aco-lhimento de novos candidatos a terras: clãs rece-bidos, novos nascimentos (SABOURIN ePÉDELAHORE, 2001).

Da mesma forma, a reforma agrária brasi-leira, quando atribuiu superfícies mínimas, só foipensada para solucionar a distribuição de terrasna escala de uma geração. Nada foi previsto paraos filhos dos beneficiários, a não ser o êxodo rural(SABOURIN, 2008, 2009). De fato, as contra-dições são freqüentes no marco das reformasfundiárias, mais particularmente no âmbito dossistemas mistos, reunindo lógicas de reciproci-dade e lógicas de troca decorrentes de quadrospós-coloniais.

2.4 Contradições entre as políticas degestão e as comunidades camponesas

Existe uma contradição fundamental, nasmatérias de propriedade e de uso das terras, en-tre a gestão local ou comunitária e as políticasde desenvolvimento, inclusive no que tange àspropostas de reforma agrária ou fundiária. Paraos indígenas e os camponeses, a terra não é so-mente um fator de produção como qualquer ou-tro (POLANYI, 1944, 1957). Aliás, a superfíciedisponível, muitas vezes insuficiente para a so-brevivência da família (Brasil, Nova Caledônia),constitui, antes de qualquer coisa, um lugar deresidência, uma base para outras atividades com-plementares (SABOURIN e DJAMA, 2003).Com certeza, ela é um lugar de vida, mas tam-bém um patrimônio comum, identitário, a sededas origens, a essência do grupo e das suas mar-cas simbólicas (fetiches, terreiros, ritos etc.).Nesse sentido, a terra é inalienável, ela não é umamercadoria.

Na Nova Caledônia

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A reivindicação fundiária Kanak é susten-tada coletivamente por clãs ou tribos unidos emfunção de objetivos de legitimação das suas de-mandas e de implementação de uma relação deforça que os favoreça. Todavia, ela não implicaobrigatoriamente, ao contrário da visão dos po-deres públicos, um projeto coletivo de gestão oude valorização econômica das terras recupera-das. Isto é ainda mais visível em relação à valori-zação de antigas terras tribais desbravadas porcolonos europeus, transformadas em pastos erecuperadas pelos melanésios a título de refor-ma fundiária, mas sob a condição de valorizá-lascriando gado. A pecuária não corresponde à tra-dição Kanak e o compartilhamento tem os seuslimites. Como imaginar a gestão comum de umrebanho coletivo no âmbito de um sistema ex-tensivo de ranching? Somente uma administra-ção cega poderia fazer uma proposta tãoirrealista, que, aliás, tampouco funcionaria em umsistema europeu.

A primeira razão da reivindicação melanésiaestá ligada a uma exigência de “compensação”pelos prejuízos causados pela espoliação fundiáriacolonial e a um retorno às raízes identitárias dosclãs. Por outro lado, a utilização do GDPL comoestrutura de desenvolvimento de atividades eco-nômicas está limitada, por causa da ausência deestatutos precisando os direitos e deveres dosseus membros. Finalmente, os bancos (capitalis-tas) ainda hesitam em emprestar fundos para es-sas estruturas híbridas ou consuetudinárias.

Assim, a dificuldade de inserção dosmelanésios (e de seus atributos fundiários) den-tro de um sistema de “direito comum” construídopara e dentro do quadro da sociedade capitalistanão deve ser interpretada somente como umaincapacidade dos costumes de se adaptarem àsexigências do modelo mercantil dominante. Elaconstitui também “uma ação de resistência posi-

tiva frente a um modelo exterior pelo qual a so-ciedade melanésia está, para um número impor-tante de indivíduos, menos preparada que outrosgrupos sociais” (NEAOUTYNE, 2001, traduçãonossa).

No Brasil

Acontece o mesmo com a gestão da água.No Nordeste do Brasil, no quadro da moderni-zação agrícola dos anos 1970 – 1980, importan-tes infra-estruturas de irrigação foram implanta-das pelo Estado nacional, com o apoio do BancoMundial. O desengajamento do Estado, iniciadonos anos 1990, mediante a transferência da ges-tão dos perímetros públicos para organizaçõesde usuários, teve, muitas vezes, conseqüênciasdramáticas (SABOURIN et al., 1998). Adescentralização dos poços, dos reservatórios,dos perímetros irrigados e da sua gestão não deveser usada como lema ecológico, opondo a pe-quena represa em terras comunitárias à barra-gem pública ou privada, ou à transposição debacias. Ela se justifica na medida em que a pro-dução da água é organizada socialmente. Qual osignificado disso? A ação coletiva permitegerenciar o recurso com menor custo e maioreficácia. A ação coletiva não significa tão somenteorganização coletiva unitária ou cooperativa deprodução. Ela depende, principalmente, da pro-moção do diálogo, da negociação e da coorde-nação entre diferentes tipos de atores situadosnuma mesma bacia. Isto se aplica às tarefas cole-tivas de ajuda mútua ou mutirões para constru-ção e manutenção de represas (SABOURIN etal., 2002). A gestão partilhada se revelou adap-tada ao manejo de recursos localizados e de in-teresse de pequenos grupos: mulheres de umbairro ou agricultores que ocupam um mesmobaixio.

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No entanto, a construção e, principalmen-te, a manutenção de obras comunitárias são tam-bém motivos de tensões e conflitos que eviden-ciam a insuficiência ou ineficiência das institui-ções (regras, normas) coletivas para governar osrecursos comuns. As formas de apropriação in-dividual ou coletiva incidem sobre os processosde exclusão, como mostra a história violenta dosconflitos em torno da água e das terras no Nor-deste. Entretanto, os conflitos podem tambémtrazer novas soluções, por causa das negocia-ções que eles provocam e dos processos de apren-dizagem que podem gerar.

Desde os anos 1970 - 1980, com a inter-venção da Igreja Católica e do Estado, e depoisdas ONG e agências multilaterais, a distribuiçãode poços, de bombas, de cisternas, de barragense de sistemas de irrigação se fortaleceu muito.Outrora, a organização da manutenção das re-servas d’água coletivas era controlada pelo pa-triarca da comunidade, contra uma forma espe-cifica de ajuda mútua. Com a distribuiçãoclientelista das cisternas e das barragens públi-cas, o rigor e a motivação para essas tarefas,muitas vezes, diminuem ou dão lugar à discus-são. O estatuto dessas infra-estruturas coletivasem matéria de direitos de uso e de responsabili-dade tornou-se ambíguo. Tradicionalmente, exis-tem regras de acesso e de uso para cada tipo dereservatório comunitário ou individual. Muitasvezes, essas regras foram perturbadas por causadas intervenções externas.

As dádivas recebidas sem se inscrever nalógica das estruturas de reciprocidade são difí-ceis de ser manejadas pelas comunidades. Elasprovocam conflitos quanto aos direitos de uso eaos deveres de manutenção, ou, até mesmo, des-troem as práticas de reciprocidade, desvalorizan-do-as ou submetendo-as, por ignorância, à de-pendência dos poderes públicos ou a obrigações

externas. A partir daí, existe uma confusão, emmatéria de responsabilidade, sobre a origem e osignificado da dádiva, e, assim, sobre a partilhadesses bens coletivos. Os conflitos e as negocia-ções ligados à sua manutenção se manifestamentre usuários, mas, principalmente, entre as co-munidades e os poderes públicos.

De acordo com as comunidades campone-sas, o Estado deveria assumir a manutenção e ofuncionamento dos equipamentos coletivos queele construiu para uso público. De fato, esse tipode infra-estrutura passaria do estado de bem co-mum àquele de bem público, conforme a defini-ção de Ostrom e Ostrom (1978) pelo seu livreacesso para todos e os bens comuns como benspúblicos submetidos a restrições ou direitos deuso. O Estado considera que se trata de benscomunitários, frutos da cooperação entre os agri-cultores e os serviços públicos, e que a manuten-ção deve ser de responsabilidade da populaçãolocal. Aliás, foi o mesmo princípio de transferên-cia das responsabilidades de gestão das obras eequipamentos para os usuários que, finalmente,prevaleceu no caso dos grandes perímetros pú-blicos de irrigação, mas dentro de condições quenão deixaram muita escolha aos pequenos pro-dutores em matéria de organização.

Considerações finais: diálogo entre aabordagem de Ostrom e a teoria dareciprocidade

Ostrom propõe, por um lado, uma análiseda construção social de instituições locais adap-tadas à gestão de recursos de propriedade co-mum (CPR), no quadro de uma cooperação fun-dada em escolhas e comportamentos coletivos.Por outro lado, ela coloca a norma da reciproci-dade no centro desses dispositivos. De fato, semconhecer as propostas mais recentes da teoria da

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reciprocidade (não traduzidas em inglês), Ostromconsidera a reciprocidade ao mesmo tempo comouma norma moral internalizada e um principiode intercâmbio social, caracterizada pela vonta-de de cooperar (OSTROM, 2008). Identifica edescreve certas estruturas recorrentes de recipro-cidade. Atribui-lhe uma importância especial, aoponto de propor que o sucesso as políticas pú-blicas dependem da proporção de atores “emreciprocidade” (OSTROM, 2003).

Isto dito, além das constatações comuns edas coincidências felizes, existe uma diferença deenfoque e de postulado que complica o diálogo,mesmo se às vezes parece que a distância entreas duas propostas é redutível a pouca coisa. Pri-meiro, a definição dos termos e das categoriasoferece riscos de confusão. Ostrom trata da con-fiança, da reciprocidade e da reputação comonormas sociais que são atributos dos usuários oudos grupos de usuários (OSTROM, 1998, 1999).Para a teoria da reciprocidade, a confiança e areputação são valores valor éticos, na medida emque correspondem ao reconhecimento públicodos valores do outro, enquanto a reciprocidadeé o nome de todas as estruturas de produção dosvalores éticos. A principal diferença é que, paraa teoria da reciprocidade, a confiança e a reputa-ção (o prestígio) são valores éticos produzidospelas relações de reciprocidade simétrica.

É claro que normas e regras de ação coleti-va internalizadas fortalecem os processos deauto-organização. De fato, Ostrom (1998) cons-tata que a aprendizagem das relações de reci-procidade - e, conseqüentemente, a sua prática -cria um círculo virtuoso (reciprocidade / confi-ança / reputação). De fato, trata-se de uma cons-trução no tempo, de valores éticos que contribu-em para a reprodução das relações de coopera-ção (a reciprocidade) e para a permanência dos

dispositivos de gestão dos recursos comuns pe-los usuários (as estruturas de reciprocidade).

Ostrom (1998) considera precisamente queas normas das comunidades de usuários (confi-ança, reciprocidade, sentimento depertencimento, percepção comum einterdependência do recurso) são historicamentee socialmente construídas no marco de umaracionalidade limitada. No entanto, ela procurauma explicação por meio das ciências “duras”(OSTROM, 2003) e se baseia em trabalhos so-bre a origem biológica da reciprocidade e da con-fiança (KURZBAN, 2003) e sobre a noção dealtruísmo recíproco da sociobiologia (TRIVER,1971).

The evidence of altruism as a stableevolutionary behavior is explained as a resultof reciprocal behavior. To explain theexistence of altruism on the basis ofreciprocity, Kurzban defines naturalselection in terms of design or adaptationsrather than behavior. Specifically, anorganism can be thought of as being madeup of subsystems, each designed to solve aparticular problem and contribute toreproductive success. In this view, naturalselection is a process that, over time, selectsthe best designs in solving a problem(OSTROM, 2003, p. 9).

É arriscado postular um princípio altruístapara analisar o comportamento das comunidadesque recusam a primazia do interesse privado. Astentativas de achar um princípio altruísta nos da-dos biológicos do mundo vivo têm fracassado.

É na estrutura de reciprocidade, ou seja, naestrutura social, e não na biologia, que devese encontrar uma causa primeira: não exis-te princípio altruísta, princípio da primeiradádiva, que poderia ser encontrado dentrodo próprio indivíduo, no gênero ou na es-

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pécie. Porém, se situarmos a origem huma-na não no individuo, mas na relação de re-ciprocidade, então é possível afirmar que ainteratividade recíproca é a matriz de umvalor irredutível às próprias competênciase aos interesses particulares das partes emjogo. Esse valor é o sentimento comparti-lhado por cada um que dá sentido a ambosem relação ao que foi investido nainteratividade, e corresponde ao bem co-mum (TEMPLE, 2003, tradução nossa).

Apesar das evidências empíricas e de umaintuição recorrente em torno da relação íntimaentre reciprocidade, confiança e reputação,Ostrom permanece dentro dos limites do postu-lado binário da troca e das expectativas da suaregulação por uma minoria de indivíduos altruís-tas e “reciprocitários”, interagindo via redes. Paraexplicar a reciprocidade, ela recorre previamen-te à confiança, enquanto que, para a teoria dareciprocidade, são as relações de reciprocidadesimétrica nas estruturas de compartilhamento (derecursos comuns) que produzem a confiança.Aliás, é o que mostram as repetições modeladasde jogos que fazem intervir a confiança e a reci-procidade, quando introduzem uma variável deconhecimento do comportamento do outro apartir da experiência (KAHAN, 2005).

É, aliás, uma constatação comum entre asduas abordagens que explica que a gestão parti-lhada de recursos funciona apenas em grupos deproximidade onde funcionam o inter-conheci-mento ou o respeito de regras e comuns. As rela-ções mútuas funcionam tanto melhor quandocada um sabe que o outro se situa também numquadro de reciprocidade. É neste sentido que oreconhecimento institucional ou público dos dis-positivos de manejo partilhado de recursos fun-dados em relações de reciprocidade pode garan-tir ou facilitar tanto a perenização dessas estru-

turas como a reprodução dos valores éticos queelas ajudam a produzir: confiança, reputação,respeito mútuo, responsabilidade etc.

As repetições do jogo recíproco do face aface começaram logo no início da humanidade ea recorrência dos resultados desta relação origi-nal tem construído a figura de uma estrutura ele-mentar de reciprocidade. A tendência que leva adar, receber e retribuir é de fato uma caracterís-tica da humanidade. Nem sempre existem expli-cações para os comportamentos da natureza hu-mana. Mas, não deixa de ser preocupante procu-rar a origem desses comportamentos a partir deexplicações biológicas, o que pode levar até àinvocação da seleção natural.

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