Manual Saúde Mental - Núcleo de Educação Em Saúde Coletiva

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Manual sobre Saúde Mental

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  • Mdulo: Ttulo

    Autores

    Mdulo: Ttulo

    Autores

    Sademental Alexandre de Arajo Pereira

    Paula Cambraia de Mendona Vianna

    Colaboradores:Lourdes Aparecida Machado

    Marlia Rezende da Silveira

  • Belo Horizonte Nescon UFMG

    2013

    Sademental Alexandre de Arajo Pereira

    Paula Cambraia de Mendona Vianna

    Colaboradores:Lourdes Aparecida Machado

    Marlia Rezende da Silveira

    2 Edio

  • Sade mental / Alexandre de Arajo Pereira ... [et al.]. -- 2. ed. -- Belo Horizonte : NESCON/UFMG, 2013.80 p. : il. ; 22 x 27 cm.

    Outros autores: Paula Cambraia de Mendona Vianna, Marlia Rezende da Silveira. Lourdes Aparecida Machado.Pblico a que se destina: Profissionais da sade ligados Estratgia de Sade da Famlia.ISBN:

    1. Sade Mental. 2. Sade Pblica. 3. Sade da Famlia. 4. Educao Mdica. I. Mendona, Paula Cambraia de. II. Silveira, Marlia Resende da. III. Machado, Lourdes Aparecida. IV. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Medicina. Ncleo de Educao em Sade Coletiva.

    NLM: WM 140CDU: 613.86

    S255

    2013, Ncleo de Educao em Sade Coletiva

    A reproduo total ou parcial do contedo desta publicao permitida desde que seja citada a fonte e a finalidade no seja comercial. Os crditos devero ser atribudos aos respectivos autores.Licena Creative Commons License DeedAtribuio-Uso No-Comercial Compartilhamento pela mesma Licena 2.5 BrasilVoc pode: copiar, distribuir, exibir e executar a obra; criar obras derivadas.Sob as seguintes condies: atribuio - voc deve dar crdito ao autor original, da forma especificada pelo autor ou licenciante; uso no comercial - voc no pode utilizar esta obra com finalidades comerciais; compartilhamento pela mesma licena: se voc alterar, transformar, ou criar outra obra com base nesta, voc somente poder distribuir a obra resultante sob uma licena idntica a esta. Para cada novo uso ou distribuio, voc deve deixar claro para outros os termos da licena desta obra. Qual-quer uma destas condies pode ser renunciada, desde que voc obtenha permisso do autor. Nada nesta licena restringe os direitos morais do autor.Creative Commons License Deed - http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/deed.pt.

    Projeto Grfico

    Marco Severo, Rachel Barreto e Romero Ronconi

    Diagramao

    Rafael de Paula

    Universidade Federal de Minas Gerais

    Reitor: Cllio Campolina DinizVice-Reitora: Rocksane de Carvalho Norton

    Pr-Reitoria de Ps-Graduao

    Pr-Reitor: Ricardo Santiago Gomez

    Pr-Reitoria de Extenso

    Pr-Reitora: Efignia Ferreira e Ferreira

    Coordenador do Centro de Apoio Educao a Distncia (CAED)

    Coordenador: Fernando Selmar Rocha Fidalgo

    Escola de Enfermagem

    Diretora: Maria Imaculada de Ftima Freitas

    Faculdade de Educao

    Diretora: Samira Zaidan

    Escola de Educao Fsica, Fisioterapia e Terapia Ocupacional

    Diretor: Emerson Silami Garcia

    Faculdade de Medicina

    Diretor: Francisco Jos Penna

    Faculdade de Odontologia

    Diretor: Evandro Neves Abdo

  • Sumrio

    Apresentao dos autores.....................................................................................................7

    Apresentao do Programa gora - Especializao em Sade da Famlia.......................8

    Apresentao da Unidade Didtica II...................................................................................9

    Introduo ao mdulo..........................................................................................................11

    Seo 1 | Construo histrica, poltica e cultural do transtorno mental no Brasil........19

    Parte 1 | Modelo de ateno em sade mental......................................................................21Parte 2 | Histria da loucura - algumas consideraes............................................................24Parte 3 | Reforma Psiquitrica Brasileira breve relato...........................................................27

    Seo 2 | A rede de ateno em sade mental o cuidado e a clnica.............................33

    Parte 1 | A rede de ateno psicossocial.................................................................................35Parte 2 | Cuidado em sade mental........................................................................................39Parte 3 | Epidemiologia dos transtornos mentais na ateno bsica......................................45Parte 4 | Orientaes para a avaliao de problemas de sade mental na ateno bsica.....50

    Seo 3 | Casos clnicos.........................................................................................................57

    Caso 1 | Somatizao ou queixas somticas inexplicadas......................................................59Caso 2 | Transtorno de ansiedade e abuso de benzodiazepnicos...........................................61Caso 3 | Transtorno depressivo com risco de suicdio.............................................................63Caso 4 | Dependncia qumica com abstinncia alcolica......................................................66Caso 5 | Transtorno psictico..................................................................................................69Caso 6 | Transtorno mental na infncia e adolescncia...........................................................71Caso 7 | Transtorno de conduta e uso nocivo de drogas..........................................................73

  • Moura, Alexandre Sampaio. Endemias e epidemias B / Alexandre Sampaio Moura e Regina Lunardi Rocha. -- Belo Horizonte: Nescon/UFMG, 2012. 78p. : il., 22x27cm.

    Pblico a que se destina: Profissionais da sade ligados estratgia de Sade da Famlia.ISBN:

    1. Endemias. 2. Epidemias. 3. Dengue. 4. Febre amarela. 5. Leishmani-ose. 6. Leptospirose. 7. Febre maculosa. 8. Influenza. I. Rocha, Regina Lu-nardi. II. Ncleo de Educao em Sade Coletiva da Faculdade de Medicina/UFMG (Nescon). III. Ttulo. NLM: WA 105 CDU: 614.4

    M929e

    2012, Ncleo de Educao em Sade Coletiva

    A reproduo total ou parcial do contedo desta publicao permitida desde que seja citada a fonte e a finalidade no seja comercial. Os crditos devero ser atribudos aos respectivos autores.Licena Creative Commons License DeedAtribuio-Uso No-Comercial Compartilhamento pela mesma Licena 2.5 BrasilVoc pode: copiar, distribuir, exibir e executar a obra; criar obras derivadas.Sob as seguintes condies: atribuio - voc deve dar crdito ao autor original, da forma especificada pelo autor ou licenciante; uso no comercial - voc no pode utilizar esta obra com finalidades comerciais; compartilhamento pela mesma licena: se voc alterar, transformar, ou criar outra obra com base nesta, voc somente poder distribuir a obra resultante sob uma licena idntica a esta. Para cada novo uso ou distribuio, voc deve deixar claro para outros os termos da licena desta obra. Qual-quer uma destas condies pode ser renunciada, desde que voc obtenha permisso do autor. Nada nesta licena restringe os direitos morais do autor.Creative Commons License Deed - http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/deed.pt.

    Universidade Federal de Minas Gerais

    Reitor: Cllio Campolina DinizVice-Reitora: Rocksane de Carvalho Norton

    Pr-Reitoria de Ps-Graduao

    Pr-Reitor: Ricardo Santiago Gomez

    Pr-Reitoria de Extenso

    Pr-Reitora: Efignia Ferreira e Ferreira

    Coordenador do Centro de Apoio Educao a Distncia (CAED)

    Coordenador: Fernando Selmar Rocha Fidalgo

    Conselho Regional de Educao Fsica CREF6 / MG

    Presidente: Claudio Augusto Boschi

    Escola de Enfermagem

    Diretora: Maria Imaculada de Ftima Freitas

    Faculdade de Educao

    Diretora: Samira Zaidan

    Escola de Educao Fsica, Fisioterapia e Terapia Ocupacional

    Diretor: Emerson Silami Garcia

    Faculdade de Medicina

    Diretor: Francisco Jos Penna

    Faculdade de Odontologia

    Diretor: Evandro Neves Abdo

    Projeto Grfico

    Marco Severo, Rachel Barreto e Romero Ronconi

    Diagramao

    Alexander Torres

    Seo 4 | Diretrizes clnicas..................................................................................................79

    Parte 1 | Diretrizes de abordagem psicoterpica na ateno bsica.......................................80Parte 2 | Diretrizes gerais de abordagem das somatizaes,

    sndromes depressivas e sndromes ansiosas..........................................................84Parte 3 | Diretrizes para abordagem da abstinncia alcolica...................................................89Parte 4 | Diretrizes gerais para o uso de conteno qumica....................................................92

    Concluso do mdulo..........................................................................................................95

    Referncias..........................................................................................................................99

    Apndice: leituras obrigatrias, leituras recomendadas, outras referncias

    e endereos teis na web...................................................................................................103

  • Apresentao dos autores

    Alexandre de Arajo Pereira Mdico pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialista em Psiquiatria pela Fundao Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG). Mestre em Educao Mdica pela Escola Nacional de Sade Pblica de Cuba. Fellow 2011 do Programa FAIMER Brasil. Docente da Faculdade de Medicina da Unifenas/Belo Horizonte. Coordenador de Sade Mental de Sobral CE (2001-2004), Referncia Tcnica de Sade Mental de Betim MG (20062008). Consultor em sade mental e Ateno Bsica.

    Paula Cambraia de Mendona Vianna

    Enfermeira, Docente da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em Sade Mental. Doutora em Enfermagem. Pr-Reitora Adjunta de Extenso da UFMG (2006-2010). Coordenadora do Curso de Educao Profissional (PROFAE) da Escola de Enfermagem da UFMG.

    Marlia Rezende da Silveira

    Enfermeira. Docente da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em Sade Mental. Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem da UFMG e tutora a distncia do Curso de Especializao em Ateno Bsica em Sade da Famlia (CEABSF) ofertado pelo NESCON/UFMG.

    Lourdes Aparecida Machado

    Psicloga. Especialista em Sade Mental. Referncia Tcnica em Sade Mental da Superintendncia Regional de Sade de Belo Horizonte da Secretaria de Estado de Sade de Minas Gerais.

    Colaboradores

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  • Apresentao do Programa goraEspecializao em Sade da Famlia

    O Curso de Especializao em Sade da Famlia, na modalidade a distncia, uma realizao da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), por meio do Ncleo de Educao em Sade Coletiva (Nescon)/Faculdade de Medicina, com a participao da Faculdade de Odontologia, Escola de Enfermagem, Escola de Educao Fsica, Fisioterapia e Terapia Ocupacional e da Faculdade de Educao. Essa iniciativa apoiada pelo Ministrio da Sade Secretaria de Gesto do Trabalho e da Educao em Sade (Sgetes)/Universidade Aberta do SUS (UNASUS) e pelo Ministrio da Educao Sistema Universidade Aberta do Brasil.

    O curso integra o Programa gora do Nescon e, de forma interdisciplinar, interdepartamental, interunidades e interinstitucional, articula aes de ensino pesquisa extenso. Alm do Curso, o Programa atua na formao de tutores, no apoio ao desenvolvimento de mtodos, tcnicas e contedos correlacionados educao a distncia e na cooperao com iniciativas semelhantes.

    direcionado a mdicos, enfermeiros e cirurgies-dentistas e outros integrantes de equipes de Sade da Famlia. O curso tem seu sistema instrucional baseado na estratgia de educao a distncia.

    Cadernos de Estudo e outras mdias, como DVD, vdeos, com um conjunto de textos especialmente preparados, so disponibilizados na biblioteca virtual, como ferramentas de consulta e de interatividade. Todos so instrumentos facilitadores

    dos processos de aprendizagem e tutoria, nos momentos presenciais e a distncia.

    Os textos que compem o Curso so resultado do trabalho interdisciplinar de profissionais da UFMG, de outras universidades e do servio de sade. Os autores so especialistas em suas reas e representam tanto a experincia acadmica, acumulada no desenvolvimento de projetos de formao, capacitao e educao permanente em sade, como na vivncia profissional.

    A perspectiva que este curso de especializao cumpra importante papel na qualificao dos profissionais de sade, com vista consolidao da Estratgia Sade da Famlia e no desenvolvimento do Sistema nico de Sade, universal e com maior grau de equidade e qualidade.

    A coordenao do CEABSF oferece aos alunos que conclurem o curso oportunidades de poder, alm dos mdulos finalizados, optar por mdulos no cursados, contribuindo, assim, para seu processo de educao permanente em sade.

    Para informaes detalhadas, consulte:Programa gora: www.nescon.medicina.ufmg.br/agora Biblioteca Virtual: www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca

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  • 9Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto Texto

    Para informaes detalhadas consulte:CEABSF e Programa gora: www.nescon.medicina.ufmg.br/agoraBiblioteca Virtual: www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca

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    A Unidade Didtica II (UDII) do Curso de Especializao em Sade da Famlia, da qual faz parte esta publicao, formada por mdulos relativos a disciplinas optativas, entre as quais voc pode escolher um nmero sufi-ciente para integralizar 180 horas (12 crditos). Com as 180 horas (12 cr-ditos) de disciplinas obrigatrias cursadas na Unidade Didtica I, fica com-pletado o mnimo de 360 horas (24 crditos) necessrio integralizao da carga horria total do Curso.

    Nesta UD II, o propsito possibilitar a voc atender as suas necessi-dades prprias ou de seu cenrio de trabalho, sempre na perspectiva de sua atuao como membro de uma equipe multiprofissional. Dessa forma, procura-se contribuir para a consolidao do Sistema nico de Sade (SUS) e para a reorganizao da Ateno Bsica Sade (ABS), por meio da estra-tgia Sade da Famlia.

    O leque de ofertas amplo na UD II. Envolve disciplinas de 60 horas -- sade da mulher, sade do idoso, sade da criana, sade bucal, sade do adulto, urgncias e sade mental disciplinas de 30 horas, que visam s necessidades profissionais especficas -- como sade da criana: doenas respiratrias, agravos nutricionais; sade do trabalhador educao fsica, en-tre outras.

    Endemias e epidemias so abordadas em disciplinas que desenvolvem aspectos da Ateno Bsica para a leishmaniose, dengue, tuberculose, han-senase, etc.

    Caractersticas atuais voltadas para grandes problemas sociais -- como sade ambiental -- tambm so abordadas em disciplinas especficas. A Fa-mlia como foco da Ateno Bsica uma das disciplinas da UD II e traz uma base conceitual importante para as relaes que se processam no espao da equipe de Sade da Famlia, e do Ncleo de Apoio Sade da Famlia.

    Apresentao da Unidade Didtica IIDisciplinas optativas

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    Para informaes detalhadas consulte:CEABSF e Programa gora: www.nescon.medicina.ufmg.br/agoraBiblioteca Virtual: www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca

    Por seu carter de instrumentos para a prtica profissional e para os as-pectos metodolgicos, duas disciplinas so sugeridas a todos os alunos, entre as disciplinas optativas: Protocolos de cuidado sade e organizao do servio e Projeto social: sade e cidadania.

    Para atender bem s necessidades pessoais, sugere-se que voc, antes da opo de matrcula nessas disciplinas, consulte seus contedos dispon-veis na biblioteca virtual.

    Esperamos que a UD II seja compreendida e utilizada como parte de um curso que representa mais um momento de seu processo de desenvolvi-mento e de qualificao constantes.

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    A um saber consolidado e socialmente aceito durante sculos vem se contrapor um outro que desafia a norma instituda, por propor exatamente a desconstruo de todo um imaginrio social erguido em torno do adoecimento psquico. Esse movimento de desconstruo e construo e uma nova abordagem da sade mental so os principais focos desta nossa conversa.

    Inicialmente, retomamos a ideia de modelo de ateno sade, afirmando que os modelos propostos pela Reforma da Assistncia Psiquitrica e pela Reforma Sanitria Brasileira redirecionam a ateno sade do hospital para a comunidade, desconstruindo saberes, propondo novas formas de assistncia e reconhecendo a comunidade como o lcus preferencial de interveno.

    Terica e politicamente, ambos os projetos tm se mostrado viveis, mas bastante provvel que a realidade vivenciada pelas equipes de Sade da Famlia no atendimento ao portador de transtorno mental permeada por inquietaes, indagaes e, muitas vezes, pela dificuldade em intervir de forma eficiente no cuidado a esse grupo populacional. por isso que julgamos importante propiciar uma reflexo sobre o cotidiano do atendimento em sade mental nessas equipes. Contudo, para chegar a esse cotidiano, entendemos ser necessrio percorrer um caminho que resgate um pouco da histria da loucura e os novos dispositivos de ateno preconizados pela Reforma da Assistncia Psiquitrica. Procuraremos construir, junto com voc, um conhecimento que possibilite a efetividade e a resolubilidade das aes de sade mental na Ateno Bsica.

    Como forma de discutir os problemas de sade mental mais significativos e prevalentes na populao, optamos por apresentar algumas

    11

    Introduo ao MduloSade mental

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    situaes clnicas em diferentes circunstncias da Ateno Bsica. Alm disso, voc ter a oportunidade de discutir situaes reais, de seu territrio de atuao.

    No pretendemos, em momento algum, impor um conhecimento pronto, sem possibilidades de dilogo. O seu cotidiano, as interaes entre os membros da equipe, as possibilidades de ateno ao portador de transtorno mental na Ateno Bsica e as polticas sociais vigentes em seu municpio devem ser considerados os princpios estruturadores de qualquer proposta de trabalho.

    Para atingir nossos objetivos, utilizamos metodologia baseada na problemtica da realidade identificada pela equipe, tendo como referncia o atendimento em sade mental, como visto no mdulo Prticas Educativas em Ateno Bsica Sade. Tal concepo pedaggica parte do princpio de que o aluno sujeito ativo no seu processo de ensino-aprendizagem, e o seu cotidiano de trabalho ponto de partida para a construo do conhecimento, num ato de aproximaes sucessivas ao objeto a ser apreendido. Importante salientar que todos ns aprendemos por meio do nosso referencial de vida, da nossa insero na cultura e nas relaes estabelecidas com os demais atores sociais. O saber no se apresenta pronto, pois ele se manifesta em contnua transformao e atualizao.

    Alm disso, em sade mental raramente existe apenas uma conduta correta a ser tomada diante de um problema concreto. A diversidade dos sujeitos implicados, seus contextos e limitaes de recursos que vo definir as medidas possveis a serem adotadas. Esperamos que o estudo deste mdulo fornea um norteamento tico e ferramentas bsicas que auxilie a tomada de decises em diversas situaes.

    Envolver a equipe de Sade da Famlia nas discusses sobre o tema pode ser entendido como uma forma de reorganizar a ateno em sade mental em sua comunidade, com vistas a garantir o cuidado efetivo e com qualidade, sustentado na autonomia e na habilidade do portador de transtorno mental.

    Devemos lembrar ainda que organizar a sade mental no territrio implica uma ao de cuidado que extrapola o seu campo especfico de atuao. importante considerarmos a sade mental no como rea de especialidade, mas como campo de atuao, j que no podemos afirmar que haja produo de sade e qualidade de vida sem que psiquicamente estejamos minimamente estruturados. Alm disso, devemos considerar que em todo processo de adoecimento humano o componente emocional

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    / subjetivo est presente e pode influir de forma significativa nos desfechos do processo sade-doena. Por isso mesmo, o Mdulo de Sade Mental do gora estabelece vrias conexes com outros mdulos do programa, ao longo dos ciclos de vida.

    Para facilitar a identificao dessas importantes conexes, sinteti-zamos nos quadros abaixo os temas de outros mdulos que podem ser teis na abordagem em sade mental j que complementam os contedos deste mdulo:

    Este mdulo composto de quatro sees. A primeira apresenta reviso terica que procura fundamentar as aes de sade mental realizadas em seu territrio. A segunda discute as situaes clnicas de

    Sade do Adolescente Sade do Adulto Idoso

    A entrevista e o manejo clnico do adolescente por parte do profissional de sade

    Mtodo clnico centrado na pessoa

    Iatrogenia e manejo de psicofrmacos em idosos

    Principais problemas de sade mental do adolescente

    Cuidados paliativos Depresso, demncia, delirium e insnia.

    Orientaes gerais sobre problemas comportamentais e emocionais nos adolescente

    Deteco e aconselhamento de problemas com lcool

    Casos para reflexo clnica

    Casos para reflexo clnica Dor crnica, depresso, estresse, usurios poliqueixosos.

    Educao fsica Famlia Sade da mulher

    Preveno de situaes de risco na infncia e na adolescncia

    Mudanas, adaptaes e estgios dos ciclos de vida.

    Mulheres vtimas de violncia

    Identificao e abordagem de problemas comportamentais na infncia e na adolescncia

    Ferramentas de abordagem familiar

    Violncia sexual na infncia e na adolescncia

    Situaes de vulnerabilidade familiar

    Quadro 1 Ciclos de vida e sade mental

    Quadro 2 - Conexo de mdulos afins com a sade mental

    Fonte: Elaborado pelos autores, 2013.

    Fonte: Elaborado pelos autores, 2013.

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    mais ocorrncia na Ateno Bsica, o diagnstico e as estratgias de ateno em sade mental. Na seo 3, sero discutidos casos clnicos e, na seo 4, disponibilizaremos algumas orientaes tcnicas em sade mental comumente utilizadas na Ateno Bsica.

    A seguir, o detalhamento destas sees.

    Seo 1 Construo histrica, poltica e cultural do transtorno mental no Brasil.Parte 1 Modelo de ateno em sade mental.Parte 2 Histria da loucura - algumas consideraes.Parte 3 Reforma da Assistncia Psiquitrica Brasileira breve relato.

    Seo 2 A Rede de Ateno em Sade Mental o cuidado e a clnica.Parte 1 - Rede de ateno em sade mental.Parte 2 Cuidado em sade mental.Parte 3 Epidemiologia dos transtornos mentais na Ateno Bsica.Parte 4 Orientaes para avaliao de problemas de sade mental na Ateno Bsica.

    Seo 3 - Casos clnicos.Caso 1 - Somatizao ou queixas somticas inexplicadas.Caso 2 - Transtorno de ansiedade e abuso de benzodiazepnicos.Caso 3 - Transtorno depressivo com risco de suicdio.Caso 4 - Dependncia qumica com abstinncia alcolica.Caso 5 - Transtorno psictico. Caso 6 - Transtorno mental na infncia e na adolescncia.Caso 7 - Transtorno de conduta e uso nocivo de drogas

    Seo 4 Diretrizes clnicas.Parte 1 - Diretrizes de abordagem psicoterpica na Ateno Bsica.Parte 2 - Diretrizes gerais de abordagem das somatizaes, sndromes ansiosas e depressivas.Parte 3 - Diretrizes para abordagem da abstinncia alcolica.Parte 4 - Diretrizes gerais para o uso de conteno qumica.

  • 15

    importante que voc desenvolva as atividades na sequncia proposta, realizando-as todas e discutindo sempre, qualquer dvida, com o seu tutor. Esperamos que, ao final deste mdulo, voc seja capaz de:

    Discorrer sobre o processo histrico da ateno sade mental no Brasil;

    Relacionar os princpios e objetivos da Reforma da Assistncia Psiquitrica no Brasil;

    Discorrer sobre as polticas e o modelo assistencial para a sade mental preconizados pelo SUS;

    Sugerir aes que contribuam com uma proposta assistencial voltada para a ateno comunitria;

    Compreender o conceito de transtorno mental, suas principais causas, sua prevalncia na comunidade e a importncia de seu tratamento;

    Construir o diagnstico da ateno sade mental de sua rea de atuao, enfocando as polticas de sade mental existentes, os recursos humanos e materiais disponveis, os equipamentos de atendimento e os casos mais prevalentes;

    Identificar as principais sndromes psiquitricas e o melhor encaminhamento em cada situao;

    Planejar aes estratgicas para a ateno em sade mental em seu territrio, tendo como referncia os princpios da Reforma da Assistncia Psiquitrica Brasileira.

    Considerando a especificidade da atuao de cada profissional, julgamos adequado estabelecer os seguintes objetivos:

    Mdico: Saber diagnosticar precocemente e instituir tratamento

    psicofarmacolgico e/ou psicossocial inicial aos transtornos mentais mais frequentes na clnica geral: ansiedades, depresses, somatizaes, reaes agudas ao estresse, dependncia qumica, alm da crise psictica e abordagem do suicdio.

    Delegar a outros tcnicos da sua equipe as tarefas correspondentes s suas capacidades.;

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    Encaminhar para os servios especializados os usurios que necessitarem de investigao diagnstica mais complexa ou no responderem bem ao tratamento institudo inicialmente pela Ateno Bsica.;

    Gerenciar a situao clnica do usurio, coordenando os contatos com outros profissionais de sade de forma a assegurar a continuidade dos cuidados.;

    Organizar a assistncia aos portadores de transtorno mental na unidade de sade.;

    Realizar preveno e reabilitao psicossocial em situaes clnicas compatveis com essas aes.

    Enfermeiro:

    Saber identificar as principais sndromes psiquitricas e o melhor encaminhamento em cada situao.;

    Conhecer as principais indicaes de psicotrpicos e seus principais efeitos colaterais; instituir tratamento no -farmacolgico, quando indicado.;

    Gerenciar a situao clnica do usurio, em conjunto com o mdico, coordenando os contatos com outros profissionais de sade de forma a assegurar a continuidade dos cuidados.;

    Organizar a assistncia aos portadores de transtorno mental na unidade de sade.;

    Capacitar e supervisionar os auxiliares de enfermagem e outros agentes de sade de nvel mdio no acompanhamento a usurios com transtornos mentais.;

    Fazer preveno e reabilitao psicossocial em situaes clnicas compatveis com essas aes.

    Cirurgio-dentista:

    Saber identificar as principais sndromes psiquitricas e o melhor encaminhamento em cada situao; .

    Conhecer as principais indicaes de psicotrpicos e seus principais efeitos colaterais;.

    Instituir abordagem No farmacolgica, quando indicada, em conjunto com o mdico de famlia e o enfermeiro; .

  • 17

    Gerenciar a situao clnica do usurio, coordenando os contatos com outros profissionais de sade de forma a assegurar a continuidade dos cuidados; .

    Organizar a assistncia sade bucal dos portadores de transtorno mental na unidade de sade.

    Capacitar e supervisionar tcnicos de sade bucal e auxiliares de sade bucal no acompanhamento a usurios com transtornos mentais.;

    Fazer preveno de doenas bucais e reabilitao psicossocial em situaes clnicas compatveis com essas aes.

    Educador Fsico

    Planejar e executar atividades fsicas com os usurios de transtorno mental.

    Instituir aes de promoo de sade e de lazer. Saber identificar as principais sndromes psiquitricas e o melhor

    encaminhamento em cada situao.; Conhecer as principais indicaes de psicotrpicos e seus efeitos

    colaterais.; Instituir abordagem No farmacolgica, quando indicada, em

    conjunto com o mdico de famlia e o enfermeiro.; Gerenciar a situao clnica do usurio, coordenando os contatos

    com outros profissionais de sade de forma a assegurar a continuidade dos cuidados.;

    Realizar preveno e reabilitao psicossocial em situaes clnicas compatveis com essas aes.

  • 18

    Ttulo

    1

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  • Seo 1Construo histrica, poltica e cultural do transtorno mental no Brasil.

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    Discutiremos, inicialmente, alguns conceitos que consideramos fundamentais para que voc se sinta apto a construir o mapa contextual de sade mental do seu territrio. Concomitantemente, procuraremos contribuir com a construo de seu mapa conceitual, ressaltando algumas palavras ou expresses em negrito.

    Entendemos que a compreenso desses conceitos e a anlise da realidade da ateno em sade mental no seu territrio so fundamentais para que sejam discutidas e elaboradas estratgias de interveno. Iniciamos, portanto, pela discusso do modelo de ateno em sade mental.

    Ao final desta seo, a nossa expectativa de que voc seja capaz de demonstrar que alcanou os seguintes objetivos:

    Discorrer sobre o processo histrico da ateno sade mental no Brasil.

    Relacionar os princpios e objetivos da Reforma da Assistncia Psiquitrica no Brasil.

    Discorrer sobre as polticas e o modelo assistencial para a sade mental preconizados pelo SUS.

    Compreender a multicausalidade do adoecimento psquico. Sugerir aes que contribuam com uma proposta assistencial

    voltada para a ateno comunitria.

  • 21

    1Modelo de Ateno em Sade Mental

    Todo modelo de ateno em sade mental estabelece intermediaes entre o aspecto tcnico e o poltico e nele devem estar presentes os interesses e as necessidades da sociedade, o saber tcnico, as diretrizes polticas e os modos de gesto dos sistemas pblicos. Isso implica um processo de contnua criatividade voltado para as necessidades mutveis dos usurios, para as caractersticas sociorregionais e para o oferecimento dos servios. Para Merhy (1991, p. 84), ao se falar de modelo assistencial estamos falando tanto da organizao da produo de servios de sade a partir de um determinado arranjo de saberes da rea, bem como de projetos de construo de aes sociais especficas, como estratgia poltica de determinados agrupamentos sociais.

    por meio da definio de um modelo assistencial que elaboramos as aes de sade a serem desenvolvidas, delimitamos o seu universo de atendimento, traamos o perfil dos profissionais e os objetivos a serem alcanados. O modelo , portanto, a mola mestra para a organizao e o direcionamento das prticas em sade. Caso sinta necessidade, reveja o mapa conceitual que voc elaborou para o Mdulo 2 Modelo

    assistencial e Ateno Bsica sade.

    Em sade mental, precisamos saber, por exemplo, se a construo do projeto teraputico ser centrada nas necessidades do usurio levando em conta sua opinio e a de seus familiares, se a prioridade de atendimento ser definida pela gravidade e no pela ordem de chegada, se h o compromisso do municpio de promover aes intersetoriais possibilitando novas formas de insero sociofamiliar, etc. Esses so alguns aspectos que caracterizam o modelo proposto pelo Sistema nico de Sade (SUS) e que, tambm, contemplam os princpios propostos pelo Movimento da Reforma da Assistncia Psiquitrica Brasileira.

  • 22

    Com o intuito de introduzi-lo nas polticas de sade mental e modelos assistenciais preconizados hoje pelo SUS, leia os captulos 2 e 3 da linha-guia Ateno Sade Mental produzido pela Secretaria de Estado da Sade de Minas Gerais (MINAS GERAIS, 2006). O texto est disponvel na plataforma do curso e no site . Aps a leitura, escreva um texto que caracterize o modelo de ateno sade mental de seu municpio. Para auxili-lo, propomos as seguintes perguntas orientadoras: 1. Quais so os princpios que norteiam o modelo de ateno adotado em

    seu municpio? 2. O hospital psiquitrico ainda tem papel relevante a cumprir? Se positivo, em

    quais circunstncias? 3. Quais so os dispositivos existentes em seu municpio para a ateno em

    sade mental de usurios graves em crise? Esses dispositivos so resolutivos e atendem o usurio dignamente?

    4. Qual o papel da Ateno Bsica no modelo proposto em seu municpio?

    Consulte, no cronograma da disciplina, os encaminhamentos solicitados.

    Atividade 1

    Na sociedade contempornea, torna-se cada vez mais difcil praticar a cincia na certeza da estabilidade e do enquadramento. Somos, cada vez mais, propensos a entender os fenmenos de nossa vida cotidiana como algo em constante transformao e movimento.

    Nenhum fenmeno, por menor que seja, tem sua origem definida por uma nica matriz. Compreender o mundo atual nos direciona, com mais frequncia, a percorrer caminhos diversos: o social, cultural, biolgico, econmico e psquico. Entretanto, ainda existe a tendncia a buscarmos a causa biolgica como o fator desencadeante da maioria das doenas em detrimento de outras causas de igual importncia. Mas podemos afirmar que qualquer doena s pode ser entendida quando inserida na sociedade em que ocorre, considerando a classe social do indivduo.

    No podemos reduzir a sade mental ausncia de transtornos psquicos. Ela vai mais alm. Ela fornece a nossa identidade social, a nossa possibilidade de transitar com autonomia pela vida. Nesse sentido, Merhy (1998, p. 40) afirma que a sade um valor de uso para o usurio, que a representa como algo til por lhe permitir estar no mundo e poder viv-lo de um modo autodeterminado e dentro de seu universo de representaes.

    Explicar a origem e o curso da doena referenciando-os apenas no biolgico fechar os olhos para a insero do sujeito na cultura e nas redes de relaes sociais das quais participa como produtor e como produto.

    Pense nisto...

  • 23

    Todo estado de sade e doena determinado, portanto, pela cultura na qual o sujeito se insere. Para Foucault (1978, p. 186), o louco no pode ser louco para si mesmo, mas apenas aos olhos de um terceiro que, somente este, pode distinguir o exerccio da razo da prpria razo. Portanto, a maneira como entendemos e lidamos com a sade e o transtorno mental est inscrita no mundo social-histrico e definida pela cultura e legitimada pelo senso comum. Nas relaes que o sujeito mantm com o seu grupo e classe social construda uma rede de significados que apontam a sade e a doena como construes de sua cultura.

    Dicas para delimitar o mapa contextual de Sade Mental no seu territrio

    Partindo da premissa de que o adoecimento psquico geralmente multicausal, ou seja, resultante de fatores biolgicos, sociais, culturais, fundamental que a equipe de Sade da Famlia conhea bem a comunidade onde atua. Nesta atividade, queremos que voc sistematize o conhecimento que tem sobre a sua comunidade. Para tanto, faa um texto descrevendo-a de forma sucinta. Para ajud-lo, sugerimos as seguintes perguntas norteadoras: 1. Trata-se de uma comunidade mais fechada ou aberta aos que veem de fora? 2. Mais liberal ou conservadora em relao aos seus valores? 3. Como se organizam os ncleos familiares, amplos ou pequenos? 4. Trata-se de uma comunidade pacfica ou com altos ndices de violncia? 5. Como est o desenvolvimento socioeconmico? 6. Como o nvel educacional das pessoas? 7. H fatores ambientais e de trabalho que possam comprometer a sade

    mental das pessoas? 8. Voc e sua equipe conseguem estabelecer relaes entre o adoecimento

    psquico da populao e os elementos de risco e a vulnerabilidade identificados? Como e quais so essas relaes?

  • 24

    Histria da loucura -algumas consideraes

    2

    Na poca da criao do hospital psiquitrico, buscou-se transferir o cuidado aos doentes mentais dos hospitais gerais para essas instituies, saneando a cidade e excluindo aqueles incapazes de participar do processo capitalista vigente. A criao do hospital psiquitrico teve como funes essenciais o tratamento mdico que reorganizaria o louco como sujeito da razo promovendo o enquadramento das pessoas em um padro de conduta socialmente aceita.

    Dessa maneira, o velho hospital psiquitrico traz para dentro de si as contradies e as desigualdades de uma sociedade que busca a uniformizao do social, o ideal de normalidade para sobreviver. Nessa instituio, o sujeito despido das concepes existentes no mundo exterior e no seu mundo domstico. Passa a existir o mundo institucional, com suas leis, normas, privilgios e castigos.

    A admisso em uma instituio total marcada por significativa mutilao do sujeito. Despojado de seus bens, de suas vestes e de sua identidade, o internado passa a ser mais um no meio de tantos outros e aprende a conviver com um anonimato forado, que lhe tira a voz e o poder de deciso. Da para frente, seu destino ser traado pelos dirigentes da instituio, sem qualquer preocupao com a singularidade de cada um, pois existe, nas instituies totais, uma norma racional nica.

    Goffman (1992, p. 11) define uma instituio total como um local de residncia e trabalho onde um elevado nmero de indivduos com situao semelhante, separados da sociedade mais ampla por considervel perodo de tempo, leva uma vida fechada e formalmente administrada.

  • 25

    Para esse autor, so caractersticas dessas instituies: o planejamento racional e consciente que atenda aos objetivos da instituio; a separao fsica e psquica do internado com o mundo exterior; a ruptura com os papis anteriormente desempenhados pelo internado; a restrio na transmisso de informaes pela equipe dirigente; a grande distncia social entre internados e dirigentes; a renncia do internado sua vontade em favor dos interesses da instituio; e, sobretudo, a deteno do poder pela equipe dirigente. Podemos citar como instituies totais os hospitais psiquitricos, os asilos, os campos de concentrao, as prises e os conventos.

    A intimidade do internado frequentemente violada pela presena do outro, pois ele nunca est completamente sozinho, est sempre em posio de ser visto por algum. Os quartos e banheiros que no se trancam, o uniforme que marca o poder institucional sobre a pessoa, a impossibilidade de estar s, o compartilhamento de um espao com pessoas nunca antes vistas so exemplos da violao da liberdade e da autonomia do internado.

    As atividades mais corriqueiras, como barbear-se, ir ao banheiro, a liberdade de ir e vir e o uso de talheres para se alimentar, so restritas ao poder de outras pessoas que podem ou no lhe fornecer os instrumentos necessrios para a realizao dessas atividades. A vida do internado norteada por uma sano vinda de cima e, dessa maneira, violenta-se a autonomia do ato.

    O tempo institucional tem um significado diferente do tempo aqui fora. O relgio do tempo interno so as tarefas da enfermagem, a alimentao, as restries e as permisses (MIRANDA, 1994, p. 129). O tempo, portanto, organizado para atender s necessidades da instituio e no s do doente. A rotina organizada possibilita que a equipe dirigente tenha total controle da instituio e no venha a se sentir ameaada pelos incidentes que possam surgir.

    Nesse sentido, a criao da categoria de transtorno mental, no sculo XVIII:

    Traria consigo, como uma marca congnita, o movimento da excluso. Atravs dela, a psiquiatria teria oferecido uma soluo racional ao dilema da sociedade burguesa emergente: como conciliar os preceitos de liberdade e igualdade com os processos reais de excluso os loucos no so iguais, nem livres, so aliens, alienados (BEZERRA JNIOR, 1994, p. 118).

  • 26

    A autora define as unidades de pertencimento como unidades sociais que constituem os mbitos de referncias materiais e simblicas dos indivduos. Seriam constitudas por um grupo social no qual o indivduo se percebe como integrante, identificando-o como um lugar seu.

    Para a mesma autora (1999, p. 260), a excluso social s reconhecida por aquilo que no , s definida por aquilo que lhe falta. No caso do transtorno mental, a falta atrela-se razo, vontade, produo. Assim, a reabilitao psicossocial do doente mental s ser possvel se constatarmos que os loucos no tm qualquer dvida para com a nossa razo cientfica e tecnolgica, de que no existe absolutamente nos loucos nenhuma falta a ser preenchida para se transformarem em sujeitos da razo e da vontade (BIRMAN, 1992, p. 88).

    As polticas de sade so criadas para minorar as desigualdades sociais, econmicas e de acesso aos servios que existem em nosso pas. No Brasil, a segregao e excluso social marcaram a assistncia psiquitrica at o fim da dcada de 70. Nos ltimos 30 anos, as polticas de sade mental tm sido norteadas pela busca da cidadania, pelo resgate da autonomia e pela igualdade social do portador de transtorno mental. Para tanto, a participao de profissionais de sade no movimento pela Reforma da Assistncia Psiquitrica Brasileira foi fundamental, como veremos adiante.

    Para Escorel (1999, p. 81):

    A excluso social significa o no encontrar nenhum lugar social, o no pertencimento a nenhum topos social, uma existncia limitada sobrevivncia singular e diria [...] a ausncia de lugar envolve uma anulao social, uma diferena desumanizadora, que reveste seu cotidiano com um misto de indiferena e hostilidade.

    Para melhor compreenso de como funcionava o hospital psiquitrico antes da Reforma da Assistncia Psiquitrica, sugerimos que voc assista ao curta-metragem Em nome da Razo do cineasta Helvcio Raton. Trata-se de um documentrio importante, de muita repercusso artstica e social, produzido no final da dcada de 1970. A instituio total abordada o Hospital Colnia de Barbacena. Essa instituio, atualmente, encontra-se bastante diferente do que mostrada no filme, fruto de um intenso movimento de reforma do modelo assistencial ocorrido naquela cidade nos ltimos 30 anos.Esse vdeo est disponvel na biblioteca virtual do curso.

    Para saber mais...

    Excluso implica a ruptura dos vnculos sociais nas dimenses do mundo do trabalho, da sociedade, da famlia, da poltica, da cultura, ou seja, rompem-se os vnculos que conferem ao indivduo a sua identidade social.

    Glossrio

  • 27

    Reforma da Assistncia Psiquitrica Brasileira breve relato

    3

    No final da dcada de 1970, foi organizado o Movimento dos Trabalhadores em Sade Mental (MTSM).

    Inspirado pelo modelo de reestruturao psiquitrica italiana, o MTSM buscou:

    importante frisar que a Reforma da Assistncia Psiquitrica surgiu no bojo da Reforma Sanitria, a qual lhe deu sustentao poltica. Com o passar do tempo, a Reforma da Assistncia Psiquitrica organizou-se como um movimento social independente que incluiu em seus princpios o desenho de um novo modelo de servios que tem como premissa fundamental a cidadania do usurio do servio (BARROS, 1996, p. 1).

    No seu incio, o MTSM busca uma transformao genrica da assistncia psiquitrica, cujos indcios podem ser encontrados seja nas denncias ao modelo oficial, de carter predominantemente privatizante e hospitalocntrico, seja na elaborao de alternativas inspiradas basicamente em propostas de desospitalizao (AMARANTE, 1996, p. 15).

    Constituir-se em espao de luta no- institucional, em lcus de debate e encaminhamento de propostas de transformaes psiquitricas, que aglutina informaes, organiza encontros, rene trabalhadores em sade, associaes de classe, bem como entidades e setores mais amplos da sociedade (AMARANTE, 1995, p. 58).

  • 28

    Essa luta pela cidadania necessita de redefinio poltica e tica do espao pblico que garanta o direito diferena pautada no direito de no sermos iguais uns aos outros, de termos nossas prprias indagaes, escolhas e projetos; direito a sermos sujeito.

    Corroborando essa afirmao, Saraceno (1999, p. 18) afirma que a cidadania do usurio psiquitrico no a simples restituio de seus direitos formais, mas a construo de seus direitos substanciais; e dentro de tal construo (afetiva, relacional, material, habitacional, produtiva) que se encontra a nica reabilitao possvel.

    As principais propostas do Movimento da Reforma Sanitria, explicitadas na 8 Conferncia Nacional de Sade universalidade, integralidade, equidade, regionalizao e controle social , foram incorporadas ao texto Constitucional nos artigos 194 a 196 e regulamentadas pelas Leis n 8.080/90 e n 8.142/90, criando o Sistema nico de Sade (SUS). O SUS pode ser definido como uma nova formulao poltica e organizacional para o reordenamento dos servios e aes de sade estabelecida pela Constituio de 1988 (SILVA, 1999, p. 11). Esse sistema, portanto, define normas, princpios e diretrizes para a ateno sade em todo o pas, inclusive na rea de sade mental.

    O movimento preconizado pela Reforma da Assistncia Psiquitrica vem cumprir um importante papel nas transformaes ocorridas na assistncia prestada ao doente mental. Esse movimento definido por Amarante (1995, p. 91) como o processo histrico de formulao crtica e prtica que tem como objetivos e estratgias o questionamento e a elaborao de propostas de transformao do modelo clssico e do paradigma da psiquiatria.

    Em sntese...

    Foi na dcada de 1970 que se consolidou o movimento denominado Reforma Sanitria, caracterizado no apenas por fazer denncias contra a ditadura e os interesses econmicos nela envolvidos, mas, ainda, por apresentar um projeto de transformao do sistema de sade vigente, marcado pelo carter centralizador, de nvel federal, e por um modelo hospitalocntrico de ateno. Com a superao do regime militar e o surgimento da Nova Repblica em 1985, esse movimento social intensificou-se e a discusso sobre o projeto da Reforma Sanitria criou vulto.

  • 29

    A atual Reforma da Assistncia Psiquitrica vem se contrapor ao modelo hegemnico de assistncia centrado no hospital psiquitrico e na excluso social do doente mental. Rompendo paradigmas, criando novas formas de convivncia com a loucura, buscando a transformao da realidade assistencial, inserindo novos atores em sua histria, ela surge desestabilizando e criticando o modelo dominante da assistncia na rea da sade mental. Contudo, apesar das vrias inovaes nos modos de tratar e cuidar do doente mental, o hospitalocntrico de atendimento ainda o modelo de assistncia hegemnico existente no Brasil. Reorientar esse modelo de ateno para fora dos hospitais psiquitricos, desconstruindo saberes, criando novas culturas para a convivncia com o doente mental, devolvendo-lhe o direito vida, liberdade e cidade, alm de garantir assistncia sade de qualidade torna-se um grande desafio.

    A superao do aparato manicomial implica, sobretudo, a desestruturao de velhos fazeres e saberes sobre a loucura, no aprendizado do novo, na possibilidade da convivncia, no estar fora. O caminho longo e requer analisar as diferenas e as reais condies socioeconmicas e afetivas existentes em cada famlia, em cada comunidade.

    Percebemos, hoje, no pas, desenvolvimento desigual das aes propostas pela Reforma da Assistncia Psiquitrica nas diferentes regies brasileiras, mas j fica evidente um modelo de ateno centrado cada vez menos no hospital psiquitrico. Os servios no hospitalares cresceram sobremaneira na ltima dcada, apesar de ainda serem insuficientes para atender demanda existente. A atual poltica do Ministrio da Sade para a rea da sade mental tem como diretriz a implantao de uma rede integrada, de base comunitria, com ofertas complexas de ateno mdico-social, sob a diretriz da reabilitao psicossocial (DELGADO et al., 2001, p. 10).

    Alm dos servios governamentais, as organizaes no governamentais se apresentam como recursos comunitrios valiosos para a sade mental, trazendo solues inovadoras no mbito local. Elas se mostram, muitas vezes, mais sensveis s realidades dos municpios do que os programas de governo (ORGANIZAO MUNDIAL DE SADE, 2001).

    Desviat (1999, p. 150) enfatiza que a originalidade da Reforma da Assistncia Psiquitrica Brasileira, em relao s reformas que aconteceram em outros pases, est na forma de integrar no discurso

    O processo de elaborao de uma poltica de sade mental deve incluir diferentes interessados (usurios, familiares, profissionais), fixando prioridades e definindo objetivos de acordo com as necessidades identificadas na comunidade e estabelecendo os recursos disponveis. Esse levantamento das necessidades da comunidade deve:a) identificar os determinantes psicossociais dos transtornos psquicos;b) realizar o levantamento dos recursos e dos servios existentes;c) detectar os grupos vulnerveis que apresentam necessidades especiais de assistncia em sade mental (crianas, idosos, adolescentes, mulheres).

    Para refletir...

  • 30

    civil, na conscincia social a trama de atuaes que um programa comunitrio deve incluir e tambm na forma de inventar novas frmulas de atendimento, com base na participao dos diversos agentes sociais. No basta, portanto, desconstruir espaos, criar novos espaos, mas, sobretudo, inventar novas formas de lidar, conviver e tratar a loucura na cidade, nos bairros, nas ruas, nas escolas, nas famlias. Enfim, em todos os lugares que dizem respeito ao sujeito e sua vida.

    Segundo Desviat (1999), alguns problemas tm dificultado o processo de desinstitucionalizao do doente mental. Esses problemas variam em grau de dificuldade conforme os pases e as regies, mas podem ser considerados comuns ao movimento em todo o mundo. So eles:

    Os recursos econmicos tm sido insuficientes para o desenvolvimento dos programas comunitrios.

    A sada dos usurios dos hospitais psiquitricos no foi acompanhada pela equivalente transferncia de verbas para a criao dos servios no hospitalares que vm acontecendo em ritmo lento, devido, sobretudo, crise de financiamento do sistema de sade. A desativao dos leitos hospitalares no se faz acompanhar da alocao eficiente de equipamentos extra-hospitalares.;

    Os programas de sade mental comunitria no foram projetados para atender aos usurios crnicos dos hospitais psiquitricos. Acreditou-se, no incio da reforma, que a cronicidade desapareceria junto com os muros do hospcio e com o tratamento na comunidade. Entretanto, o que se observou foi a manuteno de um ncleo rgido, resistente aos programas de reabilitao e carente de um meio protegido de vida, que oscila entre um hospital de cuidados mnimos e uma moradia assistida.

    A sociedade no est preparada para receber os usurios desinstitucionalizados. Verificamos que quase todos os esforos se voltam para a modificao do comportamento dos usurios e muito poucos para a modificao das crenas e dos preconceitos da sociedade em relao ao doente mental.

    Embora o estigma e a discriminao acerca do transtorno mental tenham origem na comunidade, no podemos nos esquecer de que essa mesma comunidade pode se transformar em importante recurso para a reabilitao psicossocial do doente mental.

    O papel da comunidade pode variar da promoo do esforo individual e da ajuda mtua ao exerccio de presso em prol de mudanas na ateno e nos recursos para a sade mental, ao desenvolvimento de atividades educativas, participao na monitorao e avaliao da ateno e advocacia em prol de mudanas de atitudes e reduo do estigma (ORGANIZAO MUNDIAL DE SADE, 2001, p. 136).

    Pense nisto...

  • 31

    O planejamento deficiente e inexiste uma gesto unificada dos recursos pblicos. importante salientar que a Reforma da Assistncia Psiquitrica Brasileira no vai acontecer de forma semelhante em todas as regies de um pas com imensas desigualdades sociais, econmicas, culturais e profissionais. Certamente, os servios no hospitalares estaro alocados, em mais quantidade, nas regies mais ricas do pas.

    Os servios sociais e os recursos alternativos, que centram suas aes nas necessidades mutveis dos usurios, so carentes.

    Resumindo

    At o momento, discutimos sobre o modelo assistencial calcado no tratamento em instituies de perfil totalitrio e a forma de abordar o binmio sadetranstorno mental que gerou, ao longo de um sculo e meio, a excluso social de uma parcela significativa dos portadores de transtornos mentais. Verificamos, tambm, que nos ltimos 30 anos o Brasil tem construdo um novo modelo assistencial calcado na desinstitucionalizao dos usurios asilados e na promoo da incluso social. Nesse processo, os movimentos da Reforma Sanitria e da Reforma da Assistncia Psiquitrica tm sido determinantes na modificao das polticas pblicas que aliceram os novos paradigmas da assistncia psiquitrica no Brasil.

  • 32

    Ttulo

    1

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  • Seo 2A Rede de Ateno em Sade Mental O cuidado e a clnica

  • 34

    Nesta seo, apresentaremos algumas ferramentas prticas para que voc, juntamente com sua equipe, possa atuar resolutivamente no enfrentamento dos principais problemas de sade mental do seu territrio. Alm da introduo de conceitos que sustentam a atividade clnica propriamente dita, sero apresentados cinco casos clnicos de natureza complexa, que nos permitiro discutir as dificuldades mais comuns no atendimento aos usurios com demandas psicossociais na Ateno Bsica. Embora num primeiro momento os casos possam parecer difceis de resolver, j que eles podem conter mais de um problema de sade mental, os textos de apoio possibilitaro a voc construir propostas de atuao compatveis com a realidade local.

    Ao final desta seo, a expectativa de que voc seja capaz de demonstrar que alcanou os seguintes objetivos:

    Compreender como est organizada a Rede de Ateno em Sade Mental.

    Compreender o conceito de transtorno mental, suas principais causas, sua prevalncia na comunidade e a importncia de seu tratamento.

    Identificar as principais sndromes psiquitricas e o melhor encaminhamento em cada situao.

    Construir o diagnstico de sade mental de sua rea de atuao, enfocando as polticas de sade mental existentes, os recursos humanos e materiais disponveis, os equipamentos de atendimento e os casos mais prevalentes.

    Planejar aes estratgicas para a ateno em sade mental em seu territrio, tendo como referncia os princpios da Reforma da Assistncia Psiquitrica Brasileira.

  • 35

    A rede de ateno psicossocial

    1

    A construo da Rede de Ateno Psicossocial apresenta-nos possibilidades e desafios que devem ser assumidos no s em aes de sade, mas tambm no mbito de construes coletivas entre o poder pblico, os trabalhadores e as instncias de controle social. A gesto, orientada pelos princpios do Sistema nico de Sade e pelas diretrizes da Reforma da Assistncia Psiquitrica, tem como eixo estratgico o CAPS (Centro de Ateno Psicossocial) com a meta de oferecer e prestar atendimento clnico ao usurio com transtorno mental em crise, ateno diria, evitando internaes desnecessrias em hospitais psiquitricos. Esse dispositivo de ateno tem valor estratgico para a Reforma da Assistncia Psiquitrica Brasileira e hoje se configura como espao central na assistncia ao usurio com transtorno mental em crise.

    Outros dispositivos assistenciais se apresentam como eixos complementares para efetivar o cuidado, como, a articulao necessria com as Unidades Bsicas de Sade, os Centros de Convivncia e Grupos de Produo e Gerao de Renda, as Residncias Teraputicas, a retaguarda em Hospitais Gerais (noturna/feriados/finais de semana), a implantao do Programa de Volta Para Casa e construo de aes intersetoriais que tem se revelado como algo de grande valia no fortalecimento dessa rede.

  • 36

    Hoje a rede de Ateno Psicossocial, segundo normas ministeriais, est constituda pelos seguintes componentes:

    I. Ateno Bsica em Sade;II. Ateno Psicossocial Especializada;III. Ateno de Urgncia e Emergncia;IV. Ateno Residencial de Carter Transitrio;V. Ateno Hospitalar;VI. Estratgias de Desinstitucionalizao; eVII. Reabilitao Psicossocial.

    Ateno Bsica em Sade

    Unidade Bsica de Sade, Ncleo de Apoio a Sade da Famlia, Consultrio na Rua, Apoio aos Servios do componente

    Ateno Residencial de Carter Transitrio Centros de Convivncia e Cultura

    SAMU 192, Sala de Estabilizao UPA 24 horas e portas hospitalares

    de ateno urgncia/pronto socorro, Unidades Bsica de Sade

    Enfermaria especializada em Hospital Geral Servio Hospitalar de Referncia para

    Ateno s pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes de uso de crack, lcool e outras drogas

    Unidade de Acolhimento Servio de Ateno em Regime Residencial

    Servios Residenciais Teraputicos (SRT) Programa de Volta para Casa (PVC)

    Iniciativas de Gerao de Trabalho e Renda, Empreendimentos Solidrios e

    Cooperativas Sociais

    Centros de Ateno Psicossocial, nas suas diferentes modalidades : CAPS Geral, Caps AD (lcool e Drogas) e CAPSi (Infantil)

    Ateno Psicossocial Especializada

    Ateno de Urgncia e Emergncia

    Estratgias de Desinstitucionalizao

    Reabilitao Psicossocial

    Ateno Residencial de Carter Transitrio

    Ateno Hospitalar

    Figura 1 Componentes da Rede de Ateno Psicossocial

    Fonte: BRASIL, 2011.

  • 37

    Esta rede de servios articulados entre si segue uma lgica diversa do hospital psiquitrico, buscando a liberdade, a participao social e a cidadania de seus usurios. Os portadores de transtorno mental devem ter, como todas as pessoas, uma trajetria de vida no espao social e sua insero dever ser na Ateno Bsica.

    Precisamos ainda estar atentos nova portaria que institui a Rede de Ateno Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, lcool e outras drogas, no mbito do Sistema nico de Sade e seus desdobramentos conforme diagrama da pgina seguinte:

    Figura 2 Ateno Bsica, instncia coordenadora da Rede de Ateno Psicossocial .

    Fonte: Coordenao da Sade Mental/SES/MG (2009)

    Ateno Primria SadePrograma de Volta

    para Casa

    Outros

    Aces Comunitrias

    Centros de Convivncia

    Gerao de Renda

    para Casa

    Aces Intersensoriais

    Servio Residencial Teraputico

    Controle Social

    Leitos Hospital

    Geral

    Associao de Usurios e Familiares

    Centro de Ateno

    Psicossocial

  • 38

    PORTARIA N 3088 DE 23/12/2011Institui a Rede de Ateno Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, lcool e outras drogas, no mbito do Sistema nico de Sade.

    PORTARIA N 121 DE 25/01/2011

    Institui a Unidade de Acolhimento para pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, lcool e outras drogas, no componete de ateno residencial de carter transitrio RAPS.

    PORTARIA N 3099 DE 23/12/2011

    Estabelece, no mbito da RAPS, recursos a serem incorporados ao Texto Financeiro Anual da Assistncia Ambulatorial e Hospitalar de mdia e Alta Complexidade dos Estados, Distrito Federal e Municpios referntes ao novo tipo de financiamento dos CAPS.

    PORTARIA N 130 DE 26/01/2011

    Redefine o Centro de Ateno Psicossocial de lcool e outras Drogas 24h (CAPS AD III) e os respectivos incentivos financeiros.

    PORTARIA N 123 DE 26/01/2011

    Defiene os critrios de clculo do nmero mximo de equipes de Consultrio na Rua (eCR) por Municpio.

    PORTARIA N 122 DE 25/01/2011

    Dispe sobre diretrizes e funcionamento das equipes de consultrio de rua.

    PORTARIA N 131 DE 26/01/2011

    Institui incentivo financeiro para apoio ao custeio de Servio de Ateno em Regime Residencial, incluidas as Comunidades Teraputicas, voltados para pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, lcool e outras drogas, no mbito da RAPS.

    PORTARIA N 132 DE 26/01/2011

    Institui incentivo financeiro de custeio para desenvolvimento do componente de Reabilitao Psicossocial da RAPS.

    PORTARIA N 3089 DE 23/12/2011

    Estabelece novo tipo de finan-ciamento dos CAPS.

    PORTARIA N 3090 DE 23/12/2011

    Estabelece que servios resi-denciais teraputicos (SRTs), sejam definidos Tipo I e Tipo II, destina recurso financeiro para incentivo e custeio dos SRTs.

    Figura 3 - Portarias que instituem a Rede de Ateno Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, lcool e outras drogas, no mbito do SUS.

    Fonte: Elaborada pelo autor e colaboradores, 2013.

  • 39

    Cuidado em sade mental

    2

    Consideramos fundamental, neste momento, discutir as vrias concepes de cuidado que existem em nossos servios de sade.

    Alguns dicionrios de filologia informam que a palavra cuidado origina-se de cura, que se escrevia em latim coera, e era utilizada para descrever um contexto de relaes de amor e amizade marcadas por atitudes de ateno, desvelo e preocupao com um objeto ou pessoa querida. Outros estudiosos derivam a palavra cuidado de cogitare-cogitatus e de sua corruptela coyedar, coidar, cuidar, que tem o mesmo significado de cura: pensar, colocar ateno, mostrar interesse, desvelo e preocupao. Para Boff (2000, p. 91-92),

    O ato de cuidar adquire caractersticas diferentes em cada sociedade e determinado por fatores sociais, culturais e econmicos. Esses fatores vo definir os valores e as condies em que se processa o ato cuidador.

    Neste sentido, entendemos que a palavra cuidado carrega duplo significado.

    [...] o cuidado inclui duas significaes bsicas, intimamente ligadas entre si. A primeira, a atitude de desvelo, de solicitude e de ateno para com o outro. A segunda, de preocupao e de inquietao, porque a pessoa que tem cuidado se sente envolvida e afetivamente ligada ao outro.

    Cuidado, no sentido de alerta, o sinal vermelho do semforo. Perigo de, na relao com o outro, no movimento de sair de si mesmo, ir ao encontro do outro, perder-se. Um outro sentido desloca a palavra cuidado para a maternagem, para o aconchego do colo, da relao amorosa/afetiva, do acolhimento que, no geral, s um ser humano pode dispensar ao outro (ROSA, 2001, p. 56).

  • 40

    Podemos afirmar que cuidar basicamente um ato criador, atento, perspicaz s necessidades e singularidades de quem o demanda. O cuidado nico e sempre dirigido a algum. No existem frmulas mgicas para o ato do cuidar e sim a inveno, o jogo de cintura, a busca de possibilidades vrias. No cuidar, avista-se o outro.

    A assistncia a transtorno mental, em toda a sua histria, sempre registrou a impossibilidade da famlia de estar junto, conviver com o doente mental e cuidar dele. Tratar do doente mental significou, durante dcadas, o afastamento do convvio social e familiar. Transformar, recriar as relaes existentes entre a famlia, a sociedade e o doente mental no tarefa das mais fceis. Existe o pronto, o universalmente aceito, a delegao do cuidado a outrem, que revelam as incapacidades de lidar com a loucura, de aceitar novos desafios e de se aventurar em caminhos no trilhados.

    Existem, portanto, maneiras diferentes de entender o ato cuidador. Para alguns, cuidar pressupe somente a presena de uma instituio, ou seja, o hospital psiquitrico. Porm, para cuidar no precisamos isolar, retirar o sujeito de seu mbito familiar e social. O ato cuidador, em nosso entender, vai mais alm. Ele faz emergir a capacidade criadora existente em cada um, ressalta a disponibilidade em se lanar, em criar novas maneiras de conviver com o outro em suas diferenas. Isso no significa que no manejo da crise possamos prescindir de ajuda especializada e acesso aos servios de sade. Eles so, sem dvida, o grande suporte que o familiar necessita para poder cuidar.

    Por outro lado, nos servios de sade o ato cuidador pode ser definido como um:

    A forma como o servio se organiza para responder s necessidades do usurio est diretamente relacionada sua qualidade. Saraceno (1999, p. 95) define um servio de alta qualidade como aquele que se ocupa de todos os usurios que a ele se referem e que oferece reabilitao a todos os usurios que dele possam se beneficiar.

    Encontro intercessor entre um trabalhador de sade e um usurio, no qual h um jogo de necessidades/direitos. Neste jogo, o usurio se coloca como algum que busca uma interveno que lhe permita recuperar, ou produzir, graus de autonomia no seu modo de caminhar a sua vida. Coloca neste processo o seu mais importante valor de uso, a sua vida, para ser trabalhada como um objeto carente de sade (MERHY, 1998, p. 4).

    O cuidar em famlia, a busca de estratgias e alternativas para a sua sobrevivncia, a diviso de tarefas, o acatamento ou no s normas que so impostas pela sociedade famlia realam a importncia da participao desta no processo de incluso social do doente mental.

    No dia a dia...

  • 41

    Para Merhy (1998, p. 12), o mod-elo assistencial que opera hoje nos nossos servios centralmente organizado a partir dos problemas especficos, dentro da tica he-gemnica do modelo mdico lib-eral, e que subordina claramente a dimenso cuidadora a um papel irrelevante e complementar. No existe, pois, preocupao com o antes, com os modos de vida do usurio e sua famlia. Existem, sim, intervenes pontuais e descontex-tualizadas para atender situaes especficas de crise.

    Para refletir...

    No podemos reduzir a amplitude de um servio a um local fsico e aos seus profissionais, mas a toda a gama de oportunidades e lugares que favoream a reabilitao do usurio. Um dos lugares privilegiados no intercmbio com os servios a comunidade e dela fazem parte a famlia, as associaes, os sindicatos, as igrejas, etc. A comunidade , portanto, fonte de recursos humanos e materiais, lugar capaz de produzir sentido e estimular as trocas.

    As relaes estratgicas mantidas entre o servio e a comunidade podem ser pautadas pela negao (a comunidade no existe), pela paranoia (a comunidade so os inimigos que nos assediam), pela seduo e busca de consenso (a comunidade tudo aquilo e somente aquilo que me aceita da forma como sou e me aprova) e pela interao/integrao (a comunidade uma realidade complexa e exprime interesses contrastantes). Visto que a famlia parte integrante da comunidade, o servio geralmente usa com a famlia as mesmas estratgias utilizadas com a comunidade. Dessa maneira, a famlia pode se tornar no s a protagonista das estratgias de cuidado e de reabilitao propostas pelo servio, mas tambm uma protagonista conflituosa dessas mesmas estratgias.

    Para minorar as dificuldades enfrentadas pela famlia na convivncia

    com o doente mental, o servio deve estar apto a reduzir os riscos de

    recada do usurio; prestar informao clara e precisa sobre a doena

    (sinais, sintomas, tratamento, medicao, etc.); ensinar habilidades de

    manejo e minimizao dos sintomas; e possibilitar que os familiares

    sejam capazes de exprimir suas necessidades e sentimentos.

    Segundo Saraceno (1999), passar de uma abordagem biomdica a uma abordagem psicossocial obriga adoo de mudanas importantes:

    na formulao das polticas de sade mental; na formulao e no financiamento de programas de sade mental; na prtica cotidiana dos servios; no status social dos mdicos.

    Essa passagem norteada por uma forte resistncia cultural, social e econmica transformao da assistncia em sade mental. A abordagem psicossocial acentua o reconhecimento do papel dos usurios, da famlia, da comunidade e de outros profissionais de sade como fontes geradoras de recursos para o tratamento do transtorno mental e da promoo da sade mental (SARACENO, 1999).

  • 42

    Procuraremos nos deter nos trs cenrios mencionados por Saraceno (1996), ou seja, habitat, rede social e trabalho com valor social.

    O processo de reabilitao tem muito a ver com a casa, com o lugar que acolhe o indivduo, que atende s suas necessidades materiais e afetivas. Esse autor destaca uma diferena fundamental entre estar num lugar e

    A reabilitao psicossocial deve ser entendida como uma exigncia tica, um processo de reconstruo, um exerccio pleno da cidadania e, tambm, de plena contratualidade nos trs grandes cenrios: habitat, rede social e trabalho com valor social (SARACENO, 1996, p. 16). Nesse processo, esto includas a valorizao das habilidades de cada indivduo, as prticas teraputicas que visam ao exerccio da cidadania, a postura dos profissionais, dos usurios, de familiares e da sociedade perante o transtorno mental, as polticas de sade mental transformadoras do modelo hegemnico de assistncia, a indignao diante das diretrizes sociais e tcnicas que norteiam a excluso das minorias, dos diferentes. , portanto, uma atitude estratgica, uma vontade poltica, uma modalidade compreensiva, complexa e delicada de cuidados para pessoas vulnerveis aos modos de sociabilidade habituais (PITTA, 1996, p. 21).

    Reabilitao psicossocial no significa substituir uma desabilitao por uma habilitao. No se trata simplesmente de recuperar habilidades perdidas em consequncia da instaurao de um processo de adoecimento psquico grave. Trata-se de oferecer ao usurio oportunidades para que ele possa aumentar suas trocas de recursos materiais e afetivos, em que se estabelece como decisiva a perspectiva da negociao. Trata-se no de conduzi-lo a determinada meta estabelecida a priori, em um referencial da normalidade, mas de convid-lo a exercer plenamente aquilo, seja pouco ou muito, do que seja capaz. Assim, reabilitar no se reduz a repor mais ou menos bem uma perda e sim trabalhar na direo da construo de vnculos sociais possveis. Para alguns usurios, especialmente aqueles com alto risco de excluso social e prejuzo de sua autonomia, pequenas mudanas podem significar grandes avanos. Por exemplo, a simples circulao de um usurio psictico pela cidade, que antes no saa de seu quarto, pode representar um movimento importante na construo de novas perspectivas de trocas e de insero social.

  • 43

    habitar um lugar. O estar diz respeito impessoalidade, ausncia de posse e de poder decisional, enquanto o habitar representa um grau de contratualidade elevado em relao organizao material e simblica dos espaos e dos objetos, um lugar de afeto. No basta, portanto, encontrar uma moradia para o doente mental, mas um lugar de trocas e de bem-estar.

    As trocas, contudo, no acontecem somente dentro das casas, mas tambm nas ruas, nos mercados, na cidade. A rede social o lugar onde acontecem essas trocas, e seu empobrecimento acarreta o empobrecimento dessa rede, tanto de modo quantitativo quanto qualitativo. Esse empobrecimento acontece a partir da primeira rede social disponvel, que o ncleo familiar. Geralmente, os servios intervm na rede social por intermdio da famlia, pois se trata do universo mais definido, no s do ponto de vista de sua definio social (clara para o usurio, para o profissional e para a prpria famlia), mas tambm do ponto de vista das estratgias de coenvolvimento da famlia (SARACENO, 1999). A famlia , portanto, o lugar primeiro de qualquer interveno de reabilitao.

    Outro cenrio importante para o processo de reabilitao o trabalho como valor social. No o trabalho que apenas entretm o usurio, mas o que gera lucro e insere o indivduo socialmente. Em uma sociedade ditada pelo capital, pouco permevel s diferenas que existem entre os seres humanos, transformar as relaes que existem entre ela e o portador de transtorno psquico um dos grandes desafios a serem enfrentados pela Reforma da Assistncia Psiquitrica.

    Nessa linha, o objetivo da reabilitao no pode ser aquele que faz com que os fracos deixem de ser fracos para poderem estar em jogo com os fortes e sim que sejam modificadas as regras do jogo, de maneira que dele participem fracos e fortes, em trocas permanentes de competncias e de interesses (SARACENO, 1999, p. 113).

    Dessa maneira, a discusso sobre a reabilitao psicossocial do doente mental necessita no apenas de mudanas na forma de assistncia, mas tambm de transformaes de ordem organizacional e jurdica e, sobretudo, na maneira como percebemos e convivemos com a loucura. A forma como os diversos atores sociais (usurios, familiares, tcnicos, estado) agem faz com que seja reproduzido determinado modo de cuidar.

    Somos, em certas situaes, a partir de certos recortes, sujeitos de saberes e das aes que nos permitem agir protagonizando processos novos como fora de mudana. Mas, ao mesmo tempo, sob outros recortes e sentidos, somos reprodutores de situaes dadas. Ou melhor, mesmo protagonizando certas mudanas, muito conservamos. Entretanto, sob qualquer um desses ngulos, somos responsveis pelo que fazemos. No possvel no nos reconhecermos nos nossos fazeres (MERHY, 2002, p. 5).

    Pense nisto...

  • 44

    Ainda na perspectiva do cuidado, e, reafirmando a importncia da ateno ao usurio em seu habitat, faz parte da poltica nacional de ateno sade mental a criao de equipes de apoio matricial. O apoio matricial ou matriciamento constitui um arranjo organizacional que visa a outorgar suporte tcnico em reas especficas s equipes responsveis pelo desenvolvimento de aes bsicas de sade para a populao. Nesse arranjo, profissionais externos equipe compartilham alguns casos com a equipe de sade local (no caso, as equipes de Sade da Famlia de um dado territrio). Esse compartilhamento se produz em forma de corresponsabilizao que pode se efetivar a partir de discusses de casos, conjuntas intervenes s famlias e comunidade ou em atendimentos conjuntos. A responsabilizao compartilhada dos casos exclui a lgica do encaminhamento, pois visa a aumentar a capacidade resolutiva de problemas de sade pela equipe local, estimulando a interdisciplinaridade e a aquisio de novas competncias para a atuao em sade. Em sade mental, o apoio matricial geralmente realizado por profissionais da sade mental (psiquiatras, psiclogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros a assistentes sociais com formao em sade mental). Esses profissionais podem estar ligados a servios de sade mental Centro de Ateno Psicossocial (CAPS), ambulatrios de sade mental ou se dedicarem exclusivamente a essa atribuio, na forma de equipes volante. Com a implantao, pelo Ministrio da Sade, de Ncleos de Apoio Sade da Famlia (NASFs), espera-se, no futuro, que parcela significativa do matriciamento em sade mental seja realizada por profissionais de sade mental, ligados a esses ncleos.

    Na Parte 3 desta seo, estudaremos os problemas de sade mental mais frequentes na Ateno Bsica e a forma como eles se apresentam.

    Diante do que foi exposto, fica evidente a importncia da clara compreenso dos profissionais sobre: cuidado em sade, reabilitao psicossocial e qualidade de servios. Esses conceitos remetem diretamente organizao da ateno em sade mental e construo de um projeto teraputico para o usurio. Aps a leitura dos captulos 04 e 05 da Linha Guia Ateno Sade Mental produzido pela Secretaria de Estado da Sade de Minas Gerais (MINAS GERAIS, 2006), faa uma reunio com sua equipe e discuta: o conceito de cuidar; as formas utilizadas para envolver o usurio e famlia em uma relao cuidadora; as dificuldades vivenciadas pela equipe ao cuidar do portador de transtorno mental; e a proposta de abordagem psicossocial. Faa um relatrio registrando o resultado da reunio, considerando os aspectos sugeridos.

    Consulte, no cronograma da disciplina, os encaminhamentos solicitados.

    Atividade 2

    No dia a dia de seu cotidiano, o Roteiro para discusso dos casos de matriciamento pode ser utilizado para facilitar a coleta de dados e registro das informaes em Sade Mental.Sugesto: imprima e divulgue na sua equipe este material.

    Para saber mais sobre como implantar e operar o matriciamento da Sade Mental na Ateno Bsica, leia os captulos 1, 2 e 6 do Guia prtico de matriciamento em sade mental (CHIAVERINI, 2011).

    No dia a dia...

    Para saber mais...

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    Epidemiologia dos transtornos mentais na ateno bsica

    3

    Segundo Rodrigues (1996), os primeiros estudos de prevalncia de transtornos psiquitricos no mbito da Ateno Bsica Sade foram conduzidos a partir da dcada de 1960, na Inglaterra. Com o crescente aumento dos pases que passaram a dar importncia Ateno Bsica como estratgia de organizao dos servios de sade, estudos sobre sade mental relacionados aos cuidados primrios de sade tm se mostrado cada vez mais presentes na comunidade cientfica, como bem demonstra a reviso de estudos epidemiolgicos conduzida por Fortes (2004).

    Segundo essa autora, a demanda de sade mental presente na ateno geral sade tem sido objeto de numerosas pesquisas, especialmente a partir da dcada de 1980. Nos EUA, o Epidemiologic Catchment Area Study (ECA) revelou que 40% a 60% da demanda de sade mental estavam sendo atendidos na Ateno Bsica por mdicos generalistas (SHAPIRO, 1984; SIMON, 1991). Desde ento, vrios trabalhos (BRIDGES; GOLDBERG, 1985; KIRMAYER; ROBBINS, 1991; LOBO et al., 1996; WEICH et al., 1995) demonstraram como alta a prevalncia de transtornos mentais na Ateno Bsica.

    A realizao de uma investigao multicntrica patrocinada pela Organizao Mundial de Sade no incio dos anos de 1990, denominada Psychological Problems in General Health Care (PPGHC/ORGANIZAO MUNDIAL DA SADE), desenvolvida em 15 pases diferentes, inclusive no Brasil (GUREJE, 1997; PICCINELLI; SIMON, 1997), confirmou essa alta prevalncia de transtornos mentais entre os usurios de unidades gerais de sade. Representam uma demanda especfica que busca tratamento com mdicos generalistas e que tem caractersticas diferentes daquela atendida em ambulatrios de sade mental. So, em mdia, 24% dos usurios dos ambulatrios de clnicas gerais nos vrios centros estudados no PPGHC/OMS (USTN; SARTORIUS, 1995).

  • 46

    A maioria dos usurios identificados pelo estudo portadora de quadros depressivos (mdia de 10,4%) e ansiosos (mdia de 7,9%), de carter agudo, com menos gravidade dos sintomas e que remitem, muitas vezes, espontaneamente. Sua presena est associada a indicadores sociodemogrficos e econmicos desfavorveis, tais como: pobreza, baixa escolaridade e ser do sexo feminino (LEWIS et al., 1998, LUDEMIR; LEWIS, 2001) e a eventos de vida desencadeantes (LOPES; FAERSTEIN; CHOR, 2003). H predomnio de sintomas somticos entre as queixas por eles apresentadas, em contraposio aos sintomas psicolgicos mais presentes entre os usurios atendidos em unidades especializadas (BRIDGES; GOLDBERG, 1985; GOLDBERG; BRIDGES, 1988; USTUN; SARTORIUS, 1995).

    Esses quadros tm sido denominados transtornos mentais comuns (TMC) nas pesquisas realizadas desde Bridges e Goldberg (1985). Diferenciam-se daqueles detectados nas unidades especializadas em sade mental, onde geralmente so encontrados usurios mais graves, portadores de transtornos mentais maiores (TMM). A definio de TMC de Goldberg e Huxley : transtornos que so comumente encontrados nos espaos comunitrios, cuja presena assinala uma alterao em relao ao funcionamento normal (GOLDBERG; HUXLEY, 1992, p. 7-8).

    Frequentemente seu quadro clnico no corresponde aos sintomas essenciais para preenchimento de critrios diagnsticos em classificaes tradicionais como a Classificao Internacional das Doenas em sua 10. Verso (ORGANIZAO MUNDIAL DA SADE, 1996) e o Manual Diagnstico e Estatstico dos Transtornos Mentais (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 1995 A). Essa especificidade dos transtornos mentais presentes na Ateno Bsica, caracterizada por quadros subclnicos e significativa comorbidade entre as diversas sndromes, motivou a criao de uma classificao especial para os transtornos mentais na Ateno Bsica, a CID10 AP ( (ORGANIZAO MUNDIAL DA SADE ,1998), bem como a readequao da apresentao do DSM-IV para sua utilizao na Ateno Bsica, o DSMIVPC (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 1995b).

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    No Brasil, o mais extensivo estudo sobre prevalncia de transtornos psiquitricos na comunidade foi realizado por Naomar Almeida Filho et al. (1997) em trs capitais brasileiras. Esse estudo evidenciou prevalncia anual potencial de casos psiquitricos, ajustada pela idade, que variou de 19% (So Paulo) a 34% (Braslia e Porto Alegre). Os transtornos ansiosos foram os mais prevalentes (chegando a 18%) e o alcoolismo, consistente em todos os locais pesquisados, situou-se por volta de 8%. Os quadros depressivos apresentaram muita variao, de menos de 3% (So Paulo e Braslia) at 10% (Porto Alegre).

    No Brasil, ainda so poucas as investigaes sobre transtornos mentais provenientes de usurios que frequentam as unidades gerais de sade e, em particular, as unidades vinculadas estratgia Sade da Famlia. No Quadro 3 a seguir, destacamos os principais estudos de prevalncia de transtornos mentais em unidades bsicas de sade realizados no pas.

    AUTOR ANO LOCAL INSTRUMENTO RESULTADOS

    BUSNELLO et al. 1983 Centro de SadeSRQ-20 Entrevista clnica

    TMC: 55%Casos confirmados: 48,5%

    Mari19861987

    Centro de Sade /Ambulatrio Geral de Hospital

    SRQ-20GHQ12(2/3)CIS

    TMC: 47 a 56%TMM: 25 a 27%

    IACOPONI 1989 Centro de Sade SRQ20 TMC: 53%

    VILLANO 1995

    Ambulatrio Medicina Integral (Geral) em Hosp. Universitrio

    GHQ-12 CIDI

    TMC: 20,9 a 41,8%TMM: 38%

    FORTES 2004Unidade de Sade da Famlia

    GHQ12CIDI

    TMC: 56%TMM: 33%

    Quadro 3 - Prevalncia de transtornos mentais em unidades de ateno geral sade no Brasil

    Fonte: Adaptado de Fortes (2004).TMC (transtornos mentais comuns), TMM (transtornos mentais maiores), SRQ (Self-Reporting Questionnaire), GHQ (General Health Questionnaire), CIS (Clinical Interview Shedule), CIDI (Composite International Diagnostic Interview).

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    Entre as dificuldades encontradas pelos profissionais da Ateno Bsica para corretamente diagnosticar e tratar esses usurios, destaca-se a forma de apresentao do transtorno mental nesses casos. Como j foi dito, predomina nesses indivduos a apresentao de sintomas fsicos associados s doenas mentais e estes no so compreendidos pelos mdicos gerais como manifestaes de transtorno mental (KIRMAYER et

    Entre os estudos apresentados, o de Fortes (2004) merece uma exposio detalhada, j que foi o nico que ocorreu no atual cenrio da estratgia Sade da Famlia. Foram avaliados 714 usurios atendidos em cinco unidades de Sade da Famlia do municpio de Petrpolis, estado do Rio de Janeiro, entre agosto e dezembro de 2002. A prevalncia geral de transtornos mentais comuns (TMC) foi obtida com base no General Health Questionnaire (GHQ12), com ponte de corte 2/3 em geral e 4/5 para transtornos graves. O perfil nosolgico de 215 usurios positivos ao rastreamento foi realizado por meio do CIDI2: 1. O perfil sociodemogrfico e econmico e as informaes sobre a rede social desses usurios foram obtidos de um questionrio geral. A anlise dos fatores associados aos TMC foi feita com regresso logstica no programa SPSS. Detectou-se prevalncia mdia de 56% de transtornos mentais comuns nos usurios, sendo 33% do total de quadros graves, constituindo-se principalmente de transtornos depressivos e ansiosos, destacando-se tambm os transtornos somatoformes e dissociativos. Aproximadamente 56% dos usurios positivos ao GHQ apresentavam comorbidade ao CIDI. Verificaram-se associaes estatisticamente significativas entre ser portador de TMC e ser mulher (OR=2,90), ter menos de 45 anos (OR=1,43), ter renda per capita familiar inferior a R$ 120,00 (OR=1,68) e no ter companheiro (OR=1,71). Quanto rede de apoio social, frequentar regularmente a igreja (OR=0,62) e participar de atividades esportivas ou artsticas (OR=0,42) exercia efeito protetor contra TMC, assim como ter pelo menos quatro familiares ntimos (OR=0,53). A concluso do estudo confirma a alta prevalncia de TMC na clientela da equipe de Sade da Famlia, que se apresenta principalmente a partir de transtornos ansiosos, depressivos, somatoformes e dissociativos. Esses resultados reforam a importncia da estruturao de formas de atendimento alternativas, incluindo as no medicamentosas, e a necessidade de se capacitarem as equipes de Sade da Famlia para a abordagem dos problemas psicossociais desses indivduos. Essa autora tambm comenta que, embora frequente, a transtorno mental nos usurios atendidos na rede bsica de sade costuma passar despercebida no atendimento. Segundo alguns estudos internacionais, pouca a eficincia do atendimento a esses usurios nesse nvel