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Primeira edição digital U Maria Firmina dos Reis

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Primeira edição digital

Ursula

Maria Firminados Reis

Sumário

Sumário 2

1 DUAS ALMAS GENEROSAS 8

2 O DELIRIO 29

3 A DECLARAÇÃO DE AMOR 42

4 A PRIMEIRA IMPRESSÃO 63

5 A ENTREVISTA 76

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Maria Firmina dos Reis Ursula

6 A DESPEDIDA 88

7 ADELAIDE 94

8 LUISA B. . . .. 106

9 A PRETA SUSANA 128

10 A MATTA 140

11 O DERRADEIRO ADEOS ! 159

12 FOGE! 174

13 O CEMITERIO DE SANCTA CRUZ 182

14 O REGRESSO 193

15 O CONVENTO DE *** 208

16 O COMMENDADOR FERNANDO P. . . 213

17 TULIO 240

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Maria Firmina dos Reis Ursula

18 A DEDICAÇÃO 251

19 O DESPERTAR 267

20 A LOUCA 274

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PROLOGO

Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento,leitor. Sei que passará entre o indi�erentismo glacialde uns e o riso mofador de outros, e ainda assim odou á lume.

Não é a vaidade de adquirir nome que me cega, nemo amor proprio de author. Sei que pouco vale esteromance, porque escripto por uma mulher, e mulherbrasileira, de educação acanhada e sem o tracto e aconversação dos homens illustrados, que aconselham,que discutem e que corrigem, com uma instrucçãomiserrima, apenas conhecendo a lingua de seus paes,

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e pouco lida, o seu cabedal intellectual é quasi nullo.Então porque o publicas? perguntará o leitor.Como uma tentativa, e mais ainda, por este amor

materno, que não tem limites, que tudo desculpa —os defeitos, os achaques, as deformidades do �lho — egosta de enfeital-o e aparecer com elle em toda a parte,mostral-o a todos os conhecidos e vel-o mimado eacariciado.

O nosso romance, gerou-o a imaginação, e não n’osoube colorir, nem aformosentar. Pobre avisinha sil-vestre, anda terra a terra, e nem olha para as planurasonde gira a aguia.

Mas ainda assim, nao o abandoneis na sua humil-dade e abscuridade, senão morrerá a mingua, sentidoe magoado, só afagado pelo carinho materno.

Elle simelha á donzella, que não é formosa; por-que a natureza negou-lhe as graças feminis, e quepor isso não pode encontrar uma a�eição pura, quecorresponda ao a�ecto da su’alma; mas que com opranto de uma dôr sincera e viva, que lhe vem dosseios da alma, onde arde em chamas a mais intensa eabrasadora paixão, e que em balde quer recolher para

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a corução, move ao interesse aquelle que a desdenhoue o obriga ao menos a olhal-a com bondade.

Deixae pois que a minha URSULA, timida e aca-nhada, sem dotes da naturesa, nem enfeites e louça-nias d’arte, caminhe entre vós.

Nao a despreseis, antes amparae-a nos seus incer-tos e titubantes passos para assim dar alento a authorade seus dias, que talvez que com essa protecção cul-tive mais o seu engenho, e venha a produzir couzamelbor, ou quando menos, sirva esse bom acolhi-mento de incentivo para outras, que com imaginaçãomais brilhante, com educação mais acurada, com ins-trucção mais vasta e liberal, tenham mais timidez doque nós.

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Capítulo 1

DUAS ALMASGENEROSAS

São vastos e bellos os nossos campos; porque innun-dados pelas torrentes do inverno simelham o occeanoem bonançosa calma —- branco lençol de espuma, quenão ergue marulhadas ondas, nem brame irado, ame-açando insano quebrar os limites, que lhe marcou aomnipotente mão do rei da creação. Enrugada ligei-ramente a super�cie pelo manso correr da viração,

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frizadas as aguas, aqui e ali, pelo volver rapido e fugi-tivo dos peixinhos, que mudamente se afagam, e quedepois desapparecem para de novo voltarem —- oscampos são qual vasto deserto, magestoso e grandecomo o espaço, sublime como o in�nito.

E a sua belleza é amena e doce, e o exíguo esquife,que vae cortando as suas aguas hybernaes mansas equedas, e o homem, que sem custo o guia, e que sentevaga sensação de melancholico enlevo, desprendecom mavioso accento um canto de harmoniosa sau-dade, despertado pela grandesa d’essas aguas, quesulca.

É ás aguas, e á esses vastissimos campos que o ho-mem o�erece seus canticos de amor? Não por certo.Esses hymnos, cujos accentos perdem-se no espaço.são como notas d’uma harpa eolia, arrancadas peloroçar da brisa; ou como sussurrar da folhagem emmata espessa. Esses carmes de amor e de saudade ohomem os o�erece a Deos.

Depois, mudou-se já a estaçao; as chuvas desap-pareceram, e aquelle mar, que viste, desappareceocom ellas, voltou ás nuvens formando as chuvas do

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seguinte inverno, e o leito, que outr’ora fora seo,transformou-se em verde e humido tapete, matisadopelas brilhantes e lindas �ores tropicaes, cuja fragan-cia arrouba e só tem por apreciador algum desgarradoviajor, e por afago a brisa que vem conversar comellas no cahir da tarde — á hora derradeira do seutriste viver.

E altivas erguem-se milhares de carnaubeiras, quebalançadas pelo soprar do vento recurvam seus le-ques em brandas ondulações.

Expande-se-nos o coração quando calcamos sob ospés a herva reverdecida, onde gota a gota o orvalhochora no correr da noute esse chôro algente, que sependura da folhinha tremula, como a lagrima de umavirgem seductora, e que, arrancada do coração peloprimeiro gemer da saudade se balança nos longoscilios. Depois vem a ardentia do sol, e bebe o prantonocturno, e murcha a �ôr, que infeitiçava a relva,porque o astro, que rege o dia, reassumio toda a suasoberania; mas ainda assim os campos são bellos emagestosos!

E desce depois o crepusculo, e logo após a noite10 293

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bella, e voluptuosa recamada de estrellas; ou prateadapela lua vagarosa e placida que lhe branqueia o tapetede relva, derramando suave claridade pelos lequesrecurvados dos palmares. Então um vago senlimentod’amor, e de uma ventura, que mui longe lobrigamos,arrouba-nos a alma de celestes e�uvios, e doce espe-rança enche-nos o coração, outr’ora myrrado e friopela descrença, ou pelo scepticismo.

Quem haverá ahi que se não sinta transportado aolançar a vista por esses vastos paramos ao alvorecerdo dia, ou ao arrebol da tarde, e nao se deixe levar porum deleitoso scismar, como o que escuta o gemer daonda sobre areiaes de prata, ou o canto matutino deuma ave melodiosa!!.. A vista expande-se e deleita-se,e o coração volve-se a Deos, e curva-se em respeitosaveneração; porque ahi está Elle.

O campo, o mar, a abobada celeste ensinam a ado-rar o supremo Auctor da naturesa, e a bemdizer-lhea mão; porque é generosa, sabia e previdente.

Eu amo a solidão; porque a voz do Senhor ahi im-pera; porque ahi despe-se-nos o coração do orgulhoda sociedade, que o embota, que o apodrece, e livre

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d’essa vergonhosa cadeia, volve a Deos e o busca —-e o encontra; porque com o dom da ubiquidade Elleahi está!

Entretanto em uma risonha manhan de agosto, emque a naturesa era toda galas, em que as �ores erammais bellas, em que a vida era mais seductora —-porque toda respirava amor —-, em que a herva eramais viçosa e rociada, em que as carnaubeiras, ou-tras tantas atalayas ali dispostas pela naturesa, maisaltivas, e mais bellas se ostentavam, em que o axixácom seus fructos imitando purpureas estrellas esmal-tava a paisagem, um joven cavalleiro melancholico, ecomo que exhausto de vontade, atravessando porçãod’um magestoso campo, que se dilata nas planuras deuma das nossas melhores, e mais ricas provincias donorte, deixava-se levar ao traves delle por um alvo eindolente ginete. Lonfo devia ser o espaço que haviapercorrido; porque o pobre animal, desaletnado, malcadenciava os pesados passos.

Abstracto, ou como que mergulhado em penosae profunda meditação, o cavalleiro proseguia semnotar a estrema prostração do animal ou então fazia

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semblante de a não reparar; porque lhe não excitavaos nobres estimulos. Dir-se-hia ter já concluido sualonga jornada.

Mas quem sabe?!.. Talvez uma ideia unica, umarecordação pungente, funda, amarga como a desespe-ração de um amor trahido, lhe absorvesse n’ess’oratodos os pensamentos. Talvez. Porque não havia omenor signal de que observasse o espectaculo que ocircumdava.

Que intensa agonia, ou que dôr intima que lhe irialá pelos abysmos da alma?! Só Deos sabe!.

Proseguia em tanto a marcha, e sempre abstracto,sempre vagaroso. Curvada a fronte sobre o peito, omancebo meditava profundamente, e grande, e po-deroso devia ser o objecto de seo atturado meditar.Arfava-lhe o peito sobre a qual descançava essa fronteacabrunhada, que parecia tam nobre e altiva? Quemo poderia dizer ao certo?

O mancebo occultava parte de suas formas n’umamplo capote de lan, cujas dobras apenas descobriam-lhe as mãos cuidadosamente calçadas com luvas decamurça. N’uma destas mãos o joven cavalleiro re-

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clinára a face pallida e melancholica, com a outrafrouxamente tomava as redeas ao seo ginete. Maseste simples traje, este como que abandono de si pro-prio, não podia arredar do desconhecido certo árdeperfeita destincção que bem dava a conhecer que eraelle pessoa d’alta sociedade.

Derepente o cavallo, baldo de vigor, em uma dasavidades onde o terreno se accidentava mais, mal po-dendo conter-se pelo langor dos seus lassos membros,destendeo as pernas, dilatou o pescoço, e dando umavolta sobre si, cahiu redondamente. O choque erademais violento para não despertar o metitabundoviajor; quiz ainda evitar a queda; mas era tarde, e deenvolta com o animal rolou no chão.

¿ Houvera mais que descuido no incerto e indolenteviajar desse singular desconhecido; não previa elleum acontecimento fatal n’essa divagação de tantoabandono, de tam grande deleixo? e máo grado olangor do cavallo, sempre a proseguir, cada vez maissubmerso em seu melancholico scismar! Cahio, ede um jacto perdeo o sentimento da propria vida;porque a queda lhe o�endeo o craneo, e atturdido,

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e maltratado desmaiou completamente. Para maisdesastre o pobre animal no ultimo arranco do existir,destendendo as pernas, foi comprimir acerbadamenteo pé direito do mancebo, que inerte e immovel, comose fora frio cadaver, nenhuma resistencia lhe oppoz.

Era apenas o alvorecer do dia, ainda as aves ento-avam seus meigos cantos de arrebatádora melodia,ainda a viração era tenue e mansa, ainda a �or desa-brochada apenas não sentira a tepida e vivi�cadoraacção do astro do dia, que sempre amante, mas sem-pre ingrato, desdenhoso, e cruel áfaga-a, bebe-lhe operfume, e depois deixa-a murchar, e desfolhar-se,sem ao menos dar-lhe uma lagrima de saudade!. . .Oh! o sol é como o gomem maligno e perverso, quebafeja com halito impuro a donzella desvalida, e foge,e deixa-a entregue á vergonha, á desesperação, ámorte! — e depois, ri-se e busca outra, e mais ou-tra victima!

A donzella e a �or choram em silencio, e o seochoro ninguem comprehende!. . . . . .

Era apenas o alvorecer do dia, dissemos nós, eesse dia era bello como soem ser os do nosso clima

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equatorial onde a luz se derrama a �ux — brilhante,pura e intensa.

Vastos curraes de gado por ali havia; mas tam de-sertos a ess’ora matutina, que nenhuma esperançahavia de que alguem socorresse o joven cavalleiro,que acabava de desmaiar. E o sol já mais brilhante, emais ardente e abrasador, subia pressuroso a eternaescadaria do seo throno de luz, e dardejava seus raiossobre o infeliz mancebo!

N’esse comenos alguem despontou longe, e comose fora um ponto negro no extremo horisonte. Essealguem, que pouco e pouco avultava, era um homem,e mais tarde suas formas ja melhor se destinguiam.Trasia elle um quer que era de longe mal se conhecia,e que descançando sobre um dos ombros, obrigava-oa reclinar a cabeça para o lado opesto. Todavia essacarga era bastante leve — um cantaro ou uma bilha;o homem hia sem duvida em demanda de algumafonte.

Caminhava com cuidado, e parecia bastante fa-miliarisado com o lugar cheio de barrocaes, e aindamais com o calor do dia em pino, porque caminhava

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tranquillo.E mais e mais se aproximava elle do cavalleiro des-

maiado; porque seos passos para ali se dirigiam, comose a Providencia os guiasse. Ao indireitar-se para umbosque á cala sem duvida da fonte que procurava,seos olhos se �xaram sobre aquelle triste especta-culo.

— Deos meo! — exclamou correndo para o desco-nhecido.

E ao coração tocou-lhe piedoso interesse, vendoesse homem lançado por terra, tinto em seu propriosangue, e ainda opprimido pelo animal já morto. Eao aproximar-se contemplou em silencio o rosto des-�gurado do mancebo; curvou-se, e poz-lhe a mãosobre o peito, e sentio la no fundo frouxas e espaça-das pulsações, e assomou-lhe ao rosto riso fagueirode completo enlevo; da mais intima satisfação. Omancebo respirava ainda.

— Que ventura! —“então disse elle, erguendo asmãos ao ceo”— que ventura, podel-o salvar!

O homem que assim fallava era um pobre rapaz,que ao muito parecia contar vinte e cinco annos, e

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que ria franca expressão de sua physionomia dei-xava adivinhar toda a nobresa de um coração bemformado. O sangue africano fervia-lhe nas veias; omisero ligava-se á odiosa cadeia da escravidão; e embalde o sangue ardente que herdara de seus paes, eque o nosso clima e a servidão não poderam resfriar,embalde — disemos — se revoltava; porque se lheerguia como barreira — o poder do forte contra ofraco!. . .

Elle entanto resignava-se; e se uma lagrima a de-sesperação lhe arrancava, escondia-a no fundo da suamiseria.

Assim é que o triste escravo arrasta a vida de des-gostos e de martyrios, sem esperança e sem gozos!

Oh! esperança! Só a tem os desgraçados no refugioque a todos o�erece a sepultura!.. Gózos!.. só naeternidade os antevem elles!

Coitado do escravo! nem o direito de arrancar doimo peito um queixume de amargurada dôr!!. . . ..

Senhor Deos! quando calará no peito do homem atua sublime maxima — ama a teu proximo como a timesmo —, e deixará de opprimir com tam reprehensi-

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vel injustiça ao seu simelhante!.. a aquelle que é seuirmão?!

E o misero so�ria; porque era escravo, e a escra-vidão não lhe embrutecera a alma; porque os senti-mentos generosos, que Deos lhe implantou no cora-ção, permaneciam intactos, e puros como a sua alma.Era infeliz; mas era virtuoso; e por isso seo coraçãointerneceo-se em presença da dolorosa scena, que selhe o�ereceo á vista.

Reunindo todas as suas forças o joven escravo ar-rancou de sob o pé ulcerado do desconhecido o ca-vallo morto, e deixando-o por um momento, correo áfonte para onde uma hora antes de dirigia, encheo ocantaro, e com extrema velocidade voltou para juntodo enfermo, que com desvelado interesse procurou re-animar. Banhou-lhe a fronte com agua fresca, depoisde ter com piedosa bondade collocado-lhe a cabeçasobre seos joelhos. Só Deos testemunhava aquellascena tocante e admiravel, tam cheia de unção e decaridoso desvelo! E elle continuava a sua obra depiedade, esperando ancioso a resurreição do desco-nhecido, que tanto o interessava.

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Finalmente seo coração pulsou de intima satisfa-ção; porque o mancebo, pouco e pouco revocandoa vida, abrio os olhos languidos pela dôr, e os �toun’elle, como que estupefacto e surpreso do que via.

Deixou fugir um breve suspiro, que talvez apesarseo se lhe destacasse do coração, e sem proferir umapalavra de novo serrou os olhos.

Talvez a extrema claridade do dia os a�ectasse; ouelle suppozesse morbida vião o que era realidade.

Entretanto o negro redobrava de cuidados de novoa�icto pela mudez do seu doente. E o dia crescia mais,e o sol, requeimando a herva do campo, abrasava asfaces pallidas do joven cavalleiro, que soltando umoutro gemido mais prolongado e mais doido, de novoabrio os olhos.

Tentou então erguer-se como invergonhado deuma fraqueza a que irremessivelmente qualquer ce-dera; porem desalentado e amortecido foi cahir nosbraços do compassivo escravo, unica testemunha detão longas dores e desmaios, e que em silencio o obser-vava. Mas esta segunda syncope, menos prolongadaque a primeira, não a�igio tanto ao mísero rapaz,

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que dedicadamente o reanimava. A febre começoua tingir de rubor aquella fronte pallida, dando vida�cticia a uns olhos, que um momento antes pareciamdescahir para o tumulo.

— Quem és? —“perguntou o mancebo ao escravoapenas sahido do seo lethargo.”— Porque assim mos-tras interessar-te por mim?!. . .

— Senhor! —“balbuciou o negro”— vosso estado..Eu —“continuou com acanhamento, que a escravidãogerava”— supposto nenhum serviço vos possa prestar,todavia quisera poder ser-vos util. Perdoae-me!. . .

— Eu? —“atalhou o cavalleiro com e�usão de reco-nhecimento —”eu perdoar-te! Podera todos os cora-ções assimelharem-se ao teo. E �tando-o apesar daperturbação do seo cerebro, sentio pelo joven negrointeresse igual talvez ao que este sentia por elle. En-tão n’esse breve cambiar de vistas, como que essasduas almas mutuamente se fallaram, exprimindo umao pensamento apenas vago que na outra errava.

Entretanto o pobre negro, �el ao humilde habitodo escravo, com os braços cruzados sobre o peito,descahia agora a vista para a terra, aguardadando

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timido uma nova interrogação.Apesar da febre, que despontava, o cavalleiro co-

meçava a coordenar suas ideias, e as expressões doescravo, e os serviços, que lhe prestara, tocaram-lheo mais fundo do coração. É que em seo coração ar-diam sentimentos tam nobres e generosos como osque animavam a alma do jovem negro: por isso n’umtransporte de intima e generosa gratidão o manceboarrancando a luva, que lhe calçava a destra, estendeoa mão ao homem que o salvara. Mas este confundidoe porplexo, religiosamente ajoelhando, tomou respei-toso e reconhecido essa alva mão, que o mais elevadorequinte de delicadesa lhe o�erecia, e com humildadetocante extasiado beijou-a.

Esse beijo sellou para sempre a mutua amisadeque em seus peitos sentiam elles nascer e vigorar. Asalmas generosas são sempre irmans.

— Não foste por ventura o meo salvador¿‘— per-guntou o cavalleiro com accento reconhecido, reti-rando dos labios do negro a mão, e máo grado a vi-sivel turbação deste apertando-lhe com transporte amão grosseira; mas onde descobria com satisfação

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lealdade, e puresa.— Meo amigo —“continuou”— podes acreditar no

meo reconhecimento, e na minha amizade. Quemquer que sejas, eu t’a prometto: sou para ti um desco-nhecido; e inda assim foste generoso, e desinterres-sado. Arrancando-me á morte tens desempenhado amais nobre missão de que o homem está imcumbidopor Deos — a fraternidade. Continua, agora peço-teem nome da amizade que te consagro, continua a tuaobra de generosidade; porque sinto que tenho febre, enão me posso erguer. Arreda-me destes lugares se teé possível; porque. . . E a voz, que era fraca, expirounos labios; porque ligeira vertigem precursora talvezde um mais prolongado so�rer de novo lhe o�uscoua vista, e as faculdades se lhe afracaram.

A febre tornára-se ardente, e o mancebo exigiamais serios cuidados.

O negrou bem o comprehendeo, e esperou anci-oso que o mancebo voltasse a si para fallar-lhe, eaproveitando um momento em que por um pouco sereanimara, disse-lhe:

— Meu senhor, permitti que vos leve á fasenda,23 293

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que ali vedes — e apontava para a outra extremidadedo campo —, ali habita com sua �lha unica a pobresenhora Luiza B. . . de quem talvez não ignoreis atriste vida. Essa infeliz paralytica todo o bem que vospoderá prestar limitar-se-ha a uma franca e generosahospitalidade; mas ahi está sua �lha, que é um anjo debellesa e de candura, e os desvelos, que infelizmentevos não posso prestar, dar-vo-los-ha ella com singularbondade.

Immerso entanto em novo scismar o manceboparecia nada ouvir do que lhe dizia o joven negro,deixando-se conduzir por elle, que como se fôra levecarga o levava sobre seos hombros nus e musculosos.

Foi um momento de meditação, a febre, a dor, eo movimento arrancaram-na a ella, e soltando umfrouxo suspiro perguntou ao seo conductor:

— Como te chamas, generoso amigo? Qual é a tuacondicção?

— Eu, meo senhor —“tornou-lhe o escravo, re-dobrando suas forças para não mostrar cançasso”—chamo-me Tulio.

— Tulio! —“repetio o cavalleiro”— e de novo inter-24 293

Maria Firmina dos Reis Ursula

rogou:— A tua condicção, Tulio?Então o pobre e generoso rapaz engulindo um sus-

piro magoado, respondeu com amargura, máo gradoseo, mal disfarçada:

— A minha condição é a de misero escravo! Meusenhor —“continou”— não me chameis amigo. Calcu-lastes já, sondastes vós a distancia que nos separa?Ah! o escravo é tão infeliz!. . . tão mesquinha, e ras-teira é a sua sorte, que. . .

— Calla-te, oh! pelo céo, calla-te, meo pobre Tulio—“interrompeo o joven cavalleiro”— dia virá em queos homens reconheçam que são todos irmãos. Tulio,meo amigo, eu avalio a grandesa de dores sem leni-tivo, que te borbulha na alma, comprehendo tua amar-gura, e amaldiçoo em teu nome ao primeiro homemque escravisou a seo semelhante. Sim —“proseguio”—tens razão; o branco desdenhou a generosidade donegro, e cuspio sobre a pureza dos seus sentimentos!Sim, acerbo deve ser o meu so�rer, e elles que o nãocomprehendem!! Mas, Tulio, espera; porque Deosnão desdenha aquelle que ama ao seu proximo. . . e eu

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te auguro um melhor futuro. E te dedicaste por mim!oh! quanto me has penhorado! se eu te podera com-pensar generosamente. . . Tulio — acrescentou apózbreve pausa — oh dize, dize, meu amigo, o que de mimexiges; porque toda a recompensa será mesquinhapara tamanho serviço.

— Ah! meo senhor. —“exclamou o escravoenternecido”— como sois bom! continuai, eu vol-osupplico, em nome do serviço que vos presto, e a quetanta importancia quereis dár, continuai, pelo céo, aser generoso, e compassivo para com todo aquelleque, como eu, tiver a desventura de ser vil e misera-vel escravo! Costumados como estamos ao rigorosodespreso dos brancos, quanto nos será doce vos en-contrarmos no meio das nossas dores! Se todos elles,meu senhor, se assemelhassem a vós, por certo maissuave nos seria a escravidão.

E o cavalleiro perguntou-lhe:— Essa é, Tulio, toda a recompensa que exiges?— Sim, meo senhor. Fizeste-me tão feliz, que nada

mais ambiciono; e rendendo a Deos graças pela mi-nha presente ventura, supplico-lhe que vos cubra de

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benções, e que véle sobre vós a sua bondade in�nita.E o negro dizia uma verdade; era o primeiro branco

que tão doces palavras lhe havia dirigido; e su’almaavida de uma outra alma que a comprehendesse,transbordava agora de felicidade e de reconheci-mento.

Pobre Tulio!E o mancebo sentia mais, e mais crescer-lhe as

dores, e as ideias se lhe barulhavam: entretanto Tu-lio aproximava-se da casa de sua senhora para ondeconduzia o moço enfermo.

Empregava para isso todas as suas forças, porqueconhecia que o moço so�ria cruelmente.

Dentro em pouco sua tarefa concluiu-se. Tuliopenetrou, rendido de cançasso, o lumiar da porta.

Simples e solitaria era essa casa implantada so-bre um pequeno outeiro, donde a vista dominava aimmensidade dos campos. Um aspecto de nobre sin-gelesa apresentava; pouco extensa era mas coroava-aagradavel mirante, orlado de largas varandas, poronde uma onda de ar tepido divagava remorejando.

Explendida claridade de um sol vivo e animador27 293

Maria Firmina dos Reis Ursula

illuminava as nuas e brancas paredes dessa placidamorada, e dardejando nas vidraças das janellas, re-�ectia sobre ellas as cores cambiantes do occaso. Ahiparecia gozar-se a vida; ahi ao menos o homem teráum momento de felicidade; porque longe do bulicioenganoso do mundo, co’a mente erma d’ambições,vive nas regiões sublimes de um pensar livre e in�nitocomo a amplidão — como Deus. A existencia é serena,mais pura, e mais formosa; — ahi despe-se a vaidadedo coração; — ahi cessam os mentirosos preconceitos,que o homem ergueo em seu orgulho— vergoonhososlimites contras os quaes vão quebrasr-se de encontroos virtuosos transportes do seu coração.

Quanto é o homem egoista e vão!. . .Tulio franqueou a entrada da casa de Luiza B. . .

no momento mesmo em que o joven desconhecido,alquebrado pelo muito so�rer de algumas horas, aca-bava de cahir em completa e profunda lethargia.

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Capítulo 2

O DELIRIO

Violenta, terrivel, espantosa tinha sido a crise, e Tu-lio velava á cabeceira do enfermo. A noite ha muitoque tinha desdobrado sobre a terra seo pesado mantode escuridão, animando dest’arte o profundo silen-cio dos bosques, apenas interrompido pelo roçar dovento nos longiquos bosques, apenas interrompidopelo roçar do vento nos longiquos palmares, ou pelogemido triste de sentido noitibó, ou os agoureirospios do acahuan.

O quarto do doente era apenas aclarado por fraca29 293

Maria Firmina dos Reis Ursula

luz, cuja baça claridade deixava comtudo ver-se orosto do mancebo, afogueado pelo requeimar da febre:os olhos tinha-nos elle dilatados, e com esse brilhoe movimento que só dão a febre. No entanto estavatranquilo, e um só gemido não se lhe ouvia.

Após um breve instante desse �cticio socego, en-trou a tremer-lhe o labio superior, ergueo as mãosambas para o céo, e volvendo-se no leito, murmuroucom vóz queixosa frases que não foram comprehen-dias.

— Eu a vi —“exclamou, erguendo a voz, num trans-porte de satisfação”— vi-a, era bella como a rosa a de-sabrochar, e em sua puresa simelhava-se a assucenacandida e vaporosa! E eu amei-a!. . . Maldição!. . . .não. . . nunca a amei. . . E calou-se.

Depois um gemido lhe veio do coração; cobrio osolhos com as mãos ambas, e repetio:

— Oh! Não, nunca a amei !. . . ..Seguiram-se palavras entrecortadas, gemidos, e

gesticulações desordenadas para ao depois cahir eminercia.

Era o delirio assustador que se manifestava !..30 293

Maria Firmina dos Reis Ursula

Tulio observava-o com angustia: as dores do man-cebo sentia-as elle no coração.

A lua hia já alta na azulada abobada, prateandoo cume das arvores, e a super�cie da terra, e ape-sar disso Ursula, a mimosa �lha de Luiza B. . . , a �ord’aquellas solidões, não adormecera um instante. Éque afora esse anjo de sublime doçura repartia comseo hospede os diuturnos cuidados, que dava a suamãe enferma; e assim duplicadas as suas occupaçõessentia fugir-lhe n’essa noite o somno.

Bella como o primeiro raio de esperança transpu-nha ella a essa hora magica da noite o lumiar da porta,em cuja camara debatia-se entre dores e violenta fe-bre o pobre enfermo.

Era ella tão caridosa. . . tão bella. . . e tanta compai-xão lhe inspirava o so�rimento alheio, que lagrimasde tristesa e de sincero pesar se lhe escaparam dosolhos, negros, formosos, e melancolicos. Ursula, coma timidez da corsa vinha desempenhar á cabeceiradesse leito de dores os cuidados, que exigia o penosoestado do desconhecido.

Nenhuma exageração havia nesse piedoso desem-31 293

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penho; porque Ursula era ingenua e singela em todasas suas acções; e porque esse interesse todo caridoso,o mancebo não podia avalial-o, tendo as faculdadestrantornadas pela molestia. Este sentimento era poisnatural em seu coração, e a donzella não se invergo-nhava de o patentear.

— Tulio, —“disse ao entrar”— como vai elle? Todaa resposta do escravo foi um suspiro de profundodesanimo.

Ursula chegou-se ao leito do enfermo, e com timi-dez, que a sua compaixão quasi destruia, tocou-lhe asmãos. As suas gelaram de desalento e de commoção;porque sentio as do doente ardentes como a larva deum volcão.

Então ao contacto dessa debeis mãos, que tocaraa sua, o cavalleiro abrio os olhos, a que um deliriofebril dava extranha expressão, e �tando a donzella,n’um transporte inde�nivel do mais intimo so�rer,exclamou com voz magoada e grave:

— Oh! pelo céo! anjo ou mulher! porque trocasteem absynthio a doçura do meo amor? Amor!.. Amei-te eu? Sim, e muito. Mas tu nunca o comprehendeste!

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Louco! louco que eu fui!. . . . E pasando da dôr ádesesperação, torcia os braços gritando:

— Eu te vi, mulher infame e desdenhosa, fria eimpassivel como a estatua! — inexoravel como oinferno!. . . Assassina!. . . Oh! eu te amaldiçôo. . . e aodia primeiro do meo amor!. . . Minha mãe!. . . minhapobre mãe!!. . . entrou a soluçar desesperadamente.

Ursula e Tulio estavam perplexos; estas palavrassem nexo produsiam em seos corações sensações,supposto que em ambos doidas, mas diversas em suanaturesa.

A Tulio parecia aquelle delirio precursor da morte,e a dor da perda de um amigo, o primeiro talvez queo céo lhe dera, absorvia-lhe todas as faculdades, epara tão grande pesar não tinha prantos, não tinhauma só palavra. Ursula, pelo contrario, sentia extra-nho desaçocego, um que, que não sabia de�nir a sipropria! Uma inquietação mortal, uma descon�ança,e as lagrimas brotavam-lhe espontaneas do coração.

— Adelaide! —“proseguio elle apoz longa pausa”—Adelaide!. . . .. Este nome queima-me os beiços; enlo-queço quando penso n’ella.

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— Adelaide!. . . repetio comsigo mesma a �lha deLuiza B. . . Oh! quem serás?!. . . .

O que é a naturesa humana! O que é o coração damulher! A Ursula, pobre �or do deserto, que impor-tava um nome proferido em delirio?

Essa mulher, essa Adelaide, parecia-lhe que muitointeressava ao mancebo, que ainda agora lhe viviano coração máo grado as palavras amargas, ou entra-nhadas de desesperaçao, que lhe cahiam dos labios aolembrar-se della. Essa mulher, �gurava-se-lhe bellacomo um anjo, seductora como uma fada, malignacomo um demonio, e entretanto amada, muito amada;e o seu nome lhe queimava o coração, como se lá es-tivesse escripto com lettras de fogo.

E ha-de elle amal-a? — repetia Ursula a si pro-pria com uma pertinacia, que a teria admirado, senisso podesse attentar. Amor! — proseguia — o que éamor? Creio que jamais amarei. Mas Adelaide deveser muita amada por elle. . . mas eu o ouvi amaldiçoal-a!. . . . Porque diz que lhe queima os beiços o seonome? Oh! não é possivel, elle já não a ama! E Ursula,perdida n’estes loucos pensamentos, não attendia ao

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que em torno de si havia.O doente tinha adormecido.Então ella voltou para junto de sua mãe. A pobre

senhora, vencida pelo muito so�rer, tinha tambemadormecido, e a menina reclinando-se em uma ca-deira, procurou, mas em balde, conciliar o somno,que n’essa noite parecia obstinado em fugir-lhe.

Em vão deixava cahir as palpebras; em vão tentavaarredar os pensamento do que ouvira, que a menteerrava em torno d’aquelle leito, d’onde ella se se des-tacara; e o coração dizia-lhe que não estava tranquillo.Entretanto, pobre Ursula, julgava que nunca haviade amar!. . . .

Mais tarde um gemido sahio da camara do doente;o coração doeo-lhe; porque se tinha esquecido até doremedio do enfermo: lenvantou-se, pois correndo, eo foi levar.

A hora tinha já passado; poremo calmante produ-zio salutar e�eito; porque ao returar-se-lhe a colherdos labios, o cavalleiro, deslisando um fraco sorriso,estendeo a mão á donzella, e disse-lhe com reconhe-cimento:

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— Ah! senhora, como sois boa! Quem quer quesejais, acceitai meus sinceros agradecimentos pelogeneroso interesse, que mostrais por um infeliz des-conhecido.

— Silencio, —“animou-se ella a dizer, corandomuito”— não vedes que tendes febre? Perdoai-me;mas eu não consinto que falleis.

— Oh! —“exclamou elle”— tanta bondade me con-funde. Deixai ao menos agradecer-vos; mais tardesubmetter-me-hei com gosto as vossas determina-ções.

— Agradecer-me? —“interrogou Ursula com vozum pouco commovida”— que vos hei eu feito quemereça vosso reconhecimento? Pelo céo, nem falleisn’isso; e em seus grandes olhos erro uma lagrima.

Não sei que sentimento a trouxe do coração aosolhos; mas fosse qual fosse, o que é verdade, é que alagrima, simelhando uma perola escapada a preciosocollar, rolou-lhe pelas faces e foi cahir sobre a mãodo enfermo.

Ella estremeceo involuntariamente, e um ruborsubitaneo, que ocultou com as mãos, lhe assomou ás

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faces.Mas os olhos do cavalleiro, rehavendo seo fulgor

febril, não viram essa lagrima, que lhe teria escaldadoa mão, nem esse innocente rubor tão expressivo; por-que começara um novo solliloquio.

— Sim —“dizia”— e não era feliz em possuil-a? —Que ! — Oh! foi um só dia. . . foi. Mas, minha mãe!. . .via-a no sepulcro! e ella era um anjo!. . . Mataram-na!. . . mataram-na!. . .

E estendia os braços, e sorria-se como afagandobene�ca vizão.

— Agora posso viver —“disse respirandolargamente”— sim, agora posso viver; porque jáa não amo: sim, já não amo aquella que trahiocruelmente minhas loucas esperanças.

— Não vedes? —“proseguio �tando Ursula”— comoé bello amar-se! Como se nos espande o coração,como nos transborda a alma de felicidade?!!. . .

E a moça dizia consigo —“Meo Deos ! meo Deos,que é o que eu sinto no coração que me internece?Deve ser sem duvida esta forçada vigilia, este lidar detodos os momentos. O estado de minha pobre mãe. . .

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a compaixão que me inspira este infeliz mancebo, tãoproximo talvez da morte!. . . Oh! terrivel idéa! Amorte! É elle tão joven. . . tão leal, e tão franca é asua physionomia. . . meu Deos! seria bem duro vel-omorrer! Poupae-o, Senhor. Se eu podesse, duplicáraos meos cuidados para salval-o! oh se eu podesse!. . . ”

O enfermo entrou a sorrir-se; a febre começava adeclinar. Ao delirio violento seguio-se placida hallu-cinação: — parecia que um mundo de gratas illusões,povoado de meigos seres, o afagava; estendia os bra-ços como para estreitar entes que lhe eram caros e orosto se lhe espandia suavemente.

Depois sua mão tocou uma mão alva, e tremula,e gelada: esta mão, que elle em seo delirio procu-rou com ardor levar aos labios, fugio-lhe medrosa aocontacto desse beijo de fogo.

— Attende-me —“exclamou com desalento”— nãofujas. . . tenho a contar-te uma historia bem triste!oh! bem triste!. . .

E estendia as mãos supplices, e já nada encontrava.Tulio contemplava-o silencioso até que por ultimo

exclamou:38 293

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— Homem generoso! unico que soubeste com-prehender a amargura do escravo!. . . Tu que nãoesmagaste com despreso a quem traz na fronte es-tampado o ferrete da infamia! Porque o africano seusemelhante disse: — és meo! — elle curvou a fronte,e humilde, rastejando qual herva, que se calcou aospés, o vai seguindo? Porque o que é senhor, o que élivre, tem segura em suas mãos ambas a cadeia, quelhe opprime os pulsos. Cadeia infame e rigorosa, aque chamam: — escravidão?!. . . E entretanto estetambem era livre, livre como o passaro, como o ar;porque no seo paiz não se é escravo. Elle escuta a ne-nia plangente de seu pae, escuta a canção sentida quecahe dos labios de sua mãe, e sente como elles, que élivre; porque a rasão lh’o diz, e alma o comprehende.Oh! a mente! isso sim ninguem a pode escravisar!Nas azas do pensamento o homem remonta-se aosardentes sertões da Africa, vê os areaes sem �m dapatria e procura abrigar-se debaixo d’aquellas arvoressombrias do oasis, quando o sol requeima e o ventosopra quente e abrasador: vê a tamareira bene�cajunto á fonte, que lhe amacia a garganta resequida; vê

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a cabana onde nascera, e onde livre vivera! Despertaporem em breve d’essa doce illusão, ou antes sonhoem que e engolphára, e a realidade oppressora lheapparece — é escravo e escravo em terra estranha!Fogem-lhe os areaes ardentes, as sombras projectadaspelas arvores, o oasis no deserto, a fonte e a tamareira— foge a tranquillidade da choupana, foge a doce illu-são de um momento, como ilha movediça; poruqe aalma está incerrada nas prisões do corpo! Ella chama-o para a realidade, chorando, e o seo chôro, só Deoscomprehende! Ella, não se pode dôbrar, nem lhe pe-sam as cadeias da escravidão; porque é sempre livre,mas o corpo geme, e ella so�re, e chora; porque estáligada a elle na vida por laços estreitos e mysteriosos.

E Tulio �cou pensativo, e as lagrimas cahiram, aseu pesar, �o por �o pela face a baixo.

Tinha no entanto terminado o delirio ao doente:seguio-se-lhe extrema prostação e um suor geral efrio.

Ursula e Tulio tiveram então uma só idéa, terrivele medonha — a morte! e estremeceram de dôr. Oescravo; porque este homem era agora a vida da sua

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alma; porque era a imagem de Deos, que lhe sorria:— a donzella porque?. . . Ella propria não no saberiadizer. Mas ambos sentiam iguaes temores, a�içõesiguaes: é então porque ambos o amavam.

E as noites, que succederam a esta, eram ainda po-voadas de sustos e anciedade: o mancebo continuavaa so�rer, e seus amigos redobravam de desvelos, echoravam sobre suas dores.

O cavalleiro via-os; escutava-os, e sentia lá nofundo d’alma um extranho sentir. Ursula tornara-se para elle a imagem vaporrosa e afagadora de umanjo: e o que se passava n’aquelle coração enfermosó elle o sabia.

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Capítulo 3

A DECLARAÇÃO DEAMOR

Muitos dias se passaram já, e Tulio, menos preocu-pado, mostrava-se feliz e communicativo. Luisa B. . .o tinha incumbido do serviço exclusivo do seo hos-pede, que começava a recobrar as forças, o que elleattribuia aos cuidados do joven negro, e da formosadonzella, e ao ár puro que ali respirava. Com e�eitoelle hia a melhor, e cada dia dava esperanças de pro-

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xima convalescença. Aprasia-se com essa noticia aboa senhora Luiza B. . . ; mas a encantadora Ursula,melancolica, e mais bella que nunca, sentia um inde�-nivel pesar ao lembrar-se que em breve volveria parao seu antigo exulamento, e ainda maior que d’antes:o cavalleiro fallava de sua proxima partida.

Tulio acompanhava-o.Tinha-se alforriado. O generoso mancebo assim

que entrou em cavalescença dera-lhe dinheiro corres-pondente ao seu valor como genero, dizendo-lhe:

— Recebe, meo amigo, este pequeno presente quete faço, e compra com elle a tua liberdade.

Tulio obteve pois por dinheiro aquillo que Deuslhe dera, como a todos os viventes — Era livre comoo ar, como o haviam sido seos paes, la nesses adustossertões da Africa; e como se fora a sombra do seojoven protector estava disposto a seguil-o por todaa parte. Agora Tulio daria todo o seo sangue parapoupar ao mancebo uma dôr sequer, o mais leve pesar;a sua gratidão não conhecia limites. A liberdade eratudo quanto Tulio aspirava; tinha-a — era feliz!

E Ursula invejava vagamente a sorte de Tulio e43 293

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achava mór ventura do que a liberdade poder elleacompanhar o cavalleiro.

Pobre menina! Toda entregue a uma preocupação,cuja causa não podia conhecer ainda, engolphava-sede dia para dia em mais profunda tristesa, que lhetingia de seductora pallidez as frescas rosas de suafaces avelludadas. Pouco e pouco desbotava-se-lheo carmim dos labios e os olhos perdiam seos vividosre�exos, sem que nem ella propria desse fé d’essatransformalção!

Alguem havia, porem, que reparava nessa mu-dança, que o coração já lh’o havia denunciado,fasendo-lhe vibrar nas suas cordas todos os sympathi-cos e�uvios que emanavam do peito candido e des-cuidoso da virgem. Esse alguem amava a pallidez deUrsula, esse alguem adorava-lhe a suave melancholia,e o doce langor de seos negros olhos. Mas ella nemsequer descubrira tal, não sabendo explicar na suainnocencia o que sentia.

À proporção que se adiantavam as melhoras doseo hospede, Ursula com precaução occulatava-se ássuas vistas, limitando-se unicamente a informar-se

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com Tulio da sua saude, e empregando as horas deseo mortal enfado no generoso desempenho de sua�lial sollicitude.

Dias inteiros estava a cabeceira do leito de sua mãe,procurando com ternura roubar á pobre senhora osmomentos d’angustiada a�ição: mas tudo em vãoporque seo mal progredia, e a morte se lhe aproxi-mava a passo lento e impassivel; porem �rme e inva-riavel.

A noite, após compridas horas de vigilia ao pédesse leito materno, onde ella consumia seos primei-ros annos de joventude, a donzella, recolhida em seugabinete, meditava profundamente. Ella antes tãodescuidosa, ella no arrebol da vida, no primeiro des-pontar da existencia, tão bella, tão pura, tão ingeenuae tão louçan; porque sentia esse desejo irresistivel deengolphar-se em tristes pensamentos, que davam-lhea um tempo praser e pena?! Onde a levava o ardorda mente? Ursula, interrogada, mal o saberia dizer.

E as noites, tornavam-se para ella longas e fatigan-tes; porque o somno não lhe abreviava as horas doscismar acerbo, nem lhe reparava as forças, e por isso

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a aparição da aurora era-lhe quasi uma felicidade.Á hora em que os possaros despertam alegres e

amorosos, em que o vento mais queixoso cicia porentre as franças das arvores, em que a relva, orva-lhada pela noite, ergue suas folhinhas mais verdes emais bellas, á essa hora magica em que toda a creaçãolouva ao Senhor, e que o coração sente que nasceopara amar, a donzella, procurando fugir a suas medi-tações, sahia a respirar a puresada aragem matutina.

Quantas vezes ella sentada sobre a relva, ou recos-tada a algum tronco colossal, que decepado e meiocombusto brada contra a barbaria e rotina da nossalavoura semi-selvatica, via despontar o sol por sob aorla azul dos horisontes, espalhando com seos raiosde fogo a luz por toda a parte e destruindo como porencantamento a neblina, que qual denso veo encobriaaos olhos madrugadores toda aquella paisagem!!..

Ahi de novo entregue a seos pensamentos Ursulaperguntava a si propria a causa de seos so�rimentos,e as vezes chegava a persuadir-se que seo �m estavaproximo, e sorria-se. Pobre menina!. . . .

Quando o sol tingia de côr dourada os cocares das46 293

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palmeiras, ella voltava ao lar materno para continuara desempenhar a penosa tarefa de que se havia in-cumbido. E a pobre mãe exultava de vel-a tão meiga,tão generosa, e tão compassiva.

Ninguem em casa sabia dos seos passeios matinaes,e ninguem os adevinhava, e por isso esperava comancia o romper do dia: e a hora em que a naturesadesperta, só, e sem temor, tomava o caminho, quebem lhe convinha, e hia conversar com a solidão,essa conversa, que só Deos comprehende, e quandovoltava achava-se mais aliviada.

Ursula enganava-se — cada dia mais se aggravavamseos males.

E o cavalleiro, quasi que inteiramente restabe-lecido, apenas resentindo-se algum tanto do pé,despunha-se com e�eito para a partida; e em seocoração haviam bem profundas saudades; porquenessa habitação encontrara vida e acolhimento. Ahialguem lhe prendera o coração, e o mancebo, cheiode amor e de gratidão, sentia deslisarem-se-lhe osdias breves e risonhos. Entretanto a sua partida erainfalivel; mas elle não podia a�astar-se d’aquelles lu-

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gares sem ter uma explicação. Era preciso ver Ursula,e Ursula fugia-lhe como a caça foge ao caçador. E odia passava, e vinha a noite, e succedia-se outro, emais outro dia, e o moço dilatava a sua viagem.

Em uma madrugada, comtudo, após uma noite deatribulada vigilia, mais cedo ainda que de costume amimosa donsela entranhou-se por acaso no mais es-pesso da matta, onde não bulia a mais pequena folha,e onde apenas o re�exo do sol nascente penetravaa custo. Divagando por ella sem tino, vencida pelocançasso sentou-se, ou deixou-se cahir sobre as rai-ses de um jatubá, cuja altura chamaria a attenção deoutra que não fôra Ursula, de outra que não sentira,como ella, o coração opprimido por mortal desaço-cego. Este jatubá, sobre cujas raises Ursula se deixaracahir, parecia em annos rivalisar com a creação; suacopa altaneira, balançando-se no espaço, derramavagrata sombra em larga distancia. Ahi em seu tronco anaturesa, melhor que um habil artista, entalhára emderedor espaçosos degráos; como outros tantos assen-tos preparados para descanço dos que á sua sombrabuscassem uma hora de repouso, ou de meditativo

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scismar.Ursula sentou-se sem o menor reparo n’um desses

degráos, e continuou nos seos pensamentos loucos,ou talvez innocentes como a sua alma; más profun-dos, penosos para ella, que pela vez primeira sentia anecessidade de uma alma, que comprehendesse a sua,de um pensamento que se harmonisasse como o seo.

Mas amava ella a alguem? Ao cavalleiro? Talvez!Ursula sentia uma vaga necessidade de ser amada,de amar mesmo; mas em quem empregar esse amor,que devia ser puro como a luz do dia, ardente comoo fogo de madeira resinosa?! Em quem?! Não o sabiaainda.

Ursula, máo grado seo, experimentava todo o fogode um primeiro amor, bem o conhecia, e revoltava-secontra esse sentimento, que suppunha não ser com-partilhado, e altribuia-o a simples amisade. Embaldeo coração lhe gritava, esclarecendo-a, ella julgava-sehumilhada, reassumia toda a sua dignidade em facedo cavalleiro, e só na solidão derramava o pranto deamargo e occulto padecer.

Entretanto, n’essa madrugada em que Ursula, fe-49 293

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rida pela mais profunda angustia, sentára-se juntoao altivo jatubá que �cava cavalleiro ás demais ar-vores, pensava em que o mancebo hia n’esse mesmodia partir, e esse pensamento era-lhe como o leito deProcusto,* e o coração desfalecia-lhe de dor, a vidaparecia-lhe agora inutil e fastidiosa.

Sentio leve arruido de folhas seccas como que calca-das sob os pés que se moviam cautelosos, e despertou.E o arruido não cessou. Então a joven donzella, meioasustada levantou os olhos, e prescrutou em dere-dor; mas nada viu. Seria talvez alguma fugaz cutiaque atravessa o bosque correndo. Então Ursula denovo voltou aos seus sonhos; mas um momento de-pois os passos eram já mais proximos, ella tornouo olhar, e mais amedrontada, quiz erguer-se, quizsahir correndo; porem uma força occulta, irresistivel,a deteve, e os passos mui perto estavam d’ella. Ur-sula, temerosa, e sem poder atinar com quem seria,estremeceu, mas não de verdadeiro medo, antes porum presentimento imcomprehensivel e que as vezespresagia vagamente algum acontecimento futuro danossa vida. Ursula tudo ignorava; mas alguem com

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intima satisfação descobrio seos passios matinaes,alguem, que sentia a necessidade de vel-a, de fallar-lhe um momento, e que devassou-lhe o retiro e foiperturbal-a em sua meditação.

E de repente ella ouvio uma vóz, que a essa horado amanhecer, n’esse lugar, onde se julgava só, asurprehendeo, assustou-a, e lhe arrancou um grito.

— Ursula! —“dizia-lhe a pessoa que estava anteseus olhos”— Ursula, perdoar-me-heis?

— Oh! pelo céo, Senhor! —“exclamou a moça atremer”— que viestes aqui fazer?!

E levantou-se resolvida a deixal-o, castigando as-sim tanta ouzadia. O mancebo, antevendo a sua reso-lução, caiu-lhe aos pés e supplicante, disse-lhe:

— Oh! não, não, Ursula, por amor de vossa mãe,não me deixeis sem ouvir-me. E tanta singelsa ha-via n’estas palavras, e tanta expresão nos olhos domancebo, que a donzella estacou indecisa e confusa.

Era o cavalleiro convalescente o homem que as-sim fallava, como o leitor perspicaz tel-o-ha já adevi-nhado.

Nesse momento tão solemne para Ursula, sentio51 293

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profundo arrependimento de seus passeios da olvo-rada, e rapido pela mente repassou todos os ultimosactos de sua vida, sem atinar com o motivo que alevou tam longe de sua morada, e a um bosque quenunca vira, e porque fatalidade aquelle homem a vi-era ahi surprehender.

Ursula, amando vel-o, arrependia-se, e quasi quemaldizia o sentimento de seo coração, que a obrigáraa hir tão longe, e ater, a seu pesar, aquella entrevistaque tanto começava a inquietal-a, e lembrando-sede sua mãe, que tudo ignorava, exprobava-se a siacremente de tam leve procedimento.

— Ursula —“continuou o mancebo, reconhecendosua perturbação”— Ursula, mimosa �lha da �oresta,�or êducada da tranquillidade dos campos, porquetremeis de me ouvir a voz?! Julgaes acaso que vospossam o�ender as minhas palavras?! Socegae, emnome do céo, Ursula, socegae!. . . . Donzella! eu vosjuro, que sou leal, e que o respeito que vos consagro,e de que sois digna, nem o silencio deste bosque, nema solidão do lugar o quebrará jamais.

O que sinto por vós —“continuou commovido”— é52 293

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veneração, e a mulher a que se venera, rende-se umculto de respeitosa adoração, ama-se sem desejos, en’esse amor não entra a satisfação dos sentidos.

— Ursula, —“proseguio com vóz que inspiravacon�ança”— comprehendo, e avalio a perturbaçãoem que vos achais; porque é innocente e pura vossaalma; mas se me escutardes, se vos dignardes ouvir-me, conhecereis que tambem puras são as minhasintensões, e que o amor que inspirastes é candidocomo a vossa alma.

Então Ursula erguendo as mãos com a�ição disse:— Oh! senhor, por quem sois, deixae-me voltar

agora mesmo para ao pé de minha mãe! —“e deoum passo; mas esse passo foi vagaroso e tremulo, eo mancebo electrisado, encantado por essa candidatimidez, que revelava a mais angelica puresa, cor-reo para ella com inde�nivel transporte, misturadode amorosa veneração, e docemente obrigando-a asentar-se, curvou-se-lhe aos pés, e mudo, e contem-plativo, e enlevado no rubor, que tingia as faces dadonzella, guardou silencio por alguns instantes, edepois rompendo-o disse-lhe:

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— Ursula, casto é o meo amor, e se o não fora,por premio de tanto desvelo e generosidade, não vol-o oferecera. No meo delirio, Ursula, não creis vósquem me aparecia, oh! não. Uma outra mulher euvia! Era terrivel essa visão infernal, e julguei morrerde desesperação; porque dia e noite ella, implacavel,desdenhosa, e fria estava ante meos olhos!. . . . Sim,julguei morrer; mas vós aparecestes junto ao meoleito, vi-vos, e as dores se amodorraram, e como seeu visse a Senhora dos A�ictos levando á minha ca-beceira um dos anjos que a rodeam, e que lançoubalsamo divinal em minhas feridas, que se cicatrisa-ram e o coração serenou, a alma �cou livre. Entãoa imagem odiosa, que me perseguia, desappareceopara sempre. Ursula, pude esquecel-a para sempre,sim! esquecel-a! e esquecer com ella não o amorque sentia; porque essa ha muito que me morreo nocoração; mas o odio, o odio, que lhe votava.

A vossa bondade deo-me forças para esquecel-a,talvez mesmo para perdoal-a!. . . .

— Eu tinha o coração dilacerado por cruentas dores,—“proseguio o moço, com voz pausada, apóz um mo-

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mento de silencio”— e esse estado de penosa angustiaoccasionou a enfermidade que me deo a ventura deconhecer-vos, e se vos não houvesse visto, se prolon-garia até o extremo da vida, que não poderia tardar.Vós, Ursula, apparecestes, e espancastes as trevas detão apurado so�rimento — Fostes o meo anjo salva-dor. Ursula, eu vos amo! e se vossa alma sympatisarcom a minha, meo coração vos tem escolhido para acompanheira dos meos dias.

— Amais-me, Ursula?!. . . .Um subito rubor, melhor que a rosa, tingio as faces

da delicada virgem, e ella baixando os olhos, disse-lhe:

— Talvez!. . . A vós era tão debil que semelhou odoce murmurio de queixoso ribeiro.

Mas em quanto os labios diziam simplesmente tal-vez, o coração desfeito em transportes de ine�aveisdoçuras, sonhava as venturas do paraiso. E sua inqui-etação, e suas noites de vigilia, já não eram para ellaum penoso mysterio, ou uma forçada dissimulação. —Ursula confessou a si mesma, que aquillo que sentira,era verdadeiro e ardente amor.

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E Adelaide — essa mulher, esse nome proferido emdelirio, que lhe apparecia em seus sonhos como umavisão que a encommodava, deixava d’agora em diante,de occupar-lhe o pensamento; porque o mancebohavia dito: — Esqueci-a, perdoei-a por amor de vós.Mas, inda assim, quem seria ella que tanto amor lhetinha merecido?

Que lhe importava? Era feliz; porque era amada,e sua vida inteira teria dado por esse momento deventura.

Amor! esse sentimento novo — ardente como osól do seo paiz, arrebatador como as correntes, quese despenham no valle — foi a varinha magica quetransformou-lhe a existencia. Julgou tudo um sonhoencantador, cujas doçuras começava apenas a apre-ciar.

Extasiada e louca de amor, a donzella embalde pro-curava rehaver a rasão; e mais embalde procuravainterrogar-se a si mesma, — quem seria aquelle ho-mem, que assim attrahia o seu coração? poruqe estesó lhe dizia: — amal-o é viver, e a vida assim vivida éa eternidade no gozo.

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—Ursula, —“disse o mancebo, commovido, após delongo silencio”— devo-vos a �el narração de minhavida. O homem, que vos ama, que vos idolatra, o ho-mem que vos escolhe para sua esposa, não vosdeveoccultar a minima particularidade da sua triste exis-tencia; e depois que me tiverdes ouvido, depois quesouberdesquem é o cavalleiro que tendes ao vossolado, dai-lhe o vosso coração, dizei-lhe que o amais,eelle será uma vez feliz, uma só na vida; mas esta feli-cidade deve ser tão grande, que o seu passado cahirápara sempre em um abysmo de profundo esqueci-mento. Porem, Ursula, se me recusardes essa ventura,a unica que almejo, a minha vida tornar-se-ha umprolongado martyrio, e quem sabe se a poderei sup-portar!?. . . .

— Oh! “exclamou a donzella com interesse”— pesa-vos acaso no coração tão pugente magua?!

— Sim —“tornou elle commovido”— sim, grandetem sido o meu so�rimento. Julguei, Ursula, nuncamais amar, e morrer amaldiçoando meo primeiroamor; mas eu vol-o disse já — vi-vos e meo coraçãocobrou nova vida, e novo amor curou-lhe as feridas,

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que o destruiam. Agora, decidireis da minha sorte:feliz, ou desgraçado, Ursula, só vós sereis o meu amor.

Então os olhos da donzella desferiram brilhantesre�exos de amor, e cedendo a um transporte de inde-�nivel enthusiasmo, exclamou:

— Sejais vós, senhor, quem quer que fordes, qua-esquer que sejam os precedentes da vossa vida, quegenerosamente prometteis con�ar-me, aqui, na so-lidão silenciosa e grave d’esta matta, onde só Deosnos ouve, onde só a naturesa nos contempla, juro-vospela vida de minha mãe, que vos amarei agora e sem-pre, com toda a força de um amor puro e intenso, eque zombará de qualquer opposição donde quer queparta.

— Vós?! — Repetti-m’as, repetti-m’as ainda umavez essasenebriantes palavras que transportam-me!

— Sim —“tornou ella, cujos olhos scintilavamcomodous astros luminosos e diziam mais que os labios,e cujo coração arfava de amor e de felicidade”— simjuro-vos pelo céo, que nos escuta, que hei-de amar-vos sempre! Feliz, ou desgraçada, lembrai-vos quepor amar-vos despresarei a vida.

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— Oh! —“exclamou o joven convalescente”— euagradeço-vos, meo Deos, de todo o meo coração!. . .É verdade então que para mim ainda pode haver fe-licidade?! Meo Deos, Senhor meo Deos, como soisbom!. . . “E olhava a donzella com inexprimivel trans-porte.”

— Ursula —“proseguio”— vós me erguestes doabysmo da desesperação em que uma outra mulherme havia despenhado, e apagais da minha alma aderradeira lembrança do seo funesto amor!

E eu amei-a, Ursula, amei-a com todas as vérasde um primeiro amor. Não vos pode o�ender estacon�ssão; porque esse amor tão apaixonado varreo-se da minha alma como a nodoa pela limpida aguada fonte crystalina.

Depois de tão longo e apurado so�rimento, depoisde ter esgotado até as fezes o meo calix de amargura,votei ódio áquella que fora tão cara.

Excessivo era o meo a�ecto; mas ela quebrou-o,delio-o do meo coração, e hoje sinto por essa mulherfundo e inextinguivel despreso.

— Despreso?! —“continuou meditando sobre esta59 293

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palavra”— sim despreso; mas o tempo e o meoo cora-ção, e todas as minhas faculdades revoltadas contra omais hediondo proceder dessa creatura infame foramque o trouxeram, e agora votava-lhe odio e maldição;mas taes sentimentos, tão pouco em harmonia como meu ser, acabo de immolal-os ante os vossos pés,anjo bem-fadado!

— Cumpre quo vos confesse como o a amava. . . .“Aqui, recolheu-se a si, e fazendo um esforço sobre-humano, continuou.” Oh! amava-a como o captivoama a liberdade, como o ebrio o vicio que o mata;seguia-a como o colibri as �ores, como a bussola onorte, como o �el lebreu a seu dono: — era uma pai-xão que me prendia o coração e os sentidos — eraum frenesi, um delirio proximo da loucura perenne.Tudo ella destruio em um momento como a creançao brinco, cujo valor não sabe!. . . Via-a na escuri-dade da noite, no cahir da tarde; via-a na herva doprado, no calix de uma �or, no �rmamento entreas estrellas mais brilhantes, no arrulho amoroso dasaves, no canto sentido da sororina. . . .. Oh! sempreella, sempre ella, sempre meiga e seductora, sempre

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apaixonada!E eu gemia de amor, e de saudades, e amaldiçoando

a separação; porque esse a�ecto, que me escaldava ese apossara de todo o meu ser, julgava-o egual e tamintenso no seu peito. Engano, engano fatal!. . . .

— Ursula! agora todo esse amor, ou inda amor maissublime, mais digno de vós nutreo o meo coração;agora poderei ter forças para contar-vos a historia daminha vida.

E depois de breve pausa, proseguio, suspirando:— Quizera que o meu passado fugisse como a som-

bra de uma ave inquieta, ou como uma nuvem que ovendaval desfaz, para nunca mais invocal-o; porqueé triste e pungente; mas é preciso pedir-lhe recorda-ções, que me rasgarão de novo feridas mal cicatri-sadas, para patentear-vos todas as minhas longas eprofundas dores.

Rogo-vos, pois, que não tomeis a minha narração,quando tenha de ser apaixonada, como desejo do pas-sado e saudades d’elle. Podeis amar-me sem receiode que elle perturbe o nosso mutuo a�ecto. Resenti-mento, odio, maldição, tudo, tudo hei sacri�cado ao

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vosso amor.Oh! de novo jurae-me que sois minha, que o vosso

amor é egual ao meo, doce e mimosa Ursula, paraque eu possa fallar-vos d’aquella que foi casta e puracomo vós, d’aquella que foi minha mãe.

E a vóz tornou-se-lhe debil, e surda, e dolorosa,como um chôro sentido, que �ca no coração e nãovem aos olhos. ___

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Capítulo 4

A PRIMEIRAIMPRESSÃO

Lagrymas tinhas elle na voz, e no coração; que lha em-bargaram e o impediram de atar o �o da sua narração.Fez por ultimo um esforço sobre si e começou:

—Ursula, se eu vos não encontrara meiga, e des-velada, no caminhar de minha amarga existencia,odiosa me fora ella, e a recordação do passado seriapara mim um prolongado martyrio.

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O segredo de minhas dores seria para sempre sepul-tado no mais fundo do meo coração; mas eu vos amo,e o vosso amor da-me forças para tamanho sacri�cio.Ouvi-me, pois, e perdoae-me.

Só apartei-me de minha mãe quando fui para San’Paulo cursar as aulas de direito, e seis annos de sauda-des ahi passei, tendo-a sempre em meos pensamentos;porque amava-a com uma ternura que só vós podeiscomprehender. Num dia recebi o gráo de bacharel en’outro segui para a minha terra natal.

Ah! como me transbordava a alma de praser! eu vi-nha rever aquella, que cercara de amor e de cuidadosa minha infancia!

A�eição alguma me pode reter em San’Paulo; mi-nha mãe, o lugar onde eu tive meo berço, meos ami-gos de infancia, não os podia esquecer. Parti pois comprazer d’uma terra onde tinha vivido longos annosde saudade, e de pesares.

E eu vi essa mulher, que me dera a vida, essa mu-lher, que era idolo do meu coração, e lancei-me nosseus braços, chorando de alegria por tornar a vel-a;mas ella estava desfeita, e suas feições denunciavam

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grande abatimento moral.Nunca tive felicidade a que se não viesse misturar

sentimentos de angustia; nunca fui completamentefeliz.

— Sel-o-heis ainda —“disse-lhe a donzella com in-de�nivel ternura.”

— Sim, agora o creio —“respondeo elle comcon�ança”— Vós, Ursula, sois a mulher com quemsonhava minha alma em seu continuo devanear.

— E juncto de minha pobre mãe —“continuou ocavalleiro, apoz breve silencio”— eu vi uma mulherbella e seductora, d’essas que enlouquecem desde aprimeira vista.

No primeiro transporte d’alegria, em quanto minhamãe chorava de satisfação, ella com os olhos �tosem um bordado, que tinha entre as mãos, pareciadestrahida; e eu revia-me na sua belleza tão puracomo a estrella da manhan.

Oh! minha doce Ursula, eu amei a essa encantadoradonzella, e o meo amor foi puro, arrebatador; masella não o comprehendeo.

— Meo �lho —“disse-me minha mãe, apresentando-65 293

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me a formosa donzella”— eis Adelaide, a minha que-rida Adelaide. É �lha de minha prima, e orphan demãe e pae. Recolhi-a e amo-a como se fora minhapropria �lha.

Tancredo —“continuou”— não poderei esperar deti desvelada proteção para aquella que adoptei por�lha, para quella que têm enchugado as lagrymas detua mãe na auzencia de seu �lho??!. . .

— Minha Ursula adorada, de joelhos prometti aminha infeliz mãe ser o escudo da formosa orphan.

Então ella em signal de reconhecimento, estendeo-me a mão, que apertei com enlevo. Creio que meosolhos exprimiam algum sentimento terno a seu res-peito; porque seo rosto se tingio de carmim, e depoisum debil suspiro, como que a muito reprimido, sahiumeio abafado de seus roseos labios.

Ouvi-o, e julguei, —louco de mim!— que esse sus-piro era a primeira expressão de um repentino e pro-fundo a�ecto: julguei que sonhava; porque nuncahavia sentido o que então se passava em mim.

Mais tarde, veio meo pae felicitar-me. Mostrava-se feliz e orgulhoso de seu �lho; e abraçou-me com

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transporte.Não sei porque; mas nunca pude dedicar a meu

pae amor �lial que rivalisasse com aquelle que sen-tia por minha mãe, e sabeis por que? É que entreelle e sua esposa estava collocado o mais despoticopoder: meo pae era o tyranno de sua mulher; e ela,triste victima, chorava em silencio, e resignava-secom sublime brandura.

Meo pae era para com ella um homem desapiedadoe orgulhoso — minha mãe era uma sancta e humildemulher.

Quantas vezes na infancia, máo grado meo, tes-temunhei scenas dolorosas que magoavam, e delouca prepotencia, que revoltavam! E meo coraçãoalvoroçava-se n’essas occasiões apesar das prudentesadmoestações de minha pobre mãe.

É que as lagrymas da infeliz, e os desgostos, que aminavam, tocavam o fundo da minha alma.

E meo pae resentia-se da a�eição que tributava aesse ente de candura e bondade; mas foram as suascaricias, os seus meigos conselhos, que soaram a meosouvidos, que me entretiveram nos primeiros annos;

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ao passo que o genio rude de meu pae amedrontava-me.

O desprazer de ver preferida a si a mulher queodiava, fez com que meu implacavel pae me apartassed’ella seis longos annos, não me permittindo uma sóvisita ao ninho paterno; e minha mãe �nava-se desaudades; mas so�ria a minha ausencia, porque era avontade de seo esposo. Mas eu voltava agora para oseu amor, e seos dias vinham a ser bellos e cheios dedoce esperança.

Entretanto, eu tambem era feliz. Aprasia-me verAdelaide, no arrebol da vida, tão casta, tão encanta-dora, compartilhando ora a dôr, que nos opprimia,ora o praser que enchia os nossos corações. Em Ade-laide minha mãe encontrara uma desvelada amiga;a sua extrema belleza, e a dedicação áquella mulher,que eu tanto amava, attrahiam-me incessantementepara ella; e a primeira vez que a vi, o meo coraçãoadevinhou que havia de amal-a.

Sim, amei-a loucamente, amei-a com todas as for-ças de um primeiro amor, e quando um dia lhe reveleio profundo a�ecto que me inspirava, conheci que era

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correspondido, não obstante o ella dizer-me:— Tancredo, sou pobre, e teo pae se ha de oppor a

semelhante união.— Ah! —“prorompeu o cavalleiro com azedume

mal desfarçado”— mulher infame e ambiciosa!E minha mãe conheceo a �eição que nos ligava, e

estremeco de horror.— Meo �lho, —“disse-me um dia, chorando”— tu

amas Adelaide, eu o tenho adevinhado; porque aocoração de uma mãe nada se occulta. Vás amargurara tua existencia. . . ..

Tancredo, meo �lho, não cedas a um amor que tepode vir a ser funesto. Adelaide é pobre orphan, eteo pae não consentirá que sejas seo esposo.

Adelaide entrou, surrio-se para mim, e foi abraçarminha mãe, e eu continuei a conversação.

— Sim, minha querida mãe, amo Adelaide, e seo co-ração retribue-me, meo pae ama-me, não poderá, portanto contrariar a minha primeira inclinação. Não,minha mãe, abençoai primeiro que elle o nosso amor;porque esta ha de ser a esposa do vosso �lho. Não éverdade, minha Adelaide?

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Ella corou de pejo, e redarguio:— Tancredo, sou uma pobre orphan, vosso pae. . . .

— Oh! pelo céo —“interrompi-a”— pelo céo. . . meupae não tem coração de tigre.

— Ah! meo �lho! —“objectou minha pobremãe com voz tão tremula que simelhou um choroamargo:”— receio. . . .

— Receaes!. . . .— Receio a prepotencia de teo pae, e uma opposição

tenaz e exorbitante.— Tendes razão! —“disse-lhe, porque as recorda-

ções do passado se erguiam ante mim como pavoro-sos phantasmas de dôr e de vergonha,”— Creio noentanto que elle cederá a seo �lho o unico favor quelhe ha pedido em todo a vida.

— Duvido! —“replicou, abanando tristemente acabeça”— Meos �lhos, o céo que lhe illumine as trevasdo pensamento cobiçoso e que eu os veja unidos efelices.

— Sim, minha boa e terna mãe —“lhe tornei comconvicção”— haveis de ver-nos felices, e vós o sereis

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tambem. Estou que meo pae não me poderá negar aesposa que meo coração escolheo.

Notei que meo pae começou a ser mais communi-cativo e mais tractavel, e com isso minhas esperançasrobusteciam e minha mãe cedeo a essa enganosa illu-são.

Oh! como escoaram felices esses dias! Eu amava,e meo amor correspondido bastava para a minhaventura.

Todo embevecido no meo amor, não curava demeos interesses e nem d’illustrar meo nome na car-reira publica. Toda minha ambição era essa mulhertão loucamente amada. Mas isto não podia durarmuito — era ventura de mais para um pobre mortal.

Era o dia dos annos de Adelaide. Esse dia! que deamargas recordações me traz!!. . . .

Decidi-me a hir communicar a meo pae o segredodo meo coração — esse segredo que me transbordavajá da alma, e que elle �ngia não conhecer.

— Qualquer que seja a impressão, que a meu paepossam causar minhas palavras, —“disse a minhamãe”— Adelaide ha de ser minha.

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Ella olhando-me com severidade, redarguio:— Tancredo, não chames sobre ti a colera de teo pae.

Oh! Deos não protege a quem se oppõe á vontadepaterna!

Baixei os olhos confuso e magoado, e quando osergui duas lagrymas lhe sulcavam o rosto.

— Oh! minha pobre mãe —“exclameireconhecido”—perdoae-me!

Então ella surrio-se, porem seo sorriso era amargoe terno a um tempo!

Ah! ella temia seu esposo, respeitava-lhe a von-tade ferrea; mas com uma abnegação sublime quizsacri�car-se por seo �lho.

— Irei eu —“disse-me e sahio—”Corri para o meo quarto, contiguo ao de meo pae,

e ouvi tudo quanto se passou entre elle e minha mãe.O que ouvi, ainda hoje enche-me de espanto, e reco-

nheci desde então que meo pae era mais desapiedado,e cruel do que imaginava.

E minha desditosa mãe tudo arrostou, porque eraa cauza de seo �lho que advogava! Era as vezes tãodebil e tremula a sua voz, e tão aspera, e violenta

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a de meo pae, que seos accentos chegavam a meosouvidos como a queixa ao longe de sentida rola.

Mas outras vezes vinha ella aos meos ouvidos, eeu acreditei que era minha mãe uma sancta.

Deos meo! parece-me que inda a escuto!A mansidão com que se exprimia desarmaria a uma

fera; mas meo pae irritado e fora de si exclamou comvóz terrivel, que echoou medonha em meos ouvidos.

— E acreditastes, senhora, que eu consentiria emsimelhante união? Estais louca?! Sem duvida perdes-tes a rasão. Ide-vos, e não continueis a alimentar nocoração d’esse louco uma esperança que jamais lhedeveria ter nascido.

— Mas senhor. . . —“aventurou-se a retorquir-lheminha desvelada mãe”— Adelaide é a �lha de umaparenta querida! amo-a; e poruqe não será ella dignade meu �lho?. . . .

— Calai-vos! vol-o ordeno —“interrompeu acezoem ira”— Julgais que por ser essa misera orphan vossaparenta, e porque a amais, hei-de desposal-a a meo�lho só por ser essa a vossa vontade? Decididamenteque enlouquecestes.

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E surrio-se, mas com um sorriso sardonico que megelou de angustia.

Não se aterrou, e respondeu-lhe com uma vóz tãodebil, que não ouvi; mas tam meiga e queixosa, queo acalmou um pouco.

— Louvo-vos a generosidade, minha nobre mensa-geira; —“disse pouco depois com tom de sarcasmo,que me fulminou”— guardai para uma esposa maisdigna de Tancredo essa parte de vossa fortuna comque pretendeis tão desinteressadamente dotar a vossaAdelaide.

E terminou isto com estrepitosas gargalhadas.— Oh! senhor, pelo amor do céo! É só para me

roubardes a ultima ventura de um coração já mortopelos desgostos, que me negais o primeiro favor, quevos hei pedido! Que vos hei feito para merecer tantaduresa da vossa parte? Que vos ha feito meo �lhopara vos oppordes a sua felicidade?! Oh! quanto soisimplacavel em odiar-me. . . Sim, a lealdade e o amorde uma esposa, que sempre vos acatou, merece-vostão prolongado, desabrido e maligno tratamento?!!

Perdoae-me. . . mas tanto tenho so�rido; tantas la-74 293

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grymas me tem sulcado o rosto desfeito pelos pesares;tanta dor me tem amargurado a alma, que estas pala-vras, nascidas do intimo do peito, pungentes, comotoda a minha existencia, não vos podem o�encer.Arranca-as, senhor, dos abysmos da minha alma aagonia lenta, que nella tem gerado o despreso e odesamor com que me tendes tratado!

E extenuada por tammanho exforço e pela dôr nãopode continuar.

E meo pae ouvi-a em silencio; quando ella termi-nou suas magoadas expressões, elle com tom secco e�rme, tão extranho aos queixumes da esposa, comose os não ouvira, exclamou:

— Ide-vos —“E acrescentou no mesmo tom”— Dizeia vosso �lho que a vontade de seo pae não a domastesvós, e ninguem o conseguirá.

— E nem uma palavra de esperança?. . . — soluçouminha infeliz mãe.

— Ide-vos —“tornou-lhe o endurecido esposo.”Ella obedeceo.

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Capítulo 5

A ENTREVISTA

— A dor, que senti, minha querida Ursula —“proseguioo mancebo com voz maguada”— não vos poderei ex-primir. . . . Ella callou-me até o fundo do coração, eeu gemi de angustia por mim, por minhas esperan-ças assim cortadas, e por minha mãe desdenhada ealvitada ao ultimo apuro por seo esposo!. . .

Corri para ella chorando: esse choro, que eu nãosabia reprimir, arrancava-m’o o so�rer profundod’aquella criatura angelica.

E ella tambem chorava; mas era um pranto sentido76 293

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e terno, que contrastava com o meo, que era provo-cado mais pela indignação mal su�ocada no coração,ao passo que o d’ella era o de uma sancta.

— Que humilhação! —“exclamei pallido decommoção”— que humilhação, minha mãe!. . .

— Amo as humilhações, meo �lho —“disse combrandura, que me tocou as ultimas feveras da alma”—o martyr do Calvario so�reo mais por amor de nós.

Meos joelhos vergaram instinctivamente ante essamulher de tão sublimes virtudes, e eu disse-lhe:

— Ao menos o sacri�cio do �lho de Deos não foiinutil, minha mãe, e o vosso?!. . . . Lagrymas, e deses-perança!. . . ..

— Paciencia, meo �lho, Deos assim o quer!— Eu tudo ouvi, minha mãe, tudo —“E ajuntando

as mãos sobre seos joelhos, que tremiam de a�ição,continuei soluçando”— Por amor de mim quizestessacri�car-vos!. . . “E reprimindo o pranto continuei”—Meo pae. . .

— Silencio! —“exclamou ella interrompendo-me”—Meo �lho, não levantes a vóz para accusar aquelleque te deo a vida.

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Adelaide, que estava presente, pallida e abattida,disse com vóz grave e melancolica; porem �rme, querevelava dignidade:

— Para que repetirem-se estas scenas de humilha-ção e de pranto, que me magoam? Cessem ellas, se-nhora, para sempre. “E voltando-se para mim, comacento breve; mas tremulo e amargurado, concluio”:— Tancredo, eu te restituo teos votos.

E depois com voz mais tocante e mais dolorosa,que me cortou o coração, proseguio:

— Agradeço-te, generoso mancebo, o a�ecto de-sinteressado, que animou teo coração; mas se me épermittido pedir-te ainda um ultimo favor — Tan-credo, pelo amor do céo não desa�es a colera de teopae!

— Mulher angelica! —“bradei commovido por tãosublime expressão”— Que me pedes? Posso por ven-tura esquecer-te? poderei viver um só dia sem ver-te? Sem ouvir o harmonioso som da tua vóz? Oh!Adelaide. . . . esse sacri�cio fora de mais para mim —nunca o farei!.. Deixasses embora de amar-me, queainda assim eu te amaria loucamente.

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— E eu, —“disse ella com amargura; mas tão baixoque só eu lhe ouvi”— triste de mim! amar-te-heisempre; mas em silencio — basta que só Deos o saiba.

E um turbilhão de lagrymas borbulharam de seosolhos e su�ocaram-n’a.

— Ursula. . . minha Ursula, — só agora sei que essamulher mentia, que suas lagrymas eram encadeadasaleivosias, e suas palavras refalsadas como o seo co-ração.

Tresloucado, porque essas lagrymas feriam a mi-nha alma, arranquei-me á triste scena que tão dolo-rosamente me magoava, e fui procurar meo pae.

Apenas �z-me annunciar, fui logo introduzido emseos aposentos.

Nesse quarto, onde brilhava o luxo e a opulencia,tudo era triste e sombrio.

Cruzava-o meo pae com passos rapidos e incer-tos; seos olhos re�ectiam o odio que lhe dominavanesse momento o pensamento. Notei que suas feiçõesestavam transtornadas, e que baça pallidez lhe anu-viava o rosto. Simelhava o leão ferido, que despedechamma dos olhos, e eu julguei que hia proromper

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em insensatos brados. Enganei-me.Apenas vio-me, serenou um pouco, assentou-se, e

accenou-me para a cadeira, que estava ao lado.Houve então um momento de profundo silencio,

nesse momento, meo pae observava attento minhaphysionomia, que devia estar bastante alterada; por-que eu so�ria horrivelmente.

Entretanto, depois de minucioso e aturado exame,deixou errar nos lavios um surriso meio animador,e meio escarnecedor, e disse-me com ironico acentoque esmagava:

— Por mais que tenha cogitado, não atinei ainda,meo Tancredo, com o motivo, que te obriga a assimobsequiar-me. Não ousava contar com este favor.

Enclinei-me, e elle proseguio:— Dispunha-me agora mesmo a hir procurar-

te; porque tenho noticias de alta importancia paracommunicar-te.

— Estou as vossas ordens, meo pae —“disse-lhecom sequidão.”

— Que reserva! —“exclamou mordendo os beiços”—Que reserva, Tancredo! que quer isto dizer?

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Desconheço-te.— Senhor!. . . —“redargui confuso por aquella in-

terpelação que não esperava.”— Tancredo! —“bradou com vóz de trovão”— vens

por acaso questionar commigo? Tambem tu!. . . . . . .“E surrio-se com desdem, e depois continuou”— Deha muito que conheço que o amor que me dedicas,não excede aos limitees, que te impõe a sociedade, e adecencia. Bem; nem outra cousa podía esperar: entre-tanto para provar-te o meo desvelo, não hei poupadofadigas, nem desdenhado meios para o�erecer-te umlugar distincto entre os homens.

— Meo pae! —“disse-lhe com dignidade”—adradeço-vos os desvelos de que me tendes cercado;mas senhor. . . .

— Cala-te, —“interrompeo elle mudando de tom”—nada de recriminações. Podes seguir —“continuou”—as tuas inclinações, teo pae não te estorvará a carreira.

E com certo sorriso, meio fagueiro, perguntou-me:— Poderei saber o que aqui te trouxe?— Então, não atinastes ainda com o motivo da mi-

nha visita? —“disse-lhe”— Pois bem, explical-o-hei se81 293

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o permittirdes.— Falla, —“disse-me friamente.”— Já não podeis ignorar, senhor —“comecei”— que

amo com paixão a joven Adelaide, e que é ella dignada minha mão: uma só palavra vossa bastará agorapara a minha completa ventura. O vosso consenti-mento, senhor, para desposal-a, que o meo reconhe-cimento será eterno e profundo.

— Deveras? —“interrogou, �tando em mim seosolhos com inde�nivel altivez, e depois cravando-osno chão, guardou profundo silencio, que eu não ouseiquebrar; porem mais tarde compondo o rosto averme-lhado e severo, objectou com vóz �rme; mas pausada,grave, e sem colera:

— Meo �lho, tenho pensado madura e longamentesobre os teos amores — são uma loucura!

— Loucura! —“exclamei com ancia”— loucura, meopae? Porque o dizeis? Porque é ella pobre! Oh! a umthesouro de riquesas é preferivel seo coração.

Escutou-me sem alterar-se, e depois perguntou-mepesando cada uma de suas palavras.

— Sabes tu quem era o pae dessa menina?82 293

Maria Firmina dos Reis Ursula

— Não te fallarei, —“continuou”— de seos co�resvasios de ouro pelo seo pessimo proceder; mas, Tan-credo, sobre o nome d’esse homem pesa uma. . . .

— Perdão, meo pae, —“atalhei com a�icção”—Amo-a. Que me importa o nome de seo pae? dar-lhe-hei o meo; e se alguma nodoa houve sobre essehomem, puri�cou-a o gelo do sepulchro. Meo pae,Adelaide está pura d’essa mancha como de toda aculpa.

Esperava uma explosão de colera; mas contra todaa expectativa surrio-se com bondade e disse-me:

— Tancredo, tens o meo consentimento. Adelaide,será tua esposa; mas has de permittir que, te imponhauma condição.

A estas palavras, Ursula, eu estava de joelhos aospés d’esse homem, que pela vez primeira se mostravabondoso.

— Fallae, meo pae, —“disse-lhe”— qualquer que ellaseja aceito-a.

— Pois bem —“tornou elle rindo-se tão expansi-vamente, que, Deos meo! acreditei que vinha tudoaquillo do coração, que se lhe expandia pela mi-

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nha felicidade: e eu transportado de reconhecimentobeijava-lhe as mãos, e sentia que o amava; porqueera feliz. Mas esta illusão passou, e o despertar foidoloroso.

— Tancredo, és o desposado de Adelaide. —“disse-me”— d’ora avante esse thesouro, que has amado, serápor mim vigiado como a mais preciosa esperança datua suprema ventura; Adelaide, porem, é ainda umacreança, e a experiencia de uma já longa existenciaobriga-me a impor-te a condição de esperar por essaunião um anno.

— Oh! meo pae!. . . .— Escuta-me. Bem sabia eu que te hias a�igir;

porem attende-me. A esposa, que tomamos, é a com-panheira eterna dos nossos dias. Com ella repartimosas nossas dores, ou os praseres que nos afagam avida. Se é ella virtuosa, nossos �lhos crescem aben-çoados pelo céo; porque é ella que lhes dá a primeiraeducação, as primeiras ideias de moral; é ella em�mque lhes forma o coração, e os mette na carreira davida com um passo, que a virtude marca. Mas, se pelocontrário, sua educação abandonada torna-a uma mu-

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Maria Firmina dos Reis Ursula

lher sem alma, inconsequente, leviana, estupida, ouimpertinente, então do paraiso das nossas sonhasventuras despenhamo-nos n’um abysmo de eternodesgosto. O sorriso foge-nos dos labios, a alegria docoração, o somno das noites, e a amargura nos entrana alma e nos tortura. Amaldiçoamos sem cessar essamulher que adoravamos prostrados; porque se nos�gura agora o anjo perseguidor dos nossos dias.

Vês, meo �lho —“continuou”— Adelaide é apenasuma creança; é tão nova. . . . tão pouco conheces suasqualidades que. . . .

— Mas, meo pae! —“interrompi-lhe”— que dotesfaltam ao espirito de Adelaide? não a tem educadominha mãe!?

Franzio ligeiramente os supercilios, e disse:— Sua educação não está completa; e demais —

“continuou apresentando-me um papel dobrado, esellado”— eis aqui um despacho, que obtive para ti,meo �lho. Honroso é o emprego, que te o�erecem, eeu ouzo esperar que o meo Tancredo, não só o nãorecusará; porque foi solicitado por seo pae, comonão deixará de partir breve, obedecendo às ordens

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Maria Firmina dos Reis Ursula

superiores que o mandam a cidade de ***.Abri o fatal papel, li-o, e gelei de dôr.Era para longe da minha provincia que me dester-

ravam.— Meo pae! —“exclamei pallido de commoção”Recusas? —“perguntou-me desconcertando-se.”

Recuzas?— Não, senhor. Mas. . . .— Mas. . . . O que?— Meo pae; porque não desposarei Adelaide antes

de partir para a terra do exilio? Oh! não, não, hei dedesposal-a; e depois hirei contente.

Então elle mordeo asperamente os beiços, tornou-se rubro de colera, e com voz, que mal disfarçava araiva de ver-se assim contrariado, disse-me:

— Tancredo, dei-te a minha palavra, Adelaide serátua esposa, é um sacri�cio: impuz-te uma condição,acceitaste-a. É sacri�cio por sacri�cio. A condição éfacil de acceitar-se, mas. . .

Interrompeu-se e �cou em silencio.Velho cruel! dizia eu a mim mesmo; porque sime-

lhante procedimento para commigo?!.86 293

Maria Firmina dos Reis Ursula

— Acabemos com isto: —“tornou-me elleenfureciido”— uma palavra somente. Acceitas,ou queres luctar commigo?

Revolveram-se-me então na mente abrasada ideias,que mal se compadeciam com os sacros deveres pres-criptos a um �lho pela sociedade e pela naturesa.

Comprimido o coração, sentia estalar-me de ago-nia; e eu olhava esse velho implacavel e frio, queembargava a minha ventura.

Baixei os olhos, meditei por largo tempo, e submeti-me a sua contade ferrea. Sahi do seu quarto prostradode amargura, e porque a dor era funda em meo cora-ção.

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Capítulo 6

A DESPEDIDA

Minha desvelada mãe aguardava-me tremulada e an-ciosa, e perguntou-me a�icta.

— Recusou?— Não, senhora —“tornei-lhe amargurado.”— Louvado seja o Senhor! —“exclamou então com

reconhecimento, mal comprehendendo o excesso daminha dôr, e lagrymas de satisfação lhe regaram asfaces.

E Adelaide erguendo as mãos aos céos, e �tandon’elles seos grandes olhos humidos de praser, parecia

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Maria Firmina dos Reis Ursula

concluir a oração começada por minha mãe.— Adelaide, —“disse-lhe”— não cedas assim aos

transportes de uma ventura, que ainda se involvenas sombras do porvir; porque o despertar te seriadoloroso. Meo pae impoz-me dura condição, e eusubmetti-me a ella. Meo Deos! que posso eu fazer?Sabeis qual seja? Oh! é um custoso e amargo sacri�-cio, é um anno de separação arrastado no exilio! Esteanno é um seculo de desesperação.

— Meo Deos! —“exclamou minha pobre mãe comaccento tão doloroso, que me estalou o coração demagua”— É mais uma prova, Senhor, que me enviaes!

— Meo �lho, —“continuou”— esta separação serátalvez eterna!

Muitos dias não eram passados, quando eu em péno meio do salão de meo pae, com os braços cruzadossobre o peito, que sentia partir-se de dôr, observavaem silencio a agonia intima d’essas duas mulheres,

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Maria Firmina dos Reis Ursula

que na derradeira despedida, semelhavam dolorosasestatus de Niobe.

Adelaide, reclinava-se nos braços de minha mãe,pallida como a assucena pendurada na corrente; eessa mulher cheia de bondade e de virturde exforçava-se por consolal-a de uma dor, que só n’ella era real;mas que suppunha egual na donzella, que um diaseria minha esposa.

Com magua comparei então o semblante pallidoe emmagrecido d’essa mulher de alma tão heroica esanta, com o seo retrato, pendente de uma das paredesdo salão, e gelei de pasmo e de angustia. O pintorhavia ahi traçado uma bellesa de desoito primaveras.

As madeixas de seos sedosos cabellos molduravam-lhe as faces brancas de neve, e as rosas eram tão de-beis que tingiam-nas apenas de ligeira côr. Sua frontealtiva e nobre coroava uns olhos ternos e expressi-vos, e os labios acarminados, onde pairava angelicosorriso, deixava meio perceber-se dous renques dealvissima perolas.

E agora, demudada, macilenta e abattida pelos sof-frimentos de tantos annos era a duvidosa sombra da

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Maria Firmina dos Reis Ursula

formosa donzella de outros tempos.Esta separação forçada era comtudo a maior dôr

que a havia torturado; porque um funesto presenti-mento dizia-lhe — que seria eterna!

E essa dôr debuxava-se muda, porem viva e pro-funda, em seo rosto macilento e cheio de rugas.

Minha pobre mãe!. . . .E ao lado desse retrato estava outro — era o de

meo pae. Sessenta annos de existencia não lhe ha-viam alterado as feições seccas e austeras, só o tempocomeçava a alvejar-lhe os cabellos, outr’ora negroscomo a noite.

Emquanto retraçava na mente agitada os desgostosde minha a�icta mãe, entrou seo esposo. Notou-lheo abattimento, vio as lagrymas de Adelaide, e seorosto de leve se contrahio.

Tomei-lhe a mãe e beijei-a; e elle voltando-se paraa inconsolavel esposa, com severa in�exão de voz, ecom aspecto cholerico, perguntou-lhe:

— Senhora! quando deixareis partir vosso �lho?Por toda a resposta, só lhe ouvi um gemido de

profundo desanimo.91 293

Maria Firmina dos Reis Ursula

— Meo pae!. . . —“exclamei sentido.”— Oh! meo �lho —“tornou-me elle com aquelle

sorriso, que lhe é particular”— e necessario que nemsempre se attenda às lágrimas das mulheres; porque éo seo choro tão tocante, que apesar nosso commove-nos, e a honra, e o dever condenma, a nossa commo-ção, e chamam-lhe — fraqueza.

— Pois bem, meo pae, na hora em que sáhio a cum-prir a vossa vontade, permitti que vos recommendezeloso o thesouro de minha futura felicidade, e a mãedesvelada, que minha alma adora

Meo pae —“continuei com voz queixosa”— adoçaio amargor do meo exilio! Bem sabeis quanto me épenosa esta separação, que só um requinte de �lialcondescendencia a ella me obrigou. Oh! fazei comque não saiba no lugar do desterro que minha po-bre mãe verteo uma lagryma de a�icta dôr, longedo coração de seo �lho, e que a desposada, que meconcedestes, se conserva triste e pesarosa como oraa vedes. Oh! velai por ella, meo pae, e que ella seconserve digna da mão que lhe está destinada.

Então olhou-me, e seo olhar era sinistro: suportei-92 293

Maria Firmina dos Reis Ursula

o, e sempre immovel ante elle, aguardei uma resposta.Mordeo os labios, e com esforço disse-me:— Descança.Avia-te, avia-te.— Ursula!. . . . minha Ursula!. . . . —“proseguio o

cavalleiro reprimindo um doloroso gemido”— beijeias faces mimosas de minha desposada, uni minhamãe contra o coração; mas não lhe disse um adeos,nem um gemido me arquejou no peito; porque ahihavia dorido so�rer.

Ella deo-me um derradeiro olhar, tão terno,tão apaixonado, tão expressivo de magua in-tima, e de sincero reconhecimento, que as la-grymas, que me gotejavam no coração, por �mme resaltaram nas faces, e prorompi um copiosopranto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

N’esse olhar, em que lhe estava a alma, disse-me ainfeliz seo derradeiro adeos.

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Capítulo 7

ADELAIDE

Agora —“proseguio o mancebo, apos alguns momen-tos de profundo silencio”— agora se não fosseis vós,minha Ursula, que de novo acabaes de prender-me àvida, que me restaria sobre a terra?!!

No exilio, encerrado entre as paredes silenciosas daminha morada, ahi eram commigo as saudades d’umestremecido amor, e as fagueiras esperanças de umporvir de a�ectos e ventura. Loucas esperanças eramessas! Não podia imaginar que sob as apparencias deum anjo essa per�da occultava um coração trahidor

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Maria Firmina dos Reis Ursula

como o do assassino dos sertõesRecebia constantemente cartas de minha mãe, em

que me fallava d’Adelaide, animava-me no meo des-terro, e não dirigia queixas contra o seo marido.

As cartas d’este eram sempre breves e frias.Adelaide, que com frequencia tambem escrevia-me

a principo, entrou a espaçar mais a correspondencia,que era o alento da minha vida, era o que me faziapermanecer com alguma alma tam longe de entescaros.

Por ultimo cessaram!E eu chorava no exilio dores, que ella havia es-

quecido — a�ectos, que nunca lhe tinham pulsadono coração — esperanças e saudades que eram sóminhas!. . . .

Com que lentidão espreguiçavam-se então os dias!..Contava as horas, longas como seculos, tristes comoas agonias do padecente.

Com o tempo o espirito cançado de tão apuradoso�rimento reagio sobre o physico, e cahi perigosa-mente doente.

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Maria Firmina dos Reis Ursula

Prolongou-se a minha enfermidade apesar dos es-forços dos medicos, e elles receiaram pela minha vida;porem o amor e a esperança salvaram-me.

Recobrei �nalmente a vida, e quando achei-me comforças para emprehender viagens, pensei em revero objecto de minha terna a�eição, e não obstantenão ter carta de meo pae, que me chamasse a recebera recompensa de meo sacri�cio, dispuz-me para apartida.

Mas. . . Deos eterno! como são occultos os teus jui-zos! Uma ordem muito positiva do governo obrigou-me a renunciar ao meo projecto, e tive de dirigir-meà commarca de ***, onde hia incumbido de uma com-missão espinhosa e honrosa.

Enfraquecido pelos so�rimentos, contrariado,quazi que desesperado, emprehendi essa viagem, que�z com tanta rapidez, quanta me permittiram minhasforças, e alguns dias depois estava de volta. Levavano coração a imagem desse anjo idolatrado; mas umamagoa extranha annuviava-me o coração, e eu nãopodia comprehendel-a, e o absoluto e tétrico silenciod’esse espaço, que percorria, mais augmentava esse

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Maria Firmina dos Reis Ursula

sentir vago de inde�nivel melancholia.E dei de redeas ao animal com loucura e sem pa-

rar, porque sentia a necessidade do movimento; masdepois a a�ição sempre crescente trasia-me o abatti-mento, e eu deixava o cavallo andar como lhe parecia.

O coração presagiava males e não tinha energiapara desvanecel-os. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..

Concluida essa penosa tarefa, ao entrar em minhacasa encontrei uma carta, cuja lettra era tremula, emal traçada, cuja data era ainda anterior à minhaenfermidade. Oh! Deos meo! Gelou-se-me de dôr osangue — essa carta era de minha mãe! Escrevera-a àsportas da Eternidade, e cada uma de suas palavras eraum queixume desanimado de dolorosa angustia. Nãohavia ahi uma palavra que accuzasse meo pae; mascomprehendi logo que elle lhe cavára a sepultura.

Adelaide! minha pobre mãe não me fallava d’ella. . .E apos essa li sucessivamente uma carta de meo

pae, e outras de alguns amigos — minha desditosamãe cessára de existir!!. . . ..

Ah! essa dor foi profunda, e tão aguda, que recahie por muitos dias ignorei o que se passava em deredor

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Maria Firmina dos Reis Ursula

de mim. Recuperei a saude, alentado por meo amor.Adelaide estava no coração, e agora mais do nuncaseos a�ectos eram necessarios a minha alma.

Ergui-me pois, e de novo puz-me a caminho equinze dias viajei, já pela ardentia do sol, já pelahumidade da noite, sempre depressa, sem nunca des-cançar, animado pelo desejo de chegar e ver a minhaAdelaide, unico ente adorado que me restava sobre aterra! No cabo de quinze dias batti, à noite, à porta dacasa onde nasci e onde morrera minha infeliz mãe!

A dor, que eu sentira ao receber essas cartas fataes,crescia, e su�ocava-me a proporção que me apro-ximava dessa casa, onde eu deixara minha desven-turada mãe, pallida e desfeita, e onde hia encontrarluctuoso silencio: e o aspecto lugubre do escravo, quevigiava a entrada, augmentou mais essa dôr profunda.

Levantou-se apenas vio-me, e fallou-me com vozmaguada; e depois, cruzando os braços sobre o peito,aguardou mudo por uma interrogação.

— Meo pae? —“perguntei-lhe com voz tremula econvulsa”—.

— Está fora, senhor —“tornou-me tristemente”— E98 293

Maria Firmina dos Reis Ursula

Adelaide? onde está ella?— No salão —“redarguio o negro no mesmo tom.”Entrei. Veloz como um raio atravessei corredores e

salas, e n’um minuto estava no salão. Ursula, minhaUrsula, eu a vi. Oh! antes não a houvera visto, an-tes tivera descido ao sepulchro, que lá não me seriarevelada tão triste e nefanda historia!

No salão havia um turbilhão de luzes; no fundo,reclinada em primoroso sophá, estava uma mulher deextremada bellesa. Figurou-se-me um anjo. A explen-dente claridade, que illuminava esse salão dourado,dando-lhe de chapa sobre a fronte larga e limpidacircundava-a de voluptuoso encanto.

Era Adelaide.Adornava-a um rico vestido de seda côr de perolas,

e no seio nú ondeava-lhe um precioso collar de bri-lhantes e perolas, e os cabellos estavam enastradosde joias de não menor valor.

Destrahida, no meio de tão opulento explendor,afagava meigamente as pennas de seo leque dourado.

Allucinado por bellesa tão radiante, corri para ella,exclamando:

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Maria Firmina dos Reis Ursula

— Adelaide! minha Adelaide!E n’aquelle momento, seduzido pelos seos encan-

tos, louco pela ventura de vel-a, esqueci a magoa, queme doia no coração, da perda de minha mãe. Estendi-lhe os braços, e as expressões morreram-me nos la-bios; e depois curvando-me ante ella, hia tomar-lheas mãos, e beijal-as com e�usão; mas ella então altivae desdenhosa disse-me com friesa, que me gelou deneve.

— Tancredo, respeitai a esposa de vosso pae!Oh! não sei como não enloqueci! Em trevas de

desesperação tornou-se-me a luz dos olhos, e todo osalão parecia ondular sob meos pés. A mulher, que ti-nha ante meos olhos, era um phantasma terrivel, eraum demonio de trahições, que na mente abrasada dedesperação �gurava-se-me sorrindo para mim cominsultuoso escarneo. Parecia horrivel, desferindo cha-mas dos olhos, e que me cercava e dava estrepitosasgargalhadas. Erguia-se para mim ameaçadora, e abra-çava e beijava outro ente de aspecto tambem medo-nhos, Ambos no meio de orgia infernal cercavam-mee não me deixavam partir.

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Maria Firmina dos Reis Ursula

Se durou muito este fatal pesadelo, não o possodizer. Quando acordei debatia-me no tapete aos pésd’essa mulher orgulhosa.

Dissiparam-se-me as trevas, a luz volveo-me e comella apagaram-se as ondas de fogo, que rodeiavamessa per�da creatura. Encarei-a de face — estavaimpassivel e fria como a estatua do desengano.

Levantei-me cheio de desesperação e odio.Adelaide permanecia indi�erente.— Mulher infame! —“disse-lhe”— perjura. . . . onde

estão os teos votos? É assim que retribuiste a estre-mecida paixão, que te rendi? É com um requinte devil e vergonhosa trahição que compensaste o ardentea�ecto de minha alma? Comprehendeste ou sondastejá o profundo abysmo de infame execração, e de baixadegradação, em que te despenhaste?

— Silencio, senhor —“bradou-me com orgulho edesdem”— silencio — estaes na presença da mulherde vosso pae, e respeitae-a.

— Não, não me hei de callar, —“redargui furioso”—não me pode esmagar o teo desdenhoso accento.Monstro, demonio, mulher fementida, restitue-me

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Maria Firmina dos Reis Ursula

minha pobre mãe, essa que tambem foi tua mãe, queagasalhou no seio a aspide que havia mordel-a! Oh!divida é esta que jamais poderás pagar; mas a Deos,ao inferno, a pagarás sem duvida. Foi essa a gratidãocom que lhe compensaste os desvellos de que te cer-cou na infancia, a generosidade com que te amou?!!

Estava louco de a�ição e a voz faltou-me; porqueo que eu sentia era demais para as minhas forças.Torcia as mãos de desesperação; porque o acordar deminhas loucas esperanças era amargoso e doloroso.

E derepente um sorriso, que me pareceo infernal,errou-lhe nos labios — era seo esposo, que grave esilencioso atravessava o salão, e ella julgava-se isentade minhas recriminações e sentia-se livre de desagra-daveis lembranças.

Olhei, e vi-o. Vellava-lhe o rosto pallidez mortal.E cambiamos longo, amargo, e expressivo olhar:

creio que foi um seculo de torturas para meo pae; porque depois elle cravou os olhos no chão, e respiravaa custo.

— Senhor! —“exclamei fora de mim”— Restitui-meduas mulheres, que vos recommendei na hora em que

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Maria Firmina dos Reis Ursula

me desterrastes. Uma era a mãe querida que eu tantoamava; a outra era minha desposada, era a mulher,que me havieis cedido para a companheira dos meosdias. Onde estão elas?

Continuou mudo a �tar o tapete de seo vasto salão.— Livrai-me, senhor da presença deste homem!

—“exclamou Adelaide agitada e convulsa.”— Que �zestes d’ellas, senhor? Comprehendo

agora, o vosso silencio assás m’o tem explicado. Son-dastes o coração de uma, e sem di�culdade conheces-tes que era vil e baixo, que o ouro a deslumbrava, aenlouquecia, a aviltava, e essa, que com tanta felici-dade sacri�cava ao luxo os a�ectos de seo coração, ouque com infame procedimento esquecia o amor de-sinteressado, e puro do homem, que sabia idolatral-a,essa, roubando-a ao meo coração, levastes aos altares,e �zestes a vossa esposa! Tivestes rasão: ella não eradigna do meo amor.

Meo pae fez-se livido, e de raiva mordeo os beiços.A outra —“prosegui”— a outra atormentastes, tor-

turastes, conduzistes lentamente á sepultura. Seocrime? Oh! meo pae. . . . minha mãe era uma

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Maria Firmina dos Reis Ursula

angelica mulher, e vós, implacavel no vosso odio,invenenastes-lhe a existencia, a roubastes ao meocoração. . . Oh! suas cinzas, senhor, clamam justiçacontra os autores de seos ultimos pesares, contraaquelles que riram sobre suas dores.

— Fazei-o retirar, senhor —“de novo bradou a es-posa, pallida e abattida.”

— Tendes razão, senhora —“disse-lhe”— Sentis quevos incommodo? assim deve ser. Eu sou para vóso remorso vivo. Esperai, não será longo o tempoque gastarei aqui; porque tambem me encommodaa vossa presença; porque n’esta casa respira-se umalito pestilento; porque aqui em�m estais vós. Poucome demorarei — só quero diser-vos:

— Mulher odiosa! eu vos amaldiçôo. Por cada umdos transportes de ternura, que outr’ora meo coraçãovos deo, tende um pungir agudo de profunda dôr;e dôr, que me dilacera agora a alma, seja a partilhavossa na hora derradeira. Por cada uma só das lagri-mas de minha mãe choreis um pranto amargo; masarido como um campo pedregoso, doido como a de-sesperação de um amor trahido. E nem uma mão, que

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vos enxugue o pranto, e nem uma voz meiga, que vossuavise a dor de todos os momentos. O fel de umprofundo, mas irremediavel remorso, vos envenene ofuturo, e desejado praser, e no meio da opulencia e doluxo, �ram-vos sem treguas os insultos de impiedosasorte. Arfe o vosso peito, e estale por magoados sus-piros, e ninguem os escute; e sobre esse so�rimentoterrivel cuspam os homens, e riam-se de vós.

A voz de todo se me extinguio, e eu sahi louco dedesesperação e de dôr da casa de meos paes, da casa,onde tão leda se passou a minha primeira idade!

Apos um momento de silencio, o cavalleiro dissea �lha de Luiza B. . . .. eis Ursula a �el narração daminha vida, eis os meos primeiros amores; o restotoca-vos. Fazei-me venturoso. Oh! em vossas mãosestá a minha sorte.

A donzella, commovida, não pode fallar e estendeo-lhe a mão, que elle beijou com amor e reconheci-mento.

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Capítulo 8

LUISA B. . . ..

O dia hia já alto quando Ursula entrou no quartode sua mãe, e esta admirada de não vel’a logo aoamanhecer, como de costume, começava a inquietar-se, e por isso estendeo-lhe os braços com transportede indisivel satisfação, e disse-lhe:

— Dormiste hoje muito, minha cara Ursula, e eujulguei que me tinhas esquecido.

Suposto a voz de Ursula nada tivesse de reprehen-siva, todavia Ursula corou de envergonhada, e aomesmo tempo o remorso lhe errou na alma.

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— Deos meo! perdoae-me —“disse comsigo, e cor-reo com os braços abertos para abraçar sua carinhosamãe, que lhe sorrio.

— É verdade, minha mãe, demorei-me muito; mashaveis de desculpar-me. Achei-me encommodadadurante a noite, e foi-me preciso respirar o ar frescoda manhan para restabelecer as forças.

— Ah! minha �lha! —“tornou a senhora B. . . , que-rendo attrahir Ursula aos seos braços, a qual a�ectadapelo primeiro remorso, receiava algum tanto lançar-se nos braços maternos”— Vem abraçar-me. . . . quetão anciosa estava por ver-te!

Então a timida menina, vencendo a sua pertur-bação, lançou-se com jubilo no seio de sua mãe, esoluços mal su�ocados lhe rebentaram do peito.

Luisa B. . . mal podia comprehendel-a, e olhava-aenternecida. Pouco e pouco convencida de que o seopenivel estado era a unica cauda de tão sentido choro,que outro motivo não podia ella descobrir, procurouserenar a estremosa �lha, chamando sua attençãopara outro objecto, e disse-lhe:

— Enchuga, minha Ursula, as tuas lagrimas, não107 293

Maria Firmina dos Reis Ursula

vês que eu não choro? —“E procurava sorrir-se; masera um riso amargo; porque o coração não estavaisento de dores.

— Minha �lha —“continuou a�ectandotranquillidade”— o nosso hospede intenta deixar-noshoje: pedio que me queria ser apresentado, e eu teaguardava para fazer-lhe as honras desta pobre casa.

Ursula levou o lenço ao rosto por um movimentorapido, Luiza julgou que ella procurava d’ahi extin-guir o vestigio das suas lagrimas; mas a donzellaoccultava o rubor subitaneo, que lhe tingia as faces,ouvindo sua mãe fallar do homem, que lhe occupavaa alma, e por desfarçar a sua commoção disse des-trahidamente:

— E o nosso Tulio, que tambem se vai?!. . . . . . . . . .— É verdade! —“tornou a pobre paralytica”— e a

nossa casa vai-se tornando cada vez mais isolada etriste!

Ursula deixou descahir os olhos para a terra, ereprimio magoado suspiro por amor de sua mãe.

E um profundo silencio reinou no quarto da do-ente; porque cada uma dessas duas mulheres se

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abandonava a seos pensamentos. Luisa sem duvidaoccupava-se só do porvir de sua �lha; esta pelo con-trario recordava as doces expressões do cavalleiro,seos votos de amor, e sentia pesar por vel-o partir.Comtudo Ursula tinha já uma esperança que lhe davaforças para arrostar as dores da vida: — amava, etinha a convicção de ser amada.

E ella meditava na breve mudança da sua vida, esentia o coração palpitar com estranho desaçocego.

Depois o silencio foi interrompido pelo annuncioda chegada do mancebo.

— Eil-o —“disse a moça a sua mãe, que se tinha im-mergido em triste re�exões, e não ouvira pronunciaro nome de seo hospede”— e levantou-se para hir aoseo encontro.

— Ursula, —“exclamou a inferma como quem acor-dava de um pesado somno”— onde vas?

A moça comprehendeo que sua mãe muito so�riae com meiguice chegou-se a ella e disse-lhe:

— É o nosso hospede, minha mãe.— Ah! —“exclamou então a infeliz senhora,

cahindo em si”— sejaes bem vindo, senhor. Espe-109 293

Maria Firmina dos Reis Ursula

rava por vós. E o mancebo transpunha o liminar daporta.

— Perdoae a friesa desta recepção, —“continuou”—sou uma pobre paralytica; mas a honra, que me fazeis,e que aparentemente mal posso corresponder, �carágravada profundamente em meo coração. Entrae,senhor.

E Ursula, tremula de pejo e de amor, guiava-o parao leito de sua mãe.

O mancebo resentia-se ainda dos e�eitos de umalonga enfermidade; e o seo rosto conservava morbidapallidez, que n’ess’ora sobresahia-lhe, augmentandoa gravidade de seo porte, em presença d’essa mulher,que semelhava o proprio so�rimento.

E elle entrou; mas ao aproximar-se do leito de LuizaB. . . uma commoção de pesar lhe ferio a alma. É quen’esse esqueleto vivo, que a custo meneava os braços,o mancebo não podia descobrir sem grande custo osrestos de uma penosa existencia, que se �nava lentae dolorosamente.

Estremeceo de compaixão ao vel-a; porque em seorosto estavam estampados os so�rimenntos profun-

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dos, pungentes, e inexprimiveis da sua alma. E oslabios lividos e tremulos, e a fronte pallida, e descar-nada, e os olhos negros, e alquebrados diziam bemquanta dôr, quanto so�rimento lhe retalhava o peito.

Luisa B. . . fora bella na sua mocidade, e ainda nofundo da sua infermidade podia descobrir-se levestraços de uma passada formosura.

Ursula herdara as doces feições de sua mãe. Entãoo mancebo contemplou-a com religioso respeito, e oque sentio em presença d’esse leito de tão apuradasdôres mal poderia dizer.

Semelhava um cadaver a quem o galvanismo im-prestara movimento limitado as extremidades supe-riores, myrrhadas e pallidas, e brilho a uns olhosnegros, mas encovados.

Venceo a sua perturbação, e chegando-se á mãede Ursula, estendeo-lhe a mão, que ella apertou come�usão, tanto quanto lhe permittiam suas debeis for-ças.

Essa mão era leal e generosa, e Luisa B. . . sentiu-se commovida; porque era a primeira pessoa que avisitava em sua triste morada, e que em face de sua

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enfermidade a não desdenhava, nem sentia repugnan-cia da sua miseria e do seo penoso estado. E por issodisse com reconhecimento, que tocou o mancebo.

— O céo vos proteja senhor; porque sois generosoe bom. E quereis partir? —“accrescentou com bene-volencia.”

— Sim, senhora —“tornou-lhe o cavalleiro comvoz �rme; mas magoada por ahi lhe �car parte docoração”— o dever me chama. Acho-me restabele-cido, e não devo por mais tempo abusar da vossabondade. Com desvelo e carinho, e sem que eu omerecese tendes me dado um novo existir, venhopois protestar-vos minha gratidão. Se algum dia —“continuou depois de breve pause”— as vicissitudes dasorte vos obrigarem a recorrer a alguem, esse alguemseja eu; porque, senhora, jamais me esquecerei dafranquesa, e da bondade com que me acolhestes.

— Sim, senhor, —“redarguio a enferma”— creio emvoz; porque sois generoso e bom: o fostes para comTulio, sel-o-heis tambem para commigo: mas. . .

E olhou para sua �lha, que pallida e perturbadacomo a �or na ardentia da sésta, descahida a face nas

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mãos, estava a sua cabeceira, e suspendeo-se.Luisa B. . . . queria dizer: eu nada peço para mim

nada mais que a sepultura; mas se sois cavalleiro, setendes virtude na alma, protegei essa pobre orphan.Mas aquelle homem era-lhe desconhecido, e a idéade sua proxima morte hia despertar em Ursula senti-mentos dolorosos. A pobre mulher callou-se.

— Fallae, minha querida senhora —“apressou-se o mancebo em dizer, reparando n’essa penosareticencia”— fallae, não sabeis que nutro satisfaçãoem escutar-vos?

— Ah! senhor —“exclamou Luisa B. . . reprimindoamarguradas lagrimas”— sou tão desditosa, que fal-lando de mim, só poderia dizer-vos cousas tão tristese fastidiosas, que vos cançarieis de as ouvir.

— Pelo contrario, —“disse o mancebo”— grande é ointeresse, que me inspiraes: quaes quer que sejam asvossas desditas, e por mais longa que seja a narraçãod’ellas, eu as escutarei, e tomarei por ellas todo ointeresse.

Sem duvida, minha pobre Ursula, tinhas razãoquando, tocada pelo generoso proceder do vosso hos-

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pede, me fallavas de suas bondades, e de seos delica-dos pensamentos.

Então o mancebo inclinou-se para a donzella emsignal de gratidão, e vio-lhe pender dos olhos umalagrima, que do fundo do coração lhe arrancava asaudade de tão forçada separação.

Essa lagrima transportou de amor ao joven ado-rador da �lha do deserto, e elle desejou bebel-a emum longo e ardente beijo, e seo coração jurou denovo que aquella mulher angelica seria a doce com-panheira da sua peregrinação na terra. E quando ellahouver deixado de existir, acrescentava elle em seosonhar delicioso, eu a seguirei na campa, e lá n’umaoutra vida, onde tudo é amor, puresa, e santidade, lá,redobrando de amor e de ternura, viveremos unidopara sempre.

E a senhora B. . . notando que seo hospede estavacommovido, e attribuindo ao exordio da sua conver-são, a commoção do mancebo, apressou-se em dizer-lhe:

— Perdoae-me, senhor, uma pobre mulher enre-gelada pela doença, e pela morte, que se lhe apro-

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xima, deve fallar com toda a franquesa, e demais, asensibilidade do meo coração ainda existe, e o céopermittio-me sympathisar com as acções nobres, edesinteressadas. Eu amei, senhor, o vosso procedi-mento.

— Obrigado! minha senhora, —“murmurou o man-cebo inclinando-se.

— Continuae, eu vos escuto.— Ha dose annos —“começou Luisa B. . . suspi-

rando aquele suspiro, que vem do fundo da alma, nãopara commover a outrem, e captar a sua attenção, oua sua bondade; mas aquelle suspiro, que é o momen-taneo, mas triste alivo de um so�rimento apuradoe baldo de toda esperança”— Ha dose annos que ar-rasto a custo esta penosa existencia. Deos conheceo sacri�cio, que hei feito para [ilegível. ‘conserval-a’? p. 84/79]. Parece-vos isto incomprehensivel? —“interrogou ella ao mancebo, que attento a escutava”—Sou mae, senhor! Vede minha pobre �lha! é um anjode doçura e de bondade, e abandonal-a, e deixal-a sósobre este mundo, que ella mal conhece, é a maiordôr de quantas dores hei provado na vida. Sim, é a

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maior dor —“continuou ella com amargo acento”—porque então perderá o unico apoio que ainda lheresta! Ao menos se meo irmão podesse esquecer oseu odio, e protegel-a!. . . . . .

— Vosso irmão, senhora? —“interrogou o caval-leiro, como admirado de que um irmão pudesse odiara sua irman.

— Sim —“tornou ella”— meo irmão. Mas, senhor,elle é implacavel no odio, e nunca o esquecerá.

— Não é possivel senhora —“objectou o cavalleiro”—vosso irmão, quem quer que seja, não vos pode odiar.O vosso estado, e as desgraças que por certo tempesado sobre vós, que elle talvez não ignore, lavarãotoda a o�ensa, que por ventura lhe houverdes feito.

— Lavarão, dizeis vós, todas as o�ensas que lhehei feito? Ah! podera assim acontecer! Mas não, euchamei seo ódio sobre minha cabeça, eu o conhecia:seo coração só se abrio uma vez, foi para o amorfraterno. Amou-me, amou-me muito; mas quandotive a infelicidade de incorrer no seo desagrado, todoesse amor tornou-se em odio, implacavel, terrivel, evingativo. Meo irmao jamais me poderá perdoar.

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— Talvez! O tempo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Luisa B. . . meneou tristemente os olhos, e inter-

rompeo o cavalleiro:— Então, senhor, não conheceis o commendador F.

de P***!. . . .O commendador P***?! —“exclamou o moço

admirado”— é elle vosso irmão?..— Sim, senhor —“tornou-lhe a mãe de Ursula,”—

e um desvelado irmão foi elle. Conheceis-lo talvezpela sua reputação de feresa de animo; mas esse ho-mem tao implacavel como o vedes, era um terno ecarinhoso irmão. Amou-me na infancia com tanto ex-tremo e carinho que o innobreciam aos olhos de meospaes, que o adoravam, e depois que ambos cahiramno sepulchro, elle continuou sua fraternal ternurapara commigo. Mais tarde, um amor irrestivel levou-me a desposar um homem, que meo irmão no seoorgulho julgou inferior a nós pelo nascimento e pelafortuna. Chamava-se Paulo. . .

Ah! senhor —“continuou a infeliz mulher”— estedesgraçado consorcio, que attrahio tão vivamentesobre os dous esposos a colera de um irmão o�en-

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dido, fez toda a desgraça da minha vida. Paulo B. . .não soube comprehender a grandesa de meo amor,cumulou-me de desgostos e de a�ições domesticas,desrespeitou seos deveres conjugaes, e sacri�cou mi-nha fortuna em favor de suas loucas paixões. Nãotivera eu uma �lha, que jamais de meos labios cahiriasobre elle uma so queixa. Mas elle me perdoará dofundo do seo sepulchro; porque sua �lha mais tardefoi o objecto de toda a sua ternura, e a dor de fraca-mente poder rehabilitar sua casa em favor della lheconsummia, e occupava o tempo. E elle teria sidobom; sua regeneração tornar-hia-se completa, se oferro do assassino lhe não tivesse cortado em meio aexistencia!

E uma lagrima pendeo dos olhos alquebrados dadesditosa viuva.

— Assassinaram vosso marido, senhora?“interrompeu-a o hospede horrorisado.

— Assassinaram-no, sim —“tornou Luisa B. . . comvoz pausada.

— Oh! isso é horrível! E sabeis vós quem foi o seoassassino?

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— Não, senhor — Ninguem, a não ser eu, sentioa morte de meo esposo. A justiça adormeceo sobreo facto, e eu, pobre mulher, chorei a orphandade deminha �lha, que apenas sahia do berço, sem umaesperança, sem um arrimo, e alguns mezes depois,veio a paralysia — essa meia morte — roubar-me omovimento e tirar-me o goso ao menos de seguir osprimeiros passos desta menina, que o céo me con�ou.

— Oh! —“disse o cavalleiro commovido”“— quan-tas desgraças! E não tendes suspeita alguma de quemquer que fosse esse assassino, que a justiça não pro-curou punir?

— Não sei —“tornou ella com desanimo”— E paraque pensar temerariamente, quando já me acho tãoproxima do meo �m, e tantas culpas para com aquelleque a todos nós ha de julgar? Só Deos, senhor, deveconhecer o culpado e os remorsos tel-o-hão punido.

Uma tarde, meo esposo deixou-me para hir à ci-dade de *** donde voltaria ao cabo de tres dias. Foiembalde que o esperei; porque a sua alma estava comDeos, e só ao amanhecer do outro dia dous homenscompassivos trouxeram-me o seo cadaver! Ah! que

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triste recordação!— E vosso irmão, senhora, não procurou consolar-

vos?— Meo irmão? —“tornou ella sorrindo-se

dolorosamente”— Esse comprou as dividas do meocasal, e estabeleceo-se na fazenda de Sancta Cruz,outr’ora habitação de meos paes, onde eu passei osannos de minha juventude, onde nascera minha po-bre Ursula.

— Oh! minha mãe —“exclamou Ursula comamargura”— pelo céo não vos a�ijaes mais fallandodesse homem que tanto mal vos tem feito.

— Conheceis-lo, senhora? —“perguntou-lhe o man-cebo sorrindo com ternura para a animar.

— Não. Oh! que nunca o veja —“tornou-lhe adonzella refugiando-se nos braços de sua mãe.

— Tens razão, minha cara Ursula —“disse a pobremãe procurando amparal-a”— grande mal nos temelle feito.

— Socegai, minhas queridas senhoras —“objectouo mancebo,”— acaso ignoraes que d’hoje em diante

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velarei por vós? E o que mais podeis receiar delle?Tem sobejamente saciado seo terrivel rancor.

— Tendes razão, senhor —“proseguio Luisa B. . . ”—elle habita as nossas visinhanças desde que morreomeo marido, e jamais nos tem encommodado.

— O commendador habita estes arredores? —“perguntou o cavalleiro.”

— Sim, senhor — A fazenda de Sancta Cruz está ameia legua de nós.

— E eu tenho-lhe tanto horror —“disse Ursula atremer”— que mal posso supportar a idéa de que es-tejamos sempre tão proximas d’elle. Parece-me queesse homem ainda me hade ser funesto. E algumaslagrimas lhe orvalharam as faces.

— Pelo céo, minha �lha —“disse a mãe angustiada”—essa lagrimas me matam. Não, eu quero ver-te riso-nha e feliz.

— Sim, feliz! —“interrompeo o mancebo tão com-movido que tocou o coração de Luisa B. . . ”— Con-tai commigo, senhora, vossa �lha hade ser feliz,prometto-o sob juramento.

— Vós!. . . . —“interrogou a pobre a mãe, sem ati-121 293

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nar verdadeiramente com o sentido destas palavrasproferidas com tanto fogo.

E o joven cavalleiro tornou-lhe:— Sim, minha senhora, eu; porque amo-a, e como

o meo amor não poderá jamais arrefecer, juro-vosem nome do céo, que nos escuta, que Ursula será amais venturosa de todas as mulheres, se annuirdesao meos desejos.

Luisa B. . . redusida a ultima miseria, e desco-brindo nas maneiras de seo hospede os signaes deum nascimento destincto, assim como o explendor deuma prospera fortuna, julgou-se vivamente o�endidapor aquellas palavras proferidas com tanto arrebata-mento, e que aos seos ouvidos pareceram insultuosao�ensa; e resentida, invergonhada, e quasi que de-sesperada, abandonada já de forças, cahio quasi quecompletamente desmaiada nos braços de Ursula, quelhe bradava:

— Minha mãe. . . minha mãe!. . .E o mancebo arrependeu-se de não se haver ex-

primido de outra maneira, e pediu ao céo um mo-mento de vida para aquella infeliz mulher, cuja deli-

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cadesa, involuntariamente elle acabava de o�ender,para convencel-a da puresa dos seos sentimentos.

E Deos o escutou; porque aos esforços da donzella,ao acento de sua vóz meiga e doce a pobre mãe abrioos olhos, e �tando a �lha com redobrado amor lhedisse:

— Oh! minha Ursula!. . . este homem. . .— Puro é o seo amor, minha pobre mãe! —“animou-

se a dizer a moça, rubra de pejo”— é o esposo quemeo coração tem escolhido.

— Elle? —“perguntou-lhe angustiada a receiosamãe conchegando-se a si”— elle? E sabes tu quemseja?

Então o joven cavalleiro erguendo-se com digni-dade exclamou:

— Senhora, eu sou Tancredo de ***— Tancredo de ***!!!. . . —“exclamaram ao mesmo

tempo mãe e �lha; e depois um profundo silencioreinou na camara.

Então uma viva pallidez tingio as faces avermelha-das da pobre Ursula, que na sua ingenuidade nuncatinha indagado do nobre cavalleiro o seo sobrenome.

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Sabia de seo nome, que era Tancredo, e esse lhebastou; seo nascimento, sua posição social, não lhelembraram ao menos. Ella amou o mancebo desco-nhecido, seo amor era por tanto desinteressado, masagora que um nome illustre lhe soara aos ouvidos,agora que ella acabava de reconhecer no manceboconvalescente seo primo, de destincto nascimento,sua fronte curvou-se abatida, como a �or que, noarrebol da manhan ostentando belleza e seducção,vai rastear na terra, quebrada a haste por furacãoviolento.

O mancebo comprehendendo então o que se pas-sava na alma dessa menina tão casta e tão delicadacomo um anjo, tomou-lhe a mão, dizendo-lhe:

— Ursula, eu sou incapaz de uma má acção. Omancebo, que juncto ao bosque solitario, depois deconsultar o vosso coração, vos jurou amor e �deli-dade, e que tomou a Deos por testemunha de queseria vosso esposo, está agora de novo ante vós. Souo mesmo, Ursula. Olhai-me.

Então ella levantou os olhos, —havia nelles amor econ�ança.

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— Agora, senhora —“continuou o mancebodirigindo-se a Luiza B. . . que apenas ouvia-lhe avóz”— agora não me negueis o unico bem que ambici-ono na vida. Senhora, eu amo a Ursula, e fora precisonão conhecel-a para sahir desta casa sem leval-a nopensamento e no coração. É Ursula, senhora, o anjodos meos sonhos, é a esperança de minha vida. Viversem ella d’ora em diante fora morrer mil vezes, semnunca encontrar o descanço da sepultura. Não m’anegueis. Ursula é a esposa, que convem a minha alma,é a esposa que pede o meo coração. Sereis vós surdaà minha supplica?

Entanto Luiza B. . . mais tranquilla por aquellaspalavras que francas, e leaes lhe pareciam, cobrandoligeira esperança, sem com tudo poder vencer suacommoção, disse com vóz fraca:

— Perdoai, senhor, se não tenho bastante con�ançaem vós. Bem vedes a que estado me vejo redusida. . . eeu nunca aspirei a mão de um homem como vós paraminha �lha. Tancredo de *** quem vos não conhece?sois grande, sois rico, sois respeitado; e nós, senhor?nós que somos?! Ah! vós não podeis desejar para

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vossa esposa a minha pobre Ursula. Seo pae, senhor,era um pobre lavrador sem nome, e sem fortuna.

O mancebo sorrio-se, e redarguio-lhe:— Então recusais-me a mão de vossa �lha?— Oh! senhor —“tornou Luiza”— minha �lha é uma

pobre orphan, que só tem a seo favor a innocencia, ea puresa de sua alma.

— Ursula, —“disse o mancebo, voltando-se para adonzella”— pelo amor do Céo, fazei conhecer à vossamãe a lealdade dos meos sentimentos.

Então a desvelada mãe, procurando ler no coraçãodo joven Tancredo, e no de sua �lha, o sentimento,que os animava, e elevando a Deos seo pensamentopor alguns segundos guardou silencio, que ninguemusou interromper, e depois erguendo as mãos ambasao Céo, disse:

— Tomo-vos por testemunha, meo Deos, de que asminhas intenções são puras.

E acenando para os dous jovens, que a escutavamdisse-lhes:

— Aproximae-vos.

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Então Ursula ajoelhou aos pés do leito de sua mãe,e Tancredo, imitando-a, dobrou tambem os joelhos,e unidos assim, e cheios de respeito, de amor, e deveneração, aguardaram um gesto, ou uma palavrad’essa mulher, a quem o amor materno tornava n’essahora tão radiante de celeste bellesa.

E depois de uma breve pausa ella exclamou solem-nemente.

— Meos �lhos, eu os abençôo em nome de Deos.Que elle escute a minha oração, e os vossos dias cor-ram risonhos e tranquillos sobre a terra.

E depois acrescentou — Bemdito seja o Senhor!minha �lha não será mais uma desditosa orphan!

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Capítulo 9

A PRETA SUSANA

Estavam já feitos os aprestos da viagem, e Tulio, en-tanto no meio da sua felicidade parecia as vezes to-cado por viva melancolia, que se lhe debuxava norosto, onde uma lagrima recente havia deixado pro-fundo sulco. Era por sem duvida a saudade da sepa-ração, essa dôr, que a�ige a todo o coração sensivel,quem assim o consumia. Hia deixar a casa de suasenhora, onde senão ledos, pelo menos não muitoamargos tinha elle passado seus primeiros annos. Onegro sentia saudades.

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E ahi havia uma mulher escrava, e negra comoelle; mas boa, e compassiva, que lhe servio de mãeem quanto lhe sorrio essa edade lisonjeira e feliz,unica na vida do homem que se grava no coraçãocom caracteres de amor — unica, cuja recordação nosapraz, e em que [texto sumido]

Susana, chama-se ella, trajava uma saia de gros-seiro tecido de algodão preto, cuja orla chegava-lheao meio das pernas magras, e descarnadas como todoo seu corpo: na cabeça tinha cingido um lenço enca-ruado e amarello, que mal lhe occultava as alvissimascans.

Tulio estava ante ella com os braços cruzados sobreo peito. Em seo semblante transparecia um quê dedôr mal reprimida, que denunciava o seo profundopesar.

A velha deixou o fuso em que �ava, ergueo-sesem olhal-o, tomou o cachimbo, encheo-o de tabaco,acendeo-o, tirou d’elle algumas baforadas de fumo, ede novo sentou-se: mas dessa vez não pegou no fuso.

Fitou então os olhos em Tulio, e disse-lhe:— Onde vás, Tulio?

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— Acompanhar o senhor Tancredo de *** — res-pondeo o interpelado.

— Acompanhar o senhor Tancredo! — continuoua velha com accento reprehensivo — Sabes tu o quefazes? Tulio, Tulio!. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Depois de pausa, ajuntou:

— Não sentes saudades desta casa, ingrato?!— Não, mãe Susana, não me alcunheis de ingrato.

Quantas saudades levo eu de vós! oh só Deos sabequanto me pesam ellas!

— Tu!? — exclamou ella procurando lêr-lhe nofundo do coração os sentimentos, que o animavam. —Tu, não levas saudades algumas. Tulio; se as levasses,quem te obrigaria a deixar-nos?

— A gratidão —“respondeu elle com prestesa”—— A gratidão!? E não a deves à senhora, que para ti

tem sido quasi que uma mãe? não a deves à menina?e porque as deixas? é que não sentes saudades dellas.

— Oh! sinto-as, sinto-as, e muitas, mãe Susana!— Então não procures hir com esse homem, que

apenas conheces! Olha, ainda a pouco vi uma lagrimapender dos olhos d’essa boa menina, essa lagrima,

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creio que lhe arrancou do coração a noticia da suapartida. . . e tu vas-te! Quando voltarás aqui?

— A nossa separação, disse-me o senhor Tancredo,será por pouco tempo. Volto para junto de vós, mãeSusana, e a senhora não reclamará em vão os meosserviços.

— A senhora! —“replicou a velha com magoa”—essa, meo �lho, jamais reclamará os teos serviços; oueu me engano, ou tu vás dizer-lhe o ultimo adeos!

— Tulio, —“continuou”— não sabes quanto so�roquando recordo-me de que a nossa querida meninavai tão breve �car só no mundo! Só, Tulio! Quema acompanhará? quem poderá consolal-a! eu? Não.Pouco poderei demorar-me n’este mundo. Meo �lho,acho bom que não te vás. Que adianta trocares umcativeiro por outro! E sabes tu se ahi o encontrarásmelhor? Olha, chamar-te-hão, talvez, ingrato, e eunão terei uma palavra para defender-te.

— Oh! quanto a isso não, mãe Susana —“tornouTulio”— A senhora Luiza B. . . foi para mim boa ecarinhosa, o céo lhe pague o bem que me fez, queeu nunca me esquecerei de que poupou-me os mais

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acerbos desgostos da escravidão, mas quanto ao jo-ven cavalleiro, é bem diverso o meo sentir; sim, bemdiverso. Não troco captiveiro por captiveiro, oh não!troco escravidão por liberdade, por ampla liberdade!Veja, mãe Susana, se deve ter limites a minha grati-dão: veja se devo, ou não, acompanhal-o, se devo, ounão provar-lhe até à morte o meo reconhecimento!. . .

— Tu! tu livre? ah não me illudas! —“exclamou avelha africana abrindo uns grandes olhos. Meo �lho,tu és já livre?. . .

— Illudil-a! —“respondeu elle, rindo-se defelicidade”— e para que? Mãe Susana, graças a gene-rosa alma deste mancebo, sou hoje livre, livre comoo passaro, como as aguas; livre como o ereis na vossapatria.

Estas ultimas palavras despertaram no coração davelha escrava uma recordação dolorosa; soltou umgemido magoado, curvou a fronte para a terra,e comambas as mãos cobrio os olhos.

Tulio olhou-a com interesse; começava acomprehender-lhe os pensamentos

— Não se a�ija —“disse”— Para que essas lagri-132 293

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mas? Ah! perdoe-me. eu despertei-lhe uma ideiabem triste!

A africana limpou o rosto com as mãos, e um mo-mento depois exclamou:

— Sim, para que estas lagrimas?!. . . . Dizes bem!Ellas são inuteis, meo Deos; mas é um tributo de sau-dade, que não posso deixar de render a tudo quantome foi caro! Liberdade! liberdade. . . ali! eu a go-sei na minha mocidade! —“continuou Susana comamargura”— Tulio, meo �lho, ninguem a gozou maisampla, não houve mulher alguma mais ditosa do queeu. Tranquilla no seio da felicidade, via despontar osol rutilante e ardento do meo paiz, e louca de prasera essa hora matinal, em que tudo ahi respira amor,eu coria as descarnadas e arenosas praias, e ahi comminhas jovens companheiras, brincando alegres, como sorriso nos labios, a paz no coração, divagavamosem busca das mil conchinhas, que bordam as bran-cas areias d’aquellas vastas praias. Ah! meo �lho!mais tarde deram-me em matrimonio a um homem,que amei como a luz dos meos olhos, e como penhord’essa união veio uma �lha querida, em quem me re-

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via, em quem tinha depositado todo o amor da minhaalma: — uma �lha, que era minha vida, as minhas am-bições, a minha suprema ventura, veio sellar a nossatão sancta união. E esse paiz de minhas a�eições, eesse esposo querido, e essa �lha tão extremamenteamada, ah Tulio! tudo me obrigaram os barbaros adeixar! Oh! tudo, tudo até a propria liberdade!

Estava extenuada de a�ição, a dor era-lhe viva, eassoberbava-lhe o coração.

— Ah! pelo céo! — exclamou o joven negroenternecido“— sim, pelo céo, para que essas recorda-ções!?

— Não matam, meo �lho. Se matassem, ha muitoque morrera, pois vivem commigo todas as horas.

Vou contar-te o meo captiveiro.Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho

e o inhame e o mendobim eram em abundancianas nossas roças. Era um destes dias em que anaturesa parece entregar-se toda a brandos folgares,era uma manhã risonha, e bella, como o rosto deum infante, entretanto eu tinha um peso enormeno coração. Sim, eu estava triste, e não sabia a

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que attribuir minha tristesa. Era a primeira vezque me a�igia tão incomprehensivel pesar. Minha�lha sorria-se para mim, era ella gentilsinha, e emsua innocencia simelhava um anjo. Desgraçada demim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-meà roça colher milho. Ah! nunca mais devia eu vel-a. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Ainda não tinha vencido cem braças do caminho,quando um assobio, que repescutio nas mattas, meveio orientar acerca do perigo eminente, que ahime aguardava. E logo dous homens appareceram,e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira— era uma escrava! Foi em balde que supliquei emnome de minha �lha, que me restituissem a liber-dade: os barbaros sorriam-se das minhas lagrimas,e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer,julguei morrer, mas não me foi possivel. . . . a sorteme reservava ainda longos combates. Quando mearrancaram d’aquelles lugares, onde tudo me �cava— patria, esposo, mãe e �lha, e liberdade! meo Deos!o que se passou no fundo da minha alma, só vós opodestes avaliar!. . . .

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Metteram-me a mim e a mais tresentos companhei-ros de infortunio e de captiveiro no estreito e infectoporão de um navio. Trinta dias de crueis tormentos,e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessarioà vida passamos n’essa sepultura até que abordamosàs praias brasileiras. Para caber a mercadoria hu-mana no porão fomos amarrados em pé e para quenão houvesse receio de revolta, acorrentados comoos animaes ferozes das nossas mattas, que se levampara recreio dos potentados da Europa: Davam-nos aagua immunda, podre e dada com mesquinhez, a co-mida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nossolado muitos companheiros à falta de ar, de alimentoe de agua. É horrivel lembrar que creaturas humanastractem a seos semelhantes assim e que não lhes doaa consciencia de leval-os à sepultura asphixiados efamintos!

Muitos não deixavam chegar esse ultimo extremo— davam-se a morte.

Nos dous ultimos dias não houve mais alimento.Os mais insofridos entraram a vozear. Grande Deos!Da escotilha lançaram sobre nós agua e breu fervendo,

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que escaldou-nos e veio dar a morte aos cabeças domotim.

A dor da perda da patria, dos entes caros, da li-berdade foram su�ocadas n’essa viagem pelo horrorconstante de tamanhas atrocidades.

Não sei ainda como resisti — é que Deos quizpoupar-me para provar a paciencia de sua serva comnovos tormentos que aqui me aguardavam.

O commendador P. . . foi o senhor que me esco-lheo. Coração de tigre é o seo! Gelei de horror aoaspecto de meos irmãos. . . os tratos, porque passa-ram, doeram-me até o fundo do coração. O commen-dador P. derramava sem se horrorisar o sangue dosdesgraçados negros por uma leve negligencia, poruma obrigação mais tibiamente cumprida, por faltade intelligencia! E eu so�ri com resignação todosos tratos que se dava a meos irmãos, e tão rigorososcomo os que elles sentiam. E eu tambem os so�ri,como elles, e muitas vezes com a mais cruel injustiça.

Pouco tempo depois casou-se a senhora Luisa B. . . .,e ainda a mesma sorte: seo marido era um homemmau, e eu suportei em silencio o peso do seu rigor.

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E ella chorava, porque doia-lhe na alma a duresade seo esposo para com os miseros escravos, mas ellevia-os expirar debaixo dos açoutes os mais crueis, dastorturas do anginho, do cepo e outros instrumentosde sua malvadeza, ou então nas prisões onde os se-pultava vivos, onde carregados como ferros, comomalevolos assassinos acabavam a existencia, amal-diçoando a escravidão; e quantas vezes aos mesmoscéos!. . . . . . . . . . . . . . . . . . ..

O senhor Paulo B. . . morreo, e sua esposa, e sua�lha procuraram em sua extrema bondade faser-nosesquecer nossas passadas desditas! Tulio, meo �lho,eu as amo de todo o coração, e lhes agradeço: mas ador, que tenho no coração, só a morte poderá apagar!— meu marido, minha �lha, minha terra. . . . . . minhaliberdade. . . . . . .

E depois ela calou-se, e as lagrimas, que lhe banha-vam o rosto rugoso, gotejaram na terra.

Tulio ajoelhou-se respeitoso ante tão profundo sen-tir: tomou as mãos secas, e enrugadas da africana, en’ellas depositou um beijo.

A velha sentio-o, e duas lagrimas de sincero enter-138 293

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necimento desceram-lhe pela face: ergueo então seosolhos vermelhos de pranto, e arrancou a mão combrandura e elevando-a sobre a cabeça do joven negro,disse-lhe tocada de gratidão:

— Vae, meo �lho! que o Senhor guie os teos passos,e te abençôe, como eu te abençôo.

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Capítulo 10

A MATTA

Ursula, no entanto, no meio da acerba amargura dasaudade sentia um inefavel transporte de amor e erafeliz — seo amor ardente e apaixonado fora com-prehendido, sem que por seos actos o desse a perceberao homem que o merecera. Ambos esses coraçõessentiram ao mesmo tempo desabrochar-lhes a cente-lha do amor, que os abrasou. A saudade pungente dadonzela tinha pois um lenitivo — a esperança, essedom do céo que nos acompanha em todas as circums-tancias da vida.

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Tancredo, esse homem de suas loucas a�eições, eque ella tinha amado ainda desconhecido, era todaa sua vida; e por isso a saudade, a mais pungente, aprimeira que lhe tocava a alma, envenenava agoraessa fonte de praser innocente, esse manancial deventuras, que ahi havia feito nascer a chamma de umprimeiro e ardente amor.

Nunca tinha amado — na sua solidão seo coraçãoera tão puro como o de um anjo; foi esse o primeirochoque, que lhe abalou a alma, e a saudade deviacorresponder à grandesa desse sentimento. Chorava,pois, porque hia ver partir o objecto de suas maiscaras a�eições; mas no momento da partida fez umsupremo esforço sobre sua a�icção e estendeu a mãoao mancebo, que a beijou com enlevo, e perguntou-lhe com magoado acento, que bem revelava o pungirdo seo coração:

— Tancredo, quando vos tornarei a ver?O mancebo commovido por tanto amor, amor, que

era ternamente correspondido, amor, que elle em-balde tinha procurado na primeira mulher, que amou,sorrio-lhe com reconhecimento, e tornou-lhe com

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a�ecto.— Lembrae-vos, Ursula, que vos levo no coração,

que seguir-me-ha a vossa imagem, que hei de ver-vos em todos os objectos, que me circumdarem, quedeixo minha alma e meo coração — todo o meo pra-ser, minha felicidade presente, o esquecimento de umpassado amargo, as esperanças de um porvir delei-toso e cobiçado: lembrae-vos d’isto, e acreditae quebreve estarei comvosco. Contarei os dias da ausenciapelo pungir de minhas saudades, e por breves queelles sejam achal-os-hei por demais longos. Longi-quo é ainda o caminho que tenho a percorrer, mas alembrança de que um anjo me aguarda com amor, eque esse anjo sois vós, dar-me-ha azas, e estarei com-vosco daqui a meio mez. Então —“acrescentou comum acento inexprimivel”— então serei para semprevosso!

E Ursula sentia-se inquieta, como se um perigoeminente estivesse a ameaçal-a.

O cavalleiro em�m partio, e ella nada disse; e sóum soluço doído, como o de quem geme de um pezarprofundo, lhe rebentou do peito.

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Tancredo transposera já grande espaço, e Ursulaainda não mudara seus olhos humedecidos de so-bre elle, e o mancebo proseguia rapido, até que umailhota de verdura o encobrio à vista da saudosa don-zella. Então deixou o lugar d’essa tocante despedida,e, como desejosa de con�ar a alguem a dôr das suassaudades foi correndo à matta, onde tinha ouvidodos labios delle a con�ssão sincera do seo amor, elogo para ahi dirigio os passos, penetrou a matta,e lá, junto ao tronco secular, começou a derramarsentidas lagrimas. O sol, segundo sua marcha inalte-ravel, dardejava na terra seos ultimos e enfraquecidosraios, insinuando luminoso resplendores por entre asfranças do arvoredo da matta solitaria.

E Ursula soluçava com lembrança da partida deseo joven adorador, quando ao longe julgou ver douspontos fugitivos. Era Tancredo, era Tulio, ella osreconheceo, ou melhor, o seu coração reconheceo oprimeiro; e ella louca de a�ecto, que lhe requeimavao peito, estendeo-lhe os braços com delirio e com vozsufocada de novo lhe enviou seos ternos protestos.Mas elle hia ja muito avançado para ouvir-lhe essa

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voz sahida do coração.A donzella então sahio da matta; porque lembrou-

se de sua mãe, e volveo para ella; mas no dia immedi-ato, à mesma hora do crepusculo, voltou à matta, eimergida em sua meditação as vezes esquecia-se desi propria para só pensar no seo Tancredo. Soltandoas azas à sua ardente imaginação, seguia-o na suadivagação, escutava-lhe a voz no remurejar do vento,via-o no meio da solidão, e afagava-o com seos mei-gos transportes n’esses lugares onde só estavam ellae Deos. E depois de longo e profundo scismar, muitasvezes punha-se a entalhar na arvore, testemunha desua primeira ventura, o nome querido de Tancredo!tão doce aos seos ouvidos. Com tanto esmero procu-rou entalhal-o esse dia, que completamente absorvidan’esse empenho se esquecera do mundo inteiro. E onome em�m estava completo, e ella poz-se a soletral-o com um enlevo proprio da sua edade, e que só asalmas apaixonadas podem comprehender, quando osom desagradavel, e medonho de um tiro de arcabuz,desparado bem junto della, a veio arrancar a esse re-creio do espirito e a fez estremecer convulsa e dar um

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grito involuntario. Espavorida, e meia morta de ter-ror, hia ella alevantar-se, quando uma avesinha, umainfeliz perdiz, como que implorando-lhe soccorro,veio, ferida e agonisante, cahir-lhe aos pés. Movidade compaixão, desvaneceo-se-lhe por encanto o pa-vor, que o som do tiro lhe incutira na alma, e tomandoa pobresinha em suas mãos, por excesso de bondadelevou-a ao peito. Um rastro de sangue lhe nodoou osvestidos alvissimos de neve.

Nesse momento a desgraçada perdiz exalou o derra-deiro suspiro: a moça deixou-a cahir das mãos, levouestas aos olhos, e exclamou:

— Jesus! Meo Deos!É que mudo, e contemplativo, junto della estava

um homem. Os olhos, tinha-nos elle �xos sobre a don-zella amedrontada — dir-se-hia a estatua do pasmo,ou da admiração.

E Ursula, e esse homem por alguns momentos guar-daram profundo silencio; n’ella motivavam-no a sur-presa, o terror, o desgosto, que lhe causavam a phy-sionomia desse homem de tão sinistro olhar: n’ellea deleitavel contemplação desse rosto feminil de tão

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pura e ideial bellesa.E assim permaneceram, ella a recobrar coragem

para escapar a esse desconhecido que a encommo-dava; elle a contemplar-lhe as negras tranças mole-mente reclinadas sobre uns hombros de margim, asmãos diaphanas e mimosas, que lhe velavam o rosto;que divisava ser bello, como o rosto angelico de umcherobim.

Por �m a moça desembaraçou de entre as mãosas faces candidas e avelludadas, e olhou em cheiocom horror com desdem para o seo mudo compa-nheiro. Assim desdenhoso esse rosto, que ainda tãovivamente se resentia das commoções por que haviapassado o coração, era ainda mil vezes mais bello.

E esse olhar tão expressivo, o desconhecido sentio,que queria dizer-lhe:

— Hide-vos!Elle embalde tentou obedecer a essa ordem muda

de um ente tão divino, qual jamais havia visto; masquem sabe se o coração lh’o permittia?

Extranho foi o que se passou então em sua alma, eelle sentio que alguma cousa lhe abalava o fundo do

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peito; gemeo de um primeiro a�ecto, e curvou-se aoimpeto de uma paixão insensata.

E o instrumento mortifero estava-lhe nas mãos, eelle o não via; porque seos olhos estavam �tos sobrea encantadora donzella: mas ella o vio, estremeceo, eum novo grito lhe prorompeo dos labios.

Ursula hia fugir.— Em nome de vossa mãe —“exclamou o caçador,

tolhendo-lhe os passos”— não fujais, Ursula!A esta expressão a �lha de Luiza B.. �tou-o com

curiosidade: este homem tão extranho conhecia-asem duvida, e eela nunca o tinha visto! Chamou-apelo seo nome, supplicou-a em nome de sua mãe!. . . .quem era elle pois?

Elle comprehendeo tudo, e por um instante a per-turbação da sua alma transpirou-lhe no rosto algumacousa alterado. Depois arremeçou com despreso paralonge de si o arcabuz, que amedrontava a moça, evoltou para ella os olhos, como querendo dizer-lhe:

— Tranquillisae-vos!Com e�eito, esta acção de delicada civilidade um

pouco a reanimou, e quasi envergonhada de ter pa-147 293

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tenteado tão feminil fraquesa de animou procuroureassumir alguma coragem, e erguendo a fronte, inca-rou o desconhecido com uma friesa, que o perturbou.

Elle tentou fallar; mas os olhos dessa menina lheimpuzeram respeitoso silencio.

Esse homem não estava no verdor dos annos; massua physionomia, supposto que severa e pouco sym-patica, n’essa hora crepuscular, que dá certa sombra atoda a naturesa, não denunciava a sua edade. A pellesem rugas, os olhos negros e scintilantes, tinham umque de bello; mas que não attrahia. Era de estaturaacima da mediocre, esbelto, e bem conformado; eas feições �nas davam-lhe um ar aristocratico, que,quando não attrahe, sempre agrada.

Mao grado seo Ursula começou a sentir-se oppri-mida pelo olhar do desconhecido, a quem o seo dei-xava já de dominar, e cahio de novo sobre o assentotalhado no tronco. Era como se esse homem a tivessemagnetisado. A sua vista causava repugnancia, que-ria escapar-lhe; mas as forças abandonavam-na e seosbellos olhos côr de ebano estavam sobre elle �xos.

O terror, a descon�ança, a inquietação, pintavam-148 293

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se no rosto pallido e a�icto, no olhar �xo e pasmadodessa pobre moça.

— Meo Deos! —“dizia ella comsigo”— quem seráeste homem, e o que quer elle de mim?

Diversos eram os pensamentos do caçador.Uma chamma activa lhe abrasava a alma, talvez

a primeira que assim o requeimava, e bem ardentedevia ser ella; porque elle sentia no peito ondeiar-lhe,e ferver em caixões o violento fogo de uma cratera.Ainda assim, mal lhe trahia no rosto o que lhe hia lána alma. Elle deo um passo para a donzella, e ella deprompto ergueo-se, tremula de angustia e de terror,e bradou com ancia:

— Oh! quem quer que sejaes, senhor, que me que-reis?! Segui o vosso caminho, e deixae-me socegadae tranquilla.

— Meo Deos! senhora —“exclamou elle”— não voscomprehendo. Em que vos posso encommodar?!. . .

— Acabae, senhor —“continuou ella”— esta penozaentrevista. A vossa presença não só encommoda-me,como me causa susto.

— Deveras? —“interrompeo o desconhecido”— de-149 293

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veras! Ursula, porque vos causa susto a minha pre-sença, que mal vos hei feito? acaso me conheceis?

— Senhor —“tornou ella com voz supplice”— nãome védes a sahida desta matta, necessito voltar parajunto de minha mãe.

— De vossa mãe! —“inquirio o caçador comemoção”— e não foi em nome della que acabo desupplicar-vos que não me fugisseis? Ursula, talvezme perdoasseis essa desagradevel impressão, que aprimeira vista tive a infelicidade de causar-vos, sesoubesseis quem sou, e o quanto hei sido amigo devossa mãe. De vossa mãe —“repettio elle com vozum pouco alterada”— Luisa! Luisa! Quanto os annosa terão desfeito! Não sereis tambem minha amiga,quando me conhecerdes?

— Eu! —“exclamou a moça com ingenuidade”— eu,senhor! e porque? Minha infeliz mãe vergou soba in�uencia de uma sorte adversa, gemeo até hojeas dores de uma penosa enfermidade, chorou comamargura uma viuvez prematura, e a orphandadede sua �lha, e nunca um amigo generoso, ou umaalma sensivel, nunca, senhor, enchugou-lhe a lagrima

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ardente, que lhe queimava as faces.Nunca Luiza B. . . teve amigos. Zombaes, ou faltaes

à verdade.— Usula, —“tornou elle”— que prevenção é essa?

Ursula, vós me odiaes.— Não, mas não vos creio. E demais, para que me

demoraes? Sede breve, dizei o vosso intento, quequero partir.

E seos olhos, descahindo para o chão, encontrarama ave morta, que lhe cahira aos pés, e os seos vesti-dos nodoados d’aquelle sangue innocente. Estreme-ceo involuntariamente, e contrariada pela obstinaçãod’aquelle homem de tão sinistro aspecto, disse-lhecom certo tom de desespero:

— Sim, tinheis razão quando dicesteis que eu vosodiava. Sois obstinado em encommodar-me; sabeipois que me é insuportavel a vossa presença. Vedesesta avesinha? Para que a matastes? Não era ella tãoinnocente e bella? A dôr do seo coração ferio o meo,e o seo sangue tingio-me os vestidos. Esse acto deinutil crueldade faz-me aborrecer-vos.

— Senhora! —“retrucou elle”— Que infelicidade!151 293

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incorrer no vosso desagrado! mas. . . ..— Mas, senhor, —“interrompeo ella impacientando-

se”— que pretendeis?— São loucas as minhas pretenções, senhora, sim,

loucas; porque se me animasse a con�ar-vo-las, ovosso despreso hia talvez esmagar-me. Permitti queme conserve em silencio, que nada tem elle de o�en-sivo para vós.

— Pois bem —“disse ela”— guardae-o muito em-bora; mas deixe-me em nome do céo.

— Deixar-vos?!. . . oh! não, mil vezes não! E ce-dendo a um excesso de apaixonada loucura, ou deamoroso delirio, curvou-se ante Ursula, pallida dea�ictiva angustia e de antipathico horror.

— Ursula! Ursula —“continuou com accentoarrebatado”— oh! não me desdenheis, não me aca-brunheis e desespereis com o vosso rancor. Se meamardes, no meo amor encontrareis a felicidade; por-que agora sou vosso escravo. Nunca o tereis maishumilde, mais docil, acreditae-me. Nunca amei, ejulguei mesmo — louco que eu era! — julguei no meoorgulho estupido que nunca amaria mulher alguma.

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Destruistes a minha illusão. Vi-vos, e um amor apai-xonado, como um �ltro venenoso, se me derramouna alma. Nunca suppliquei, e agora eis-me supplice,humilhado na vossa presença: na presença de umamenina!

Ursula, —“continuou”— oh! pelo céo, acreditae-me.Amo-vos. Apenas ha um momento que vos conheçoe parece que ha um seculo que vos idolatro. É ardentee violento o a�ecto que nutro no peito. Menos purofôra elle, que, immenso como acabo de confessal-o, sacial-o-hia sem di�culdade. Meos escravos nãoestarão longe, muitos d’elles seguiram-me à caça:chamal-os-hia, e vós serieis conduzida em seos braços,apesar dos vossos gritos, e do vosso desespero, atéminha casa, onde serieis minha, sem terdes o nomede esposa.

Não é isto verdade?Mas não. O amor que ora desenvolvestes em meo

coração é tão ardente, quanto respeitoso. Nasceoagora, mas tanto já in�uio sobre mim, que é humi-lhado que vos peço que o não desdenheis.

Se podesseis sentir, comprehender somente, o que153 293

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ora se passa em mim. . . . . . . mais sois in�exivel! Ur-sula, quando voltardes aos vossos lares, quando, des-cançada em vosso quarto, recordardes esta scena damatta, não zombeis do homem que vos falla; por queeste amor, que me escalda o coração, hade durar emquanto eu existir.

Ursula, timida e angustiada, ouvira todo este dis-curso sem interrompel-o; mas o coração lhe estavagelado de a�ição.

— Senhor, —“disse ella com voz tremula etitubante,”— acabasteis?

— Aguardo por uma palavra vossa —“tornou o des-conhecido, �tando n’ella um olhar inexprimivel.

— Uma palavra?! — Aguardais uma palavra mi-nha? Pois bem! Abusastes por demais da minha fra-queza. Estou só, o lugar ermo, tudo vos protege, e vosanima. Se fosseis mais cavalheiro, serieis comedidoem expressões, que sempre foram tidas por o�ensivasquando ditas por estranhos, e nunca chegarieis a umaimpertinencia tam desagradavel.

E com dignidade e serenada accrescentou:— Senhor, eu devo voltar para minha casa.

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O caçador tomou-lhe das mãos, e disse-lhe:— Ao menos dizei que não me odeaes!— Sim, —“tornou a moça, procurando desprender-

se-lhe das mãos”— sim, não vos odeio; mas deixae-meem paz.

— Em nome de vossa mãe, Ursula, imploro-vos. . . .— O que senhor?— Uma só palavra, que me anime.— Oh! não, nunca —“replicou ella com energica

viveza. E depois interrogando-o com o olhar, trac-tou de empregar pela primeira vez a dissimulação, eajunctou:

— A�rmastes ser amigo de minha mãe, não o acre-ditei; fallais-me de um amor, que a meo pezar em vósdespertei, e quereis que o corresponda, tenho-me atéagora negado similhante compromisso; mas tudo issopode modi�car-se, se eu puder conhecer-vos, se forpermettido agora saber quem sois. O vosso nome?

— O meo nome! —“exclamou tristemente o caça-dor deixando cahir as mãos da moça”— Se o conhe-cesseis!. . . Não, Ursula, eu quero ser amado, aindamesmo desconhecido.

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E um assomo de dor, e uma onda de frenetica raiva,baralharam-se na alma do desconhecido, e marulha-das, e ferventes, vieram re�ectir-lhe no rosto. E asfeições tomaram expressão di�cil de descrever: os la-bios agitaram-se convulsos, os olhos faiscaram fulvobrilho, que se extinguio em breve. Um doloroso abat-timento, que denunciava talvez a recordação penosae amarga de algum acontecimento anterior, lhe em-pallideceo o rosto. Elle suspirou, e de novo objectou:

— O meo nome, Ursula, mais tarde o sabereis!Agora hide-vos!Rogae ao veo, —“accrescentou”— meiga, e inno-

cente donzella, rogae ao ceo para que vos possaesquecer; porque se o meo amor proseguir as-sim, extremoso, indomavel, apaixonado, haveis deser minha; porque ninguem me desdenha impune-mente. Ouvis? —“disse em tom de ameaça, e de-pois em meia supplica ajuntou”— Oh! por Deos,não troqueis a ventura pela dor, e quem sabe?pelo!. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Esta ameaça horrivel, dicta com voz alterada, e emtaes horas, irriçaram os cabellos da moça, que �cou

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pallida e queda de horror.— Hide —“concluio elle.E ella toda agitada e confusa deixou a matta, pro-

mettendo a si mesma não voltar jamais àquelle lugar.E o caçador seguindo-a com os olhos e com o co-

ração, quando a moça desappareceo n’uma volta docaminho, com olhos arrasados de lagrimas, disse:

— Mulher! anjo ou demonio! Tu, a �lha de minhairman! Ursula, para que te vi eu? Mulher, para quete amei?!. . . . Muito odio tive ao homem que foi teopai: elle cahio às minhas mãos, e o meo odio não�cou satisfeito. Odiei-lhe as cinzas; sim odiei-as atéhoje; mas triumphaste do meo coração; confesso-mevencido, amo-te! Humilhei-me ante uma creança, quedesdenhou-me e parece detestar-me! Has de amar-me. Humilhado pedi-te o teu a�ecto. Maldição! PauloB. . . estás vingado!

Tua �lha opprime-me com o seu indi�erentismo,e esmaga-me com o seo despreso, como se me conhe-cera!

Mulher altiva, has de pertencer-me ou então o in-ferno, a desesperação, a morte serão o resultado da

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intensa paixão que ateaste em meo peito.

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Capítulo 11

O DERRADEIROADEOS !

Ursula ainda tão nova começou a vergar sob o pezode tantas commoções encontradas. Pallida e abattida,similhava o lirio do valle, que a calma emmurcheceo.Era debil para tão grandes embates.

Na sua solidão o homem tinhahido pertubar-lhea virginal puresa do coração para dar-lhe uma novaexistencia — o amor; e depois ainda o homem, in-

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vejoso d’essa momentanea e fugaz felicidade, veioroubar-lhe a tranquilidade do espírito, e envenenar-lhe a suave esperança de uma vida risonha e ventu-rosa, expremendo-lhe no coração a primeira gotta defel do calix que ella devia libar até às fezes.

Ella, conturbada e a�icta, recolhia-se em si parameditar nas expressões ardentes e ameaçadoras dohomem da matta, que a amedrontavam, e que a gela-vam até o fundo da alma.

E quem será elle? Deos meo! Por que fatalidademe vio, e disse-me que me amava com amor ardente eintenso, que terá a duração da sua vida! Presagia-meo coração a�icto, que esse homem e o seu amor mehão de ser funestos!

Uma voz interna diz-me que ahi está uma grandedesgraça. Oh! esse homem insanguentou os meosvestidos, que eram tão alvos! Cada nodoa desse san-gue, que tanto me horrorisa, parece-me que serãooutras tantas lagrimas de amargura, que tenho deverter.

Oh! meo Deos!. . . meo Deos, permetti, Senhor, queeu me engane, e que jamais o torne a ver.

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Tancredo! livrae-me d’esta apari-ção ou d’este ente repulsivo e ameaça-dor!. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Tancredo! aonde estás a esta hora? que fazes, quenão me vens proteger contra a insolencia e as ame-aças desse caçador desconhecido? O teo amor hadeamparar-me. Oh, sim, o teo amor me dará forçaspara destruir suas loucas esperanças e esquecer suasterriveis ameaças.

E ella feixou os olhos, mas na mente se lhe �guravaconstantemente aquelle rosto severo, ardente, apai-xonado, e ameaçador, aos ouvidos lhe retumbava osom da sua voz: — era como se ainda o visse, ainda oouvisse, e ella desanimada e sem forças procurava des-vanecer essa visão infernal. Depois de algum tempode lucta interna, exclamou: Oh! que homem tão ou-sado, cujo olhar sinistro me amargurou a alma!

Appareceo a noite rebuçada no seo manto de es-curidão, e a donzella suppoz encontrar o socego dastrevas e no somno; mas tremula, e agitada no seuleito, invocava embalde o somno, que o phantasmase erguia mudo e impassivel, e a sua mente alucinada

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dava-lhe movimento e voz, e elle blasphemava, e ame-açava, e sorria-se com sarcasmo. Os olhos chispavamfogo, e os labios agitavam-se convulsos e os membrose o tronco pareciam cobertos de sangue.

E ella revolvia-se no leito, e o corpo tremia-lhe e osuor corria-lhe, e o peito oppresso ofegava: era umpesadelo insuportável!!!!!!!!!!!!!!

A noite hia já alta, a moça entrou no quarto de suamãe; hia talvez revelar-lhe o que se havia passado namatta, descrever-lhe as feições do desconhecido, o ac-cento de sua voz, para ver se descobria indicios, quea illucidassem sobre esse terrivel adorador, ou ao me-nos procurar conforto no coração materno, quandocom redobrada amargurada esta disse-lhe:

— Animo! minha querida �lha, não chores: osmeos so�rimentos vão já acabar. Sinto aproximar-meda sepultura! mas Deos me hade permittir ainda ver-te feliz. Sim, feliz! porque Tancredo te hade de dara ventura, que tanto hei pedido ao ceo para a minhaUrsula.

A moça, então traspassada de dor, olhou para essainfeliz mulher a quem tão ternamente amava, estre-

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meceo de angustia. Luisa B. . . ., não poderia já aspirarmuitos dias de vida, e essa lembrança fez-lhe esque-cer sua desagravel aprehensão, e até mesmo seo amorapaixonado para entregar-se toda à dor de uma eternaseparação, que ella antevia como irrevogavel.

E debruçada sobre o collo materno, a donzella der-ramava sentido e terno pranto que vinha lá do fundoda alma, onde havia dor, mil vezes mais cruel, que apropria morte.

Ella feixava aquelles olhos alquebrados, que malpodiam já acareciar os seos, aquelles labios semi-mortos, que fracamente exprimiam a ternura mater-nal, aquellas mãos hirtas, e regeladas, que só por so-brehumano esforço erguiam-se ainda para abençoal-a, e o coração partia-se-lhe de angustia.

Brilhou al�m a alvorada, que espancou essa noitetão longa, e de tantas dores. Luisa B. . . recobrou�cticios signaes de melhoras.

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Ursula, mais reanimada, tinha seccado o seo pranto,e feliz pelas melhoras de sua mãe procurava esquecero desconhecido da matta, cuja entrevista desejavarelatar à mãe; mas aguardava para esse e�eito um diaem que esta se sentisse mais forte e vigorosa.

Ursula receiava incommodal-a com os seos receios,aliás tão bem fundados. Tinha razão — Luiza B. . . .no a�ictivo estado em que se achava, morreria ins-tantaneamente vendo a �lha querida de seo coraçãoameaçada por um homem, cuja feresa desenhava-seno seo aspecto.

Sim, Ursula tinha razão, Luiza não poderia resis-tir a esse novo embate: era demais para uma fracamoribunda.

E alguns dias tinham-se já passado depois dessanoite de penosas commoções, e Luisa B. . . . era aindaa mesma debil, esqualida enferma, mas terna, e desve-lada mãe, e parecia mesmo na aproximação da morteredobrar de a�ectos e de caricias, ameigando comternura extrema sua inconsolavel �lha, toda pranto esaudades.

Um dia, pore, Luiza pareceo recobrar forças, que a164 293

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muito a haviam abandonado, e a �lha vio com prazererrar-lhe nos labios um sorriso animador. Acreditouque suas lagrimas tinham tido o poder de arrancar amãe às mãos da morte, e prostrada rendeo graças aoSenhor.

Pobre Ursula!. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Era esse o dia destinado, e ha tanto esperado, para

ella informar sua mãe sobre a entrevista da matta, ecomeçava já a dispol-a para esse �m, quando batte-ram à porta.

Ella levantou-se precipitadamente, e foi abril-a: eraum escravo, que inquerio:

— A senhora Luiza B. . . ..?— É minha mãe —“tornou a moça”.— Fazeis-me o favor de entregar-lhe essa carta,

minha senhora.— Sim —“tornou Ursula, e acrescentou:”— Não se

poderá saber d’onde veio?O negro, sem dar resposta, saudou-a humilde e

respeitosamente, e picando o cavallo, seguio a trotelargo pela immensidade do campo.

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A moça voltou para junto de sua mãe, e apresentou-lhe a carta, tremula e desasocegada.

— Uma carta! —“exclamou esta.”— E d’onde viráella? Lêde-a, minha �lha.

Ursula quebrou o sello da carta, e reprimindo suainquietação, começou n’estes termos:

Luiza, minha cara irman.

— É de teo tio —“exclamou a mãe, confusa, eassustada.”— Que me quererá?!

Ursula comprimio com as mãos a fronte, que su-bita dor accomettera. Uma vertigem lhe obscureceoa vista; mas acalmando-se-lhe o natural sobresalto,continuou a lêr:

É necessario que nos vejamos ainda uma vez na vida,e conto que annuirás a este desejo, ou antes supplicade teo irmão.

Minha irman! minha Luiza! muito me tens a per-doar; porque gravissimo é o mal que te hei feito;

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Maria Firmina dos Reis Ursula

mas és boa, teo coração não pode alimentar odio poraquelle que foi socio dos teos jogos infantis, e que najuventude te amou com essa doçura fraternal, quesó tu comprehendias; porque eram gemeas as nossasalmas.

Luisa, minha doce irman, porque me tornei eu máue odioso a meos proprios olhos depois que tomastePaulo B. . . por esposo? Porque? nem o sei eu! Tal-vez o desejo que sempre tive de dar-te uma posiçãomais brilhante, comomuitas vezes te �z sentir. Malo-graste, no entretanto, as minhas intenções, esposandoesse homem, que. . . .

Esse foi o teo crime, crime que eu nunca te haveriaperdoado, se o céo se não incumbisse desta conversão,que sem duvida te hade admirar; porque a mimmesmo me admira.

O mais dir-te-hei vocalmente; porque só deve estapreceder-me uma hora. Adeos.

Teo a�ectuoso167 293

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FERNANDO.

— Meo Deos! —“exclamou a viuvaa de Paulo B. . .apoz alguns momentos de silencio”— Que quer di-zer isto? Esta conversão! oh! não o comprehendo.Ursula, minha �lha, não sei porque aperta-se-me ocoração à aproximação d’essa entrevista. Fernando,meo irmão! o teo odio ainda não estará vingado?!

Mas —“continuou a pobre mulher”— elle me fallade perdão: Deos! será possivel que se haja arrepen-dido, e que o meo so�rimento lhe tocasse o coraçãoimpedernido?!

— Duvido,minha mãe —“objectou Ursula”— duvido.Para que vem elle perturbar o nosso socego?

E entrou a scismar sobre tão inexperado e estra-nho assumpto. Fallava em socego! como se ella ogozasse ha dias! Depois dessa desgraçada entrevistada matta, sentira um só dia o que era tranquillidade?Não, por certo. Mas, Fernando P***! que vinha elleahi fazer? Ursula tinha horror a simelhante parente,e implorava ao céo o arredasse sempre da sua vista.

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Graves suspeitas pesavam sobre o commendador, e ainfeliz orphan não podia lembrar-se delle sem temor.

E Luisa tinha suas razões; por isso agora mais quenunca estava a�icta, e inquieta, mas Ursula paratranquilisal-a, disse:

— Porque estaes assim a tremer, minha queridamãe? Que mal vos poderá elle fazer alem dos que játem feito? Elle vos falla em perdões, tracta de umaconversão. . . ..

— Operada pelo ceo, que a elle mesmo admira! —“tornou Luiza, interrompendo sua �lha, que cada vezse sentia mais inqueita.” Esta conversão assemelha-sea todos os actos de sua vida: esta conversão deve nosfunesta!

— Pensaes isto, minha mãe? —“interrogou a pobreUrsula pallida e convulsa.”

— Sim, minha �lha, e quasi que t’o posso assegurar.— Sancto Deos! —“exclamou Ursula precipitando-

se para fóra do quarto de sua mãe, e cobrindo o rostocom as mãos ambas”

O caçador desconhecido acabava de entrar semannunciar-se.

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Maria Firmina dos Reis Ursula

— Fernando! —“exclamou Luiza, tornando-se li-vida, e tiritando de frio.”

— Luiza! Luiza, minha querida irman! —“bradou ocommendador, correndo para ella, e unindo-a ao seocoração.”

Este brado terno e commovido revocou a infelizmulher à uma vida, que ella já julgava extincta, eesquecendo por um instante todo o amargor, queFernando lhe derramára no coração, sorrio-se parao irmão que amára, e por momentos brilhou-lhe norosto a alegria, e disse:

— Meo irmão!E Fernando cedeo então ao mais bello transporte

da sua alma, ao unico sentimento virtuoso, que Deosahi lhe implantára, e que embalde tinha luctado porabafar, ou destruir.

Fernando combattia a desoito annos o poder desseamor fraterno, e seo orgulho conseguio por algumtempo, o que o coração repugnava, o que a razão,e a intelligencia condemnavam, e o que elle sentiadolorosamente; porque só n’esse a�ecto lhe estava aventura de toda a sua vida.

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E para vencer-se obstinadamente evitava a vista desua irman, a que não poderia resistir, para bem saciara sua vingança, para bem �agelar-se, �agelando-a nasua desgraça.

Fernando tinha vivido solitario, e desesperado comessa luta terrivel do coração com o orgulho: e essesdesgostos intimos, que elle proprio forjava, o tinhamembrutecido, e tanto lhe afeiaram a moral, que eraodiado, e temido de quantos o praticavam ou conhe-ciam de nome.

Elle tornára-se odioso e temivel aos seos escravos:nunca fôra benigno e generoso para com elles; poremo odio, e o amor, que lhe torturavam de continuo�seram-no uma féra — um scelerato.

Nunca mais cansou de duplicar rigores às pobrescreaturas, que eram seos escravos! Aprasia-lhe osso�rimentos d’estes; porque elle tambem so�ria.

Eis ahi pois a alma implacavel na maldade do irmãode Luiza.

E Ursula! onde estava ella?Pobre menina! Correo sem tino, e sem consciencia

do que fazia, porque acabava de reconhecer em seo171 293

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tio o caçador, cuja voz, e cujas expressões não podiamser esquecidas. Seo aspecto, suas ameaças, seo amorviolento e lebidinoso já o tornavam repellente e agoravia nelle Fernando P. . . , o perseguidor de sua mãe etalvez o assassino de seo pae!. . . .. O coração pulsava-lhe com vehemencia — parecia querer estalar.

Comprehendeo toda a extensão do perigo emi-nente, que estava sobre sua cabeça. Sua mãe poucopoderia viver, Tancredo estava ausente. O commen-dador hia triumphar, já não havia duvida. Oh! essaideia era horrivel!

Ursula correo louca por algum tempo, ora invo-cando a morte, ora maldizendo a hora de seo nas-cimento, até que a�nal, vencida por tão violentosembates, cahio em uma prostração morbida, d’ondea preta Susana a veio arrancar para dizer-lhe:

— Hide, hide, que minha senhora lhe quer falar.Ah! ella não pode tardar.

E abafou-lhe a voz copioso pranto.Ursula abrio os olhos, estremecendo, e perguntou:— Que me queres?

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Maria Firmina dos Reis Ursula

E reparando que a escrava chorava, tornou-lheenternecida:

— Pois que, Susana, tu tambem choras?!A velha africana pegou-lhe da mão, e disse:— Acompanhae-me, vossa mãe está a morrer.Ursula exclamou fóra de si:— Oh! não, mentes, não pode ser! Tu te enganaste,

Susana, não é verdade?Susana tomou-a nos braços, e apontando para o

leito da moribunda:— Vede-a. Ella vos quer fallar.Luiza B. . . estava só: seo irmão tinha-lhe já dicto o

derradeiro adeos, ella agora necessitava fallar a sua�lha — desabafar com ella e dar-lhe o ultimo osculomaternal!

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Capítulo 12

FOGE!

Aproxima-te, minha pobre �lha, —“exclamou a infelizmãe com voz fraca e arrastada”— ah! que desgraçadaentrevista!

— Bem mo presagiara o coração!E as lagrimas começaram a cahir-lhe a dous e dous.— Baralham-se-me as ideias, minha Ursula, —

“tornou-lhe a mãe, em cujo rosto se pintavam já os in-dicios da morte”—talvez não me comprehendas bem;mas escuta-me. Meo irmão veio abreviar os instantes,que ainda me restavam para te amar, e proteger-te

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contra os seos caprichos! Sabes, minha �lha, o quequer esse homem?

E um tremor convulso agitou os membros da desdi-tosa mãe, que ainda na sua agonia velava pela infelizorphan.

A �lha, a desvelada �lha, tomou-a nos braços, unio-a ao seo coração, orvalhou-a com as suas lagrimas, esu�ocadas pela dôr lhe bradou:

— Oh! minha mãe. . . minha querida mãe, que foique vos fez esse homem malvado?

A pobre mulher não pôde retrocar-lhe, feixou osolhos, e parecia que de todo lhe faltava a vida:

Ursula gritou, pedio socorro, e ao seo pranto doido,só teve por echo o pranto de Susana!

Luiza tornou a si d’essa penosa e prolongada syn-cope, porque Deos quiz que uma vez ainda ella falassecom a sua �lha, por isso ella recobrando um brevealento; mas já com os olhos amortecidos e vidrados,e com a voz pausada e abafada, que a custo se lhedeslocava dos labios, disse:

— Minha �lha querida. . . minha Ursula, paraque te dei essa vida?! Ah tu que eras o encanto

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dos meos dias. . . tu, a alma da minha existencia. . .Oh! meo Deos! Senhor, dae-me se quer poucosdias mais de vida para protegel-a, para amparal-a. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

E o pranto doloroso embargou-lhe a voz.— Oh! não choreis, minha mãe, pelo céo —

“exclamou a pobre moça a�icta por tantas dores”—Oh! não choreis!

— Se soubesses minha �lha. . . —“hia a dizer a mi-zera agonisante.”

— Tudo sei, minha querida mãe —“interrompeo amoça, torcendo as mãos de desespero.” Sei tudo, ellediz que me ama, e que o seo amor ninguem desdenhaimpunemente.

— Ouviste-o em quanto me atormentava pela ul-tima vez?

— Oh! não! —“tornou Ursula”— esse homem mehorrorisou, e eu fugi d’elle.

— E entretanto sabes que elle quer desposar-te?— Disse-m’o na matta, quando me annunciou seo

amor apaixonado. Mas perdoai-me de vos não terainda relatado esse triste acontecimento da minha

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vida. Via-vos tão debil, tão desalentada. . . que menão atrevia a dar-vos esse golpe. Uma tarde, não hamuito, estendi o meo passeio até à matta proxima, eahi meditando sobre as promessas de. . . . . . . . . . . . . . . ..

Ursula enrubeceo, e a voz sumio-se-lhe dos labios.Depois de leve pausa continuou:— Esqueci-me das horas, o tempo foi passando, e

só ao cahir da noite é que dei fé de mim e tracteide voltar. Nesse comenos ouvi o estampido de umaespingarda, e uma pobre perdiz que, ferida, veio comopedir-me socorro. Acolhia-a ao seio; mas nem bemo havia feito, que dei juncto a mim com um homem,que me �xava com olhos sinistros.

Tomou a donzella algum alento, e só depois de al-guns minutos é que pôde relatar à sua moribundamãe a sua fatal entre-vista. Terminada que foi a nar-ração acrescentou — Por ultimo cobrei animo e quizfugir-lhe; mas elle implorou em vosso nome, e euouvi-o!

Louca, louca, que eu fui, tinha diante dos olhos ocommendador P***, o perseguidor de minha mãe, e. . .

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Maria Firmina dos Reis Ursula

— O assassino de teo pae, minha Ursula —“interrompeo Luiza B. . . com inde�nivel amargura.”

— Será possivel? —“exclamou a moça attonita.”— Sim —“tornou ella”— acaba de confessar-m’o

n’um transporte, que diz de vivo arrependimento.— Oh! que horror! —“disse Ursula levando as mãos

ao rosto livido de pavor.”— E diz que loucamente te adora, e quer compensar-

te com o seo nome, e com a sua fortuna dos malesque nos ha feito!. . .

— Que insulto nos faz o commendador — o assas-sino de meo pae!!!

— Silencio, minha pobre �lha! — Agora escuta-me:são estas talvez minhas derradeiras palavras, pesa-as bem. Não chores, não, minha �lha, não chores,se queres ainda ouvir-me por um instante. Bem seiquanto te é penosa esta dura separação; mas tarde,ou cedo, ella devia chegar, e tu deves resignar-te, eaproveitar o tempo, que urge.

Fragil, e já sem forças, eu vi Fernando à cabeceirado meo leito como se fosse anjo do exterminio a fallar-me de cousas, que só me poderiam abreviar os instan-

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tes. Conheci que chegava o termo dos meos dias, elletambem conheceo, e, com quanto esta ideia, apesarda duresa do seo coração, lhe fosse amarga, elle com-tudo deixou-me à pressa hir à cidade de *** dondedeve voltar amanhan.

Fernando voltará aqui com um sacerdote, que hadeabençoar, em presença deste leito de agonia, a uniãoforçada da �lha de Paulo B. . . , com o seo assassino!

— Oh! não. . . nunca, nunca! —“bradou a donzellafóra de si

— Sim, nunca —“replicou a pobre moribunda apro-veitando suas ultimas forças; mas um novo desmaio,seguido de violentas convulsões reappareceo, e seorosto tornou-se mais esqualido, e as feições mudadase o suor gelado da morte mostrou-se.

— Meo Deos! meo Deos! —“exclamou Ursula noauge da mais pungente a�ição—”: oh! vós Senhor,que sois bom, e que podeis tanto, restitui-lhe a vidaainda em troco da minha! E cahio sobre o corpo jámeio gelado da infeliz mãe.

Luisa de novo abrio os olhos para dar um ultimoadeos à �lha, de suas adorações, e por um exforço

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derradeiro, disse-lhe:— Ursula, minha �lha, teme a colera de Fernando;

mas sobretudo teme e repelle seo amor desenfreadoe lebidinoso.

Meo Deos! perdoae-me se pecco nisto. . . .Aconselho-te. . . . que fujas. . . .Foge. . . minha. . . �. . . lha!. . . . fo. . . ge!. . . .Foram suas ultimas palavras a custo arrancadas e

entre-cortadas pela morte.Então Ursula, a pobre orphan, ajoelhou aos pés do

leito, e volvendo em seos braços o corpo inanimado,com seos labios, tremulos de dor, tocou os labios friose inertes de sua mãe, tentando, embalde, transmittirao coraçãomaterno o halito ardente, que a animava.

Mas quando voltou à realidade, quando teveplena consciencia de que estava só, e entregueao rigor da sua sorte, quando pôde acreditar quesua mãe já não existia, então prorompeo em la-grimas, e estorceo-se pelo chão, e agitou-se comouma possessa, porque as grandes e profundasdôres do coração só acham alivio na expansão

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illimitada da dôr, e na fadiga do corpo e do espi-rito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..

Ao romper do seguinte dia via-se um cadaver quasisem acompanhamento, que hia ser inhumado no ce-miterio de Sancta Cruz.

Era o da infeliz paralytica Luiza B. . . .

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Capítulo 13

O CEMITERIO DESANCTA CRUZ

Era uma d’essas tardes, que parecem resumir em siquanto de bello, de luxuriante, e de poetico ostentao �rmamento no equador; era uma d’essas tardes,que só Bernardin de Saint-Pierre soube pintar nodelicioso Paulo e Virginia, que deleita a alma, e atransporta a essas regiões aereas, que só a imaginaçãocomprehende, e que divinisando as nossas ideias, nos

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torna superiores a nós mesmos.Era pois uma dessas tardes em que o sol no seo

descambar para o accaso recebe mil e cambiantescôres, invejadas pela palheta dos Raphaeis, e quese confundem com o sorriso da triste amante, a lua,que resurge pallida na orla do horisonte. Os ultimosraios de um sol vivido misturavam-se com os raiosprateados de uma lua de agosto.

E na ampla solidão dos campos, onde se espelha-vam as harmoniosas despedidas do rei do dia e ofrouxo brilho da deosa caçadora, mais poetica magiadifundia no espirito d’aquelle que a essa hora encan-tadora e melancolica os atravessasse com o coraçãotranquillo.

Silencioso e ermo estava então o cemiterio deSancta Cruz, e só o vento, que silvava entre o arvo-redo ao longe, e que mais brando gemia tristementen’essa cidade da morte, é que quebrava a solidão mo-notona e impotente d’esse lugar do esquecimentoeterno!

Esquecimento! Encontral-o-hemos acaso? Essasdores, que nos retalham o coração, serão por ventura

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esquecidas, dormirão acaso no fundo do sepulchro?Quem sabe?! Quem nol-o poderá a�rmar!? Deos. SóDeos o sabe, e os seos arcanos são incomprehensiveis.O morto dorme o somno eterno, e a sua campanha émuda, como os seos labios!

O sepulchro recebe o segredo do morto, e guarda-o,e o não revela!

E o que vive, diz:O morto repousa sob a lousa, seo corpo reduz-se a

terra, e a paz e o esquecimento das dôres humanas,que elle ha tanto anhelava, lhe o�erece a morte.

Oh! passam-se os seculos, e elle nãovolve! É sempre mudo, e frio como aterra, que em borbotões se derramou sobreelle!. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..

Simples e quasi nú era esse cemiterio de SanctaCruz — como devera ser a ultima morada do homem.

A vaidade não tinha franqueado o seu liminar; ahinão haviam mausoleos, nem �oreadas campas, masuma capellinha singela e pobre e a cruz com os seosbraços destendidos, protegendo as cinzas dos queeram pó, e denunciando que na vida seguiram a su-

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blime religião do Cordeiro Cruci�cado. Alem d’issouma ou outra arvore, e hervas rasteiras cobrindo oterreno e invadindo tudo.

A estrada, que hia a Sancta Cruz, abria-se aos pésdesse lugar de tão saudosas recordações.

Ursula, a essa hora do crepusculo, desatinada portantas dôres, depois de vagar incerta no caminho,que queria seguir, tinha em�m penetrado no ambitopavoroso, que encerrava os restos de sua mãe.

De joelhos beijou a terra humida, e ainda revoltapelo alvião: e o pranto amargo, que lhe innundava asfaces, e o soluçar magoado, que vinha lá dos abysmosde sua alma, eram a mais sincera expressão da suador — e a mais grata prece ao altissimo.

Que soledade a sua! Entregue agora a toda a forçade um destino, cuja duresa começava a experimentar,no começo dos seos annos, ella não podia ter animopara encaral-o sem tremer.

Que lhe restava agora sobre a terra? um amorardente e apaixonado, ternamente correspondido;;mas que a esta hora, ignorando toda a sua angustia,todo o perigo, que a ameaçava, estava longe de a

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poder salvar, e amparar contra as furias de Fernando!Pobre e desditosa Ursula!. . . era essa a unica ven-

tura que lhe restava — o único élo, que ainda a prendiaà cadeia da vida!

Mas a misera transida de dôr, no excesso de suaintima e irremediavel magoa, esqueceo o seo amor, eaté mesmo a odiosa imagem do commendador. A in-consolavel �lha chorava a perda irreparavel e eternade sua querida mãe!

No fundo desse sepulchro tão frio e tão silenciosolhe estava a alma!

Ella beijava o pó da supultura, e um pranto sentidocahia sobre essa terra, e �ltrando-se, hia como quedespertar do somno eterno aquelle coração irregoladopela morte, e que tanto amor lhe havia tributado.

E a lua melancholica e pallida, lançando uma chuvade prateados raios sobre o cume das arvores, e sobre aherva do cemiterio, e branqueando os braços negrosda cruz, juncto do qual estava a sepultura de LuizaB. . . . e a dolorosa donzella ajoelhada, dava a essequadro mil encantos de sublime poesia. Os olhos dadonzella levantavam-se para esse sagrado estandarte

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da Fé; porque o coração procurava um auxilio do céo;mas logo a cabeça pendia para a terra, e os labiosroçavam o pó da campa.

Depoisa dôr — mais viva, mais dolorosa, e in-tima conturbou-a; seos membros tiritaram, a vistaobscureceo-se-lhe, e um gemido sahio do imo peitointenso e dolorido:. . . . era como se nelle lhe viesse avida. Ursula cahio desmaiada.

Infeliz donzella! Porque fatalidade vio elle essehomem de vontade ferrea, que era seo tio, e que quizser amado?! Esse homem, que jamais havia amadoem sua vida; porque a escolheo para victima de seoamor caprichoso, a ella que o aborrecia, a ella a quemelle tornára orphan, antes de poder avaliar a dor daorphandade? a ella que amava a outrem, cujo nomedevia conhecer; porque mais de uma vez o vira notronco da arvore, enlaçado com o de Ursula, a ellaque toda a sua alma, toda a sua vida pertencia agoraa esse joven cavalleiro?!

A pobre donzella, assim desmaiada, similhava a�or do prado, que murchou, porque o tufão da tarde aarrancou da haste: e ninguem lhe prestava o minimo

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soccorro, e Deos somente a via, e avaliava a grandesadas suas dores.

O sol tinha de todo desaparecido na extrema dohorisonte, e a luz ainda tibia da lua derramava vagaclaridade.

O silencio tornava-se mais profundo, quando umrumor longiquo começou a interrompel-o: mais tardeera como o tropear de cavallos que para ali se diri-giam.

Ursula nada ouvia, e se o tivesse ouvido, seo cora-ção morreria de pavor. Esse tropear de cavallos emdemanda do lugar em que se achava, ella julgarriaser o anuncio da má vinda de seo tio, que a vinhaperseguir, augmentando por ess’arte o so�rimentoda sua alma.

Mas ella, involvida n’esse torpor, que se assemelhaà morte, não tinha consciencia do que lhe hia emtorno, nem da propria existencia.

Pararam os animaes junto à estacada de madeira,que cercava a morada dos mortos, e dous homenspenetraram o recinto silencioso.

A lua se mostrava toda e prateava-lhes as faces188 293

Maria Firmina dos Reis Ursula

nobres e altivas, e essas frontes estavam innundadasde suor, e uma d’ellas era pallida, e branca; porque ocoração gemia sob o peso de amargas commoções; ea outra negra como o aseviche, mas tambem abatidapor profundo pesar.

Estes homens apearam-se com prestesa, atarama uma arvore as redeias de seos ginetes, e de umsalto, cada qual o mais rapido, invadiram a moradado somno eterno.

E juncto à cruz lobrigaram o vulto de uma mulherestendida por terra.

— Eil-a! —“exclamaram a um tempo ambos elles e oque era amante, o que sentia no coração referver-lheum amor estremecido, ajoelhou ante a bella desgra-çada, e tomando-a nos braços, exclamou:

— Ursula!. . . Ursula!. . . .Então essa mulher, que no excesso de sua a�ição

elle julgára morta, reanimando-se pouco e pouco aocontacto de seo corpo, desatou um gemido profundoe dolorido.

— Louvado seja o Senhor Deos! —“exclamou Tan-credo, a quem sem duvida já o benigno leitor terá

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reconhecido.”— Sim —“ajunctou Tulio”— bendicto seja o Senhor,

que proteje a innocencia! Ella vive, senhor, e serávossa.

— É verdade —“disse o joven Tancredo, estreitandoem seos braços a mulher de suas a�eições.”— Oh!Tulio, quanto sou feliz. . . ella vive para mim! — E denovo chegou-a ao coração.

— O tempo urge, —“observou Tulio, que menosembevecido que o cavalleiro, receiava talvez algumfunesto acontecimento”— é preciso, senhor, partirincontinente.

— Tens razão, Tulio; mas Ursula está tão debilitada,que receio não possa supportar as fadigas de umaviagem, que, demais, não pode ser vagarosa.

— É possívelque torne a desmaiar, ou que este des-maio, que ora está a terminar, se prolongue muito;mas senhor, os vossos cuidados revocal-a-hão à vida.Lembrae-vos do que nos disse mãe Susana.

— Sim, —“tornou Tancredo”— mas suppões, Tu-lio, que eu trema com a lembrança d’esse homem?Não. Eu só receio que o estado de saude desta infeliz

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menina peiore, ou venha a perigar por uma viagemimprudente, e que só pode revelar pouco animo daminha parte.

Depois curvou-se sobre a moça, e chamou-a. Essavoz amada lhe echoou na alma.. Ursula abrio os olhos,e reconheceo Tancredo.

— Sois vós? —“disse n’um transporte inde�nivelde amor e de esperanças.”— Oh! então é verdade queDeos escutou as minhas supplicas?!. . . Tancredo, emnome do céo salvae-me!

— E o que receiaes, prenda do meo coração? —“interrogou o mancebo, revendo-se nos olhos della.”

Então Ursula levantando-se com impeto, porquetinha despertado completamente do doloroso torporde suas faculdades, olhou em torno de si, e exclamou:

— No cemiterio!!. . . E seos olhos exprimiram pa-voroso enleio.

— Eu no cemiterio! —“tornou após breve pausa,e um pranto sentido, mas já menos desesperado sedesprendeo de seos olhos, e ella soluçou:

Minha mãe!. . . minha mãe! — Tancredo, ella já nãoexiste!. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..

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E aquelles dous corações, unidos pelo amor, orarampelo descanço eterno de Luiza B. . .

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Capítulo 14

O REGRESSO

Agora é preciso sabermos como Tancredo, de voltade sua viagem, pode saber onde estava Ursula, e oque lhe havia acontecido.

Dominado unicamente pela ideia de revel-a, o man-cebo correo apressadamente, e quasi sem descanço,logo que terminou na comarca de *** a missão deque o haviam encarregado, e que tão penosa se lhetornou, depois que conheceo Ursula; mas Tancredomal podia prever quantas dores amarguravam a almada pobre donzella.

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Maria Firmina dos Reis Ursula

Entretanto raiou o dia apetecido, e que devia leval-o para junto de sua joven desposada, e nesse dia ocoração arfava-lhe, ora com um arrebatamento apai-xonado, ora com um triste desasocego, e elle enter-rava as esporas nas ilhardas do brioso animal, que oconduzia, e redobrava o ardor de sua carreira.

E na sua impaciencia a distancia parecia-lhe im-mensa.

— Tulio, —“exclamou Tancredo vendo que fugiamas horas”— será possivel que ainda hoje deixemos dechegar à sua casa?!

Tulio nada respondeo, e parecia não tel-o ouvido:com e�eito, o negro scismava profundamente; porquea aproximação d’aquelles lugares trazia-lhe mais deuma recordação.

— Não me ouviste, meo bom amigo —“continuouTancredo.”— Tulio, quero vel-a hoje, agora mesmo senos for possivel. Ah! não sabes como a amo. . . Ella étão bella. . . o sorriso nos seos labios é como a gotado orvalho no calice d’uma �or.

— Tulio, apressemos os cavallos.

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— Morreriam, senhor —“tornou Tulio arrancando-se aos seos pensamentos.”

— Oh! —“exclamou Tancredo contrariado”— E ellame espera! Parece que lhe escuto o palpitar do cora-ção, que vejo a ancia com que me aguarda, e ouço-lheum som queixoso, e um suspiro lhe perpassar peloslabios, embaciando o vivo rubor, que os tinge.

E então ella chamar-me-ha ingrato, e esquecidoda minha promessa. Oh meo Deos!. . . Tulio, tu nãosabes quanto essa ideia me a�ige. Demo-nos pressa;tu andas tão de vagar!. . . Ah! hoje mesmo Ursuladeve ter a seos pés o homem, que mais sabe adoral-asobre a terra.

Tulio tambem sentia uma vaga inquietação, e essedesasocego, que começava a tornar-se sensivelno jo-ven apaixonado, a muito o tocava ao vivo: é que acada um d’elles �gurava-se que Ursula reclamavasocorro, que algum pesar a opprimia.

Tancredo amava apaixonadamente a essa meninade olhar meigo e arrebatador; Tulio tinha-a visto noberço, e a sua a�eição para com ella era profunda edesinteressada.

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Entretanto tinham já percorrido longo espaço,quando duas estradas se lhes apresentaram à vista.

— Agora —“disse Tulio”— tomemos a estrada deSancta Cruz; é a que devemos preferir. D’aqui à casade minha senhora temos só meia légua, e a outradar-nos-ha mais que o dobro.

— Louvado seja Deos! —“exclamou o mancebocom alegre reconhecimento.”— Tomemos a estradade Sancta Cruz. E metteram os cavallos a galope.

— É tão somente para satisfazer a vossa impacien-cia —“tornou Tulio”— que propuz essa estrada compreferencia a outra; ao contrario. . .

— Porque? —“interrompeo o mancebo ingenua-mente.”

— Porque! —“repetio Tulio”— porque eu havia pro-mettido a mim mesmo, e às cinsas de minha mãe,nunca mais trilhar esta maldicta estrada: porque sen-tirei pungentes e tristes recordações ao passar pelafazenda de Sancta Cruz.

— Espera, —“interrogou Tancredo”— parece-meque já ouvi fallar d’esse nome. A quem pertence essafazenda?

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— Ao commendador P. . . . —“respondeo Tulio gra-vemente.”

— É verdade —“tornou o cavalleiro”— é do irmãoda senhora Luiza B. . .

— Sim, —“proseguio o negro com voz amarga”— éd’esse homem de sangue, d’essa féra indomita. Oh!vós não conheceis o commendador, e vossa alma ge-nerosa terá de repugnar em face das barbaridades,que elle pratica cada dia. Implacavel é o seo odio, e apobre senhora Luiza B. . . bem o tem experimentado.Pobre senhora! seo marido foi tambem um homemcruel; mas a colera do commendador o seguio portoda a parte, e Deos sabe. . . talvez elle abreviasse osdias:. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

— Pois que?! —“interrogou Tancredo”— Julgas,Tulio, que fosse o commendador o assassino de PauloB. . . ?

— Não sei, senhor —“suspirou o negro.”— O com-mendador nunca procurou justi�car-se; e graves sus-peitas pesam ainda hoje sobre elle.

N’esse comenos cortavam elles ao meio a situaçãodo commendador, deixando ao nascente a casa de sua

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residencia, bella na apparencia, de uma construcçãosolida, e ellegante; porem hermeticamente feixada;e ao poente um longo cercado de pau a pique nocentro do qual erguia-se uma cruz sobranceira: era ocemiterio.

Ambos levaram as mãos aos chapeos, e reverentesdescobriram a cabeça.

O sol começava já a amortecer seos raios.A essa mesma hora tambem alguem caminhava

apressadamente para a casa de Luiza B. . . , e que comoTancredo amava cegamente ao lyrio d’aquellas so-lidões. Esse alguem era o commendador FernandoP.

Fernando P. vinha da cidade de ***; e suas cavalga-duras arfavam de cançasso pela rapidez da marcha.Mas à hora que Tancredo atravessava a fazenda deSancta Cruz, a Fernando P. faltava mais de uma leguapara ahi chegar.

Ambos caminhavam pois para o mesmo lugar, ti-nham ambos pressa, Tancredo, unicamente para vera mulher de suas adorações, Fernando, porque nutriagraves suspeitas de que outro lhe seria preferido. Elle

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começava a sentir no fundo da alma o desassocegomortal do ciume e da vaidade; mas conscio do terror,que infundia àquelles, que o conheciam, cobrava àsvezes um pouco de calma e disia:

— Não é possivel! Embora ella o ame, não po-derá resistir à minha vontade. E demais aonde estáagora esse insensato? Na comarca de ***, quando vol-tar tudo estará feito: Ursula será já minha esposa, eelle, resignado, ou esquecido, ou mesmo desesperado;mas respeitando minha posição social, e meo nome,morrerá de inveja, embora amaldiçoando a minhafelicidade. Mas, se pelo contrario!. . . não é possivel!Se pelo contrario, ai delle!

Tudo isto repettia o commendador a si mesmo,devorando a estrada, que trilhava, cego por uma fre-netica paixão.

Entretanto o rico sitio de Sancta Cruz o�erecia aosjovens viajantes o mais bello panorama, que se podeimaginar. Era sobre uma colina d’onde se gozava apoetica perspectiva do campo, que a tinham collo-cado; a sua formosura era portanto natural; porqueos renques de coqueiros, que se alinhavam, fasendo

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um semi-circulo em frente da casa do commendador,e dos ranchos dos negros, a mão do tempo e o aban-dono do proprietario tinham redusido a um penosoestado de morbidez, que causava dó.

Ainda as casas dos escravos, que outr’ora tinhamsido de um aspecto agradavel, tapadas de barro e co-bertas de telha, hoje mal representavam esse singeloaceio de outras eras. Já arruinadas, desmoronavam-seaqui, e ali; porque os desgraçados escravos do com-mendador, espectros ambulantes, não despunhamde uma só hora no dia, que pudessem dedicar embene�cio de suas moradas; à noite trabalhavam ordi-nariamente até o primeiro cantar do gallo. Esfaima-dos, semi-nús, espancados cruelmente, suspiravampelas duas ou tres horas de somno fatigado, que lhesconcedia a duresa de seo senhor.

Desgraçados! que até à hora das trevas e do re-pouso, à hora em que a brisa geme apaixonada, comoamante, que anhela o ardente halito do seo adorador,em que a herva escuta o segredo terno da viração, emque o cantor da espessura afaga o plumigero habi-tante de seo ninho amoroso, um momento de socego

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e amor lhes é vedado!Não ha descanso para o seo corpo, nem tranquil-

lidade para seo espirito desvairado pelo terror detantos e tão continuos so�rimentos!

Misero escravo!!!. . . Tantas dôres ha emseo coração; e nós as não comprehende-mos!. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..

Tulio tinha recahido em suas profundas medita-ções, e Tancredo, que começava a sentir-se feliz coma ideia de rever o objecto de seo amor, admiravaa bellesa natural dessa soberba situação, quandode repente, voltando-se para o seo companheiro,perguntou-lhe:

— Habitaste algum dia estes lugares, meo Tulio?— Se os habitei, perguntaes?! Ah! este é o lugar de

meo nascimento; mas que detesto, que eu amaldiçôodo fundo da minha alma; porque aqui minha pobremãe, à força de tratos os mais barbaros, acabou seosmiseros dias!

— Oh! —“exclamou Tancredo vivamente tocado.”— Minha mãe —“continuou o joven negro”— era a

escrava predilecta de minha senhoras: essa predile-201 293

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ção chamou sobre ella parte do odio que Fernando P.votava à sua irman.

Deveis saber que esse homem amaldiçoado com-prou as numerosas dividas, que meo senhor legouà orphan, e à sua viuva, com o intuito tão somentede reduzil-a ao ultimo extremo de miseria, como areduzio; porque seos diversos credores ter-se-hiamcommovido, e talvez lhe facultassem os meios de oshir pagando sem grande detrimento de sua fortuna,aliás tão arruinada.

— Que vingança tão mesquinha!. . . —“interrompeoTancredo indignado.”

— Pois bem, —“proseguio Tulio, com vozlagrimosa”— minha desgraçada mãe fez parted’aquillo que elle comprou aos credores, e tal-vez fosse ella mesma uma das cousas que mais ointeressava. Quando ella se vio obrigada a deixar-me,recommendou-me entre soluços aos cuidados davelha Susana, aquella pobre africana, que vistes emcasa de minha senhora, e que é a unica escrava quelhe resta hoje!

Minha mãe previa a sorte, que a aguardava;202 293

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abraçou-me so�ocada em pranto, e sahio correndocomo uma louca.

Ah! quão grande era a dôr que a consummia! Por-que era escrava, submetteo-se à lei, que lhe impu-nham, e como um cordeiro abaixou a cabeça, humildee resignada.

Bem pequeno era eu —“continuou Tulio após umapausa entre-cortada de soluços”—; mas chorei umpranto bem sentido, por vel-a se partir de mim, e sócomecei a consolar-me, quando mãe Susana à noitebalouçando-me na rede, disse-me:

Não chores mais, meo �lho, basta. Tua mãe voltaamanhan, e te ha de trazer muito mel, e um balaiocheio de fructas.

Enchuguei os olhos e dormi na doce esperançade revel-a; e à noite sonhei que a vira carregada defructas, como a boa velha me havia dicto. Embalde aesperei no outro dia! porem mãe Susana, que choravaem quanto eu cuidava dos meos brinquedos, sorria-sequando me via, e procurava fazer-me esquecer minhamãe e seos a�agos.

Minhas forças eram ainda debeis para comprehen-203 293

Maria Firmina dos Reis Ursula

der toda a extensão da minha desgraça; e por isso assaudades, que me �caram, pouco e pouco foram-se-me adormecendo no peito.

Eu estava já crescido; mas nunca mais a havia visto;era-nos prohibida qualquer entre-vista.

Um dia, disseram-me: — Tulio, tua mãe morreo!Ah! senhor! que triste cousa é a escravidão!Quando minuciosamente me narraram —

“continuou elle com um accento de intimo so�rer”—todos os tormentos da sua vida, e os ultimos tractos,que a leveram à sepultura, sem nunca mais tornara ver seo �lho, sem dizer-lhe um ultimo adeos!gemi de odio, e confesso-vos que por longo temponutri o mais hediondo desejo de vingança. Oh! euqueria su�ocal-o entre meos braços, queria vel-oaniquilado a meos pés, queria. . . Susana, essa boamãe, arrancou-me do coração tão funesto desejo.

E o pobre Tulio desatou a chorar em desespero;porque era a recordação das desditaas de sua mãe!

Tancredo tambem tinha na alma uma chaga malcicatrisada; e as dôres do negro encontraram echo emseo coração. Tancredo chorou tambem, e o silencio da

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tarde recolheu soluços que não podiam envergonhal-os.

Alguns momentos depois estavam à porta da casa,onde haviam deixado Ursula, lacrimosa; porem cheiade lisongeiras esperanças, e Luiza B. . . supposto queao aproximar-se da morte, todavia feliz pela futurafelicidade de sua �lha. Mas essa porta estava fei-xada, um sinistro presentimento a�ectou o coraçãode ambos. Bateram; e ao abrir-se a porta, só Susanaappareceo, que vendo-os disse:

— Podeis entrar. — E as lagrimas lhe espadanarampelo rosto.

Tancredo e Tulio olharam-se em silencio; essechoro não o comprehendiam elles.

— Choraes? e de que, mãe Susana? —“perguntouTulio, beijando-lhe respeitoso a mão.”

— Meo �lho, —“soluçou a velha”— tudo para mimacabou! E a pobre menina lá foi sosinha ao cemiterioorar sobre a sepultura de sua mãe!

— Ursula? —“perguntou Tancredo, rompendo oseo morno silencio.”— Morreo a senhora Luiza B. . . ?

— Oh! parece —“tornou Susana com amargo205 293

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dissabor”— que aquelle maldicto homem jurou ex-terminar esta infeliz familia!

— De quem fallas, Susana? quem é esse homem? —“perguntou ancioso o cavalheiro, collegindo por estaspalavras que alguma desgraça havia succedido.”

— De quem fallo, senhor? Ah! é do senhor com-mendador P.!

— Dize-nos o que aconteceo. Mas primeiro quetudo, onde está Ursula?

— Sahio, meo senhor, haverá uma hora, e prohibio-me que a acompanhasse: disse-me que hia orar sobrea sepultura de sua mãe, como já vol-o a�rmei.

— E onde é o cemiterio? —“inquerio Tancredo,tomando as redeas à seo cavallo.

— Em Sancta Cruz, senhor —“replicou a africana,curvando a cabeça para a terra.

— Partamos Tulio —“ajunctou o cavalleiro, e de-pois accrescentou”— não é possivelque tenha hidoa Sancta Cruz; porque a teriamos encontrado semduvida.

— Ha tantas estradas para lá, —“disse Tulio”— queé muito possivel que a não vissemos.

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— E demais —“acrescentou Susana”— ella so�retão cruelmente pela morte de sua mãe, como pelaperseguição de seo tio, que. . . .

— Perseguição de seo tio!? —“interrogou viva-mente Tancredo, de novo chegando-se para a velha.”—Que receia ella do commendador?

— Ah! senhor, creio que ella me disse que se nãochegasseis agora, estava perdida; porque o senhorFernando P. abreviou os dias de sua mãe, e jura queha de ser o esposo da pobre menina.

Foi só o que no meio da sua dôr me pôde con�ar.Pobre menina!

— Pois bem —“redarguio Tancredo”— tudo está re-mediado. E galoparam de novo em busca da donzella.

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Capítulo 15

O CONVENTO DE ***

Terminada a oração, Ursula, espavorida e amedron-tada, disse:

— Fujamos, Tancredo! Mas, ah! o seo odio pódeseguir-nos por toda a parte.

— Ursula, o meo braço é bastante forte parade�ender-te; estás ao abrigo do seo furor.

— Fujamos! —“tornou a moça, desvairada”— ellenão tarda a chegar.

Tancredo olhou-a assustado, e obedeceo. Ursulaestava combattida por muitas dôres, e a mais leve

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contradicção poderia enlouquecel-a. Elle procu-rou acalmal-a; e durante a viagem, mais tranquilla,relatou-lhe os tristes acontecimentos, que sobrevie-ram na sua ausencia.

Tinham deixado a estrada real, e tomado por umatalho, que muito lhes alongava o caminho; mas queevitava o encontro do commendador.

Ursula caminhava agora desassombrada e feliz, re-clinada a cabeça no hombro do mancebo, que ellaamava mais que a vida.

E uma noite prateada pelos raios da lua lhes ame-nisava a fadiga da viagem.

E ao alvorecer do dia, depois de longa e por�adacarreira, chegaram cançados à cidade de *** em de-manda do convento de Nossa Senhora da ***.

Meia légua fora da cidade erguiam-se denegridaspelo tempo as velhas paredes de antigo convento,com suas gelogias tambem esfumaçadas pelo tempo,e que escondiamm zellosas às vistas indiscretas aspuras virgens dedicadas ao Senhor.

Era um edi�cio antigo na sua fundação, grave emelancholico no seo aspecto: era a casa do Senhor

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sem ostentação. As virgens, que o habitavam, longedo mundo, não conheciam deste os gozos de um mo-mento; mas tambem em suas almas não amargava odoloroso pungir de profundos pesares. Viviam no re-manso da paz; porque a solidão e o retiro davam-lheaquella doce innocencia, que constitue a candura daalma; e essa vida de castos enlevos dedicavam-n’a aoDeos do Calvario.

E elle escutava-lhes os sagrados canticos e acolhia-os; porque vinham de innocentes e angelicas creatu-ras, de consciencia recta e pura, e votadas ao serviçodo Senhor.

E o Senhor ama àquelles que na puresa da suaalma erguem-lhe os carmes de um hymno melodioso,e abrem-lheo coração como um sacrario sem mancha;ou, como a peccadora, mostram-se profundamente ar-rependidos; porque as lagrimas de um pranto sentidolavam a nodoa do peccado.

Chegaram a esse asylo da innocencia os nossosviajantes e pararam observado attentos essas pare-des solitarias do luxo humano, e depois Tancredoconduzio pela mão sua joven desposada à porta do

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convento, que se abrio ao seo reclamo.Ella estava radiante de bellesa, e parecia desputar

primores com a estrella da manhan.A pesada porta abrio-se, e Ursula desappareceo

por ella.— Ursula! —“exclamou Tancredo de novo caval-

gando o seo ginete”— Ursula, só tu comprehendesteo meo coração. . . Deixa vãos receios!. . . . Oh! socega!Eu te protegerei contra a cega paixão desse louco.

Pretenderá em vão luctar contra a tua vontade, enunca te poderá arrancar da alma a sublime a�eição,que deste a outrem. Louco! a mulher só ama uma vez.No seo coração imprimio Deos um sentir tão puro etão verdadeiro, que o homem não pode duvidar dosseos a�ectos.

E a mulher cumpre na terra sua missão de amore de paz; e depois de a ter cumprido volta ao céo;porque ella passou no mundo à semilhança de umanjo consolador.

Esta é a mulher.Mas aquella, cujas formas eram tão seductoras, tão

bellas, aquella, cujas apparencias magicas e arrebata-211 293

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doras escondiam um coração arido de a�eições puras,e desinteressadas. . . Oh! essa não comprehendeopara que veio habitar entre os homens; porque a co-biça hedionda invenenou-lhe os nobres sentimentosdo coração.

O brilho do ouro deslumbrou-a, e ella vendeo seoamor ao primeiro, que lh’o o�ereceo.

Maldição!. . . infamia sobre a mulher que não com-prehendeo a sua honrosa missão, e trocou por outroos sublimes a�ectos da sua alma.

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Capítulo 16

O COMMENDADORFERNANDO P. . .

A mais de uma legua distante de Sancta Cruz deixá-mos Fernando P. galopando ancioso, blasphemando,e praguejando contra aquelle que por ventura o con-trariasse, e acompanhámos aos jovens desposados atéo convento de ***, onde deixaremos por agora Ursulameditando sobre os ultimos acontecimentos de suavida, que mais risonha e seductora já se lhe �gurava,

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e vamos ao encontro d’esse homem, animado portão loucas esperanças, e tão disposto a amar, como aperseguir ao objecto da sua adoração.

O commendador, talvez mais por ostentação quepor sentimentos religiosos, tinha em sua casa umcapellão, que era voz publica ser-lhe muito dedicadoem consequencia de altos favores feitos pelos paesde Fernando à sua familia. Fosse pelo que fosse, ocapellão de Fernando P. dizia-se amigo deste, e issocausava a todos admiração; porque o commendadorera um homem detestavel e rancoroso, e o sacerdoteparecia ser sancto varão.

Por uma singular anomalia estes dous homens pa-reciam querer-se, ou supportar-se reciprocamente, eessa união dava-lhes a reputação de intimos amigos.

Fernando, homem estupido e orgulhoso, não sa-bendo siquer exprimir seos proprios pensamentos,e não querendo con�ar a alguem, que elle julgavainferior a si pela posição, e pelo nascimento — unicataboa de salvação, a que se pegava em seo naufragarcontinuo de completa ignorancia — tinha hido à ci-dade, supposto que ralado de mortaes descon�anças,

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arranjar os papeis da mais absoluta necessidade, oupara fazer-se incontinente esposo de Ursula, no casode ainda encontrar viva a mãe desta menina, ou para,constituido por esta senhora tutor de sua �lha, estanão poder escapar à sua vigilancia, nem à sua paixão.Como ainda este erro seo era grosseiro!

Ursula podia deixar de acceital-o por tutor, e, aindaaceitando-o, recusar-se energicamente a ser sua es-posa. O commendador estava a�eito a mandar, e porisso julgava que todos eram seos subditos ou seosescravos.

Já o sol não dominava as regiões da terra, quandoFernando P. apeiou-se à porta de sua habitação paradar ligeiramente algumas ordens. Vinha esbaforidoe preocupado por um presentimento, que embaldetentava destruir.

— Talvez eu venha por demais tarde! —“ao apearexclamou sem intenção de o fazer; porque era contrao seo orgulho, que não imaginava di�culdades.”

Dous negros de cabeça baixa, e humilhados, quelhe vieram pegar as redeas, ouviram em silencio essaexclamação desesperada, e pela contracção dos super-

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cilios do commendador tremeram involuntariamente.Depois subio para a varanda, e logo uma multi-

dão de escravos se lhe veio aproximando; mas elleerguendo a voz imperiosa perguntou: — onde está opadre F. . . ?

— Sahio ainda ha pouco, meo senhor —“animou-sea responder o menos timido entre os que ali estavam.”

— Sahio? —“interrogou Fernando, enrugando atesta”— Para onde foi?

— Ignoro-o, meo senhor. —“tornou o mesmo es-cravo com voz convulsa pelo medo”— e creio que omesmo acontece aos mais parceiros. Tomou a suamula aseitonada, e a pouco o vimos desapparecerpela estrada do cemiterio.

Os negros acabavam apenas de tirar a sella ao ca-vallo fatigado, quando o commendador descendo deum salto as escadas, foi-os golpeando com o chicoti-nho que trasia, e gritando:

— Eia, que fazem, animaes! Outro cavallo imme-diatamente sellado. E os meos dous pagens, que mesigam.

Os miseros escravos gemeram de odio e de dôr;216 293

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mas nem a mais leve exprobração, nem um signal dejusta indignação, se lhes pintou no rosto. Eram escra-vos, estavam sugeitos aos caprichos de seo barbarosenhor.

E a ordem era tão peremptoria, que um outro ca-vallo appareceo como por encanto arreado, e os douspagens montados em suas cavalgaduras.

Fernando P. montou e impaciente cravou as espo-ras nos �ancos do animal, e os negros o imitaram. Acarreira era rapida, e nada os podia conter. Fernandopensava encontrar o padre, e não se enganou, quebem perto hia elle. Caminhava a passo lento e hialevar consolações àquella, a quem o commendadorhia pedir amor.

— Meo padre —“exclamou Fernando ao avistar ohomem de paz, que o precedera na viagem”— en�mvos encontro"Eia, dizei-me, o que ha de novo?

O padre �xou-o com olhar que queria dizer:— Resignae-vos!— Minha irman?! minha pobre irman?! —“soluçou

magoado aquelle coração de ferro.”— Morreo! �lho —“disse o padre commovido”— e

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Ursula geme acurvada pela mais pungente, e a�ictivadôr.

Então duas lagrimas rolaram dos olhos de Fer-nando, que se esqueceo de si, immerso n’esse senti-mento, unico que esclarecia a sua vida em todos osdemais pontos tão negra. Abandonou as redeas e oseo cavallo seguia os passos tardos da mula do dignosacerdote.

E esse torpor doído durou muito, e ninguém ousavaquebrar o silencio que era completo.

Então a corrida de rapida tornou-se vagarosa e pe-sada, e a lua já passeiava bem alta nos campos docéo, quando o commendador, ajudado por seos douspagens, apeiou-se à porta d’essa casa silenciosa, cujafachada melancholica, demonstrava os grandes pesa-res de que o interior era testemunha attenta, postoque muda e impassivel.

Em quanto o padre humildemente desmontava, osdous negros battiam à porta. O arruido al�m desper-tou a velha africana de seos pensamentos dolorosos,e fel-a vir pressurosa ao reclamo persuadida de queeram os dous cavalleiros, e Ursula, que regressavam.

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— Susana! —“bradou Fernando assim que a vio.”— O senhor commendador!. . . —“murmurou a ne-

gra, recuando assustada.”Fernando entrou, e dirigio-se à sala, e depois de ter-

se atirado sobre uma cadeira, e investigado com umolhar melancholico aquelles lugares, que lhe recorda-vam a unica a�eição sincera que havia tido, chamouSuzana.

Esta, a�icta e angustiada, com os braços crusadossobre o peito, e a cabeça inclinada para o chão acudioao seo chamado.

— Aonde está Ursula? —“perguntou com voz alte-rada.”

Susana estremeceo involuntariamente. Ursula ti-nha sahido à tarde e ainda ella a esperava com ancia.Achal-a-hia Tancredo? Fugiriam juntos? O que lheteria acontecido?! Apesar de seos receios respondeocom segurança:

— Sahio à tarde, meo senhor, e disse-me que hiaorar ao cemiterio.

— Ursula sahio só, e foi até Sancta Cruz sem acompanhia d’alguem? —“interrogou o commendador

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com sinistra incredulidade.”— Só, meo senhor —“tornou a negra.”— Mentes! —“bradou com voz de trovão.”Levantou-se com impeto, e como um tigre que

se arremessa à presa hia cahir sobre a infeliz Su-sana, quando o sacerdote, até então testemunha mudadessa scena, lhe disse:

— Prudencia, �lho! Porque vos encolerisaes con-tra essa misera velha? Mandae primeiro que tudoà Sancta Cruz, e talvez lá seja possivel encontral-a. Sua dor era tão profunda, que minhas consola-ções tornaram-se inuteis. Hoje ao amanhecer pedio-me que queria �car só por algumas horas, e volteià Sancta Cruz, onde gastei algum tempo a esperar-vos; mas vendo que não chegaveis, e lembrando-medo penoso estado em que a tinha deixado, tomei aresolução de vir de novo traser-lhe a palavra divina,unico balsamo para as chagas do coração. Este seodesapparecimento, confrontado com a desesperaçãoem que estava, faz-me receiar alguma desgraça.

Susanna, erguendo as mãos à altura da cabeça,bradou:

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— Meo Deos! — E cahio sem accordo.Fernando P. não lhe ouvio esta exclamação de de-

sespero; porque já havia montado, e com seos douspagens corria afanoso e desesperado a estrada queconduz a Sancta Cruz. Os cavallos despararam fo-gosos e rapidos com o aquilão, e sumiram-se comvelocidade incrivel.

A noite era já adiantada, e o gallo, que cantára nafasenda de Sancta Cruz, e que elle ouvira ao longe,veio revelar-lhe que tinha soado a hora dos myste-rios, a hora em que aquelle, que medita em meio dospalmares, ou sobre as ribas do mar, debaixo do nossoopulento e magni�co céo todo estrellado, enche ocoração de maga poesia, e de um sentir delicioso, quevae como nuvem de incenso desfazer-se puro aos pésdo throno do monarcha do universo. A hora alta esilenciosa da noite encerra mysterios tão profundos,que só os comprehende a alma, que verga ao pesode uma dõr intima e incuravel, ou o coração, quetransborda de a�ectos, que a vida inteira não póderesfriar.

Para os demais a hora da meia noite não tem signi-221 293

Maria Firmina dos Reis Ursula

�cação. O commendador Fernando não estava n’essecaso — amava; e a sua paixão era ardente e arrebatadacomo o seo volcanico coração. Entrou corajosamenteno cemiterio, onde com terror o acompanharam seosdous pagens horripilados e tremulos.

Todavia mais de um remorse lhe devia povoara alma de terror àvista d’esse lugar onde dormiamPaulo B. . . , Luiza, e tantos outros, cujos dias elle tantoamargurára, e cuja morte talvez pesasse sobre suaconsciencia!

Mas Fernando P. . . não era homem que parecesseter remorsos: talvez o fogo de seo amor so�ocasseem sua alma todos os outros sentimentos, que porventura ahi existissem.

Nesta occasião, a lua era perpendicular ao topo dacruz, e a noite derramava sobre ella seo choro algentee triste.

A cruz estava humida e orvalhada, e o musgo, quepor ella destendia os braços, ostentava o brilhanteexplendor de sua verdura, e a gota crystalina, que se�ltrara do céo, esmaltava-o com celeste encanto.

O silencio era tetrico e melancholico, e uma só222 293

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ave nocturna o não interrompia. Parece que toda anatureza o observava estupefacta.

E Fernando P. . . percorreo essa morada da morteanhelante e duvidoso, e não encontrou Ursula.

— Susana! hás de pagar-me! —“bradou fóra desi”— Não zombarás de mim impunemente. Ao in-ferno descerás, negra maldicta, e todo o meo rigornão bastará para a tua punição. Foi debalde que ten-tastes illudir-me! O coração bem m’o dizia, que a nãoacharia aqui!. . .

Tancredo! infame!. . . Seos nomes enlaçados notronco do jatubá, em que a vi a vez primeira, trahio-me o estado do seo coração. Ella o ama, já o sabia;mas o seo amor não poderá resistir ao meo odio. Juro,mulher, que has de ser minha esposa, ou o infernonos receberá a ambos!

Tancredo! tu não has de rir de um rival despresado.Não.

Blasphemando horridamente tinha chegado àporta de sua casa, desatinado e furioso.

— O feitor branco —“gritou com voz medonha”—chamem-me o feitor branco.

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Maria Firmina dos Reis Ursula

O serão ainda não havia acabado: o debil broxu-lear de uma luz esmorecida no meio dessa vasta casade trabalho indicava que ahi ainda todos velavam;porque as tarefas não estavam acabadas.

O feitor appareceo com promptidão. Era um ho-mem de mediana estatura, tez pallida, e olhar me-lancholico. Ao entrar fez uma respeitosa cortesia aocommendador, que a não respondeo, e disse:

— Às vossas ordens, senhor commendador.— Quero immediatamente dous negros, que hirão

voando à casa, que foi de Paulo B. . . — Parou, e com asmãos pareceo afastar de diante dos olhos uma combradesagradavel; mas foi um momento, recuperou suaferoz energia, e continuou:

— Que me tragam sem detença Susana. Ouvis,senhor? Que a tragam de rastos. Que a atem à caudade um fogoso cavallo, e que o fustigem sem piedade,e. . .

— Senhor commendador —“observou o homem,que recebia as ordens”— ella chegará morta.

— Morta?. . . Não, poupem-lhe um resto de vida,quero que fale, e demais reservo-lhe outro genero de

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morte.O homem mordeo os labios de indignação e per-

guntou:— Nada mais ordenaes?— Sim, —“tornou elle”— quero que dobre hoje o

serão destes marotos. Ah! esta ca�la de negros, sósurrados, e. . . .

— Mas, senhor commendador —“interrompeoo feitor com acento apesar seo reprehensivo, eindignado”— é já meia noite, os desgraçados aindatrabalham por acabar o serão, como pois é possiveldobrar-se-lhe a tarefa?

— Oh! lá!. . . —“bradou Fernando e sorrio-se comhorrivel sarcasmo”— Que tal? Quem manda nestacasa?

— Fartae-vos de atrocidades, já que sois um mons-tro, —“retrucou fóra de si o feitor, �xando-o com umolhar de despreso, que elle supportou”— banhae-vosno sangue dos vossos semilhantes, juntae crimes hor-rendos a crimes imperdoaveis; mas não conteis maisd’ora avante commigo para instrumento dessas ac-ções, que revoltam ainda a um coração viciado, e que

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só no vosso pode achar morada.Desde já contae-me despedido do vosso serviço.— Miseravel! —“rugio Fernando su�ocado pela

cholera.”— Vou immediatamente avisar a velha Susana —

“disse comsigo o feitor”— e ainda será tempo de fugir— Sahio correndo a pegar o seo cavallo, mas a horaque tão generosamente se dirigia à casa de Luiza B. . .um sacerdote montado em uma mula acompanhava apreta Susana, conduzida por dous negros, e murmu-rava em voz intelligivel estas palavras psalmo 138:

Para onde me irei de vosso espirito? e para ondefugirei de vossa face?

Susana não vinha atada à cauda de um cavallo, ca-minhava com a fronte erguida, e com a tranquillidadedo que não teme; porque é justo.

— Foge Susana! — bradou-lhe da orla da estradauma voz forte: ella pareceo nada ouvir, e o padrecontinuou:

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Maria Firmina dos Reis Ursula

Se subira ao céo, vós lá estaes; se descera aos infernosali vos encontraria.

Então a voz tornou-se a ouvir, e um homem ap-pareceo. Era o ex-feitor; e o padre e os negros oreconheceram.

— Foge, Susana!— Fugir? não, meo senhor. Não sabeis que sou

innocente?— Louca! —“tornou elle”— toma o meo cavallo

e foge. Que importa àquella fera a tua innocencia?Acaso não conhheces o commendador?

Susana replicou-lhe com vivo reconhecimento:— O céo vos pague tão generoso empenho; mas os

que estão innocentes não fogem.E o sacerdote proseguia:

Se tomasse as azas da alva, e habitasse no cabo domar, até ali vossa mão me guiaria, e vossa dextrame sustentaria.

Susana levantou os olhos para o céo, e quando osabaixou, disse:

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— Hide, meo �lho! o céo vos abençôe.O ex-feitor deo então as redeas ao seo cavallo; dei-

xou passar aquella victima resignada de tão implaca-vel cholera, e tocado pela sublime brandura d’aquellavelha africana, lamentou profundamente a sorte mes-quinha e horrivel que lhe prepara o commendador,que em sua insania parecia despenhar-se irremessi-velmente nos abysmos do inferno.

Proseguiam na sua marcha.Na casa do trabalho, muito mais frouxa lobrigava-

se ainda a escassa luz de um lampião; os negros ti-nham recebido novas tarefas, empenhavam-se poracabal-as. Desgraçados! Não eram elles que traba-lhavam por acabal-as — era o novo feitor, que comazorrague em punho ao som dos estalos os desper-tava. E já nem uma lagrima lhes vinha aos olhos, nemum queixume aos labios — eram mudos; estorciam-se com a dôr da [ilegível]a tada, abriam os olhos,moviam-se maquinalmente para continuar o serviço,e logo recahiam n’aquella penosa prostração, que re-vela a extrema fadiga de um corpo, que descahe jápara o tumulo, cançado de luctar em vão contra mil

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privações que o desgastaram e aniquilaram.O dia não tardava muito a despontar, quando Su-

sana e o sacerdote descubriram, pasmados, a scenasespantosa da dupla tarefa na fasenda de Sancta Cruz.

— Deos esteja comvosco, �lho, —“disse branda-mente o padre ao entrar.”

Fernando P. . . passeiava na varanda com um passoincerto e desigual.

— Mandei informar-me, meo padre, do caminho,que seguio a minha louca fugitiva, e em menos dedez minutos aguardo pela resposta. Os homens daminha guarda estão promptos, e partirão ao primeirosignal; as nossas cavalgaduras esperam-nos no pateo.

— E para que todo esse afan?! —“perguntou o sa-cerdote com estupefacção”

— Para que?! ainda m’o perguntaes?! Essa menina,senhor, a necessidade tornou-a minha pupila; e an-tes que o fosse, meo coração a havia escolhido paraesposa!

— Ella?. . . Ursula?. . . . a vossa sobrinha!. . . a �-lha!. . .

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— Basta —“bradou imperiosamente ocommendador.”— Susana, venha Susana.

Fernando P. . . pensára que o padre lhe hia lembraro seo crime, e impoz-lhe silencio.

Ao reclamo dous negros entraram conduzindo avelha, cujos cabellos alvejavam como o cume dosAndes e cujos olhos exprimiam sublime resignação.

Ao vel-a, o commendador rugio como um tigre,os olhos injectaram-se-lhe de sangue, e as arteriasentumecidas ameaçavam arrebentar: seo semblantetornou-se roxo de odio, e a physionomia era medonha,e horripilante.

— Para onde foi Ursula? —“interrogou com vozque horrorisava”— Para onde foi Ursula? falla, ouprepara-te para morrer sob o azorrague.

— Não sei, meo senhor, —“respondeo humilde-mente a velha”— disse-me que vinha orar ao cemite-rio.

— Não sabes d’ella?! Queres arrostar commigo?.. —“e os olhos desferiram chammas de raiva, que gelavamde terror.”

— Foste sua cumplice, has de pagar-m’o.230 293

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— Em nome do céo! —“exclamou a misera, ator-mentada por tão sinistras ameaças”— que sei eu?

— Calla-te, atrevida, ou ao menos modi�ca o teocrime, revelando-me o nome do homem, que m’aroubou.

— Ah! meo senhor. . . —“tornou a miseraafricana,”— ella sahio só.

— Pois bem! Confessarás à força de tormentos oque é feito della, e qual o nome do seo seductor.

Julgas que o ignoro?Tancredo! rapido foi o teo regresso; mas has de

arrepender-te, assim como tu, velha louca e maldicta!Levem-na, —“disse accenando para os dous negros

que a tinham conduzido”— levem-na, e que ella con-fesse o seo crime.

— Filho —“objectou o padre,”— �lho, em nome doque nos ha de julgar não mandeis �agellar esta pobrevelha; ella é innocente.

O commendador bramio de cholera, e lançou-sesobre a pobre escrava.

— Confessa a tua cumplicidade, diz-me para ondefoi ella, ou aprompta-te para morrer.

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Maria Firmina dos Reis Ursula

Susana havia dicto a Tancredo que Ursula lhe fal-lara de um perigo eminente, se elle Tancredo retar-dasse mais o seo regresso, e que esse perigo creava-oo commendador; lembrava-se que o moço partira im-mediatamente para o lugar por ella indicado, e ondedevia estar Ursula, persuadio-se mesmo algumas ve-zes de que a moça, para escapar às perseguições deseo tio, se houvesse submettido à proteção do man-cebo, e fugido; mas tudo isso não era mais que suppo-sição e quando mesmo ella o soubesse com certesa,estava longe de querer denuncial-a a um homem quetão funesto era para quantos o conheciam.

Pedio a Deos que lhe puzesse um sello nos labios,e o valor do martyr no coração.

— Então. . . —“tornou elle enfurecido”— confessas,ou não?. . .

— Não sei, meo senhor! —“replicou Susana.”— Não sabes quem seja o seo seductor? Não o viste

sahir em sua companhia?. . .— A menina sahio só, eu a quiz acompanhar; por-

que ella estava louca de a�icção; mas disse-me:Prohibo-te que venhas; deixa-me que vá resar sobre

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a sepultura de minha mãe, e. . . .— Levem-n’a! —“bradou o implacavel

commendador.”— Mais tarde confessarás tudo.— Meo �lho, —“de novo começou o padre”— o san-

gue do innocente condemna ao inferno aquelle, queo derrama: esta mulher não é cumplice na fuga devossa desposada.

Um negro entrou correndo, e disse-lhe:— Meo senhor, acabo de saber que a senhora, acom-

panhada de um cavalleiro branco, e de um outro ne-gro, tomou a estrada da cidade de ***.

Então um sorriso infernal lhe arregaçou o labiosuperior, e seo rosto �cou hediondo.

— Levem-na! —“tornou accenando para Susana.”—Miseravel! pretendeste illudir-me. . . saberei vingar-me. Encerrem-na em a mais humida prisão destacasa, ponha-se-lhe corrente aos pés, e a cintura, e acomida seja-lhe permittida quanto baste para que eua encontre viva.

Susana ouvio tudo isto com a cabeça baixa; depoisergueo-a, �tou aos céos, onde a aurora começava a

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pintar-se, como se intentasse dar à luz seo derradeiroadeos, e de novo volvendo para o chão, exclamou:

— Paciencia!— Não ha tempo a perder —“disse Fernando, e en-

trou no seo gabinete, onde deo ordens, que para logose cumpriram. Dous homens, de horridas physiono-mias foram introduzidos, e o que lhes disse o com-mendador, só Deos e elles o poderam ouvir.

Não se passou muito tempo, que não voltassem:eram ligeiros e vinham vestidos como talvez lhestivesse ordenado o homem, a quem serviam.

Tinham excellentes cavalgaduras. Trajavam cal-ções de couro, e sobre suas sellas descançavam enor-mes capotes de pelles de onça. Da cinta pendiam-lhesenormes facas ponteagudas, e a esses horriveis ins-trumentos, acompanhava um par de pistolas. Aoshombros levavam um medonho bacamarte.

O padre vio todo esse apresto execrando, e aguar-dava ancioso pelo seo hospede.

Não esperou muito.— Meo padre, o dever obriga-me a partir.

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Roubaram-me a �lha de minha irman; mancha-ram a honra da minha casa, assassinaram a minhaventura!. . .

Meo padre, —“continuou depois de alguma pausa”—essa menina era minha desposada, jurei que haviaser seo esposo; pelo céo ou pelo inferno, sel-o-heiainda. Sim, —“proseguio espumando de ira”— hei deser seo esposo; porque não a tornarei a ver em quantoo sangue do seo raptor não tenha lavado, extinguidoo ferrete da infamia estampado em minha fronte.

— Jesus! Senhor meo Deos! —“bradou o pobrepadre.”— Ainda é tempo de retroceder. Pelo céo, meo�lho, não mancheis vossas mãos no sangue de vossoirmão! Filho, o assassino é maldicto do Senhor; Caimo foi. Para o assassino não ha na vida socego, nempaz na morte. O sepulchro mesmo, quem sabe se lhepromette tranquillidade?

A vingança, �lho, é um praser amargo, e seo fructo,é o requeimar do remorso em toda a existencia, e atéao ultimo extremo, até à sepultura!

Fernando P. . . escutou-o; mas em suas veiasagitava-se o sangue, que lhe queimava o coração.

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Rangia os dentes, e os labios lividos e tremulos ex-primiam a impaciencia e o furor, até que por ultimoprorompeo irado:

Mentes, padre maldicto! A vossa doutrina não aescutarei nunca. A vingança, desejo-a com ardor,afago-a. Não sabes que é a unica esperança, queme resta? Amor! ventura!. . . tudo, tudo cahio noabysmo. . . Elles o quiseram. . . oh! não os hei depoupar.

O inferno? Haverá peior de que o que trago nocoração?! O inferno?! O inferno me restituirá Ursulapura da nodoa do amor de outrem, porque será lavadono sangue do homem por quem despresou-me.

Sabes acaso o que é ser desdenhado pela mulher,que amamos? Sabes o que é ser illudido, aviltado poraquella a quem deramos a vida, a honra, a alma senol-a pedisse!?. . .

— Filho, —“arriscou ainda o velho sacerdote”— nãodesa�eis a colera do Senhor. O sangue de vosso irmãovos queimará a alma; e o amor de que vos serviráentão? Julgaes que vos poderá elle afagar quandoante vós se erguer mudo, e impassivel o espectro

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ensanguentado de vossa victima clamando: —És meoassassino!!!. . .

Então embalde supplicareis o meigo auxilio dosomno, que vossos olhos pasmados e �tos no me-donho phantasma não se poderão serrar.

Então elle erguerá a voz, e exclamará com horri�coaccento, que vos resfriará os membros: — Maldiçãodo Senhor sobre aquelle que assassinou o homem,que era seo irmão!

— Calla-te. . . . calla-te, estupido que és —“rugio ocommendador”— que me importa a mim a vingançados mortos! Tancredo, Ursula, não se hão de rir dohomem a quem ludibriaram.

— Tancredo? —“objectou o padre”— que quereisdizer d’esse mancebo?

— É o seductor de Ursula.— Elle? —“replicou o homem de paz”— é impossí-

vel!— Elle. —“retrucou Fernando”— Amam-se, já o

sabia; mas contava que o seo regresso seria algumacoisa mais demorado.

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Sim, eu vi Ursula, era uma tarde, um jatubá antigocomo os seculos prestava-lhe doce sombra; no troncodessa arvore gravava ella um nome, que me occultoucom o seo corpo; mais tarde, no dia immediato, todosos dias a mesma hora eu hia ao lugar indicado, ellajamais voltou a elle; mas seo nome, e o nome deTancredo entrelaçados ahi estavam gravados paraadvertir-me que se amavam.

Oh! maldicta sejas tu, mulher infame, maldicto oteo seductor! De joelhos ha de pedir-me compaixãopara esse que preferiste a mim; mas não has de achal-a!

— Misericordia, meo Deos! —“bradou o padre er-guendo as mãos ao céo.”

— Silencio! —“exclamou Fernando ardendo em ira,e aproximando-se-lhe, disse”:— Sois meo prisioneiro.A justiça da terra não me estorvará a vingança porqueninguem senão vós ousará denunciar-me.

— As. . . sas. . . si. . . no!! —“estupefacto disse opobre sacerdote, e �cou estacado nesse lugar semmovimento, com os cabellos irriçados, os membroshirtos, e os olhos parados, como se um raio o hou-

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vesse fulminado.”

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Capítulo 17

TULIO

Ursula estava assaltada de justos temores, ainda quemenos penosos; porque julgava o convento asyloseguro. Com tudo ella pensava em Susana, e muitasvezes tremia com a ideia de que seo tio intentasseperseguil-a, ou vingar n’ella a sua desappariação, eresolveo-se a escrever a Tancredo, pedindo que amandasse vir.

A Fernando, porem, tardava por demais a hora davingança; vigiava de parte a sua presa, seguia-lhe ospassos, e nutria de infernal esperança o coração avido

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de sangue e vingança.Na hediondez de seo odio e de seo ciume arrancava

os cabellos, dilacerava o rosto, e blasphemava contraDeos e os homens.

E essa hora tão ardentemente desejada chegou em-�m, e elle afagou-a com medonho sorriso. Era um diabello, como a suprema felicidade, esse da vingançapara um coração, que só se aprasia no ódio!

Tancredo, todo entregue às doçuras de um amor,que lhe fasia esquecer as dôres com que uma outramulher por tanto tempo lhe havia ulcerado o cora-ção, nem uma ideia vaga lhe perpassava pela menteda surda e atroz vingança, que o commendador lhepreparava.

Julgava-o resignado, e escondido no fundo de suafasenda, amaldiçoando-lhe a ventura, ou sonhandoillusões fagueiras de que Ursula, mais tarde, medrosade o ter desdenhado, fosse correndo implorar-lheperdão.

N’esse presuposto estava Tancredo, que, já esque-cido mesmo dos tristes precedentes da sua vida, por-que acabava de ver Ursula, esse anjo de paz, que lhe

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sorria, chamou o seo �el Tulio para encarregal-o dealgumas ordens, que só por elle seriam bem desem-penhadas. Mas Tulio não appareceo.

Era o dia destinado para celebrar-se no conventode *** a ceremonia do seo casamento; e por isso adesapparição de Tulio assaz o surprehendeo.

Entretanto a noite começava a povoar de sombraso espaço da terra.

A demora de Tulio hindo a mais, Tancredo passouda surpresa à inquietação, e uma ideia terrivel lheatravessou a mente. Mas tractou de repellir tão fu-nesto pensamento que lhe voltava sempre, e cada veztomando maiores proporções de realidade.

Então procurou informações sobre o commenda-dor, ninguem lh’as soube dar; e antes suspeitavamtodos que estivesse em Sancta Cruz.

Depois de faver em vão procurar por Tulio, a�ictopor um acontecimento aliás tão estranho, Tancredo,acompanhado de alguns de seos amigos, seguio parao convento de ***, onde devia receber aos pés do altara mulher de suas adorações.

A noite hia já adiantada quando elles franquearam242 293

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a porta do sanctuario. Os cirios, que illuminavamo throno do Senhor de misericordia e de bondade,os sinos, que tocavam alegremente no alto da torre,as �ores, que juncavam o pavimento da egreja, nãodistrahiram a Tancredo de seos tristes presentimen-tos acerca do desapparição de Tulio, e o coração ge-mia de angustia. Elle então indagando a si mesmo,achava estranho o sentimento penivel, que lhe nas-cia na alma, porem embalde tentava recobrar a se-renidade de animo. Tulio �gurava-se-lhe em perigoeminente, e toda a felicidade, que o aguardava, nãolhe apagava esse crescente desasocego; porque essafelicidade começava a parecer-lhe que mais tarde setornaria amarga. Mas esse estado de angustia e pe-sar desappareceo com a presença de Ursula, bella eridente, e que tam meigamente lhe sorria.

Vinha acompanhada das jovens religiosas, que jáa amavam: no meio d’essas virgens consagradas aoSenhor era como uma rosa entre assucenas. Tra-java simples vestido de seda preta, e mimosas perolasornavam-lhe o collo de neve, brandamente agitadopelo voluptuoso arfar do peito. A fronte altiva, e jas-

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peada ingrinaldava-a uma capella de odoriferas �oresde laranja, e o véo de castidade �uctuava-lhe sobreos hombros nús e bem contornados, e encubria-lheos negros e avelludados cabellos.

Assim era ella mais formosa que nunca, e Tan-credo, vendo-a tão radiante de mocidade e de amor,olvidou suas penosas inquietações para só rever-sen’ella, para render-lhe um culto de apaixonada vene-ração.

E ella sorrio com um sorriso, que transportou-o de felicidade, e esse sorriso feiticeiro e angelicoarrancou-lhe do fundo da alma o orgulho feminil —era como a lembrança de que seo amor apagara aindamesmo as cinzas do de Adelaide.

O cantico das virgens, tão solemne e sancto, come-çou, e suas notas melodiosas confundiram-se com osaccentos ternos e acordes do orgão: os cirios projec-tavam uma luz vivida, que se derramava em ondaspor todo o sanctuario, e illuminava esse quadro defelicidade.

E o cantico das virgens do Senhor, e a melodia doorgão, se lhe internavam pelo coração, e pareciam-lhe

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um côro de anjos nas moradas cellestiaes.A benção do sacerdote unia-os para sempre, e o

incenso ondulava em torno do altar.Por �m cessaram a musica e os canticos, e as fe-

licitações sinceras dos amigos acolheram Ursula e aTancredo: — o acto religioso do casamento estavaconsummado. Seos corações transbordavam de pra-ser, o universo não bastava para conter seos corações.

No meio de sua extrema ventura, veio assaltar aTancredo a ideia da desapparição de Tulio. Não podiaesquecer o seo �el companheiro que alli não estavapara tambem congratulal-o. Uma nuvem de amargurae tristesa veio por mais de uma vez perturbar-lhe ocoração, e angustial-o.

Pobre Tulio! Bem se havia elle esfor-çado por estar juncto ao seo amigo, mascomo?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Pelo cahir da tarde esse �el negro passava des-cuidosamente por uma esguia e tortuosa travessa, aessa hora completamente deserta, quando de repenteante si vio dous homens de physionomias sinistras, eque engatilhando as pistolas, e pondo-lh’as ao peito,

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disseram accenando-lhe para a porta de um casebreinsigni�cante e velho, que lhes �cava fronteiro:

— Entra aqui: e se gritares morres.O joven negro olhou em cheio esses dous homens,

que tão bruscamente o acommettiam, e com quantonão fosse medroso, estremeceo involuntariamente.

Tulio lembrou-se do commendador, e julgou-se per-dido. Imaginou n’esse momento extremo mil meiosde seduzil-os, ou de fugir-lhes, tudo foi inutil; porquea esses homens tão versados no crime era impossivelenganar, ou commover: resignou-se, pois, e obede-ceo.

Entrou em um corredor escuro e humido, comouma sepultura, e a porta feixou-se sobre elles.

— Que intentaes de mim? —“interrogou Tulio comvoz �rme.”

— Mais tarde o saberás, —“respondeo-lhe um dosdous com um sorriso frio e a�rontoso.”

E esse mesmo homem tocou com as pontas dosdedos em uma porta lateral. Esta abrio-se como porencanto, devassando um quarto quasi tão humido eescuro como o lugar onde se achavam.

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Já não havia a claridade do dia, e a luz de uma velaa não substituira ainda.

— Acompanha-nos! —“disseram ambos com vozque revelava fria crueldade.”

Tulio recuou no limiar da porta, porque no meiodesse quarto Fernando P. . . passeava.

— Entra covarde! —“tornaram ambos”— Tulio obe-deceo.

O commendador cruzava o quarto com passos de-sordenados. Pallido como um espectro, com os ca-bellos irriçados, os labios convulsos e contrahidos, ascommissuras dos labios espumantes, pintava-se-lheno todo a desesperação, e o odio infame, e a vingançanão satisfeita.

Era Othello no seo ciume, Satanaz expulso do céoe ferido no orgulho.

Parecia nada ter visto, nem ouvido do que se pas-sava em torno de si, porque continuou no seo passeioinsano máu grado o ranger sinistro dessa porta, quegemeo nos gonzos como o sibilar da serpente.

Cruzou o quarto ainda por muitas vezes, depoisestendendo a mão para os seos dous sicarios, accenou-

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lhes para a porta.Esta ordem muda foi promptamente cumprida. Os

sicarios sahiram — a porta tornou-se a feixar.— Queres tu servir-me? —“perguntou o commen-

dador com um tom secco e breve.”Tulio conheceu que estava perdido; mas reco-

brando toda a sua energia, como succede sempreao homem nos lances apertados da existencia, res-pondeo sem hesitar:

— Dizei, meo senhor, o que determinaes ao vossoescravo?

— Dize-me, onde está Tancredo?Como se fôra um ferro na brasa, esse nome pareceo

requeimar-lhe os labios, que tingiram-se de uma côrlivida, e tremeram convulsos.

— Creio que está em sua casa —“redarguio o negrosem perturbar-se.”

— Mentes! —“gritou-lhe o commendador,devorando-o com horrivel olhar”— Mentes!. . . Par-vos! Julgam que o meo odio os não segue como assuas proprias sombras!

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E tu, vil escravo! pretendes illudir-me?! Sim, de-mais me tarda a hora da vingança!. . . Ursula, encer-rada no convento de *** aguarda hoje pela ceremonia,que a vae unir para sempre ao homem da sua esco-lha. . . ao homem por quem despresou meo amor,e até meo odio! Oh! juro-lhe o inferno, que o sor-riso de sonhadas delicias, que sorriem sobre a minhadesesperação apagará de seos labios minha justa ecompleta vingança. Tancredo! hoje mesmo o anjopallido da morte te dará o beijo de idolatrada esposa;e a terra humida do sepulchro serrará sobre ti asbrancas cortinas do leito nupcial.

— Introduz-me no seo quarto, Tulio, —“continuoudelirante”— quero matar esse homem antes que sejao esposo de Ursula! Eu te cumularei de favores; dar-te-ei metade da minha fortuna se m’a pedires.

— Senhor! —“exclamou Tulio acceso em legitimacholera”— que acção tão vil pratiquei eu algum diaque possa merecer-vos semilhante conceito?

— Estás louco, imbecil?! Não vês que peço, quandopodia mandar?

— Covarde! —“bradou Tulio, esquecendo a pessoa249 293

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com quem fallava, e quanto essa palavra insultuosao poderia perder”— matae-me muito embora, estouem vosso poder; mas não me insulteis! Não, nuncaespereis que proteja o assassino, mormente contraaquelle que me arrancou da escravidão!

— Calla-te! —“interrompeo o commendador roxode ira”— Esqueces-te acaso de quem sou? — Feixou ospunhos, e dos labios gotejou-lhe sangue; rugio comouma onça, e arremessou-se sobre o negro.

Tulio, aliás, aguardava immovel esse ultimo es-forço da desesperação; mas a Fernando cahiram osbraços inertes, e por um segundo �cou absorto econtemplativo, como se ante si estivera um espectro:depois tocou a campainha, e esperou.

O relogio deo oito badaladas. Era noite. Os doushomens appareceram.

Entreguem-no à guarda de Antero. Sua cabeçaresponder-me-ha por qualquer eventualidade.

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Capítulo 18

A DEDICAÇÃO

Antero era um escravo velho, que guardava a casa, ecujo maior de�eito era a a�eição que tinha a todasas bebidas alcoholisadas.

Em presença dos dous homens de má catadura e fei-ções horrendas, elle mostrou-se rigido, e atirou como prisioneiro para um quarto humido e nauseabundo,e mostrou interessar-se vivamente em cumprir as or-dens, que recebera. Depois collocou-se à porta, qual�el cão de �la à quem o dono deixou de guarda à suapropriedade ameaçada por ladrões.

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Tulio, entretanto, debattia-se de desesperação en-cerrado n’esse quarto, do qual se não poderia escaparsem commetter um crime, que repugnava-lhe o co-ração. Impaciente, receioso pela sua sorte, e aindamais pela de seo bemfeitor, contava os minutos, eamaldiçoava a mão, que assim o retinha.

Curvou a fronte em uma de suas mãos, e descan-çando o cotovello sobre a couxa, mergulhou-se emseos pesares e deixou-se levar por elles. A tristesae o abattimento, que se debuxavam n’aquelle rostonobre, contristaram ao seu guarda, que attento o con-siderava.

— Coitado! —“dizia elle lá comsigo”— sua pobremãe acabou sob os tractos de meo senhor!. . . e elle,sabe Deos que sorte o aguarda! Pobre Tulio!. . .

E o prisioneiro, ora abattido, ora desesperado, en-trou a soluçar, e à desafogar por esse modo as doresque lhe assoberbavam o peito. Depois ergueo-se eentrou a passear pela estreita prisão, ora com passosrapidos, e incertos, ora com andar frouxo, a�icto, edesalentado.

Soaram nove horas. Tulio deo um gemido de de-252 293

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sesperação.Antero, que tambem so�ria, quiz destrahil-o de

seos pensamentos dolorosos, e murmurou:— Meo �lho, não achas que a noite assim vae tão

lenta e fastidiosa?Tulio não respondeo. Pensava então que Tancredo

partira já a receber sua noiva, e que apenas sahisseda cidade estaria a braços com os seos assassinos.

— Ah! —“dizia elle estorcendo as mãos”— e eu aquiguardado para o não defender!!. . .

O velho esteve por algum tempo recolhido em simesmo; depois levantou-se, pegou de uma cuia etractou de lançar-lhe dentro o que quer que era queestava em uma cabaça. Mas esta estava completa-mente vazia. Antero arremessou-a para longe de sicom certo ár de despreso, suspirou, e depois disse:

— Maldicto vicio é este! E que não possa eu vencersemilhante desejo!

Oh! acredita-me, Tulio, estala-me a garganta deseccura. E como não ha de assim ser? Desde que aquichegou meo senhor que não mato o bicho. Arre! e

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nem uma pinga de cachaça! nem ao menos uma iscade fumo siquer para o caximbo.

Então passou pela mente do misero prisioneiro umlampejo d’esperança, respirou com indisivel satisfa-ção; mas com arte objectou, a�ectando reprehensivoaccento:

— Que máo vicio em verdade, pae Antero. . . sem-pre a fumar, e a beber. Não vos envergonhaes desemilhante procedimento? Que conceito fará de vóso senhor commendador?!

— Que conceito? —“interrogou o velhodesappontado”— que conceito! É o unico vicioque tenho; e ainda por conserval-o não prejudiqueininguem. Que te importa que beba, —“acrescentoucom voz que queria dizer: não tens coração”— porventura pedi-te algum dinheiro para fumo ou ca-chaça? — e dizendo afagava a cabaça vazia com umdesvelo todo paternal, como que arrependido de tel-adespresado, a ella, a sua companheira constante.

— Não —“respondeo friamente Tulio.”— Pois bem —“continou o velho”— no meo tempo

bebia muitas vezes; embriagava-me, e ninguem me254 293

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lançava isso em rosto; porque para sustentar meo vi-cio não me faltavam meios. Trabalhava, e trabalhavamuito, o dinheiro era meo, não o esmolei. Entendes?

— Perfeitamente, —“retorquio Tulio, �ngindosorrir-se.”

Pois ouça-me, senhor conselheiro: na minha terraha um dia em cada semana, que se dedica à festa dofetixe, e n’esse dia, como não se trabalha, a gentediverte-se, brinca, e bebe. Oh! lá então é vinho depalmeira mil vezes melhor que cachaça, e ainda quetiquira.

— Então, pae Antero, gostaes assim tão loucamentede matar esse immortal bicho?

— Oh! se gosto! —“exclamou o velho africanolambendo os beiços só d’esperança.

— Pois bem, —“tornou o joven negro, mettendo-lhe nas mãos tanto dinheiro quanto era bastante paraAntero embriagar-se dez vezes pelo menos”— tomae,e hide saciar à farta essa maldicta sede.

O velho arregalou os olhos, e o praser transbordou-lhe as feições ridentes; tomou a cabaça e sahio cor-rendo; mas não ser ter feixado sobre si a porta da

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prisão.Então Tulio olhou em de redor de si assegurar-

se da situação e dos meios de fuga, e vio n’essequarto horrivel troncos, correntes, cepos, anginhos,que se crusavam. Ahi, quantos desgraçados nãotinham no meio das torturas amaldiçoado, comoJob, o dia do seo nascimento?!. . . Quantas lagrimasnão teriam regado aquelles instrumentos de suppli-cio?!. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

— Ah! se eu sempre tivesse destes bons prisionei-ros!. . . —“exclamou contente, e battendo as palmas, obom Antero, que voltava já bastante alegre, e que nãosatisfeito com a dose, que engulira, de novo beijavaternamente sua querida cabaça, agora cheia da bebidade sua predilecção.

— Deos lhe pague, meo �lho, e te dê uma bôa sorte.— E d’ahi arremeçava-se à sua amante, e já os beijoseram tam repettidos, que pareciam um só e continuo.

Contava já o incançavel Tulio com a possibilidadede escapar-se; porque o silencio, que reinava na casa,o advertia da ausencia do commendador.

Dez horas echoaram aos seos ouvidos. Tulio estava256 293

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sobre espinhos.— Dez horas! —“murmurou”— que silencio! Parece-

me, pae Antero, que o mundo inteiro dorme: pelomenos n’esta casa aposto que só nós estamos acorda-dos.

— Advinhaste. —“resmungou o velho com a linguatão pesada, que parecia um moribundo”— porque senão foramos nós, ella estaria completamente deserta.

— Deserta! —“perguntou Tulio, tremendo em facede uma cousa que elle adivinhara já:”— e então ondefoi o commendador?

Antero bebia freneticamente, esquecendod’est’arte o barbaro rigor de Fernando P. . . ; e por issojá meio dormindo apenas respondeo:

— Achei a porta feixada. . . por fóra. . .— E por onde então sahiste? —“perguntou Tulio,

sacudindo-o”— Fallae.— An! —“balbuciou a custo abrindo os olhos.”— Por onde sahiste, se achaste a porta feixada por

fora?Pae Antero fez um esforço, e resmoneou:— Pelo quintal.

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Não pôde mais fallar, e cahio em profundo somno,entre-cortado só por uma respiração forte e estre-pitosa. Então Tulio arrastou-o pelas pernas, e o foilevando até um tronco, que se unia à parede, e ládepois de o ter bem seguro, tirou-lhe da algibeira achave da prisão e sahio.

O negro previra a explosão de cholera do commen-dador, quando de volta de sua trahidora embuscada,e reclamando o preso, só encontrasse Antero embria-gado, a prisão aberta, e a sua victima fóra doo alcancede sua ira. Naturalmente o commendador vendo An-tero preso no tronco, acreditaria que se dera umalucta entre elle e o prisioneiro, e que aquelle, velhoe sem forças, fôra subjugado e preso, e que assimtolhido e sem soccorro algum, vira-lhe a fuga, sempoder siquer opor-lhe a menor resistencia.

Tulio não se enganou — o seo estratagema salvouo velho escravo.

Livre, Tulio deitou a correr em direitura da casa,tendo só na mente salvar a seo bemfeitor e amigo.

Estava esbaforido, e mal entrou, sabendo que Tan-credo a muito sahira acompanhado das testemunhas,

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partio sem respirar pela estrada que levava ao con-vento.

— Meo Deos! —“dizia elle consigo”— será aindatempo? Poupae-o, Senhor: livrae-o de seos inimigos.

E �nda esta breve supplica, a esperança, que come-çava a abandonal-o, voltou-lhe risonha e vigorosa.

Já lhe faltava o folego, já as pernas se lhe afraca-vam de cançasso, e elle corria sempre veloz como ofusilar de um relampago, como o servo que o caçadorpersegue.

No meio da sua carreira avistou um homem mon-tado em uma mula, que caminhava a passos lentos.

O joven negro conheceo-o e respirou.— Louvemos ao Senhor Deos! —“disse. E

accrescentou”— Senhor, vindes do convento de ***?— Sim. Acabo de faser ahi um casamento, —

“redarguio o retardatario viajante, que era um sacer-dote.”

— E os noivos, senhor?— Deixei-os na egreja, �lho.Tulio deixou o padre, e de novo começou a correr,

e não tardou muito em descobrir as negras paredes259 293

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do templo, onde uma lua minguada projectava tibiaclaridade.

E Tulio avistou um coche, cujos cavallos, mor-dendo o freio, hiam já partir para a cidade.

Depois ouvio pronunciar-se um adeos, logo depoisoutro, e o coche partio a trote largo. Outro coche,porem, estava ainda postado à porta da egreja.

Faltavam-lhe já forças, estava aniquilado de can-çasso, entretanto corria sempre; porque o coche quepassou não era o dos noivos, e ainda talvez fossetempo de salval-os.

Na sua carreira presentio um vago rumor à beirada estrada, e um vulto negro que se escondeo atraz deuma arvore copada. Uma tal apparição veio dar-lhenovas forças, e a suspeita fel-o activar a sua carreira.

— São elles! —“disse a si mesmo, e no ardor da suadedicação gritou com voz que repercutio na solidão.”

— Cilada, senhor. . . querem assassi. . . ..Dous tiros de pistola disparados ao mesmo tempo

resoaram com pavoroso estampido, e Tulio não aca-bou a palavra!

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A mão, que os disparou, era certeira, e elle mori-bundo só pode exclamar:

— Jesus! Eu mor. . . .ro!. . . .Então Tancredo e sua joven esposa, que acabavam

de entrar no coche, tremeram de dor e de surpresa.Reconheceram que a voz era a da de Tulio, que lhesadvertia na intima desesperação da sua alma.

E Tancredo bradou desatinado:— É elle, é o meo �el Tulio! Monstros! porque o

assassinaram?! — E deo um passo para ir soccorrel-o;mas Ursula puxou-o pelo braço, disendo-lhe:

— Não ouvistes o seo aviso? Ah! Tancredo, queremassassinar-vos! — E cobrio-o com seos niveos braços.

E um tropel como de lobos, que devorados pelafome uivam medonhamente, aproximou-se do coche;e o grito do postilhão denunciou-lhes que estavamcercados por essas féras humanas mil vezes maistemiveis que os chacaes e as hyenas.

Tancredo reconheceo o perigo eminente, que ocercava, e abrindo a portinhola fez fogo com as suaspistolas. A primeira errou a pontaria, a segunda ferio

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de leve a um homem vestido de lucto. N’esse homemTancredo reconheceo o commendador.

— Ursula tinha rasão! —“disse ele comsigo”— Eu éque me perco sem a poder salvar!. . .

E Fernando P. . . furioso e com impeto subio aocoche, e appareceo às suas victimas sinistro e ame-açador, como o anjodeve-o ser no dia do supremojulgamento.

Feroz e horrido sorriso arregaçava-lhe os labios,que resfolegavam o odio e o crime. Assim deviamsorrir-se Nero, Heliogabalo e Scilla nas suas saturnaesde sangue.

— Poupae-o, senhor. Ah! pelo céo, poupae-o! —“exclamou Ursula a�icta e pallida cahindo aos pésdesse homem desapiedado.”

E por um esforço sublime, que só a mulher — entefeito para a dedicação e o amor — pode conceber,disse-lhe, apresentando-lhe o peito:

— O�endi-vos, senhor, vingae-vos: eis-me, não mepoupeis: mas elle? oh! não o assassineis! oh! nãotem culpa de que o ame mais que a vida. . . .

E cahio prostrada aos pés de Fernando, que semi-262 293

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lhante à hyena, que meneia a cauda, e lambe os beiços,porque a presa lhe não escapará, olhava-a sorrindode ferocidade.

Estava agora face a face com Tancredo, que desar-mado só podia esperar a morte fria, e cruel, que lhepreparava seo implacavel inimigo.

E vendo a esposa desmaiada aos pés do commen-dador, abaixou-se, e tomou-a em seos braços.

E essa bellesa adormecida e pallida como o lyriodo valle, parecia sorrir-lhe com celeste meiguice, eo joven esposo, transportado de amor e de a�ição,imprimio nesses labios de voluptuosa perfeição umbeijo ardente com que parecia hir-lhe a vida — era oseo ultimo adeos.

Ao contacto desses labios amados, ella abrio seosgrandes olhos alquebrados pela dôr, e com um olharque exprimia a mais singular e inde�nivel ternura,pareceo dizer-lhe:

— Amo-te!Depois esses dous astros de amor, que guiavam

ainda no perigo, ou nas trevas da desesperação, aoinfeliz mancebo, recahiram em seo languido torpor.

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Esse beijo foi a expressão profunda de tão sublimeamor: foi o primeiro, o casto e puro osculo de amor,que o comendador jurou ser o derradeiro.

Esse osculo pareceo-lhe insulinosa o�ensa: rangeoos dentes de raiva, e arremessando-se contra o seoodioso rival, arrancou-o com força do odio dos braçosde sua joven esposa.

— Vingança! —“bradou”— vingança! É a hora davingança. Julgavas que eu a tinha esquecido? Louco!Não sabes que a essa mulher, que amaste, eu dei aalma e o coração, e que jurei que ha de ser minha?

Roubaste-m’a, e inviliceste-a a meos olhos! Cuspis-te-me na face, e nodoaste-a com o teo amor impuro!. . .polluiste-a com o teo halito. . . Tancredo, esse osculotrespassou-me o coração de ciume. Só o teo san-gue poderá puri�cal-a ante mim, que jurei esposal-a.Prepara-te para morrer!. . .

— Covarde!. . . miseravel assassino —“exclamou omancebo atirando-se sobre o seo adversario.”— Res-peita ao menos a puresa de Ursula, nao calumnies asua innocencia.

Lucta desesperada travou-se entre ambos. Os as-264 293

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seclas do commendador agarraram Tancredo pelascostas, e o covarde commendador embebeo-lhe nopeito o punhal que trasia na mão.

— Mataste-me! —“exclamou o infeliz Tancredo”—farta-te de sangue, fera indomita e cruel! mas eu tejuro à hora suprema da minha existencia que Ursulanão será tua esposa.

Fernando P. . . , essa menina, que jaz desfallecida,ama-me muito para poder esquecer-me; e odeia-tedemais para poder perdoar-te. O teo amor será apunição do teo crime.

Entretanto Fernando, victorioso e triumphante, ui-vava de feroz alegria, e vociferou rangendo os dentes:

— Mentes! mentes! Olha-a pela derradeira vez;não é elle formosa como um anjo? Não é assim?Achei-a tambem, amei-a, rendi-lhe um culto de loucaadooração, e agora é minha. Amaste-a, Tancredo?Amou-te ella? oh! ha de amar-me tambem, quandotuas cinzas já frias no sepulchro lhe não recordaremtua passada ternura.

E o infeliz Tancredo no ultimo transe de sua intimaagonia estendeo os braços e exclamou com delirio

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amoroso:— Ursula! minha Ursula!Então a donzella despertou de seo derido lethargo,

abrio os olhos, e n’um excesso de amor apaixonado, ede uma dôr intima, lançou-se sobre seo desditoso es-poso, e unindo-o ao coração, recebeo-lhe o derradeirosuspiro.

Um mar de sangue tingio-lhe as mãos e os purosseios! Tinha os olhos �xos e pasmados sobre o do-loroso espectaculo, e entretanto parecia nada ver;estava absorta em sua dôr suprema, muda, e impassi-vel em presença de tão monstruosa desgraça!. . .

O seo so�rimento era horrivel, e profundo, e oque se passava de amargo e pungente naquella almacandida e meiga foi bastante para perturbar-lhe arasão.

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Capítulo 19

O DESPERTAR

O amor, que se nutre no coração do homem generoso,é puro e nobre, leal e sancto, profundo e immenso,e capaz de quanta virtude o mundo pode conhecer,de quanta dedicação se possa conceber. Elle o elevaacima de si proprio, e as suas acções são o perfumeembriagador d’esse sentimento, que o anima: mas oamor no peito do homem feroz e concupicente é umapaixão funesta, que conduz ao crime, que lhe mata aalma e a despenha no inferno.

Tal era o amor que abrasava a alma indomita e267 293

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malvada de Fernando P. . . O amor perdera-o. Elle jánão sonhava com a vingança; mas começava a sentiralguma cousa, que lhe rasgava o coração. Seriam osespinhos do remorso?

Fernando até ali sopitára esse castigo do céo, enunca seo somno fôra atribulado. Entretanto agora,cada sombra era um espectro pavoroso e ameaçador,que lhe erguia os braços descarnados, e acenava-lhepara as feridas gotejantes: e elle feixava os olhos evia-o ainda, e sempre, e por toda a parte.

Então corria espavorido e louvo, como se preten-desse fugira a si mesmo para escapar a tão pungentemartyrio, mas embalde porque a sombra de sua vic-tima o seguia impassivel.

Após a noite da horrivel catastrophe, tinham-sesuccedido já duas, e a tranquillidade não voltara aoespirito do commendador. Em todo esse tempo nãopodera conciliar o somno um só momento; porque osomno foge àquelle que perdeo a paz d’espirito.

E para serenar a tempestade da sua alma lembrou-se de Ursula, por quem emprehendera esses novos ehorrendos crimes, e tentou vel-a. De ha muito que

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já se esforçava por hir ver aquelle anjo de candura ebelleza, mas o animo lhe faltava com a lembrança deque ella lhe lançaria em rosto os seos crimes. Por ul-timo vencendo sua pusilanimidade correo desvairadoao seo quarto.

Ursula tinha os olhos cerrados; dormia o somnoagitado do febricitante. As horas, que se escoavam játão longas, os desvelos de que a cercavam, nem a dor,que lhe despedaçava a alma, tinham-na arrancado aesse doloroso torpor.

Então Fernando P. . . ajoelhou ante esse anjo,olhou-a extasiado, sem atrever-se a tocal-a, ou a cha-mar pelo seo nome. Temeo despertal-a.

Nessa atitude passou elle muitas horas sem queUrsula voltasse a si. Um assomo de cholera concen-trada ennuviou a fronte pallida desse homem feroz,e prorompeo blasphemando:

— Maldição! Mil vezes o mataria, se mil vidas oinferno lhe tivesse dado.

E Ursula continuou o seo lethargo agitado, e ellerecahio na adoração intima e silenciosa em que esti-vera.

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Mas o phantasma d’essa menina era um remorsovivo para o seo coração; seos olhos cerrados, seoslabios entreabertos, sua respiração curta e anhelante,pareciam repettir-lhe:

— Assassino!O commendador tentou espancar do espírito essa

ideia, que lhe voltava incessante, e elle cahio em do-lorosa prostração, que excitaria dó em quem não sou-besse os seos nefandos crimes.

Ursula estremeceo no leito, torceo os braços comdesesperação, lançou-os fóra da cama, e deixou-osdepois cahir sobre o peito.

O commendador gemeo de dor e atreveo-se a ex-clamar:

— Ursula!Sua voz era tremula, e o som fraco e doloroso.Ao som d’essa voz, que lhe despertava tão agudas

dores, a moça debatteo-se no leito, e convulsa, pallida,e angustiada, levantou-se com impetuosidade. Abrioos olhos, e dilatou-os sobre Fernando P. . . , sempreajoelhado a seos pés, e soltou um grito, que o fezestremecer de angustia.

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Depois levou ambas as mãos aos olhos, e um solu-çar doido e magoado parecia despedaçar-lhe o a�ictopeito.

Então esse homem endurecido e cruel vergou aopeso de tão enorme remorso. . . Fernando P. . . pelavez primeira comprehendeo o que era a dor no cora-ção de outrem! Gemeo de a�ictiva angustia ante o su-premo so�rimento da mulher, que amava; e invocou-a com ternura.

— Ursula! Oh! quanto te hei amado! Poderas tucomprehender a extensão dos meos a�ectos, e eu nãosentira agora invenenarem-me a alma a desesperaçãoe o remorso.

Desdenhaste o amor do meo coração. . . Porque?não era elle puro como a tua alma?

Donzella! se te dignasses lançar a vista sobre omeo so�rimento, talvez te apiedasses de mim, e acre-ditasses na minha a�eição; porque muito hei so�rido,Ursula, muito. . .

Desde o dia fatal em que te vi na matta, esqueci omeo orgulho, e uma ardente e inextinguivel paixãome abrasou a alma. N’esse dia, eu jurei pelo céo

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ou pelo inferno que serias minha esposa. Perdôa,Ursula!. . . n’esse dia, ainda eu era orgulhoso. Hojepeço-te supplicante: negar-me-has?

Ursula, em nome do céo, uma só palavra, aindaque essa seja para amaldiçoar-me!. . . .

E dizendo rojava-se pelo chão, e beijava-lhe a �m-bria de seo vestido.

Então ella desvendou os olhos, e poz-se acontemplal-o, muda e impassivel como se nada a in-quietasse; e depois de alguns momentos levantou-se,deu alguns passos vagarosos e incertos, e voltando-separa Fernando, que a seguia com a vista e o coração,deixou escapar um sorriso descomposto, que o geloude neve.

E Fernando P. . . conheceo que estava punido!Varreram-se suas afagadoras esperanças. N’essesolhos espantados e brilhantes, n’esse andar incerto, en’esse sorriso descommunal reconhecera que estavalouca!

Tão doida foi-lhe essa triste convicção, que a ca-beça pendeo-lhe para a terra, e �cou prostrado comose um raio o tivesse ferido. E as esperanças tão queri-

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das do seo coração myrraram-se, e extinguiram-se!. . .Passou algum tempo nessa posição, e depois esse

homem robusto, altivo, feroz e cholerico chorou comodebil criança.

Mas seo desespero, seo pranto de amargura, não oscomprehendia Ursula, que distrahida brincava comas �ores já murchas de sua capella de noiva.

Então o commendador sahio correndo; porque apresença d’essa mulher matava-o.

Na sua desesperação ninguem o consolava; porqueera máo e cruel para os que o conheciam.

Seos escravos olhavam-no pasmo, e não o reconhe-ciam. O remorso o havia completamente des�gurado.

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Capítulo 20

A LOUCA

Brilhavam ainda no occaso os ultimos raios do sol. Aparda tarde embelesava a naturesa com essas melan-cholicas côres, que trasem ao coração do homem asaudade e a tristesa.

Sentado em um banco do seo jardim, o commen-dador Fernando P. . . não via, nem curava de todaessa bellesa arrebatadora, que enebria os sentidos, eeleva a alma até Deos. A essa hora magica em quea �ôr singela e seductora escuta enlevada o suspi-roso segredo da brisa, que a festeja; em que o colibrí

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furtando-lhe um mimoso e feiticeiro adeja e sussura-lhe em volta; em que lá no bosque o vento suspiraharmonioso, e os cantores das selvas soltam seo trinarmelodioso e terno; em que o mar na praia é paci�coe manso, e perde a altivez com que bramia; em quea virgem entregue a um vago, inde�nivel e magicoscismar recende mais casto, mais enlevador perfume,como o aroma de uma �ôr celeste; a essa hora mesmaFernando P. . . , aguilhoado pelos remorsos, só via hor-ridos phantasmas, que o cercavam.

No rosto pallido e desfeito as lagrymas escavavam-lhe profundos sulcos; os olhos encovados, e verme-lhos, e pisados denunciavam a insomnia febricitante.Já não era o mesmo, senão no seo amor e na suadesesperação.

A dor enrugou-lhe as faces, os remorsos alvejaram-lhe os cabellos. Tão poucos dias de a�icçãotransformaram-n’o em um velho fraco e abattido.

Faltava-lhe forças para ver Ursula; as noites,e os dias inteiros passava-os ahi, ora correndolouco por baixo d’essas copadas e seculares arvores;ora rojando-se por terra, arrancando os cabellos e

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blasphemando horrivelmente de Deos e dos homens.Ahi, a essa hora magica do crepusculo, estava elle,

como de costume, só, e todo entregue a seos pungen-tes so�rimentos, quando a branda, mas reprehensivavoz de um homem, o sobre-saltou.

Era o velho sacerdote.— Vêdes? —“lhe disse apontando com o dedo na

direcção do poente”— É ella, — é Susana!O commendador levantou maquinalmente a cabeça

e olhou.Em uma rede velha levavam dous pretos um cada-

ver involto em grosseira e exigua mortalha; hiam-nosepultar!

Então Fernando P. . . estremeceo; porque aos ou-vidos echoou-lhe uma voz tremenda e horrivel queo gelou de medo. Era o remorso pungente e agudo,que sem treguas nem pausa acicalava o seo coraçãofebera por febera.

Escondeo o rosto, espavorido, e menciando a ca-beça disse:

— Não! não fui eu!

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—Fosteis! —“tornou-lhe o padre com o accento do quevai julgar”— A infeliz succumbio à força de horriveistractos. Martyrisastes a pobre velha, innocente, e quenão teve parte na desapparição de Ursula! Não vol-o provava seo accento de sincera ingenuidade, suanegativa franca e �rme?!

Homem ! porque a encerrastes nessa escura e humidaprisão, e ahi a deixastes entregue aos vermes, à fomee ao desespero?!!

Nos derradeiros instantes da sua vida, eu, o indignoministro do Senhor, estava ao seo lado, e os seosultimos queixumes como que ainda os escuto!

Sorria-se à borda da sepultura; porque tinha cons-ciencia de que era innocente e bemaventurada docéo. A morte era-lhe suave; porque quebrava-lheo martyrio e as cadeas da masmorra infecta e hor-renda.

E sabeis vós o que é a vida na prisão? oh! é umtormento amargo, que mata o corpo, e embrutece o

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espirito! É morrer mil vezes sem encontrar nunca apaz da sepultura! É um somno doloroso e triste doqual o infeliz só vae despertar na eternidade!

E endurecestes o coração ao brado da innocencia!..Porque era escrava subcarregaste-la de ferros; negas-tes-lhe o ar livre dos campos, e entretido com novasvinganças, nem della mais vos recordastes!

Assassino de Tancredo, de Tulio, de Paulo, e de Su-sana! Monstro! �agello da humanidade, ainda nãosaciastes a vossa vingança? Ah! humilhado e emnome de Deos, pedi-vos mercê para os infelizes; sal-vação para a vossa alma. Desdenhastes as minhassupplicas!

Orgulhoso e vingativo que sois! E não sentistes queDeos observa os malvados e que os pune ainda naterra.

Em vossa louca e vaidosa ideia, julgastes-vos grande,e esmagastes aos vossos semelhantes que eram fracos,e estavam inermes!

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Como a fera dos bosques acommettestes a Tancredoe covardemente o assassinastes: como um verdugocruel punistes Susana de um crime que não tinha. . .oh! se o arrependimento vos não apagar a nodoa dopeccado, os crimes vos despenharão no inferno.

Fernando P. . . ! Deos vela sobre as acções do homem,e o condemna pela vaidade estupida do seo orgulho.Ursula! O que é feito della?!

Tremes? Oh! eis-ahi o vosso primeiro castigo.

A infeliz enloqueceo de dôr, e a sua loucura myrrou-vos a esperança do seo amor!

Agora o amor requeima-vos o coração; mas arido éelle; porque os a�ectos de sua alma não serão parati.

Fernando! chorae o pranto do arrependimento: sedecharitativo e sincero que são vias para a remissãode vossos enormes peccados. Ainda é tempo. Escutae

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por esta bocca impura a voz do Senhor, que na suaextrema bondade talvez o perdoe.

Vivei a vida solitario, passae em ardente e fervorosaoração os dias e as noites.

Indemnisae os vossos escravos do mal, que lhes heifeito, dando-lhes a liberdade. Esse acto de abnegaçãoe de charidade christans agradará a Deos, e entãotalvez na sua misericordia in�nita elle abra para vósos thesouros da sua inefavel graça.

O commendador, sempre com a face inclinada paraa terra, ouvia em silencio as reprehensões do digno sa-cerdote; mas vendo que elle terminara aconselhando-o, redarguio-lhe com desalento:

— Levae-me onde está ella. . . a tanto tempo que anão vejo!

O velho sacerdote sentio-se vivamente commovidoao aspecto d’esse homem cheio de crimes e de mal-dicções, e a quem os remorsos tinham envelhecidode repente.

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Elle conheceo que o arrependimento principiava aoperar-se n’aquella alma rebelde. Tomou-lhe as mãosseccas e ardentes, e o foi guiando até os aposentosda donzella. Mas Fernando P. . . estacou no limiar daporta, não se atrevendo a entrar.

A scena, que se apresentou a seos olhos, quebrou-lhe o coração de angustias.

Ursula sorria, afagando invisivel sombra, mas essesorriso era debil e vaporoso — era o derradeiro esforçode uma alma, que está prestes a quebrar as prisõesdo corpo.

O commendador feixou os olhos, e agarrou-se àporta para não cahir.

E ella, como se a ninguem visse, murmurava emvoz baixa, e depois tornava a sorrir-se.

— Vem —“disse com voz debil, mas repassada deternura”— tanto tempo ha que te procuro embalde.

Tancredo! porque me fugias? Onde estavas?Espera. . . agora me recordo. Tulio disse-me que

muito longe te levava não sei que negocio urgente!. . .E eu sentia a dôr da separação; porque era já longa, etriste.

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E depois tirando dos cabellos uma �orzinha secca,ultima que lhe restava da capela, beijou-a, e sorrio-secom ternura.

Não as vês, Tancredo? são as �ores do meo noi-vado! São tão lindas. . . amo-as!. . .

E apertou-a ao coração.Depois soltou um profundo suspiro, e erguendo

as mãos supplices para o sacerdote, em quem só en-tão reparara, exclamou com voz que revelava a maisa�ictiva angustia:

— Por compaixão! Oh! não o mateis! Que horror!. . .Oh! matae-me antes!. . . O monstro ri-se com praser. . .e sem piedade! Ah! maldição!. . . maldição sobre elle!

Seos olhos brilharam ainda uma derradeira vezcom um fulgir vivido, depois cerraram-se.

Era como a luz, que no seo ultimo viver, antesd’extinguir-se para sempre, avulta e cresce por cla-rões vagos e interrompidos.

Após de longa pausa, sempre com os olhos feixa-dos, continuou:

— Deos meo! Porque assassinou elle a Tancredo?Oh! era noite. . . Bem vi, seos olhos eram os de um

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tigre!Arredae-vos! arredae-vos —“disse, pegando ao

acaso a mão do sacerdote, que lhe aguardava o ul-timo momento”— não vedes que ahi ha sangue?. . .sangue!. . . muito sangue!. . .

Muito, muito sangue derramou elle, e esse sanguecahio-me todo aqui no coração.

Sinto uma a�ição, que me mata! Ai que dôr!!.. —“Ecom a mão sobre o coração se poz a soluçar com tantadôr, que partiria o coração ainda o mais embrutecido.”

O sacerdote accenou então para o commendador,que estava immovel e pallido: este entrou.

— Meo �lho —“disse o padre”— ajoelhemo-nos.Ambos cahiram prostrados aos pés da infeliz louca,

que entregava a alma ao Creador.O sacerdote murmurava com melancholico accento

o psalmo dos defunctos; mas o commendador o nãocomprehendia; porque Ursula morria, e elle tinha sidoa causa. A dor e o remorso tiraram-lhe os sentidos, ecahio por terra.

O padre não deo fé desse accidente e continuou aorar fervorosamente. E a oração dos seos labios subia

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ao céo como nuvem de incenso que por muito tempoondula em torno do altar e sobe até Deos.

Era o perfume, que precedia à alma da donzella.E ella, nesse transe supremo, crusou as mãos sobre

o peito, apertando n’esse estreito abraço a �orsinhasecca de sua capella, e murmurou —“Tancredo!”—,e com os labios entre-abertos, e onde adejava umsorriso divinal, e como um anjo deo o ultimo suspiro.

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EPILOGO

Dous annos eram já passados sobre os tristes aconteci-mentos, que narrámos, e ninguem mais na provinciase lembrava dos execrandos factos do convento de*** e da horrenda morte de Tancredo. A justiça, sea pintam vendada, completamente cega �cou, e osassassinatos do apaixonado mancebo e do seo �elTulio impunes.

E o sudario do esquecimento cahira sobre elles;porque a lousa do sepulchro os tinha encerrado parasempre!

E as pesquisas da justiça cançaram de mysterios e

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tergiversações e tambem foram abandonadas.Só um homem conhecia assassino; mas esse ho-

mem era incapaz de uma denuncia — esse homemsó curava da alma, e a sua missão era toda de paz. ADeos, pois, pertencia o castigo do culpado.

No convento dos carmelitas, havia dous annos,entrára um homem, que pedira o habito, e logo depoiscomeçáro o seo noviciado.

Esse homem era um velho, com a fronte e o rostosulcados de rugas, a pelle macilenta, e o corpo ver-gado e encarquilhado como do convalescente de mo-lestia atroz, debilitante e prolongada.

Quem era elle ninguem o sabia no convento.Chamava-se — frei Luiz de Sancta Ursula.

A�rmavam alguns leigos que esse velho era umlouco; porque as vezes, rompendo fervorosa oração,possuia-se de frenesi, os olhos chamejavam-lhe, ran-gia os dentes, e cahia por terra em deliquio.

Trazia cilicios, jejuava rigorosamente, e as noitesvellava-as inteiras.

E se lhe podessem ver o coração ahi encontrariamescripto com caracteres de fogo:

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— Ursula! —. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .A noite hia já alta. Era uma destas noites hynver-

nosas, em que o céo se tolda de nimbos espessos enegros. Nem uma estrella se pintava no céo, nem avia lactea esclarecia um ponto se quer do �rmamento.Era tudo trevas. O vento zunia com estampido ea chuva cahia em torrentes com fragor immensos,como sohe acontecer nas regiões equatoriaes.

Então o sino, lugubremente tangido, annunciouaos irmãos carmelitas, que um dos seos tocava asportas da eternidade. E logo no convento agitou-seum longo e lugubre murmurio.

Era o psalmo, que recorda ao peccador que é pó. eencaminha-o no transe derradeiro.

E o cantico mysterioso e solemne echoou nas abo-bodas do sanctuario.

O irmão, que gemia a derradeira dor, era o noviçofrei Luiz de Sancta Ursula a quem chamavam — olouco.

— Meo �lho! —“murmurou-lhe um piedosomonge”— não nos faltam consolações no seio da

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egreja. Aquelle que con�a no Senhor parte em suasancta paz.

Depositae no meo coração o segredo de vossasculpas; a penitencia é um sacramento, que nos aplainao caminho do céo.

— Confessar-me, irmão? e para que?— Para que as vossas culpas vos sejam perdoadas.— Não —“tornou o moribundo”— Sabeis vós o que

vae por esta alma de torturas e odio? Sabeis? Oh!tenho o inferno no coração!

— Jesus! Meo Deos ! —“exclamou o religioso fa-sendo o signal da cruz sobre o moribundo”— Irmão,em nome de Deos arredae do mundo o pensamento.

O inferno no coração! Que estaes ahi a dizer?! OSenhor esclareça as trevas da vossa alma para quepossa ella puri�car-se. O arrependimento sincero,meo irmão, cura as mais profundas chagas do coração,e apaga os mais atrozes crimes.

Entretanto o moribundo não parecia commover-se.Então o frade sahio, e voltando appresentou-lhe umCruci�xo.

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— Irmão! —“exclamou-lhe”— Eis o Filho de Deos,aquelle cujo sacri�cio sublime remio o homem dacadeia da culpa. Encarae-o. É Deos, que vos vempedir por preço do seo sangue a contricção da vossaalma. Negar-lh’a-heis?

Frei Luiz de Sancta Ursula, ou antes o commen-dador Fernando P. . . , volveo os olhos já baços pelamorte, e olhando para o Cruci�cado, e depois para opadre, disse:

Amei-a, padre; amei-a mais que ao Filho de Deos,mais do que a salvação da alma, e por amor delladespenhei-me no inferno!. . . —E as lagrymas come-çaram a cahir-lhe pelas aridas faces.

— Não, meo �lho —“objectou-lhe o religioso”—Deos perdôa ao arrependido. Lembrae-vos de Mag-dalena.

— Arrependido! —“exclamou o moribundo”— arre-pendido, eu? Oh! não, meo padre. Compadeceo-seDeos do meo martyrio? Nunca. Matou-me a espe-rança no coração. Deixou lavrar o amor frenetico nopeito, que o rasgou, que deo-lhe a coragem do crime,sem dar-lhe a saciedade da vingança. Cometti muitos

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crimes, e ainda até hoje não serenou-se-me o coraçãosedento de odio e de vingança.

Feri o homem a quem ella adorava, vi correr-lhe osangue que derramei, vi-o expirar a meos pés, sorri-me de praser, e oh! maldição! não �quei vingado!

— Oh! —“exclamou o monge transido de pavor”—que horror!!

— Esse homem fôra preferido, fôra o eleito do seocoração. Ella, ainda apoz a morte d’elle, dedicou-lheo mesmo amor.

— Em nome do Senhor arrependei-vos!— Tancredo! —“continuou com odio”— Tancredo,

roubaste-m’a! Cedo tornar-nos-hemos a encontrarno outro mundo e lá ainda te pedirei contas comon’este!

— Tancredo?! —“interrompeo o frade comadmiração”— Tancredo! Filho, quantos crimes pesamsobre vós! Ao pé do cadaver de Tancredo estava umoutro cadaver, e ambos pareciam feridos da mesmamão. Fosteis tambem vós que o assassinastes?!

— Sim. —“disse”— Assassinou-o a minha vingança.Susana, Tulio, Tancredo e Ursula, meo padre, todos

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�zeram de mim um objecto de zombaria.— E ella? —“perguntou o confessor.— Ella?!. . . Ella morreo amaldiçoando-me!!. . . A

infeliz enlouqueceo de dôr, e eu não a pude salvar!. . .Meo padre —“continuou”— eu a vi no sepulchro, e

não sei como não morri então!— Não podeis por ventura supportar a vida sem

ella?— Oh! não!. . . não, meo padre!— E não sabeis então que estaes separado della

para sempre?— Para sempre?! —“indagou elle com a�ição vehe-

mente, e um profundo suspiro agitou seo peito.— Para sempre! —“tornou-lhe o monge.— E porque? —“murmurou elle com humildade.— Porque, meo �lho, ella está no céo, e vós, homem

criminoso e impenitente, vos despenhaes no inferno.Houve então uma longa pausa. Faltavam as forças

ao moribundo, cujo peito anciava como combattidopor uma lucta terrivel e renhida.

Fez um ultimo esforço, porque sentia as prisões davida despedaçarem-se, e estendendo os braços, tomou

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o Cruci�cado, levou-o aos labios, e pondo-o sobre ocoração, exclamou demonstrando o mais profundoarrependimento:

— Perdoae-me, Senhor! porque na hora derradeirasu�oca-me a enormidade das minhas culpas.

Lagrymas de sincera dôr verteram seos olhos, quepara sempre se cerraram; e a morte imprimio-lhe norosto a tranquilidade da contricção.

Nesse dia chorava Adelaide suas primeiras lagry-mas de dôr, porque a opulencia, e o fausto não basta-vam para lh’as estancar.

Seo primeiro esposo era já morto, envenenado poracerbos desgostos. Ella ludibriara o decrepito velho,que a roubára ao �lho, e elle em seos momentos decrime imporente amaldiçoava a hora em que a amára.

Ella depois tambem chorou, e chorou muito; por-que as dores, que o céo lhe enviou, foram bem graves.Casou segunda vez e o novo esposo, que não amava asua deslumbrante bellesa, a arrastou de a�icção atéo desespero.

E o remorso, que lhe pungia na alma, augmen-tava a grandesa das suas magoas, porque a imagem

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d’aquella mulher, que tanto a amara, e cujos dias ellatorturou sem piedade até despenhal-a no sepulchro,se lhe erguia melancholica na hora do repouso, e aamaldiçoava.

E depois eram já tão amargos os seos dias, que bus-cou afanosa a morada do descanço e da tranquilidade.

De todas estas victimas do amor, apenas restamvestigios sobre a terra da desditosa Ursula.

No convento de ***, juncto ao altar da Senhoradas Dores encontra-se uma lapide rasa e singela comestas palavras — ORAE PELA INFELIZ URSULA!

FIM

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