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Mário de Alencar Afrânio Peixoto C hamara o Ministro J. J. Seabra para seu secretário a Mário de Alencar, funcionário graduado do Ministério da Justiça. Foi o ato mais acertado do seu governo, porque Seabra teve o desastre de alienar as glórias que seriam suas, do Oswaldo e do Passos, por ele nomeados e dependentes do seu ministério. Mário tinha tato, escrevia bem e em tudo punha ordem e medida. Apresentado a ele, fiquei logo correndo com ele em amizade, in- formando-o amiúde da categoria das pessoas da Bahia que escreviam a Seabra e a quem o ministro respondia pelo seu secretário. As cartas, assim, eram tão adequadas e justas que Seabra pôs-se a bem apreciar o admirável funcionário que tinha a seu serviço. A Academia, que acabara por eleger Mário de Alencar, pois Ma- chado de Assis tinha por ele grande admiração pessoal, deveu a Má- rio a sua instalação no Silogeu. Era, então, um prédio começado faustosamente e inacabado, creio que destinado a uma maternidade. Pôde-se colocar a mater- nidade em Laranjeiras, num prédio adquirido, e Mário sugeriu a Seabra terminar parcimoniosamente o prédio começado à Praia 345 Guardados da Memória Afrânio Peixoto (1876-1947). Terceiro ocupante da Cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras.

MARIO - Guardados Da Memória

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Epistolografia de Mário de Alencar

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Mário de Alencar

Afrânio Pe ixoto

Chamara o Ministro J. J. Seabra para seu secretário a Mário deAlencar, funcionário graduado do Ministério da Justiça. Foi

o ato mais acertado do seu governo, porque Seabra teve o desastre dealienar as glórias que seriam suas, do Oswaldo e do Passos, por elenomeados e dependentes do seu ministério.

Mário tinha tato, escrevia bem e em tudo punha ordem e medida.Apresentado a ele, fiquei logo correndo com ele em amizade, in-

formando-o amiúde da categoria das pessoas da Bahia que escreviama Seabra e a quem o ministro respondia pelo seu secretário.

As cartas, assim, eram tão adequadas e justas que Seabra pôs-se abem apreciar o admirável funcionário que tinha a seu serviço.

A Academia, que acabara por eleger Mário de Alencar, pois Ma-chado de Assis tinha por ele grande admiração pessoal, deveu a Má-rio a sua instalação no Silogeu.

Era, então, um prédio começado faustosamente e inacabado,creio que destinado a uma maternidade. Pôde-se colocar a mater-nidade em Laranjeiras, num prédio adquirido, e Mário sugeriu aSeabra terminar parcimoniosamente o prédio começado à Praia

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Guardados da Memória

Afrânio Peixoto(1876-1947).Terceiroocupante daCadeira 7 daAcademiaBrasileira deLetras.

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da Lapa, destinando-o a várias associações sem pouso. Foram contempla-dos o Instituto Histórico, o Instituto dos Advogados, a Academia Nacio-nal de Medicina e a Academia Brasileira; desta, ninguém se lembraria seMário, para ela, não tivesse feito a combinação em que entravam as outras.Por esse grande serviço, Murat propôs a Seabra que se inaugurasse na Aca-demia o retrato. Naquela efígie eu vejo todas as semanas a de Mário deAlencar. Sic vos non vobis.

Mário, na Academia, acolitou Machado de Assis, seu mestre e seu amigo, edele recebeu o legado de velar pela filha única que tivera e na velhice, quando oamor fica mais zeloso e veemente.

O de Machado à Academia chegou até ao sacrifício de adotar a horrível or-tografia fonética que o antilusismo de Medeiros e Albuquerque lhe impusera.O pobre Machado estava inconsolável: quando da revisão de Esaú e Jacó, verifi-cou que teria de escrever esse título à moda extravagante: Ezaú e Jacó.

Contava-me Mário, desanimado, por ver ali o maior sacrifício que um velhohomem de letras pode fazer à inconseqüência jovem de um Cenáculo de letra-dos que sabiam tudo, menos a língua.

Sugeri-lhe, então, que os nomes próprios seriam exceção, e Machado nãotrairia a Companhia escrevendo como todo o mundo.

Mário, exultante, partiu com o alvitre e disse-me o que Machado lhe disse-ra: tinha vontade de dançar tamanha a satisfação. Bastava que no texto de seusromances se visse forçado à grafia fonética da Academia. Só senti a sua satisfa-ção quando, anos mais tade, sem poder invocar que era nome próprio, tive deecrever Esphinge sem ph e com j.

Já contei como o aplauso de Machado me valera a dedicação de Mário paraa Academia. Por mim fez ele imprimir cartões com o meu (sic) e neles sua letri-nha fina pedia votos, como mandava o regulamento. A própria carta de candi-datura ele a escreveu, só mais tarde substituída por outra de meu punho. Suacabala foi tão bem feita que os votos que lograram meus contendores foramdistraídos por ele e dispensáveis a meu triunfo.

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Quando cheguei ao Rio, eleito, e pensei em pedir-lhe que me recebesse, jáachei por ele apalavrado Araripe Júnior, porque, dizia ele, tendo benevolamen-te criticado a Rosa Mística, e sido por mim prefaciado o seu livro Miss Kate, teria abondade e o entusiasmo de me receber.

Mário era assim como as lâmpadas votivas que queimam perenemente nosaltares. No seu altar havia a amizade. Havia a amizade aos seus, filho, irmão,esposo e pai dedicadíssimo, e também exemplar amigo. Desses amigos que vãoà cegueira fazendo ouro tudo o que tocam.

Conheci ainda a mãe dele, D. Georgina de Alencar, a quem visitei na cháca-ra do Cochrane, na Tijuca, solar que tivera o seu faustuoso parque riscado eplantado por Thomaz Cochrane, o fundador da homeopatia no Brasil, irmãodo Almirante Lord Cochrane, Marquês do Maranhão e herói da Independên-cia, avô de Mário de Alencar.

Propriedade e parque haviam caído em decadência. D. Georgina mos-trou-me o banco em que estivera sentado Castro Alves, que viera à Tijuca tra-zer a José de Alencar cartas de apresentação de Fernandes da Cunha.

Cícero apresentando Horácio, como dissera ele a seu amigo Machado deAssis, a quem recambiara o jovem poeta para a glória da publicidade.

– Ele estave sentado aqui – dizia-me a mãe de Mário de Alencar –, e aquiJosé, meu marido. Tive a visão concreta de que ali estiveram momento juntoso maior romancista e o maior poeta brasileiros.

Um velho escravo remanescente da fazenda deu-me a noção da glória de seusenhor:

– De quem foi você escravo?– De meu senhor José de Alencar.– Quem foi este homem?– Pois não sabe o Sr.? Foi um homem tão grande que o governo mandou fa-

zê-lo de ferro e lá está no Catete.Era a glória. Ela representa mais do que cem volumes aplaudidos e lidos

pelo Brasil inteiro. Mas um movimento de humanidade com que um dos pri-meiros atos do Ministro José de Alencar, em 78, mandara abolir o infame mer-

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Mário de Alencar

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cado de carne humana, negros vendidos e escolhidos, ali no Valongo. Concor-dei com o velho escravo na grandeza de José de Alencar.

A quinta do Cochrane tivera fama até na Inglaterra. Uma parente inglesa,deles, viera ao Brasil e lá no abandono e na penúria perguntava:

– Where is the park?Recentemente adquirida pelo milionário E. G. Fontes, a quinta do Cochra-

ne estará em breve restituída a seu esplendor.Foi aí que situei uma das cenas que mais me agradam de meu livro As Razões

do Coração, onde o tio da heroína esconde na serra a sua felicidade.Essa Tijuca que Alencar chamou um degrau para o céu continuou a ser o en-

canto do filho, que distribuía entre a Tijuca e Teresópolis as suas férias de verão.Na serra travei conhecimento com os “Sonhos de Ouro”, a planta silvestre

de florinhas amarelas, cujo nome lhe dera Alencar, pondo como título a um deseus romances.

Também na Tijuca levo personagem meu a pé, à Cascatinha, ao Hotel Whi-te, remansos de frescura e vegetação descritos em Uma Mulher Como as Outras.

Tenho hoje a sensação de que o automóvel, correndo vertiginosamente daMuda à Gávea, do Niemeyer a Conde de Bonfim, permite apenas ao viajantemenos ver a Tijuca do que a Tijuca ver esses monstros de aço que roncam quei-mando gasolina. É a Tijuca quem os vê. Eles não podem ver a Tijuca.

Com efeito, essa montanha maravilhosa, coberta com um manto verde defada, ao som de águas cantantes e de névoas esgarçadas ao sol, revela o cuidadode uma obra de arte, tanto da natureza quanto do homem.

A mata da Tijuca é uma floresta civilizada; contém espécies raras e foi plan-tada árvore a árvore pelo Barão d’Escragnolle, parente dos Taunay, a mando desua majestade.

Na Cascatinha, em Paulo e Virginia, por toda a parte continuo a ouvirAlencar e Castro Alves, embora a fantasia destes chegue ao inverossímil:

“E da Tijuca na nitente espumaBanham-se as filhas do país do sul.”

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Esse país do sul é apenas o Rio para o nortista Castro Alves.Inverossímil, mas nunca pude ver a Cascatinha sem imaginar encobertas

pelo íris que faz o sol na neblina que se levanta da cachoeira essas filhas do sulque aí vira Castro Alves. Convém que não seja o mesmo a olhos estranhos; as-sim é que, na Gruta Paulo e Virginia, próximo, em um bambu, mão peregrinaescrevera: Bella naturaleza e nada más.

Uma vez, na Tijuca, Mário de Alencar levou-me à chácara do Werneck,onde conheci o famoso Capistrano de Abreu, que nos permitiu a Mário e amim visitá-lo no cômodo ou porão da casa onde habitavam, sem licença de aípenetrar a família do hóspede que o abrigava.

Tive então uma visão selvagem contrastante com a realidade ambiente. Umhomem alto, gordo, moreno, despido, balançando-se numa rede em casa civili-zada, de família, num subúrbio elegante do Rio de Janeiro. Era o historiadorem natura; não se levantou para nos acolher. Fui apresentado a Capistranosem indumentária, e ele sem vexame de sua toilette. Gostava tanto do Márioque, para vê-lo, vencia a repugnância de se mostrar assim a estranho. E ficoucorrendo comigo em amizade, só porque era amigo do seu amigo.

Medeiros e Albuquerque é, nas suas Memórias, injusto com Mário de Alen-car, que se opunha às vezes vitoriosamente às inconseqüências e leviandadesjornalísticas que numa casa de tradição quisera Medeiros introduzir. Vêm deletodas as inconseqüências ortográficas em que estamos enleados. Não que estu-dos filosóficos inspirassem a Medeiros preocupações gráficas; não. Fora edu-cado na meninice em Portugal e, como é natural, ganhara, pela ojeriza aos mes-tres, animosidade aos seus compatriotas. Era contra Portugal. Quisera fazer,portanto, se não a língua brasileira, um cisma dialetal. E começava pela orto-grafia.

Mário era a tradição. Sabia grego para ler os clássicos, sabia latim para sentiros poetas, inglês para ler e escrever, francês e italiano e outras humanidades e asua língua portuguesa, de Manuel Bernardes a Machado de Assis, admiravel-mente.

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Deviam, por conseqüência, os dois representarem tendências opostas e ad-versárias.

Mário foi meu mestre de estética literária. Ao transbordamento enfático damocidade opôs a simplicidade sincera da medida. Quisera ele uma expressãopara tudo e só essa expressão. Seu mestre que me impôs era Flaubert, e o me-lhor Flaubert era para ele o da correspondência.

Costumava citar frases de Stevenson, o Flaubert inglês, dizia ele, o qualafirmava:

– Quem tiver a arte de omitir fará do número do Times uma Ilíada.A estátua está dentro do bloco de mámore. É só tirar as demasias que é a

forma. Cada diamante bruto tem incluído um brilhante lapidado que é umajóia. Da ganga do pensamento, com a arte, pode-se tirar uma idéia irredutível,expressão exata do pensamento ou da emoção.

A sua obra é, por isso, oposta, à exuberância genial paterna.Mário será um José de Alencar da velhice ou educado no aticismo reticente

de Machado de Assis.Daí o pouco que escreveu. Mas em que não há uma palavra, uma frase que

se possam suprimir sem mutilar a página ou o livro. Mário é a sinceridade. Asua sinceridade contida, medida, definitiva. Nenhum excesso nele. Nenhumaexuberância. Por isso, por vezes, sua arte confina com a dessas flores que sechamam esterilizadas. Perderam o viço, mas não mudarão. Jean Moreas disserade Flaubert:

– A perfeição da água destilada.Flaubert deixou o modelo dessa arte em Coeur Simple, que era, para Mário, a

sua obra-prima.Não penso assim. A vida tem também sinceramente entusiasmos e exube-

râncias. Mas eu, que era só entusiasmo e exuberância, aprendi com o meu ami-go Mário de Alencar a ter medida, evitar ênfase, ser simples e, mesmo exube-rante e entusiasta, procurar aí, apenas, o reflexo da sinceridade.

Não conheço no Brasil de meu tempo ninguém tão instruído na arte e na es-tética literária como Mário de Alencar. Ele tinha para isso várias literaturas a

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seu alcance. Tivera o pai, o maior dos nossos escritores, e um mestre, o maismedido e definitivo homem de letras do Brasil; dele viria, compensados anta-gonismos, Mário de Alencar, que nem todos poderão admirar, mas que é cer-tamente mestre de literatura, como não tivemos, como têm os países de grandecultura nos raros homens de letras que fazem da arte literária um sacerdócioque deve privar-se de parcerias equívocas.

Horácio dissera para ele: Odi profanum vulgus et arceo.A Academia deu-lhe grandes desgostos; ninguém teve mais influência do

que ele ao tempo de Machado e ainda depois; a razão é que, antes do prestígioque lhe deu a fortuna Alves, ela só tinha por si a dedicação de raros acadêmicose ele era talvez esse plural.

Só Bilac iniciara para ela, graciosomente, um arquivo. Tudo mais era Mário.Dera-lhe casa, sendo Ministro Seabra; depois, dera-lhe os acadêmicos que vie-ram vindo; já contei como eu mesmo fui beneficiado por essa bondade. Máriolevou para lá também seus médicos, Couto e Austregésilo devem-lhe isso.

Aos seus amigos permitia algumas iniciativas, assim é que João Ribeiro nosdoou Alberto Faria, provinciano de Campinas que tantas irritações viria cau-sar, desunindo a Companhia desde aí.

A eleição de Lauro Müller, à qual não pôde deixar de dar seu consentimen-to, porque senão Augusto de Alencar, seu irmão e ministro plenipotenciário,seria vítima, custou-lhe a inimizade de Veríssimo, que, para vingar-se, escreveuum livro de literatura nacional onde o eixo das letras nacionais deixou de pas-sar por José de Alencar para passar por Machado de Assis.

Custou-lhe a animosidade, até depois da morte, de Medeiros e Albuquerque,porque lhe contrariara as fantasias ortográficas, impostas à Academia.

Custou-lhe a ruptura com João Ribeiro, pelo amor que pôs na candidaturade Jackson de Figueiredo.

Posso, porém, depor que ninguém, antes ou depois de Machado, quis maisbem à Academia, desinteressadamente. Era como mãe extremosa que rompiaem guerra com quem lhe magoasse a filha. Daí o humor perene de sogra... aca-dêmica.

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Fiz timbre enquanto viveu em não ter na Companhia outro voto ou opi-nião, senão a sua. Também por duas vezes, em assuntos apaixonados, conseguidele abandonar paixões e convicções, por meu juízo. Uma vez no caso OliveiraLima, em que toda a Companhia estava com ele, e que só não foi excluído daAcademia porque consegui fazer adiar essa exclusão para a sessão seguinte,vindo com o tempo o juízo. A outra foi na venda ou cessão da Livraria Alvesaos devidos sucessores do livreiro, os seus empregados, quando indivíduos es-tranhos queriam apossar-se desse bem. Fiz valer o ponto de vista confidencialde Francisco Alves, ratificado pela proposta honesta de Paulo de Azevedo, amais vantajosa e idônea que recebeu a Academia.

Devo-lhe, também, o ter sido eleito presidente da Companhia, e à minharevelia, como, doze anos antes, fora também por ele eleito, à revelia minha,acadêmico.

Conspirávamos contra as presidências demoradas que tiranizaram a Aca-demia: Machado, benigno tirano de uma Academia sem interesses. Rui, quevem depois, e não governa, não aparece nunca e por ele dirigem os Secretários-Gerais, Veríssimo, Afonso, etc. Chega o testamento Alves, e o presidente con-tinua distante e nem os papéis mandados a ele são assinados.

Resolvi tentar uma mudnça e, numa eleição em que o mandato do grandehomem era seguidamente confirmado, consegui oito votos para Alberto deOliveira. Rui, habituado à unanimidade, mandou a sua renúncia, como eu es-perava. Elegemos Domício da Gama que, volvendo do estrangeiro e ministrode Estado, nos procurava assiduamente.

Domício, rapidamente, pôs termo ao inventário Alves. Teve, porém, departir, e em seu lugar foi feito presidente Laet, que iniciou uma série de anosadministrativos, com a sua coterie de Ataulfo, Alberto Faria, etc.

Resolvemos conspirar por outro presidente. Lembrei Medeiros, que repug-nava a Mário, mas que ele aceitou por condescender comigo. Eu seria o Secre-tário-Geral e assim outros. Fiz a cabala neste sentido, mas à última hora acheiMedeiros empenhado com Ataulfo para mantê-lo na Secretaria-Geral. Adver-ti-lhe que a conspiração era principalmente contra Ataulfo e que eu era exata-

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mente o apontado para substituí-lo. Medeiros não quis transigir. E eu fui obri-gado a dizer-lhe que, neste caso, também não podia, diante dos meus amigos,exigir-lhe a presidência. Respondeu-me risonho que estava eleito. Pude anun-ciar-lhe que, a não ser que tivesse o próprio voto, teria apenas dois, um meu e ooutro do Ataulfo.

Comuniquei o fato a Mário, desinteressando-me do pleito. Fui para Petró-polis no começo da sessão e só lá recebi aviso de ter sido eleito presidente daAcademia. Mário e seus parciais proveram de posto a todos os da lista, ex-cluindo Medeiros pela razão referida. Isto deve ter feito acrimônia das memó-rias de um sobre o outro.

Presidente da Academia, pudera ter iniciado também o meu período ditato-rial. No fim do ano, porém, declarei que ônus e honra à presidência da Acade-mia deviam caber a todos e sucessivamente, para que todos pudessem prestar aela serviços devidos.

Consegui eleger meu substituto a Medeiros, com assentimento de Má-rio, e daí começou a série de presidentes anuais, Afonso Celso, CoelhoNeto, Rodrigo Octavio, fundadores, não o querendo, Silva Ramos, Filin-to, Alberto de Oliveira, até que iniciamos a série dos que vieram depois,Augusto de Lima, intervindo a política e as preferências em seguida, para adesordem atual.

Falta-nos Mário de Alencar para pôr ordem em casa.Mário, último filho de grande homem, onerado de trabalhos e de paixões, já

adiantado em anos e criado por mimos maternos excessivos, atravessou a vidasob o peso imenso da glória paterna.

José de Alencar impedia-lhe ser o grande escritor que seria com o seu talen-to, principalmente sua cultura e seu gosto, maiores do que o pai, se não fôra aperpétua desconfiança de si mesmo e o medo das comparações inevitáveis.

Produziu pouco, mas esse pouco é como o extrato concentrado de perfu-mes raros. Versos são sinceros e sem uma expressão demasiada. Prosa é enxutae lapidar.

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Satélite de Machado, a quem tratava carinhosamente, foi depois centro deatração de numerosos discípulos. Em torno da sua mesa de trabalho, no Mi-nistério, depois na Biblioteca da Câmara dos Deputados, nos reuníamos, todasas tardes, os seus fiéis. Eram aí as melhores sessões da Acadamia; aí fazíamos aLiteratura, que nunca conseguimos na outra Sociedade administrativa e pre-dial, orçamentária e eletiva.

Mário foi o grande espírito tutelar da Academia antes da fortuna. Aquelescomeços difícieis de todas as coisas tiveram nele amparo e apoio. Depois elaenriqueceu e anda tonta e entontecida com a riqueza. Ainda não assentou nema cabeça nem os modos.

� João RibeiroPor Mário de Alencar conheci João Ribeiro, que era tido por ele em singu-

lar veneração. A seu ver, era humanista raro e raríssimo escritor. Tolerava-lheas rabujices, que já eram muitas neste tempo, chegando àquilo que chamei ohumor de mulher velha, contraditório, a que chegou.

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Pressentimentos

Tristão de Athaíde

Creio não ser apenas qualquer sutileza literária, e ainda menosuma sofisticação crítica, fazer uma distinção entre gestação

literária e geração literária. A gestação literária, evidentemente, é operíodo que precede à geração. Em que esta vive ainda, por assim di-zer, no seio da geração a que vai suceder. Pois cada geração é o meiosubconsciente em que se prepara a geração seguinte. O que marca apassagem do período intelectual gestatório ao período geracional é adata do aparecimento das suas primeiras obras. Como a fase gesta-cional começara com o nascimento físico dos criadores da futura or-dem estética. Cada geração, portanto, nasce nas imediações dos vinteanos de idade dos seus autores. Como começa a morrer com a suamaturidade, quando aparecem os sinais de uma nova escola, de umnovo estado de espírito ou de uma frustação estética, isto é, de umperíodo árido de charneca ou de chapadão estéril.

Semanas atrás, publicava Antônio Carlos Villaça um retrospec-to, o mais lúcido e completo que até agora se escreveu, sobre a de-

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Pseudônimode AlceuAmoroso Lima(1893-1983),um dos maiorescríticos literáriosdo século passado.Artigo publicadono Jornal do Brasilde 11 de abril de1975. Acadêmicoocupante daCadeira 40.

Guardados da Memória

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nominada geração de 45, que está completando este ano seu trigésimo ani-versário. Como estamos comemorando idêntica data da morte de Mário deAndrade, com a qual se encerrava o período modernista e começava o neo-modernismo. Daqui por diante começa o quarto final do século XX. Do sé-culo XX, cujo planalto central estético foi marcado pelo Modernismo.Como os 25 primeiros anos foram o prolongamento pré-modernista do últi-mo quartel do século XIX.

Será que os últimos lustros do nosso século vão apenas prosseguir na sendaaberta pela geração de 45? Seria rematada ousadia querer profetizar a respeito.Se realmente for exato que uma geração nasce com vinte anos e a publicaçãodas primeiras obras dos seus autores, não podemos senão admitir um outro si-nal promissor ou despromissor sobre os futuros aspectos de nossas Letras eArtes, que tão fortemente marcaram e estão marcando o centro do século, adespeito de tudo o que há de adverso, na falta de liberdade criadora do regimepolítico em curso. Pois, como se vê no retrospecto citado, a safra da geração de45, iniciada com Lêdo Ivo, em poesia, e possivelmente encerrada com obrasem prosa do mais alto teor literário, como Sinos da Agonia, de Autran Dourado,não foi inferior à de 22, em suas linhas gerais. Será que o próximo futuro nosreserva uma surpresa agradável? Ou uma frustração?

Como o meu pequeno barco de navegador solitário anda longe das praias li-terárias e agitado pelas ondas tempestuosas do policialismo autoritário, nãoouço nenhuma voz proclamando “que o grande Pan está morto”, como ouvi-ram os navegantes das praias helênicas e tanto impressionou a Nietzsche. Pos-so, quando muito, alvitrar que estamos em terreno fronteiriço, como em 1922ou em 1945. Assim como o gênio é o território medianeiro entre a saúde men-tal e a loucura, a Poesia (em sentido croceano da expressão, que supera o planodo verso propriamente dito) é a linha divisória entre o caos e o cosmos em ma-téria de inteligência criadora. Ora, o vento que sopra em minha vela de al-to-mar me sussurra aos ouvidos que, assim como o advento da geração de 45foi a passagem poética do caos ao cosmos, o da geração de 75 vai ser a passa-gem do cosmos ao caos.

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Tristão de Athaíde

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A transição, em 45, viera com a poesia de um João Cabral de Melo Neto, deum Lêdo Ivo, de um José Paulo Moreira da Fonseca, de um Geir Campos, oucom a prosa de Clarice Lispector, de um Fernando Sabino, de um Otto LaraResende, de um Antonio Callado, sem falar do maior de todos eles, João Gui-marães Rosa. Todos eles representam, de certo modo, uma reação de discipli-na intelectual contra os exageros do libertarismo estético. Será que, realmente,estaremos em face de uma reação oposta? Dir-se-á que estou fazendo apenas

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Pressent imentos

Manuel Bandeira, Agripino Grieco e Alceu Amoroso Lima.

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uma extrapolação arbitrária. Não nego. Apenas pressinto, sem prejulgar. Pres-sinto, antes de tudo, que, ao contrário do que sucedeu em 45, está havendouma revolução, como em 1922, e não uma evolução, como em 1945. Em 22,houve a primeira transição da fase gestacional do Modernismo, isto é, opré-modernismo, para a sua fase geracional e central. Esta iria dar as grandesfiguras marcantes do planalto.

Em 45 não houve uma revolução estética como em 22, mas apenas umatransmutação de processos criadores, representada por uma volta ao clássico.Pois bem, o que pressinto nesta nova geração de 75, como advento da fase fi-nal do pós-modernismo, é uma volta ao romantismo, à liberdade, ao instintocriador. E particularmente ligado à revolução social que se processa, de modopatente ou latente, em todo o mundo, sem excluir a reação contra o nossoautoritarismo institucional. Do ponto de vista estético, é uma nova revoluçãoantiformalista. E, com isso, uma ruptura com a geração de 45. Esta ainda seprendia à geração de 22, como sendo apenas o seu desdobramento. A geraçãode 75 me parece nitidamente hostil àquelas preocupações de ordem, de disci-plina, de certo neoclassicismo, de cristalinidade de expressão que havia, de cer-to modo, marcado a originalidade da geração de 45.

O que agora se começa a ler de jovens totalmente desconhecidos, em algunsnovos suplementos literários ou em publicações inéditas, mais ou menos clan-destinas, são clamores de novas libertações, de novas revoltas, de novas conde-nações, de novos repúdios aos predecessores, ao contrário do que sucederacom a mutação pacífica de 45. Os novíssimos estão com os olhos voltadospara frente, já para o século XXI, sem que aliás se possa ainda determinar ouindicar qualquer revelação. Quando muito, se pode prever em poesia uma es-pécie de novo Surrealismo. E, em prosa, um realismo violento, com a preocu-pação das novas transmutações sociais. Por tudo isso é que acredito estarem osnovos de 75 muito mais perto dos de 22 que dos de 45. Basta pensar no prestí-gio atual de Oswald de Andrade.

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Tristão de Athaíde

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P A T R O N O S , F U N D A D O R E S E M E M B R O S E F E T I V O SD A A C A D E M I A B R A S I L E I R A D E L E T R A S

(Fundada em 20 de julho de 1897)

As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da Revista Brasileira, fase III(1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis.Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituiçãorealizou-se numa sala do Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.

Cadeira Patronos Fundadores Membros Efetivos01 Adelino Fontoura Luís Murat Ana Maria Machado02 Álvares de Azevedo Coelho Neto Tarcísio Padilha03 Artur de Oliveira Filinto de Almeida Carlos Heitor Cony04 Basílio da Gama Aluísio Azevedo Carlos Nejar05 Bernardo Guimarães Raimundo Correia José Murilo de Carvalho06 Casimiro de Abreu Teixeira de Melo Cícero Sandroni07 Castro Alves Valentim Magalhães Nelson Pereira dos Santos08 Cláudio Manuel da Costa Alberto de Oliveira Antonio Olinto09 Domingos Gonçalves de Magalhães Magalhães de Azeredo Alberto da Costa e Silva10 Evaristo da Veiga Rui Barbosa Lêdo Ivo11 Fagundes Varela Lúcio de Mendonça Helio Jaguaribe12 França Júnior Urbano Duarte Alfredo Bosi13 Francisco Otaviano Visconde de Taunay Sergio Paulo Rouanet14 Franklin Távora Clóvis Beviláqua Celso Lafer15 Gonçalves Dias Olavo Bilac Pe. Fernando Bastos de Ávila16 Gregório de Matos Araripe Júnior Lygia Fagundes Telles17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Affonso Arinos de Mello Franco18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Arnaldo Niskier19 Joaquim Caetano Alcindo Guanabara Antonio Carlos Secchin20 Joaquim Manuel de Macedo Salvador de Mendonça Murilo Melo Filho21 Joaquim Serra José do Patrocínio Paulo Coelho22 José Bonifácio, o Moço Medeiros e Albuquerque Ivo Pitanguy23 José de Alencar Machado de Assis Zélia Gattai24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Sábato Magaldi25 Junqueira Freire Barão de Loreto Alberto Venancio Filho26 Laurindo Rabelo Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça27 Maciel Monteiro Joaquim Nabuco Eduardo Portella28 Manuel Antônio de Almeida Inglês de Sousa Domício Proença Filho29 Martins Pena Artur Azevedo José Mindlin30 Pardal Mallet Pedro Rabelo Nélida Piñon31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Moacyr Scliar32 Araújo Porto-Alegre Carlos de Laet Ariano Suassuna33 Raul Pompéia Domício da Gama Evanildo Bechara34 Sousa Caldas J.M. Pereira da Silva João Ubaldo Ribeiro35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Candido Mendes de Almeida36 Teófilo Dias Afonso Celso João de Scantimburgo37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Ivan Junqueira38 Tobias Barreto Graça Aranha José Sarney39 F.A. de Varnhagen Oliveira Lima Marco Maciel40 Visconde do Rio Branco Eduardo Prado Evaristo de Moraes Filho

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Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923.Sede da Academia Brasileira de Letras,Av. Presidente Wilson, 203Castelo – Rio de Janeiro – RJ

Page 17: MARIO - Guardados Da Memória

Composto em Monotype Centaur 12/16 pt; citações, 10.5/16 pt.

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