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José Clerton de Oliveira Martins Licere, Belo Horizonte, v.11, n.2, ago./2008 Sentidos e possibilidades subjetivas do tempo livre 1 SENTIDOS E POSSIBILIDADES SUBJETIVAS DO TEMPO LIVRE Recebido em: 25/02/2008 Aceito em: 28/03/2008 José Clerton de Oliveira Martins 1 Universidade de Fortaleza Fortaleza- CE - Brasil RESUMO: O período Pós-Revolução Industrial foi marcado por uma profunda referência ao trabalho, tanto na estruturação social como na produção do sujeito moderno. Com a crise da sociedade centrada no trabalho, alguns valores e categorias são retomados e demandam uma nova caracterização. O domínio do trabalho na estruturação social passa a ser questionado e surgem idéias que colocam o tempo livre, o ócio e o lazer no papel de elementos estruturantes do novo contexto social. Antes de posicionar-se sobre essa passagem de domínio, o texto discute e reflete sobre tais categorias, abrindo uma possibilidade clara de sua territorialização no campo das ciências sociais, e, de forma especial, na sua contribuição a uma nova forma de produção subjetiva. PALAVRAS-CHAVE: Recreação. Lazer. Subjetividade. SUBJECTIVE SENSES AND POSSIBILITIES OF THE FREE TIME ABSTRACT: The period after the Industrial Revolution was marked by a deep reference to the work, such as in the social structure as in the production of the modern citizen. Because of the crisis of ‘work-centered society’, some values and categories are rescued and they demand a new characterization. The domain of the work in the social structure is questioned and some ideas arise, which place over the free time, the laze and leisure activities in the role of structure elements of the new social context. Before giving an opinion about this domain passage, the text argues and reflects on such categories, opening a clear possibility of its territorialization in the field of social sciences and, in a special way, in its contribution to a new form of subjective production. KEYWORDS: Recreation. Leisure. Subjectvity. 1 Doutor em Psicología pela Universitat de Barcelona (Espanha). Pós-doutorado em Leisure Studies pela Universidad de Deusto (País Basco/Espanha). Professor Titular do Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza.

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    SENTIDOS E POSSIBILIDADES SUBJETIVAS DO TEMPO LIVRE

    Recebido em: 25/02/2008Aceito em: 28/03/2008

    Jos Clerton de Oliveira Martins1

    Universidade de Fortaleza Fortaleza- CE - Brasil

    RESUMO: O perodo Ps-Revoluo Industrial foi marcado por uma profunda referncia ao trabalho, tanto na estruturao social como na produo do sujeito moderno. Com a crise da sociedade centrada no trabalho, alguns valores e categorias so retomados e demandam uma nova caracterizao. O domnio do trabalho na estruturao social passa a ser questionado e surgem idias que colocam o tempo livre, o cio e o lazer no papel de elementos estruturantes do novo contexto social. Antes de posicionar-se sobre essa passagem de domnio, o texto discute e reflete sobre tais categorias, abrindo uma possibilidade clara de sua territorializao no campo das cincias sociais, e, de forma especial, na sua contribuio a uma nova forma de produo subjetiva.

    PALAVRAS-CHAVE: Recreao. Lazer. Subjetividade.

    SUBJECTIVE SENSES AND POSSIBILITIES OF THE FREE TIME

    ABSTRACT: The period after the Industrial Revolution was marked by a deep reference to the work, such as in the social structure as in the production of the modern citizen. Because of the crisis of work-centered society, some values and categories are rescued and they demand a new characterization. The domain of the work in the social structure is questioned and some ideas arise, which place over the free time, the laze and leisure activities in the role of structure elements of the new social context. Before giving an opinion about this domain passage, the text argues and reflects on such categories, opening a clear possibility of its territorialization in the field of social sciences and, in a special way, in its contribution to a new form of subjective production.

    KEYWORDS: Recreation. Leisure. Subjectvity.

    1 Doutor em Psicologa pela Universitat de Barcelona (Espanha). Ps-doutorado em Leisure Studies pela Universidad de Deusto (Pas Basco/Espanha). Professor Titular do Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza.

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    Introduo

    O fator temporal passa por metamorfoses significativas, iniciadas no momento

    em que o homem resolve medir o tempo cotidiano e quantificar o tempo social na

    sociedade industrial, chegando comercializao do prprio tempo, que se torna uma

    mercadoria e passa a ter valor econmico.

    Nesse espao, surge pressa como um fenmeno tpico da atualidade e como

    mola mestra para os avanos tecnolgicos que fabricam equipamentos para se poder

    ganhar mais tempo.

    Os telefones celulares, as novas tecnologias de comunicao, a internet, entre

    outros, so mecanismos que marcam essa busca incessante por mais tempo. algo

    muito paradoxal, apressa-se tudo, cria-se instrumentos para se ganhar tempo, porm,

    termina-se por preencher esse tempo que se conseguiu com o apressamento de tudo,

    com mais atividades e afazeres.

    No caos entre necessidades econmicas e existenciais, o homem contemporneo

    se v dividido entre as obrigaes impostas por suas atividades laborais e o desejo de

    libertar-se dessas tarefas e, assim, poder usufruir de um tempo para si.

    Por outro lado, sabe-se que todo processo de educao/orientao, elaborados

    pela sociedade moderna, gerou os valores da atual sociedade do consumo que no

    contemplam a educao/orientao para ser/existir num tempo de nada fazer.

    Observa-se ainda, neste contexto, que o tempo na vida das pessoas organiza-se

    de acordo com padres assimilados sobre como se deve dispor desse tempo para as

    diversas atividades, alm de, como o sujeito valora o sentido do tempo para si. Dessa

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    maneira, as diferentes formas de sentir, pensar, agir e estabelecer o tempo seguem

    padres culturais que se refletem na ao do sujeito.

    Esclarece-se a afirmao anterior com o pensamento de Munn (1980) que

    apresenta quatro tipos fundamentais de tempo social: o primeiro o tempo

    psicobiolgico, que ocupado e conduzido pelas necessidades psquicas e biolgicas

    elementares, o que engloba o tempo de sono, nutrio, atividade sexual, etc. Esse tempo

    se condiciona endogenamente e um tempo individual.

    A segunda tipologia seria o tempo socioeconmico, que diz respeito ao tempo

    empregado para suprir as necessidades econmicas fundamentais, constitudas pelas

    atividades laborais, atividades domsticas, pelos estudos, enfim, pelas demandas

    pessoais e coletivas, sendo que esse tipo de tempo est quase que inteiramente

    heterocondicionado, somente sendo autocondicionado nas circunstncias que visam

    realizao pessoal.

    A terceira tipologia seria o tempo sociocultural, sendo aquele dedicado

    sociabilidade dos indivduos, referindo-se aos compromissos resultantes dos sistemas de

    valores e pautas estabelecidos pela sociedade. Essa categoria de tempo pode ser tanto

    heterocondicionado, por elaborar-se de forma exterior ao sujeito, como

    autocondicionado, quando se elabora de forma mais intrnseca sua vontade e

    autonomia, podendo existir um equilbrio entre os dois plos.

    Finalmente, o autor apresenta a quarta categoria de tempo social que o tempo

    livre, que se refere s aes humanas realizadas de forma mais autnoma. Nesta

    tipologia de tempo, o sujeito atua, ou deveria atuar, com percepo de fazer uso do

    tempo com total liberdade e de maneira criativa.

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    O tempo livre entendido por Munn (1980) como o tempo social livre de

    obrigaes de qualquer ordem, com um mximo de autocondicionamento do tempo e

    mnimo de heterocondicionamento. Deveria ser aquele tempo social, em que o homem

    conduz com maior grau de autonomia a sua vida pessoal e social. No entanto, observa-se

    que seu uso orientado ao consumo esvaziado de sentidos subjetivos termina por deterior-

    lo, mercantiliz-lo, coisificando-o e empobrecendo-o de significados.

    1. Sobre cio, Tempo Livre e Lazer

    A compreenso do conceito de cio surge na contemporaneidade um pouco

    obscura, devido amplitude que o termo possibilita, de acordo com as realidades de

    abordagens e interesses intrnsecos.

    Em nossas investigaes encontram-se trs termos que, de forma corrente,

    aparecem como sinnimos, inclusive muitas vezes, especialistas os utilizam como

    equivalentes. No entanto, sabe-se que tais termos possuem diferentes sentidos e, para

    seguir em frente, melhor esclarecer. Os termos so: lazer, cio e tempo-livre.

    No Brasil, no sentido amplo, as palavras cio e lazer aparecem como

    semelhantes. O termo tempo livre tambm est carregado dos mesmos sentidos, embora

    fique evidente j nas primeiras aproximaes, que o fenmeno lazer, acontece no tempo

    liberado ou livre sendo que este tempo, por tais adjetivos (livre e liberado), resguardam

    certa relao ao trabalho ou obrigaes.

    O termo lazer, desde a dcada de 60 do sculo XX, utilizado de forma

    crescente, sendo associado a palavras como entretenimento, turismo, divertimento e

    recreao; porm o sentido do lazer to polmico quanto origem e o sentido do

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    termo cio. Observa-se que a palavra lazer, no Brasil, resguarda seu conceito

    relacionado sociologia do lazer de Dumazedier (1973, 1979), que levou

    popularizao da sua teoria dos trs Ds.

    De acordo com o referido autor, o lazer exercido margem das obrigaes

    sociais e encontra-se submetido a um lugar de destaque, com funes de descanso,

    desenvolvimento da personalidade e diverso.

    Desta forma, lazer adentra o pensamento acadmico brasileiro a partir do

    pensamento da sociologia francesa. Percebe-se, observando a literatura existente, a

    influncia de Dumazedier na elaborao deste conceito e decorrente disso, lazer passou

    a representar:

    [...] um conjunto de ocupaes s quais o indivduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se, ou ainda, para desenvolver sua informao ou formao desinteressada, sua participao social voluntria ou sua livre capacidade criadora, aps livrar-se ou desembaraar-se das obrigaes profissionais, familiares e sociais (REQUIXA, 1976, p. 33).

    A palavra cio, por outro lado, resguarda valores negativos apregoados pela

    influncia religiosa crist, pela prpria histria da industrializao e modernizao

    brasileira, ao longo da qual se pode observar o surgimento de uma nova ordem entre

    empresrios e empregados, operrios e patres; e a necessidade de controle social no

    tempo fora do trabalho para garantir a ordem numa sociedade elitista, herdeira de

    valores colonialistas e escravagistas.

    Apesar do cio representar uma categoria muito antiga, somente aps a

    Revoluo Industrial; com o surgimento do chamado tempo livre, que representa uma

    conquista da classe operria frente explorao do capital; que o fenmeno cio foi

    evidenciado, ocorrendo ntida separao entre tempo-espao de trabalho (tempo

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    produtivo, tempo central e mais importante do indivduo digno) e cio (atividades

    contrrias ao trabalho, tempo secundrio, improdutivo), enquanto que o tempo livre

    passou a ser compreendido como aquele destinado s atividades de lazer voltadas

    reposio fsica e mental do sujeito trabalhador.

    Estudos atuais evidenciam que os termos em questo; cio, tempo livre e lazer,

    so muito diferentes pelo contexto de liberdade que invocam. No caso, tempo livre e

    lazer se apresentam na dinmica social brasileira carregado dos valores do sistema

    econmico dominante, relacionando-se diretamente com tempo de reposio de energia

    para o trabalho. O cio envolve um sentido de utopia por orientar a uma liberdade,

    supostamente longe de ser alcanada, haja vista, a prpria dinmica socioeconmica

    preponderante.

    Novos investigadores surgem no Brasil aportando abordagens crticas aos

    estudos do lazer, explicitando a necessidade de visualizao do fenmeno como fruto de

    um processo econmico social especfico. Nesse sentido, ressalta-se o trabalho de

    Mascarenhas (2005), em que se encontram colocaes como:

    [...] sobre o que o lazer, comum ainda encontrarmos respostas que o associam participao e ao desenvolvimento, dentre outras possibilidades que evidenciam seu potencial formativo, mas o fato que tendencial e predominantemente o que ele constitui mesmo uma mercadoria cada vez mais esvaziada de qualquer contedo verdadeiramenteeducativo, objeto, coisa, produto ou servio em sintonia com a lgica hegemnica de desenvolvimento econmico, emprestando aparncias e sensaes que, involucralmente, incitam o frenesi consumista que embala o capitalismo avanado. [...] o que estamos querendo dizer que num movimento como nunca antes se viu o lazer sucumbe de modo direto e irrestrito venalidade universal. A mercadoria no apenas uma exceo no mundo do lazer como antes, mas sim a regra quase geral que domina a cena histrica atual (MASCARENHAS, 2005, p.141).

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    No estudo de Mascarenhas (2005), encontramos referncia pesquisa de

    Marcassa2 (2002) sobre a inveno do lazer no Brasil, onde a autora relaciona o

    fenmeno lazer com a internacionalizao do capital,

    [...] quando, em fins do sculo XIX, incio do XX, o incipiente projeto de modernizao e industrializao promove a supresso do trabalho compulsrio, fincando bases sobre a explorao do trabalho livre. Vincula-se, alm disso, ao impulso dado urbanizao das cidades e s iniciativas de racionalizao da poltica. Associado tradio colonial, o lazer vai sofrer todo o tipo de interveno e controle, submetido a um tipo de condenao moral que buscava ajustar o antigo modo de vida s exigncias da produo capitalista. Como esclarece a autora, o lazer constitua-se como expresso de uma ao deliberada de amoldamento da subjetividade proletria, um processo de institucionalizao da vida cultural que atingiu em cheio a formao social dos trabalhadores na direo do aburguesamento da sociedade, banindo assim experincias no alinhadas nova disciplina do trabalho (MARCASSA, 2002, citado porMASCARENHAS, 2005, p. 230-231).

    Ao refletir sobre afirmaes como as citadas acima, fica evidente o

    carter disciplinador advindo dos valores sociais dominantes que refletem a centralidade

    do tempo de trabalho e o controle da vida social do sujeito comum, rumo a uma ordem

    social estratificada que orientou, dentro e fora das fbricas, conceitos e prticas que

    geraram preconceitos e equvocos.

    Desta forma, talvez possamos inferir que a elaborao do pensamento brasileiro

    que gerou em nosso mbito os conceitos ou compreenses de cio, lazer e tempo livre,

    bem como as prticas destes no cotidiano social, esto contaminadas de valores que

    conclamam na contemporaneidade, revises e novos vislumbramentos, motivo que

    fortalece a discusso acadmica rumo ao revigoramento dos conceitos e suas aplicaes.

    2 MARCASSA, Luciana. A inveno do lazer: educao, cultura e tempo livre na cidade de So Paulo (1888-1935). 2002. Dissertao (Mestrado em Educao) Faculdade de Educao, Universidade Federal de Gois, Goinia, 2002.

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    O tempo no apenas um construto elaborado socialmente. O tempo uma

    categoria tambm da ordem do subjetivo, assim seus sentidos e significados so

    elaborados por quem o vivencia. Desta forma, uma experincia no tempo livre

    percebida na vivncia subjetiva, pode representar uma experincia esvaziada, ou at

    mesmo, no significar descanso, desenvolvimento pessoal ou divertimento.

    As experincias vivenciadas nos momentos de cio ou lazer, desprovidas de

    qualquer valor subjetivo, conectadas apenas com a oferta da indstria cultural de

    entretenimento, no agem no sujeito como experincias transformadoras, portanto so

    experincias de um outro mbito e ao final de sua durao restam apenas o cansao e o

    tdio do qual se tentou fugir.

    No final do sculo XX, nos anos 90, o termo cio criativo torna-se comum no

    Brasil, fruto das publicaes do socilogo italiano Domenico de Masi. Este autor

    apregoava sua idia de cio criativo como um modelo a ser perseguido por pessoas e

    organizaes, na busca de um modo de viver e trabalhar criativamente, a partir da

    reduo do tempo de trabalho, descentralizao da empresa enquanto lugar de trabalho e

    do surgimento de uma economia centrada no tempo livre.

    Muito divulgadas e tambm muito criticadas, as idias de De Masi (2000)

    refletem valores utilitaristas, muito comuns quando se pensa em cio e tempo livre.

    Percebe-se que no foco central da idia de cio criativo, est o trabalho contaminado

    pelos valores do cio, ou seja, descentraliza-se o local de trabalho que em geral

    artificial, cheio de leis e cdigos e outros elementos ambientais que em geral no

    contribuem para uma condio criativa e, como o foco do trabalho contemporneo est

    na criatividade, prope-se transformao de espaos propcios para a criao em

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    espaos de trabalho. E assim, a casa, o atelier artstico, a rua, a praa, o caf e os lugares

    de possveis cios, ou qualquer outro tempo/espao de percepo de autonomia e

    liberdade pessoal, que impregnados de subjetividade e potencialmente, propensos ao

    surgimento de idias originais, transformam-se em lugares de trabalho criativo.

    Neste sentido, compreendemos quando Mascarenhas coloca que:

    [...] De Masi no concebe o cio criativo nem como compensao escapista s insatisfaes do trabalho e nem como instrumento para a recuperao da fora de trabalho, mas, sim, como o prprio trabalho, supostamente, colonizado pelo cio, isto , o trabalho criativo que, ao mesmo tempo, confunde-se e iguala-se ao cio criativo (2005, p. 216).

    2. cio a Partir da Experincia Subjetiva

    O cio constitui uma experincia gratuita, necessria e enriquecedora da

    natureza humana. No pensamento que convoca a subjetividade, o cio tem relao com

    a vivncia de situaes e experincias prazerosas e satisfatrias, intrnsecas ao sentido

    atribudo por quem as experimenta.

    Nesta perspectiva, identificamos em Cuenca duas possibilidades de visualizao

    do fenmeno cio:

    [...] do ponto de vista objetivo, se confunde com o tempo dedicado a algo, com os recursos investidos ou, simplesmente, com as atividades. Do ponto de vista subjetivo, especialmente importante considerar a satisfao que cada um percebe na experincia vivida (2003, p.15).

    Desta forma, em termos subjetivos, o cio est integrado forma de ser de cada

    pessoa, sendo expresso de sua identidade, independente de atividades, do nvel

    econmico ou da formao de quem o vivencia, mas resguarda relao ao sentido

    atribudo, conectando-se com o mundo da emotividade individual.

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    A subjetividade adquire assim, um papel importante nesse desafio de

    (re)significar e dar sentido a conceitos como o de cio e tempo livre. Esse tambm o

    momento da (re)configurao de uma srie de conceitos que foram construdos ao longo

    da histria social recente, e de retomada de outros praticamente abandonados.

    Para se compreender o cio, necessrio recuperar algumas informaes sobre

    aspectos relacionados sua essncia: o jogo (ldico), a festa, a criatividade, a

    participao voluntria, a satisfao, a felicidade, o autodesenvolvimento, a integrao

    solidria etc. tambm interessante refletir sobre as possibilidades prticas de cio:

    cultural, esportiva, recreativa, turstica, a partir de sua concepo e valorizao atravs

    do tempo.

    Sugere-se, para a compreenso do cio, uma leitura unificada de todas estas

    dimenses. Cuenca (2003), orienta que o caminho disciplinar no o melhor meio de

    acesso ao conhecimento sobre as possibilidades contemporneas do cio. Sabe-se que

    as disciplinas acadmicas que aparecem hoje, como clssicas e tradicionais nas

    universidades, necessitam a partir do novo universo cientfico que a contemporaneidade

    configurou, convocar o olhar mais amplo para dar conta dos fenmenos humanos em

    contextos de complexidade, assim o caminho inter/multidisciplinar convocado para

    explicar, por exemplo, o contexto complexo que envolve o fenmeno cio na

    atualidade.

    Os estudos sobre o cio representam a afirmao de um modelo aberto com

    aproximaes epistemolgicas e metodolgicas mltiplas, baseadas em contnuas e

    diversas anlises, mtodos e recursos de vrias disciplinas que compartilham seu

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    objetivo de conhecimento sobre o cio. Atualmente, falar em cio algo complexo e

    nos remete a muitas possibilidades,

    [...] Para uns o problema se reduz aos usos do tempo ou ocupao. Para outros vem a ser prticas de atividades no obrigatrias, desejadas e queridas. Outros, por fim, falam do cio a partir dos parmetros das cifras econmicas. Os jovens entendem que viver o cio um direito democrtico, semelhante a outros cada vez mais utpicos, como o direito ao trabalho. Um cidado de um pas desenvolvido no saberia viver sem televiso, esporte, cultura, viagens, msica moderna ou frias. O sculo XX desenvolveu um novo tempo social centrado no cio, cuja transcendncia est ainda, por ser descoberta (CUENCA, 2003, p. 31).

    Falar em cio obriga a ressaltar sua importncia social e econmica a partir de

    suas prticas, atividades e vivncias. Da mesma forma, sobre a incidncia que sua

    prtica tem na construo e desconstruo de valores. Certamente, deve-se estar

    consciente dos malefcios que uma poltica econmica, centrada apenas no lucro da

    explorao de atividades consumistas e esvaziadas de valor, fruto da ausncia de uma

    educao para o cio, pode levar a prticas consideradas como negativas no mbito

    individual ou social:

    [...] Diante do mundo de evaso, distrao e espetculo que nos rodeia, o ser humano se torna cada vez mais limitado, cada vez mais dependente das mquinas, menos ator e mais espectador de uma realidade irreal. Falar de cio se transforma neste contexto, num questionamento de cada um consigo mesmo, de como ser um pouco mais livre para fazer o que se quer. [...] a vivncia de cio uma experincia que nos ajuda a nos realizar, nos conhecer, nos identificar, nos sentir melhores, sair da rotina, fantasiar e recuperar o equilbrio das frustraes e desenganos (CUENCA, 2003, p. 32).

    A partir da dcada de 1980 os estudos de Roger Sue contribuem com a idia de

    que, independente das teorias que possam existir, h uma srie de funes que se

    manifestam como conseqncia da experincia de cio.

    Segundo este autor, as funes do cio se organizam em trs grupos:

    psicolgicas, sociais e econmicas. No grupo das funes psicolgicas, inclui as

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    funes de desenvolvimento, diverso e descanso j tratadas em Dumazedier;

    compreendendo que tais funes atendem, parcialmente, a compensao das perdas

    humanas causadas pelo trabalho, possibilitando um equilbrio psicolgico ao indivduo.

    As funes sociais estariam relacionadas com a integrao social, o simbolismo e a

    terapia. (SUE3 apud CUENCA, 2003)

    A funo simblica sinaliza que o cio oferece a percepo de identidade e

    pertencimento a uma categoria social, alm de uma afirmao pessoal com relao aos

    demais, atravs da escolha de atividades de ocupao no tempo livre. A funo

    teraputica considera que o cio oferece a possibilidade de contribuir para a manuteno

    da sade fsica e mental.

    Dentro do grupo das funes econmicas, ressalta-se a crescente observao de

    gastos pessoais e familiares com atividades de cio, bem como a incidncia deste na

    economia e vice-versa.

    Em todas as funes indicadas por Sue, at mesmo quando convoca a

    socializao em referncia s condies de trabalho na atualidade, urbanizao intensa

    e s novas formas de viver que geram um empobrecimento da comunicao interpessoal

    e, conseqentemente, um isolamento, percebe-se nas abordagens do autor, o cio como

    um contraponto. Isso nos remete reflexo sobre a subjetividade envolvida na questo

    social posta, reforando a idia para uma concepo de cio e tempo livre por seu vis

    subjetivo.

    3. cio: Vivncia Humanista e Experincia Integral

    3 SUE, R. Em Le Loisier. Paris: Presses Universitaires de France, 1980.

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    Uma das relaes mais observadas no fenmeno do cio atribu-lo ao tempo.

    Para Cuenca (2003), o cio jamais pode ser identificado com tempo, uma vez que o

    tempo, em si, no define a ao humana. A identificao que se produziu entre cio e

    tempo livre um produto dos estudos da sociologia, difundidos a partir da segunda

    metade do sculo XX e at os anos 80 do mesmo sculo. Tal fato dificultou a

    compreenso do cio, por no incluir a percepo psicolgica.

    Apenas com o tempo livre no se pode falar do que seria uma experincia de

    cio, apesar de o tempo constituir uma coordenada vital para qualquer ato humano. A

    expresso tempo livre se torna importante nesta relao pela palavra livre que sugere

    interface com o exerccio humano de identidade, reconhecimento, auto-reconhecimento

    e vontade. A partir destes enfoques psicolgicos, o cio convoca um sentido de

    liberdade de escolha e insero subjetiva na elaborao do tempo da experincia.

    Dessa forma, o tempo e a atividade em si no podem determinar uma

    experincia de cio. A ao uma referncia que, com a percepo de quem a realiza,

    pode ou no ser uma vivncia de cio.

    [...] a vivncia humanista do cio ou deveria ser uma experincia integral e relacionada com o sentido da vida e os valores de cada um. Isso pode ocorrer graas formao. A pessoa formada capaz de converter cada experincia de cio numa experincia de encontro. Cada encontro uma re-criao que proporciona vontade de viver (KRIEKEMANS4 em CUENCA, 2003 p. 63).

    Infere-se ento, que a vivncia de cio possibilita contextos experienciais que

    podem ser mbitos para a recriao ou no. Porm, o cio humanista se diferencia de

    4 KRIEKEMANS, A. La educacin del empleo de los cios em Pedagogia General. Barcelona: Editora Herder, 1973.

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    outras vivncias por sua capacidade de sentido e potencialidade de encontros criativos,

    que levam ao desenvolvimento pessoal.

    Na conjuntura atual, compreender o cio como um valor torna-se difcil sem um

    processo de informao. Desta forma, a compreenso do cio humanista no algo que

    se desenvolve sozinho, tratando-se, pois, de uma vivncia que se desenvolve pela

    aquisio de conhecimentos. Quanto mais informao sobre o cio e seus valores para a

    pessoa e para a sociedade, mais capacidade de compreend-lo, busc-lo e viv-lo.

    Reflexes Finais

    Encontramo-nos entre movimentos atuais como o Slow Food no mbito

    internacional, o Clube do Nadismo e a Simplicidade voluntria no Brasil, em que as

    pessoas questionam suas opes e travam lutas de cunho ecolgico reivindicando para

    si um tempo mais tranqilo, um tempo elaborado com mais sentido subjetivo,

    autocondicionado para usar o termo de Munn (1980).

    Nesta perspectiva, surgem novos hbitos, novas formas de se viver o tempo de

    forma mais autnoma e de consumo mais consciente. Isso representa o ato de viver

    inscrevendo-se subjetivamente no tempo.

    Essa idia de tempo substitui a lgica linear e cronolgica, abrindo espao para

    uma compreenso, alm das j postas ou pr-inscritas como numa linha de montagem

    ou nos desenhos de tempos e movimentos.

    Para finalizar lanamos uma pergunta: queremos, nesse mbito contemporneo,

    apenas descanso, divertimento e desenvolvimento pessoal/social? Parece que existem

    outras dimenses de nossa condio humana nesta contemporaneidade a serem

  • Jos Clerton de Oliveira Martins

    Licere, Belo Horizonte, v.11, n.2, ago./2008

    Sentidos e possibilidades subjetivas do tempo livre

    15

    contempladas, que apesar do que j percorremos e do muito que conseguimos, fica a

    impresso de que os conceitos elaborados num passado recente, no respondem de

    forma plena s questes no presente que configuramos.

    A centralidade do tempo contemporneo, ainda no tempo de trabalho voltado

    para o consumo e realizaes que se concretizam no mbito do material, d vez a um

    sujeito longe de sua realizao subjetiva, de seu potencial criativo e satisfao

    intrnseca. Este cenrio mantm o sujeito na busca de um tempo verdadeiramente, livre

    para a expresso de suas subjetividades, ainda diludas em tempos de vazio.

    REFERNCIAS

    CUENCA, M. C. Ocio humanista, dimensiones y manifestaciones actuales del ocio.Documentos de Estudios de cio. Bilbao, n.16. Instituto de Estdios de cio/Universidad de Deusto, 2003.

    DE MASI, D. O cio criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.

    DUMAZEDIER, J. Lazer e cultura popular. So Paulo: Perspectiva, 1973.

    ______. Sociologia emprica do lazer. So Paulo: Perspectiva, 1979.

    MASCARENHAS, F. Entre o cio e o negcio: teses acerca da anatomia do lazer. 2005. Tese (Doutorado em Educao Fsica) Faculdade de Educao Fsica, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.

    MUNN, F. La psicosociologia del tiempo libre. Cidade do Mxico: Ed. Trilla, 1980.

    REQUIXA, R. As dimenses do lazer. Caderno de Lazer SESC, So Paulo, doc. 1, Jul. 1976.

    Endereo do Autor:

    Jos Clerton de Oliveira MartinsAv. Santos Dumont, 6915, apto. 502Fortaleza CE Cep.60190-800Endereo eletrnico: [email protected]